8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
1/83
Texto de Teatro
O TARTUFO(Le Tartuffe)
Molire(Jean-Baptiste Poquelin)
Personagens:
SENHORA PERNELLE, Me de Orgon
ORGON, marido de Elmire
ELMIRE, mulher de OrgonDAMIS, filho de Orgon
MARIANE,filha de Orgon e apaixonada de Valre
VALRE, apaixonado de Mariane
CLANTE, cunhado de Orgon
TARTUFO, (2) falso devoto
DORINE, dama de companhia de Mariane
O SENHOR LOYAL, sargentoFLIPOTE, criada da senhora Pernelle
A cena se passa em Paris.
ATO I
Cena I
A Senhora Pernelle e Flipote, (3) sua criada, Elmire, Mariane, Dorine, (4) Damis,
Clante.
SENHORA PERNELLE
Vamos, Flipote, vamos, quero livrar-me deles.
ELMIRE
A senhora anda to depressa que mal posso acompanh-la.
SENHORA PERNELLE
Deixe, minha nora, deixe-me, no continue: de cerimnias que no tenho ne-
cessidade.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
2/83
2
ELMIRE
Estou somente pagando o que lhe devo. Mas, minha me, que motivo a fez deixar
esta casa to depressa?
SENHORA PERNELLE
que no suporto mais isso. Ningum se preocupa em agradar-me. isso mes-mo, deixo sua casa escandalizada: contrariam-me em todas as observaes, no
respeitam nada, cada qual fala mais alto; parece at a casa da sogra!
DORINE
Se...
SENHORA PERNELLE
Voc minha cara, uma dama de companhia (5) bastante impertinente e tem a
lngua um tanto solta: quer dar opinio em tudo.
DAMIS
Mas...
SENHORA PERNELLE
Voc um tolo perfeito, sou eu mesma quem lho diz, eu que sou sua av; e j
disse cem vezes ao meu filho, seu pai, que voc est tomando ares desavergo-
nhados e predisse que s haveria de lhe causar desgostos.
MARIANE
Eu acho...SENHORA PERNELLE
Deus meu, como irm dele, voc finge a discreta e com essa aparente doura
incapaz de ferir algum; mas no h, como dizem, gua pior do que a gua para-
da e voc leva s escondidas uma vida que no tolero.
ELMIRE
Mas, minha me...
SENHORA PERNELLEMinha nora, no me leve a mal, mas seu comportamento pssimo, em tudo; vo-
c deveria pr-lhes um bom exemplo diante dos olhos; a defunta me deles (6)
agia muito melhor. Voc gastadeira; e esse estado (7) me choca; no posso
v-la vestida como se fosse uma princesa. Aquela que s quer agradar ao marido,
minha nora, no necessita de tantos atavios.
CLANTE
Mas, senhora, afinal de contas...
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
3/83
3
SENHORA PERNELLE
Quanto ao senhor seu irmo, eu o aprecio muito, estimo-o e reverencio-o; mas
enfim, se eu fosse meu filho, seu esposo, lhe pediria, com insistncia, que no
pusesse mais os ps em nossa casa. O senhor nos importuna, sem cessar, com
certas mximas de bem viver, que gente honesta no deveria nunca seguir. Falo-
lhe com certa franqueza; mas esse o meu feitio e no meo minhas palavras
para dizer o que me vai na alma.
DAMIS
O tal senhor Tartufo bem feliz, sem dvida...
SENHORA PERNELLE
um homem de bem, que deve escutar; e no posso admitir, sem ficar irritada,
que um maluco como voc se meta a critic-lo.
DAMIS
O qu? Como admitiria eu que um crtico beato viesse exercer aqui dentro um
poder tirnico, e, alm disso, que no pudssemos nos divertir como bem quiss-
semos, caso esse gro-senhor no nos permitisse?
DORINE
Se tivermos de escut-lo e seguir-lhe as mximas, nada se pode fazer sem que
se cometam crimes, pois esse crtico zeloso se mete a controlar tudo.
SENHORA PERNELLE
E tudo o que controla est muito com controlado. ao caminho do Cu que pre-
tende conduzi-los e meu filho devia induzir a am-lo.
DAMIS
Ora, vamos, minha me, no h pai e nem ningum que possa obrigar-me a que-
rer bem a esse sujeito; trairia meus sentimentos, se falasse de outro modo; a todo
momento fico encolerizado com sua maneira de agir e estou prevendo que a coi-
sa no ficar por a; e sei que vou ter que me haver com um grosseiro como es-
se.DORINE
verdade, coisa que escandaliza ver um desconhecido dar-se ares de patro
aqui dentro; um miservel que, quando chegou aqui, nem mesmo sapatos tinha e
cuja roupa no valia seis vintns; imagine chegar ao ponto de no reconhecer o
que , ser do contra em tudo e bancar o senhor.
SENHORA PERNELLE
Que Deus tenha piedade de mim. Tudo iria muito melhor se tudo fosse governado
por suas piedosas ordens.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
4/83
4
DORINE
Na sua imaginao passa por santo, mas, acredite-me, toda a sua maneira de ser
no passa de hipocrisia.
SENHORA PERNELLE
Veja s que lngua!DORINE
S confiaria nele e no tal Laurent com uma boa garantia.
SENHORA PERNELLE
Ignoro, no fundo, o que o criado possa ser; mas homem de bem garanto que o
patro o . Vocs lhe querem mal e o repelem s porque ele diz a verdade a to-
dos vocs. O corao se lhe irrita contra o pecado, e o que o guia somente o in-
teresse do Cu.
DORINE
Est bem. Mas por que, principalmente de certo tempo para c, no quer mais to-
lerar que ningum freqente a casa? No que pode oferecer ao Cu uma visita ho-
nesta, para ele fazer um barulho que nos arrebenta os miolos? Querem que eu
me explique a esse respeito c entre ns? Acho que ele tem cimes da senhora.
SENHORA PERNELLE
Cale-se e pense no que est dizendo. No ele somente quem reprova tais visi-
tas. Todo o rebulio que acompanha essa gente que vocs freqentam, as carru-agens continuamente paradas diante da porta, e o aglomerado barulhento de tan-
tos lacaios, fazem um vozerio bastante incmodo, para toda a vizinhana. Quero
crer que no fundo no h nada de mais, mas afinal de contas falam, e isso no fi-
ca bem.
CLANTE
Ora essa, senhora, quer impedir que se converse? Seria muito desagradvel se,
na vida, tivssemos de renunciar aos melhores amigos por causa dos tolos falat-
rios em que a gente pode ficar envolvida. E, ainda mesmo que se pudesse con-seguir isso, a senhora pensa que se poderia obrigar todo o mundo a calar-se?
No h como garantir-se contra calnia. No nos preocupemos com os mexericos
tolos; esforcemo-nos por viver em completa inocncia, dando aos faladores plana
liberdade.
DORINE
No ser Daphn e o maridinho dela que falam mal de ns? Aqueles cuja conduta
mais se presta ao ridculo so sempre os que se metem a falar mal dos outros.
Esto sempre prontos a observar o mais leve indcio de simpatia para com al-gum, espalham a notcia com o maior aodamento, desvirtuando as coisas ao
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
5/83
5
seu talante e apresentando-as como querem que sejam vistas. Julgam poder jus-
tificar as prprias aes neste mundo, dando s dos outros o colorido que lhes
convm, e procuram inocentar as prprias intrigas com a ilusria esperana de
parecerem ntegros; ou ento fazer recair alhures algumas migalhas esparsas
dessa reprovao pblica, que os sobrecarrega em demasia.
SENHORA PERNELLE
Todos esses raciocnios nada tm a ver com o assunto. Todos sabem que Orante
leva vida exemplar. Todos os seus cuidados convergem para o Cu; e eu soube,
por certas pessoas, que ela condena extremamente a vida que se leva nesta ca-
sa.
DORINE
O exemplo admirvel e esta dama boa! verdade que vive como pessoa aus-
tera, mas foi a idade que lhe meteu na alma esse zelo ardente e sabe-se que pudica contra a prpria vontade. Enquanto pde atrair as homenagens de muitos
coraes, gozou de todas as vantagens de que dispunha; vendo, porm, diminuir
o brilho de seus olhos, prope-se renunciar ao mundo que a abandona, masca-
rando a debilidade de seus atrativos j gastos com o vu pomposo de uma gran-
de sabedoria. So essas as vicissitudes das coquetes do tempo. Para elas duro
ver os galantes baterem em retirada. Em tal abandono, a sombria inquietao no
lhes concede outro recurso seno o de representar o papel de mulher pudica; e a
severidade dessas mulheres de bem tudo censura e nada perdoa; censuram a-
cerbamente a vida de qualquer um, no por caridade, mas impelidas pela inveja,
que no poderia permitir que outra gozasse dos prazeres, cujos desejos o declnio
da idade j extinguiu. (8)
SENHORA PERNELLE
A esto os contos da carochinha em que voc se compraz. Minha nora, a gente
em sua casa sente-se obrigada a calar a boca, pois a dona no se cansa de taga-
relar o dia inteiro. Mas, afinal de contas, tambm pretendo discorrer por minha
vez. Devo dizer-lhe que meu filho no fez nada de mais sensato do que recolherna prpria casa to devoto personagem; que o Cu aqui o enviou, por necessida-
de, para conduzir ao bom caminho o esprito transviado de todos; vocs devem
ouvi-lo para a prpria salvao e ele nada censura que no se deva censurar. Es-
tas visitas, estes bailes, estas conversas so invenes do esprito maligno. Nun-
ca se ouvem palavras piedosas; so assuntos ociosos, canes e frioleiras; quase
sempre o prximo o mais visado e l se fala mal de um terceiro tanto quanto de
um quarto. Enfim, as pessoas sensatas ficam at tontas com a confuso dessas
reunies. Num abrir e fechar de olhos, l se fazem mil mexericos. E como outro
dia disse muito bem um doutor, verdadeiramente a torre de Babel, todo o mun-
do tagarela a propsito de tudo e para contar a histria a que o levou essa ques-
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
6/83
6
to... (9) Mas no que aquele senhor j est rindo com ar de mofa! Procure ou-
tros palhaos que o faam rir. E sem mais... Adeus, minha nora; no quero dizer
mais nada. Fiquem sabendo que reduzirei metade minhas visitas a esta casa e
decorrer bom tempo antes que aqui ponha os ps novamente. (Dando uma bofe-
tada em Flipote) Vamos, voc com esse ar embasbacado, a, sonhando! Por
Deus! Hei de dar-lhe uma lio. Vamos, porcalhona, ande.
Cena II
Clante, Dorine
CLANTE
No quero ir l, receio que ela ainda venha a brigar comigo. Esta velha... (10)
DORINE
Ah! Decerto, pena que ela no o oua fazer uso de tal linguagem. Dir-lhe-ia que
o acha engraado e que no tem idade para merecer semelhante tratamento.
CLANTE
Como se aborreceu conosco por um nada! E como parece enfeitiada por seu
Tartufo!
