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TEMAS SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UM DEBATE CRÍTICO
Organizadores:Jucélia Fátima Seidler Jeremias
Renata Squizato IziqueRiva Sobrado de Freitas
Thiago Zelim
AUTORES:Alexandre Arnalde Salim
Andressa de Freitas DamolinAndrey Luiz Paterno
Claudiomar Luiz MachadoEdson Antônio Baptista Nunes
Fernanda TofoloJulivan Augusto Negrini
Renato de Carvalho AyresRenata Squizato Izique
Thiago ZelinRenato de Rezende Gomes
Pedro José de Alcântara MendonçaJucélia Fátima Seidler
Jeremias
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TEMAS SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UM DEBATE CRÍTICO
Organizadores:Jucélia Fátima Seidler Jeremias
Renata Squizato IziqueRiva Sobrado de Freitas
Thiago Zelim
AUTORES:Alexandre Arnalde Salim
Andressa de Freitas DamolinAndrey Luiz Paterno
Claudiomar Luiz MachadoEdson Antônio Baptista Nunes
Fernanda TofoloJulivan Augusto Negrini
Renato de Carvalho AyresRenata Squizato Izique
Thiago ZelinRenato de Rezende Gomes
Pedro José de Alcântara MendonçaJucélia Fátima Seidler
Jeremias
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
T278 Temas sobre a constitucionalização dos
direitosfundamentais: um debate crítico / organizadores:Jucélia
Fátima Seidler Jeremias ... [et al.]. – Joaçaba:Editora Unoesc,
2017. 206 p. ; il. ; 30 cm.
ISBN 978-85-8422-152-3
1. Direitos fundamentais. 2. Constitucionalidade I.Jeremais,
Jucélia Fátima Seidler, (org.)
Doris 341.27
A revisão linguística é de responsabilidade dos autores.
Universidade do Oeste de Santa Catarina – Unoesc
ReitorAristides Cimadon
Vice-reitores de CampiCampus de Chapecó
Ricardo Antonio De MarcoCampus de São Miguel do Oeste
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Pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e ExtensãoFábio
Lazzarotti
Conselho Editorial
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Andréa Jaqueline Prates RibeiroJovani Antônio Steffani
Lisandra Antunes de OliveiraMarilda Pasqual Schneider
Claudio Luiz OrçoIeda Margarete OroSilvio Santos Junior
Carlos Luiz StrapazzonWilson Antônio Steinmetz
Maria Rita Chaves NogueiraMarconi JanuárioMarcieli Maccari
Daniele Cristine Beuron
Comissão Científica
Riva Sobrado de Freitas (Unoesc, Brasil)Guido Smorto (Palermo,
Italia)Simone Pajno (Palermo, Italia)
Miguel Ángel Aparicio Pérez (Barcelona, UAB) Rosalice Fidalgo
Pinheiro (Unibrasil, Brasil)
Daury Cezar Fabriz (FDV, Brasil)Ingo Wolfgang Sarlet
(PUC-RS)
Pedro Grandez (PUC-Lima, Peru)
Revisão metodológica: Bianca Regina PaganiniProjeto Gráfico:
Simone Dal Moro
Capa: Daniely A. Terao Guedes
Editora UnoescCoordenação
Tiago de Matia
© 2018 Editora UnoescDireitos desta edição reservados à Editora
Unoesc
É proibida a reprodução desta obra, de toda ou em parte, sob
quaisquer formas ou por quaisquer meios, sem a permissão expressa
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
......................................................................................
5
DO JUSNATURALISMO AO JUSCONSTITUCIONALISMO: REFLEXÕES SOBRE OS
PERCURSOS DA MODERNIDADE JURÍDICA NA TEORIA GARANTISTA DE FERRAJOLI
...... 7Alexandre Arnalde Salim
A CONSTITUIÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
.................................................................................17Andressa
de Freitas Damolin
AS INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS ECONÔMICAS E INTERNACIONAIS NA
ADMINSTRAÇÃO TRIBUTÁRIA BRASILEIRA
......................................................31Andrey Luiz
Paterno
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE: A NECESSIDADE DE
EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL FRENTE
AO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
.............................................................39Claudiomar
Luiz Machado
A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS
POR INDIGENAS NO BRASIL FRENTE À NECESSIDADE PÚBLICA DE GERAÇÃO DE
ENERGIA
..............................................................................................49Edson
Antônio Baptista Nunes
AS INTERFERÊNCIAS E INFLUÊNCIAS DAS MANIPULAÇÕES GENÉTICAS NO
DIREITO FUNDAMENTAL A INTIMIDADE
....................................................................69Fernanda
Tofolo
A VIGILÂNCIA NA CONTEMPORANEIDADE E SEUS REFLEXOS EM RELAÇÃO AO
DIREITO À INTIMIDADE
.............................................................................87Julivan
Augusto Negrini
A IGUALDADE NA PERSPECTIVA DO ESTADO SOCIAL : DA INSUFICIÊNCIA
DO PRINCÍPIO FORMAL DA IGUALDADE PERANTE A LEI
..........................................97Renato de Carvalho
Ayres
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SEUS LIMITES: ASPECTOS DA HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA NO CASO SIEGFRIED ELLWANGER
............... 109Renata Squizato Izique
INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE: CRÍTICA
ÀS AÇÕES AFIRMATIVAS PARA ACESSO ÀS UNIVERSIDADES EXCLUSIVAMENTE
POR CRITÉRIOS RACIAIS NO BRASIL
.................................................................
135Thiago Zelin
DIREITOS INDÍGENAS E A CONCEPÇÃO MULTICULTURAL DOS DIREITOS
HUMANOS ... 147Renato de Rezende Gomes
REFLEXÕES SOBRE A CRISE FINANCEIRA DE 2008 E O ENFRAQUECIMENTO
DA FIGURA DO ESTADO
..............................................................................
165Pedro José de Alcântara Mendonça
-
A LUTA DAS MULHERES PELO DIREITO À CONSTRUÇÃO DA SUA IDENTIDADE
E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO DAS NÃO TRADICIONAIS COMPOSIÇÕES
FAMILIARES
........................................................................................
177Jucélia Fátima Seidler Jeremias
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5
APRESENTAÇÃO
O Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Direito da
Universidade do Oeste de Santa Catarina vem publicar nesse E-book
os resultados das investigações desenvolvidas no ano de 2016 pelos
alunos de Mestrado, do Curso de Direito, na disciplina:
Constitucionalização dos Direitos Fundamentais Civis, sob a
orientação da professora Doutora Riva Sobrado de Freitas.
Estão presentes nesse E-book, os resultados das pesquisas
efetuadas pelos alunos, duran-te o segundo semestre de 2016,
período em que essa disciplina foi ministrada, abordando temá-ticas
distintas, sob a ótica do fenômeno da Constitucionalização dos
Direitos Fundamentais Civis, refletindo sobre as transformações
promovidas pela irradiação dos valores constitucionais a todo o
ordenamento jurídico, procurando pontuar os impactos dessas teses,
na eficácia material dos respectivos Direitos Fundamentais Civis
abordados, verificando as contribuições positivas, no
apri-moramento do seu conteúdo, levando em consideração as demandas
sociais contemporâneas , mas também identificando algumas
dificuldades a serem enfrentadas, tais como: segurança jurídica,
decisões particularistas e o desafio, quase insuperável, na
construção de teses de validade moral universal, numa sociedade
pluralista.
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7
Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
DO JUSNATURALISMO AO JUSCONSTITUCIONALISMO: REFLEXÕES SOBRE OS
PERCURSOS DA MODERNIDADE JURÍDICA NA TEORIA GARANTISTA DE
FERRAJOLI
Alexandre Arnalde Salim1
O garantismo é a outra face do constitucionalismo(Luigi
Ferrajoli)
1 INTRODUÇÃO
Muitos autores iluministas foram fortemente influenciados pelo
jusnaturalismo do sécu-lo XVII, o qual propunha que a sociedade
humana deveria ser constituída sobre bases naturais e racionais.
Essa doutrina jusnaturalista dos direitos serviu de referencial à
Revolução Francesa e permanece como fundamental à compreensão do
que se entende hoje por Estado moderno. A Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão defende a liberdade, a igualdade e a
proprieda-de como direitos para todos, afirmando, no seu preâmbulo,
que “a ignorância, o esquecimento ou desprezo pelos direitos do
homem são as únicas das desgraças públicas e das corrupções dos
Governos”, e decretando “os direitos naturais, inalienáveis e
sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente
presente a todos os membros do corpo social, lhes recorde sem
cessar seus direitos e seus deveres.”
Os “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”,
consagrados no preâmbulo da Declaração de 1789, vêm identificados
em Locke no individualismo e na propriedade privada, em Rosseau no
contratualismo e nos direitos civis como extensão dos direitos
naturais e em Hobbes na sociedade civil como prevenção ao
extermínio de todos contra todos.
É justamente com Hobbes2 que o modelo de estado de direito tem a
sua inspiração inicial. No debate metateórico entre um filósofo e
um jurista, o autor traz a frase emblemática que acaba sendo o
reconhecimento inicial do garantismo jurídico: “uma lei é a ordem
daqueles que têm o poder soberano.” (HOBBES, 2001, p. 36). A
condição hobbesiana refere, portanto, que é a autori-dade, e não a
verdade, a detentora do poder de fazer as leis (auctoritas, non
veritas facit legem), apresentando-se como uma espécie de garantia
legal positiva (FERRAJOLI, 2001, p. 21; FERRA-JOLI, 2008, p. 2012),
em oposição à ideia de um direito anterior e independente do
estado. Isso porque em Hobbes a lei civil não difere da lei natural
(aquela tem por finalidade conferir eficácia a esta),
restringindo-se, quando necessário, à manutenção da paz (HOBBES,
2017, p. 1839-1845; MARRAMAO; 2000, p. 12; BOBBIO, 1987).
