Página 1 de 27 TÉCNICA DE REDAÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA IV CONGRESSO BRASILEIRO DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES Fortaleza – Ceará – de 10 a 14 de novembro de 2002 A ESCRITURA PÚBLICA NOTARIAL NO NOVO MILÊNIO JOÃO TEODORO DA SILVA 6° Tabelião de Notas de Belo Horizonte Especialista em Direito Notarial e Registral
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Página 1 de 27
TÉCNICA DE REDAÇÃO DA
ESCRITURA PÚBLICA
IV CONGRESSO BRASILEIRO DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES
Fortaleza – Ceará – de 10 a 14 de novembro de 2002
A ESCRITURA PÚBLICA NOTARIAL NO NOVO MILÊNIO
JOÃO TEODORO DA SILVA
6° Tabelião de Notas de Belo Horizonte
Especialista em Direito Notarial e Registral
Página 2 de 27
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Ante a abrangência do tema ESCRITURA PÚBLICA NOTARIAL NO
NOVO MILÊNIO, vou limitar-me a tratá-lo apenas no aspecto da TÉCNICA DE
REDAÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA, sob uma óptica talvez inusitada e
certamente inesperada, por causa do caminho das pedras que me proponho
percorrer.
Preliminarmente, forçoso é reconhecer que o assunto não é nada novo
para este milênio, pois já devia ter sido estudado o suficiente e estar
incorporado ao dia-a-dia da atividade notarial pelo menos desde a vigência do
Código Civil de 1916.
Forçoso é reconhecer também que o notariado brasileiro, havendo
ignorado as instituições do Direito Civil a que se filiou o código de 1916, só a
partir de poucos anos passou a se ocupar do aperfeiçoamento técnico-jurídico,
com certeza influenciado pela salutar universalização da exigência de concurso
público destinado ao provimento de serventia e à remoção de uma para outra.
O a que me proponho hoje, ainda que tardiamente, mas aproveitando o
pretexto da iminência de entrar em vigor o novo Código Civil, é provocar e –
mais que isso – motivar os notários a fazer grande esforço de adequação, a dar
um salto direto do século XIX ao XXI em matéria aprimoramento da escritura
pública.
Considero essa postura inovadora como pré-requisito de se conseguir a
valorização da escritura pública, tão maltratada e vilipendiada no Brasil, em que
pese à relevância dela para a boa ordem jurídica, em função da segurança e da
certeza que devem ser seus atributos na permanente busca da paz social.
Minha experiência, no desenvolver paulatinamente a técnica redacional
que vou expor, vem desde que assumi o tabelionato de notas em Belo
Horizonte, lá pelos idos de 1973, e passou pelos seis anos, de 1991 a 1996,
quando que lecionei “Prática Civil e Comercial” na Faculdade Mineira de Direito
da PUC-MG, ocasião em que orientava sobre a redação contratual, incluindo,
portanto, o instrumento particular, no afã de abrir os olhos dos então futuros
bacharéis em Direito para a adequação entre a teoria e uma prática de boa
qualidade. E esta questão da técnica redacional da escritura pública já foi objeto
de palestra que fiz no início da década passada, em encontro promovido pela
SERJUS – Associação dos Serventuários de Justiça do Estado de Minas Gerais.
Estou convencido, todavia, de que as escrituras públicas de minha
lavra não têm sido vistas com olhos atentos e minha palestra de há mais ou
menos dez anos foi feita para ouvidos moucos, uma vez que o assunto não
Página 3 de 27
suscitou interesse, o que espero aconteça agora, a pretexto – insisto - de ser
necessário debruçar sobre as novidades trazidas pelo Código Civil sancionado
em 10 de janeiro de 2002 e prestes a entrar em vigor, posto que sem
contribuição significativa no assunto em foco. Cogito de que ainda se possa
desenvolver um trabalho de recuperação do tempo perdido desde 1º de janeiro
de 1917... Será que estou sendo demasiado otimista?
