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MARIA LUSA SEABRA MARQUES DE AZEVEDO
TOPONMIA MORABE
NO
ANTIGO CONDADO CONIMBRICENSE
Dissertao de Doutoramento na rea de Lnguas e Literaturas
Modernas, especialidade de Lingustica Portuguesa, apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao da
Senhora Professora Doutora Maria Jos de Moura Santos
FACULDADE DE LETRAS
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
2005
-
NDICE GERAL
NDICE GERAL
.............................................................................................................
1
NDICE DE FIGURAS
...................................................................................................
6
NDICE DE MAPAS TOPONMICOS
............................................................................
6
AGRADECIMENTOS
....................................................................................................
7
CAPTULO 0. INTRODUO
.......................................................................................
9
1. Objectivos e metodologia de trabalho adoptada
.............................................. 9
2. Breve resenha bibliogrfica
...........................................................................
16
3. Revivalismo
oriental.......................................................................................
25
CAPTULO I. PRESSUPOSTOS HISTRICOS
.......................................................... 33
4. A romanizao
...............................................................................................
34
4.1 O latim vulgar
............................................................................................
38
5. As invases germnicas
................................................................................
42
6. As invases rabes
.......................................................................................
46
7. A Reconquista crist
......................................................................................
54
7.1 Repovoamento e ermamento
..................................................................
61
7.2 Toponmia relacionada com o repovoamento e a Reconquista
................. 66
7.3 rabes que permaneceram em Portugal
................................................... 77
7.4 Populaes morabes
.............................................................................
80
7.4.1 Territrio de Coimbra
.......................................................................
88
CAPTULO II. ENCONTRO DE CULTURAS
.............................................................
101
8. Os arabismos
..............................................................................................
104
8.1 Topnimos rabes
..................................................................................
107
9. As artes
.......................................................................................................
108
9.1 Arte morabe
........................................................................................
111
9.2 Arte mudjar
...........................................................................................
119
-
2
9.3 Outras manifestaes artsticas
..............................................................
124
10. Cincia e tcnica
.........................................................................................
127
11. As Letras
.....................................................................................................
137
12. O urbanismo e a administrao
...................................................................
146
13. A vida e os objectos do quotidiano
..............................................................
150
CAPTULO III. OS DIALECTOS MORABES
......................................................... 157
14. Fontes documentais
....................................................................................
157
14.1 Glossrios
...............................................................................................
158
14.2 Tratados cientficos
.................................................................................
159
14.3 Cancioneiros
...........................................................................................
160
14.4 Onomstica
.............................................................................................
163
14.5 Latim usado pelos morabes (na literatura)
........................................... 165
14.6 Regionalismos morabes
......................................................................
165
15. Evoluo fontica
........................................................................................
166
15.1 Vocalismo
...............................................................................................
168
15.1.1 Transcrio de vogais em palavras rabes
.................................... 169
15.1.2 Tratamento de e latinos
.......................................................... 170
15.1.3 Vogais
finais...................................................................................
171
15.1.3.1 Plurais femininos em -as
........................................................... 176
15.1.4 Ditongos [au], [ai], [ei] e [ou]
...................................................... 177
15.2 Consonantismo
.......................................................................................
180
15.2.1 P- inicial
.........................................................................................
181
15.2.2 F- inicial
.........................................................................................
182
15.2.3 J-, G- iniciais
..................................................................................
183
15.2.4 L- inicial
..........................................................................................
184
15.2.5 Grupos latinos CL, PL e FL
............................................................
186
15.2.6 Ce, i
...............................................................................................
188
-
3
15.2.7 S- inicial
.........................................................................................
190
15.2.8 Grupo SCe, i
..................................................................................
190
15.2.9 Consoantes surdas intervoclicas
.................................................. 190
15.2.10 -J-, -Ge, i- e -GI- intervoclicos
..................................................... 192
15.2.11 Grupos consoante + [i]
.................................................................
193
15.2.12 Grupo -CT-
....................................................................................
193
15.2.13 -N- e -L- intervoclicos
...................................................................
194
15.2.14 Grupos -LL- ~ -LI-. -C'L-
...............................................................
195
15.2.15 Grupos -NI- e -NN-
.......................................................................
198
15.2.16 Grupos -MB- e -ND-
......................................................................
198
15.2.17 L + consoante
................................................................................
199
15.2.18 N na slaba final
.............................................................................
199
16. Interinfluncias romnicas e rabes
............................................................
200
16.1 Evoluo de alguns nomes rabes segundo as tendncias da
fontica
galego portuguesa
..................................................................................
200
16.1.1 Sonorizao de consoantes surdas intervoclicas
......................... 201
16.1.2 Evoluo de -b- intervoclico para -v-
........................................... 201
16.1.3 Palatalizao de -ni- e -li-
.......................................................... 201
16.1.4 Evoluo dos ditongos [ai] > [ei] e [au] > [ou]
............................. 201
16.1.5 Sncope de -l- e de -n-
..................................................................
202
16.2 Condicionamento dos nomes de origem latina pela fontica
rabe ......... 202
16.2.1 Substituio de [p] por [b] em posio forte
................................... 202
16.2.2 Evoluo do grupo -ST-
................................................................
203
16.2.3 Palatalizao de algumas consoantes surdas
................................ 204
16.2.4 Imela (passagem de /a/ tnico a /e/ ou a /i/)
................................ 204
16.3 Interferncias morfossintcticas
..............................................................
205
-
4
16.3.1 Supresso de /r/ no sufixo romnico -eira (> -eia)
.......................... 205
16.3.2 Aglutinao do artigo rabe al
........................................................ 206
16.3.3 Ben / Ban, forma encurtada de ibn filho' + antropnimo
romnico . 212
16.3.4 Od- 'gua, curso de gua' + base romnica
................................... 213
16.3.5 Vestgios da declinao arbica
..................................................... 215
16.3.6 Substituio de -iz por -ique
........................................................... 215
CAPTULO IV. HISTRIA DOS TOPNIMOS MORABES DO ANTIGO
CONDADO DE COIMBRA
..................................................................
217
17. Vocalismo
....................................................................................................
217
17.1 Vogais finais
............................................................................................
217
17.2 Conservao do ditongo [ai]
.................................................................
343
18. Consonantismo
............................................................................................
351
18.1 Grupos latinos CL, PL e FL
.....................................................................
351
18.1.1 Anaptixe no interior destes grupos ou entre consoantes
................ 357
18.2 Ce, i
........................................................................................................
364
18.3 Si
............................................................................................................
381
18.4 Consoantes surdas intervoclicas
........................................................... 381
18.5 Grupos consoante + [i]
...........................................................................
386
18.6 Conservao de -N- intervoclico
........................................................... 396
18.7 Conservao de -L- intervoclico
............................................................
446
18.8 Palatalizao de -LL- nos diminutivos em -LLA(S) e -LLOS
(> -elha(s)
e -elhos, respectivamente)
......................................................................
471
18.9 Palatalizao de -NN-
.............................................................................
478
19. Condicionamento dos nomes de origem latina pelo idioma rabe
............... 480
19.1 Alteraes fonticas em consoantes
....................................................... 480
19.2 Imela (passagem de /a/ tnico a /e/ ou a /i/)
......................................... 487
19.3 Interferncias morfossintcticas
..............................................................
488
-
5
19.3.1 Supresso de /r/ no sufixo romnico -eira (> -eia)
.......................... 489
19.3.2 Aglutinao do artigo rabe al
........................................................ 490
19.3.3 Ban / ben, forma encurtada de ibn filho' + antropnimo
romnico . 561
19.3.4 Substituio de -iz por -ique
........................................................... 568
CAPTULO V. NOTAS FINAIS
..................................................................................
571
20. Densidade de topnimos morabes no territrio estudado
........................ 573
20.1 Distrito de Aveiro
.....................................................................................
579
20.2 Distrito de Coimbra
.................................................................................
581
20.3 Distrito de Leiria
......................................................................................
583
20.4 Distrito de Viseu
......................................................................................
585
21. Marcas mais recorrentes nos topnimos morabes do antigo
Territrio de
Coimbra
.......................................................................................................
588
NDICES REMISSIVOS DOS TOPNIMOS ESTUDADOS
...................................... 593
Alfabtico
..............................................................................................................
593
Geogrfico
............................................................................................................
607
BIBLIOGRAFIA
.........................................................................................................
627
Obras, artigos e recenses de carcter lingustico
................................................ 627
Dicionrios, enciclopdias, atlas e gramticas descritivas
.................................... 652
Obras de carcter histrico, literrio, etnogrfico, artstico,
geogrfico... .............. 654
Revistas
................................................................................................................
659
Textos breves de jornais e revistas
.......................................................................
662
Textos sonoros e flmicos
.....................................................................................
663
Fontes electrnicas
...............................................................................................
663
Fontes cartogrficas
.............................................................................................
668
ANEXO I. TOPNIMOS MORABES
............................................................... A.
I - 1
ANEXO II. TOPNIMOS RABES
......................................................................
A. II - 1
-
6
NDICE DE FIGURAS
Figura 1 O avano da Reconquista e o jogo de foras polticas na
Pennsula Ibrica
............................................................................................................................
57
Figura 2 A progresso da Reconquista no actual territrio portugus
...................... 60
Figura 3 Arcos lobulados simples e entrecruzados da Mesquita de
Crdova ........ 110
Figura 4 Bosque de colunas da mesquita de Crdova
........................................... 111
Figura 5 Arcos do claustro da colegiada de Nossa Senhora da
Oliveira - Guimares
..........................................................................................................................
115
Figura 6 Pormenor da torre da igreja de S. Frutuoso de Montlios
- Braga ........... 116
Figura 7 Porta morabe Antigo mosteiro de S. Jorge de Milreus -
Coimbra ...... 117
Figura 8 Interior da igreja de S. Pedro de Lourosa da Serra -
Oliveira do Hospital 118
NDICE DE MAPAS TOPONMICOS
Mapa 1 Perspectiva geral da distribuio de topnimos morabes no
antigo
Condado de Coimbra
........................................................................................
577
Mapa 2 Distribuio de topnimos morabes no distrito de Aveiro
...................... 580
Mapa 3 Distribuio de topnimos morabes no distrito de Coimbra
................... 583
Mapa 4 Distribuio de topnimos morabes no distrito de Leiria
....................... 585
Mapa 5 Distribuio de topnimos morabes no distrito de Viseu
....................... 587
-
AGRADECIMENTOS
Este trabalho no teria sequer sido comeado no fosse a grande
disponibilidade com que, muito generosamente, a Professora
Doutora Maria Jos de
Moura Santos se prontificou a orient-lo. Depois, faz-lo e
sofr-lo teria sido difcil
sem a bibliografia posta minha disposio, sem os conhecimentos,
sem os
ensinamentos, sem o tempo que dedicou a ler, a corrigir, a
sugerir... enfim, sem o
empenho pessoal, o incentivo e o carinho que coloca nas tarefas
em que acredita.
Obrigada por ter acreditado!
