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tEMpEStadE EM altO-MaR*
Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa**
Resumo:
Traduo com comentrios de uma cena de tempestade na Odisseia de
Homero (V, vv. 278-383). Poseido provoca a tempestade que quase
suga e mata Odisseu. As deusas Ino Leucoteia/ Brancadei (que lana
para ele seu vu protetor) e Atena vm para resgat-lo. Julgamos que a
passagem
** Recebido em: 25/02/2017 e aceito em: 31/03/2017.
Agradeo ao Lhia, ao Deivid, que formalmente me convidou, Regina,
ao Fbio, aos que acolheram a indicao do meu nome para esta
conferncia. uma honra poder estar como colaboradora no Lhia/ UFRJ,
a 1 colocada no ranking universitrio de 2016 da Folha de S. Paulo.
Parabenizo-os, sobretudo, pela escolha do tema, pela sintonia com
os problemas crticos de nossa poca. A Organizao das Naes Unidas no
Brasil (ONUBR), em 18/01/2017, relatou: Em 15 dias, mais de 2,8 mil
migrantes chegaram Europa pelo Mediterrneo. A Organizao
Internacional para as Migraes (OIM) informou na semana passada que
2.876 refugiados chegaram Europa pelo mar nos 15 primeiros dias de
2017, em comparao com os 23.664 migrantes que entraram no
continente no mesmo perodo do ano passado. Os migrantes
desembarcaram principalmente na Itlia (2.851) e na Grcia (691),
repetindo o cenrio observado em 2016. De acordo com a agncia da
ONU, durante o perodo, houve 219 mortes, em comparao com os 91
bitos nas primeiras semanas de 2015. O nmero de vtimas considerado
baixo pelo Projeto de Migrantes Desaparecidos da OIM, que est
investigando relatos recentes que acrescentariam pelo menos mais
200 mortes ao nmero total. Funcionrios da OIM de Roma informaram
que tiveram a oportunidade de falar com quatro sobreviventes de um
trgico naufrgio ocorrido no ltimo sbado (14) nas guas entre a Lbia
e a Itlia. H relatos de que um barco com cerca de 180 migrantes a
bordo teria virado no mar agitado prximo ao largo da costa da Lbia.
Parece provvel que este incidente tenha resultado na morte de mais
100 pessoas. Ainda no sabemos as nacionalidades das vtimas ou se
havia mulheres e crianas no navio. Trata-se de um comeo trgico para
o ano novo, disse o diretor do escritrio de coordenao da OMI para o
Mediterrneo em Roma, Federico Soda. Cf.
https://nacoesunidas.org/mais-de-28-mil-migrantes-chegaram-a-europa-pelo-mediterraneo-nos-15-primeiros-dias-de-2017/
Acesso em 04/02/2017.
** Professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais.
CNPq/Fapemig.
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como um todo pode ser analisada como uma alegoria. Esta memorvel
pas-sagem pode nos servir de estmulo para pensar o conceito de
resilincia e associar a cena situao de pelo menos 3.800 pessoas
que, at 2016, morreram ou foram perdidas no Mar Mediterneo.
Palavras-chave: traduo; Homero; Odisseia; tempestade;
resilincia; crise migratria.
StORM On thE hIGh SEaS
Abstract: We offer a translation and commentaries of a storm
passage in Homers Odyssey, (V, 278-383). Poseidon stirs up the
storm, which nearly drags and kills Odysseus. The goddesses Ino
Leucotea/ Brancadei (who throws his protective veil to him) and
Athena come to his rescue. We pro-pose that the whole passage can
be analyzed like an allegorical picture. A remarkable and
emblematic passage like that stimulates us to think about the
concept of resilience. Finally, we compare the storm scene and the
migrant crisis when, until 2016, at least 3,800 persons died or
were declared missing in the Mediterranean Sea.
Key-words: translation; Homer; Odysseys storm; resilience;
migrant crisis.
O mar e os gregos1
Sobre a Grcia, Marie-Claire Beaulieu (2016, p. 1) abre a
introduo de seu livro intitulado the sea in the Greek imagination
com uma frase de impacto que resume, definitivamente, a eterna
condio dessa terra: O mar est por toda parte nas paisagens
gregas.
2 Antes de Beaulieu, porm,
Francoise Ltoublon (2001, p. 27) afirmou, em sintonia com a
colega, que o mar, por certo, figura como meio natural dos
gregos.
3 Beaulieu no refe-
rido estudo, contudo, vai alm, alarga horizontes e ratifica:
Dos cumes de montanhas escarpadas s baixas planuras, o
Me-diterrneo raramente fica fora da vista. Para os ilhotas e para
os moradores da costa martima ele mais do que uma realidade
geogrfica, um modo de vida. E isso era ainda mais verdadeiro para
os gregos da Antiguidade, que eram excelentes marinheiros e
pescadores tarimbados, desde os primeiros tempos. Na verdade, os
gregos contavam com o mar no s para seu sustento e transporte, mas
tambm para notcias, guerras, trocas comerciais e polticas, bem como
para o desenvolvimento cientfico. O mar tambm ocu-
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pou um lugar importante na vida religiosa dos gregos. A gua do
mar foi usada para vrios tipos de purificao, muitos rituais eram
realizados beira-mar, e alguns festivais prescreviam jogar no mar,
aos deuses, as oferendas.
4
Entretanto, Ltoublon quem reala a obscura e instigante
etimolo-gia do termo definidor das grandes guas sonoras e moventes:
! (LTOUBLON, 2001, p. 28). Beekes (2010, p. 74; p. 530), por sua
vez, aponta uma questo curiosa; segundo ele, para nomear o mar, os
gregos no usaram a raiz comum europeia, mas recorreram a palavras
antigas. Assim, , que antes era sal, tornou-se o mar salgado, e ,
antes caminho, mar-alto; de outro modo, eles tomaram termos de um
suposto pr-grego: o caso de , via de passagem, e , a palavra
misteriosa de Ltoublon.
Todavia, essa grande massa de gua seja no masculino ( , ou ) ou
no feminino ( ), seja the sea, o mar ou la mer gua de ambguo
carter: alimenta, via de passagem, meio que conduz guerra e morte,
elemento que constitui um povo, que firma a cultura; assunto para
fazer literatura.
