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PARTE V: 0 TEATRO EPICO DE BRECHT
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Teatro Épico de Brecht

Dec 16, 2015

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Elaine Teleken

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  • PARTE V: 0 TEA TRO EPICO DE BRECHT

  • 16. 0 TEATRO COMO INSTITUTO DIDATICO

    a) Observaroes gerais

    NXo t FACIL resumir a teoria do teatro epico de Brecht ( 1898-1956), visto seus ensaios e comentarios sobre este

    ' tema se sucederem ao Iongo de aproximadamente trinta anos, com modifica~6es que nem sempre seguPm uma linha coerente. Tendo sido bern mais homem da pratica teatral do que pensador de gabinetc, mostrava-se sempre disposto a renovar suas concepc;cws para obter efeitos cenicos melhores. Ch:1mava suas pe~as de "experimen-tos", na acep~iio das ciencias naturais, com a diferen~a de se tratar de "experimentos sociol6gicos". Nao admira, portanto, que tenha refundido as suas pe~as tantas vezcs, reformulando concomitantcmente a sua teoria.

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  • 0 teatro c a tcoria de Brecht devcm sC'r entrndidos no contexto hist6rico gcral e prineipalmente levando-se em conta a situa~ao do teatro ap6s a primeira guerra mundial. Ha raizes que_ o ligam ao teatro naturaiista, mas o seu antiilusionismo e marxismo atuante sepa-ram-no radicalmente do ilusionismo e passivismo daquele movimento. Por sua vez, o antiilusionismo e antipsi-cologismo dos expressionistas sao totalmente "transfun-cionados" na obra de Brecht, despidos do apaixonado

    . idealismo e subjctivismo desta c:Orrente. Brecht absorveu e ~erou am bas as tendencias numa_ nova s{ntese, a semelhanc;a do marxismo que absorveu e reuniu o ma-terialismo mecanicista e o idealismo dialetico de Hegel numa no-'a concepc;ao.

    b) Inidos do teatro epico

    Foi desde 1926 que Brecht comec;ou a falar de Mteatro epico", depois de por de lado 0 termo "drama epico", visto que o cunho narrativo da sua obra somente se completa no talco. 0 fato e que ja a primeira pcc;a de Brecht, Baa ( 1918), tern fortes trac;os epicos, de acordo com o estilo expressionista. Entretanto, s6 em 1926 encontrou o seu verdadeiro rumo ao escrever H o-mem e Homem, pe~a cujo tema e a "despersonalizac;ao" de urn individuo, a sua desmontagem e remontagem em outra personalidade; trata-se de uma satira a concepc;ao liberalista do desenvolvimento aut6nomo da personali-dade hum ana e ao drama tradicional que costuma ter por her6i urn indivfduo forte, de carater definido, imutavel. A concepc;ao epica desta pec;a liga-se, pois, a uma filo-sofia que ja nao considera a personalidade humana como aut6noma e lhe nega a posi~ao central ( mais tarde Brecht iria atenua,r esta concepc;ao naturalista). N a mesma pec;a e apresentado, numa especie de entreato, um poema declamado pela viuva Leokadja: "0 sr. Bertolt Brecht afirma: homem e homem./ Isso e algo que qualquer urn e capaz de afirmar./ Mas o sr. B. B. chega a provar em seguida f Que de urn homem tudo se pode fazer./ Aqui, hoje a noite, um homem e trans-montado como urn autom6vel I Sem que perca qualquer pec;a nesta operac;ao /" etc. Trata-se de urn comentario dirigido ao publico, diverso do pr6logo e do epilogo

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  • apenas pelo fato de figurar no meio da pe~a ~ inter-romper a a~ao.

    Importancia fundamental no desenvolvimcnto do teatro epico de Brecht tern, ah~m de variadas influcncias, de B. Shaw a G. Kaiser e Piscator, os estudos marxistas e sociol6gicos que ini~iou com intensidadc em 1926. Elisabeth Hauptmann, colaboradora de Brecht, escreveu no seu diario ( 26-1-26) que, segundo Brecht, processos modernos, como a distribui~ao do "trigo universal", niio sao dramaticos no sentido tradicional. "Quando sc vc que o nosso mundo atual ja nao se ajusta ao drama, entao o drama ja nao se ajusta ao mundo." Hauptmann acrescenta: "No decmso desses estuclos Brecht claborou a sua teoria do "drama epico" ( citado por Werner Hecht; Brechts ~Veg zum epischen Theater, Ed. Hcnschclverlag, Berlim, 1962, pags. 78/79).