No quero deixar de agradecer ao Conselho Directivo da Faculdade
de Letras
as facilidades concedidas em relao reproduo e encadernao deste
volume.
Agradeo igualmente o apoio pessoal de muitos dos docentes e de
alguns
funcionrios desta casa, bem como a ateno do Instituto de Lngua e
Literatura
Portuguesas.
Fico muito grata Senhora Doutora Ana Faria pela cedncia de
material
fotogrfico relativo porta morabe (capa e figura 7), que eu tinha
localizado
aquando de uma visita ao antigo mosteiro de S. Jorge de Milreus,
onde est instalada
a Escola Universitria Vasco da Gama, instituio que tambm
cumprimento.
Devo tambm uma palavra de reconhecimento a alguns familiares e
amigos
pelo seu incentivo.
E, finalmente, um abrao ao meu filho Diogo que, prescindindo de
muitas horas
do seu tempo, me deu apoio na rea informtica, ajudando-me a
resolver muitos dos
problemas tcnicos que foram surgindo na digitalizao do trabalho,
nomeadamente
a insero de gravuras e de ndices, a elaborao de tabelas, o
desenho de mapas e o
arranjo grfico final.
-
CAPTULO 0
INTRODUO
1. Objectivos e metodologia de trabalho adoptada
Aps uma tentativa de abordagem global da toponmia morabe
portuguesa1
(inevitavelmente incompleta e superficial), em que se pretendeu
abarcar todo o
territrio continental, perspectivando uma viso tanto quanto
possvel "panormica" de
um assunto to pouco desenvolvido, este trabalho surge agora com
o objectivo de
estudar mais aprofundadamente as marcas toponmicas dos dialectos
morabes
sobreviventes no antigo territrio de Coimbra. O desafio comeou a
desenhar-se com
a leitura de uma passagem da Advertencia Preliminar de Galms de
Fuentes que,
depois de se referir aos diversos idiomas morabes estudados na
sua Dialectologa
mozrabe, acrescenta: faltan los estudios correspondientes a dos
reas norteas de
importante poblacin mozrabe, Coimbra e Zaragoza. Pero de Coimbra
no existen
datos que permitan un estudio de su dialecto mozrabe.2
Estas palavras identificam imediatamente duas das vrias
dificuldades de que
esta opo de trabalho se revestiu: a falta de estudos e de dados
sobre o antigo
territrio de Coimbra. De facto, natural que dialectos
cronologicamente to
longnquos e escassamente documentados no tenham constitudo, at
hoje, uma
rea de investigao muito apetecvel: poucos autores se debruaram
especificamente
1 Maria Lusa S. M. AZEVEDO, Toponmia morabe em Portugal,
dissertao de mestrado
(indita), 2 vols., Coimbra, 1994. 2 . GALMS DE FUENTES,
Dialectologa mozrabe, Madrid, 1983, p. 13, nota 2.
-
10 Captulo 0 Introduo
sobre o tema e, portanto, a bibliografia existente escassa e
lacunar. Por outro lado,
apesar de a toponmia especialmente a menor, pelo seu carcter
particularmente
conservador ser um precioso meio para o estudo de dialectos, a
etimologia
toponmica revela-se, como sabido, um dos mais vastos e
complicados campos da
lingustica, por vezes cheio de trevas to espessas que mal nos
permitem ver.3 Alm
disso, impossvel estudar nomes de terras sem cruzar
constantemente dados
lingusticos com informaes de carcter histrico e geogrfico, o
que
simultaneamente complexifica e valoriza o trabalho. Recordem-se,
a propsito, as
palavras de Jos Pedro Machado: os problemas de toponmia nunca
podem deixar de
estar na moda, porque, para alm do prazer, necessariamente
limitado, de organizar
com bases cientficas a histria do nome de uma localidade, h o
que esse trabalho
(por vezes trabalho que Hrcules recearia ver acrescentado aos
seus...) consegue
representar para o estudo da localidade e, atravs deste e com o
auxlio de idntica
investigao, para outros nomes da mesma espcie, de uma ou mais
civilizaes. E
de uma ou mais civilizaes porque temos de considerar: a que
dominou o stio e
aquela ou aquelas que por l depois passaram e conseguiram
modificar o nome inicial
e tambm aquela ou aquelas que sabemos por l terem passado sem
qualquer
perturbao para o elemento onomstico local..4
Mas se o estudo da toponmia se constitui como um precioso
subsdio para a
histria, nem por isso deixa de ser uma disciplina lingustica,
com tudo o que isso
implica em termos de rigor e objectividade: a toponmia, embora
se tenha revelado,
nestes ltimos tempos, valiosa auxiliar da histria, continua a
ser uma cincia
primordialmente lingustica, cujos princpios no se podem
impunemente desprezar..5
3 J. J. NUNES, Nomes de pessoas na toponmia portuguesa, Boletim
da Classe de Letras,
vol. XIII, 1921, p. 1261. 4 J. P. MACHADO, Notas de toponmia
portuguesa, separata do Boletim Mensal da Sociedade
de Lngua Portuguesa, n. 13, 1962, p. 3. 5 Joseph M. PIEL,
Recenso a C. E. DUBLER, ber Berbersiedlung auf der Iberischen
-
1 Objectivos e metodologia de trabalho adoptada 11
A delimitao geogrfica da zona a estudar constituiu outro
problema de vulto,
porque os limites territoriais do Condado de Coimbra no tm sido
objecto de claro
consenso nem de rigorosa definio. De facto, quando se referem a
este territrio,
muitos historiadores no o delimitam ou fazem-no de forma vaga e
superficial, talvez
porque as fontes histricas possibilitem interpretaes diversas.
Documentos dos
sculos IX a XIV registam grande variedade de vocbulos
designatrios de realidades
fsicas, poltico-militares e scio-econmicas ligadas ao
ordenamento territorial da
medievalidade coimbr. medida que tais realidades se foram
alterando e, com
elas, a reorganizao espacial , os termos que as identificavam
sofreram evolues
semnticas, extenses ou restries de significado, tendo mesmo
sido, por vezes,
substitudos por outros.6 No ser, pois, de estranhar a falta de
coincidncia absoluta
entre os especialistas: para uns, apesar de Coimbra ser a
civitas de um imenso
territrio (...) compreendido, grosso modo, entre o Mondego e o
Vouga rios que, no
entanto, ultrapassar para Sul e para Norte e onde se incluem
outros territoria
menores;7 outros entendem-no ainda mais amplo a cabea de uma
vasta diocese
que se espraiava desde a margem sul do Douro at Tomar; um
condado ou distrito,
cuja rea abrangia, a nascente, Lamego, terminava ao norte com o
Douro, a poente
com o Mar e pelo sul com a fronteira muulmana, viva e ondeante,
mas mais ou
menos dependente da da linha de fortaleza do Mondego.8 A
confirm-lo, temos as
Halbinsel, Revista Portuguesa de Filologia, vol. I, 1947, p.
246-247. 6 Leontina VENTURA, Coimbra medieval. 1. A gramtica do
territrio, Biblos, vol. LXXVI,
2000, p. 19-36. Territorium, suburbium, termo, fines, confines,
partes, civitas, urbs, vila, cidade
e arrabalde so os termos recolhidos e estudados pela Autora. 7 ,
por exemplo, a opinio de Leontina VENTURA, Coimbra medieval. 1. A
gramtica do
territrio, cit., p. 23. 8 Como se ver adiante (7.4.1 Territrio
de Coimbra), so vrios os Autores que partilham este
entendimento e consideram o Condado de Coimbra uma unidade
social, poltico-militar e
administrativa geograficamente muito vasta. Transcreveram-se,
respectivamente, palavras de
Maria Teresa Nobre VELOSO, Evocando a memria da reconquista
crist de Coimbra a 9 de
Julho de 1064, Dirio de Coimbra, 09-07-2004, p. 11; e de Jaime
Corteso, in Guia de
-
12 Captulo 0 Introduo
palavras do prprio D. Sisnando, o primeiro governador do
condado: no tempo em
que reinava o serenssimo rei D. Fernando [de Leo], eu, o cnsul
Sisnando, recebi
dele o governo de Coimbra e de todas as cidades ou castelos que
existem por todo o
seu circuito, a saber, desde Lamego at ao mar pelo curso do
Douro, at aos limites
todos que os cristos possuem ao sul.9 A estes indcios juntou-se
a delimitao da
rea de influncia do mosteiro de Alcobaa e das antigas dioceses
de Viseu e Lamego
que, mesmo depois de restauradas, se mantiveram sob administrao
da de
Coimbra.10 Acresce ainda que, at durante as querelas
eclesisticas entre as
metrpoles de Braga e de Santiago de Compostela, as dioceses de
Lamego, Viseu e
Coimbra formaram, com o mosteiro de Alcobaa, um ncleo coeso,
verificando-se que
esse territrio coincidia grosso modo com o dos actuais distritos
de Aveiro, Viseu,
Coimbra e Leiria.11 Se bem que este ltimo no se possa enquadrar,
com preciso,
nos referidos limites do Condado de Coimbra, a fronteira sul era
to indefinida e
flutuante que seria difcil uma delimitao mais rigorosa. Alm da
deslocao da corte
condal de Guimares para Coimbra, uma das estratgias para
estabilizar e reforar a
posio crist no territrio a sul do Mondego consistiu, como se
sabe, no
estabelecimento das bases administrativas da regio, com a
atribuio de forais,12
incentivos fixao de populaes morabes subsistentes e de
povoadores do
Portugal, vol. III (Beira. I. Beira Litoral), 2 ed., Lisboa, s/d
[1984], p. 185. 9 GEPB, vol. 29, s.v. SISNANDO.
10 Cf. Jos MARQUES, As dioceses portuguesas at 1150, Biblos,
vol. LXXVIII, 2002, p.
48-51; e Manuel Augusto RODRIGUES (direco e coordenao) e Avelino
de Jesus da
COSTA (orientao cientfica), Livro Preto. Cartulrio da S de
Coimbra, Coimbra, 1999, p. XV. 11
Sobre o assunto, cf. Jos MATTOSO, O Condado Portucalense,
Histria de Portugal,
(direco de Jos Hermano SARAIVA), vol. 1, [Lisboa], 1983, p.
440-446. 12
So exemplo dessa poltica: Santa Comba Do e Treixedo, que recebem
carta de foral em
1102; Tentgal, em 1108; Coimbra, Sto, Soure, Tavares e Azurara
da Beira, em 1111; Viseu,
em 1123; Redinha, em 1129; e a Ega, em 1131. Cf. Maria Helena da
Cruz COELHO, A
estruturao concelhia do Condado Portucalense D. Henrique,
Biblos, vol. LXXVI, 2000, p.
43-55; e
http://www.terravista.pt/portosanto/1631/redinha.htm.