Mar, lugar onde a liberdade, os encontros e o fracasso residem;
espao de jbilo, surpresa e medo; rota e fronteira. Certo que esse
Mediterrneo, o mar que chamamos greco-romano, origem de mltiplas
estratgias de sobrevivncia, inclusive a que se faz com e pela arte;
arte que transporta, de l para c, ideias.
5 Seu encanto, sua complexidade natural, sua grandeza e
formosura surpreendem e justificam o fato de que os helenos
concebiam-no at como morada de deuses (aqui, nele reside
Iemanj!).
Rodrguez Lpez (2008, p. 178),6 como Ltoublon e Beaulieu,
reafirma
que a Grcia antiga (e, acrescente-se, igualmente a moderna) ,
por anto-nomsia, desde sempre uma terra marinheira. Ela e o
Mediterrneo, que a esculpiu, continuam sendo matria-prima que
originou mltiplas e profun-das crenas, prticas, textos e fantasias.
Cercados de gua, os gregos, tal como prope Juan Antonio Roche Crcel
em El mar en las literaturas del Mediterrneo Occidental (2008),
7 precisaram poetar essa natureza cir-
cundante para se autodefinir. Foi, talvez, por isso que o mar se
converteu para eles em contrafigura da vida humana, tornou-se
espelho que refletia os homens, sua vida e labutas. Pois bem, se o
mar matriz literria para inumerveis textos e se o queremos
grandioso a ponto de se abeirar ao
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sublime, bastar-nos-ia para arrebatarmos aos poetas o desejo de
emular imaginar nele a circunstncia exasperada de uma borrasca.
Poderamos pensar que tal concepo se firmasse somente para a
An-tiguidade ou apenas na regio do Mediterrneo; no assim. A interao
com e o enfrentamento do mundo de guas so tarefas ordinrias para
mui-tos; os temporais continuam a abastecer relatos de vitrias e
derrotas. To-dos os dias, em algum lugar, algum reconta um sucesso,
um malogro e um combate no mar. Testemunhos mostram esquecendo por
um instante a onda cruel que avana e arrebenta nas praias de pases
de todo o mundo com refugiados desprotegidos que fogem de guerras e
infortnios nossa ligao visceral com o universo das guas. Frye
Gaillard e as colegas Shei-la e Peggy coletam depoimentos de
habitantes da regio do Alabama que passaram pelo furaco Katrina no
Oceano Atlntico. Dos relatos, destaca-mos apenas um para
sensibiliz-los para o tema:
Chuva, a mais gelada e pesada que eu jamais senti, implacvel, me
abateu, ela disse. A um vento depravado me pegou e me afundou para
dentro dum buraco desses de uma rvore arrancada. Atraquei num galho
e agarrei minha vida querida, mal e mal notan-do os barulhos
medonhos minha volta os guinchos de pssaros espavoridos, o grito
aflito de um bezerro afogando, os gemidos mortais da velha gua
branca do Sr. Deakle soterrada debaixo do celeiro que caiu.
(GAILLARD, 2008, p. 3)
8
A adolescente de 13 anos, Alma Bryant, conta sua experincia bem
no meio do olho do furaco: ela se salvou trepando por cima de
escombros que boiavam entre galinhas mortas, capados inchados,
cobras se contorcendo (GAILLARD, 2008, p. 3).
9 Ao fim dos depoimentos, Gaillard (2008, p. 4)
conclui, pragmtico: [F]uraces vm, furaces vo, exigindo
resilincia dos que sobrevivem.
10
Eis aqui uma das mais fortes razes para a fecundidade do tpos
que elegemos: ele cria modelos de resilincia. O relato da
sobrevivente ao Katrina serviu para entendermos a posio de Alma
Bryant, que superou porque agiu e reagiu positivamente s
adversidades impostas. O valor in-trnseco de vermos, lermos e
interpretarmos as tempestades no mar que elas so provas de nossa
gana ou desgosto pela vida. Talvez seja este o objetivo de
discorrermos sobre o tema, metfora de resistncia e superao em
tempos difceis.
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O mar literrio
Se o mar est por toda parte, ele, coincidncia ou no, est
presente tambm em toda a antiga literatura grega remanescente.
Evidentemente, seria ingnuo pensar que pudesse haver uma nica viso
de to inslido elemento, definido e nomeado de tantas maneiras.
Muitos mares h; o nos-so tempestuoso. Escolhemos Homero como base.
O aedo seria para ns uma tbua de salvao, pois ele congrega um
repertrio cultural comum, se nos reportamos aos seguidores da
teoria formular de Milman Parry,
11 hoje
j bastante modificada, mas guardando a essncia de sua hiptese.
Os poemas homricos definiram, em palavras e frmulas atualmente
entendidas como large words (conceito que engloba, inclusive, as
cenas tpicas, como as de uma tempestade, e histrias formatadas) ,
um com-partilhado cultural no entorno do Mediterrneo. De fato,
possvel elencar as impresses e expresses comuns de um povo em
frases e sintagmas recorrentes nesses poemas tal como pensava
William Chase Greene (1914) j antes do sistematizador Parry (1930).
Ele ponderou:
Cedo os gregos comearam a pensar no mar. Bem antes dos poemas
homricos tomarem forma literria, o grande espetculo de sua
silhue-ta e cor, seu drama de som e movimento, deve ter encontrado
expresso na lngua. Em sua forma mais simples, isso que significa o
epteto homrico, que vocaliza, em modo descritivo largo, a natureza
fsica de seu objeto. O mar largo, profundo, sem limite, prpura,
vinho-escuro, ele alto e ressonante e muito arrojado, ve-nervel,
brumoso. Essa coisa salgada a no vindimada, se este o significado
de ; assim, o trilho dos navios nomeado caminhos dgua. Tais
descries brotam de impresses que no foram geradas por mente
individual nenhuma. Para qualquer par de olhos o mar largo, para
qualquer par de orelhas as ondas rezingam, para qualquer lngua elas
so salgadas. Bem facilmente esses termos descritivos se fizeram
frases convencionais e estereotipadas que se repetiam,
naturalmente, nos lbios de cada um, uma vez que j haviam sido
utilizadas. (GREENE, 1914, p. 428)
12
O que Greene postulou , realmente, o que temos na Odisseia e na
Il-ada. A condio dos poemas, terreno compartilhado, deu-lhes o
estatuto de literatura de fundao e nos impeliu a abordar a Odisseia
em nosso estudo.