Relembro que, já estando em curso meus esforços para a superação de
praxes tradicionais e em alguns casos juridicamente viciosas, diante do Código
Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973, deparei-me, há quase vinte
anos, com um artigo do qual uma cópia me foi enviada pelo estudioso tabelião
Roberto Rodrigues da Cunha, de Uberlândia, MG, publicado na “Gazeta
Mercantil” de 23 de setembro de 1983, pág. 2, de autoria de ERNST MUHR,
Professor da Escola de Administração de Empresas da FGV, São Paulo, sob o
título “Em favor do realismo nos livros dos tabeliães”. Fiquei então mais
sensibilizado e há dias o reli. Sem perder a esperança de que ainda venha a ser
levado a sério, transcrevo-o na íntegra:
“Quando eu era garoto, contavam a história do ferroviário, não sei se
era da Mogiana, e portanto de Ribeirão, ou da Oeste, e de Ibiá, que estava para
se aposentar e foi ensinar a um moço o serviço dele, que era bater com um
martelo nas caixas de graxa dos vagões. E o sucessor, depois de uma série de
pingues, perguntou para que era o tal de serviço, e o velho respondeu que isso
nunca lhe tinham dito.
Lembrou-me isso a pergunta que fiz, outro dia, a um escrevente de
cartório, sobre por que a pública-forma era feita por um tabelião e conferida por
outro; será que não basta a jura, sinal público, rasa e não sei o que mais de um
deles? E ele não soube responder-me, de modo que tendo a pensar que vem
das ordenações filipinas, ou das manuelinas, ou talvez mesmo do tempo dos
afonsinhos.
E acho que vem desse tempo o modo de escreverem os escreventes as
escrituras. Começa com data e depois diz que “compareceram perante mim
tabelião, em meu cartório,” as partes, que geralmente recebem o nome de
primeiro outorgante e reciprocamente outorgado, e segundo outorgante e
reciprocamente outorgado. E, se isso não me fosse encrencar com o juiz dos
registros públicos, talvez fosse dizer outra coisa do que vou dizer agora, mas
prefiro lembrar uma tia que sempre pergunta às crianças se o que dizem é
verdade verdadeira ou se é potoca. E, no caso, acho que é potoca. Ou seja, são
todos uns potoqueiros.
Página 4 de 27
O dia que derem uma incerta em todos juntos e pedirem para ver
todos os livros, vão descobrir que metade está fora para pegar assinatura de
alguém. Portanto, não foi no cartório, nem perante o dito cujo. Mas eu
pessoalmente não acho nenhum mal nisso; acho mal dizer uma coisa e fazer
outra. Se a lei é essa, então é preferível mudá-la, porque não acredito que vão
conseguir arrastar uma porção de gente que assina escritura, assim do tipo de
diretor de banco, até a porta do cartório. O que vai arrastado mesmo é o livro.
Agora, quanto ao outorgado, passei uma noite dessas, meio de insônia,
procurando a palavra no Código Civil, cuja fácil leitura recomendo. Hoje
entendo muito bem por que a praça se chama Clóvis. Imaginem se Clóvis
tivesse escrito assim o artigo 1.131:
Art. 1.131. Não obstante o prazo ajustado para o pagamento, se antes
da tradição o segundo outorgante e reciprocamente outorgado cair em
insolvência, poderá o primeiro outorgante e reciprocamente outorgado
sobrestar na entrega da coisa, até que o segundo outorgante e reciprocamente
outorgado lhe dê caução de pagar no tempo ajustado.
Acho que é em Uma noite na ópera que Grouxo Marx fala em party of
the first part and party of the second part e assim por diante, o que mostra que
nas plagas de lá as coisas eram semelhantes.
Eu, se fosse redator de escritura, daria nomes aos bois, tipo José e
João, ou diria vendedor, comprador, et cetera, não diria que compareceram,
quando nem chegaram perto, não diria que disseram, quando não disseram, e
muito menos cada um por sua vez.
Por que não escrever simplesmente as condições do negócio e assinar?
Em baixo, é claro.
Sabem por que eu acho que escrevem isso tudo? Porque antigamente
ganhavam por linha, ou seja, uma alíquota específica, então interessava esticar
o texto o mais possível. Mas depois inventaram a alíquota ad valorem, e não
seria muito mais eficiente escrever menos? O Brasil não tem pressa, apud
Beltrão?
P.S. Prossimamente su questo schermo: Como redigir ata de
assembléia de sociedade anônima, dizendo que compareceu fulano, e elogiou
seu antecessor, quando na verdade ele estava na Avenue Foch, assinando a
escritura do apartamento da Renata.”
Página 5 de 27
Com mínimos reparos, subscrevo ainda hoje o que - esbanjando
sutileza e fina ironia - escreveu o lúcido Prof. ERNST MUHR. E aproveito o
ensejo para expressar a satisfação de ter lido, quinze anos depois, em encarte
especial do JORNAL DO NOTÁRIO de abril/98, editado pelo Colégio Notarial do
Brasil – Seção de São Paulo, a valiosa contribuição do notário JOSÉ CARLOS
ALVES sob o título “Os erros mais comuns na redação de uma escritura
pública”, mostrando várias paisagens do caminho das pedras a percorrer no
itinerário de superação dessa viciada velharia redacional que encaverna a
atividade tabelioa no Brasil.