DORINE
Oh! Para falar a verdade, tudo isso nada em comparao com o filho, se o ti-
vesse visto, o senhor diria: bem pior! Tinham-no em conta de homem sensatopela coragem que demonstrou servindo o prncipe; mas ficou como que embotado
desde que se lhe meteu na cabea o tal Tartufo; (11) chama-o de irmo, e dedica-
lhe maior estima do que ao filho, filha ou mulher. , dos seus segredos, o nico
confidente e o diretor prudente de todos os seus atos; anima-o, abraa-o, e creio
que por uma amante, no se teria mais ternura; quer v-lo sentado mesa no lu-
gar mais importante; com prazer que o v comer por seis pessoas; os melhores
pedaos obriga-nos a ceder-lhe e se d um arroto diz-lhe: Deus o ajude!Enfim,
est doido por ele; o seu tudo, seu heri; admira-o a propsito de tudo, cita-oem todas as ocasies; parecem-lhe milagres seus atos mais insignificantes e to-
das as palavras por ele pronunciadas so o mesmo que orculos. O tal, que co-
nhece bem sua vitima e que dela quer aproveitar-se, possui a arte de ofusc-la
com falsas aparncias; com as suas beatices arranca-lhe dinheiro a todo instante
e critica-nos a todos como igual. At mesmo o tal bobo que lhe serve de criado
mete-se a dar-nos lies; com olhares terrveis vem fazer-nos sermes e joga fora
as nossas fitas, nosso ruge e nossas moscas. No outro dia, o traidor rasgou com
as prprias mos um leno (12) que achou num volume de Fleur ds Saints (13)dizendo que misturvamos, - oh crime hediondo!adornos do diabo com a santi-
dade.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
7/83
7
Cena III
Elmire, Mariane, Damis, Clante, Dorine
ELMIRE
Voc deve dar-se por feliz por no ter chegado enquanto ela nos fazia um sermo
na porta da rua. Mas vi meu marido! Como ele no me viu, quero ir para cima es-
per-lo. (14)
CLANTE
Quanto a mim, espero-o aqui, pois no pretendo divertir-me tanto e vou somente
dar-lhe bom dia.
DAMIS
Diga-lhe alguma coisa acerca do casamento de minha irm. Suspeito que Tartufose ope sua realizao, e obriga meu pai a dar grandes rodeios; e voc no ig-
nora o interesse que tenho nesse caso. Se o mesmo amor inflama minha irm e
Valre, voc bem sabe que a irm desse amigo me cara; e se fosse preciso...
DORINE
L vem ele.
Cena IV (15)
Orgon, Cleante, Dorine
ORGON
Ah! Meu irmo, bom dia.
CLANTE
J estava de sada e alegro-me em v-lo de volta. Nessa poca, os campos no
esto muito floridos.
ORGON
Dorine... Meu cunhado, esperem por favor: para me aliviar a preocupao, deixemque me informe das novidades da casa. Nesses dois dias como foi tudo por aqui?
Que que fizeram? Como vo todos?
DORINE
A senhora anteontem teve febre at de tarde com uma dor de cabea difcil de
conceber.
ORGON
E Tartufo?
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
8/83
8
DORINE
Tartufo? Passa admiravelmente. Gordo e corpulento, tez viosa e boca vermelha.
ORGON
Pobre homem!
DORINE tarde, ela ficou muito enjoada e, no jantar, nada pde provar, to forte a dor de
cabea que ainda a atacava.
ORGON
E Tartufo?
DORINE
Ceou, sozinho diante dela, devorando, mui devotamente, duas perdizes e meio
guisado de perna de carneiro.ORGON
Pobre homem!
DORINE
Ela passou a noite inteira sem poder pregar olho; uns calores que sentia impedi-
ram-na de cochilar e foi preciso ficar perto dela at o amanhecer.
ORGON
E Tartufo?
DORINE
Ao sair da mesa, impelido por agradvel sono, passou para o quarto e meteu-se
logo na cama bem quente, onde, sem se mexer, dormiu at o dia seguinte.
ORGON
Pobre homem!
DORINE
Afinal, convencida pelo que dissemos, ela resolveu permitir a sangria, o que a ali-
viou.
ORGON
E Tartufo?
DORINE
Recobrou coragem como convm, e fortificando a alma contra todos os males,
para compensar o sangue que a senhora perdeu, bebeu, no almoo, quatro bons
copos de vinho.
ORGONPobre homem! (16)
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
9/83
9
DORINE
Enfim, ambos gozam de boa sade; e vou antecipadamente anunciar senhora,
o interesse que demonstra pela sua convalescena.
Cena VOrgon, Clante
CLANTE
Meu irmo, ela rir de voc no seu nariz; e sem pretender irrit-lo, devo dizer-lhe
com toda franqueza, que o faz com justia. J se ouviu falar do capricho seme-
lhante? E pode-se hoje em dia conceber que um homem tenha tal encanto que o
faa esquecer tudo o mais, e que depois de ter ele remediado, em sua casa, a
prpria misria, voc chegue ao ponto de...
ORGON
Alto l! Meu cunhado: voc no conhece o homem de quem fala.
CLANTE
No conheo, se assim o quer; mas, enfim, para saber que espcie de homem
pode ser...
ORGON
Meu irmo, voc ficaria encantado se o conhecesse e seu encantamento nunca
mais acabaria. um homem... que... ah! um homem... enfim um homem! (17) queage conforme fala, goza de paz profunda e como que da estrumeira (18) olha pa-
ra todo o mundo. Sinto-me outro depois que converso com ele. Ele me ensina a
no ter afeio por nada e afasta minha alma de todas as amizades; e eu veria
morrer irmo, filhos, me, esposa, sem me preocupar a mnima com isto.
CLANTE
Que sentimentos humanos, meu irmo!
ORGON
Ah! se voc tivesse visto como o encontrei, passaria a mostrar-lhe a mesma ami-
zade que lhe dedico. Vinha diariamente igreja, com ar submisso, bem minha
frente, pr-se de joelhos. Chamava a ateno de todos pelo ardor com que dirigia
ao Cu suas preces; suspirava com enormes transportes e beijava humildemente
o cho a todo instante; e quando eu saa, passava-me depressa frente para me
oferecer gua benta. Tomando conhecimento, pelo criado que em tudo o imitava,
da indigncia em que vivia e sabedor do tipo de pessoa que ele era, eu dava-lhe
donativos; mas, com modstia, pretendia sempre devolver-me uma parte. de-
mais, dizia-me, mesmo a metade demasiado; no mereo que se compadeade mim. E quando eu recusava receber de volta ametade, na minha presena
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
10/83
10
distribua-a aos pobres. Enfim, o Cu fez com que eu o trouxesse para casa, e
desde ento aqui tudo parece prosperar. Veja que tudo ele censura e toma, para
minha honra, interesse extremo, mesmo por minha mulher; avisa-me acerca das
pessoas que lhe lanam olhares doces (19) e se mostra seis vezes mais ciumento
do que eu mesmo. Mas voc no poderia acreditar at onde vai seu zelo; para ele
pecado a menor bagatela; um quase nada suficiente para escandaliz-lo; ou-
tro dia, chegou ao ponto de acusar-se de ter apanhado uma pulga enquanto reza-
va e de t-la matado com clera exagerada. (20)
CLANTE
Com os diabos! Voc est louco, meu irmo. Est zombando de mim com tais his-
trias? E que pretende voc com todos esses gracejos?
ORGON
Meu irmo, esse discurso cheira a libertinagem: voc est corrompido e, como lhemostrei mais de dez vezes, ainda vai arranjar complicao.
CLANTE
assim que se exprimem os de sua laia: querem que todos fiquem cegos como
eles. ser libertino ter olhos que enxerguem; e quem no adora vs simulaes
no tem respeito nem f pelo que sagrado. Ora bolas! Todos os seus discursos
no me metem medo: sei como falo e o Cu v meu corao, e de todos esses
amaneirados, no me considero escravo. Acontece com os falsos devotos o que
se d com os falsos bravos; como no v aonde a honra os leva, os bravos ver-dadeiros no so os que fazem muito barulho, nem os devotos bons e verdadei-
ros, cujas pegadas devem ser seguidas, so os que fazem tanto alarde. Mas co-
mo? Voc no far qualquer distino entre a hipocrisia e a devoo? Voc trata
a ambas com a mesma linguagem e presta as mesmas honras mscara e ao
rosto, iguala o artifcio sinceridade, confunde a aparncia com a verdade, estima
a sombra tanto quanto a pessoa e o dinheiro falso tanto quanto o verdadeiro? Es-
tranha a maioria dos homens! Nunca so vistos em suas justas propores; a
razo para eles tem limites muito estreitos; ultrapassam esses limites e cada ins-tante e o que h de mais nobre estragam-no muitas vezes por quererem exager-
lo e lev-lo muito avante. Que isso lhe seja dito de passagem, meu cunhado.
ORGON
Sim, sem dvida, voc um doutor que merece ser reverenciado; todo o saber do
mundo concentrou-se em voc. Voc o nico sbio, o nico esclarecido, um o-
rculo, um Cato no sculo em que vivemos. E, perto de voc, todos os homens
so uns tolos.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
11/83
11
CLANTE
Meu irmo, no me julgo um doutor reverenciado, nem todo o saber do mundo
concentrou-se em mim. Mas, em uma palavra, sei que toda a minha cincia con-
siste em distinguir o falso do verdadeiro. E como no conheo nenhuma espcie
de heri que merea mais louvor do que os devotos perfeitos, e que nada no
mundo existe de mais nobre e mais belo que o santo fervor de zelo verdadeiro,
assim tambm no sei de nada que seja mais odioso do que a aparncia emplas-
trada de um zelo especioso, do que esses rematados charlates, do que esses
devotos de praa pblica, (21) cuja carantonha sacrlega e enganadora ilude im-
punemente e zomba vontade daquilo que os mortais tm de mais santo e sa-
grado; essas pessoas, por terem a alma submissa aos interesses, fazem da de-
voo profisso e mercadoria, pretendendo adquirir crdito e dignidade s custas
de falsas piscadelas e entusiasmos dissimulados; essas pessoas, afirmo, que se
vem correr, com ardor pouco comum, ao encalo da fortuna pelo caminho do
Cu, que, ardente e suplicantes, rezam diariamente e pregam o retiro no meio da
prpria corte, que sabem acomodar o zelo aos vcios, so espertas, vingativas,
sem f, cheias de artifcio e, para perder algum, mascaram insolentemente o or-
gulhoso ressentimento so tantos mais perigosos, porquanto lanam mo de ar-
mas que todos temem e a paixo que os impulsiona, e que todos aprovamos, le-
va-os a querer assassinar-nos com um ferro sagrado. Essas pessoas de carter
dbio vem por toda parte; mas os devotos de corao so fceis de reconhecer.
Nosso sculo, meu irmo, nos expe aos olhos alguns que podem nos servir degloriosos exemplos: olhe Ariston, olhe Priandre, Oronte, Alcidames, Polydore,
Clitandre, no h quem possa contestar-lhes tal ttulo; no so absolutamente
fanfarres de virtude; neles so se v esse fasto insuportvel e a devoo deles
humana, tratvel; (22) no se metem a censurar-nos todas as aes. Acham
que orgulho demasiado a arrogncia das palavras, com suas aes que procu-
ram corrigir as nossas. Para eles a aparncia do mal no tem grande importncia
e so levados sempre a pensar bem do prximo. Nada de intrigas, nada de con-
luios com eles. Sua nica preocupao procurar viver bem; nunca se encarni-am contra um pecador qualquer; odeiam somente o pecado e no pretendem
esposar, com zelo extremo, os interesses do Cu mais do que o prprio Cu. Eis,
minha gente, como devemos proceder a exemplo enfim que nos devemos propor.