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46 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
No vamos percorrer os apontamentos de Greene, que cita as
ocorrncias do mar em muitos dos seus estados de alma e em vasta
seleo de tex-tos,
13 nem mesmo os de seus inmeros sucessores, que recolhem e
analisam
a presena do mar nos textos legados pelos antigos. Buscamos
chegar ao alto-mar da Odisseia e examinar as turbulncias que l se
formaram para mirar o resiliente Odisseu. Ele poder nos levar ao
sofrimento dos milhes de nufragos que transitam aflitos nas guas do
Mediterrneo contempor-neo. Milhares de homens, mulheres e crianas
que morrem ao cruzar a rota central do Mediterrneo, o caminho mais
perigoso de todos os que o mar oferece. A rota oriental, percorrida
por cerca de outros tantos, a maioria da Sria, est fechada desde
maro de 2016. Da Turquia para a Grcia, da Nigria, Somlia,
Lbia...
14
O mar, na Odisseia, a encruzilhada que une tudo: o real dos
homens, o sublime dos deuses e o imaginrio dos monstros; via que se
desdobra em muitos outros caminhos molhados os (Od. III, v. 71),
veredas de um serto literrio inundado. Jaqueline Goy afirma ser a
Odis-seia, para alm de uma histria das aventuras de um marujo que
retorna, um poema sobre o mar, escrito com tal preciso que poderia
ser conside-rado o primeiro tratado de oceanografia. Para ela,
(...) Odisseia no um simples relato de navegao que permite ir de
um ponto a outro, mesmo que Homero nos d o mtodo de se localizar na
imensido da plancie marinha. Desse modo, quando Ulisses navega, ele
tem os olhos fixos nas Pliades e no Boieiro, que se pe muito tarde,
e na Ursa, que tambm chamamos de Car-ruagem, a nica das estrelas
que nunca mergulha para banhos de mar. Ele navega, nas rotas da
costa, mantendo a Ursa mo es-querda (V, vv. 270-278), assim, com
esta orientao, Ulisses segue na direo do leste para voltar para
taca. (GOY, 2003, p. 225)
15
Vale a pena conferir os versos gregos a que Goy se refere
declarando que Ulisses mantinha a Ursa mo esquerda. Os versos so os
seguintes (Od. V, vv. 270-277):
, , ,
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47PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
, : , , .
Ento com arte firmava o leme, sentado; nenhum sono nas plpebras
lhe pousa,de olho nas Pliades, no Boieiro que tarde mergulha e na
Ursa, a que apelidam vago,a que gira sobre si e espreita o rion,s
ela esquiva aos banhos dOceano!Pois a ela tendo ele, esquerda da
mo, Calipso,diva de deusas, levou-o a travessar o alto-mar.
Mas observemos os detalhes da narrativa: o controle do leme, os
no-mes das constelaes e a posio das estrelas mostram clara evidncia
de intimidade com o mar. O autor parece estar bem sintonizado com o
mundo que o rodeia. Jaqueline Goy argumenta que esse criador no
somente est situado nos mesmos espao e tempo em que Odisseu navega,
como tam-bm extremamente [...] consciente de que o que mais
importante para a navegao vela o vento. Prova disso que ele
consagra todo o canto X ao poder de olo, mestre do vento, olo que
est por trs, quando o vento se solta, a onda se agiganta e se veste
com inchadas montanhas (GOY, 2003, p. 226).
16
O mar e os ventos so elementos fundamentais para se criar uma
tem-pestade. Eles agregam e perturbam troianos, aqueus, antropfagos
e gente que come po; ele, o mar odisseico, com as foras dos ventos
vindos de olo (ou Zeus ou Poseido), agita os homens, os deuses e os
demnios. Nesse vis, nos aliamos a Salvatore Bone, que retoma
Zygmunt Bauman, para dizer que o mar movimenta e fecunda a
literatura ocidental, e, na Odisseia, constitui-se, com sua
movncia, incerteza, contradio e perigo, uma espcie de ideia lquida
(BONE, 2016, p. 119), e que a liquidez da ideia mediterrnea
significa, antes de qualquer outra coisa, a presena tanto de
afirmaes quanto de contradies internas e de projetos hegemnicos
(como a ideia colonialista de perceber como fundadora a cultura do
Me-diterrneo) que esbarram em enfrentamentos minoritrios (BONE,
2016, p. 126). Recordemos, de novo, os refugiados; a absurdidade
das ondas que atravs do mar se pem em fuga; este o contexto que
escolhemos para ler
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48 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
a tempestade que se abate sobre Odisseu, nufrago exmio que
enfrenta o poder tempestuoso de Poseido e se faz, com auxlio da
estrategista Atena, vencedor.
Juan Antonio Roche Crcel coleta e indica, ao estudar o naufrgio
na tragdia tica, a construo por alegoria das catstrofes; por essa
via, embora expanda sua anlise sobre o medo que se apodera daqueles
que navegam o mar e enfrentam piratas, segue Patricio Carvajal
quando investiga o nau-frgio (2007).
17 Ao fim e ao cabo, dos ensaios de ambos, entende-se que os
gregos, na abordagem do mar, antropomorfizaram-no e,
paralelamente, fisio-morfizaram o homem em suas aes e sentimentos.
As tormentas so como os infortnios. Crcel conclui que, nas
tragdias, os dramaturgos conceberam o homem como o mar: um ser
trgico assolado por desgraas e abatido pelo medo e pela dor que
vive sob os mesmos tipos de foras que, com violncia, aoitam o mar e
as ondas que se debatem contra os rochedos.
Atribuda aos deuses, a tempestade tem beleza especial. Observar
cu e mar em grande turbulncia pode ser um estratagema para criar um
espet-culo arrebatador, oportunidade inigualvel de, na literatura,
gerar o subli-me.