Iguais e outras paisagens começo a percorrer agora, seguindo este
itinerário: primeiro, as qualidades da redação técnico-jurídica; depois, a
estruturação da escritura pública; e, por último, alguns de seus muitos
desatinos.
1) QUALIDADES DA REDAÇÃO TÉCNICO-JURÍDICA
São os atributos de qualquer redação, especialmente a que se faz em
linguagem instrumental, a saber: a clareza, a concisão e a correção, acrescidas,
na prática de profissional do Direito, da precisão técnico-jurídica.
1.1) CLAREZA
Este é o ponto de partida: expressar a idéia de maneira cristalina, ao
alcance do entendimento comum das pessoas, mas sem concessões à
linguagem popular (cuja primazia é na comunicação oral) e privilegiando as
construções em ordem direta e em períodos curtos.
1.2) CONCISÃO
Em seguida, perseguir o uso das palavras indispensáveis à expressão
do pensamento, evitando-se adjetivações, adverbiações e frases explicativas
que sobram. Por exemplo: “vendedor”, em vez de “outorgante vendedor”;
“comprador”, em vez de “outorgado comprador”; “primeiro permutante”, em
vez de “primeiro outorgante permutante e reciprocamente outorgado”;
“segundo permutante”, em vez de “segundo outorgante permutante e
reciprocamente outorgado”; “vende”, em vez de “vende, como de fato e
definitivamente vendido tem, por esta escritura e na melhor forma de direito”;
“que se desfará a venda”, em vez de “que fica ainda estipulado expressamente
neste ato que se desfará a venda”; etc.
A linguagem literária, em que têm lugar a criatividade, o efeito que
impressiona, a licença poética, as conotações da subjetividade, as variações, os
Página 6 de 27
mistérios da dubiedade e os sentidos figurados, ela não se prende
necessariamente a compromisso com a concisão, embora tenha sido um
romancista mundialmente consagrado como o norte-americano ERNEST
HEMINGWAY que aconselhara aos escritores ir direto ao assunto e cortar o
supérfluo (stick in the point and cut everything else), ao passo que nosso poeta
maior, o mineiro itabirano CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, praticara seu
ofício na convicção manifesta de que a arte de escrever consiste em reduzir
palavras.
Quanto à linguagem instrumental, esta sim há de primar pela
objetividade, pela dispensa de ornamentos e, no melhor proveito das lições de
HEMINGWAY e de DRUMMOND, pelo enxugamento do texto.
1.3) CORREÇÃO
Ademais, estar sempre atento à observância das regras gramaticais do
idioma nacional, mas sem a preocupação de preciosismos de estilo ou de
linguagem e com a atenção voltada para a simplicidade na estrutura da frase.
Aqui se aplica a sabedoria imorredoura de CONFÚNCIO, manifestada há dois
milênios e meio, quando ensinava, como se estivesse dirigindo-se aos
descuidados notários brasileiros de hoje:
“Se a linguagem não for correta, o que se diz não é o que se pretende
dizer;
se o que se diz não é o que se pretende dizer, o que deve ser feito
deixa de ser feito;
se o que deve ser feito deixa de ser feito, a Moral e as Artes decaem, a
Justiça se desbarata, as pessoas ficam entregues ao desamparo e à confusão.
Não pode, portanto, haver arbitrariedade no que se diz. É isto que
importa, acima de tudo.” (Apud LUÍS CARLOS DE PORTILHO, escritor membro
da Academia Mineira de Letras, in Golpes e Revoluções, ponto final?, pág. 170).
1.4) PRECISÃO TÉCNICO-JURÍDICA
Por último e considerando apenas as quatro qualidades mais
significativas, buscar sempre o emprego do termo adequado à expressão da
idéia, de acordo com o vocabulário assente na técnica jurídica, mesmo
consciente de que a terminologia especializada não é ordinariamente do
conhecimento das pessoas leigas, mas sabendo que está ao alcance de sua
compreensão, mediante consulta aos dicionários, às enciclopédias ou aos
profissionais do ramo.