Essa “garantia legal positiva” pode ser considerada o nascimento
do sistema garantista, a partir da compreensão da dupla função
legitimadora do direito e do estado (BOBBIO, 2007, p. 20),
representada pela separação entre direito e moral. Como refere
Gianformaggio (2008, p. 17), um dos princípios fundamentais
sustentado e tenazmente defendido pelos representantes do
1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direitos
Fundamentais na Universidade do Oeste de Santa Catarina;
[email protected] Na sua célebre obra Leviatã, Thomas
Hobbes discorre sobre a nefasta natureza humana e a necessidade de
líderes e sociedades. Não obstante alguns homens sejam mais fortes
e inteligentes que outros, o estado de natureza vem carac-terizado
por um ambiente onde não há um governante, e sim pelo egoísmo que
torna o homem lobo de outro homem (homo homini lupus), culminando
com uma constante guerra de todos contra todos (bellum omnium
contra omnes). Aqui nasce a ideia de contrato social (HOBBES,
1911).
mailto:[email protected]
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8
Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato
Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim
juspositivismo analítico italiano dos anos 60 e 70 é o princípio
da divisão entre ser e dever ser, considerado de relevância tanto
lógica como ética e, junto a este, como uma sucessão coerente, o da
separação entre direito e moral. Este é também o princípio a que
Ferrajoli talvez recorra com maior frequência em toda a sua obra
Direito e Razão, para conferir fundamento à sua base e às suas
teses em particular, e que declara considerar um pilar fundamental
de seu trabalho.
Em Ferrajoli (2008, p. 478), o positivismo jurídico funda-se na
separação entre direito e moral e entre direito e natureza. Segundo
o autor, o direito positivo “descrito” em suas teorias unicamente
como direito existente não deriva da moral e nem pode ser
encontrado na natureza, mas, ao contrário, é “posto” por uma
autoridade e, portanto, está caracterizado por sua índole
artificial e convencional. Dizer que o direito moderno é “positivo”
significa não somente que é “feito” ou “posto” pelos homens, mas
também que é como os homens o querem e, antes, o pen-sam; e que,
assim, o objeto da sua teoria – diversamente do objeto de outras
teses empíricas – não é natural, mas artificial, produzido, por sua
vez, por (outras) teorias.
Mas é o constitucionalismo que traz a fundamental mudança de
paradigma da democra-cia, introduzindo uma dimensão substancial com
limites e vínculos de conteúdo impostos aos po-deres políticos
pelos princípios e direitos constitucionalmente estabelecidos.
2 DO JUSNATURALISMO AO JUSPOSITIVISMO: PRIMEIRO MODELO JURÍDICO
DO PARADIGMA GARANTISTA
Hans Kelsen, filósofo do direito e reconhecidamente um dos
maiores representantes do positivismo jurídico, situa Hobbes na
condição de partidário do jusnaturalismo (KELSEN, 2001, p.
137-175), posição doutrinária considerada antagônica à sua. No
entanto, ao tratar do Estado, Kelsen vale-se de vários argumentos
expostos no Leviatã,3 o que leva à indagação: seria Hobbes
realmente um jusnaturalista?
A inclusão de Hobbes entre os jusnaturalistas ou entre os
juspositivistas é algo recente na filosofia do direito. Para Murphy
(1995, p. 849), “a posição de Hobbes está muito mais alinhada com
uma compreensão jusnaturalista de lei civil do que com uma
concepção do positivismo jurídi-co.” Bobbio (1991, p. 4), na
introdução ao seu livro Thomas Hobbes, refere:
entre jusnaturalismo e positivismo jurídico, meu Hobbes situa-se
mais do lado do segundo do que do primeiro [...] A multiplicidade
das interpretações – nas quais decerto não pretendemos desconhecer
a contribuição dada a um melhor conhe-cimento do pensamento
hobbesiano – terminou frequentemente por obscurecer o núcleo forte
desse pensamento, fazendo esquecer que, se há um autor que
perse-guiu por toda a vida uma ideia, esse autor foi Hobbes, e que,
se há uma obra na qual o tema dominante é exposto com insistência,
quase obstinação, essa é a obra política do autor do Leviatã, livro
que conclui a trilogia dos escritos políticos. Essa ideia é a
seguinte: o único caminho que tem o homem para sair da anarquia
na-tural, que depende de sua natureza, e para estabelecer a paz,
prescrita pela pri-meira lei natural, é a instituição artificial de
um poder comum, ou seja, do Estado.
3 “Se o Estado é uma comunidade, é uma comunidade jurídica. Na
condição de comunidade, ele é a ordem jurídica da qual dizemos, de
maneira não perfeitamente correta, que constitui a comunidade. Quem
poderia negar que o Estado é uma ordem social? E, se essa afirmação
for aceita, que outra ordem, além da ordem jurídica, poderia ser o
Estado se – expresso na linguagem usual – é essencial ao Estado
ter, estabelecer ou aplicar uma ordem jurídica?” (KELSEN, 2001, p.
290).
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9
Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
A celeuma entre as duas correntes – direito natural e direito
positivo – não se limita a Hobbes, sendo também frequente no campo
da filosofia política quanto à origem e ao fundamento das leis e do
Estado. Enquanto o jusnaturalismo considera a natureza como a fonte
transcendente de um Estado ideal ou, mais especificamente, de um
direito ideal e necessariamente justo,4 o juspositivismo considera
que os homens, independentemente da sua natureza, criam as normas
para reger uma determinada sociedade, numa determinada época,
sempre visando a um também determinado objetivo; assim, uma
situação desejada apenas seria alcançada a posteriori e,
jus-tamente, com a criação dessas regras. O jusnaturalismo era a
teoria do direito pré-moderno; o juspositivismo, por sua vez, fez
nascer o estado legislativo de direito.
No direito pré-moderno, de formação jurisprudencial e
doutrinária, e não legislativa, não havia uma sistema unitário e
formalizado de fontes positivas, mas uma pluralidade de fontes e
orde-namentos vinculados a instituições diversas e concorrentes –
como o Império, a Igreja, os principados e as corporações –,
nenhuma delas possuindo o monopólio da produção jurídica
(FERRAJOLI, 2007, p. 30). O direito, na verdade, vinha fundamentado
em um conjunto de leis universais e necessárias deduzidas
diretamente de uma entidade divina ou da razão natural humana.5 Por
sua vez, o estado de direito moderno nasce na forma do estado
legislativo de direito, com a afirmação do princípio da legalidade
como critério exclusivo de identificação do direito válido e, antes
ainda, do direito existente, independentemente da sua valoração
como justo. Graças a este princípio e às codifica-ções que o
concretizaram, uma norma jurídica é válida não porque considerada
justa, mas somente porque “posta” por uma autoridade dotada de
competência normativa (FERRAJOLI, 2007, p. 30).
Como típica expressão da modernidade, o juspositivismo vem
compreendido, em Bobbio (1999, p. 131-134), nas seguintes dimensões
complementares: como um certo modo de aborda-gem do direito; como
uma certa teoria do direito; e como uma certa ideologia do direito.
Para a primeira hipótese (modo de abordagem do direito), o direito
é fato e não valor (teoria formalista da validade do direito), ou
seja, o jurista deve estudar o direito do mesmo modo que o
cientista estuda a realidade natural, abstendo-se de juízos
axiológicos. A segunda abordagem (positivismo jurídico enquanto
teoria) dá ensejo a seis concepções fundamentais: teoria coativa do
direito (a norma vale por meio da força); teoria legislativa do
direito (a lei figura como fonte primacial do direito); teoria
imperativa do direito (a norma é considerada um comando); teoria da
coerência do ordenamento jurídico (impossibilidade de coexistência
simultânea de duas normas antinômicas); teoria da completude do
ordenamento jurídico (o juiz pode sempre extrair das normas
explícitas ou implícitas uma regra para resolver qualquer caso
concreto, excluindo a existência de lacunas no direito); e teoria
da interpretação mecanicista do direito (a atividade do jurista faz
prevalecer o elemento declarativo sobre o produtivo ou criativo do
direito). Na terceira dimensão, o positi-
4 “A lei apareceu, primeiro, aos olhos da espécie humana
recém-abertos para o problema, como um ditame divino, uma decisão
dos deuses, e, como vontade divina, foi crida e obedecida, sem
maiores indagações [...] Foi bem mais tarde que essa maneira de ver
adquiriu foros de doutrina, desenvolvendo-se no sentido de ser a
razão ou a vontade de Deus a fonte originária do Direito, entendida
como direito natural, ao qual devem se conformar os preceitos da
lei positiva.” (REALE, 2005, p. 371-372).5 Segundo Miguel Reale, a
concepção sobre o Direito Natural “ora se mantém na sua feição
originária – ligada à filosofia aristotélica e estóica, aos
jurisconsultos romanos e aos mestres da Igreja, desde Santo
Agostinho a Santo Tomás –, ora se converte em Direito Racional,
expressão imediata da razão humana, ora se apresenta, como em
tempos mais recentes, sob um enfoque crítico transcendental.”
(REALE, 2005, p. 373).
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10
Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato
Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim
vismo apresenta-se como uma ideologia do direito que impõe a
obediência à lei, nos moldes de um positivismo ético.
Com a passagem do estado pré-moderno para o estado legislativo
de direito, o sistema jurídico passou a ser compreendido como
fechado, axiomatizado e hierarquizado de normas, que exigia
unidade, completude e coerência do direito e negava a existência de
lacunas e antinomias jurídicas.