O seu homem, para dizer a verdade, no desse tipo: s por muita boa f voc
lhe gaba o zelo, mas acho que est deslumbrado por brilho falso.
ORGON
Meu caro cunhado, j disse tudo?
CLANTESim.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
12/83
12
ORGON
Um seu criado. (Faz meno de ir-se.)
CLANTE
Por favor, uma palavra s, meu irmo. Vamos esquecer esse assunto. Sabe que
Valre tem a sua palavra de que ser seu genro.ORGON
Sei.
CLANTE
Voc estava para marcar o dia de to agradvel enlace.
ORGON
verdade
CLANTEPor que, ento, adiar a festa?
ORGON
No sei,
CLANTE
Ser que voc tem outra idia na cabea?
ORGON
TalvezCLANTE
Quer faltar palavra dada?
ORGON
No digo isso.
CLANTE
No existe obstculo, parece-me, que impea o prometido.
ORGONConforme.
CLANTE
Sero precisos tantos rodeios para dizer uma palavra? Valre pediu-me que o vi-
sitasse para falar a respeito.
ORGON
Que o Cu seja louvado!
CLANTE
Mas, afinal, que devo dizer-lhe?
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
13/83
13
ORGON
O que voc quiser.
CLANTE
Mas falemos s claras. Valre tem a palavra que voc lhe deu: vai cumpri-la ou
no?ORGON
Adeus!
CLANTE
Estou pressentindo uma desgraa para o amor de Valre e devo adverti-lo de tu-
do o que se passa.
ATO II
Cena I
Orgon, Mariane
ORGON
Mariane.
MARIANE
Meu pai.
ORGON
Aproxime-se, tenho de falar-lhe em segredo.
MARIANE
Que que voc est procurando?
ORGON(olha para um pequeno gabinete)
Estou vendo se no h algum que possa nos ouvir; pois este pequeno cmodo
(23) se presta a surpresas. Vamos, est tudo bem. Mariane, sempre achei que
voc era dotada de esprito muito dcil e sempre me foi muito cara.
MARIANE
Sou muito reconhecida a esse amor de pai.
ORGON
Muito bem dito, minha filha, e para merec-lo voc deve ter a preocupao de fa-
zer-me a vontade.
MARIANE nisso tambm que deposito minha maior glria.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
14/83
14
ORGON
Muito bem. Que que voc diz do nosso hspede, Tartufo?
MARIANE
Quem, eu?
ORGONSim, voc. Veja bem como vai responder.
MARIANE
Ai de mim! Direi tudo o que o senhor quiser.
ORGON
falar sensatamente. Diga-me, ento, minha filha, que em toda a pessoa dele bri-
lha alto merecimento, que lhe toca o corao e que lhe seria agradvel v-lo tor-
nar-se seu esposo pela minha escolha. Hein?(Mariane recua surpresa.)
MARIANE
Hein?
ORGON
Que ?
MARIANE
Como disse?
ORGON
Como?
MARIANE
Acaso me enganei?
ORGON
Como?
MARIANE
Quem o senhor quer, meu pai, que eu diga que me toca o corao e que me seria
agradvel, por sua escolha, tornar-se meu esposo?
ORGON
Tartufo.
MARIANE
De modo algum, meu pai. Eu lhe juro. Por que fazer-me dizer semelhante impos-
tura?
ORGON
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
15/83
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
16/83
16
ORGON
Digo-lhe...
DORINE
No, por mais que faa, no acreditarei.
ORGONAfinal, minha clera...
DORINE
Pois bem! Vamos acreditar e tanto pior para o senhor. Como? Ser possvel, se-
nhor, que com esse ar de homem sensato e com essa bigodeira pelo meio da ca-
ra, o senhor seja to doido que...
ORGON
Escute: voc tomou aqui dentro certas familiaridades que no me agradam; oque lhe digo, minha cara.
DORINE
Vamos falar sem nos zangar, senhor, eu lhe suplico. O senhor est zombando da
gente quando faz essa conspirao? A sua filha no para o bico de um carola:
ele tem outras coisas em que pensar. E depois, que que lhe traz uma aliana
dessas? A propsito de que, com todos os seus bens, procurar um genro miser-
vel?...
ORGONCale-se. Se nada tem, fique sabendo que por isso que se deve respeit-lo. Sua
misria , sem dvida, uma misria honesta; deve elev-la acima das grandezas,
porquanto, afinal de contas, deixou-se privar de todos os bens pelo descaso das
coisas temporais e por seu grande apego s coisas eternas. Mas meu auxlio po-
der fornecer-lhe os meios de sair do embarao e recobrar os seus bens: so
feudos que se conhecem no pas a justo ttulo e, tal como o vemos, no deixa de
ser um gentil-homem.
DORINESim, ele mesmo quem o diz; e tal vaidade, senhor, no condiz com a piedade.
Quem abraa a inocncia de vida santa no deve gabar tanto o nome e o nasci-
mento, e o humilde processo da devoo mal suporta o esplendor dessa ambio.
Para que esse orgulho?... Mais tais palavras ofendem o senhor: falemos da pes-
soa dele e deixemos de lado a sua nobreza. O senhor entregaria, sem qualquer
preocupao, filha como a sua a um homem como ele? E o senhor no teria de
pensar nas convenincias e prever as conseqncias dessa unio? Saiba que se
arrisca a virtude de uma moa quando se lhe contraria o gosto no casamento; quea inteno de viver honestamente depende das qualidades do marido que se lhe
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
17/83
17
d; e aqueles que, em toda parte, so apontados com o dedo, muitas vezes fa-
zem das prprias mulheres o que se v que elas so. Enfim, bem difcil ser fiel a
certos maridos feitos conforme certo modelo; (25) e quem d prpria filha um
homem que ela odeia fica responsvel perante o Cu das faltas que ela comete.
Pense bem a que perigos o seu plano o expe.
ORGON
Digo-lhe que preciso aprender com ela a viver.
DORINE
Ser-lhe-ia muito melhor seguir minhas lies.
ORGON
No vamos nos divertir mais com essas histrias, minha filha: sei o que lhe con-
vm e sou seu pai. Tinha dado minha palavra a Valre em seu nome; mas alm
de dizerem que tem tendncias para o jogo, tambm alimento suspeitas de que um tanto libertino: e no o vejo freqentar igrejas.
DORINE
O senhor quer que ele v l correndo exatamente na hora em que o senhor vai,
como fazem aqueles que s vo l para se mostrarem?
ORGON
No lhe peo a opinio a tal respeito. Afinal, o outro est nas melhores condies
possveis com o Cu e tal riqueza se revela superior a qualquer outra. Este casa-
mento satisfar todos os seus desejos, voc s encontrar nele douras e praze-
res. Juntos vocs vivero, em uma paixo fiel, como duas verdadeiras crianas,
como dois pombinhos. Nunca chegaro a qualquer discusso desagradvel e vo-
c far dele tudo o que quiser.
DORINE
Ela? S far dele um tolo, eu lhe asseguro.
ORGON
Ora essa! Que palavras!DORINE
Digo que ele j tem a aparncia de tolo e a influncia astral (26) desse sujeito h
de prevalecer sobre qualquer virtude que sua filha tiver.
ORGON
Deixe de me interromper e pense em calar-se, ao invs de meter o bedelho no
que no de sua conta.
DORINE
S falo, senhor, para o seu bem.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
18/83
18
(Ela interrompe sempre no momento em que ele se volta para falar sua filha.)
ORGON
preocupao demais. Cale-se, por favor.
DORINE
Se no gostssemos do senhor...ORGON
No quero que gostem de mim.
DORINE
E eu quero gostar, mesmo que o senhor no queira.
ORGON
Ah!
DORINEA sua honra me cara e no posso tolerar que se v oferecer aos motejos de
qualquer um.
ORGON
Voc no vai se calar?
DORINE
uma inconscincia deix-lo fazer tal aliana.
ORGONVai-se calar, serpente, cujos remoques descarados...?
DORINE
Ah! o senhor devoto e, no entanto, se exalta?
ORGON
Sim, minha bile ferve diante de todas essas parvoces, e decididamente quero
que se cale.
DORINE
Est certo. Mas, mesmo sem dizer palavra, no deixo de pensar.
ORGON
Pense l se quiser, mas aplique seus cuidados (voltando-se para a filha) em no
me falar disso ou: basta. Como homem sensato, pesei maduramente todas as cir-
cunstncias.
DORINE
Arrebento por no poder falar!
(Cala-se quando ele se volta.)
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
19/83
19
ORGON
Sem ser donzelo, Tartufo de tal sorte...
DORINE
Isso mesmo, tem um belo focinho.
ORGONQue mesmo que voc no tenha simpatia nenhuma para com todos os outros do-
tes...
(Volta-se para ela e olha-a de braos cruzados.)
DORINE
Ei-la bem arranjada! Se estivesse no lugar dela, um homem qualquer no me es-
posaria fora impunemente, e havia de mostrar-lhe, logo depois da festa, que
uma mulher tem sempre a vingana mo.
ORGON
Ento no querem dar importncia ao que digo?
DORINE
De que se queixa o senhor? No estou lhe falando, no.
ORGON
Que , ento, que est fazendo?
DORINE
Falo comigo mesma.
ORGON
Muito bem. Para castigar-lhe a extrema insolncia preciso que lhe meta um bo-
feto. (Pe-se em posio de dar-lhe uma bofetada; e Dorine, a cada olhadela
que lhe lana, fica perfilada sem falar.)Minha filha, voc deve aprovar meu proje-
to... Acreditar que o marido... que eu soube escolher... (27) Por que que no fa-
la?
DORINENada tenho a dizer-me.
ORGON
Ainda uma palavrinha.
DORINE
No me agrada.
ORGON
Decerto, eu estava te espiando.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
20/83
20
DORINE
Que tola, palavra!
ORGON
Enfim, minha filha, preciso obedecer, mostrando toda deficincia para a minha
escolha.DORINE(fugindo)
Haveria de achar muita graa se me casasse com tal sujeito.
(Ele quer dar-lhe uma bofetada e no a atinge.)
ORGON
A est com voc, minha filha, uma verdadeira peste, com quem eu no poderia
viver mais sem cair em pecado. Sinto-me agora incapaz de prosseguir: suas pala-
vras insolentes transtornaram-me o esprito, vou tomar um pouco de ar para tran-
qilizar-me!
Cena III
Dorine, Mariane
DORINE
Voc, por acaso, perdeu a lngua e, nisso tudo, preciso representar o seu papel?
Permitir que lhe proponham um projeto insensato, sem repeli-lo ao menos com
uma palavra!MARIANE
Que quer voc que eu faa contra um pai prepotente?
DORINE
O que for preciso para evitar tal ameaa.
MARIANE
Como assim?
DORINEDizer-lhe que um corao no ama por outrem, que voc se casa para voc e no
para ele, que, sendo a maior interessada na questo, a voc, no a ele, que o
marido tem de interessar, e que se o tal Tartufo para ele to encantador, pode
despos-lo sem qualquer impedimento.
MARIANE
Confesso que um pai tem tanto imprio sobre ns, que no tive a coragem de di-
zer-lhe uma palavra.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
21/83
21
DORINE
Vamos raciocinar: Valre demonstrou que gosta de voc; voc gosta dele ou
no?