18 Henry J. M. Day (2013, p. 142-156), investigando a obra de
Lucano,
poeta do rol de emuladores de Homero, entende que o latino, por
seu tur-no, no limita a tempestade aos deuses. Para Day, Lucano v
as borrascas como manifestao de fenmenos naturais de poder e
desordem a um s tempo. Desse modo, o enorme volume lquido que
desaba sobre um solit-rio marinheiro tem carter claramente alegrico
e, nesse vis, o mar terrvel que desagua sobre Odisseu, depois de
sua partida de Oggia para Esquria, pode ser visto, em meio s
inmeras paisagens que se descortinam na Odis-seia, como efeito para
retratar a luta do homem contra a aniquilao total. Ns, espectadores
de terra firme, ou do livro aberto, provamos do terror instigado
pelo poder das guas (ou dos deuses) em convulses.
Vislumbremos, portanto, a bravura do heri singular que enfrenta
no s a borrasca que se forma, mas todo o cosmo em fria: um homem
contra o Mediterrneo inteiro. Vamos focalizar o tpos da tempestade.
Os deuses decidiram: Odisseu deixar Oggia. Calipso, a contragosto,
instrui o Laer-tida, que corta toras de madeira, prepara-as e faz
sua embarcao. A ninfa auxilia, produzindo vento propcio nas velas
do audaz navegante. Foi-se seu amado refm. A tranquilidade dura o
tempo de 17 dias, mas no dcimo oitavo... Vejamos o que Homero
diz:
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49PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
, , 280 . . , 285 , , , , . . 290 , , . 295 , . , , ; , 300 , ,
. , , . . 305 , . . 310 , . , .
-
50 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
, 315 , . , 320 , . , , . , , , 325 . . , , 330 , . , ,, , . 335
, , , , , ; 340 . , , , . 345 , . , , . 350 ,
-
51PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
: . , 355 , , . , , . , ; 360 , ,, . , , , , . . 370 , , , . , ,
, . , 375 : , . . 380 , , . . , , , 385 .
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52 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
Dez e mais sete dias navegou, cruzando alto-mar; a, no dcimo
oitavo, apontou a serra sombria daterra dos fecios. Estava l bem
rente a ele!Surgiu qual couraa em riba do alto-mar nevoado...S que
a ele o chefe treme-terra, revindo dosetopes, ao longe, l da serra
Solimo, mirou! Ele surgiu vogando mar! Ento enfuriou-se mais fundo
e, pro imo peito, o topete agitando, atestou:Opa! Decerto os deuses
pra Odisseu bandearam outra vez, no meio da minha estada cos
etopes; mais a mais, ele j vai perto da terra dos fecios; l, pra
ele, fado safar-se do cume da misria que lhe veio. Mas hei de
lev-lo, juro, ao fastio do medonho.No que disse, juntou nuvens e
franziu o alto-mar;nas mos o tridente tomando, toda ventania
topetoucoos tantos ventos todos e todos os nevoeiros enublou a
terra e, na mesma, o mar! Noite breou cu abaixo.Com o Euros o Notos
topou; tambm o afiado Zfiro comBreas, boreal filho etreo, o que a
gr onda ondeia.A, pois, vacilaram de Odisseu suas juntas e o flego;
marfado, ele diz ao imo do gro corao: que frouxo sou, que me vem
agora l de to longe? Temo. Vai que decerto a deusa disse s
desengano?!Ela me disse que no mar, antes de a terra ptria
chegar,dores ho de transbordar! Isso tudo j se cumpre.Quanta nuvem
rodeou Zeus no enorme cu,ele franziu o alto-mar e as ventanias
rugem, coos ventos todos, agora me salvo pra um podre fim. Os
dnaos... tri, tetrafelizes os que se finaramna larga Troia, levados
ao sabor dos atridas! ; eu devia ter morrido e rematado o porvir no
dia que contra mim, muitos, com paus-de-espeto-bronze, os Troas,
disputavam o Pelida morto.Nisso qui lograva ritos, tinha glria
entre os Aqueus!Jagora, em soturna morte, foi-me dado morrer.No que
falou, por cima uma superonda, de chofre escarrada, lacera-o; a
barca rangiu em roda.
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53PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
E pra longe da barca ele bateu e o timo dasmos arrancou! E, ao
meio, o mastro forte se lhe partiu no chegado da chusma de cruzados
ventos; e, l longe, panos e ripa despencam no alto-mar.E por muito
tempo afundado o deixou; nem podia,de pronto, boiar, retido pela
bruteza da grande onda! que a veste pesava, a que lhe deu a diva
Calipso.Devagar subiu, cospe da boca salmoura emfel, a que da cabea
lhe escorria muito, enem assim, mesmo roto, da barca descuidou;
e,rompendo pelas ondas, prendeu-a, bem no meio,sentou, ele que do
arremate de morte se safou.A ela a grande onda no enxurro levava,
pra c e l,tal qual Breas outonal acantos pela planura rolae eles,
embolados entre si, maranhavam; assim, a ela os ventos rodam pelo
mar-pleno, pra c e l!Dum lado Notos joga pra Breas rodopiar;do
outro, de volta, Euros larga pra Zfiro lufar.Mas viu-o a filha de
Cadmo, Ino fino sop, Brancadei dantes mortal e que sonorosa
fora,agora partilha de deuses, nos altos-mares-puro-sal,honras. Ela
lastimou o vagante Odisseu, to dodo,a, qual mergansa voante
aparecida dum remanso, aflorou, e se meteu nas trelas da barca e
disse fala:Qual qu, camaro, contra ti Poseido treme-cho encrespou
bravio e tantos males te gerou, por qu? , mas, inda que to afanado,
arrasar-te no vai.Ento, faz isto aqui, no me pareces desvairar:
Desveste estas vestes, deixa que os ventos a barca levem, de
braadas, porm, nadando, acha volta para a terra fecia; l, destino,
tu te hs de safar.Ta, toma! roda do peito esse indestrutvel xale
enrola! No temas nem padecer nem morrer. Mas quando ferrares mo no
cho firme,larga-o e lana-o no alto-mar mareante de volta; distante
da costa e vira tu prprio as costas pra longe.No que assim vozeou a
deusa, a, o xale entregou e,