Essa passagem, que com o princípio da legalidade consolida o
paradigma protogarantista, manifesta-se em quatro mudanças, todas
conexas à fundação puramente juspositivista do direito: na natureza
e na estrutura do direito; na natureza e no papel da jurisdição; na
natureza e no esta-tuto epistemológico da ciência jurídica; e na
natureza e no papel da filosofia política (FERRAJOLI, 2007, p.
30-32). A primeira diz respeito às condições de existência e
validade das normas jurídicas e vem caracterizada pelo princípio
convencionalista do positivismo jurídico expresso por Hobbes:
auctoritas, non veritas facit legem (HOBBES, 2017, p. 448) (é
direito não aquilo que é justo ou razoável, segundo a velha
concepção jusnaturalista, mas o que vem estabelecido como tal por
lei). A segunda mudança refere-se à jurisdição, que deixa de ser
mera produção jurisprudencial do direito, ficando sujeita à lei e
ao princípio da legalidade como únicas fontes de legitimação (o
vo-luntarismo legislativo vem substituído pelo cognitivismo
jurisdicional representado pelo brocardo veritas, non auctoritas
facit iudicium) (FERRAJOLI, 2007, p. 9-149). A terceira mudança
vincula-se à ciência jurídica, que deixa de ser uma ciência
imediatamente normativa, para tornar-se uma dis-ciplina
tendencialmente cognitiva, explicativa de um objeto – o direito
positivo –, dela autônomo e separado.6 A quarta mudança vem
caracterizada pela separação entre ciência jurídica e filosofia
política, colocando fim a qualquer reflexão filosófica sobre
fundamentos axiológicos e racionais do direito e promovendo, em
nome da autonomia e da cientificidade das disciplinas jurídicas, o
seu isolamento e a sua autorreferencialidade epistemológica
(FERRAJOLI, 2007, p. 32).
O duplo critério de fundamentação do direito, tanto de validade
interna quanto de justiça externa, destacado sob o plano lógico,
mas vinculado sob o plano histórico, significa reconhecer o avanço
da tradição do positivismo jurídico (BOBBIO, 1995, p. 38 e ss.),
que emerge em decorrência de lutas políticas que culminaram em um
lento processo de secularização pelo qual passaram as instituições
de poder desde o século XVII até a metade do século XVIII
(FERRAJOLI, 2007, p. 199).
A separação entre direito e moral assume, de um lado, uma
justificação interna, dando ensejo à concepção juspositivista do
direito e estabelecendo a tese garantista teórica de que os juízos
jurídicos possuem plena autonomia em relação a qualquer outro
critério que não aquele estabelecido exclusivamente pela lei; de
outro, a dicotomia entre validade e justiça assume uma
fundamentação externa, colocando em evidência a reivindicação
política do princípio da legalida-de e estabelecendo a tese
garantista axiológica voltada à igualdade e à liberdade dos
cidadãos, na qual tanto o direito quanto o estado têm finalidades e
limites determinados. Isso significa que a legitimação interna e a
justificação externa refletiram o processo de laicização do direito
e da cultura jurídica, criando os requisitos teórico e axiológico
do modelo garantista de legalidade e
6 Para Ferraz Júnior, “a Ciência do Direito, nos quadros do
jusnaturalismo, se de um lado quebra o elo entre jurispru-dência e
procedimento dogmático fundado na autoridade dos textos romanos,
não rompe, de outro, com o caráter dog-mático, que tentou
aperfeiçoar, ao dar-lhe a qualidade de sistema, que se constrói a
partir de premissas cuja validade repousa na sua generalidade
racional.” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 26).
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11
Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
afastando tanto a possibilidade futura de uma autolegitimação
ético-política quanto um retorno a uma heterolegitimação jurídica
do direito (FERRAJOLI, 2007, p. 204-210).
Esta primeira ruptura vem identificada como paradigma
“protogarantista”, ou seja, a passagem do estado pré-moderno
(direito pré-moderno) ao estado legislativo de direito (princípio
da legalidade), embora determinante do primeiro modelo garantista
de direito, representa um “garantismo ainda fraco”. Não há dúvida
de que o positivismo jurídico denota enorme avanço: com base nele o
princípio da legalidade é apresentado como direito humano
fundamental, seja em sentido amplo (norma dirigida aos juízes, aos
quais prescreve a aplicação da lei tal qual for-mulada), seja em
sentido estrito (norma dirigida ao legislador, a quem prescreve a
taxatividade e a precisão empírica das formulações legais). Mas é
igualmente verdade que o estado legislativo de direito, por outro
lado, permite a introdução de modelos penais absolutistas, em que o
sobe-rano, baseado nesse mesmo preceito, legisla com total ausência
de limites ao poder normativo, despreocupando-se com toda e
qualquer garantia penal e processual.
É exatamente por isso que o “paradigma garantista forte”
complementará o primeiro mo-delo e virá representado pela segunda
grande passagem: do estado legislativo de direito ao estado
constitucional de direito.
3 JUSCONSTITUCIONALISMO: SEGUNDO MODELO JURÍDICO DO PARADIGMA
GARANTISTA
O descrédito das teorias do contrato social e da própria
doutrina do direito natural come-çou a ocorrer com a Revolução
Francesa, atingindo o seu ápice com a introdução do positivismo
jurídico. Até então, o pensamento jusnaturalista, embasado
especialmente em dois pilares fun-damentais – Deus e natureza7 –,
reinava quase absoluto. O argumento divino, dominante durante toda
a Idade Média, em especial em Santo Tomás de Aquino,8 começou a
perder força com as doutrinas iluministas: os que sustentavam que
“fora da Igreja não havia salvação” deveriam, para Rousseau (2008,
p. 19), “ser expelidos do Estado”. Aqui surge a primeira grande
garantia, já que o Estado laico se apresenta como uma inegável
conquista histórica. Argumentos no sentido de que “a lei
fundamental da natureza é a preservação dos homens, não havendo lei
humana em contrário que seja válida ou aceitável” (LOCKE, 2006, p.
100), ou seja, de que as pessoas, em padrões de normalidade, buscam
a autoconservação, ou de que “a sociedade, instituída por meio da
primeira apropriação do solo, foi a semente da discórdia entre os
homens” (ROUSSEAU, 2017), vêm recha-çados em pensadores
contemporâneos como Freud9 e Sartre.10
7 Kelsen afirma que “A vontade de Deus é – na doutrina do
Direito natural – idêntica à natureza, na medida em que a natureza
é concebida como tendo sido criada por Deus. Consequentemente, as
leis que regulam a natureza têm, de acordo com essa doutrina, o
mesmo caráter das regras jurídicas emitidas por um legislador: elas
são comandos dirigidos à natureza; e a natureza obedece a esses
comandos assim como o homem obedece às leis emitidas por um
legislador.” (KELSEN, 1998, p. 13).8 “Que o direito divino se chama
deste modo porque é promulgado pela divindade. E, efetivamente,
este, em parte, é das coisas que são naturalmente justas, mas, no
entanto, sua justiça não é manifesta aos homens; e, em parte, é das
coisas que se fazem justas por intuição divina. De onde se deduz
que também o direito divino pode dividir-se em dois, do mesmo modo
que o direito humano; pois, na lei divina, existem algumas coisas
mandadas por serem boas e outras proibidas por serem más; ao
contrário, existem certas coisas boas por serem mandadas e outras
más por serem proibi-das.” (AQUINO, 1995, p. 472).9 Para Freud
(1978, p. 168), “a agressividade não foi criada pela
propriedade.”10 Sartre afirma que “não há natureza humana, visto
que não há Deus para concebê-la; [...] o homem não é mais que o que
ele faz; [...] a existência precede a essência.” (SARTRE, 1978, p.
5-6).
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12
Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato
Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim
A passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea veio
marcada, como referido acima, pelo processo geral de codificação. O
direito, com o juspositivismo, ganhou a sua plena autonomia: era o
homem, e não mais as doutrinas morais e teológicas, que fazia as
suas próprias leis. Ocorre que a lei passou a ser considerada o
direito em si, em total desatenção ao seu funda-mento, deixando de
ser questionada para ser apenas aplicada. Grau refere que “o
positivismo não tem como tratar da questão da legitimidade do
direito. Por isso que, no seu quadro, a legalidade ocupa o lugar da
legitimidade.” (GRAU, 2008, p. 31). Como se vê é o legislador – e
não mais Deus, ou a natureza, ou a justiça, ou a razão – o ser
onipotente do qual emanam todas as leis. É válida a crítica
proposta por Lyra Filho (2006, p. 30):
Quando o positivista fala em Direito, refere-se a este último –
e único – sistema de normas, para ele, válidas, como se ao
pensamento e prática jurídicos interessasse apenas o que certos
órgãos do poder social (a classe de grupos dominantes ou, por elas,
o Estado) impõem e rotulam como Direito. É claro que vai nisto uma
confu-são, pois tal posicionamento equivale a deduzir todo o
Direito de certas normas, que supostamente o exprimem, como quem
dissesse que açúcar “é” aquilo que achamos numa lata com a etiqueta
açúcar, ainda que um gaiato lá tenha colocado pó-de-arroz ou um
perverso tenha enchido o recipiente com arsênico.
Mais: “Quais personagens históricos podem ser considerados
legisladores? Como devemos agir para descobrir suas intenções?
Quando essas intenções de algum modo diferem umas das ou-tras, como
devem ser combinadas na intenção institucional compósita?”11
Não há dúvida de que o princípio da onipotência do legislador
tem uma vertente liberal, já que garante o cidadão contra as
arbitrariedades do Estado. No entanto, por outro lado, “eli-minando
os poderes intermediários” (BOBBIO, 1995, p. 38), o positivismo
jurídico assume a sua vertente absolutista, atribuindo um poder
pleno, exclusivo e ilimitado ao legislador. Aqui surge a segunda
grande garantia, pois é justamente com a introdução das
constituições rígidas na segunda metade do século passado que o
paradigma do direito muda novamente, ocasião em que o
juspo-sitivismo dá lugar ao jusconstitucionalismo.