MARIANE
Ah! como grande a tua injustia para com meu amor, Dorine! para fazer-metal pergunta? J no te abri cem vezes meu corao, e no sabes at onde vai
meu amor por ele?
DORINE
Como saber se o corao falou pela boca, e se mesmo verdade que esse amor
a domina?
MARINE
grande injustia que me faz Dorine, duvidando dela, quando meus verdadeiros
sentimentos voc j conhece to bem.
DORINE
Enfim, voc o ama mesmo?
MARIANE
Sim, com extremo ardor.
DORINE
E, segundo as aparncias, ele tambm a ama?
MARIANE
Acho que sim.
DORINE
E os dois desejam igualmente que o casamento os uma?
MARIANE
Com toda certeza.
DORINE
Que espera, ento, dessa outra unio?
MARIANE
Matar-me se a ela me forarem.
DORINE
Muito bem. A est um recurso em que eu no tinha pensado. Para evitar morrer,
basta j ter morrido! Esse remdio , sem dvida, maravilhoso. Fico danada
quando ouo algum falar nesses termos!
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
22/83
22
MARIANE
Meu Deus! Como voc fica furioso, Dorine! Voc no tem pena dos desgostos
dos outros.
DORINE
No tenho pena de quem s diz tolices e, quando chega a ocasio, amolece co-mo voc.
MARIANE
Mas o que voc quer que eu faa, se sou to tmida?
DORINE
O amor no corao exige firmeza.
MARIANE
Mas no a conservo para o amor de Valre? E no cabe a ele obter-me de meupai?
DORINE
Mas como? Se seu pai um rematado cabeudo, inteiramente nas mos do tal
Tartufo! Se deixa de cumprir a palavra empenhada, deve-se atribuir a culpa a seu
apaixonado?
MARIANE
Mas, recusando abertamente e desprezando s claras, no revelaria eu, com es-
sa escolha, um corao demasiadamente apaixonado? Poderia abandonar, fossequal fosse o meu ardor, o pudor do sexo e o dever de filha? E voc quer que o
meu amor exibido pelo mundo...
DORINE
No, no quero nada. Percebo que voc quer pertencer ao Senhor Tartufo; e,
pensando bem, vejo que no tenho motivos para afast-la de tal unio. Que razo
teria eu de combater essa inclinao? O partido em si mesmo bastante vantajo-
so. O senhor Tartufo! Oh! Oh! No pouco o que se prope? Com certeza o se-
nhor Tartufo, levando tudo em conta, no qualquer tipo -toa de quem no valhaa pena ser cara-metade. Todo o mundo j o coroa de glria; de famlia nobre,
bem apessoado; tem orelhas vermelhas e tez bem viosa: voc h de viver muito
contente com tal marido.
MARIANE
Meu Deus!...
DORINE
Que enorme alegria no lhe encher a alma quando se vir mulher de to belo es-
poso!
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
23/83
23
MARIANE
Ah! por favor, deixe essas palavras e auxilie-me contra esse casamento: pronto,
entregue-me, estou pronta a fazer tudo.
DORINE
No, uma filha deve obedecer ao pai, mesmo que ele queira dar-lhe um macacopor esposo. Sua sorte invejvel: de que voc se queixa? Ir de carro aldeola
dele, que encontrar cheia de tios e primos e voc se divertir muito em entret-
los. Primeiro, voc ser apresentada alta roda; ir visitar, para receber as boas-
vindas, a senhora esposa do bailio e a senhora do juiz eleito; (28) que a faro
sentar-se em simples cadeira-dobradia. (29) L voc poder esperar, no carna-
val, o baile e a orquestra do rei, (30) a saber, duas gaitas de fole e, s vezes, Fa-
gotin (31) e os tteres, se, no entanto, seu esposo...
MARIANEAh! voc me mata. Pense antes em socorrer-me com seus conselhos.
DORINE
Sou uma criada.
MARIANE
Oh! Dorine, por favor...
DORINE
preciso, para castig-la, que esse casamento se realize.MARIANE
Minha boa amiga!
DORINE
No.
MARIANE
Se meus votos declarados...
DORINEDe modo algum: Tartufo o que lhe convm e voc ter de suport-lo!
MARIANE
Voc sabe que sempre me confiei a voc: faz-me...
DORINE
No, voc h de ser mesmo tartuficada.
MARIANE
Pois bem! Desde que minha sorte no pode comov-la, deixe-me doravante en-
tregue ao meu desespero: pedirei ajuda a ele e conheo bem o remdio infalvel
aos meus males.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
24/83
24
(Quer ir-se embora.)
DORINE
Eh! Volte. Esqueo minha raiva. Apesar de tudo, preciso ter pena de voc,
MARIANE
Veja bem, se me expuserem a esse cruel martrio, juro-lhe, Dorine, terei de mor-rer.
DORINE
No se atormente mais. Com jeito pode-se impedir... Mas a est Valre, seu a-
paixonado.
Cena IV
Valre, Mariane, DorineVALRE
Mariane, acabam de me dar uma notcia que eu no sabia e que , sem dvida,
muito interessante.
MARIANE
Qual?
VALRE
Que voc vai desposar Tartufo.
MARIANE
certo que meu pai ps esse plano na cabea.
VALRE
Seu pai, Mariane...
MARIANE
Mudou de opinio: ele mesmo acaba de mo dizer.
VALRE
Como? srio?
MARIANE
Sim, srio. Declarou-se abertamente por esse casamento.
VALRE
E qual partido que tomar diante disso, senhora?
MARIANE
No sei.
VALRE
A resposta honesta. No sabe?
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
25/83
25
MARIANE
No.
VALRE
No?
MARIANEQue que me aconselha a fazer?
VALRE
Eu lhe aconselho a aceitar esse esposo.
MARIANE
Voc me aconselha isso?
VALRE
Sim.MARIANE
De verdade?
VALRE
Sem dvida: a escolha gloriosa e vale a pena que seja aceita.
MARIANE
Pois bem, senhor! Aceito seu conselho.
VALRENo lhe ser muito difcil segui-lo, ao que parece.
MARIANE
No mais do que lhe foi em d-lo, acho.
VALRE
Eu o dei to-somente para lhe ser agradvel, senhora.
MARIANE
E eu o seguirei para agrad-lo.DORINE
Vamos ver o que sair disso.
VALRE
Ento, assim que se ama? E era para me enganar quando...
MARIANE
No falemos disso, por favor. Voc me disse com toda franqueza que devo acei-
tar aquele que me impingem como esposo: e eu declaro que pretendo faz-lo,
pois voc que me d conselho to salutar.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
26/83
26
VALRE
No venha desculpar-se com as minhas intenes. Voc j havia tomado sua re-
soluo e agora lana mo de um pretexto frvolo que a justifique por faltar pa-
lavra.
MARIANE verdade, muito bem dito.
VALRE
Sem dvida, e o seu corao nunca nutriu por mim verdadeiro amor.
MARIANE
Ai de mim! -lhe permitido ter tal pensamento.
VALRE
Sim, sim, permitido; mas minha alma ofendida talvez se lhe antecipe em projetosemelhante e sei muito bem onde levar meus sentimentos e minha mo.
MARIANE
Ah! no duvido, e os ardores que o mrito aviva...
VALRE
Meu Deus, deixemos de lado o mrito: tenho muito pouco sem dvida, a julgar pe-
lo caso que faz dele. Mas espero que outra ter por mim muitas atenes e bem
sei quem consentir, de bom grado, em reparar minha perda.
MARIANE
No grande a perda; e voc se conformar facilmente com a troca.
VALRE
Farei o possvel, e pode cr-lo. Corao que nos esquece nos lana um desafio e
preciso, para esquec-lo, usar de todos os meios: se no se conseguir, deve-se
pelo menos fingir. E no se perdoa nunca a covardia de demonstrar amor a quem
nos abandona.
MARIANESem dvida, tal sentimento nobre e elevado.
VALRE
Muito bem; e todos devem aprov-lo. Por acaso pretenderia voc que eu conser-
vasse eternamente na alma todo meu amor, vendo-a com meus prprios olhos
passar para outros braos, sem dar a outra o corao que rejeita?
MARIANE
Ao contrrio; quanto a mim, isso mesmo o que desejo. Gostaria que j fosse re-
alidade.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
27/83
27
VALRE
Deseja mesmo?
MARIANE
Sim.
VALREBasta de insultos, senhora, e desta maneira vou satisfaz-la. (D um passo para
ir embora mas volta atrs.)
MARIANE
Muito bem.
VALRE
Lembre-se ao menos que a senhora mesma quem me obriga a dar esse passo
extremo.MARIANE
Isso mesmo.
VALRE
E que o desgnio que minha alma concebe segue exatamente seu exemplo.
MARIANE
Meu exemplo, est certo.
VALRE
Basta: no momento preciso, voc vai ser servida.
MARIANE
Tanto melhor.
VALRE
Est vendo, para toda vida.
MARIANE
At que enfim.
VALRE
Ah! (Vai-se e, quando chega porta, volta-se)
MARIANE
Como?
VALRE
No me chamou?
MARIANE
Eu? Est sonhando.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
28/83
28
VALRE
Muito bem! Continuo meu caminho. Adeus, senhora.
MARIANE
Adeus, senhor.
DORINEQuanto a mim, acho que vocs esto perdendo a cabea com essa extravagn-
cia. E eu os deixei discutir at agora s para ver at onde podiam chegar. Ei! Se-
nhor Valre. (Ela vai det-lo pelo brao e ele finge resistir.)
VALRE
Que que voc est querendo, Dorine?
DORINE
Venha c.VALRE
No, no, o despeito me domina. No me faa voltar atrs naquilo que ela dese-
jou.
DORINE
Pare.
VALRE
No, est vendo? caso resolvido.
DORINE
Ah!
MARIANE
Ele no suporta minha presena e seria muito melhor que eu fosse embora.
DORINE(deixando Valre e correndo para Mariane)
E voc, para onde vai?
MARIANE
Largue-me!
DORINE
preciso voltar.
MARIANE
No, no, Dorine: intil querer me deter.
VALRE
Vejo que minha presena um suplcio para ela e, sem dvida, ser muito melhor
que eu v embora.
DORINE(deixando Mariane e correndo para Valre)
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
29/83
29
Outra vez? Que diabo o carregue se deixar voc embora! Acabem com essa brin-
cadeira e venham c os dois. (puxa-os, um para o outro.)
VALRE
Mas quais so tuas intenes?
MARIANEQue queres fazer?
DORINE
Que faam as pazes e saiam desse embarao. Voc est louco para brigar dessa
maneira?
VALRE
Voc no ouviu de que maneira ela falou comigo?
DORINEVoc est louca, ficando zangada assim?
MARIANE
No acompanhaste tudo? E viste como ele me tratou?
DORINE
Tolice de ambos os lados. Ela no quer outra coisa a no ser conservar-se fiel a
voc, pode estar certo. Voc a nica para ele: no alimenta outro desejo seno
o de ser seu esposo. Garanto-o com a minha vida.
MARIANE
Por que ento dar-me tal conselho?
VALRE
Por que me interrogar sobre assunto semelhante?
DORINE
Vocs dois esto malucos. Vamos, a mo de um e de outro. Vamos, os dois.
VALRE(dando a mo a Dorine)
Para que dar a mo?