-
1 Objectivos e metodologia de trabalho adoptada 13
Norte. Outra preocupao foi proporcionar-lhes tambm proteco
militar, atravs da
construo ou da reconstruo de castelos: Miranda do Corvo (1136),
Penela (1137),
Germanelo (1142) e Leiria (edificado em 1135 e restaurado em
1142). Como extremo
meridional da regio fortificada pelos portugueses, Leiria
tornou-se, no apenas um
ponto de apoio a Coimbra, mas tambm a base de pilhagens e
incurses em direco
a Torres Vedras ou mesmo a Santarm nas palavras de Alexandre
Herculano, a
chave do pas pelo lado sul: A sua importncia era tal que (...)
os alvazis e demais
membros do concelho municipal de Coimbra declaravam que os
homens d armas do
concelho que tentassem ir combater pela f na Palestina fossem
defender a
Estremadura e em especial Leiria, onde, se morressem, obteriam a
remisso dos seus
pecados do mesmo modo que em Jerusalm..13 Enfim, a opo de
incluir o distrito de
Leiria na regio a estudar parece razovel tambm na medida em que
existem traos,
sobretudo de natureza cultural e social, que conferem uma certa
homogeneidade aos
referidos distritos, e as diferenas entre eles no so to vincadas
que repugne
estud-los toponimicamente como se de uma unidade se tratasse.
Acrescente-se
ainda que, por se encontrarem na fronteira com os concelhos de
Pombal, Leiria e
Alvaizere, e por alguns deles terem j integrado o distrito de
Leiria, incluem-se no
corpus alguns topnimos j pertencentes ao concelho de Vila Nova
de Ourm (distrito
de Santarm), localizados aquando da pesquisa nas cartas
militares dos referidos
concelhos do distrito de Leiria.14
13 Alexandre HERCULANO, Histria de Portugal desde o comeo da
monarquia at ao fim do
reinado de Afonso III, vol. II, 7 ed., Paris-Lisboa e Rio de
Janeiro, S. Paulo, Belo Horizonte,
1914, p. 186-187.
Ver tambm Os Templrios,
http://www.terravista.pt/portosanto/1631/templarios.htm. 14
So contguos ao concelho de Pombal: Achada, Arneiros da Mata,
Arneiros do Carvalhal,
Casal Menino, Espite, Matas de Espite, Ribeiro de Espite,
Martianas e Vale de Alcobaa; junto
ao concelho de Leiria localizam-se: Achada do Cachinho, Achada
do Ponto, Albarrol,
Alcangosta, Alqueido, Campina, Monreal, Painel, Pinhal Serrano,
Pouchana, Quinta Serrana,
Ribeira do Almo, Rosmaninhal e Vale Serrano; Alqueido faz
fronteira com o concelho de
Alvaizere.
-
14 Captulo 0 Introduo
Uma aturada investigao permitiu enquadrar o objecto de estudo,
tanto numa
perspectiva histrica, social e cultural como em termos
lingusticos. Procurando
delinear uma viso de conjunto que articulasse estas vertentes, o
primeiro captulo
dedicado, sobretudo, abordagem de aspectos histricos; o segundo,
aos culturais e
sociais e o terceiro, aos lingusticos. Para tal foram
consultadas obras de carcter
abrangente e generalista como, por exemplo, as enciclopdias e os
atlas, e outras de
feio mais especializada, a que se aludir mais detalhadamente na
alnea seguinte.
Aps uma breve referncia s fontes documentais, o captulo III
dedicado
caracterizao fontica vocalismo e consonantismo dos dialectos
morabes, e
ao estudo das interinfluncias romnicas e rabes, nomeadamente: a
evoluo de
alguns nomes rabes, segundo as tendncias da fontica
galego-portuguesa; o
condicionamento dos nomes de origem latina pela fontica rabe; e
as interferncias
morfossintcticas.
Seguiu-se a pesquisa geogrfica que, alm de alguma recolha no
terreno, foi
levada a cabo em fontes to dspares como enciclopdias, artigos e
textos diversos
(inclusive da imprensa escrita e da Internet), programas
radiofnicos e televisivos, etc.,
e implicou a consulta do Reportrio Toponmico de Portugal, 03
Continente,15 de
onde se retiraram os topnimos que maioritariamente constituem o
corpus (Anexo I) e
cuja localizao, por concelho e por distrito, foi verificada nas
113 cartas militares
(escala: 1/25.000) respectivas. Garantiu-se, assim, o
indispensvel rigor no
levantamento e localizao do material toponmico, cuja anlise
constitui o passo
seguinte do presente estudo. Para isso, foi necessrio percorrer
a bibliografia
toponmica disponvel (cf., a seguir, 2. Breve resenha
bibliogrfica) para encontrar
algumas referncias aos nomes inventariados no corpus. Assim, aps
o cotejo de
formas antigas (quando existentes), o confronto e a anlise de
ideias e opinies dos
diversos autores consultados, apresentam-se no captulo IV os
dados e as hipteses a
15 Reportrio Toponmico de Portugal, 03 - Continente, 3 vols.,
[Lisboa], 1967.
-
1 Objectivos e metodologia de trabalho adoptada 15
ter em conta no estudo dos topnimos, bem como as concluses
possveis. Casos
houve em que, por ausncia de informao, no se conseguiu
determinar com o rigor
desejvel a natureza de alguns nomes de lugar; o trabalho teve,
ento, como principal
objectivo dar visibilidade a determinada realidade lexical e
levantar hipteses acerca
da sua etimologia. E porque em cincia no h muitas vezes certezas
absolutas nem
concluses definitivas, mas unicamente hipteses que se vo
colocando medida que
a investigao avana, este estudo pretende tambm convidar os
especialistas a
contriburem para o desenvolvimento do estado actual dos
conhecimentos,
respondendo s interrogaes, ajudando a esclarecer as dvidas,
enfim, resolvendo
os problemas aqui deixados em aberto. A estrutura deste quarto
captulo no coincide
rigorosamente com a do terceiro, por um lado porque nem todas as
caractersticas dos
dialectos morabes apresentadas no captulo III se encontram
presentes nos
topnimos recolhidos e, por outro, para evitar a multiplicao
desnecessria de alneas
e as constantes remisses, que dificultariam a leitura e em nada
contribuiriam para a
clareza do texto.16 Sempre que se verifique a existncia de vrios
topnimos com o
mesmo nome, optar-se- por indicar, sua frente e em linha
inferior, o nmero de
ocorrncias, evitando assim repeties inteis.
No captulo V apresentam-se as concluses a que foi possvel chegar
e que
dizem sobretudo respeito s marcas lingusticas mais recorrentes
nos topnimos
morabes do antigo Territrio de Coimbra e densidade toponmica
de
moarabismos calculada a partir dos valores apresentados nas
tabelas I, II, III e IV
(onde se inscreve o nmero de topnimos e a rea dos concelhos de
Aveiro, Coimbra,
Leiria e Viseu, respectivamente) e visualmente perceptvel atravs
dos mapas dos
16 Para uma gesto equilibrada do sistema informtico de
referncias cruzadas, a maioria das
remisses reporta-se pgina onde se inicia o estudo do(s)
topnimo(s) e pontualmente a
outros segmentos textuais, cuja informao assuma especial
relevncia. Ainda no intuito de
agilizar a leitura, no s deste mas de todos os captulos, as
reticncias [(...)] so dispensadas
no incio e no final das citaes, mantendo-se apenas nos casos em
que se verifique(m)
-
16 Captulo 0 Introduo
distritos e concelhos considerados.
O corpus analisado apresentado no Anexo I, onde os topnimos
so
elencados por ordem alfabtica e situados por concelho e por
distrito. No Anexo II,
incluem-se topnimos considerados de origem rabe pelas obras de
referncia,
localizados, na rea delimitada, aquando da pesquisa dos
moarabismos toponmicos.
medida que a investigao progredia, este registo, que no se
pretende sistemtico
nem exaustivo, foi sendo enriquecido com outros nomes de lugar
de origem rabe
tambm situados no Centro do pas, mas j fora da regio estudada.
Pode-se, assim,
perceber melhor at que ponto foi intensa a influncia rabe, no s
no territrio em
apreo especialmente na cidade de Coimbra e na regio envolvente ,
mas
tambm em toda a zona Centro. O trabalho inclui ainda dois ndices
remissivos um
alfabtico e outro geogrfico: o primeiro destina-se fcil pesquisa
dos moarabismos,
uma vez que se encontra organizado, no pela ordem alfabtica dos
topnimos
completos, mas sim pela dos moarabismos neles contidos (por
exemplo, Vila Nova
de Poiares aparecer neste ndice como Poiares, Vila Nova de); o
segundo,
organizado por concelhos, permite uma percepo rpida e global da
distribuio
geogrfica dos topnimos.
Deseja-se, em suma, que este trabalho sirva para se reflectir
mais e melhor
sobre um passado lingustico, cultural e histrico to longnquo e
que, talvez por isso
mesmo, possa parecer (e por vezes seja!) nebuloso ou rido, mas
cujo estudo acaba
por se revelar um desafio muito motivador.
2. Breve resenha bibliogrfica
Muitos foram os artigos, os dicionrios, os atlas, as gramticas,
e diversas as
obras de carcter lingustico, histrico, geogrfico, etc.
consultadas ao longo da
elaborao deste estudo. Sendo os dois primeiros captulos de
natureza
quebra(s) no seu interior.
-
2 Breve resenha bibliogrfica 17
eminentemente histrico-lingustica e scio-cultural, merecem
especial meno (alm
dos meios j anteriormente referidos) algumas obras que
constituram fontes
fundamentais de pesquisa: as Lies de Lingustica Romnica de Jos
Herculano de
Carvalho,17 a Introduction au Latin Vulgaire de Veikko Vnnen18 e
La Formacin de
los Dominios Lingsticos en la Pennsula Ibrica de Kurt
Baldinger,19 que ajudam a
enquadrar e a melhor compreender a gnese da nossa lngua; a
Histria de Portugal
com a chancela de Jos Mattoso,20 a obra homnima dirigida por Jos
Hermano
Saraiva,21 e a Nova Histria de Portugal, coordenada por Joel
Serro e por Oliveira
Marques,22 pela profundidade e rigor no tratamento dos temas; A
herana rabe em
Portugal, O meu corao rabe, Portugal. Ecos de um passado rabe
todos de
Adalberto Alves,23 Arquitectura islmica en Andaluca de Marianne
Barrucand e Achim
Bednorz,24 pela especializao e riqueza cultural dos contedos; e
a Grande
Enciclopdia Portuguesa e Brasileira,25 pelo ecletismo da
informao.
17 Jos Herculano de CARVALHO, Lies de lingustica romnica, 3 ed.
(policopiada),
Coimbra, 1966-1967. 18
Veikko VNNEN, Introduction au latin vulgaire, (deuxime dition
avec Anthologie de
Textes), Paris, 1967. 19
Kurt BALDINGER, La formacin de los dominios lingsticos en la
Pennsula Ibrica, 2 ed.,
Madrid, 1972. 20
Jos MATTOSO (direco e coordenao de), Histria de Portugal, vols.