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54 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
de volta, pelas funduras do alto-mar ondulado, qual mergansa
afundou; coa onda sombria se cobriu.Mas o sofrido Odisseu divino se
inquietoue, aflito, disse mesmo ao seu largo peito:Aziago eu! Acaso
outro dolo teceu pra mim umdos imortais, nisso de me forar a pular
da barca?Decerto, mas eu c, ainda, no me rendo, pois dos olhos
longe vejo a terra quela disse que asilo me h de ser. Decerto, mas
isto que farei, digno me parece ser:o tanto que possam encaixadas
estar as ripas, ata, fico na mesma, resisto dores padecendo, no que
me vem a onda pra desmantelar a barca:nadarei, pois no h previso de
nada melhor.Mal ia levantando tais coisas no tino e no imo,levanta
por cima grande onda Poseido treme-cho,conchuda, brutal e colossal,
e ela a ele arremessa.Foi tal qual vento borboto que fardos de
trigo secodesmantela e, ara!, tudo espalha, ali, alhures, l!E assim
um ripazal espalhou. S que Odisseu emcima duma ripa montou e galgou
tal qual gua guiada,as vestes desvestiu, as que Calipso diva lhe
deu.E, de pronto, o xale roda do peito enrolou, emesurado caiu no
mar-pleno, braos em asas,disposto a nadar. S que o chefe treme-cho
viue agitou o topete e pra seu imo peito murmurou:Pois seja: no
sofrer muitas agruras, erra pelo alto-mar,qui, at te infiltrares
entre robusta gente de Zeus,indassim, me fio: tu no hs de demandar
bordoadas.Assim, no que retumba, aoita as guas-belas-crinas,partiu
para Egas, l onde, pra ele, h opima manso.Nisso Atena, a moa de
Zeus, diverso pensou. Eh! Os cursos mesmos dos outros ventos
trancou e ordenou cessar e remansarem-se todos! A,assopra pro Breas
veloz e quebra o mar-das-ondasat quele, Odisseu-de-Zeus-nascido,
entre os fecios remeiros se infiltrasse fugido da morte e da m
sorte.
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55PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
Comentrios
O chefe treme-terra Poseido detesta Odisseu. Por isso, o poeta
demar-ca enfaticamente a chegada dele, que far o heri, debaixo de
forte refre-ga, combater as foras da natureza, descer s funduras
das guas, receber auxlio dos deuses e chegar, nufrago, a terra
desconhecida. Que detalhes construram a magnificncia da
passagem?
O excerto se abre com uma frmula comum para marcar a durao da
viagem em dias: topamos o 18 dia sem novidades. Pachorra. De
repente, desponta longe Poseido. A forma verbal usada , surge,
des-ponta (traduzida por apontou; homenagem ao som do termo ). Ele
apontou na serra (o neutro plural foi vertido como coletivo: serra
sombria). Boa notcia: Esquria rente a Odisseu, igual a um escudo
boiando no mar. A leitura que adotamos, escudo/couraa, para a terra
que boia no mar a da edio do Perseus.
19 Assim, temos
, ou seja, tal como couraa. O sintagma expresso condensada da
frase , veio assim como uma couraa que aparece sobre.... Trata-se
de uma comparao breve e por metonmia ( couro de animal; parte de
alguns escudos era coberta por couro; entende-se a parte pelo
todo). O recurso tem efeito visual imediato, j que os escudos
homricos, redondos e com lombada, se colocados de borco, do
impresso de pequenos montes; nesse sentido, Esquria tinha forma
arredondada com elevao central. Alegra-se Odisseu. Seu maior
inimigo est de frias! Como artfice engenhoso, o poeta retoma os
versos 22-25 do canto I, quando, para alvio de guerreiro, Poseido
descansa entre os eto-pes. A terra dos etopes, nos poemas, lugar
distante, l onde os deuses fazem banquetes e festas. No s Poseido,
como tambm Zeus e ris ficam de folga (Il. I, vv. 423-424; XXIII,
vv. 205-208). Hoje essas plagas so ptria de aflitos que se lanam ao
mar fugindo de sistemas totalitrios. Por certo, dura pouco o
sossego do navegante. Eis que cruel vem Poseido, que visa longe o
infeliz. E onde se coloca o deus para avistar Odisseu? No topo da
serra Solimo. Perrin afirma que os eram um lugar mtico na sia
Menor, prximo da Lcia (PERRIN, 1894, p. 29). Herdoto (1, 173)
identifica seus moradores como Lcios (1, 173), mas Homero (Il. VI,
vv. 167-186) coloca-os, no episdio de Belerofonte, como inimigos. A
re-gio, segundo Merry e Riddell, foi colonizada por cretenses
(1886, p. 235). Stanford (1990, p. 278) remete o leitor a Herdoto e
a Estrabo (1, 21, 10)
-
56 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
e confirma seus antecessores. Heubeck, West e Hainsworth
(HWH)20
real-am o lugar como ponto estratgico de viso e comentam a
capacidade dos deuses de distinguirem as coisas ao longe; citam o
epteto para Zeus e Hlios. Para Pierron (1875, p. 247), o termo ,
genitivo de , refere-se a uma cadeia de montanhas na Pisdia, da
traduzirmos a expresso por serra Solimo.
Eis Homero construindo o suspense. Estamos tensos, Odisseu vem
vagando tranquilo, mas, sem saber, est sob a mira de Poseido. O dio
do deus, pela frmula (PERRIN 1894, p. 30), colocada imediatamente
depois de seu olhar (v. 284), se acirra; a frase frequente na
exposio dos afetos violentos. Pierron entende que o advrbio d um
tom de grandeza veemente e indefinida (1875, p. 247). Cada vez mais
o tpos da tempestade se conforma com o sublime. Poseido se pe a
falar em lar-go solilquio; alis, no trecho, esse recurso bastante
utilizado (4 vezes em 109 versos). HWH (1990, p. 280) informam que,
em todo o restante do po-ema, contra o excesso desses versos, a
frmula ser utilizada apenas quatro vezes. Na Ilada, utilizada uma
vez no canto XI e trs no XVII; uma vez no XVIII e duas nos cantos
XX, XXI e XXII cada um, isto , 11 vezes ao todo.