DORINE
Agora a sua.
MARIANE(dando tambm a mo)
Para que tudo isso?
DORINE
Meu Deus! Depressa, aproximem-se. Vocs gostam um do outro mais do que i-
maginam.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
30/83
30
VALRE
Mas no faa tudo isso com dificuldade e olhe pelo menos para mim sem dio.
(Mariane volta os olhos para Valre e esboa um sorriso.)
DORINE
Para dizer-lhe a verdade, os apaixonados so mesmo malucos!VALRE
Ora essa, mas ento no tenho motivos de queixa. E, sem mentir, voc no m
por comprazer-me em me dizer palavras to aflitivas?
MARIANE
Mas voc, no voc o homem mais ingrato...?
DORINE
Deixemos para outra ocasio toda essa discusso e pensemos na maneira deimpedir tal casamento.
MARIANE
Diga-nos, ento, de que recursos se deve lanar mo.
DORINE
Vamos empregar todos os recursos. Sei pai est zombando, tudo isso so con-
versas. Mas, quanto a vocs, melhor que tomem a aparncia de tranqilo as-
sentimento extravagncia dela, a fim de que, em caso de alarma, seja mais fcil
deixar prolongar-se o enlace proposto. Conseguindo ganhar tempo, tudo se re-mediar. Ora voc pretextar alguma doena que e manifeste de repente e exija
adiamentos; ora voc alegar maus pressgios: por ter encontrado um enterro,
quebrado algum espelho ou sonhado com gua turva. Mas o principal que com
outro no a possam casar desde que no diga sim. (32) Mas, para melhor se sa-
rem seria bom, parece-me, que ningum os encontre juntos a conversar (A
Valre)Saia e sem tardana utiliza seus amigos para cumprirem o que lhe prome-
teram. Vamos procurar ganhar os esforos de seu irmo e conseguir o apoio da
madrasta. (33) Adeus.VALRE(a Mariane)
Por mais esforos que despendamos, minha maior esperana, a bem dizer, reside
na senhora.
MARIANE(A Valre)
No posso responder-lhe pelas vontades de meu pai; mas no pertencerei a outro
que no seja Valre.
VALRE
Como voc me alegra! E o que quer que se atrevam...
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
31/83
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
32/83
32
DORINE
De modo algum. Convm que fiquem a ss.
DAMIS
Nada lhe direi.
DORINEVoc est brincando: so conhecidos os seus arrebatamentos, e poderia estragar
tudo. Saia.
DAMOS
No: quero ver, sem encolerizar-me.
DORINE
Como voc impertinente! A vem ele. Retire-se. (35)
Cena II
Tartufo, Laurent, (36) Dorine
TARTUFO(Ao ver Dorine)
Laurent, aperta-me o cilcio com a disciplina, (37) e roga ao Cu que sempre te i-
lumine. Se vierem procurar-me, fui visitar os presos, (38) para repartir com eles as
esmolas que recolhi.
DORINE
Quanta afetao e fanfarrice!
TARTUFO
Que deseja?
DORINE
Vim dizer-lhe...
TARTUFO(tira um leno do bolso)
Ah! meu Deus, por favor, antes de falar, tome esse leno.
DORINE
Como?
TARTUFO
Cubra estes seios que eu no poderia ver: coisas como essas ferem-nos a alma e
do origem a pensamentos culposos.
DORINE
Ento, o senhor cede facilmente tentao, e a carne exerce grande impresso
sobre seus sentidos? Com certeza, no sei bem o que lhe sobe cabea; quanto
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
33/83
33
a mim, felizmente, no sou to pronta na cobia e poderia v-lo nu dos ps a ca-
bea, que toda a sua pele no me tentaria.
TARTUFO
Ponha em suas palavras um pouco mais de modstia ou terei que virar-lhe as
costas agora mesmo.DORINE
No, no, sou eu quem vou deix-lo em paz, pois s tenho que dizer-lhe duas pa-
lavras. A senhora deve vir a essa sala baixa e pede-lhe o favor de conceder-lhe
uma entrevista.
TARTUFO
Ai de mim! De muita boa vontade.
DORINE(consigo mesmo)
Como ficou manso! Palavra de honra, mantenho o que disse.
TARTUFO
Ser que ela vem j? (39)
DORINE
Estou ouvindo passos, parece-me. Sim, ela mesma, vou deix-los juntos.
Cena IIIElmire, Tartufo
TARTUFO
Que o Cu, em toda a sua bondade, lhe d para sempre a sade da alma e do
corpo e abenoe os seus dias tanto quanto o deseja o mais humilde entre os que
o celeste amor inspira.
ELMIRE
Fico-lhe muito grata por esses votos piedosos. Mas vamos sentar-nos para estar
mais vontade. (40)
TARTUFO
J se restabeleceu da indisposio que a acometeu?
ELMIRE
J. Felizmente a febre passou depressa.
TARTUFO
As minhas oraes no possuem o merecimento necessrio para atrair essa gra-
a l do alto; mas no fiz ao Cu nenhum pedido devoto que no tivesse por obje-to a sua convalescena.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
34/83
34
ELMIRE
Seu zelo inquietou-se demasiado por mim.
TARTUFO
Nunca ser estimar demais a sua preciosa sade e, para restabelec-la, de bom
grado daria a minha.ELMIRE
levar muito longe a caridade crist e muito lhe fico a dever por tanta bondade
TARTUFO
Fao pela senhora muito menos do que merece.
ELMIRE
Quis falar-lhe em segredo de um assunto e folgo que ningum nos esteja espian-
do.TARTUFO
Estou igualmente encantado e, sem dvida, me sumamente agradvel ver-me a
ss com a senhora. Tenho pedido aos Cus uma ocasio dessas, que at esta
hora no mo quis proporcionar.
ELMIRA
Quanto a mim, o que desejo apenas uma conversa em que seu corao se re-
vele e nada me esconda.
TARTUFO
E o que tambm quero, por favor especial, mostrar a seus olhos minha alma in-
teira e jurar-lhe aqui mesmo que a oposio que fao s visitas que aqui vm a-
tradas pelos seus encantos no resultam de qualquer dio contra a sua pessoa,
mas representam antes um transporte do zelo que me arrasta, e com intenes
puras...
ELMIRE
Assim o considero, e creio que minha salvao que lhe d todos esses cuida-
dos.
TARTUFO(aperta-lhe a ponta dos dedos)
Sim, senhora, sem dvida, e meu fervor de tal modo...
ELMIRE
Ufa! est me apertando muito.
TARTUFO
excesso de zelo. No poderia passar-me pela cabea mago-la e antes teria...
(Pe-lhe a mo no joelho.)
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
35/83
35
ELMIRE
Que faz a sua mo?
TARTUFO
Estou apalpando seu vestido: o tecido to macio.
ELMIREAh! por favor, no faa isso, sinto muita ccega. (Recua a cadeira e Tartufo apro-
xima a dela.)
TARTUFO
Meu Deus! Por este ponto se v que a obra maravilhosa! Trabalha-se hoje de
maneira milagrosa; nunca, em outra coisa, se viu trabalhar to bem.
ELMIRE
verdade. Mas falemos um pouco de nosso assunto. Dizem que meu maridoquer voltar atrs com a palavra empenhada e dar-lhe a filha em casamento. Ser
verdade, diga-me?
TARTUFO
Disse-me apenas duas palavras; mas, senhora, para dizer-lhe a verdade, no
essa a felicidade que almejo e vejo alhures os atrativos maravilhosos da felicidade
para a qual se voltam todos os meus desejos.
ELMIRE
porque o senhor no ama nenhum dos bens terrenos.TARTUFO
Meu peito no encerra um corao de pedra.
ELMIRE
Eu, por mim, acho que todos os seus suspiros dirigem-se ao cu e nada aqui em-
baixo atrai os seus desejos.
TARTUFO
O amor que nos sujeita s belezas eternas no mata em ns o amor das belezastemporais; fcil aos sentidos se encantarem pelas obras perfeitas que o Cu
criou. Esses encantos refletem em todas, mas na senhora espelham as mais ra-
ras maravilhas. Espalhou-lhe pelo rosto belezas tais que surpreendem os olhos e
transportam os coraes e no posso v-la, perfeita criatura, sem admirar em sua
pessoa o autor da natureza, sentindo logo o corao inflamado de amor ardente,
pelo mais belo dos retratos em que ele mesmo representou. A princpio, temi que
esse secreto amor fosse astuciosa surpresa do esprito negro e chegou mesmo o
meu corao a evitar-lhe os olhares, acreditando-a obstculo minha salvao.
Mas, enfim, compreendi, amvel beldade, que esta paixo pode no ser culpo-
sa, e que me dado acomod-la ao pudor. Pude ento abandonar-lhe meu cora-
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
36/83
36
o. Confesso ser audcia demasiado grande ousar ofertar-lhe este corao; mas
tudo espero de sua bondade para com os meus anseios e nada dos vos esfor-
os de minha enfermidade; na senhora reside a minha esperana, o meu bem,
minha quietude; da senhora dependem meu sofrimento ou minha beatitude, e vou
ser, afinal, pela sua nica sentena feliz, se o quiser, infeliz, se lhe agradar.
ELMIRE
A declarao extremamente galante, mas para dizer a verdade, um tanto sur-
preendente. Parece-me que o senhor devia proteger melhor o prprio corao e
raciocinar um pouco sobre tal intento. Devoto como o senhor e que por toda
parte tido...
TARTUFO
Ah! Mas nem por ser devoto eu no sou menos homem; (41) e quando se chega
a ver seus celestes atrativos, o corao torna-se escravo e no raciocina mais.Sei que essas palavras parecem estranhas partindo de mim, mas, senhora, ape-
sar de tudo, no sou um anjo; e se condena a confisso que acabo de lhe fazer,
deve culpar seus encantos. Desde que lhes vi brilhar o esplendor mais que hu-
mano, a senhora tornou-se a soberana de meu corao; a inefvel doura de seu
divino olhar forou a resistncia em que se obstinava meu corao; ela superou
tudo, jejuns, oraes, lgrimas e dirigiu todos os meus anseios para seus encan-
tos. Disse-lho mil vezes com olhares e suspiros e agora, para explicar-me melhor,
uso a voz. Se a senhora contempla com benevolncia as tribulaes desse es-
cravo indigno, (42) se for o caso que sua bondade queira consolar-me dignando
rebaixar-se at o nada que sou, terei sempre pela senhora, suave maravilha,
devoo a nenhuma outra compatvel. A sua honra no corre qualquer risco co-
migo, e no h desgraa a temer de minha parte. Todos esses galantes da corte,
por quem as mulheres so loucas, gabam-se dos seus feitos e so vazios em su-
as palavras. Ufanam-se completamente de seus progressos. No h favor que
no passem a divulgar e suas lnguas indiscretas, se algum nelas confiar, deson-
ram o prprio altar onde o corao vai sacrificar. Mas as pessoas como ns a-
mam discretamente, podendo-se ter para sempre a segurana do segredo: o cui-
dado que temos pela nossa prpria fama responde por tudo pessoa amada, e
em ns que se encontra, aceitando nosso corao, amor sem escndalo e prazer
sem receio.
ELMIRE
Ouo-o falar, e sua retrica, em termos bem fortes, minha alma se explica. O
senhor no receia que eu seja capaz de comunicar ao meu marido esse galante
ardor, e que o conhecimento de tal ardor venha alterar a amizade que lhe dedica?