1 e 2, [Lisboa],
1993. As figuras 6 e 8 foram reproduzidas, respectivamente, das
p. 523 e 489 do vol. 1. 21
Jos Hermano SARAIVA (direco de), Histria de Portugal, vol. 1,
cit.. As figuras 1, 2, 4 e 5
foram reproduzidas, respectivamente, das p. 434, 648, 251 e 277
deste volume. 22
Joel SERRO e A. H. de Oliveira MARQUES (direco de), Nova Histria
de Portugal, vol.
III: Portugal em definio de fronteiras (1096-1325). Do Condado
Portucalense Crise do
Sculo XIV, coordenao de Maria Helena da Cruz Coelho e Armando
Lus de Carvalho
Homem, 1 ed., Lisboa, Maio de 1996. 23
Adalberto ALVES, A herana rabe em Portugal, Lisboa, 2001, p. 12.
IDEM, O meu corao
rabe, 2 ed., Lisboa, 1991. IDEM, Portugal. Ecos de um passado
rabe,
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/lazuli/01/port/ecos.pdf.
24
Marianne BARRUCAND e Achim BEDNORZ, Arquitectura islmica en
Andaluca, Colnia,
1992. A figura 3 foi reproduzida da p. 77 desta obra. 25
Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, 40 vols., Lisboa /
Rio de Janeiro, s/d. Esta obra
-
18 Captulo 0 Introduo
Para o estudo das interinfluncias romnicas e rabes, bem como
das
caractersticas fonticas dos dialectos morabes, cuja apresentao
ocupa a quase
totalidade do terceiro captulo, foram de especial valia El
Mozrabe Peninsular,
extenso artigo de Manuel Sanchis Guarner,26 onde j se aborda o
assunto tendo em
conta a diversificao diatpica, e a minuciosa Dialectologa
mozrabe de lvaro
Galms de Fuentes27 que, numa ampla viso de conjunto, retoma esta
questo,
completando e corrigindo alguns dados anteriores. No se pode, no
entanto, deixar de
sublinhar o carcter pioneiro dos estudos de Francisco Javier
Simonet a Histria de
los mozrabes de Espaa (1897-1903) e, especialmente, o Glosario
de voces ibricas
y latinas usadas entre los mozrabes28 , copiosa recolha de
materiais (alguns dos
quais relativos ao territrio portugus) que ainda hoje serve de
base a trabalhos
acerca da continuidade e sobrevivncia dos dialectos morabes
hispnicos, que
alguns antigos estudiosos espanhis29 julgavam ter sido
completamente esquecidos
(sobretudo pela intelectualidade morabe) em favor da lngua rabe.
Depois de
Simonet, outros autores espanhis debruaram-se sobre este
assunto: Francisco
Codera estudou a Importancia de las fuentes rabes para conocer
el estado del
vocabulario en las lenguas o dialectos espaoles desde el siglo
VIII al XIII (1910);
Ramn Menndez Pidal dilucidou grande parte dos problemas
lingusticos morabes
com a publicao, em 1926, da obra fundamental Orgenes del espaol.
Estado
lingstico de la Pennsula Ibrica hasta el siglo XI;30 e tambm
Vicente Garca de
ser referida pelas suas iniciais GEPB. 26
M. SANCHIS GUARNER, El Mozrabe Peninsular, Enciclopedia
Lingstica Hispnica, vol.
I, Madrid, 1960. 27
. GALMS DE FUENTES, Dialectologa mozrabe, cit.. 28
Francisco Javier SIMONET, Glosario de voces ibricas y latinas
usadas entre los mozrabes
precedido de un estudio sobre el dialecto hispano-mozrabe,
Madrid, 1889. Esta obra passar
a ser referida como Glosario. 29
Bernardo Aldrete, P. Juan de Mariana, P. Andrs Marcos Burriel,
P. Esteban de Terreros, F.
Rodrguez Marina, citados por M. SANCHIS GUARNER, El Mozrabe
Peninsular, cit., p. 295. 30
Foi consultada a 6 edio, de 1968, que ser abreviadamente
referida como Orgenes del
-
2 Breve resenha bibliogrfica 19
Diego consagrou alguma ateno herana lingustica morabe, no seu
Manual de
dialectologa espaola, de 1946.31 Alm destes, muitos outros
romanistas e
hispanistas se interessaram por estes idiomas: Arnald Steiger,32
William Entwistle,
Amado Alonso, Manuel Alvar, Rafael Lapesa,33 Joan Corominas,34
Alonso Zamora
Vicente,35 Gerhard Rohlfs e Kurt Baldinger,36 j referido.
Em relao ao portugus, o repertrio bibliogrfico sobre estes temas
muito
mais exguo, como tambm mais reduzido o conhecimento de textos em
aljamia: La
ms curiosa simbiosis que, sin embargo, muestra al mismo tiempo
la profonda
oposicin entre el mundo islmico y el cristiano, se ve en los
textos aljamiados (textos
romnicos escritos por moriscos en caracteres rabes)..37
Francisco Adolfo Coelho foi
o primeiro a referir-se aos dialectos morabes, na sua obra A
lngua portuguesa (...) e
no importante texto Origens do portugus do Sul.38 Leite de
Vasconcelos39 escreveu
espaol. 31
Vicente GARCA DE DIEGO, Manual de dialectologa espaola, Madrid,
1946. 32
Arnald STEIGER, Zur Sprache der Mozaraber, Sache, Ort und Wort:
Festschrift fr Jakob
Jud, zum 60. Geburtstag (12. Januar 1942), Romanica Helvetica,
vol. 20, Genve-Zrich, 1943,
p. 624-714. 33
Rafael LAPESA, Historia de la Lengua Espaola, 4 ed., Madrid,
1959 (especialmente as p.
124, 126-130 e 135-137). 34
Joan COROMINAS, Diccionario Crtico Etimolgico de la Lengua
Castellana, 4 vols., Madrid,
1954-1957 (que ser, doravante, referido pelas iniciais DCELC);
alm dos artigos nele includos
h alguns outros dispersos. 35
Alonso ZAMORA VICENTE, Dialectologa espaola, 2 ed., Madrid,
1967, p. 15-52. 36
Kurt BALDINGER, La formacin de los dominios lingsticos en la
Pennsula Ibrica, cit., p.
66-68 (nota 45) e p. 74. 37
IDEM, Ibidem, p. 85. Os autores rabes opunham a 'arabiyya 'lngua
rabe' a ayama 'lngua
estrangeira'. Segundo o testemunho de Simonet, vrios autores
hispano-rabes, ao
mencionarem vocbulos pertencentes aljamia, designavam este
idioma tambm com os
nomes de Ar-Roma (lngua romana), Al-Lathin e Al-Lathina (lngua
latina) e ainda
Al-Lathin-Alamm (latim vulgar). Vide SIMONET, Glosario, cit., p.
23-24. 38
F. Adolfo COELHO, A lngua portuguesa (...), 2 ed., Porto, 1887,
p. 126 e seguintes. IDEM,
Origens do portugus do Sul, Revista de Portugal, n. 254, vol.
XXXII, Abril, 1967, p. 140-146.
Este artigo, inicialmente publicado na revista Seres, 2 srie,
vol. VIII, n. 46 (Abril), 1909, p.
-
20 Captulo 0 Introduo
um pequeno artigo, Romano Mozarbico, onde se refere a topnimos e
a
diminutivos (em -nito) do Sul de Portugal; nas Lies de Filologia
Portuguesa, repete
estes breves tpicos, sem os desenvolver; mais tarde, na
Etnografia portuguesa,
procede ao enquadramento histrico e etnogrfico dos morabes, sem
acrescentar
mais nada sobre os dialectos que falavam. Carolina Michalis de
Vasconcelos40
dedica algumas pginas ao problema moarbico, aludindo de passagem
(segundo
as suas palavras), etimologia do termo morabe e natureza do
romano falado
por essas populaes que, na sua opinio, deveria ser semelhante
ao
galego-portugus. Lamentando a falta de documentao, afirma que
apenas o
onomstico e os elementos latinos nele contidos (por exemplo,
nomes de plantas
como lorandro, oleandro em Alandroal), assim como palavras
neo-latinas em obras
arbicas do alguns indcios.. Noutra passagem, no falando nem de
morabes nem
de moarabismos refere: "Outras palavras h que, sendo de origem
latina, passaram
(...) evidentemente pela boca dos Mouros que lhes alteraram a
pronncia, quanto
inicial, e s vezes tambm quanto ao corpo da palavra."; e, entre
outros, cita como
exemplos, almoo < ADMORSUS; alberche, alberchigo, alperce
< PERSICUS; e
acar < SACCHAR. Alm dos numerosos elementos relevantes nos
trabalhos de
David Lopes,41 o tema tambm pontualmente abordado por Jos Pedro
Machado,42
317-324, foi resumido e comentado por J. P. MACHADO, Adolfo
Coelho e o romano
moarbico, Boletim de Filologia, t. X, 1949, p. 15-21. 39
J. Leite de VASCONCELOS, Romano mozarbico, Revista Lusitana,
vol. 11, 1908, p. 354.
IDEM, Origem e evoluo da lngua portuguesa, Lies de Filologia
Portuguesa, Lisboa,
1911, p. 16-17. IDEM, Onomstico do concelho de Mrtola, Lies de
Filologia Portuguesa,
cit., p. 467 (em ambos os artigos remete para o seu artigo
Romano mozarbico, cit.). IDEM,
Etnografia portuguesa: tentame de sistematizao, vol. IV, Lisboa,
1958, p. 254-298. 40
C. Michalis de VASCONCELOS, Lies de Filologia Portuguesa segundo
as preleces
feitas aos cursos de 1911/12 e 1912/13, seguidas das Lies
Prticas de Portugus Arcaico,
Lisboa, s/d, p. 270-271 e 306, respectivamente. Esta obra passar
a designar-se
abreviadamente por Lies de Filologia Portuguesa. 41
Entre eles, saliente-se: David LOPES, Toponmia rabe de Portugal,
Revista Lusitana, vol.