Nesta segunda mudança, o estado legislativo de direito, que era
caracterizado pelo prin-cípio da legalidade, vem substituído pelo
estado constitucional de direito, caracterizado pela rígida
subordinação da própria lei a uma lei superior: a constituição,
hierarquicamente supraorde-nada à legislação ordinária. O
jusconstitucionalismo traz, conforme a doutrina de Ferrajoli,
quatro novas alterações do modelo anterior (direito positivo), sob
os mesmos planos vistos quando da primeira passagem (alteração do
direito jurisprudencial pré-moderno) (FERRAJOLI, 2007, p. 33).
A primeira mudança diz respeito à teoria da validade. No estado
constitucional de direito, dotado de uma constituição rígida, as
leis são submetidas não apenas a normas formais sobre a sua
produção, mas também a normas substanciais sobre o seu significado.
Assim, para Ferrajoli, são inválidas as leis cujos significados
estejam em contraste com as normas constitucionais (FERRAJO-LI,
2007, p. 33-34). Em segundo lugar, muda a própria forma de
exercício da jurisdição, não mais uma sujeição acrítica e
incondicionada à lei, qualquer que fosse o seu conteúdo, mas uma
sujeição à própria constituição e, portanto, à lei somente se
válida constitucionalmente. O rompimento com o antigo paradigma
determina, ademais, a própria expansão da jurisdição
constitucional, com a criação de tribunais constitucionais.
Altera-se, em terceiro lugar, o paradigma epistemológico
11 Dworking (1999, p. 380) tenta buscar a exata intenção do
legislador, concluindo pela sua total impossibilidade.
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13
Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
da ciência jurídica, que deixa de ser meramente explicativa e
avalorativa, passando a ser crítica e projetual. A lei e o
“princípio de legalidade” deslocam-se para a periferia do sistema
jurídico, enquanto que o “princípio de constitucionalidade” vem
para o centro desse sistema. Pela quarta alteração, o
constitucionalismo rígido, positivando o dever ser do direito em
normas constitucio-nais substanciais, muda o estatuto da doutrina
dos limites aos poderes do Estado, formulando-a não mais como
filosofia política, mas sim como teoria jurídica do estado de
direito da democracia (FERRAJOLI, 2007, p. 35). As novas
constituições, como se vê, passam a ser consideradas verdadei-ras
normas jurídicas, dotadas de supremacia, com força vinculante e de
observação obrigatória.
No momento em que princípios de indubitável carga axiológica –
como dignidade da pes-soa humana, igualdade, solidariedade social,
estado democrático de direito e humanidade – têm reconhecida a sua
força normativa, o jusconstitucionalismo12 retoma o debate moral.
Autores não positivistas, como Alexy (1993), Dworkin (2006) e
Atienza (2008, p. 144-164), sustentam a reapro-ximação entre
direito e moral, aderindo à tese de Radbruch (1979, p. 414-418) de
que normas terrivelmente injustas não têm validade jurídica,
independentemente do que digam as fontes autorizadas do
ordenamento. Por outro lado, doutrinadores positivistas, como
Ferrajoli (2000), Guastini (2003) e Sanchís (2003), reafirmam,
mesmo em face do jusconstitucionalismo, a separa-ção entre direito
e moral, embora reconheçam que haverá inegável aproximação sempre
que o poder constituinte positivar valores morais, conferindo-lhes
força normativa.
Sobre a celeuma, Ferrajoli (2017a) defende a divisão do
constitucionalismo jurídico em constitucionalismo jusnaturalista e
constitucionalismo juspositivista.
Do primeiro surge um constitucionalismo argumentativo ou
principialista (SANCHÍS, 1997), identificado pela configuração dos
direitos fundamentais como valores ou princípios morais
estruturalmente diversos das regras, porque dotados de uma
normatividade mais fraca, confiada não mais à subsunção, mas à
ponderação legislativa e judicial. São características do
constitucio-nalismo argumentativo ou principialista: o ataque ao
positivismo jurídico e à tese da separação entre direito e moral; o
papel central associado à argumentação a partir da tese de que os
direitos constitucionalmente estabelecidos não são regras, mas
princípios, entre eles em virtual conflito, que são objeto de
ponderação, e não de subsunção; e a consequente concepção do
direito como uma prática jurídica, confiada, sobretudo, à atividade
dos juízes.
Do constitucionalismo juspositivista, ao contrário, surge um
constitucionalismo normativo ou garantista, caracterizado por uma
normatividade forte, de tipo regulativo, isto é, pela tese de que a
maior parte (ainda que não de todos) dos princípios
constitucionais, em especial os direitos fundamentais, comporta-se
como regras, uma vez que implica a existência ou impõe a introdução
de regras consistentes em proibições de lesão ou obrigações de
prestação que são as suas respec-tivas garantias. Pode-se
distinguir o constitucionalismo normativo ou garantista em três
significa-dos: como modelo ou tipo de sistema jurídico, como teoria
do direito e como filosofia política.13 Como modelo de direito, o
constitucionalismo garantista se caracteriza, em relação ao modelo
paleo-juspositivista, pela positivação também dos princípios que
devem subjazer toda a produção
12 Fala-se atualmente em um “neoconstitucionalismo”, termo
cunhado, entre outros, por: POZZOLO, Suzana. Neocons-titucionalismo
y especificidad de la interpretación constitucional. (DOXA, 1998,
p. 355-370; COMANDUCCI, 1999, p. 123-124; CARBONELL, 2007).13 Os
três significados de “constitucionalismo” correspondem aos três
significados de “garantismo” apresentados por Ferrajoli (2008, p.
891).
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Organizadores: Jucélia Fátima Seidler Jeremias, Renata Squizato
Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim
normativa. Como teoria do direito, apresenta-se como uma teoria
que tematiza a divergência entre o dever ser (constitucional) e o
ser (legislativo) do direito, caracterizando-se pela distinção e
virtual divergência entre validade e vigência, uma vez que admite a
existência de normas vigen-tes porque em conformidade com as normas
procedimentais sobre a sua formação, mas, todavia, inválidas,
porque incompatíveis com as normas substanciais sobre a sua
produção. Por fim, como filosofia e como teoria política, o
constitucionalismo positivista ou garantista consiste em uma teoria
da democracia, elaborada não apenas como uma genérica e abstrata
teoria do bom gover-no democrático, mas sim como uma teoria da
democracia substancial, além de formal, ancorada empiricamente no
paradigma de direito ora referido (FERRAJOLI, 2017a).
Em nenhum desses três significados Ferrajoli admite a conexão
entre direito e moral, já que a sua separação – em sentido
assertivo ou teórico – é consequência do princípio da legalidade,
que exclui, para a garantia da submissão dos juízes somente à lei,
a derivação do direito válido do direito justo e, também, para a
garantia da autonomia crítica do ponto de vista moral externo ao
direito, a derivação do direito justo do direito válido, mesmo se
conforme a constituição. O seu modelo de constitucionalismo, na
verdade, equivale a um projeto normativo que exige ser realiza-do
através da construção, mediante políticas e leis de atuação, de
idôneas garantias e instituições de garantia.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a ruptura produzida pelo juspositivismo consistiu na
dissociação entre justiça e vali-dade, a instituição do
jusconstitucionalismo consistiu na dissociação entre validade e
vigência, ou seja, entre o “dever ser constitucional” e o “ser
legislativo” do direito. Isso significa que, para o
constitucionalismo positivista, uma lei é válida não simplesmente
porque vigente, ou seja, ema-nada nas formas que permitem
reconhecer que pertence a determinado ordenamento, mas apenas se,
além disso, for coerente, quanto aos seus conteúdos, com as normas
constitucionais que lhes são superiores.
É justamente nessa diferenciação interna ao direito entre níveis
normativos que reside o traço distintivo do paradigma
constitucional, caracterizado pela sujeição da lei à própria lei,
não apenas quanto às formas dos atos que a produzem, mas também em
relação aos conteúdos normativos por eles produzidos (FERRAJOLI,
2010, p. 182 e ss.). Isso se deu com a incorporação, nas
constituições rígidas, de princípios ético-políticos – como a
igualdade, por exemplo –, trans-formados de fonte de legitimação
política ou externa em fonte de legitimação jurídica ou
interna.
A natureza rígida das constituições contemporâneas, fundadas na
igual titularidade de todos em relação aos direitos fundamentais,
estabelece a fonte de legitimação substancial da de-mocracia
constitucional, determinando “o que não pode” (limites em função da
sua legitimação substancial negativa) e “o que não pode não”
(vínculos em função da sua legitimação substancial positiva) de
toda a produção jurídica (FERRAJOLI, 2010, p. 25).
O certo é que a constitucionalização dos direitos fundamentais
consistiu na ampliação da-quela que Ferrajoli chama de “esfera do
indecidível”, a qual, no velho estado liberal, era traçada
essencialmente por direitos de liberdade e, consequentemente, por
limites e proibições impostos aos poderes públicos, no sentido de
que nenhuma maioria poderia validamente decidir. Com a
constitucionalização dos direitos sociais, formou-se a “esfera do
indecidível que” e a “esfera do
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15
Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
indecidível que não”, assentando limites e vínculos de conteúdo
impostos por direitos de liberdade e por direitos sociais.
O desafio que hoje se apresenta está relacionado a um terceiro
modelo jurídico do para-digma garantista, representado pela
passagem do estado constitucional de direito para o estado
internacional de direito, já que a implantação de um
constitucionalismo mundial, muito mais do que a necessária
digressão teórica, esbarra em dificuldades de caráter político,
onde a principal preocupação dos Estados tem sido a proteção dos
próprios interesses, ao invés de uma verdadeira tutela global dos
direitos fundamentais.