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
37/83
37
TARTUFO
Sei que a sua benevolncia perdoar minha temeridade, desculpando a fraqueza
humana, os violentos transportes de um amor que a ofende e compreender, con-
templando-se a si mesma, que ningum cego e que um homem de carne.
ELMIREOutras veriam isto, de outra maneira, mas saberei ser discreta. Nada direi a res-
peito ao meu esposo, mas quero, em troca, fazer-lhe um pedido: interessar-se o
senhor francamente e sem subterfgios pela unio de Valre e Mariane, renunciar
ao injusto poder que pretende com o bem alheio enriquecer-se. E...
Cena IV
Damis, Elmire, Tartufo.
DAMIS(saindo do gabinete onde se havia escondido)
No, senhora, no: isso deve ser espalhado. Eu estava escondido aqui, e pude
ouvir tudo; e a bondade de Cu parece que me levou para l a fim de confundir o
orgulho de um traidor que me prejudica, a fim de abrir um caminho que me vingue
de sua hipocrisia e insolncia, e de tirar meu pai do engano revelando-lhe inteira-
mente a alma de um criminoso que lhe fala de amor.
ELMIRE
No, Damis: basta que ele se torne mais sensato e trate de merecer o perdo quelhe concedo. Como prometi, no voltarei atrs. No de meu feitio provocar es-
cndalos: uma mulher deve rir-se de tolices desse tipo, sem nunca perturbar os
ouvidos do marido.
DAMIS
A senhora tem suas razes para agir dessa maneira, mas eu tenho as minhas pa-
ra agir de outra. zombaria querer poup-lo; o insolente orgulho de sua carolice
j ultrapassou minha justa clera, e j causou muita desordem entre ns. O ve-
lhaco j governou meu pai por muito tempo e atrapalhou meu amor e o de Valre. indispensvel que ele se desiluda desse prfido e agora o Cu me oferece ex-
celente meio. Sou-lhe grato por essa ocasio e ela demasiado favorvel para
ser desprezada: t-la em mos e deixar de aproveit-la; seria merecer que ele ma
arrebatasse.
ELMIRE
Damis...
DAMIS
No, por favor, preciso acreditar em mim mesmo. Minha alma est no auge da a-
legria; em vo suas palavras procuram obrigar-me a renunciar o prazer de me ver
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
38/83
38
vingado. Sem ir mais adiante, vou liquidar o caso; e eis justamente o que me po-
der satisfazer.
Cena V
Orgon, Damis, Tartufo, Elmire.
DAMIS
Logo sua chegada, meu pai, vamos regal-lo com um acontecimento recente
que muito o ir surpreender. O senhor est muito bem pago de todos os seus a-
grados, pois este senhor retribui-lhe as ternuras na mesma moeda. Acaba de de-
clarar o grande zelo que nutre pelo senhor: no visa outra coisa seno desonr-lo;
eu o surpreendi fazendo sua esposa a injuriosa confisso de uma paixo culpa-
da. Ela calma, sensata e por demais discreta: queria a todo custo guardar se-
gredo; mas no posso admitir semelhante insolncia e creio que ocult-la o
mesmo que ofend-lo.
ELMIRE
Isso mesmo, sou de opinio que no se deve perturbar o sossego do marido com
essas histrias vs; pois no disso que depende a honra: basta que saibamos
defender-nos. So os meus sentimentos e voc nada teria dito, Damis, se eu ti-
vesse alguma influncia sobre voc. (43)
Cena VI
Orgon, Damis, Tartufo (44)
ORGON
Cu, ser verdade o que acabo de ouvir?
TARTUFO
Sim, meu irmo, sou mau, sou culpado, pecador infeliz, cheio de iniqidade, o
maior criminoso que j viveu; cada instante da minha vida est corrompido; elanada mais que um amontoado de crimes e de torpezas; e estou vendo que o
Cu, para meu castigo, quer mortificar-me nesta ocasio. Seja qual for a acusa-
o que me fizerem, no terei o orgulho de defender-me. Acredite no que lhe di-
zem, arme-se de clera, e expulse-me de sua casa como um criminoso: par mais
vergonha que eu sinta por causa disso, ainda pouco.
ORGON(ao filho)
Ah! traidor, ousas macular-lhe a pureza da virtude com essa falsidade?
DAMISComo? A doura fingida dessa alma hipcrita flo-a desmentir...
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
39/83
39
ORGON
Cala-te, peste maldita!
TARTUFO
Ah! Deixe-o falar; o senhor acusa-o sem razo e seria muito melhor acreditar no
que diz. Por que me ser to favorvel numa questo dessas? Afinal de contas, osenhor sabe do que sou capaz? Meu irmo, o senhor se fia em meu exterior? E,
por tudo o que v, julga-me melhor? No, no: o senhor se deixa enganar pelas
aparncias; ai de mim, no nada do que imaginam; todos me tomam por um ho-
mem de bem; mas a pura verdade que no valho nada. (Dirigindo-se a Damis)
Sim, meu caro filho, fale; pode chamar-me de prfido, infame, perdido, ladro,
homicida; cubra-me dos nomes mais terrveis; nada oponho a isso, eu os mereci;
e quero de joelhos sofrer a ignomnia como uma vergonha devida aos crimes de
minha vida.ORGON(a Tartufo)
demais, meu irmo. (Ao filho)Teu corao no se rende, traidor?
DAMIS
Como? As palavras dele seduzi-lo-o a ponto de...
ORGON
Cala-te, celerado! (A Tartufo)Meu irmo, vamos, levanta-te, por favor! (Ao filho)
Infame.
DAMIS
Ser possvel...
ORGON
Cala-te!
DAMIS
de ficar louco de raiva! Como? Vou-me...
ORGON
Se disseres mais uma palavra, quebro-te os braos.
TARTUFO
Meu irmo, em nome de Deus, no fique furioso. Preferiria sofrer o castigo mais
duro e v-lo sofrer por minha causa o mais leve arranho.
ORGON(ao filho)
Ingrato.
TARTUFO
Deixe-o em paz, Se for preciso pedir-lhe perdo de joelho...
ORGON(A Tartufo) (45)
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
40/83
40
Ai de mim! Est brincando? (Ao filho)Canalha, v a bondade dele.
DAMIS
Ento...
ORGON
Cala-te.DAMIS
Como? Eu...
ORGON
Cala-te, estou dizendo. Sei muito bem o motivo que te obriga a atac-lo; todos
vocs o odeiam; e hoje vejo, mulher, filhos e criados, desencadeados contra ele.
Impudentemente lanam mo de tudo, para expulsar de minha casa to devota
pessoa. Porm, quanto mais esforos fizerem para bani-lo daqui, mais me esfor-
arei para det-lo. E apresso-me em dar-lhe a mo de minha filha para confundir
o orgulho de toda a famlia.
DAMIS
Pensam obrig-la a casar com ele?
ORGON
Sim, traidor, e nesta noite mesmo, para que vocs se danem. Ah! desafio a todos
a mostrar-lhes-ei que devem me obedecer e que eu sou o senhor. Vamos, retra-
tem-se e agora mesmo, tratante, pede-lhe perdo de joelhos.DAMIS
Quem, eu? Deste sem-vergonha que, pelas suas imposturas...
ORGON
Ento resiste, miservel, e ainda o injurias? (A Tartufo)Um cacete, um cacete!
No me segure! (46) (Ao filho) Vamos, sai imediatamente desta casa e nunca
mais tenhas a audcia de pr os ps aqui!
DAMIS
Sim, sairei; mas...
ORGON
Depressa, fora daqui! Canalha, vou desertar-te e, ainda por cima, te amaldioar.
Cena VII
Orgon, Tartufo.
ORGONOfender dessa maneira um verdadeiro santo!
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
41/83
41
TARTUFO
Cu, perdoa-lhe a dor que me acusa! (47) (A Orgon)Se pudesse imaginar com
que desgosto vejo que se esforam por caluniar-me junto a meu irmo...
ORGON
Ai de mim!TARTUFO
S em pensar nesta ingratido, minha alma passa por rude suplcio... O horror
que sinto... Tenho o corao to amargurado que nem posso falar, e acho que
vou morrer.
ORGON(correndo em lgrimas para a porta por onde o filho saiu.)
Canalha! Arrependo-me de no lhe ter metido a mo na cara, de no lhe ter dado
uma surra aqui mesmo. Acalme-se, meu irmo, no se zangue.
TARTUFO
Vamos acabar, agora mesmo, com toda essa discusso. Estou vendo quanto in-
cmodo provoco; meu irmo, acho que seria conveniente ir embora.
ORGON
Como? Voc est brincando?
TARTUFO
Odeiam-me, e vejo que procuram faz-lo suspeitar de minha f.
ORGON
Que importa? O senhor acha que dou ouvidos ao que dizem?
TARTUFO
Mas, sem dvida, no deixaro de prosseguir; e essas mesmas coisas que hoje o
senhor no escuta, podero, de outra vez, impression-lo.
ORGON
No, meu irmo, nunca.
TARTUFOAh! meu irmo, a mulher pode muito facilmente surpreender a alma do marido.
ORGON
No, no.
TARTUFO
Deixe-me sair daqui o mais depressa possvel e tirar-lhes, assim, qualquer motivo
para me atacarem.
ORGONNo, o senhor ficar: sou eu quem o decide.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
42/83
42
TARTUFO
Pois bem! necessrio, ento, que me sacrifique. No entanto, se o senhor qui-
sesse...
ORGON
Ah!TARTUFO
Est certo: no falemos mais nisso. Mas sei como proceder em toda essa ques-
to. A honra delicada e a amizade me obriga a prevenir os rumores e motivos
de suspeitas. Doravante, evitarei sua esposa e o senhor no me ver...
ORGON
No, a despeito de todos, o senhor a ver freqentemente. Minha maior alegria
encolerizar os outros, e quero que a todo o momento o vejam em sua companhia.
E no tudo: para que mais se danem, no quero ter outro herdeiro que no o
senhor, e vou imediatamente fazer-lhe doao de todos os meus bens. Um amigo
bom e franco, a quem tomo por genro, me mais caro do que mulher, filho ou
qualquer parente. O senhor aceitar o que lhe proponho?
TARTUFO
A vontade do Cu em tudo seja feita!
ORGON
Pobre homem! Vamos depressa firmar um documento e que a inveja arrebente dedespeito!
ATO IVCena I
Clante, Tartufo.
CLANTE
Isso mesmo, todo mundo comenta e, o senhor pode crer, o efeito desses comen-
trios que lhe favorvel. E encontro-o, senhor, muito a propsito para dizer-lhe
claramente o que penso. No vou examinar a fundo o que dizem por ai; deixo isso
de lado e encaro tudo da pior maneira possvel. Suponhamos que Damis no te-
nha procedido bem e que seja erradamente que o acusa: no prprio de um
cristo perdoar as ofensas e apagar no corao qualquer desejo de vingana? E
o senhor permite que, por sua causa, se exile um filho do lar paterno? Digo-lhe
ainda e falo com franqueza, no h grande nem pequeno que no se escandalize;
e creia-me, o senhor deveria pacificar a todos, sem levar ao fim todas essas ques-
tes. Sacrifique a Deus sua clera e consiga que pai e filho faam as pazes.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
43/83
43
TARTUFO
Ai de mim! De bom corao o faria: no guardo contra ele, meu senhor, qualquer
rancor; perdo-lhe tudo, de nada o censuro e quisera servi-lo com o melhor de
minha alma; mas o interesse do Cu no poderia permiti-lo, e se ele entrar aqui,
terei que sair. Depois do que ele fez, as relaes entre ns trariam escndalo: sa-
be Deus o que todo mundo pensaria! Atribuiriam pura poltica de minha parte; e
todos diriam que, sentindo-me culpado, finjo zelo caridoso por quem me acusa, e
que meu corao o teme e deseja poup-lo, para poder obrig-lo ao silncio.