24, 1921-1922, p. 257-273; IDEM, Artigo sobre a influncia rabe
[e, em menor grau,
-
2 Breve resenha bibliogrfica 21
aparecendo referido ainda em estudos de carcter genrico como,
por exemplo, as
histrias da lngua de Paul Teyssier43 e Serafim da Silva Neto.44
Escrito no Brasil, h
ainda o artigo de Rosrio Farani Mansur Gurios, O romano moarbico
lusitano,45
que identifica e sistematiza aspectos vrios dos dialectos
morabes no nosso
territrio. Em 1973, Herculano de Carvalho refere-se toponmia
morabe, para
verificar que os seus limites se estendiam para norte do
Mondego, naquela rea
indecisa entre este [o rio Mondego] e o limite do Territrio
Portucalense que s
tambm com o findar do sculo XI reentra definitivamente no domnio
cristo,
passando a gravitar em torno de Coimbra e dos seus mosteiros,
particularmente o de
Santa Cruz..46 Reuniram-se mais alguns elementos em estudos de
dialectologia e de
geografia lingustica de Lindley Cintra47 (e no comentrio, a esse
artigo, de Orlando
Ribeiro48), Clarinda Maia, Adelina Anglica Pinto e Maria Jos de
Moura Santos.49 Ivo
morabe], Histria de Portugal ilustrada (coordenao de Damio
PERES), vol. I, Barcelos,
1928, p. 426-428; IDEM, Textos em Aljamia Portuguesa: estudo
filolgico e histrico, Lisboa,
1940; IDEM, Nomes rabes de terras portuguesas, Colectnea
organizada por J. P. Machado,
Lisboa, 1968. 42
J. P. MACHADO, Adolfo Coelho e o romano moarbico, cit., p.
15-21; IDEM, Notas de
toponmia portuguesa, cit.; IDEM, Vocabulrio portugus de origem
rabe, Lisboa, s/d [1991];
IDEM, Ensaios histrico-lingusticos, Lisboa, s/d [1996]. 43
Paul TEYSSIER, Histria da lngua portuguesa, 3 ed., Lisboa, 1987,
p. 16 e 35. 44
Serafim da Silva NETO, Histria da lngua portuguesa, Rio de
Janeiro, 1952, p. 333-342. 45
Rosrio Farani Mansur GURIOS, O romano moarbico lusitano, Revista
dos Cursos de
Letras, n. 5 / 6, Dezembro de 1956, p. 123-153. 46
Cf. Jos Herculano de CARVALHO, Moarabismo lingustico ao Sul do
Mondego, Estudos
Lingusticos, 1 vol., 2 ed., Coimbra, 1973, p. 161-170 (a citao
da p. 169). Para ilustrar o
facto, o Autor cita Avenal (Oliveira de Azemis), Aveneda (Ovar)
e Aveneira (Arouca). 47
Lus F. Lindley CINTRA, reas lexicais no territrio portugus,
separata do Boletim de
Filologia, t. XX, 1962 (tambm includo no volume do Autor Estudos
de dialectologia
portuguesa, Lisboa, 1983). IDEM, Grisu, um moarabismo algarvio,
separata de Biblos, vol.
LVII, 1981. 48
Orlando RIBEIRO, A propsito de reas lexicais no territrio
portugus (Algumas reflexes
acerca do seu condicionamento), Boletim de Filologia, t. XXI,
1965, p. 177-205. 49
Clarinda de Azevedo MAIA, Os falares do Algarve (inovao e
conservao), separata da
-
22 Captulo 0 Introduo
Castro50 tambm dedicou algumas pginas a este assunto.
Consultaram-se ainda diversos materiais bibliogrficos de
natureza filolgica,
dialectolgica e onomstica, com especial incidncia para os que
versam a temtica
toponmica e que, apesar de muito raramente aflorarem as questes
moarbicas,
constituram importantes auxiliares de trabalho. De facto, os
estudos toponmicos,
muito em voga at aos anos 60 do sculo passado e menos frequentes
nas dcadas
seguintes,51 tocam inevitavelmente reas de conhecimento to
diversas como a
etimologia, a etnografia, a histria, a geografia (oro e
hidrografia), a biologia (botnica,
zoologia), etc., o que faz deles riqussimos mananciais de
informao. Na
impossibilidade de se citarem aqui todos os toponimistas
consultados, pela
importncia ou pela abundncia dos dados neles recolhidos, merecem
especial
referncia, entre outros, Jos Leite de Vasconcelos, Carolina
Michalis de
Vasconcelos, Gonalves Viana, David Lopes, Jos Joaquim Nunes,
Pedro de
Azevedo, Joaquim da Silveira, Paiva Bolo, Joseph Piel, Jos Pedro
Machado,
Antnio Losa e Pedro Cunha Serra, cujos escritos se encontram
dispersos em
Revista Portuguesa de Filologia, vol. XVII, 1975. Adelina
Anglica PINTO, Isolxicas
portuguesas (antigas medidas de capacidade), separata da Revista
Portuguesa de Filologia,
vol. XVIII, 1983. Maria Jos de Moura SANTOS, Importao Lexical e
Estruturao Semntica.
Os Arabismos na Lngua Portuguesa, separata de Biblos, vol. LVI,
1980. IDEM, reas
Lingustico-Etnogrficas Romnicas (Processos Tradicionais de
Moldar o Queijo), tese de
doutoramento (indita), 2 vols., Coimbra, 1991. IDEM, A origem de
mocho banco e o seu
campo morfo-semntico, separata da Revista Portuguesa de
Filologia, vol. XX, 1994. IDEM,
Cultismos ou moarabismos?, separata da Revista Portuguesa de
Filologia, vol. XXI,
1996-1997. 50
Ivo CASTRO, Curso de histria da lngua portuguesa (Colaborao de
Rita Marquilhas e J.
Lon Acosta), Lisboa, 1991, p. 77 e 164-168; IDEM, Introduo
Histria do Portugus.
Geografia da Lngua. Portugus antigo, Lisboa, 2004, p. 70-73.
51
Este decrscimo evidente nos ttulos consultados: dez so da dcada
de 50, oito dos anos
60, e trs de 70 e 80. Na dcada de 90, h a registar apenas
compilaes de alguns estudos e
artigos dispersos.
-
2 Breve resenha bibliogrfica 23
publicaes vrias como, por exemplo, a Revista Lusitana,52 O
Instituto,53 o Boletim da
Segunda Classe (posteriormente intitulado Boletim da Classe de
Letras),54 a Revista
Portuguesa de Filologia,55 a Biblos,56 o Boletim de Filologia,57
etc..
Pela sua extensa obra (cerca de 1687 pginas) especialmente
dedicada
toponmia Tentativa etimolgico-toponmica58 merece particular meno
Pedro
Augusto Ferreira, acerca de quem escreveu Jos Joaquim Nunes:
Seria injustia no
nomear o abade de Miragaia, continuador do Portugal Antigo e
Moderno, Pedro
Augusto Ferreira, que se dedicou de alma e corao a este assunto
[a toponmia],
como o testemunha a sua obra (...) em trs volumes; faltou-lhe
porm o auxiliar
indispensvel da filologia e por isso as suas explicaes, se por
vezes acertam, outras
so puramente fantasistas..59 Pedro A. Ferreira o primeiro a
reconhecer esta
impreparao (como ele prprio refere) que, por vezes, consegue
colmatar com uma
boa intuio lingustica. Vale, pois, a pena consultar estes
volumes, pela abundncia
de topnimos, pelo conhecimento directo que o seu Autor possui de
muitas das
localidades que estuda e, sobretudo, pelos diversos testemunhos
que oferecem da
vida portuguesa da poca, nas mais variadas vertentes histrica,
geogrfica,
econmica, social, cultural, acadmica, agrcola, eclesistica,
etc..
De mbito mais restrito, mas nem por isso menos meritria, a obra
de Jos
52 Revista Lusitana: arquivo de estudos filolgicos e etnolgicos
relativos a Portugal, Porto /
Lisboa, 1887-1943. Abreviadamente referida como Revista
Lusitana. 53
Instituto (O), Jornal Cientfico e Literrio [Revista Cientfica e
Literria], Coimbra, 1853-1981.
Esta publicao ser citada como O Instituto. 54
Boletim da Segunda Classe da Academia das Cincias de Lisboa /
Boletim da Classe de
Letras, Lisboa / Coimbra, 1903-1929. 55
Revista Portuguesa de Filologia, Coimbra, 1947- . 56
Biblos, Boletim da Faculdade de Letras / Revista da Faculdade de
Letras, Coimbra, 1925- . 57
Boletim de Filologia, Lisboa, 1932-1992. 58
Pedro Augusto FERREIRA, Tentativa etimolgico-toponmica ou
Investigao da etimologia
ou provenincia dos nomes das nossas povoaes, 3 vols., Porto,
1907, 1915 e 1917. 59
J. J. NUNES, A vegetao na toponmia portuguesa, Boletim da Classe
de Letras, vol. XIII,
1921, p. 133 (nota 1).
-
24 Captulo 0 Introduo
Pinto Loureiro Toponmia de Coimbra60 que, ao longo das suas 860
pginas,
apresenta um estudo exaustivo e organizado das denominaes
antigas e modernas
de lugares e artrias da cidade e arredores, cuja evoluo
diacrnica acompanha o
desenvolvimento do agregado populacional, reflectindo as
alteraes dos costumes,
da vida social e econmica e das tendncias
poltico-religiosas.
A regio de Coimbra fora j anteriormente objecto de trabalhos
muito menos
completos e sistemticos louvveis tentativas de explicao de
alguns topnimos
mais conhecidos ou mais curiosos da cidade e da regio envolvente
como o caso
da Toponmia coimbr (Breves deambulaes pelo distrito) de Jos
Leite de
Vasconcelos,61 da Toponmia de Coimbra e arredores de Amadeu
Ferraz de
Carvalho,62 e da Toponmia coimbr de Antnio Correia.63
Alm de algumas recolhas no terreno, da consulta do Reportrio
Toponmico
de Portugal, 03 Continente e das mais de cem cartas militares, a
que j se fez
referncia, foram usadas muitas outras fontes de informao
dicionrios, atlas,
artigos recolhidos em revistas no acadmicas, textos diversos da
imprensa escrita e
da Internet, programas radiofnicos e televisivos, etc., que se
encontram includos na
bibliografia.
60 Jos Pinto LOUREIRO, Toponmia de Coimbra, 2 vols., Coimbra,
1964.
61 J. Leite de VASCONCELOS, Toponmia coimbr (Breves deambulaes
pelo distrito), O
Instituto, vol. 87, n. 5, 1934, p. 485-497. 62
Amadeu Ferraz de CARVALHO, Toponmia de Coimbra e arredores
(contribuio para o seu
estudo), separata de O Instituto, vol. 87, n. 4, 1934. 63
Antnio CORREIA, Toponmia coimbr (I. Zonas da S Velha e Arco de
Almedina), Coimbra,
1945. IDEM, Toponmia coimbr (II. Zona da Universidade), Coimbra,
1952.
-
3 Revivalismo oriental 25
3. Revivalismo oriental
Os portugueses, ciclicamente, so possudos por um desejo de
se
sentirem europeus, mas no to europeus como os outros, por
razes
mticas de prestgio e tambm por essa ideia de cultura ocidental
que do
Oriente que so as origens, que vieram os Reis Magos, onde
nasce
o Sol, a sabedoria est do lado de l, l que h coisas ricas e
valorosas.
Antnio Hespanha64
As relaes Ocidente Oriente tm-se revestido, ao longo dos sculos,
de uma
dupla faceta: se, por um lado, a desconfiana em relao ao
diferente levou a
confrontos e a fora das armas foi determinando vitrias e
derrotas, que se traduziram
em supremacias geo-polticas alternadas, o fascnio pelas culturas
orientais foi sempre
uma constante e, nesse campo, as vitrias penderam mais
frequentemente para o
lado do Oriente. De facto, enquanto o Oriente j dominava a
escrita, observava os
astros e experimentava tcnicas agrcolas, o Ocidente habitava as
cavernas
pr-histricas.
