UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO Campus Baixada Santista Instituto de Saúde e Sociedade Curso de Psicologia MAYARA SANDIM LOPES CAMINHANDO COM OS POVOS CIGANOS: aproximações entre processos históricos e interculturais do anticiganismo e descolonização da psicologia Santos 2021
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
Campus Baixada Santista
Instituto de Saúde e Sociedade
Curso de Psicologia
MAYARA SANDIM LOPES
CAMINHANDO COM OS POVOS CIGANOS:aproximações entre processos históricos e interculturais do anticiganismo e
descolonização da psicologia
Santos
2021
MAYARA SANDIM LOPES
CAMINHANDO COM OS POVOS CIGANOS:aproximações entre processos históricos e interculturais do anticiganismo e
descolonização da psicologia
Trabalho de conclusão de curso
apresentado como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em
Psicologia pela Universidade Federal de
São Paulo - Campus Baixada Santista.
Orientador: Prof. Dr. Stéfanis Silveira
Caiaffo
2
3
DEDICATÓRIA
Aos loucos,
porque impossíveis de serem colonizados.
Aos Orixás, que por meio das forças da Natureza
possibilitam a diversidade das vidas.
Aos povos indígenas, por me concederem carregar um nome que remete à
ancestralidade desta Mãe Terra, que é indígena.
À Umbanda, por me permitir compreender que estar conectado ao sagrado
é estar conectado com minha potência.
Aos povos ciganos, por ensinarem a força da liberdade.
À Santa Sara Kali, que guia e acompanha os ciganos em seus caminhos.
À cigana Bárbara Gorgátti, por transmitir a magia das danças ciganas.
Às bruxas, por me permitirem reconhecer que também sou uma.
Aos guias e mentores espirituais que me acompanham,
pela companhia, parceira, ensinamentos, proteção e por me fazerem perceber que
nunca estive sozinha.
Ao meu avô Valentim (in memorian), por trazer mais alegria à minha infância. Foi
vítima do COVID-19.
Às Pombagiras e aos Exus,
potências revolucionárias.
Mojubá!
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Olorum (deus/a) por me conceder viver esta encarnação, com todos
seus desafios, aprendizados e potencialidades.
Agradeço a minha família por proporcionarem meu sustento durante todos os anos
de estudos.
Agradeço a minha gatinha Lucie (in memorian), que me ensinou o amor e
desabrochou em mim meu enorme vício por gatos.
Agradeço a minha gata Pitanga, minha melhor companheira, minha alegria que me
aguenta 24h por dia na pandemia.
Um muito obrigada também às ervas, que através dos banhos, com seu axé, me
ajudam proporcionando limpeza, cura e equilíbrio da minha própria energia.
Gratidão aos terreiros e a todes que compõem suas egrégoras:
Ao Núcleo de Umbanda Sagrada Filhos de Aruanda - Jurema Flecheira, primeiro
terreiro que me acolheu e me cuidou, onde também descobri que era médium.
Ao Céu da Meia Noite, onde pude dar continuidade aos meus cuidados, iniciar meu
desenvolvimento mediúnico, ‘vestir o branco’ e trabalhar mediunicamente.
Agradeço a toda a espiritualidade e, em especial, à cigana e à pombagira que me
acompanham, meu agradecimento não é cabível em palavras e sem vocês nenhum
renascimento teria sido possível.
Agradeço à Eliza, por ter costurado lindamente minhas primeiras saias ciganas para
as danças.
À Giovana, minha psicóloga, que acompanhou afetivamente grande parte da minha
caminhada.
5
Agradeço ao meu orientador Stéfanis pela paciência e coragem de ter topado
compor este trabalho.
Agradeço à Maria Inês por ter aceito avaliar este trabalho e por sua gigante
sensibilidade que irradia por onde passa.
Agradeço ao Alexandre por ter aceito avaliar este trabalho e pela parceria durante
minha trajetória na universidade.
Agradeço aos meus amigos pela companhia singular de cada um, por cada
diferença que nos aproxima e que engrandecem nossa vivência, pois a amizade é
um dos afetos mais potentes.
6
“ - A dança e a música são um meio de
comunicação dos ciganos com Deus. Então,
nossa forma de orar, nossa forma de chorar,
nossa forma de alegrar, nossa forma de tudo
é a dança, é a música.”