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Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim
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Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
A CONSTITUIÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Andressa de Freitas Damolin
1 INTRODUÇÃO
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na
teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas
identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social,
estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A
assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e
processos centrais das so-ciedades modernas e abalando os quadros
de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no
mundo social. (HALL, 2006, p. 5).
Assim como Hall e Bauman (2005) também afirma que pensar
identidade pressupõe sua crise. Dentro das ciências humanas não
existia até finais do século XX pensadores que destinavam seu tempo
para esse tema. Porque? Simplesmente porque as organizações sociais
se davam no âmbito da comunidade. Comunidade, para Tönnies (1946) é
toda organização social que parte da ideia do “todo” sobre as
“partes”, essa mesma ideia se enquadra dentro do pensamento
durkhei-miano de solidariedade mecânica. Durkheim classifica em
dois os tipos de organizações humanas: As que se enquadram dentro
da ideia de Solidariedade Orgânica, onde o todo é maior que as
par-tes, típica dos modelos de vida comunitários, onde não há crise
de identidade, e as de Solidarie-dade Mecânica, onde as partes
dissociam-se de um todo, típico modelo social onde as liberdades
individuais são incentivadas comparando-se aos modelos liberais
capitalistas, onde a chamada crise de identidade nasce e se
desenvolve.
Nesse sentido, tanto para Durkheim (2002), Tönnies (1946) e
Bauman (2005), a compo-sição social holística (comunitária) se dava
de modo a abranger toda a composição social.
O ponto de ancoragem dessa composição social “holística” se dava
por meio de meta-narrativas. Metanarrativas são, segundo Lyotard
(2011), histórias generalizantes, grandes relatos, que serviam ou
servem de amparo existencial, de modelo de vida a ser seguido pelas
gerações mais novas. Algumas metanarrativas exemplificadas por
Lyotard são: Religião (monoteísta), família (tradicional), grandes
relatos (comunismo, socialismo, fascismo), para citar alguns e
importantes exemplos.
Ao longo dos séculos XIX, XX e início do século XXI, essas
metanarrativas foram postas uma a uma em xeque. O grande exemplo é
“a morte de Deus” decretada por Nietzsche em fins do século XVIII,
ou seja, o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico em
diálogo com as mudanças sociais deles provenientes ao longo dos
séculos, descontroem ou questionam paulatina-mente as chamadas
metanarrativas e as composições comunitárias por elas
alicerçada.
Nesse sentido, as comunidades de modo geral em todo ocidente,
seja colonizador ou colo-nizado passa por um processo profundo de
ressignificação dos valores tidos “sólidos” pela história e pelo
tempo. Seja branca, indígena ou negra, as reconfigurações
identitárias dançam a dança da chamada globalização. É evidente que
o oriente se enquadra dentro da lógica globalizante, entretanto, é
observável a grande presença das tradições seculares presente nos
modos de vida do oriente.
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Izique, Riva Sobrado de Freitas, Thiago Zelim
Entretanto, longe de querer mensurar quantativamente quanto as
identidades se ressigni-ficam no mundo contemporâneo, é importante
destacar que as identidades são significativamente atingidas (para
o bem ou para o mal) pelas novas configurações sociais oriundas da
nova ordem econômica global, ou mais comumente chamada
globalização.
A “globalização está na ordem do dia; uma palavra da moda que se
transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha
capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros.
Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser
felizes; para outros, é causa da nossa infeli-cidade. Para todos,
porém, “globalização” é também um processo que nos afeta a todos na
mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo globalizados –
e isso significa basicamente o mesmo para todos. (BAUMAN, 2005, p.
76).
A globalização aqui é entendida em seu sentido amplo: seja ela
econômica, midiática, cultural ou de consumo de massa. Entendemos
que a globalização e a ruptura metafísica é o grande
(re)organizador das identidades contemporâneas. “O que, então, está
tão poderosamente deslocando as identidades, agora? A resposta é:
um complexo de processos e forças de mudança, que por
conveniências, pode ser sintetizado sob o termo “globalização.”
(HALL, 2003, p. 45).
Para Schumpeter (1991, p. 122): “O processo de globalização
capitalista racionaliza o comportamento e as ideias e, ao fazê-lo,
expulsa de nossas mentes, juntamente com a crença metafisica, as
ideias mística e romântica de todos os tipos. E assim reformula não
só os métodos de atingir nossos fins como também os próprios
fins.”
Nesse sentido, com as reconfigurações comunitárias abre-se à
possibilidade de um novo tipo de relacionamento inter-humano. A
globalização possibilita aquilo que Touraine chama de diálogo
intercultural:
Não se trata, com efeito, de precisar simplesmente o que permite
que duas cultu-ras comuniquem. Trata-se de descobrir se a
consciência das diferenças entre cul-turas se pode transformar numa
avaliação, pelo ator, das suas próprias condutas. Mudança radical
de ponto de vista; já não se trata de saber se duas ou várias
cultu-ras são compatíveis, mas de observar como os atores se formam
ou se decompõem durante a passagem de uma cultura e de uma
sociedade à outra, e sobretudo o papel que desempenham, neste caso,
as crenças, as atitudes e os interditos. Será que eles facilitam,
ou pelo contrário, tornam mais difícil a passagem de uma cul-tura a
outra, evitando definir as culturas como fortalezas que dificultam
a entrada todos os estrangeiros? (TOURAINE, 2005, p. 110).
Tradicionalmente, a história do ocidente foi descrita e escrita
sob o prisma europeu. O eurocentrismo ao longo de toda história
ocidental, principalmente a partir do contato dos euro-peus com
povos de outros continentes, escreveu sua história e a dos outros
povos a partir e sob a tutela da presumida superioridade europeia
sobre as demais. Indígenas, negros, asiáticos foram inferiorizados
e inclusive escravizados por uma cultura que punha a razão,
principalmente a razão científica como princípio moral e valorativo
em relação às demais.
Evidente está que um diálogo inter e multicultural era e
continua sendo grandemente comprometido quando a igualdade e o
respeito à diferença são negados e postos como algo a ser comparado
e classificado.
Nesse sentido, a identidade torna-se um conceito implícito
dentro dos debates em torno da questão inter, pluri ou
multicultural. Identidade é aspecto fundamental na constituição do
ser humano, seja ele no aspecto social, cultural ou individual.
Dentro do aspecto social, para o
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Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
indivíduo ser aceito dentro de determinado grupo deve assimilar
e reproduzir padrões de com-portamento para ser recebido,
compreendido e assimilado dentro de uma lógica estabelecida. É
nesse sentido que Bauman, destaca a ideia de “Outro”, do
“diferente” e do “estranho”. O outro, o diferente e ou o estranho,
é tido como aquele ou aquela que não obedecendo ou não
reconhe-cendo determinados padrões de comportamento, não faz parte
do “nós”. Esse por sua vez ao não se “identificar” com o contexto
social estabelecido, é um pária, excluído, deve ser evitado para
evitar a contaminação do todo orgânico comunitário.
Como em todas as “comunidades cercadas”, a probabilidade de
encontrar um es-trangeiro genuíno e de enfrentar um genuíno desafio
cultural é reduzida ao mínimo inevitável; os estranhos que não
podem ser fisicamente removidos por causa do teor indispensável dos
serviços que prestam ao isolamento e autocontenção ilusó-ria das
ilhas cosmopolitas são culturalmente eliminados — jogados para o
fundo do “invisível” e “tido como certo”. (BAUMAN, 2003, p.
54).
Entretanto, para que esse “outro” possa se tornar “nós” é
preciso um processo de ressig-nificação e aculturamento e
assimilação dos princípios estabelecidos pela maioria, logo o
processo de assimilação identitária é um processo da maioria, ou
seja, homogeneizante.
Isso é o que se observa em grande medida, quando indígenas,
quilombolas ou imigrantes por exemplo, adentram individual ou em
menor número, dentro do todo “nós” estabelecido.
A identidade cultural, pressupondo de modo tipo ideal, uma
comunidade tradicional, é vinculada a princípios e modelos
historicamente dado. O nós aqui é muito mais ontológico, mais
enraizado e baseado em costumes e numa moral, muitas vezes
alicerçada em valores tradicionais de família e religião.
Por mais que os aspectos sociais sejam homogeneizantes dentro de
modelos culturais de formação identitária moralizantes, cria-se uma
lógica verticalmente estabelecida historicamen-te. O outro, o
diferente, o estranho, só não é a aceito, como excluído. A
identidade fortemente constituída dentro desses valores morais
culturais, busca preservar um sonho de pureza. O outro é negado
justamente por ameaçar essa pureza.
Em sentido “tipo ideal” tanto, a identidade estabelecida na
sociedade seja a durkhie-miana, ou tonnisiana, estabelece-se a
aceitação via assimilação e homogeneização dos de fora, dos que
vieram depois. Logo, sob esse aspecto, o diálogo seja
multicultural, seja intercultural é negado pela força da
maioria.
Num segundo aspecto, dentro de um princípio de identidade
cultural propriamente dita, a preservação da identidade cultural se
torna comunal e o outro, é negado em prol da continuidade “pura” da
identidade.
Outro aspecto da identidade, a individual, está no meio dessas
duas, em diálogo constan-te, seja com a identidade social
constituída na vida em sociedade estabelecida grandemente pelos
modelos econômicos e de consumo da sociedade capitalista, e a
outra, instituída por modelos e padrões culturalmente e
historicamente dado pela família, pela educação, pelas tradições de
todo tipo.
Nesse sentido podemos esquematizar a identidade individual como
sendo uma identidade dialógica entre os dois universos; o da
cultura e o da sociedade.