Poseido-mar-antropomorfizado exibe sua irritao com um balanar de
cabea, . A frmula se repete na Ilada (XVII, vv. 200 e 442). , para
ns, passou a ser topete. Num mover de cabea, v-se a cabeleira do
deus, as cristas de ondas; movncia das guas-cabelos--ondulados de
Poseido. Imagem magnfica.
O deus brame em frmula recorrente:21
, e compe o 1 hemistquio do v. 286 (lemos o termo como uma
interjeio, opa!). Ele est enfurecido: foi passado para trs; mesmo
assim, reco-nhece: Odisseu vai se salvar, quando chegar terra dos
fecios; por isso, urge faz-lo sofrer, uma compensao pelo cegamento
de Polifemo. Nesse trecho a palavra importante. HWH (1990, p. 333)
indicam vrios estudos sobre a passagem e sobre o uso do termo , que
integra, nos poemas, o campo semntico do destino. A bibliografia
vasta (cf., por exemplo, A. W. H. Adkins 1960, p. 17-29). O que
queremos destacar, porm, que o termo, sendo um paralelo conceitual
de (parte, lote, poro, sorte), alternativa mtrica til. Ardil potico
eficaz: Poseido, ao indicar que Odisseu vai se salvar, deixa-nos
tranquilos para apreciar o hor-ror do temporal que vem. A ameaa
sugere o tipo de gozo: vamos assistir a uma tragdia, o divino levar
o mortal s raias do fim (v. 289, ):
-
57PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
uma catstrofe sem morte. A nfase da ira de Poseido se pode notar
pelo sintagma ; nele, o tem o sentido de (PIERRON, 1875, p. 247).
Traduzimo-lo como hei de, que, por sua vez, se associa a e se junta
com , isto , digo que o levo. A traduo tendeu para o estranhamento;
afinal, uma divindade que fala e ameaa!
Mas, como vimos, quando Poseido aparece e aqui se usa de uma
qua-se dramaturgia (LTOUBLON, 2001, p. 30) , o narrador conduz o
ouvinte com pulso forte e o faz participar da aflio do heri. Depois
do anncio de tal sofrimento causado ao heri, tudo comea. As nuvens
amontoadas vo esconder Esquria. Diferentes ventos sopram de uma s
vez; o cu desce e se une com o mar; acumulaes e imagens hiperblicas
aparecem. As aes so rpidas: juntar nuvens, franzir o mar, levantar
o tridente e instigar ventos. Todos os quatro ventos do mar Egeu
mar interior na bacia do Mediterneo uns contra os outros, em fria,
esto em cena. Nuvens e mar, sob a ao do deus, vo se unir contra
Odisseu. O efeito sublime (DAY, 2013). Ga-nham destaques o
enjambement e a rapidez de ritmo dos versos. A passagem sustenta-se
no real. R. Hampe (1952, p. 7 e 8 principalmente) indica que as
tormentas so bruscas e caticas no mediterrneo. Na traduo,
preocu-pamo-nos em preservar a personificao do mar; por isso, o
verbo / , agitar, perturbar, assustar, etc., foi traduzido
guardando o es-tranhamento da figura divina em ao por franzir.
Cresce a imagem, recorrente na iconografia, do deus que instiga
mar e ventos com o seu tridente. Ele escondeu a terra dos fecios,
ocultou com nuvens mar e cu. Tudo breu. Terra, mar e cu anoitecido
se tornam um s e escuro mundo. Merry e Riddell (1886, p. 236) e
Stanford (1987, p. 302) fazem notar que a linguagem e o ritmo do
verso sugerem ao repentina. Stanford reala o monosslabo no fim do
v. 294, que se fecha de for-ma abrupta: a noite desgua, desaba em
sbita queda.
Observe-se que a unio das foras da natureza contra o heri no
exclui, inclusive, a disputa delas entre si. Na primeira etapa,
nuvens e ondas agem juntas, nessa segunda os ventos se desentendem.
O Euros se choca com o Notos; o Zfiro, que designado como um vento
assaz violento (cf. Il. II, v. 147), com o Breas. O deus fez.
Odisseu tremeu. Ele prorrompe em lamen-tos. Desejaria ter morrido
na guerra, lastima, pois, no mar, no vai angariar faustoso funeral.
Seu vigor foi abalado no corpo e no nimo. Universo e heri esto em
caos. Os sentimentos misturados se manifestam num soli-lquio mais
longo que o de Poseido. O v. 299 se inicia com uma frmula
-
58 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
banal ( , em nossa traduo, que frouxo sou!) que soa como
reprimenda de si para si. O filho de Laertes, num abalo momen-tneo,
assume o medo, ; recompondo-se, volta sua capacidade de rever as
prprias aes e redireciona-se para o propsito final. Assim faz
retrospectiva das previses de Calipso. A profecia traz-lhe
alento.
A ateno do nufrago est no espao do vasto cu. O heri fica de tal
modo impressionado que atribui a ao formadora da tempestade a Zeus,
o mor. Ele erra; Poseido gerou a tormenta. A ignorncia do agente
por parte de Odisseu, para HWH (1990, p. 281), cria
verossimilhan-a; ns a vemos, entretanto, como ironia do poeta. O
tom irnico, o qual tentamos manter na traduo, reiterado por causa
da anttese na fala do heri: Agora me salvo para um podre fim.
Subindo aos cus, em tom exacerbado e crescente, vo os seus
quei-xumes. O passado invadiu a memria desse ex-combatente, e a
nostalgia de Troia e a vontade de morrer em glria o esmagam. Ele
lamuria-se por no poder conquistar para si as honras devidas aos
vares valorosos, as que Aqui-les recebeu; faanha ambiciosa: um
simples mortal ser tratado como Aquiles, o filho de Ttis... Alis,
nessa circunstncia, a Odisseu de nada lhe valeu ser bisneto do rei
dos ventos. O lamento o faz pattico. A exposio ps-morte, que traz
consequncias para o defunto (Il. XXIII, vv. 69-74; Od. XI, vv.