(Bárbara Gorgátti, cigana Calin)
7
RESUMO
Este trabalho busca, sobretudo, contribuir para a desconstrução dos estereótipos e
preconceitos contra os povos ciganos. Para tanto, foi proposta uma longa caminhada:
começamos percorrendo a história a fim de compreender o percurso migratório e nômade
dos ciganos pelo mundo, principalmente nas passagens pela Europa e pelo Brasil.
Concomitantemente, ao longo desse percurso, vai-se tecendo uma genealogia dos
estereótipos e das imagens anticiganas sobretudo a partir do contexto de formação do
capitalismo europeu. Durante o trajeto, travou-se alguns diálogos com as danças e músicas
ciganas, a Umbanda e a caça às bruxas, evidenciando a complexidade intercultural e um
anticiganismo muito arraigado na sociedade brasileira e no mundo. Diante das
problemáticas levantadas em torno da exclusão e do etnocídio ciganos, foram propostas
algumas pistas dialogadas entre a história, a filosofia, os saberes
tradicionais/não-ocidentalizados e práticas da psicologia frente aos efeitos oriundos de uma
sociedade anticigana. Nesses diálogos, pensou-se o contexto de produção do modo
capitalista e do colonialismo e suas implicações para todos aqueles que divergem do
homem branco europeu, entre eles os ciganos, evidenciando uma relação entre a nova
ordem, a propagação dos estereótipos e a legitimação da caça aos ciganos. Por fim,
tenta-se explicitar a apagada inserção dos ciganos nesses contextos históricos, ao mesmo
tempo em que se lança um convite para produzirmos algumas reflexões iniciais na direção
de uma prática psi descolonizada, tendo em vista que esse campo de saber foi gestado no
contexto europeu de formação do capital e, no Brasil, herdamos esse conhecimento
colonizado, que produz escutas seletivas para alguns e adoecimentos psicossociais para
aqueles que se encontram à margem do pacto social. Contudo, tendo em vista a potência da
psicologia em produzir acolhimento e cuidado em saúde, especialmente em saúde mental,
um campo eminentemente político e que deve ser construído por todos os sujeitos sociais, a
caminhada segue nessa direção, tentando desconstruir, portanto e necessariamente, os
conhecimentos hegemônicos e colonizados que têm por objetivo reduzir as multiplicidades.
Palavras-chave: Povos ciganos. Romá. Culturas ciganas. Romani. Capitalismo. Caça às
bruxas. Magia. Intercultural. Umbanda. Etnocídio. Descolonização da psicologia.
Colonialismo.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Diáspora cigana a partir da Índia.
Figura 2 - Cartaz de venda de escravos ciganos.
Figura 3 - Ciganos no campo de concentração de Belzec.
9
SUMÁRIO
1. PRIMEIRAS ANDANÇAS 11
2. HISTÓRIA, ANCESTRALIDADE E ORIGEM 17
3. CIGANOS NA EUROPA: DA “FASCINAÇÃO” À PERSEGUIÇÃO 23
4. CIGANOS NO BRASIL 294.1. Ciganos e a Umbanda: possíveis contribuições da Umbandapara a visibilidade das culturas ciganas 35
8. ALGUMAS REFLEXÕES E IMPLICAÇÕES DA PSICOLOGIA 568.1. A incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho 568.2 A caça às bruxas também se estendem às ciganas 608.3. Descolonização da Psicologia: por uma subjetividade nãodelimitada e não unificada 70
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS 83
10.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 86
10
1. PRIMEIRAS ANDANÇAS:
“Caminharei minha ciganice
por esses e outros mundos
ainda que nesta caminhada
fira os meus pés
nas pedras das estradas.”
(Esmeralda Liechoki)
Este trabalho nasce de um duplo renascimento. Duplo, porque parte de um
renascimento pessoal onde eu encontro a Umbanda e as danças ciganas, que
ocasionam grandes transformações na minha vida e me possibilitam, assim,
recomeçar minha caminhada; também parte de um renascimento do próprio
trabalho, que inicialmente pretendia traçar outros caminhos, especialmente ligados à
experiência das danças ciganas, mas que foi impossibilitado pelo contexto de
pandemia, isolamento social, mudança de cidade, suspensão das aulas presenciais
de dança, somado também à escassa bibliografia acadêmica acerca do recorte
temático que eu gostaria de abordar, enfim, uma ideia interrompida que precisou
morrer para recomeçar. Então, pensando no que poderia contribuir de maneira
potente dentro dos novos limites e possibilidades, decidi expor o contexto de
construção dos estereótipos ciganos para que possamos desconstruí-los, tentando
articular também algumas maneiras pelas quais o exercício da psicologia tem
responsabilidade e potência tanto para interferir nas mudanças e na promoção de
saúde quanto também para produzir adoecimentos quando sua escuta se faz surda
para determinados sofrimentos psíquicos que, de antemão, já digo que também são
sociais e políticos.