Na nossa Pennsula, o reconhecimento dessa superioridade foi
quase imediato
quando, no sculo VIII, aps uma breve resistncia, o domnio rabe
se imps
rapidamente e sem grandes lutas, o que leva alguns autores a
pensarem que no teria
havido propriamente uma conquista rabe: Se h que falar em
conquista, devemos
sublinhar que os hispano-godos foram submetidos mais pela pujana
da novel
civilizao muulmana do que pelas armas. S assim se compreende que
a ocupao
rabe da totalidade do enorme territrio da Hispnia tivesse podido
concretizar-se em
apenas cerca de trs anos..65 Existiram naturalmente outros
factores que contriburam
para esta rapidez: o estado visigodo vivia, em termos polticos e
sociais, uma situao
64 Excertos adaptados de uma entrevista concedida, por altura do
Colquio Ocidente, Oriente:
dilogo de civilizaes (Coimbra, de 29 a 31 de Outubro de 2003),
por Antnio Manuel Botelho
HESPANHA, O Ocidente tem-se metido numa srie de alhadas sem as
perceber, Rua Larga,
n. 2, Outubro de 2003, p. 43-46.
-
26 Captulo 0 Introduo
insustentvel um ambiente de guerra civil fruto de problemas de
sucesso
dinstica, clivagens religiosas, fragmentao social, fomes,
intolerncia e represso
que, em termos militares, se traduzia em fragilidade,
desorganizao e falta de
comando eficaz, levando figuras gradas da sociedade visigoda a
encorajar os rabes a
entrarem na Pennsula. Assim, a ocupao foi feita mais na base da
tomada pacfica,
da entrega espontnea das terras e do acordo do que da vitria
militar. Poder-se-
mesmo pensar que os povos das vrias regies conquistadas viam o
poder ocupante
quase com indiferena ou at mesmo com uma certa sensao de
alvio.
Como se ver no captulo II, a nossa sociedade beneficiou
grandemente desta
longa convivncia de quinhentos anos, tanto em termos tcnicos e
cientficos, como
culturais e artsticos. Esta influncia prolongou-se muito para
alm da permanncia
rabe no nosso territrio: com a expanso para o Norte de frica e
para o Oriente,
Portugal revestiu-se de um cunho marcadamente orientalista,
impulsionado pela longa
convivncia e miscigenao com povos de diferentes matrizes
civilizacionais, fruto da
tolerncia e do respeito pelos diversos cdigos culturais, o que
possibilitou um
movimento mtuo de descoberta os portugueses procuraram conhecer
os outros e
deixar que os outros os conhecessem. Esta reciprocidade acabou
por se traduzir
numa mais-valia de natureza cultural, social e poltica,
internacionalmente sabida (mas
nem sempre devidamente aproveitada), num tempo em que o mundo
vive um perigoso
e delicado (des)equilbrio. Acolhendo uma proposta apresentada
pelo presidente
iraniano Mohamed Jatami, na Conferncia Islmica de Teero, em
finais de 1997, as
Naes Unidas proclamaram o ano de 2001 como o do Dilogo de
Civilizaes. Os
lamentveis atentados terroristas de Nova Iorque (Setembro de
2001), Bali (Outubro
de 2002), Casablanca (Maio de 2003), Madrid (Maro de 2004) e
Londres (Julho de
2005), a identificao unilateral da Al-Qaeda com a civilizao
islmica, as infelizes
guerras no Afeganisto e no Iraque e a satnica denominao eixo do
mal aplicada a
65 Adalberto ALVES, A herana rabe em Portugal, cit., p. 12.
-
3 Revivalismo oriental 27
um grupo de pases so alguns dos factores que crisparam a
sensibilidade das
populaes mundiais e geraram uma tenso poltica internacional
crescente,
acentuando-se, assim, a urgncia do dilogo, que se tem traduzido
em vrias
iniciativas levadas a cabo um pouco por todo o planeta.
A sociedade portuguesa tem encontrado, na sua prpria histria,
apelo
intrnseco suficiente para, de modo mais ou menos formal, cruzar
olhares com o seu
passado, tentando compreender, valorizar, recriar e reviver o
que de comum partilha
com um mundo que, de h muito, lhe prximo e familiar. Um
conhecimento
aprofundado da presena rabe entre ns revela que, mais do que
lutas e destruies,
foram relevantes as aculturaes e o impulso civilizacional que
recebemos: lembrar a
presena islmica , ao mesmo tempo, pagar uma dvida e exorcizar os
fanatismos
que, tantos sculos depois e em tantas partes do mundo, continuam
a matar em nome
da mais autista ignorncia.66
Tem-se assistido, pois, revalorizao de um passado histrico que
durante
muitos sculos esteve adormecido ou no foi devidamente explorado
nem apreciado.
A curiosidade por essa herana rabe e morabe manifestou-se
primeiro e com mais
visibilidade em Espanha, por fora de movimentos revivalistas,
como o caso de
vrias Comparsas Morabes, com escudos e trajes prprios, que
integram cortejos
e desfiles nas festas das cidades. Numa rpida pesquisa na
Internet, encontrmos
dois sites dedicados a estas organizaes: o da Comparsa Mozrabes
de Ibi (com
informao relativa Comparsa Cristiana de las Fiestas de Moros y
Cristianos de Ibi,
Abanderada Mozrabe de 1996, ao desfile infantil de Nios Mozrabes
e aos
componentes da Guerrilla, evocao das lutas entre cristos e
muulmanos),67 e o
da Fil Mozrabes que, desde 1925, integra as Fiestas de Moros y
Cristianos de
Alcoy. Vrias fotografias do-nos conta da evoluo dos seus trajes
de ento para c
66 Excerto adaptado de Manuel GIRALDES, O legado do Al-Andalus,
Alm-Mar, n. 504, Maio,
2002, p. 44.
-
28 Captulo 0 Introduo
e outras duas ilustram a formao, na dcada de 50, de la grey
infantil, hijos de la
esplndida hornada de festeros que se incorporaron a los Mozrabes
entre los aos
1945 e 1948 [e que] desde los aos cincuenta y hasta hoy, en la
Entrada de Cristianos
han brillado con fulgor inusitado los pequeos mozrabes.68
Encontrmos tambm
outro tipo de referncia que nos mostra at que ponto a evocao
morabe vvida e
actual em territrio espanhol. o caso da atribuio do ttulo de
Caballero Mozrabe
Honorario de Toledo ao mdico e historiador Jos Cards Llanas,
falecido em 1982,
membro de vrias associaes de intelectuais e acadmicos, entre
elas a Real
Academia de la Historia.69
Entre ns, o interesse revivalista por esse passado comum tem-se
esboado
paulatinamente e nestes ltimos tempos (j durante a elaborao
deste trabalho)
tem-se traduzido na organizao de eventos vrios. Em Maro de 2001,
a geminao
entre Mrtola e Chefchaouen, uma vila do norte de Marrocos,70 deu
lugar a um festival
islmico em Mrtola (organizado pela Cmara Municipal e apoiado
pela Comunidade
Islmica de Espanha e pela Embaixada de Marrocos), com a recriao
de um souk
(mercado) rabe, para venda de produtos tpicos do Al-Andalus,
animado com
diversas actividades, desde os encantadores de serpentes msica:
houve
espectculos musicais, nomeadamente, pelo grupo Almadan, com
msica rabe e
67 Comparsa Mozrabes, http://web.jet.es/sago/mozarabes.htm.
68 La Fil Mozrabes,
http://server-die.alc.upv.es/Alcoy/Mozarabes/historia.htm.
69 http://www.encomix.es/~chema/cronista/cardus.htm.
70 Segundo Filomena LANA e Antnio CUNHA, Herana Mourisca, Focus,
n. 74,
18-03-2001, p. 42-46, as duas terras parecem realmente irms. Tm
a mesma arquitectura de
taipa protegida pela brancura imaculada da cal, as ruas
estreitas e empedradas, as barras
azuis nas paredes, as pequenas casas empoleiradas nas colinas e
emolduradas pela serra. E
at nas gentes, nos usos e costumes se encontram parecenas,
muitas herdadas dos
antepassados comuns, os berberes (...) que constituem ainda 40
por cento da populao de
Marrocos. (...) Esta irmandade poder trazer luz do dia
referncias e semelhanas que
sempre existiram e nas quais poucas vezes se repara. Afinal, os
avs de ambas as terras so
os mesmos..
-
3 Revivalismo oriental 29
mediterrnica, al-Baraka, msica e dana do ventre do Mdio Oriente
e do Magreb, e
um espectculo conjunto com violas campanias, o grupo coral de
Mrtola, as
Camponesas de Castro Verde, Janita Salom e Nass Marrakech..71 No
campo
musical, refira-se ainda a recente constituio do Ensemble
Morabe, com um
repertrio em que se incluem cantigas de Santa Maria (de Afonso
X, o Sbio), cantigas
andalusinas de origem rabe, cantos sefardirtas, cantigas de
amigo e poesia medieval
luso-rabe, e cujo objectivo tocar msica sem fronteiras, em que o
Ocidente e o
Oriente se encontram, fazendo reviver um tempo ureo da cultura,
no espao a que
os rabes chamaram Al-Andalus.72 O Vero de 2003 assistiu simulao
ficcionada
da conquista histrica de Coimbra (9 de Julho de 1064) por
Fernando, o Magno,
assinalada por um espectculo de rua que, entrecruzando o teatro,
a msica e a
dana, e incluindo a recriao de um acampamento militar, do
assalto medina e do
arraial da vitria, serviu tambm o propsito de homenagear o
primeiro governador de
Coimbra, D. Sisnando, que tendo vivido entre mouros e cristos
fez a ponte entre as
diferentes religies, criando um clima propcio conciliao e
tolerncia.73 Tambm
em 2003, as Jornadas Medievais de Montemor, com uma feira, um
torneio e uma ceia
medieval no castelo de Montemor-o-Velho, pretenderam dar a
conhecer os costumes
e a vida da sociedade medieval;74 em bidos, um mercado rabe
medieval com mais
de trinta tendas e centena e meia de figurantes (incluindo um
grupo de bailarinas,
vrios msicos marroquinos e espanhis e um especialista silvense
em msica rabe)
procurou recriar as cores, os odores e os sons dos tambores, dos
lutes e das flautas
rabes, para dar a conhecer o outro lado da Idade Mdia, isto , as
particularidades
71 Festival Islmico em Mrtola, Dirio de Coimbra, 14-04-2001, p.
12. Cf. tambm Filomena
LANA e Antnio CUNHA, Herana Mourisca, cit., p. 42-46. 72
Ensemble Morabe msica medieval,
http://www.betokalulu.com/ramos.htm. 73
Cf. Recriao da conquista da cidade. Espectculo indito no centro
histrico, Dirio de
Coimbra, 02-07-2003, p. 4; e Teatro, msica e dana levaram D.
Sesnando vitria.
Cumpriu-se o assalto cidadela, Dirio de Coimbra, 03-07-2003, p.