    c) Razoes do teatro epico

    Duas sao as raz6es principais da sua opos19ao ao teatro aristotelico: primeiro, 0 desejo de nao apresentar apenas rela~6(!s inter-humanas individuais - objetivo essencial do drama rigoroso e cia "pe9a bem feita", -mas tambem as determinantes sociais dessas rela96es. Segundo a concepr;ao marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto de todas as rela96es sociais e diante disso a forma epica e, segundo Brecht, a tmica capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a materia para uma ampla concep9ao do mundo. 0 homem concreto s6 pode ser compreen-dido com base nos processos dentro e atraves dos quais existe. E esses, particula1mente no mundo atual, niio se deixam meter nas formas classicas. "Ao petr6leo repugnam os cinco atos". "Pode-se falar sobre dinheiro em alexandrinos -?" (Brecht, Schriften zum Theater, Ed. Suhrkamp, Francfort, 1963/4, Vol. I, pag. 226; dos Escr.itos acerca do Teatro, em sete volumes, ja safram cinco; quando nlio ha indica~oes especiais, as citar;oes referem-se a esta edir;iio). Ate agora, os fatores impes-soais niio se manifestaram como elementos aut6nomos no teatro; o ambiente e os processos sociais foram vistos como se pode ver a tempestade, quando numa superficie de agua os navios i9am as velas, notando-se entao como se inclinam. Para se mostrar a pr6pria tempestade, e

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  • indisp nsnv 1 dissolver a estrutnra rigorosa, 0 encadea-m nlo nusnl da ac;ao linear, integrando-a num contexte mnior e rclnti vizando-lhe a posi9ao absoluta em uw;ao da tempes tade (III, 52). 0 peso das coisas anonimas, niio podendo ser reduzido ao dialogo, exige urn palco que comece a narrar.

    A segunda razao liga-se ao intuito didatico do teatro brechtiano, a inten

  • e estados de embriaguez, destinados a eliminar o juizo claro. A "6pera" Mahagonny apresenta-se fonn almente como produto culinario, mas ao mesmo tempo aborda e critica, na tematica, os gozos culimirios. Assim, forma e tema se criticam mutuamente, a pe9a "ataca a socie-dade que necessita de tais 6peras" e que, atraves de tais obras, procma perpetuar-se. Nos comentarios apos-tos, compara a forma dramatica e a forma epica de teatro, cujas diferen9as, todavia, nao representam p6los opostos e sim divergencias de acento.

    Forma dramatica do teatro

    ntuando envolve o espectador numa

    a9ii.0 cenica gsta-lhe a atividade possibilita-lhe emo96es vlvencia

    c espectador e colocado den-tro de algo ( identifica9ii.o; nota do au tor)

    s; ~ gestii.o os sentimentos sao conservados

    o espcctador identific:vse, con-vive

    0 homem e pressuposto como conhecido

    o homem imutavel

    tensii.o visando ao desfecho

    uma cena pela outra ( encadea-mento; nota do au tor)

    crescimento ( organismo; nota do au tor)

    acontecer linear necessidade evolutiva o homem como ser fixo o pensar determina o ser

    emo~ao

    Forma ep!ca do teatro

    narrando torna o espectador urn obser-

    vador mas desperta a sua atividade

    for~a-o . a tom:1r decisoes concer9lio do mundo e posto em face de algo

    argumento sao impelidos a atos de conhe-

    cimento o espectaclor permanece em

    face de, estuda 0 homem e objeto de pesqulsa o homem mutavel que vive

    mudando tensao visando ao desenvolvi-

    mento cada cena por si

    montagem

    em curvas

    saltos o homem como processo o ser social determina o pensar racioclnio

    Este esquema niio exige muitos comentarios. Em vez da vivencia e identifica9iio estimuladas pelo teatro burgues, o publico brechtiano devera manter-se Iucido,

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  • em face do espetaculo, gra~as a atitude narrativa (I, 2, c; I, 3, d, e, i). As emo~6es sao admitidas, mas elevadas a atos de conhecimento. Mais tarde, Brecht iria acres-centar que as emo~6es nao imp1icam identifica~ao com OS personagens, nao preCis'arri ser identicas as dos per-sonagens. As emo~6es deles podem acrescentar-se ou substituir-se emo~6es criticas on mesmo contrarias, em face de seu comportamento.

    0 homem nfio e exposto como ser fixo, como "natureza humana" ddinitiva, mas como ser em pro-cesso capaz de transformar-se e transfonnar o mundo. Um dos aspectos mais combatidos por Brecht e a con-cep~ao fatalista da tragedia. 0 homem nao e regido por fon;as insondaveis que para sempre lhe determinam a situa~ao metafisica. Depende, ao contn1rio, da situa-

    ~ao hist6rica que, por sua vez, pode ser transformacla. 0 fito principal do teatro epico e a "desmistifica9ao", a revelac;ao de que as desgrac;as do homem nao sao eternas e sim hist6ricas, podendo por isso ser superaclas .

    0 encadeamento rigoroso da Dramatica pura, o qual sugere a situa~ao irremediavelmente tragica do homem, devido ao evolver inexon'tvel da a~ao linear, e substitufdo pelo salto dialetico. Esta estrutura em curvas permite entrever, em cada cena, a possibilidade de um comportamento diverso do adotaclo pelos perso-nagens, de acorclo com sihta~oes e condi~6es divcrsas.

    d) 0 efeito de distanciamertto

    Enquanto ini cialmente se dirigiu contra o "teatro culinario" de mero entretenimento, passou a defender Brecht depois um palco que, embora oposto ao teatro como "ramo burgues de entorpecentes", visa ainda assim ao prazer do pttblico. Isso corresponde ao desenvolvi-mento da sua pr6pria obra teatral. De infcio e ela emocional e ainda burguesa (Baal, Tam bores da N oite); depois vem a fase "refrigerada" - a partir de Na !ilngal das Cidades ( 1921) - fase que chega ao congelamento nas pe~as didaticas ( Aquele que disse sim, Aquele que disse nao ( 1929/30), A Exceydo e a Regra, A Decisiio ( 1930) etc.) e na qual nega dialeticamente a fase an-terior. A sua ultima fase, a de pec;as como A Vida de