Em 2019, veio-me a ideia de começar a fazer aulas de dança. Na época,
procurava por aulas de tango e, nessa busca, encontrei um estúdio de dança onde,
em vez do tango, deparei-me com a dança cigana. Até então, eu desconhecia essa
dança, mas por algo que não sabia explicar, ela despertou interesse em mim e
decidi fazer uma aula experimental. Desde então, não parei com a dança, fui tomada
por ela e ficando cada vez mais envolvida, algo que não imaginava ser possível para
11
uma pessoa que não tinha um histórico de interesse por danças, muito menos se
considerava ‘dançante’. Falo então como uma dançarina amadora e que reconhece
seu apaixonamento pelas danças ciganas, as quais inclusive introduziram em mim o
interesse por outras modalidades de dança e sobretudo me ajudaram nas minhas
dificuldades de comunicação, interação e expressão, além de me proporcionar
liberações e um reconhecimento da potência do corpo feminino. Também percebi
que é possível não pensar quando se está dançando, foi como respirar pela primeira
vez. Isso muito contribuiu para que eu me afastasse de uma vez por todas de um
excesso de mentalismo muito arraigado pela dicotomia cartesiana, que ignora o
corpóreo, pois, ainda que eu já soubesse que não existe separação entre mente e
corpo, como nos diz Espinosa1, o processo de concretizar essa união acredito que
só foi possível para mim com o desenvolvimento da dança.
Outras coisas que apareceram na minha caminhada também me colocaram
em condições inimagináveis para mim, como é o caso da religião. Nunca imaginei
ser religiosa, embora essa questão de fato se aplicasse mais às religiões cristãs.
Contudo, a vida parece querer nos inaugurar essas coisas que imaginamos ser
impossíveis para a gente e, cá estou eu hoje, como uma ferrenha macumbeira. Foi,
então, por meio da Umbanda e da dança que iniciei meu contato com as culturas
ciganas. Eu já frequentava a Umbanda quando conheci a dança, contudo, em 2019,
também entrei para o corpo mediúnico de um terreiro. Minhas andanças nas
quintas-feiras à noite competiam entre si, pois eu queria estar na aula de dança, no
desenvolvimento mediúnico no terreiro e nas rodas de música na rua da Bacia do
Mercado de Santos, onde fazia o estágio ‘clínica à céu aberto’ na época. Às vezes,
não sabia o que fazer, mas percebi que frequentemente colocava a dança como
prioridade maior entre as outras prioridades e foi nesse contexto de intensas
andanças que decidi que iria fazer minha pesquisa com as culturas ciganas. Além
disso, gostaria de ressaltar, desde já, que os ciganos constituem povos plurais e não
uma religião. Inclusive, eles não possuem uma religião específica, geralmente
acabam adotando a religião do local onde estão, mas podem também não se filiar a1 Referência à Ética de Espinosa, em que diz que mente e corpo são uma só e mesma coisaexpressa de modos diferentes, ou ainda, “a Mente e o Corpo, são um só e o mesmo indivíduo, o qualé concebido seja sob o atributo do Pensamento seja sob o da Extensão” (escólio da Proposição XXI,p. 175). Ver mais em: ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: Edusp, 2018.
12
nenhuma. Mais adiante, retornarei a esse assunto, por ora, tomemos como uma
precaução. Enfim, foi por meio da dança e da religião que eu entrei em contato com
as culturas ciganas e, agora, gostaria de compartilhar um pouco do que aprendi até
aqui, pois percebi que isso se faz bastante necessário.
***
Antes de adentrarmos na caminhada com os ciganos, gostaria de ressaltar
que os ciganos não constituem um grupo homogêneo, sendo importante falar em
povos que são culturalmente heterogêneos, diversos, com identidades híbridas,
cabendo pensar, talvez, em um mosaico etnocultural para se referir a eles como
alguns autores adotam2 ou em uma “cultura de fronteira”.3 Sendo assim, o primeiro
passo para se aproximar desses povos é se afastar de uma visão eurocêntrica.