Página 7 de 27
Exemplo comprometedor de falta de precisão técnico-jurídica no
tabelionato de notas é designar a escritura pública de procuração como
“procuração bastante”, seguida da nomeação do outorgado como “procurador
bastante” e arrematada com a concessão de “poderes bastantes”. Ora, para o
notário que lavra a procuração, ela jamais é bastante, do mesmo modo que o
procurador nunca é bastante nem o elenco de poderes é bastante, porque o
qualificativo “bastante” implica juízo de valor que só pode ser feito pela pessoa
a quem a procuração seja apresentada com o fito de produzir efeitos. Logo, um
tabelião de notas pode lavrar uma escritura pública de procuração com amplos
poderes de administrar bens, a qual será considerada bastante pelo locatário
que, com o procurador, este em nome do proprietário outorgante, ajusta um
contrato de locação; mas não será considerada bastante e há de ser recusada
pelo tabelião a quem o procurador a apresenta com a finalidade de representar
o vendedor na alienação de seu imóvel.
Também configura defeito técnico-jurídico designar o “vendedor” como
“outorgante vendedor” e o “comprador” como “outorgado comprador”. Pois a
compra e venda é contrato comutativo, o que significa haver equivalência de
prestação e contraprestação, ou seja, um entrega a coisa e recebe o preço
correspondente, enquanto o outro recebe a coisa e paga o preço respectivo, de
modo que o patrimônio de cada um não se altera, apenas mudam de posição
seus componentes (coisa e dinheiro). Assim, na compra e venda,
diferentemente da doação pura, não há uma parte em postura ativa
(“outorgante”) e outra em postura passiva (“outorgado”): a rigor, ambos são
“outorgantes”, o que se dispensa de explicitar, pois as palavras “vendedor” e
“comprador” já dizem tudo em sua concisão já recomendada.
2) ESTRUTURAÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA
Praxistas notariais brasileiros já ensaiaram uma estruturação para a
escritura pública, a partir dos modelos em uso, porém praticamente voltados à
formulação da escritura de compra e venda, dado o seu predomínio na
atividade tabelioa.
O consagrado jurista cearense e também notarialista CLÁUDIO
MARTINS, em seu Direito notarial: teoria e técnica, lá pelos idos de 1974,
procurou dar consistência a esses ensaios de estruturação (pág. 122) e é a
partir dele que apresento e explicito meu esquema na expectativa de fazê-lo
alcançar a maior abrangência possível (com ressalva apenas quanto à escritura
pública de procuração, por sua peculiar simplicidade de contrato preparatório ou
habilitante). A meu ver, a escritura pública pode ser estruturada em se
Página 8 de 27
considerando três partes: preâmbulo, núcleo e encerramento, com suas
respectivas subdivisões.
2.1) PREÂMBULO
2.1.1) Ementa
Nome jurídico e simples referência aos participantes do negócio
jurídico.
2.1.2) Data
Momento (dia, mês e ano, às vezes também hora) de realização da
escritura pública (art. 134, § 1º, a, CCiv/1916; art. 215, § 1º, I, CCiv/2002),
com o atributo de certeza que falta ao instrumento particular (art. 370 CPC).
2.1.3) Lugar
Serventia notarial, com indicação de endereço, Distrito, Município,
Comarca, Estado-membro e Federação onde se realiza a escritura (art. 134, §
1º, a, CCiv/1916; art. 215, § 1º, I, CCiv 2002), também com o atributo de
certeza, uma vez respeitada a competência territorial do tabelião de notas (Lei
Federal nº 8.935/94, art. 9º).
2.1.4) Nomeação dos participantes e seus dados pessoais
a) Tratando-se de pessoa natural: nome, nacionalidade, estado civil,
profissão, endereço, lugar do domicílio, número do documento de
identidade e número de inscrição no CPF, indicando, ainda, quando
necessário, o regime de bens do casamento, o nome do cônjuge, a
filiação, a naturalidade e a data de nascimento ou a idade (art. 134, §
1º, c, CCiv/1916; art. 215, § 1º, III, CCiv/2002).
b) Com referência à pessoa jurídica (no que são omissos tanto o
código velho quanto o novo): nome, endereço, lugar da sede social,
número de inscrição no CNPJ, data e número de registro do ato
constitutivo, nome(s) de seu(s) representante(s) com indicação de
nacionalidade, estado civil, profissão, endereço, lugar do domicílio,
número do documento de identidade e número de inscrição no CPF.
c) Fé pública notarial de individualização
Reconhecimento da identidade das pessoas naturais comparecentes,
da legitimidade da representação das pessoas naturais e das pessoas jurídicas
participantes, assim como da capacidade das partes e dos demais