3. 74
Cf. Montemor revive torneio medieval, Dirio de Coimbra,
03-07-2003, p. 13.
-
30 Captulo 0 Introduo
rabes.75 Coimbra foi tambm palco deste esprito de abertura ao
acolher, em Outubro
de 2003, o Colquio Ocidente, Oriente: dilogo de civilizaes que,
de uma forma
plural, aberta e no confessional, visou objectivos vrios, entre
os quais se destaca o
de avivar a memria da presena muulmana na Pennsula Ibrica ao
longo de sete
sculos ou evocar a recepo do Orientalismo em Portugal nos ltimos
quinhentos
anos.76 Coimbra acolheu ainda a representao de O Relato de
Alabad uma pea
teatral que pretende recriar a conquista de Lisboa por D. Afonso
Henriques (1147) do
ponto de vista dos muulmanos, atravs da crnica ficcional de
Alabad bin Muhammad
Almanor, arqueiro e poeta rabe ,77 e de O Olho de Al, sugestivo
ttulo escolhido
para um espectculo sobre o conhecimento e sobre o tempo, uma
adaptao do conto
homnimo de Rudyard Kipling que, tratando do progresso tecnolgico
e cientfico e do
tempo adequado para o mundo aceitar essas (r)evolues, encena a
histria de um
frade ingls da Idade Mdia e de um artefacto, novidade na Europa,
que permite ver o
75 Mercado rabe mostra o outro lado da Idade Mdia, Dirio de
Coimbra, 20-08-2003, p. 2 e
4 do suplemento Os Classificados. Este trabalho contou com o
acompanhamento cientfico de
Mohammed Nair, investigador da Universidade de Coimbra, e
baseou-se numa pesquisa
histrica de fontes crists e rabes. 76
Cf. Joo Gouveia MONTEIRO, Ocidente, Oriente: dilogo de
civilizaes, Rua Larga, n. 2,
Outubro de 2003, p. 41-42; e Colquio Ocidente / Oriente: dilogo
de civilizaes, Dirio de
Coimbra, 28-10-2003, p. 6-7. Este colquio decorreu no Auditrio
da Reitoria da Universidade
de Coimbra, nos dias 29, 30 e 31 de Outubro de 2003, tendo ainda
integrado a exibio do
filme de Joo Mrio Grilo Os Olhos da sia e um recital de piano e
canto, com temas de
inspirao oriental. Alguns dos ttulos das comunicaes apresentadas
Entre o Ocidente e o
Oriente: viagens na Histria, A presena muulmana em Portugal na
Idade Mdia, Portugal
moderno: entre o Oriente e a Europa, O dilogo inter-religioso:
Cristianismo, Judasmo e
Islamismo, O dilogo Ocidente-Oriente nas relaes internacionais
do sculo XXI e Dilogo
de civilizaciones Oriente-Occidente. Aporte al entendimiento
internacional traduzem
claramente os objectivos do colquio. 77
O Relato de Alabad no Museu dos Transportes. Pea mostra
conquista de Lisboa do ponto
de vista dos mouros, Dirio de Coimbra, 19-12-2003, p. 5. Este
espectculo teatral integrou-se
na programao de Coimbra 2003 Capital Nacional da Cultura.
-
3 Revivalismo oriental 31
micromundo o microscpio.78 Em 2004, comemorou-se a efemride do
8.
centenrio da morte de Maimnides um dos maiores intelectuais de
todos os
tempos, nascido em Crdova (1135) e falecido no Cairo (1204)
facto a propsito do
qual nos diz Manuel Augusto Rodrigues: Hoje que tanto se fala da
Europa e dos
legados que a formaram (...) no se pode esquecer o valioso
contributo dos
muulmanos e judeus em vrios domnios. Quando as nacionalidades
europeias ainda
davam os primeiros passos, aquelas civilizaes criavam um
precioso patrimnio
cientfico-natural que havia de moldar a alma europeia.79 Tambm
em 2004, a aldeia
algarvia de Cacela-a-Velha reviveu a poca muulmana: o mercado
rabe, a
gastronomia e a dana do ventre foram alguns dos ingredientes que
ajudaram a
compor o cenrio.80
Podemos, portanto, dizer com Lpez Castro: La experincia del
lmite es un
espacio humano y cambiante, que conserva la memoria de lo vivido
y nos permite ir
ms all de nosotros mismos. La nostalgia es la que estimula la
apertura hacia lo
posible, pues extralimitarse o romper los lmites es el signo del
hombre y del poeta..81
78 Camaleo no Convento de S. Francisco. O Olho de Al s hoje e
amanh, Dirio de
Coimbra, 19-12-2003, p. 8. Este espectculo teatral foi uma
co-produo da Associao
Cultural Camaleo e da Coimbra 2003 Capital Nacional da Cultura.
79
Manuel Augusto RODRIGUES, Maimnides ou Rambam no 8. centenrio da
sua morte,
Dirio de Coimbra, 15-04-2004, p. 8. 80
Moura encantada, Jornal Nacional, TVI, 11-07-2004. 81
Armando LPEZ CASTRO, Las jarchas romances: consistencia y
apertura, Estudios
Humansticos. Filologa, Len, 1999, p. 213.
-
CAPTULO I
PRESSUPOSTOS HISTRICOS
Cada lngua, na sua prpria histria, na histria da sua origem e do
seu
desenvolvimento, patenteia mltiplos sinais das formas de vida,
das
aventuras e das vicissitudes histricas polticas, religiosas,
econmicas,
militares, etc. do povo ou dos povos a que pertence.
Vtor M. de Aguiar e Silva82
Na histria do portugus existem vrios momentos de importncia
fundamental
conquistas, organizao territorial e contacto com outras lnguas
que
necessrio conhecer para percebermos as inflexes do seu rumo.
Desses momentos
devem salientar-se a romanizao, as invases germnicas e a ocupao
rabe
seguida da Reconquista.
Com a romanizao, a Pennsula Ibrica foi integrada no Orbis
Romanus, cuja
lngua era o latim: atravs das instituies e dos mecanismos
sociais de poder,
impunha-se a unidade lingustica e cultural, enquanto o uso
quotidiano e a interaco
cultural determinavam uma certa diversificao.
As invases brbaras provocaram a fragmentao da unidade imperial,
com o
seccionamento das suas provncias e com a perda progressiva do
poder romano sobre
as regies conquistadas. E se os povos germnicos no alteraram, na
essncia, a
fisionomia lingustica e cultural da Pennsula, tiveram uma aco
importante, ao
isolarem a Hispnia do resto do antigo Imprio, contribuindo assim
para facilitar a sua
evoluo prpria.
82 Vtor M. de Aguiar e SILVA, "Projecto editorial para a
didctica da lngua e da literatura
-
34 Captulo I Pressupostos histricos
Durante quase sete sculos, a ocupao rabe (embora parcial) e a
fora
irradiadora do seu domnio marcaram decisivamente a vida da
Pennsula Ibrica. Se
bem que nos territrios que hoje so portugueses a permanncia no
tenha sido to
prolongada como no Sul da vizinha Espanha, cerca de cinco sculos
de presena
bastaram para marcar indelevelmente todo o seu quotidiano
cultural, lingustico,
poltico-social e, em parte, religioso.
Com a longa Reconquista dos territrios ocupados pelos rabes
foram-se
desenhando diferentes domnios territoriais e lingusticos,
decisivos para a estrutura
cultural da Pennsula Ibrica, onde, bastante cedo, se
individualizou um reino
portugus.
4. A romanizao
As transformaes introduzidas nas sociedades peninsulares
pelo
processo de romanizao foram mais relevantes nos espaos urbanos
do
que nos ambientes rurais. Foram tambm mais notrias em
algumas
zonas do que noutras. Assim, por exemplo, nas regies mais
setentrionais
da Pennsula a sobrevivncia dos modos de vida e organizaes
sociais
pr-romanas parece ter sido particularmente perene.
Carlos Fabio83
Por volta do sculo X antes da era crist, uma colnia latina de
pastores
albanos fixou-se numa das elevaes do Palatino, logo seguida por
outras que se
estabeleceram nas imediaes e por populaes sabinas que se lhes
juntaram em
colinas prximas. Dois sculos depois, alguns laos, sobretudo os
religiosos,
congregaram sete das aldeias latinas na liga septimontial, sem
que, contudo, elas
tivessem perdido a sua independncia e individualidade. S mais
tarde, nos sculos
VII-VI a. C., quando o domnio etrusco conferiu coeso urbana a
estes aldeamentos,
maternas: fundamentao", Sinfonia da Palavra - perspectiva
global, Lisboa, 1993, p. 3. 83
Carlos FABIO, A romanizao do actual territrio portugus, Histria
de Portugal (direco
e coordenao de Jos MATTOSO), vol. 1, 1993, p. 204 (transcrito
com supresses).
-
4 A romanizao 35
nasceu Roma que, de imediato, conseguiu uma certa ascendncia
sobre o Lcio.
Sacudida a dominao etrusca, s a partir do sculo IV a. C., depois
de refeita da
destruio entretanto operada pela invaso gaulesa, que Roma
encabeou a liga
latina e empreendeu a sua saga expansionista. Conquistada a
Pennsula Itlica, a
primeira guerra pnica (264-241 a. C.) determinou o domnio da
Siclia, da Crsega e
da Sardenha primeiras provncias do imprio , a que se juntaram a
Ilria e a Glia
Cisalpina. Na sequncia da segunda guerra pnica (218-201 a. C.),
iniciou-se a
conquista da Hispnia, seguindo-se-lhe a ocupao da Macednia, da
Grcia e da
provncia da sia Menor. Da terceira guerra pnica resultou a
anexao da provncia
da frica, a que paulatinamente se juntaram a Numdia e a
Mauritnia. Assim, no incio
da era crist, este povo guerreiro e de grande habilidade poltica
era senhor de um
vasto Imprio repartido por trs continentes Europa, sia ocidental
e Norte de
frica.
Entre esta realidade poltica e a de outros imprios
cronologicamente
anteriores houve diferenas significativas: a expanso foi
progressiva, lenta e segura,
garantida por vrias geraes de polticos e militares, e
desenvolvida a ritmos
distintos. Alm disso, os mtodos usados para controlar as regies
conquistadas
traduziram-se preferencialmente na implantao de novas estruturas
administrativas,
adequadas s diferentes tradies locais, e no s na fora impositiva
das armas nem
no peso de tributos desmedidos. Todo este movimento
expansionista foi, portanto, um
longo processo de aculturao, pelo qual os romanos instalaram um
modus vivendi
tipicamente mediterrnico, enquadrando a diversidade dos povos
conquistados numa
matriz cultural comum, atravs da transmisso dos seus hbitos,
valores, cultura e
lngua, o que constituiu um dos factores decisivos da sua
hegemonia poltica e cultural.