CLANTE
O senhor nos vem com desculpas bem coloridas e todas as suas razes so um
tanto exageradas. Por que se encarrega o senhor dos interesses do Cu? Ser
que ele tem necessidade de ns para castigar o culpado? Deixe a ele, deixe-lhe o
cuidado de vingar-se: Pense apenas no perdo que ele prescreve para a ofensa.No leve em conta os julgamentos humanos, quando segue as ordens soberanas
do Cu. Como? O simples interesse do que podero pensar ir impedir a glria de
uma boa ao? No, no: faamos sempre o que o Cu prescreve e no nos pre-
ocupemos com outra coisa.
TARTUFO
J lhe disse, senhor, que meu corao o perdoa, e j fazer o que o Cu ordena;
mas, depois do escndalo e da afronta de hoje, o Cu no manda que eu conviva
com ele. (48)CLANTE
E ordena-lhe, senhor, que d ouvidos a um mero capricho pelo qual o pai se dei-
xou levar, e que aceite o dom de um bem que vos ofertado, quando o direito o
obriga a no pretender coisa alguma?
TARTUFO
Os que me conhecerem no tero a impresso de que o fiz por interesse. Pouco
atrativo tm para mim todos os bens deste mundo, no me deslumbro com seu
brilho enganador, e se me resolvo a receber do pai doao que me quer fazer, apenas, para dizer a verdade, por temer que essa fortuna toda venha a cair em
mos de gente ruim; ou ento de pessoas que, recebendo-a, empreguem-na para
fins criminosos, deixando de aplic-la, conforme do meu desgnio, para a glria
do Cu e a felicidade do prximo. (49)
CLANTE
Ora essa, senhor, largue mo desses melindres que provocaro as queixas de
um justo herdeiro; permita, sem querer embara-lo, que seja possuidor de sua
fortuna correndo o risco que a acompanha; e pense que vale mais v-la mal em-pregada do que vir o senhor a ser acusado de les-lo. Admiro somente que no
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
44/83
44
se sinta contrafeito em aceit-la, porque, afinal de contas, existe alguma mxima
no zelo verdadeiro que obrigue a defraudar um herdeiro legtimo? E se acontece
que o Cu lhe tenha posto no corao obstculo invencvel que o impea de viver
com Damis, no seria profervel que, como pessoa discreta o senhor se retirasse
honestamente, a permitir, contra toda a razo, que por sua causa se expulse o fi-
lho de casa? Acredita-me, senhor, seria dar de sua probidade...
TARTUFO
Senhor j so trs horas e meia: certo dever piedoso chama-me l em cima e h
de desculpar-me por deix-lo to cedo.
CLANTE
Ah!
Cena II
Elmire, Mariane, Dorine, Clante.
DORINE
Por favor, meu senhor, empenhe-se conosco em favor: sua alma sofre dor mortal
e o acordo que o pai concluiu para essa tarde faz com que, a todo instante, entre
em desespero. Ele est quase chegando. Conjuguemos nossos esforos, eu lhe
peo, e tentemos derrubar, fora ou mediante ardil, esse plano infeliz que nos
preocupa a todos.
Cena III
Orgon, Elmire, Mariane, Clante, Dorine.
ORGON
Ah! alegro-me bastante em v-los juntos. (A Mariane)Trago nesse contrato algo
que os far rir e vocs j sabem o que quero dizer.
MARIANE (de joelhos)Meu pai, em nome do Cu, que conhece minha dor, e por tudo que pode como-
ver-lhe o corao, no faa valer tanto os direitos que tem sobre sua filha e dis-
pense-me dos votos dessa obedincia. No me leve, por esta dura lei, a me quei-
xar ao Cu do que lhe devo. Ai de mim! No torne infeliz esta vida que o senhor
me deu, meu pai. Se, contra uma doce esperana que pude alimentar, me probe
de pertencer quele a quem ouso amar, ao menos, por sua bondade, que de joe-
lho imploro, salve-me do tormento de pertencer a quem detesto, e no me leve a
um ato de desespero, desencadeando sobre mim todo o seu poder. (50)ORGON(sentindo-se enternecer)
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
45/83
45
Vamos, fica firme, corao, nada de fraquezas humanas.
MARIANE
No me faz sofrer sua ternura para com ele; manifeste-a, d-lhe tudo o que tem,
e, se no for bastante, junte tambm o meu; consinto-o de bom grado, mas, ao
menos, no atinja a minha pessoa, e permita que um convento termine, com peni-tncias, os tristes dias que o Cu me concedeu.
ORGON
Ah! So essas as religiosas, quando um pai lhes combate as chamas de amor! De
p! Quanto mais seu corao repugna aceit-a-lo, mais ser para voc motivo de
merecimento. Mortifique seus sentidos com esse casamento, e no me d dores
de cabea com esse assunto.
DORINE
Mas como?...
ORGON
Cale-se, voc; fale aos de sua laia; probo-a terminantemente de pronunciar uma
nica palavra.
CLANTE
Se voc permite que lhe responda com um conselho...
ORGON
Meu irmo, seus conselhos so os melhores do mundo. So muito razoveis edou-lhes grande importncia; mas h de permitir que no faa uso deles.
ELMIRE(ao marido)
Vendo o que vejo, no sei mais o que dizer e sua cegueira faz-me admira-lo;
preciso estar muito enfeitiado, muito obcecado por ele, para negar o que hoje se
passou.
ORGON
Sou seu criado e acredito nas aparncias. Conheo muito bem sua complacncia
para com o patife do meu filho e voc teve medo de desmenti-lo, quando contra
aquele pobre homem ele se indisps; voc estava tranqila demais para merecer
f e devia mostrar-se mais comovida do que parecia estar.
ELMIRE
Ser que pela simples confisso de um transporte amoroso nossa honra tenha
que irritar-se to fortemente? E s se pode responder a tudo o que a atinge com
fogo nos olhos e injria na boca? Eu, rio-me simplesmente de tudo isso, e no me
agrada o escndalo a esse respeito. Prefiro que nos mostremos sensato com toda
calma e no aprecio essas mulheres, ferozmente pudicas que tm a honra arma-
da de garras e dentes, e menor palavra querem desfigurar as pessoas. Que o
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
46/83
46
Cu me preserve de tal sabedoria! Desejo uma virtude que no seja endemoni-
nhada, e creio que a discreta frieza de uma recusa no menos poderosa para
refletir um corao ardente. (51)
ORGON
Enfim, conheo o assunto e no vou ser logrado.ELMIRE
Admiro, ainda uma vez, essa estranha fraqueza. Mas o que me responderia a sua
incredulidade se eu lhe mostrasse que lhe dizemos a verdade?
ORGON
Mostrar?
ELMIRE
Sim.
ORGON
Lorotas.
ELMIRE
Mas como? Se eu achasse um meio de lhe mostrar claramente?
ORGON
Ridculo!
ELMIRE
Que homem! Ao menos me responda. No espero que acredite em ns; mas su-
ponhamos que, de um lugar conveniente lhe fizssemos ver e ouvir tudo, que diria
ento do seu homem de bem?
ORGON
Nesse caso, diria que... No diria nada, pois isso no pode acontecer.
ELMIRE
O erro j durou muito, demais condenar minha boca como impostora. preciso
que, por prazer e sem ir mais longe, voc seja testemunha de tudo o que lhe dis-se.
ORGON
Est bem: aceito a proposta. Veremos sua habilidade, e como poder cumprir a
promessa.
ELMIRE
Chame-o.
DORINE
Ele muito astuto, e talvez no seja fcil surpreende-lo.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
47/83
47
ELMIRE
No creio: somos facilmente enganados pelos que amamos, e o amor-prprio faz
com que nos enganemos a ns mesmos. (Falando a Clante e a Mariane)Caha-
mem-no e todos os outros se retirem.
Cena IV
Elmire, Orgon.
ELMIRE
Aproximemos essa mesa e meta-se debaixo dela. (52)
ORGON
Como?
ELMIRE necessrio esconder-se bem?
ORGON
Por que debaixo da mesa?
ELMIRE
Ah! meu Deis! Deixe: tenho um plano e voc vai ver. Ponha-se a, estou dizendo;
e uma vez a embaixo, procure fazer com que no o vejam nem o ouam.
ORGONDevo confessar que grande a minha complacncia; mas enfim, preciso ver voc
sair-se desse negcio.
ELMIRE
Acredito que voc no ter nada a replicar. (Ao marido que est debaixo da me-
sa)Pelo menos, vou abordar assunto bem estranho no se escandalize de manei-
ra alguma. Deve permitir-me que diga seja l o que for, somente com o intuito de
convenc-lo da verdade, conforme prometi. Desde que sou obrigada a tanto, por
meio de palavras meigas, vou desmascarar essa alma hipcrita, lisonjear os de-sejos descarados de seu amor, deixando-lhe campo livre para todas as temerida-
des. Como s para voc e para melhor confundi-lo que o meu corao vai fingir
corresponder-lhe aos votos, terei que cessar desde que voc se renda e a situa-
o s se prolongar at onde voc quiser. Cabe a voc sustar seu ardor insen-
sato, quando voc julgar que o caso est por demais adiantado, poupando sua
mulher e no expondo-a seno ao que for necessrio para tira-lo do engano: tra-
ta-se dos seus interesses. Voc ser o senhor da situao e... Algum se aproxi-
ma. Contenha-se e no se deixe ver.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
48/83
48
Cena V
Tartufo, Elmire, Orgon.
TARTUFO
Disseram-me que queria falar-me.
ALMIRESim, tenho segredos a revelar-lhe. Mas, antes de faz-lo, feche a porta e olhe
bem em volta para evitar surpresas. Certamente no nos convm que se repita si-
tuao semelhante de h pouco. Nunca levei tamanho susto; tive muito medo
de Damis, por sua causa, e o senhor viu bem que esforcei-me para faz-lo mudar
de idia, tentei acalm-lo. verdade que fiquei to perturbada que nem mesmo
tive a idia de desmenti-lo. Mas, graas a Deus, tudo terminou bem, sentindo-se,
agora, maior segurana. A considerao que tem por voc dissipou a tempestade
e meu marido, nem por sombras, tem cimes do senhor: para desafiar as mslnguas, quer que estejamos juntos a todo instante; e por isso que posso, sem
temer que me reprovem, encontrar-me aqui fechada com o senhor, com a liber-
dade de abrir-lhe o corao talvez demasiado pronto a aceitar o seu. (53)
TARTUFO
difcil compreender sua linguagem, minha senhora: ainda h pouco falava de
outra maneira.