A identidade se constitui num processo relacional do indivíduo
consigo mesmo e com o meio que o cerca:
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O indivíduo integrado na comunidade tradicional,
experimentando-se concreta-mente como indivíduo particular, não se
colocava problemas identitários tal como entendemos hoje. A
ascensão das identidades provém justamente da desestrutu-ração das
comunidades, provocadas pela individualização da sociedade.
(KAUF-MANN, 2004, p. 17).
Quanto maior é o meio que cerca o indivíduo maior é o stock de
possibilidades identitá-rias. Logo, quanto mais aberta é uma
sociedade maior serão as chances de insumos cognitivos para a
formação da identidade de um indivíduo.
Quanto maior as experiências de um indivíduo com o mundo que o
cerca maior serão con-sequentemente as possibilidades desse
indivíduo se constituir como ser intercultural.
Nesse sentido:
Enquanto na sociedade holista, os indivíduos eram produzidos e
reproduzidos pela “fórmula geradora” do sistema de habitus, eles
são, na modernidade, quotidiana-mente construídos pela sua própria
história, tendo especificamente interiorizado o social, num diálogo
contínuo entre presente e passado secretamente memorizado.
(KAUFMANN, 2004, p. 71).
A identidade passa primeiro pelo aspecto familiar, o indivíduo
em seus primeiros anos identificar-se-á com aquilo que lhe está
mais próximo, com seus familiares e/ou com seus tutores. É nessa
relação inicial que a criança começará a compreender e abstrair o
mundo que o cerca. Aqui as pesquisas e teorias pedagógicas como a
de Piaget e Vigostski, por exemplo, mesmo com suas semelhanças e
similitudes preocuparam-se em explicar como se dá esse processo
inicial de formação identitária do indivíduo.
Mas distanciando um pouco das teorias pedagógicas e nos
avizinhando do pensamento sociológico, compreendemos com Giddens
que são nos primeiros anos que, em proximidade com os seus, as
crianças desenvolvem com variados graus, de acordo com o tipo de
convivência, a se-gurança ontológica:
Há certos aspectos da confiança e processos de desenvolvimento
da personalidade que parecem se aplicar a todas as culturas,
pré-modernas e modernas. Não vou tentar cobri-los exaustivamente,
mas me concentrarei sobre as conexões entre confiança e segurança
ontológica. A segurança ontológica é uma forma, mas uma forma muito
importante, de sentimentos de segurança. A expressão refere-se à
crença que a maioria dos seres humanos têm na continuidade de sua
auto-identi-dade e na constância dos ambientes de ação social e
material circundantes. Uma sensação de fidedignidade de pessoas e
coisas, tão central à noção de confiança, é básica nos sentimentos
de segurança ontológica; daí os dois serem relacionados
psicologicamente de forma íntima.
A segurança ontológica tem a ver com “ser”, ou, nos termos da
fenomenologia, “ser-no--mundo”. Mas trata-se de um fenômeno
emocional em vez de cognitivo e está enraizado incons-ciente.
(GIDDENS, 1991, p. 95).
Essa segurança ontológica é o que dará ao indivíduo as condições
básicas para a vida em sociedade. É com ela ou sem ela que o
indivíduo se posicionará perante o mundo ora mais seguro de si, ora
menos seguro de si. Podemos, desse modo, afirmar que a falta de
segurança ontológica caracterizará a chamada crise de identidade da
pós-modernidade. Ou seja, não é a pós-moderni-dade em si que gera a
crise de identidade, a pós-modernidade eleva em grau jamais visto
as pos-sibilidades de identificações. Nesse sentido, o indivíduo
com baixo grau de segurança ontológica,
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Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
estará muito mais propenso em buscar essa segurança que não teve
na infância, depois de jovem ou adulto, causando assim a ansiedade
identificatória típica da chamada pós-modernidade.
Podemos, para exemplificar o conceito de segurança ontológica,
observarmos como jo-vens e crianças que ficaram por longo período
na convivência com seu grupo originário terem mui-to mais marcante
a presença grupal do que jovens e crianças que desde muito cedo
tiveram sua educação terceirizada. Esse exemplo abrange tanto
organizações tidas como sociais, mais aberta, ou tradicionais como
grupos indígenas, quilombolas e de outras composições étnicas.
Estamos di-zendo que quanto mais tempo um indivíduo passa com os
membros do seu grupo mais difícil é de se desvincular da sua
identidade ontológica.
Nesse sentido, compreendemos que educação familiar tem num
primeiro momento, cará-ter fundamental na constituição da
identidade subjetiva de longa duração no indivíduo, e que as
experiências ao longo da vida, vão segundo Lahire, constituindo o
stock identitário.
O stock identitário nesse contexto, constituem em repertórios de
organização compor-tamental e de relações sub e intersubjetivas que
possibilitam aos indivíduos maior compreensão, diálogo e uma
postura de abertura em relação às miríades de possibilidades de
existência. Um bom stock, está na base do dialogo intercultural.
Nesse sentido: “A pertença não é suprimida na so-ciedade moderna; é
transformada, idealmente, numa pertença escolhida.” (SINGLY, 2003,
p. 53).
É esse diálogo subjetivo do indivíduo com esses três elementos
que culminará num diá-logo intersubjetivo mais ou menos
intercultural, de acordo com o modelo educacional, familiar,
religioso, social e econômico no qual estiver inserido, em relação
com seus desejos internos de reconhecer a si e o outro como
sujeitos diferentes e iguais em suas diferenças. “Repensar o elo
social pressupõe a ruptura com tal visão do mundo, que separa
grandes e pequenos, sério e frívo-lo, “verdadeiro” e ilusório, a
fim de que os indivíduos individualizados sejam reconhecidos, sem
desprezo, na sua totalidade.” (SINGLY, 2003, p. 195).
É na relação com os conceitos que apresentaremos abaixo
(multiculturalismo liberal e multiculturalismo conservador) que
estamos abordando a dimensão da constituição identitária. Segundo
Kaufmann (2001, p. 53):
Antes da crise, não havia propriamente falando identidades. Para
que haja identi-ficação, é preciso que haja situações em que faz
sentido identificar-se. A questão identitária resultou,
historicamente, da desagregação das comunidades libertando um
indivíduo constrangido a autodefinir-se.
Ou seja, as dimensões do social e do cultural que anteriormente
dava matrizes para a formação da identidade dos indivíduos,
gradativamente se afrouxam dando azo a possibilidades dos
indivíduos identificarem-se ou buscarem formas de comportamento não
presentes em seus grupos de origem.
É nesse processo de redefinição dos papéis e das condutas
sociais e/ou culturais individu-ais que os debates sobre
multiculturalismo e interculturalismo se sobrepõe à ideia de
reafirmação de identidades originárias. “O indivíduo
individualizado não deixa de ter uma pertença. É preciso não
confundir a necessária não pertença em relação aos grupos de origem
e a ausência de com-promisso coletivo.” (KAUFMANN, 2001, p.
175).
Num sentido, o sentimento de pertencimento se constituía com
base naquilo que Tön-nies definira como comunidade. Na comunidade
prevalece o “nós” sobre “eles”, inclusive sobre o “eu”. Os modelos
de organização das condutas eram dados verticalmente por seus
líderes e chefes
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mais velhos e repassados de geração em geração. Assim,
comportamentos das mulheres, jovens e adultos eram definidos
historicamente pelo conjunto dos habitus.
Noutro sentido, o pertencimento comunitário cede espaço com o
avanço da econômica de mercado e com o advento dos meios de
comunicação de massa às constituições identitárias de tipo social
(Durkheim, Tönnies, Bauman). Nesse modelo de organização, prevalece
o individual sobre o coletivo, mas esse individual não
necessariamente atrelado sobretudo sobre a ótica do sistema
capitalista e de consumo em massa, mas também relacionado com o
direito de individuação e autoafirmação.
É nesse segundo processo de identificação social que nasce a
possibilidade multicultural/intercultural, devido, sobretudo ao
desejo de igualdade de direitos e justiça social daqueles grupos ou
pessoas marginalizadas pelas verticalizações dos modelos
tradicionais de constituição identitária.
Em outras palavras, a globalização e as transformações oriundas
dela, aceleraram as dis-cussões em torno da ideia de igualdade das
culturas manifestarem-se de par a par com as culturas e sociedades
historicamente dominantes.
É nesse contexto, da globalização, flexibilização identitária,
lutas pelos direitos culturais equitativos que surgem as discussões
em torno dos conceitos de multiculturalismo e
interculturalismo.
O indivíduo pode pertencer a seu grupo de origem, mas também
distanciar-se dele quando práticas culturalmente aceitas pelo grupo
já não é mais vista pelo indivíduo como algo produtivo.
Lembrando que grande parte dos costumes grupais parte dos
sujeitos homens, heterosse-xuais e patriarcais, não é difícil
imaginar que práticas tradicionais entram em choque com novos
desejos de autoafirmação e liberdade de escolha.
É nesse sentido, que a questão da identidade e da
ressignificação identitária pode ser facilmente encontrada em meio
a grupos fortemente marcados pelo comunitárismo e pela
metanarrativa da tradição e do costume.
É de se imaginar também que mulheres que historicamente recebiam
suas funções sociais dentro dessas estruturas tradicionais queiram
assumir suas condições de atoras de suas próprias vidas.
Consequentemente, a citação inicial de Hall faz muito sentido ao
dizer que velhas iden-tidades dão lugar gradativo e constante a
novas formas de identificação, cabendo ao pesquisador compreender,
analisar e explicar esse fenômeno que engloba todos
indistintamente.
Entretanto, algo importante a se destacar é que as novas
possibilidades de constituição identitária, não fragmenta o
indivíduo, pelo contrário, os possibilita a tornarem sujeitos de
suas vidas e lutar por melhores condições de existência, sejam eles
homens ou mulheres.