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  • Galilei ( 1938/39), A Boa Alma de Se-Tsuan ( 1938/40), 0 Circrtlo de Giz Caucasiano ( 194.5) etc., e urna sfntese das atitudes anteriores. Expressao dessa rnaturidade e o Pequeno Organon ( 1948)-, resumo da teoria epica ern que concede que 0 teatro cientffico nao precisa "emigrar do reino do a9.raclavel" e convcrter-se ern mero "6rgao de pu blicidade' ( prefacio). Mesmo didatico, deve con-tinuar plenamente teatro e, como tal, divertido, ja por~ que "nao falarnos em nome da moral e sim em nome dos prejudicados". Mas OS divertimentos de epocas diversas sao naturalmente cliversos, conforme o convivio social dos hom ens. Para OS filhos de uma epoca cientf-fica, eminentemcnte prorlutiva como a nossa, nao pode existir divertimento mais produtivo que tomar uma ati-tucle critica em face das cronicas que narram as vicis-situdes do convivio social. Esse alegre efeito didatif'o e suscitado por toda a estrutura epica da ~ec;a e prin-cipalmente pclo "efeito de distanciamento' ( Verfrem-dungseffekt = efeito de estranheza, alienac;ao ), merce do qual o espectador, comec;ando a estranhar tantas coisas que pelo habito se lhe afiguram familiares e por isso naturais e imutaveis, se convence da necessidade da interven~_;iio transformadora. 0 que ha muito tempo nao muc1a, parece imutavel. A pec;a deve, portanto, ca.racterizar determinada situa~_;ao na sua relatividade hist6rica, para demonstrar a sua condic;ao passageira. A nossa propria situac;ao, epoca e sociedade devem ser apresentadas como se estivessem distanciadas de n6s pelo tempo hist6rico ou pelo espac;o geografico. Desta forma o publico reconhecera que as pr6prias condic;6es sociais sao apenas relativas e, como tais, fugazes e nao "enviadas por Deus". Isso e o infcio da cdtica. Para empreender e preciso compreender. Venda as coisas sempre tal como elas sao, elas se tornam corriquei.ras, habituais e, por isso, incompreensfveis. Estando identi-ficados com elas pela rotina, nao as vemos com o olhar epico da distancia, vivemos mergulhados nesta situac;ao petrificada e ficamos petrificados com ela. Alienamo-nos da nossa pr6pria forc;a criativa e plenitude humana ao nos abandonarmos, inertes, a situac;ao habitual que se nos afigura eterna. f: preciso urn novo movimento alienador - atraves do distanciamento - para que n6s mesmos e a nossa situac;ao se tornem objetos do nosso juizo critico e para que, desta forma, possamos reen-

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  • contrar e reentrar na posse clas nossas virtualidades criativas e transformadoras.

    A teoria do distanciamento . e, em si mesma, .diale-tica. 0 tornar estranho, o anular da familiaridade da nossa situ a~ao habitual, a ponte de ela ficar estranha a n6s mesmos, torna nivel mais elevado esta nossa situa~ao mais conhecida e mais familiar. 0 distancia-mento passa entao a ser nega~ao da nega~ao; leva aha-ves do cheque do na('J-Conheccr ao chogue do conhecer. Trata-se de urn acumulo de incompreensibilidade ate que surja a compreensao. Tomar estranho e, portanto, ao mesmo tempo tornar conhecido. A func;:ao do dis-tanciamento e a de se anular a si mesma.

    e) Nova funriio de urn efeito antigo

    Esta teoria de modo algnm e nova, embora seja verdade que "no teatro antigo o efeito do distancia-mento ocorre principalmente por engano" (III, 184) ou por mau desempenho . Racine, por exemplo, aceita scm discutir a necessidade de eloigner ( distanciar)' numa trageclia, ao menos 0 pais quando a epoca nao e sufi-cientemente remota (Ver II, 7, a). Pela distfmcia e au-mentada a grandeza e dignidade do her6i. Este distan-ciamento tern, evidentemente, um significado contdtrio ao de Brecht, visto

  • mantes, ele devolve-nos a nossa liberdade qu hi l 1 t ' l der-se na tempestade dos afetos."

    Tal concepc;:ao do coro aproxima-se da brechtiana. Mas a libertac;:ao visada por Schiller e puramente estt~tica. Enquanto Schiller, em ultima analise, almeja urn estado estetico-ludico, apartado da vida imediata, Brecht se empenha, atraves da mediac;:ao estetica, pela apreen-sao critica da vida e, deste modo, pela ativac;:ao poH-tica do espectador.