51-78) e configura humilhao (HWH, 1990, p. 281), o oprime. O fausto
dos fu-nerais homricos representa o prmio derradeiro; alm disso, em
tempo de guerra, a morte se converte em festim (VERMEULE, 1984, p.
183). Morrer era definitivo. Por alguns instantes nos esquecemos de
Poseido. E, de s-bito, no movimento csmico desordenado, o assalto
de uma onda enorme estraalha a barca e lana fora o heri. A onda
desce do alto descrevendo um ataque brusco o qual traduzimos por
escarrar, personificando a onda como uma excreo do mar-Poseido. A
barca rangiu. Podemos pensar que o texto sugere outro efeito de
suspense e perguntamos: Odisseu vai morrer ago-ra?. Afundado no
abismo, ele no podia erguer-se (v. 320), mas, resiliente, retorna.
J quase perdido, recebe o auxlio leal de Ino Leucoteia, nome que
traduzimos por Brancadei. Sua interveno uma surpresa, dado que, na
rotina do poema, espervamos que fosse outra a salvadora. Lambin
(2004, p. 99) constata a expectativa frustrada com a ausncia de
Atena nesses ver-sos. A deusa aparecer apenas no final da cena.
Brancadei surge, em smile, como um pssaro marinho, ; alguns
traduzem o vocbulo por mer-gulho, uma espcie do gnero Mergus hoje
ameaada; outros, por gaivo-
-
59PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
ta; ns o traduzimos por mergansa. O smile para os que conhecem o
objeto recuperado nos faz ver a forma quando surge a tal
marrequinha, mergansa. Em meio a bravo temporal, no mesmo verso,
como reala Lambin (2004, p. 100), um remanso (). nesse lugar
sossegado que ela boia. Deusa sendo, como Calipso, ela prev a
vitria de Odisseu no combate con-tra guas e ventos; depois disso,
ela ordena e recebe uma desobedincia em troca. A razo da rebeldia e
resistncia de Odisseu advm do fato de que a ordem causar dupla
perda: o abandono da barca e das ricas vestes oferecidas por
Calipso (LAMBIN, 2004, p. 101). Ademais, a recusa refora o carter
astucioso de Odisseu, que duvida da oferta e gratuidade da deusa. S
no v. 373 que ele reconhece que seu prprio corpo, com o auxlio da
estranha deusa, ser meio mais eficaz para a salvao. Nada lhe
restar; da divindade e de seu prprio corpo vir sua redeno. Ino
exortou: abandonar o navio sem olhar para trs, usar o xale ofertado
e abandon-lo tambm. A passagem sugere um tpos comum: h perigo no
apego e no ato de olhar para trs. O recado foi dado, a cena se
fecha com uma frmula recorrente nos poemas homricos, , que
normalmente compe o 1 hemistquio de versos de transio.
O heri pondera, em solilquio, e no se entrega confiadamente
or-dem de uma marrequinha. O trecho tem um tom emocional bem
marcado pela expresso , traduzida como aziago eu. O medo aumenta
(PERRIN, 1894, p. 37), teriam os deuses fabricado para ele mais um
dolo ( )? Com sua hesitao, a dramaticidade cresce. Enquanto
refle-te, em meio pausa deliberativa, de chofre, ele recebe outro
golpe fulmi-nante do mar. a forte e intimidadora grande onda, a
conhecida e temida pelos marujos veteranos. Merece realce a fuso
Poseido e onda de mar (v. 366-367): o deus se torna um enorme corpo
de gua e, atravs dessa fu-so, entra em ao novamente; brutal e
colossal, ele arremessa o heri para longe. Unem-se mar, vento e
deus em crescendo de foras, o pice do combate. A onda implacvel
descrita em detalhes: vem do alto, enorme, , (colossal, brutal e em
forma de arco, ou de concha). Na traduo, trocamos a ordem por
motivos de sonoridade. Assim, aps a descrio minuciosa, o poeta,
atravs de um smile, nos leva para a imagem de destruio provocada
por uma ventania no campo.
22
Finalmente, depois do baita susto, Odisseu resolve atender
marrequi-nha-deusa: desveste a tnica, monta sobre uma das ripas
despregadas da barca e, como se cavalgasse uma gua, nu, se pe a
nadar. Mas, de pronto,
-
60 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
entra em cena, outra vez, Poseido. Cresce o medo na gente.
Odisseu s, em pelo, sobre um pedao de madeira, que mais lhe advir?
Enfim nossa expectativa frustrada. Poseido, entediado, desdenha e
abandona a pobre presa ao sabor das ondas. O deus parte para Egas,
lugar de culto seu. Princi-pia a bonana com Palas Atena, que fecha
os caminhos dos ventos (exceto a rota do Breas), que devem se
acalmar () para dormir. Com o auxlio da padroeira, Odisseu, no
bafejo de Breas, depois de nadar por dois dias, chega a Esquria
(PERRIN, 1894, p. 39): a salvao no tarda.
Documentao escrita
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63PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
notas
1 Esta conferncia parte de pesquisa mais ampla, desenvolvida com
Matheus Tre-
vizam e Jlia Avellar, e que se dedica ao estudo do tpos da
tempestade no mundo antigo.2 Nossa traduo para: The sea is
everywhere in the Greek landscape.
3 Nossa traduo para: ... la mer semble, certes, tre le milieu
naturel des grecs.
4 Nossa traduo para: The sea is everywhere in the Greek
landscape. From rug-
ged mountaintops to low-lying plains, the Mediterranean is
rarely out of sight. For islanders and coastal villagers the sea is
more than a geographical reality, it is a way of life. This was
even truer for the Greeks of Antiquity, who were excellent
seafa-rers and sustained fisheries from the earliest times onward.