Os povos ciganos são extremamente perseguidos e estigmatizados desde
que começaram a caminhar pelo mundo, provavelmente por volta do século X, de
modo que se faz pertinente reconhecermos a existência de um etnocídio cigano,
algo que ainda não terminou e que também é pouco discutido e visibilizado. O
próprio termo cigano é uma denominação dada pelos não-ciganos aos romá, este
sendo o termo oficialmente usado para se referir a eles mesmo, embora não sem
algumas discordâncias devido ao termo se aproximar do nome do grupo étnico Rom
(um dos grupos ciganos), podendo dar margem para delegar uma maior relevância a
este grupo em detrimentos dos demais.
Os ciganos estão espalhados por todas as regiões do mundo, sendo que
através dos contatos inter-étnicos e interculturais, eles vão se diversificando
culturalmente e constituindo clãs. Os ciganólogos fazem referência a três grandes
3 Teixeira (2019) diz que: “Os ciganos constituem-se em uma “cultura de fronteira”. A característica decultura de fronteira é a vocação para práticas cartográficas: desenham mapas que definem a parte dedentro e os que habitam como mais significativos do que tudo o que se encontra do lado de fora e emsituação de desconforto. É em função de tal mapeamento que as culturas de fronteira olham para simesmas em autocontemplação. As culturas na fronteira, por outro lado, contemplam o que está foramais do que está dentro, porque, não tendo o poder de exercitar práticas cartográficas centralizantese tendo as suas fronteiras definidas pelas culturas centrais, devem necessariamente desejar o centroque está fora (p. 347).
2 Hilkner (2012) fala sobre a ideia do mosaico étnico para pensar os povos ciganos.
13
grupos ou natsia4 ciganos no Ocidente: Calón, Sinti e Rom, sendo que também se
formam subgrupos a partir deles, principalmente o grupo Rom, que se desdobra em
Kalderash, Lovara, Matchuaia, entre outros. Cada um dos grupos remete a
determinadas localidades geográficas por onde os ciganos passaram,
estabeleceram-se e de onde são provenientes. Assim, os ciganos Calón são
provenientes da península Ibérica (Portugal e Espanha) e estão presentes no Brasil
desde o século XVI, sendo o grupo numericamente mais expressivo no país. Os
ciganos Sinti ou Manouches, como também são conhecidos, vem da região da
Europa Central, de países como Alemanha, França, Itália e Áustria. Segundo
Teixeira (2008), “no Brasil, nunca foi feita uma pesquisa apurada sobre sua
presença. Provavelmente, os primeiros sinti chegaram ao país também durante o
século XIX, vindos dos mesmos países europeus já mencionados.” Os ciganos Rom,
geralmente o grupo mais conhecido, vêm da região da Europa Central e da
península balcânica, chegando ao Brasil provavelmente entre os séculos XVIII e,
principalmente, XIX.
Faz-se importante também diferenciar algumas terminologias. Rom5 (ou
Rrom) é um substantivo usado para se referir a homem/marido no singular,
indicando um membro de uma comunidade romani, ou seja, uma pessoa de origem
cigana. Roma/romá (ou Rroma) seria o plural indicando os povos ciganos, assim
como Romi significa mulher cigana no singular. Romani é um adjetivo usado para se
referir à língua e também à cultura dos romá. Gadjo, payo e juron, por exemplo, são
termos usados para se referir ao homem não-cigano no singular. Enquanto gadji
seria o termo para se referir a uma mulher não-cigana e gadjé seria o termo no plural
para se referir às pessoas não-ciganas.
Ao longo da pesquisa, pude perceber que a dança e a música são elementos
que aparecem ligados à maioria dos grupos ciganos, ainda assim, a dança cigana se
diversifica em cada região e cultura onde os ciganos estão inseridos, ou seja, ela
também se faz plural. Contudo, ainda permanecem escassas as pesquisas acerca
dessas temáticas. “Além de perseguidos, os romà foram “sequestrados” da historia
5 Mais adiante, será abordado a sobre a origem desse termo.4 De acordo com Hilkner (2012), natsia significa nação/povo em romani.