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  • 17. RECURSOS DE DISTANCIAMENTO

    a) Observaroes gerais

    "DISTANCIAR e ver em tennos historicos" (III, 101). u m dos exemplos mais usados por Brecht para exemplificar esta maneira de ver e o de Galileu fitando o lustre quando se pos a oscilar. Galileu estranhou essas oscila-c;6es e e por isso que lhes descobriu as leis. 0 efeito de distanciamento procura produzir, portanto, aquele estado de surpresa que para os gregos se afigurava como o inicio da investigac;ao cientlfica e do conhedmento.

    A fim de produzir este efeito, Brecht elaborou um grande arsenal de tecnicas, apoiado nos predecessores mencionados. Todas elas se ligam a concepc;ao funda-mental do teatro epico, isto e, a ideia de introduzir uma estrutura narrativa que, ja como tal, implica o "gestus"

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  • da serena e distanto objetividade do narrador em face do mundo nan ado (I, 2, c; I, 3, e). 0 teatro "dramatico" nao manh~m esta atitude distante; pois o mundo objetivo apresen ta-se com a apaixonada subjetividade do genera Hrico, segundo a concep
  • douros ( 1929/30) e A Resistivel Ascensiio de Arturo Vi ( 1941) trata-se de est6rias sinistras de atravessadores e gangsters, apresentadas no estilo do drama elevado.

    Os processos mencionados sao quase sempre comi-cos. 0 c6mico por si s6, como foi demonstrado por Bergson ( Le Rire), produz certa "anestesia do cora

  • A combina
  • miios artificiais e mascaras parcrms . Na apresentar;uo de Copenhague ( 1936) de As Cabe9as Redondas e as Cabe9as Pontudas, os personagens surgiam com tremen-das deformidades dos narizes, orelhas, ca hec;as, queixos. Efeitos semelhantes foram obtidos em 0 Sr. Puntila e seu Servo e 0 Circulo de Giz Caucasimw. Cl'As m{lscaras de Brecht - como as da "Commeclia clell'Arte" - niio apresentam determinada expressao petrificada, como ira, riso, desespero ou sus to (is so e tipico clas mascaras cla Antiguidade e, em parte, da Asia). Sao parciais e mas-tram apenas distorc;6es. 1 Mas a deformac;ao hrechtiana atingc quasc s6 as classes superiores, ao passo que a da "Commedia clell'Arte" desfigura tambem os criados, poupando apenas os namorados. 1

    0 cenario e antiilusionista, nao ap6ia a ac;ao, ape-nas a comenta. estilizado e reduzido ao indispensavel; pode mesmo entrar em conflito com a ac;ao e parodia-la. 0 palco deve ser claramente ilumin.ado e nunca criar ambientes de lusco-fusco que poderiam perturbar os intuitos didaticos da obra.

    d) Os recursos cenico-musicais

    Urn dos recursos mais importantes de distancia-mento e o de o autor se dirigir ao publico atraves de coros e cantores. A func;ao da musica na obra de Brecht corresponde as tendencias modernas em geral, que di-vergem das concepc;6es wagnerianas, segundo as quais a musica, 0 texto, e OS outros elementos teatrais se ap6iam e intensificam mutuamente, constituindo uma sintese de grande efeito opiatico. Tal concep~ao torna a musica 'urn instrumento de interpreta~ao psicol6gica, tirando-lhe toda autonomia. Contra isso se dirigem muitos compositores, no desejo de lhe restituir a inde-pendencia perdida. Isso levou a separac;iio entre palavra e musica, nos orat6rios e cantadas cenicos que atual-mente se multiplicam. A iniciativa, neste sentido, parece ter partido de Stravinski, em cuja "6pern" Hist6ria de um Soldado ( 1918) o narrador do velho orat6rio conta os eventos que ao mesmo tempo sao ilustrados por figuras mudas, pela pantomima ou danc;a. A orquestra encontra-se ao lado; no palco, e toea uma composi~ao musical autonoma que transmite impulsos coreogr:Hic:os

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  • em vez de interpretar e apoiar o texto. :E: caracteristico que a cantata - de tendencia lirica - e o orat6rio -de tendencia epica - tendem a opor-se a 6pera, de tendencia dramatica. Digna de menr;ao, neste contexto, e uma obra como dipo Rei, de Stravinski, em que OS eventos sao antecipados pelo relato de urn narrador; os personagens nao desempenham: relatam. 0 canto e executado num ritmo antipros6dico que fere a acentua-~ao da lingua. No mesmo terreno tornou-se famoso o compositor sufc;o A. Honneger, ao modernizar a polifonia coral de Haendel. Sua composi~ao Joana. na Fogueira, sobre o texto de Claude!, tornou-se ti'io famosa como a de D. Milhaud para Crist6viio Colombo. As tentativas de Brecht de ligar a per;a ciidatica ao orat.6rio, sao ainda hoje tema de discussfio, nao obstante a maioria dos especialistas consider{t-las fracassadas , por mais inte-ressantes que sejam as invenc;ties rnusicais de Hanns Eisler e Paul Hindemith.