2 OS LIMITES DO MULTICULTURALISMO NO DIÁLOGO INTERCULTURAL
A “identidade” do mundo ocidental é eurocêntrica. O
eurocentrismo dominou a forma e o conteúdo do pensamento de todo o
mundo ocidental e boa parte do mundo oriental por muitos séculos. A
cultura europeia foi vista por muito tempo como ponto de ancoragem
para a valorização e comparação de qualquer outra forma cultural.
Nesse sentido, quanto mais próxima do modo de vida europeu, mais
evoluída seria tal cultura.
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Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
As guerras de conquista, os imperialismos e toda colonização
afro-asiática e americana ti-veram como princípio o processo
civilizatório europeu. Tudo que fosse diverso ou incompreensível
sob o prisma da razão científica era tido como inferior e
primitivo.
Assim, milhões de pessoas foram mortas e/ou submetidas ao modelo
de pensamento judaico-cristão científico ocidental, e do mesmo modo
centenas de línguas foram extintas em de-trimento das línguas
latinas e/ou anglo-saxônicas. Do mesmo modo, centenas de deuses e
deusas foram “mortos” em prol do Deus cristão, bem como lugares
sagrados foram destruídos em prol da ciência e do capitalismo
emergente.
Com a diplomacia da canhoneira e em nome de um único Deus, o
ocidente e o oriente se viram às justas com o pensamento europeu.
Se dissemos acima que a identidade só emerge quando ela está
ameaçada, é correto dizer que a identidade de povos autóctones
“nasceram” em defesa da aculturação europeia.
Sim, as regiões conquistadas e colonizadas pelos europeus
constituíram-se ao longo dos séculos em países multiculturais.
Multiculturas compõe o Brasil por exemplo, mas essa miríade de
culturas que compõe nosso país efetiva-se no âmbito do diálogo e do
respeito entre elas? Está aí uma diferença básica quando procuramos
relacionar nosso trabalho com a ideia de interculturas em
detrimento de multiculturas.
Multiculturalismo é um termo descritivo. Afirma que o processo
de globalização e os en-trecruzamentos culturais fizeram nascer
países, cidades e regiões multiculturais. Nova Iorque é
multicultural, bem como São Paulo ou Rio de Janeiro, mas
multiculturalismo pressupõe diálogo e respeito pela diferença?
É nesse sentido que procuraremos diferenciar, para analisar a
questão da mulher indígena em nosso trabalho, multiculturalismo de
interculturalismo. Compreendemos que para que o respeito à
diferença seja praticado, seja dentro de uma mesma cultura ou dessa
cultura em relações às outras, não basta a assunção da
multiculturalidade, mas sim a pratica dialógica entre um e
outro.
Consequentemente procuremos compreender a dimensão da mulher
indígena e seu empo-deramento em termos de interculturalidade,
interculturalidade essa numa relação da identidade indígena que se
reconfigura e dialoga com o mundo global.
Imaginamos que se está gradativamente se descortinando o que
pretendemos analisar e do modo como isso está sendo feito: A
identidade indígena se enquadra dentro do pensamento tonnisiano de
identidade comunitária. Ao longo dos séculos toda a identidade
indígena se deu de modo comunitário, até chegar ao ponto que as
próprias estruturas indígenas no que se refere à formação
identitária é posta em xeque pelo processo de globalização.
Pretendemos compreender essas ressignificações no que se
concerne à questão da mulher e do empoderamento feminino. Para que
isso pudesse surgir, a mulher indígena teve que buscar “fora” da
sua estrutura comunitária subsídios para afirmarem os seus desejos
individuais de serem mulheres de direitos igualitários. Esses
subsídios emergem de duas coisas: primeiro de uma res-significação
identitária, segundo, pela abertura intercultural dessas mulheres
para o mundo fora tribo que as cerca.
O Brasil é um país multicultural, mas ainda não é um país
intercultural. A diferença no Brasil ainda não é amplamente
respeitada em sua diferença. Seja tanto para homens, quanto para
mulheres de origens raciais e étnicas discriminadas ao longo da
história.
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Entretanto, as mudanças globais suscitam novas formas de pensar
e agir não somente entre a cultura dominante e a cultura dominada,
mas também no interior da própria cultura domi-nada e/ou dominante,
quando grupos específicos ou pessoas individualmente também
requerem mudanças de comportamento dentro desses grupos
originários, como por exemplo, de mulheres indígenas que,
empoderando-se dentro dessa lógica intercultural, exigem maior
respeito sobre sua condição de mulher.
O tema do multiculturalismo surge em finais do século XX, como
possibilidade de intera-ção inter étnica em países com grande
diversidade cultural. Canadá foi o primeiro país a adotar o tema do
multiculturalismo com vistas a assumir posturas
anti-discriminatórias em suas relações sociais.
Noutro sentido, o tema multiculturalismo caminha junto com o
conceito de globalização, tendo em vista que com o processo de
globalização aumentam-se os intercâmbios culturais e a ideia de
eurocentrismo cultural é grandemente questionada:
Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as
características sociais e os problemas de governabilidade
apresentados por qualquer sociedade na qual dife-rentes comunidades
culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo
tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em
contraparti-da, o termo “multiculturalismo” é substantivo.
Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou
administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas
sociedades multiculturais. (HALL, 2003, p. 52).
Logo, na gênese do debate sobre tanto o multiculturalismo quanto
interculturalismo está presente a questão da diferença e da
compreensão da diferença num espaço dialógico sem
verti-calidades.
Soriano (2004, p. 91 apud DAMÁZIO, 2017, p. 14) considera que o
interculturalismo re-mete a uma coexistência das culturas em um
plano de igualdade. Muitos autores empregam o mesmo significado
para denominar o multiculturalismo. O autor acredita, contudo, que
o mais apropriado é utilizar o termo multiculturalismo para a
constatação empírica da coexistência das culturas, enquanto que o
interculturalismo tem uma pretensão normativa ou prescritiva e diz
res-peito à exigência de um tratamento igualitário dispensável às
culturas. O interculturalismo atua em conformidade com os conceitos
garantistas dos direitos das culturas, criticando o imperialismo
jurídico e propondo uma alternativa entre o liberalismo e o
comunitarismo.
A diferença é ponto chave quando o assunto é a identidade e as
dinâmicas sociais que envolvem os sujeitos no convívio social.
Entretanto, identidade pressupõe identificar-se com algo que lhe é
similar, parecido, igual, e grande parte dos estudos sobre
identidade presta-se a analisar primeiramente a dimensão cultural
da formação identitária.
Nesse sentido, quando se presa pelas análises da identidade sob
o aspecto das dimensões culturais, econômicas e de classe, por
exemplo, explicita-se a questão da diferença.
Essas diferenças se explicitam, pois, devido as mais diversas
nuances sociais existem cul-turas, classes sociais, econômicas e de
gênero diversas num mesmo arranjo social.
Tendo em vista que grande parcela do mundo vive hoje sob a
tutela de regimes democrá-ticos, tende-se buscar formas para que
essas diferenças não promovam ou diminuam grupos sociais
específicos, mas sim busque alternativas para os tornarem iguais em
suas diferenças.
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Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
Logo, políticas públicas e educacionais são criadas com fito de
amenizar tais diferenças. Os termos que se destacam para reforçar o
caráter plural das relações humanas em sociedades são o
multiculturalismo e o interculturalismo.
Seguindo ainda na diferenciação entre um e outro
Fornet-Betancourt (2008) também alerta:
que o termo interculturalidade não deve ser confundido com
multiculturalismo. O multiculturalismo descreve a realidade fática
da presença de várias culturas no seio de uma mesma sociedade,
designa uma estratégia política liberal que visa a manter a
assimetria do poder entre as culturas, posto que defende o respeito
às diferenças culturais, mas não coloca em questão o marco
estabelecido pela ordem cultural hegemônica. Sendo assim, o
respeito e a tolerância, tão difundidos pela retórica do
multiculturalismo, estão fortemente limitados por uma ideologia
se-micolonialista que consagra a cultura ocidental dominante como
uma espécie de metacultura que benevolamente concede alguns espaços
a outras. A intercultura-lidade, pelo contrário, aponta para a
comunicação e a interação entre as culturas, buscando uma qualidade
interativa das relações das culturas entre si e não uma mera
coexistência fática entre distintas culturas em um mesmo
espaço.
Logo, tanto o primeiro quanto o segundo possuem diversas
ramificações epistêmicas, mas nosso intuito é, para o interesse
desse capítulo, abordar, mesmo que suscintamente principalmen-te
dois; o multiculturalismo liberal e o multiculturalismo conservador
e a ideia de interculturali-dade.
O mundo globalizado no qual estamos inseridos nos abre
possibilidades de comunicação e interação jamais vistos pela
humanidade desde seus primórdios. Mas a pergunta que se faz é: até
que ponto essas interações e comunicações são feitas no plano do
diálogo com a diferença? Ou me-lhor, em que medida a globalização
contribui e de que forma para minimizar as diferenças no que se diz
a verticalizações e princípios de melhor ou pior, mais desenvolvido
e menos desenvolvido?
A globalização que se deu inicialmente no âmbito da economia,
hoje muito mais ampla, abrange sobretudo as relações entre as
culturas. É nesse princípio relacional entre as culturas, se-jam
elas multinacionais oriundas das trocas entre os diversos países,
seja em sentido local, entre as culturas já existentes antes da
globalização que se processam as mudanças e ressignificações da
identidade.
Um dos aspectos positivos que devemos destacar em relação à
globalização é justamente a possibilidade do intercâmbio cultural.
Mas esse intercâmbio é visto de que modo pelos grupos envolvidos? É
visto de modo horizontal, onde todas as culturas têm suas
idiossincrasias e devem ser respeitadas em suas diferenças? Ou é
feito de modo “distanciado” onde as culturas são vistas como
curiosidades turísticas e exóticas?