Alm disso, a habilidade poltico-administrativa e o facto de a
maior parte dos grupos
tnicos dos territrios conquistados ter uma vida tribal foram
tambm factores que
facilitaram a implantao romana: as populaes aloglotas sentiam-se
atradas pela
superioridade cultural e civilizacional de Roma e, medida que o
fenmeno da
-
36 Captulo I Pressupostos histricos
romanizao avanava, o uso do latim ia-se tornando uma
necessidade.84
O enquadramento civilizacional dos povos conquistados passou
tambm pela
implementao de diversas medidas propiciadoras da aco
romanizadora, entre as
quais: a associao dos povos autctones ao governo das respectivas
provncias
favorecia a integrao das populaes e a sua interaco com os
agentes da
governao romana;85 o controle das regies costeiras, o incremento
de redes
porturias e virias facilitavam as comunicaes com as vrias
provncias (entre si e
com Roma); o desenvolvimento da vida urbana aliado, por exemplo,
ao
estabelecimento de escolas de latinidade, edificao de aquedutos,
termas, ginsios
estimulou uma nova concepo das prticas econmico-produtivas
(ligadas s
84 A romanizao tem suscitado o interesse de estudiosos de
diversas reas que tm produzido
uma vasta bibliografia sobre o assunto. Veja-se Kurt BALDINGER,
La formacin de los
dominios lingsticos en la Pennsula Ibrica, cit., captulo 5 La
Romanizacin, p. 104-105,
onde se elenca a bibliografia fundamental, publicada entre as
dcadas de 20 e de 60, de um
conjunto de autores como Serafim da Silva Neto, C.
Snchez-Albornoz, R. Thouvenot, Eugene
Albertini, J. L. Cassani, T. Robert S. Broughton, M. C. Daz y
Daz, S. Mariner Bigorra, Manuel
Alvar, Antonio Tovar, Fredrick H. Jungemann, E. Coseriu e
Gerhard Rohlfs, entre outros. Alm
destes, veja-se tambm: Jos Herculano de CARVALHO, Lies de
lingustica romnica, cit.;
Veikko VNNEN, Introduction au latin vulgaire, cit.; Jzsef
HERMAN, Le latin vulgaire, Paris,
1967; IDEM, Du latin aux langues romanes: tudes de linguistique
historique, Tbingen, 1990;
Alexandru NICULESCU, El latn vulgar. Consideraciones sobre un
concepto, Anuario de
Letras, vol. XVII, 1979, p. 243-255; Jos Maria BLZQUEZ, Nuevos
estudios sobre la
romanizacin, Madrid, 1989; Coloma LLEAL GALCERN, La formacin de
las lenguas
romances peninsulares, Barcelona, 1990; Edwin B. WILLIAMS, Do
latim ao portugus.
Fonologia e morfologia histricas da lngua portuguesa, Rio de
Janeiro, 1986. O fenmeno
histrico -nos apresentado de forma muito completa e numa
perspectiva bastante abrangente
por Rui CENTENO, A dominao romana, Histria de Portugal (direco
de Jos Hermano
SARAIVA), vol. 1, cit., p. 149-212, e por Carlos FABIO, A
romanizao do actual territrio
portugus, cit., p. 203-299. 85
Temos conhecimento do estabelecimento de tratados de amizade,
pelos quais as
populaes ou cidades se submetiam livremente ao domnio romano,
conservando, em troca,
algumas das suas prerrogativas prprias, como, por exemplo, a
manuteno das magistraturas
e leis indgenas.. Cf. Carlos FABIO, A romanizao do actual
territrio portugus, cit., p.
229.
-
4 A romanizao 37
actividades institucionais, ao comrcio e ao artesanato) e fez
afluir s cidades uma
populao numerosa e heterognea constituda por gente de diversos
nveis sociais e
por uma multido de escravos, assalariados e marginais,
gravitando em torno de uma
elite poderosa, difusora do latim; o estabelecimento de centros
militares, focos de
intercmbio e de irradiao lingustica e a prpria incorporao de
soldados indgenas
nos exrcitos romanos favoreceram os contactos e a integrao para
a qual foi
decisivo o dito de Caracala (a Constitutio Antoniniana de 212 d.
C.) que alargou a
atribuio do ttulo de cidado romano (at ento privilgio dos
habitantes de Roma) a
todos os homens livres do Imprio, banindo legalmente a oposio
entre os romanos e
as populaes autctones: Romania pertenciam agora, em igualdade de
direitos,
todos os povos, das mais diversas raas e lnguas que desde a
Hispnia ao Mar
Negro e Sria, desde o Vallum Antonini, na Britnia, ao deserto
lbico obedeciam s
leis de Roma e conheciam os benefcios da sua proteco e, pelo
menos em parte, da
sua cultura. Todos, hispani, ou afri, ou galli, ou rhaeti, desde
que fossem livres, podiam
gozar orgulhosamente o ttulo de cidados de Roma..86 Por ltimo, a
cristianizao
(que, na Pennsula Ibrica, comeou no sculo I d. C.) tambm
propiciou a difuso do
latim, sobretudo nos meios rurais, como lngua de contacto entre
os diversos grupos
tnicos.87
Assim, aps um perodo mais ou menos longo de bilinguismo e de
diglossia,
sobreveio a romanizao, garantida em grande medida pela aceitao
do latim que,
pela sua superioridade, se imps naturalmente aos idiomas
pr-romanos como lngua
de cultura e de civilizao, em quase todo o Imprio, com raras
excepes, entre as
quais se salienta o basco (ainda hoje falado na zona das
Vascongadas) e o grego (na
regio oriental de lngua e cultura helnicas), a que se ligava o
Sul de Itlia.
Primeiro com uma forte conotao poltica, fruto de um sentimento
de pertena
86 Jos Herculano de CARVALHO, Lies de lingustica romnica, cit.,
p. 20.
87 Com o clebre dito de Tessalnica, de 380 d. C., o Cristianismo
foi adoptado como religio
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38 Captulo I Pressupostos histricos
a uma unidade imperial, os termos Romani, Romania, romanicus e
romanus opem-se
a Barbari e a Barbaria; posteriormente, Romania e romanicus
passaram a ter uma
conotao marcadamente cultural e lingustica: os cidados
pretendiam sublinhar as
diferenas que os separavam dos povos no romanizados. E a partir
do sculo IX,
quando se pretendia distinguir o latim dos idiomas romnicos seus
continuadores, o
advrbio romanice passou a aplicar-se s lnguas romances /
romnicas, diferentes do
latim (romanice loqui opunha-se a latine loqui).88
4.1 O latim vulgar
Mas de que que falamos quando nos referimos ao latim de onde
partiram os
idiomas romnicos?
frequente estabelecer-se uma distino entre latim clssico e latim
vulgar, se
bem que esta expresso, consagrada pelo uso, continue a suscitar
alguma
controvrsia: Sanctionn par un usage centenaire pour dsigner les
divers faits latins
qui ne s accordent pas avec les normes classiques, le terme de
latin vulgaire a les
avantages et les inconvnients d un terme consacr..89
A expresso latim clssico tem sido mais vezes entendida como a
lngua
literria', a 'lngua escrita' usada em situao formal, sujeita a
uma disciplina
rigorosa por parte dos intelectuais e dos gramticos , que se
cingia a um padro
imutvel e que, resistindo s foras lingusticas evolutivas, servia
o estilo reflectido e
escolar, adaptando-se mal aos usos sociais quotidianos e
correntes. "Imobilizado" nos
textos escritos, o latim clssico foi grandemente influenciado
pela tradio greco-latina:
literariamente conceituados, Virglio e Ccero eram autores
modelares, cujo padro
literrio vigorou durante muitos sculos. Mas no podemos esquecer
que a
estabilidade relativa da lngua escrita esconde muitas mudanas a
nvel oral e
do Estado. 88
Cf. Jos Herculano de CARVALHO, Lies de lingustica romnica, cit.,
p. 23. 89
Veikko VNNEN, Introduction au latin vulgaire, cit., p. 3.
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4 A romanizao 39
convm, portanto, no exagerar a oposio entre o falado e o
escrito: a lngua
espontnea, pouco preocupada com a norma e mais com o uso, o
verdadeiro latim
vivo Quintilien, fin observateur, inclinait dj donner la
prpondrance ce
dernier, guide le plus sr de la parole, ne trouvant en effet
point inlgant de dire
que parler latin est une chose, parler grammaire en est une
autre..90
Latim vulgar foi inicialmente o decalque de sermo vulgaris,
expresso usada
pelos gramticos latinos para designar pejorativamente o latim do
vulgo e, portanto,
uma fala rude e grosseira, por oposio fala da gente culta. O
adjectivo vulgar,91 por
oposio a literrio, tem assumido diferentes acepes: a
depreciativa de 'uso
lingustico descuidado e condenvel', sob o ponto de vista purista
e conservador; a de
'lngua popular', apangio das camadas populacionais incultas; e a
de 'coloquial',
referindo-se lngua falada em situaes informais por falantes de
todos os nveis
sociais. De acordo com Herculano de Carvalho,92 a estes sentidos
esto subjacentes
diversas perspectivas conceptuais a sociolgica, a estilstica e a
crono-estilstica.
A concepo sociolgica funda-se na diversidade idiomtica
scio-cultural que
se verifica no interior de qualquer lngua, sendo ento a expresso
latim vulgar
entendida como a linguagem falada pelas camadas sociais e
culturais mdias e baixas
do povo romano o vulgo , em contraposio aos usos dos patrcios,
escolarizados
e cultos. Por outro lado, encarando a denominao do ponto de
vista estilstico isto
, colocando a tnica nas finalidades comunicacionais de cada acto
de fala e no
conjunto de caractersticas formais distintivas de produes
lingusticas com intenes
comunicativas diferenciadas entende-se que essa elite, apesar de
deter o privilgio
da lngua escrita, lhe violava sistematicamente as regras nas
interaces lingusticas
90 IDEM, Ibidem, p. 5.
91 As propostas vo no sentido de substituir o adjectivo vulgar
por popular, familiar, quotidiano,
quotidiano tardio, usual, coloquial ou, melhor ainda, de o
banir, passando essa realidade
lingustica a designar-se unicamente por latim. Cf. Jos Herculano
de CARVALHO, Lies de
lingustica romnica, cit., p. 73; e Veikko VNNEN, Introduction au
latin vulgaire, cit., p. 3.
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40 Captulo I Pressupostos histricos
quotidianas e informais. Assim, o latim vulgar, entendido como
coloquial seria a
linguagem do dia-a-dia usada por todas as camadas sociais da
populao romana
incluindo a aristocracia , independentemente do seu grau de
cultura ou literacia, por
oposio ao latim literrio, escrito. A perspectiva conceptual
crono-estilstica alia a este
bilinguismo estilstico um matiz cronolgico, o que torna a
expresso e o conceito
que lhe est subjacente ainda mais restrito: o latim vulgar seria
o latim coloquial tardio,
o mesmo dizer, o latim falado informalmente por todos, na fase
de declnio do
Imprio.
Longe de ser uma questo resolvida, o uso de latim vulgar deve
ser encarado
com algumas reservas, na medida em que, no havendo na sociedade
romana
hierarquias sociais es