    Geralmente a musica assume nas obras de Brecht a func;ao .de comentar o texto, d

  • na ribalta, porta-voz do autor, nao se dirigc a nenhum outro personagern, apenas ao publico. Ern Mae Cora-gem, 0 song e cantado pelo cozinheiro como personagem da pe~a que canta para rnendigar urna sopinha. 0 song, nesta pe~a, conserva todo o seu didatisrno dnico, mas agora a sua apresenta~ao e plenarnente rnotivada a partir da as:ao que, ainda assirn, e interrornpida e cornentada pelo canto.

    e) 0 ator como na"ador

    Todos os recursos expostos nao bastariam, para obter 0 efeito desejado, se 0 ator representasse a rnaneira tradicional, identificando-se totalrnente corn seu papel. 0 ator epico deve "narrar" seu papel, corn 0 "gestus" de quem rnostra urn personagem, rnantendo certa dis-tAncia dele (I, 2, c; II, 5, e). Por urn a parte da sua existencia histrionica - aquela que ernprestou ao perso-nagem - insere-se na ac;:ao, por outra mantem-se a margem deJa. Assim dialoga nao s6 com seus compa-nheiros cenicos e sim tambem com o publico. Nao se metarnorfoseia por cornpleto ou, rnelhor, executa urn jogo diHcil. entre a metamorfose e o distanciamento, jogo que pressup6e a rnetamorfose. Em cada momenta deve estar preparado para desdobrar-se em sujeito ( nar-rador) e objeto (narrado), mas tambem para "entrar" plenamente no papel, obtendo a identifica~ao dramatica em que nao existe a relativizac;ao do objeto (persona-gem) a partir de urn foco su bjetivo (a tor). Que o distanciamento pressup6e a identificas:ao - pelo menos nos ensaios - foi destacado por Brecht (Pequeno Or-ganon, ~ 53 etc. ) .

    Na medida em que o ator, como porta-voz do autor, se separa do personagem, dirigindo-se ao publico, aban-dona o espa~o e o tempo fictlcios da a~ao. No teatro da Dramatica pura, os adeptos da i1usao esperam que a entidade "ideal" de cada espectador se identifique com o espac;:o e tempo ideais ( fictfcios) por exemplo de Fedra, vivendo imaginariamente o destino mftico de Fedra e Hip6lito, enquanto os cidadaos emplricos, "rna-teriais", permaneceriam como que apagados e esqueci-dos nas poltronas. No momenta, porem, em que o ator se retira do papel, ele ocupa tempo e espac;:o diversos e com isso relativiza o tempo-espac;:o ideal da a~ao

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  • dramatica. Simultaneamente atTanca a entidade ideal do publico desse tempo-espac;o .fi.cticio e a reconduz a plattHa, onde se une a patte material do espectador. 0 persona gem e a a~ao sao projetados para 0 preteri to epico, a partir do foco do ator, cujo espa~o-tempo e mais aproximado do espa~-tempo empfrico da plah~ia . Seria talvez ousado dizer que, ao se dirigir a plateia, fala o ator Joao da Silva. ESte apenas finge falar como ator real e desempenha, ainda agora, urn papel - o papel do natTador que pronunc1a palavras de urn antor talvez ja falecido. Mas decerto se dirige neste novo papel, mais aproximado da realidade empirica, ao pu-blico real da plateia que neste momento jn niio vive identificado com os personagens e a ac;iio fictfcia. 1J: evidente que esse procPsso interrompe a ilusao, e com isso o processo cah1rtico.

    Ao distanciar-se do personagem, o ator-narrador, dividindo-se a si mesmo em "pessoa" e "personagem", deve revelar a "sua" opiniao sobre este ultimo; deve "admirar-se ante as contradi~6es inerentes as diversas atitudes" do persona gem (Pequeno Organon, 64). Assim, o desempenho torna-se tambem tomada de po-

    si~;ao do "ator", nem sempre, alias, em favor do per-sonagem. 0 ponto de vista assumido pelo ator e 0 da critica social. Ao tomar esta atitude crl.tica em face do personagem, o ator revela dois horizontes de conscien-cia: o pele, narrador, e o do personagem; horizontes em parte entrecruzados e em parte antinomicos . 0 ator--narrador mostra urn horizonte maior, ja por conhecer desde logo o futuro do personagem. Atraves desse des-dobramento e sugerido que 0 personagem age, como vern agindo, devido a sua limita~iio de horjzonte e devido a dada situa~iio social que niio e a do ator--narrador. Se fosse menos limitado e vivesse em outras circunst?mcias, o personagem poderia ter agido de modo diverso; sua ac;ao nao decorre de "leis naturais", nao e determinada por uma fatalidade metaHsica.

    Para exprimir sua atitude critica, o ator depende em ampla medida do gesto, da pantomima, da entoa~ao especifica, que podem ate certo ponto distanciar-se do sentido do texto proferido pelo personagem e entrar mesmo em choque com ele. Dentroi do proprio jogo pantomfmico, tao ricamente desenvolvido nas encena

  • gem, o filho Eilif executa uma dancra de guerra. "A selvageria exultante e, no caso, ao mesmo tempo brutal

    refreada. 0 dan9arino salta bern alto no ar, o sabre s guro entre ambas as maos acima da cabe9a; mas sua cnhc9a se inclina para urn lado e os h\bios estiio fran-zidos, como mnn esfor9o de recordar o movimento .~cgninte. Eilif e aqui "mostrado" como urn jovem que

  • Mas o tcrmo "g st IS'' refere-se tambem ao espfrito fundamental d urn n cena (de urn homern, de uma ora
  • costumava arranjar-lhe OS cabelos quando ia a igreja ... Isto e, o dialogo f. transformado em narra~ao .