Outra característica amplamente debatida no meio acadêmico é a
dimensão do impacto da globalização sobre a ideia de identidade.
Adversa à ideia de turismo cultural, a globalização impacta
contundentemente na ressignificação identitária, seja em grupos
socialmente mais di-nâmicos dentro da lógica do modelo econômico
vigente, seja em grupos que se encontram mais afastados desse
sistema, como o caso de indígenas, quilombolas e comunidades
ribeirinhas, por exemplo.
Essas ressignificações identitárias causam àquilo que alguns
chamam de crise de identida-de como Lipovetiski (2002), por
exemplo. No entanto, acreditamos que é justamente essas ressig-
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nificações identitárias que possibilitam o avanço do debate do
multicultural para o intercultural como veremos adiante.
Existem diversas expressões de multiculturalismo (DAMÁZIO, 2017)
dentro das pesquisas em ciências sociais e humanas. Entretanto, as
concepções de multiculturalismo liberal e conser-vador são as
norteadoras dos debates em torno desse conceito. Não pretendemos
aqui aprofundar sobre o debate em torno do multiculturalismo. Nossa
preocupação é demostrar que o multicultura-lismo possui fraquezas
conceituais que o impedem de compreender a dinâmica da constituição
das identidades individuais, por não consagrar a ideia de diálogo
profundo entre as culturas e entre a própria cultura internamente
de modo horizontal. Nesse sentido, procuramos destacar a
impor-tância de se compreender que para além da aceitação de que
vivemos um momento multicultural é contribuir para que essa
multiculturalidade também possa se tornar interculturalidade.
Dentro da discussão em torno do multiculturalismo liberal
encontramos a defesa de que a cultura não tem valor em si, a
cultura tem nesse ponto de vista, apenas valor simbólico, no qual o
indivíduo coleta sensações como apresenta Bauman. (DAMÁZIO,
2017).
O multiculturalismo liberal atende nesse sentido aos interesses
do capitalismo. Quan-do a cultura se torna um objeto de consumo,
sem debate e sem diálogo. A cultura e as culturas “simplesmente
existem” e os problemas existentes entre elas não fazem parte de
uma agenda educacional, por exemplo.
Singly (2003) apresenta o conceito do recolher e levantar
âncoras para indivíduos carac-terizado por esse viés
multiculturalista. O indivíduo alheio a si mesmo quanto sujeito de
cultura, e alheio às culturas quanto processos históricos de
construção simbólica, apenas joga e recolhe suas âncoras
identitárias e “colhe as sensações” delas provenientes sem nenhum
tipo de critici-dade. Nesse sentido, o multiculturalismo liberal
vai ao encontro da cultura de consumo do mundo globalizado, onde as
culturas são experimentadas quanto “produtos” à venda para consumo
em qualquer loja de departamento.
O multiculturalismo liberal não defende a ideia de uma
identidade cultural, mas sim a ideia de que vivemos num mundo com
muitas culturas (DAMÁZIO, 2017). Não pensa o debate para o
cerceamento das lutas culturais, acredita que as diferenças
culturais estão em outra parte que não na cultura e em sua
exploração histórica. Por fim o multiculturalismo liberal é um
multicultu-ralismo sem debate e diálogo identitário.
Por sua vez o multiculturalismo conservador é o oposto do
multiculturalismo liberal e é mais perigoso.
O multiculturalismo conservador defende a ideia de que existe
uma cultura e que essa deve ser preservada por ter valor simbólico
de extrema importância para a formação das identi-dades. Enquanto o
multiculturismo liberal é chamado de individualista por não dar
ênfase à ideia de preservação identitária com base cultural, o
multiculturalismo conservador reforça justamente o caráter coletivo
da identidade, não individual, mas coletiva.
Nesse sentido, o multiculturalismo conservador transita numa
linha tênue entre comuni-tarismo e xenofobia.
O comunitarismo é um fenômeno teoricamente novo nas sociedades
modernas. Surge como resposta à chamada crise de identidade causada
pela globalização e pela pós-modernidade. Para reforçar a
identidade “ameaçada” grupos criam modelos comunitários de vida
para preservar sua identidade. O multiculturalismo conservador
aceita a ideia de que existem muitas culturas
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Temas sobre a constitucionalização dos direitos fundamentais: um
debate crítico
presentes em determinado arranjo social, mas aceitar o diálogo
entre essas culturas é outra coisa, por trás desse
multiculturalismo está presente o “sonho de pureza”.
Ser multicultural não implica necessariamente
interculturalidade. Uma sociedade pode ser multicultural como é o
caso do Brasil, mas isso não quer dizer que há um diálogo de
respeito e reciprocidade entre as diversas culturas no país.
O multiculturalismo conservador ao defender a ideia ontológica
da cultura sobre os in-divíduos pode ser apresentado com
verticalizações comparativas entre “melhor” e “pior”, mais
desenvolvido e menos desenvolvido, tipos de comparações presente no
pensamento eurocêntrico.
Desse modo, para debater identidade dentro de um espaço
horizontal de respeito, reci-procidade, abertura e diálogo é
preciso pensar a identidade e identidades em torno da ideia de um
multiculturalismo intercultural pautado na comunicação:
A relação dos homens e das mulheres ilustra, portanto, melhor do
que qualquer ou-tra, que o multiculturalismo deve ser, em primeiro
lugar, procura de comunicação. Esse pressupõe linguagens comuns,
mas também mensagens diferentes (pelo con-teúdo e pela forma),
expectativas diferentes e interpretações igualmente diferen-tes da
mesma mensagem. A comunicação entre homens e mulheres é o elemento
central desta recomposição do mundo onde vejo a forma principal do
multicultu-ralismo. Esse deve evocar mais a comunicação que a
distância, mais a interação do que a separação e a desconfiança.
(TOURAINE, 1997, p. 251).
Assim, a interculturalidade não só permite o diálogo entre as
culturas, mas também o debate dentro da própria cultura, entre os
gêneros, permitindo ressignificar práticas e valores que já não
mais condiz com o modelo de vida contemporâneo.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Damázio, 2017, p. 5), “a proposta intercultural surge,
principalmente, a partir do vazio deixado pelo multiculturalismo.
Visa à superação do horizonte da tolerância e das diferenças
culturais e a transformação das culturas por processos de
interação.”
O “Outro” é característica fundamental quando a questão é o
debate intercultural. A constituição da identidade contemporânea
está cada vez mais sendo construída de modo plural.
O indivíduo contemporâneo cada vez mais globalizado pelos meios
de comunicação de massa e pela sociedade de consumo encontra
dificuldades em se afirmar possuidor de uma identi-dade constituída
de um único centro irradiador de conduta e comportamento. O “nós”
identitário paulatinamente ocupa o lugar do “eu” no sentido do “eu”
comunitário, ao mesmo que o “eu” in-dividual, se sobrepõe
gradativamente ao “nós” comunitário. É nessa dialética entre
cultura e cul-turas que a identidade dos sujeitos modernos se
forma. Graças às aberturas culturais provenientes da globalização e
graças à democratização das ideias, as pessoas podem com maior ou
menor ris-co, dependendo da sua origem comunitária, afirmarem-se
possuidores de desejos e constituírem--se como sujeitos
individuais.
É nesse aspecto que a interculturalidade, a identidade e a
globalização impactam na formação do “eu”. Esse diálogo complexo
entre diversos mundos ressignificam demasiadamente o comportamento
humano.
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Destacamos o empoderamento das mulheres, que em tempos idos,
pelas verticalizações comunitárias de todo tipo, tinham seus
desejos e suas vontades sufocadas pelos tradicionalismos
culturais.
A interculturalidade é o diálogo consigo mesmo e com o “outro”.
Não mais falamos de indivíduo quando pensamos a interculturalidade,
pensamos a interculturalidade em termos de sujeito.
Sujeito é todo aquele ou aquela que lutam contra as forças
centrifugas e centrípetas de fragmentação do “eu” que numa relação
com seu projeto de vida individual dialoga com o univer-so da
técnica e com o universo da cultura.
Quando falamos de ressignificação identitária da mulher indígena
e do seu empoderamen-to falamos da mulher sujeito, que quer seu
pertencimento, mas quer sua liberdade e decidir por si mesma o que
lhe é melhor para si.
A interculturalidade não visa somente o debate entre as
culturas, visa também e muito profundamente o debate entre “a”
cultura. Sujeitos homens e mulheres nesse debate intercul-tural
descobrem-se possuidores de uma identidade própria, e
gradativamente buscam encontrar meios de serem o que são.
É nesse sentido que a terceira parte desse trabalho visa
compreender a emergência do Sujeito mulher. É nesse diálogo
intercultural das indígenas entre si e das indígenas com o mundo
globalizado, não tradicional que as cerca, que procuraremos
compreender a emergência do sujeito mulher com vistas ao seu
empoderamento.
Interculturalidade pressupõe a convivência das diversas culturas
que compõe um todo multicultural, mas com a premissa da igualdade.
Noutro aspecto a interculturalidade permite o diálogo intergrupal
para que esta igualdade também seja alcançada:
A noção de interculturalidade, por diferentes razões, foi
identificada com multi-culturalidade, entretanto as posições
teóricas atuais na América Latina permitem uma distinção entre
ambas. A interculturalidade, diferentemente da multicultura-lidade,
não é simplesmente duas culturas que se mesclam ou que se integram.
A interculturalidade alude a um tipo de sociedade em que as
comunidades étnicas, os grupos sociais se reconhecem em suas
diferenças e buscam uma mútua com-preensão e valorização. O prefixo
“inter” expressaria uma interação positiva que concretamente se
expressa na busca da supressão das barreiras entre os povos, as
comunidades étnicas e os gr