ELMIRE
Ah! se o senhor est zangado por causa daquela recusa como conhece mal o co-rao de uma mulher! E como entende pouco o que ele quer dizer quando se de-
fende to francamente! Nesses momentos, nosso pudor sempre luta contra o que
pode nos dar ternos sentimentos. Por mais que se encontre uma razo para o
amor que nos domina, sempre temos um pouco de vergonha em confess-lo. A
princpio, defendemo-nos dele, mas pela nossa expresso, percebe-se logo que o
corao se est rendendo, que a nossa boca se ope a nossos anseios apenas
por um sentimento de honra, e que tais recusas tudo prometem, Sem dvida, fao
uma confisso bastante livre, deixando de lado nosso pudor. Mas, afinal, j quecomecei a falar, teria eu me esforado para reter Damis, teria, pergunto-lhe, escu-
tado longamente e com tanta doura o oferecimento do seu corao, teria enca-
rado a questo conforme viram que fiz, se aquele oferecimento no chegasse a
me agradar. E quando eu mesma quis for-lo a recusar o casamento que acaba-
vam de anunciar, que que o senhor deveria ter compreendido por essa insistn-
cia, seno que o interesse que lhe demonstram e o aborrecimento que se teria
com esse casamento assim resolvido, viria pelo menos partir um corao que se
quer por inteiro? (54)TARTUFO
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
49/83
49
Minha senhora, sem dvida uma alegria imensa ouvir tais palavras da boca a-
mada; o mel que destila provoca em todos os meus sentidos suavidade como ja-
mais senti. O meu esforo supremo consiste na felicidade de agrad-la, e a bem-
aventurana de meu corao reside nos seus sentimentos, mas esse corao pe-
de a liberdade de pr em dvida, tanta felicidade. Sou levado a supor que tais pa-
lavras representam honesto artifcio para obrigar-me a romper o casamento que
se aproxima; e se devo explicar-me com a senhora com toda a liberdade, no me
fiarei em palavras to doces, sem que um pouco dos seus favores, pelos quais
tanto suspiro, venha assegurar-me de tudo quanto puderam dizer-me, implantan-
do-me na alma f constante nas bondades encantadores que acaba de dispensar-
me.
ELMIRE (tossindo para advertir o marido)
Como? O senhor quer ir to depressa, esgotando logo de incio a ternura de um
corao. Algum se mata para fazer-lhe a confisso mais terna, mas o senhor a-
inda no se contenta, e no se pode satisfaz-lo seno levando a questo at os
ltimos favores?
TARTUFO
Quanto menos se merece um bem, menos se ousa esper-lo. Nossos desejos
no podem fiar-se em palavras. muito fcil suspeitar de uma felicidade cheia de
glria, e logo se quer goz-la antes de crer nela. Quanto a mim, que creio mere-
cer to pouco suas bondades, duvido da felicidade de minhas temeridades; (55) e
no acreditarei em nada, minha senhora, antes que tenha sabido convencer meu
amor com realidades.
ELMIRE
Meu Deus, seu amor um verdadeiro tirano, e lana-me o esprito em estranha
confuso! Que imprio furioso exerce sobre os coraes e com que violncia quer
o que deseja! Como? Ningum pode livrar-se de sua insistncia, e no se tem
nem tempo de respirar? Fica bem ser to rigoroso, querer a todo custo tudo quan-
to se pede, e assim acusar por esforos insistentes do fraco que o senhor v quetm as pessoas pelo senhor?
TARTUFO
Mas se a senhora v com simpatia minhas homenagens, por que recusar-me tes-
temunhos seguros?
ELMIRE
Mas, como consentir no que o senhor quer, sem ofender o Cu, de quem sempre
fala?
TARTUFO
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
50/83
50
Se somente o Cu que se ope aos seus anseios, pouco representa para mim
obviar a essa dificuldade, e isso no deve deter seu corao.
ELMIRE
Mas do-nos tanto medo as sentenas do Cu!
TARTUFOPosso dissipar-lhe esses temores ridculos, minha senhora, pois conheo a arte
de afastar os escrpulos. De fato, o Cu probe certos contentamentos; ( um ce-
lerado que fala)mas sempre se acha uma maneira de acomodar; conforme ne-
cessidades diversas existe uma cincia destinada a estender os liames de nossa
conscincia e retificar o mal da ao com a pureza da inteno. (56) Saberemos
revelar-lhe esses segredos, minha senhora; tem somente que se deixar levar. Sa-
tisfaa-me o desejo e no tenha receio: respondo-lhe por tudo, e assumo todo
mal. A senhora est tossindo muito.ELMIRE
Sim, isto um suplcio.
TARTUFO
Aceitaria uma bala de alcauz? (57)
ELMIRE
um resfriado persistente, sem dvida, e todas as balas do mundo no ajudari-
am.
TARTUFO
De fato bastante incmodo.
ELMIRE
Isto mesmo, mais do que pode supor.
TARTUFO
Enfim, fcil destruir seu escrpulo: posso garantir-lhe um segredo absoluto; o
mal est apenas no escndalo que se faz; este que faz o mal e no pecar fa-
z-lo em silncio.
ELMIRE (tossindo mais uma vez)
Enfim, vejo que tenho que decidir-me a ceder; que devo consentir em conceder-
lhe tudo, e que, no sendo assim, no devo pretender que possa estar contente, e
que se queira entregar. Sem dvida, penoso chegar a esse ponto e contra a
vontade que dou tal passo; mas, j que se obstina em querer reduzir-me a tanto,
sem querer acreditar em tudo o que possa dizer-lhe, exigindo-me provas mais
convincentes, tenho, enfim, que resolver-me e content-lo. Se tal consentimento
importar em alguma ofensa, tanto pior para quem me fora a tal violncia: pois
certamente no me cabe a culpa.
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
51/83
51
TARTUFO
Sim, senhora, tomo-a a mim e a coisa em si...
ELMIRE
Abra um pouco a porta e veja, por favor, se meu marido no est nesse corredor.
TARTUFOQue necessidade tem ele da precauo que a senhora toma? C entre ns, trata-
se de um sujeito que se pode levar pelo nariz; capaz de vangloriar-se de todos
os nossos colquios e eu o puz em condies de ver tudo sem acreditar em nada.
ELMIRE
No importa: por favor, saia um momento, e examine tudo cuidadosamente.
Cena VIOrgon, Elmire.
ORGON (saindo de baixo da mesa)
Que homem abominvel, tenho que confess-lo. Custa-me mesmo a crer e estou
desconcertado.
ELMIRE
Como? J saiu? Voc est brincando. Volte l para debaixo, ainda no chegou a
hora; espere at o fim para ter a certeza e no se fie em simples conjeturas.
ORGON
No, ainda no saiu do inferno pessoa pior.
ELMIRE
Meu Deus! No acredite em nada sem provas. Deixe-se convencer antes de en-
tregar os pontos e no se apresse para no se enganar. (Faz com que o marido
se esconda por trs dela.)
Cena VII
Tartufo, Elmire, Orgon.
TARTUFO
Minha senhora, tudo conspira para meu contentamento: visitei cuidadosamente
todo esse apartamento; no h ningum e minha alma encantada...
ORGON (interrompendo-o)
Vamos mais devagar! O senhor est-se deixando arrastar muito depressa pelos
seus desejos amorosos e no devia apaixonar-se tanto. Ah! Ah! o homem debem! Queria enganar-me, no! Como sua alma se entrega facilmente s tenta-
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
52/83
52
es! Desposava-me a filha e ainda cobiava minha mulher! Por muito tempo du-
videi que fosse verdade, e sempre acreditei que afinal mudasse de tom; mas le-
var bastante longe as provas: o que acabo de ver suficiente para mim, no pre-
ciso mais.
ELMIRE(A Tartufo)
Foi contra a minha vontade que fiz tudo isso, mas vi-me forada a trat-lo dessa
maneira.
TARTUFO
Como? O senhor acredita?
ORGON
Vamos, nada de barulho, por favor. Ponha-se pela porta a fora sem qualquer ce-
rimnia.
TARTUFO
Eu desejava apenas...
ORGON
Estas palavras no tem mais sentido... O senhor deve sair imediatamente desta
casa.
TARTUFO
o senhor quem tem que sair, embora fale como dono: (58) esta casa me per-
tence, hei de mostrar-lhe e vou mostrar-lhe tambm que intil lanar mo des-ses meios indiretos, covardes; vocs no esto onde pensam quando me injuri-
am: tenho com que confundir e castigar a impostura, vingar o Cu que se ofende,
e fazer com que se arrependam aqueles que pretendem fazer-me sair. (59)
Cena VIII
Elmire, Orgon.
ELMIREQue significam essas palavras? O que que ele quer dizer?
ORGON
Palavra, estou confuso e no tenho vontade de rir.
ELMIRE
Como?
ORGON
Vejo meu erro nas coisas que ele diz, e a doao (60) atrapalha-me.
ELMIRE
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
53/83
53
A doao...
ORGON
Sim, negcio liquidado, mas ainda h outra coisa que me inquieta.
ELMIRE
Qual ?ORGON
Voc ficar sabendo de tudo. Mas, antes, vamos ver se certo cofre ainda est l
em cima.
ATO V
Cena IOrgon, Clante.
CLANTE
Onde vai com tanta pressa?
ORGON
Ai de mim! O que sei!
CLANTE
Parece-me que devemos comear a estudar juntos o que se pode fazer agora.ORGON
Estou totalmente transtornado por causa daquele cofre: ele me desespera mais
do que todo o resto.
CLANTE
Ento, esse cofre um mistrio importante?
ORGON
um depsito que o prprio Argas, esse amigo que tanto prezo, me ps entre as
mos, ele prprio, com grande segredo. Quando teve que fugir, escolheu-me para
isso; pelo que me pde dizer, so papis que lhe dizem respeito vida e aos
bens.
CLANTE
Por que, ento, coloc-los entre outras mos?
ORGON
Foi por um caso de conscincia. E eu fui diretamente comunicar o fato a esse
traidor que convenceu-me de que era prefervel dar-lhe o cofre, a fim de que, para
8/11/2019 Teatro O Tartufo Moliere
54/83
54
negar, caso fizessem alguma investigao, e tivesse um pretexto que me permi-
tisse fazer juramentos que no atingisse minha conscincia. (61)
CLANTE
Voc est em maus lenis, pelo que parece. A doao e essa confidencia so,no
meu parecer, coisas muito levianas. As vantagens que esse homem tem sobrevoc podem lev-lo longe com tais compromissos, e ser imprudncia atac-lo.
Voc devia procurar um expediente mais suave.
ORGON
Como? Sob aparncia de fervor to comovente esconde um corao to dplice,
uma alma to perversa! E eu que o recebi mendigando e sem nada... Acabou-se,
renuncio a todas as pessoas de bem: doravante, sentirei por elas averso tre-
menda. Serei para eles pior do que um demnio.
CLANTEOra essa! No ser isso mais um de seus arrebatamentos! Em nada voc conser-
va a calma. A sua razo nunca toma o caminho do bom senso, passando sempre
de um extremo ao outro. Voc viu o erro ainda maior, confundindo o corao de
todas as pessoas de quem com o de um prfido tratante? Como? Porque um pati-
fe o engana com audcia debaixo do brilho pomposo de austera mscara, voc
quer que todos sejam feitos por esse modelo e que no exista hoje um devoto
verdadeiro? Deixe aos libertinos concluses to tolas; preciso separar a virtude
das aparncias, no arrisque