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  • 18. EXEMPLOS DA DRAMATURGIA

    a) A Decisiio

    ENTRE AS "pec;as didaticas" ( aquelas em que o dida-tismo, essencial a todas as pec;as a partir de 1926, se manifesta de modo clireto e aberto) distingue-se A Decisiio ( 1930). Quatro agitadores russos enviados a China para incentivar a causa da revoluc;ao matam urn jovem colega que enconham na fronteira e que lhes serve de guia, mas que poe em perigo a causa devido ao seu comunismo emocional e romantico. Os quatro agitadores tern de justificar-se ante o "coro supervisor", ao voltarem a Moscou. Toda a pec;a desenrola-se diante deste coro, fato que corresponde plenamente a uma dramaturgia epica que visa ao publico de urn modo explicito (II, 6, c, d, e). Ademais, toda a a~ao "drama-

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  • tica" (como trn o t'S lilistico) - a morte do jovcm comunista, 0 conrtito, a !uta' ...:... e emoldurada pela atua-lidade do trilnmal. A ac;ii.o "dramatica" propriamente dita e distanciada pelo preterito, e narrac;ao posta em cena p erante o tribunal para demonstrar o comporta-mento errado do camarada eliminado. Isso resulta numa situ ac;ao extremam('nte propicia ao desempenho hrcch-tiano: os quatro agitaclores demonstram algo nos juizes ( e ao publico), tres deles assumindo os papeis cleles mesmos ( ou de outros personagens) , sempre olhando para os juizes, e urn assumindo o papel daquele de cuja eliminac;ao participou e a quem, enquanto o en-carna, ao mesmo tempo acusa . Enquanto agem na atua-lidade, discutindo com os JUIZes (o coro) o acon-tecido, segundo os preceitos fundamentais da Dramatica, comportam-se de urn modo puramente contemplativo, contradizendo os trac;os estillsticos dramaticos. E en-quanta narram o passado, segundo os preceitos da pica, passam a atuar dramaticamente. Acresce que o jovem eliminado nao e personificado por um dos quatro agi-tadores, mas por todos os quatro, sucPssivamente, de modo que nenhuma identificac;iio, por parte dos atores ou do publico, se torna possivel. Para compldar o qua-dro epico o coro intervem ap6s cada cena e por vezes no meio dela; discute com os agitadores, que acabaram de representar urn dos cpis6clios passados, a correc;iio do comportamento deles e do jovem, resumindo a con-clusao, comentando-a e elcvando-a a emmciados gerais da doutrina comunista.

    0 uso da mascara durante as cenas apresentadas pelos agitadores, alem de indicar a completa desperso-nalizac;iio do individuo a servic;o do partido, suscita um clima de estranheza. Para isso conbibuem tambem a musica de Hanns Eisler e o estilo extremamente impes-soal e frio da pec;a.

    b) Quatro das gran des peras

    Tambem as grandes pec;as da fase posterior tern cunho didatico, mas a mensagem se manifesta de urn modo bern mais indireto e por vezes mesmo ambiguo. A mediac;ao estetica, extremamente rica, atenua a nudez dos valores politico-sociais proclamados e suspende-lhes 0 cara ter unilateral pela integrac;ao num organismo ar-

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  • tistico mais equilibrado e mais nuan9ado. Tambem em pee; as como 0 Senhor Puntila e seu Servo Matti ( 1940/ 41) , 0 Crculo de Giz Caucasiano (1944/45) e Mae Coragem ( 1939), como em muitas pec;:as anteriores, o ato como unidade menor de uma ac;:ao e substitufdo, segundo a tradic;ao do drama epico, por uma sequencia solta de cenas apresentando epis6dios de certo modo independentes, cada qual com seu proprio climax e todas elas "montadas" pelo narrador exterior a ac;:ao. A Boa Alma de Se-Tsuan (1938/39) e, ate certo ponto, uma exce9ao, pois tern certa unidade de ac;ao e apre-senta uma estrutura dramatica mais tradicional; de outro lado, porem, e uma pec;:a sem desfecho e soluc;ao e 0 publico e exortado a res~lver 0 problema proposto, 0 que contradiz uma das teses fundamentais de Arist6teles. Em todas as pe9as mencionadas ha urn conjunto de comentarios projetados ou cantados, bern como falas dirigidas ao publico. 0 Senhor Puntila inicia-se com urn pr6logo poetico apresentado por uma criada e pros-segue como sequencia baladesca, livre, de epis6dios que ilustram uma situac;ao social basica, a relac;:ao entre senhor e criado. Na apresentac;ao do "Ensemble de Berlim", a "canc;:ao de Puntila" reproduz e comenta a

    re~a. cena por cena, a maneira de uma halada .