In fact, the Greeks relied on the sea not only for sustenance and
transportation, but also for news, warfare, commercial and
political exchange, as well as scientific development. The sea also
held a large place in the religious life of the Greeks. Seawater
was used for various kinds of purification, many rituals were held
on the seashore, and some festivals required throwing offerings to
the gods into the sea. Seafaring was also the occasion for numerous
rituals. In this way, the sea pervades many aspects of ancient
life.5 A. Ccero (1996, p. 25) canta a chegada de um emigrante pelo
mar: Buscando
o ocidente com o olhar/ que desde sempre foi lmpido e grvido./
Chegou terra ao fim de todo mar./ Sem planos certos foi e at sem
roupa, / sem cada dia o po e sem famlia,/ sem nem saber o que era o
Ocidente,/ chegou chorando assim como quem nasce, e o mundo alumbra
um segundo e assombra. Perguntamos: pode a arte estrangeira (mar
literrio) chegar ao Brasil como criana que nasce chorando esperando
uma traduo?6 Nossa traduo para: Grecia es una tierra marinera por
antonomasia y el mar un
elemento que habra de convertirse en el origen de mltiples y
profundas creencias. Em un marco ideolgico de tintes naturalistas,
el dominio martimo desempe un papel cardinal en la civilizacin
griega, ya que muchas de sus facetas, tanto hist-ricas como
legendarias, tienen al mar como teln de fondo. La complejidad
natural del pilago, cuyos fenmenos tienen la capacidad de
sobrecoger el espritu humano, su insondable grandeza, su
versatilidad, su misterio y su hermosura justifican que el mar
fuera concebido por los griegos como morada de los dioses, espacio
de mitos y creencias.7 Publicao on-line, disponvel em . Texto no
paginado. Acesso em 20/01/2017.8 Nossa traduo para: Rain, the
coldest and heaviest I have ever felt, pounded me
relentlessly, she said. Then the vicious wind picked me up and
immersed me in one of those craters made by an uprooted tree. I
clutched the limb . . . and held on
-
64 PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
for dear life, barely conscious of the weird noises all around
me the shrieks of fri-ghtened birds, the woeful cry of a drowning
calf, the dying moans of Mr. Deakles old white mare pinned beneath
the demolished barn.9 Traduo nossa de: dead chickens, bloated hogs,
writhing snakes.
10 Traduo nossa para: The hurricanes come and the hurricanes go,
requiring re-
silience of those who survive.11
Bibliografia breve: Parry (1971), Vivante (1982 e 1987, Clark
(2006), Foley (2007).12
Nossa traduo para: The Greeks began early to think about the
sea. Long before the Homeric poems took literary form, the great
spectacle of its shape and color, its drama of sound and motion,
must have found expression in speech. In its simplest form, this
means the Homeric epithet, which voices in a large descriptive way
the physical nature of its object. The sea is wide, deep,
boundless, purple, or wine-dark; it is loud-sounding and much-dash,
hoary or misty. This salt thing is unvintaged, if that be the
meaning of ; as the highway of ships, it is named the waterways.
Such description comes from impressions that have not been turned
over in any individual mind. To any pair of eyes the sea is large,
to any ears its breakers are surging, to any tongue they are salt.
Quite easily the descriptive terms became stereotyped in
conventional phrases which recurred naturally to the lips of
everybody, when once they had been used. 13
Tambm Juan Antonio Roche Crcel cataloga as ocorrncias de imagens
do mar. Ele se restringe ao teatro, tragdia, em Una aproximacin
sociolgica y cultural al Mar desde la Tragedia Griega.14
Dados disponveis em . Acesso em 22/01/2016.15
Nossa traduo para: (...) lOdysse nest pas un simple rcit de
navigation pour aller dun point un autre, mme si Homre donne la
mthode pour se reprer dans limmensit de la plaine marine. Ainsi,
lorsque Ulysse navigue: son il fixait les Pliades et le Bouvier qui
se couche si tard et lOurse quon appelle aussi le Chariot, la seule
des toiles qui jamais ne se plonge aux bains de locan. Il navigue
sur les routes du large en gardant toujours lOurse gauche de la
main. (V, vv. 270-278), si bien quavec cette orientation, Ulysse va
vers lest et revient vers Ithaque.16
Nossa traduo para: [] bien conscient que ce qui est le plus
important pour la navigation voile cest le vent, au point quil
consacre tout le chant X au pouvoir dole, matre du vent: Quand le
vent se dchane, le flot devient gant et dresse ses montagnes
gonfles.17
Nossa traduo para: El naufragio en la Antigedad, adems de su
sentido ca-tastrfico, conservado hasta hoy a pesar de los cambios
culturales (...) tambin tuvo
-
65PHONIX, Rio de Janeiro, 23-2: 41-65, 2017.
un sentido religioso-poltico completamente diferente. Dicho
sentido, que es el originario, conecta el naufragio con la
exclusividad de la proteccin divina y, en consecuencia, tambin de
la proteccin jurdica a los solos individuos de la propia sociedad
poltica: con meridiana claridad, los antiguos pensaban que si un
extran-jero (...) sufra una catstrofe martima (...) esto no poda
ser otra cosa que la ex-presin del castigo proveniente de la ira de
los dioses, de tal forma que el nufrago era un sujeto completamente
indigno del socorro de los hombres y del de la ley. (Publicao
on-line, texto no paginado).18
Entendemos o sublime como uma estratgia de criao que oferece
meios para se obter a sensao de imponncia, temor e maravilhamento
diante de fenmenos naturais grandiosos. 19
Homero ser citado a partir do texto oferecido gratuitamente pelo
Projeto Per-seus: Odyssey,
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0135;
(acesso de 10/10/2015 a 10/12/2016); Iliade,
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0133;
(acesso no perodo de10/10/2015 a 10/12/2016). Edio escolhida por
estar em domnio pblico.20
A partir de agora citados como HWH.21
Esta frmula ocorre na Odisseia, por exemplo, em IV (v. 169 e v.
333), IX (v. 507), XI (v. 436), XIII (vv. 172 e 383) e XVII (v.
124).22
Stanford comenta que este canto V seria o trecho do poema em que
h mais smi-les (vv. 328, 394, 432, 488). Todos, exceto um, tomados
da vida rural que contrasta com as vagas martimas (STANFORD, 1987,
p. 304).