    A demonstrac;ao de uma situac;ao social basica leva a tipizac;:ao das relac;:6es humanas, padroniza OS feno-menos reais e produz o "modelo" que senre como signo, indica9ao ou demonstrac;ao de uma realidade exterior de que a pec;:a se toma fun9ao - relativizac;:ao contraria a Dramatica pura que traz o universal no seu proprio hojo, sem visar a alga exterior a o_hra de artc. Nisso 0 modelo se assemelha a parabola, forma preclileta de

    , Brecht (II, 6, e). Parabola e, por exemplo, 0 Circulo de Giz, cuja parte central e, toda ela, uma imagem destinada a ilustrar urn problema apresentado na "mol-dura" que enquadra a parte central: a quem deve pertencer urn peda

  • E cvidcnte qu e tanto o modclo como a parabola relativizam a pe~a rdcrindo-a a algo a ser ilustrado, ao passo que a pc
  • pregados pela nossa sociedade, tanto mais se animaliza e se "aliena" no senti do social ( s6 mesmo urn lou co tern o privilegio de poder ser bondoso); e quanto mais se ajusta, no estado s6brio, a dura realidade social, tanto mais se animaliza em face dos valores supremos pro-clamados por esta mesma sociedade.

    A Boa Alma de Se-Tsuan apresenta ensinamento se-melhante de alienar;ao. A prostituta Shen-Te, a {mica boa alma que tres deuses encontram ao descer a terra, tern de desdobrar-se e metamorfosear-se, com parte do seu ser, no duro primo Shui-Ta para poder sobreviver. A situa-r;ao deJa e quase identica a de Puntila. "Ser boa, diz ela aos deuses, e viver apesar disso, despeda9ou-me em duas partes. . . Ai, vosso mundo e diffcil I Quem ajuda os perdidos, perdido esta I" - rase cmel que joga os valores eticos contra OS valores da competir;ao e do exito e demonstra as contradir;6es na escala de valores da nossa sociedade. Nao e muito diversa a situar;ao de Mae Coragem que, negociando entre as tropas da guerra dos trinta anos, nao consegue conciliar as qualiclades de boa mae e vivandeira esperta. A mae adotiva de Circulo de Giz sucumbe a "terrfvel" sedur;ao da bon-dade, ao tomar conta da crianr;a abandonada pela ver-dadeira mae durante uma revolur;ao. Essa sedur;ao da bondade e "terrivel" devido as circunstancias sociais que prevalecem, mas no fundo nao ha nada mais penoso do que ser mau (como demonstra Puntila que se embriaga para nao se-lo) e nada mais doce do que ser born. Mas as consequencias dessa bondade seriam as mais tristes para Grusha - a mae adotiva - se nao surgisse o juiz Azdak que, ferindo a lei, restabelece a justir;a. Esse juiz "rompe a lei qual pao para os pobres" e "deixa-se subomar pela mao vazia"; "nos destror;os da lei leva o povo a terra firme". Nao poderia haver efeito de estra-nheza paradoxa! mais dr:'tstico do que aquele que brota do caso deste juiz Azdak que e born juiz por ser mau juiz (Ver 11,6,e).

    A tecnica provocadora da desfamiliariza

  • tlldhln II III 11111111 11 I 1111 111 If Ill

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    direi to positivo ), mas em do supremo tribunal da

    d) 0 preterito epico llrl' ht criou esph~ndidos personagens, apesar do

    Nt' u untipsicologismo e da sua tendencia de elaborar uracteres simplificados, nao muito diferenciados. Mais

    importantes sao para Brecht as vicissitudes sociais em que se vern envolvidos. Daf a importancia que atribui a fabula e ao seu desdobramento num plano largo, epico, capaz de explicar seu comportamento, suas a~6es e rea~6es individuais, em fun~ao das condi~oes sociais. Essencial e que 0 publico tenha clara nor;ao de que OS mesmos personagens poderiam ter agido de outra forma. Pais o homem, embora condicionado pela situa~ao, e capaz tambem de transforma-la. Nao e s6 vitima da hist6ria; e tambem propulsor dela. Essa visiio mais ampla nem sempre e dos personagens, mas e facilitada ao publico pela estrutura epica que lhe abre horizontes mais vastos que os dos personagens envolvidos na a~ao dramatica. :E, pais, o publico que muitas vezes e soli-citado a resolver os problemas propostos pela p~a que se mantem aberta.

    As inten~oes epicas foram levadas ao extrema em Circulo de Giz Caucasiano, obra que e urn verdadeiro "canto enquadrado", uma per;a dentro da per;a. Merce desse artiffcio - empregado tambem par Claudel em Crist6viio Colombo - a fabula central ( da mae adotiva que salva 0 filho da mae real) e apresentada como coisa passada a urn publico cenico "contemporfmeo" que, antes, representa o epis6dio inicial da moldur;:t (quem deve explorar urn peda~o da terra ? ) . Mas den-tro deste caso da wae, ha muito passado, e introduzida mais uma est6ria, a do juiz Azdak, que pelo seu julga-mento entrega a crian~a aquela mulher que nao ousa arranca-la do cfrculo de giz, por medo de feri-la ao disputa-la com a concorrente. A est6ria do juiz - curio-samente, pe~a dentro da per;a dentro da per;a - encon-tra-se de certo modo no mais-que-perfeito, vista sen plano temporal ser em parte anterior ao da per;a central e bern anterior a moldura "contemporanea". Assim, tbda a pe~a central e projetada pelos cantores e musicos da moldura

    17~

  • para a distancia epica de um passado remota. Os hardos narram a est6ria e comentam a ac;ao - rcvelando o hori-zonte amplo do narrador onisciente -, dirigem perguntas ao "seu" publico ( ao do palco e, atraves dele, ao eTa pla-teia) e antecipam epicamente o futuro - antecipa9ao que seria impossfvel na Dramatica pura, visto os perso-nagens envolvidos na ac;ao atual nao poderem penetrar o futuro. Ao mesmo tempo incitam os personagens a agir ou a precaver-se e tornam bem clara que eles apenas ilustram a narrativa. Revelam mesmo o que ocorre no intimo deles ( "ouc;am o que ela pensou, mas nao disse" - e 0 que, portanto, nao cabe no dicllogo)' assumindo func;oes tfpicas do Kabuki japones. Por vezes interpretam uma ac;ao apenas pantomfmica, processo que e igualmente tlpico do teatro asiatica.

    e) Conclusiio

    Se se quisesse formular de um modo um pouco paradoxa! a mais profunda transformac;ao introduzida pelo teatro epico, poder-se-ia dizer, talvez, que 0 dialogo deixa de ser constitutive. Por tras dos bastidores esta o narrador, dando corda a ac;ao e aos pr6prios perso-nagens; os atores apenas ilustram a narrac;ao. Uma vez que s6 demonstram uma fabula narrada pelo "autor", nao chegam a se transformar inteiramente nos perso-nagens. f: como se aguardassem o aceno do narrador para, depondo o cigarro que fumaram, tomarem rapi-damente a atitude dos personagens fictfcios: f: como se, em pleno palco, se servisse cha aos atores; eles o tomam, como atores, e tornam a desempenhar os papeis.

    Os atores ja n~o "desaparecem", niio se tornam totalmente transparentes, deixando no palco apenas per-sonagens. De certo modo colocam-se por tras deles e mostram-nos ao publico, como os operadores dos tlteres no Japao. Os personagens parecem altos-relevos, salien-tes sem duvida, mas ainda ou de novo ligados ao peso macic;o do mundo narrado, como que inseridos no fundo social ou c6smico que os envolve de todos os !ados e de cujas condic;oes dependem em ampla medida. Nao sao esculturas isoladas, rodeadas de espac;o, personagens que, dialogando livremente, projetam 0 mundo que e func;ao deles. Agora sao projetados a partir do mundo e se

    i

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  • convertem em funr; iio dele. Uma das maiores figuras de Brecht, a fl lhn de mae Coragem, e muda. No texto da p ~a a sua presem;a e mediocre. 0 palco, como instmm nto de narrac;:ao, !he da uma func;:ao extraordi-n{tria, ja nao baseada no dialogo e sim na pantomima.

    Ernst Robert Curtius acentua que cabe ao drama representar a existt~ncia humana nas suas relac;:6es com o universo - a que, sem duvida, sc deveriam ainda acrescentar as re1ac;:6es hist6rico-sociais. Disso, porem, prossegue, nao e capaz a tragedia classica dos franceses e alemaes. Esta forma do drama classico, resultado do ~enascimento e do Humanismo, e antropocentrica. Ela separa o homem do cosmos e das forc;:as da religiao ( e das fon;as sociais, poder-se-ia acrescentar); ela fecha o homem na solidao sublime do espac;:o moral. Os perso-nagens tn1gicos de Hacine e Goethe sao colocaclos diante de decisoes. A realidade que tern de enfrentar e o jogo dos poderes psicologicos do homem. A grandeza e a limitac;:ao da tragedia classica e 0 seu confinamento dentro da esfera psicol6gica, cujo circulo restrito de leis nunca e rom pi do . . . 0 proprio Goethe teve de despe-dac;:ar a forma ao criar o poema c6smico de Fausto ( Lfteratura Europeia e Idode Media Latina, Eel. Insti-tuto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957, pag. 148).

    o teatro epico niio pode aspirar a grandeza do teatro classico, mas em compensac;:ao emancipou-se das suas limitac;:oes. Ao protagonista nao cabe mais a posi-c;:ao majestosa no centro do universo. Tanto na obra de Claude! como na de Wilder, Brecht ou O'Neill, a posi-c;:ao do hom em ( e do individuo) e mais modesta, quer por fazer parte do plano universal de Deus, qu er por ser parcela embora importante do plano escatol6gico da visiio socialista, quer ainda por afigurar-se, de dentro de si mesmo, ameac;:ado por forc;:as irracionais que lhe limitam o campo de articul~ao e decisao lucidas e racionais. Na associac;:ao da f:pica a Dramatica - apa-rentemente uma questao bizantina de classificac;:ao e de generos - manifesta-se nao s6 o surgir ou ressurgir de novas tematicas, mas uma deslocac;:ao decisiva na hierar-quia dos valores . Particularmente a concepc;ao teocen-trica ou sociocmtrica transborda do rigor da forma classica, na medida em que ultrapassa a limitac;:ao da esfera psico16gica e moral, enquanto apenas psicol6gica e apenas situada no campo da moralidade individual.

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