14
das sociedades majoritárias”, afirma a romi Soria (2015)6. Ela também lança
algumas observações iniciais importantes para que possamos nos aproximar dos
ciganos:
Os romà, em poucas palavras, e não entrando nos detalhes da complexadiversidade que envolve os distintos grupos, se constituem em uma minoriaétnica presente em todos os países, com tradição e história comuns que oscaracteriza como uma nação transnacional, que não possui nem pleiteiaterritório. Possuem uma língua mãe comum, o romaní, que se desmembrouem distintas variações dialetais e chegou a ser perdida por alguns grupos.7Em consequência do hábito da fuga por intolerância das sociedades, onomadismo foi introduzido como prática cultural. Atualmente, com a maioriajá sedentarizada, os romà costumam ainda praticar um nomadismo circular.De cultura tradicionalmente oral, eles se negaram à escolarização e aoletramento como forma de evitar a aculturação e o convívio (ainda mais)estreito com os preconceitos. Ainda hoje, grande parte dos romà se mantêmna oralidade ou retira suas crianças e jovens, sobretudo as mulheres,precocemente das instituições de ensino formal.8
Assim como Soria comenta sobre a situação das mulheres ciganas na
educação, que em grande medida é abalada e interrompida por causa dos
preconceitos e bullying que atingem com mais força as meninas, é importante
ressaltar também que boa parte das imagens estereotipadas, principalmente ligados
à magia ou a algo de cunho místico, ainda que exotizadas ou romantizadas, é
dirigido sobretudo às mulheres ciganas. Ainda segundo Soria (2015), que na
passagem a seguir se refere à posição subalterna da mulher cigana em relação à
sociedade majoritária e à sua própria comunidade, vemos alguns elementos que
constatam o olhar estigmatizado sobre a mulher cigana:
A romi está mais exposta ao “outro”, pois carrega as insígnias do grupo nasvestimentas, nos adornos e nos ofícios estigmatizados como a quiromancia.Dessa forma ela é a mais estigmatizada tanto nos contatos interétnicoscomo nas representações culturais.
8 Aqui Soria acrescenta alguns dados: “De acordo com dados divulgados pela Codeplan em maio de2016, 80% dos romà no Brasil possuem ensino fundamental incompleto ou nenhuma instrução, estaúltima correspondendo a 41.5%. Cf Codeplan, “Invisibilidade e preconceito: um estudo exploratóriodos ciganos no Distrito Federal”, 2016, p.15.”
7 Soria (2015) afirma que a escravidão dos ciganos da Romênia, que durou até 1864, fez com que osciganos na região perdessem sua língua.
6 Paula Soria, da etnia Sinti, foi a primeira romi da América Latina a concluir doutorado, sua pesquisaversa sobre os povos ciganos, especialmente sobre a literatura romani contemporânea.
15
Por serem historicamente povos de tradição oral, sem deixarem registros
escritos até recentemente, este trabalho constitui sobretudo uma tentativa e um
desafio de contar um pouco uma história que persiste na marginalidade das
pesquisas acadêmicas e dos debates na nossa sociedade, com a intenção de abrir
caminhos que possibilitem a desconstrução dos estigmas que recaem sobre os
ciganos e também pensar os efeitos que advém dessas violências. Tendo em vista
que a história dos ciganos é uma história que permanece ocultada, ou seja, ela não
é contada, inicio esta caminhada fazendo uma imersão na história para nos
aproximar e compreendermos como se dá o percurso dos ciganos pelo mundo,
sobretudo quando chegam na Europa e no Brasil. Junto a isso, vai sendo visibilizada
também a trajetória e construção das imagens estereotipadas desses povos.
Passando pelas danças e por alguns diálogos com a Umbanda, vamos nos dando
conta da complexidade dessas culturas e do imenso anticiganismo ainda presente
na sociedade brasileira e também no mundo. Diante dessas problemáticas,
proponho algumas reflexões por meio de pistas dialogadas entre a história, a
filosofia, saberes tradicionais e práticas da psicologia em face do etnocídio e dos
processos de exclusão dos ciganos. Para isso, traço diálogos com a Sylvia Federici9,
que contribui para pensar o contexto histórico europeu de desenvolvimento do modo
de produção capitalista, do colonialismo e da caça às bruxas, contexto no qual se
impulsiona a construção das imagens anticiganas e se legitima à perseguição e
genocídio ciganos. Por fim, o que tento fazer neste trabalho é explicitar a apagada
inserção dos ciganos em todos esses contextos dos quais eles fazem parte, ainda
que não sejam mencionados, e propor algumas reflexões iniciais, algumas pistas na
direção de uma prática psi descolonizada, uma vez que esse campo de saber
também foi gestado no contexto europeu de formação do capital e, no Brasil,
herdamos esse conhecimento colonizado que acaba por produzir escutas seletivas e
adoecimentos psicossociais de todos aqueles que se encontram à margem do pacto
social. Porém, tendo em vista sua potência de produzir acolhimento e cuidado em
saúde e sobretudo em saúde mental, é nessa direção que o trabalho tenta caminhar,
desconstruindo, portanto e necessariamente, os conhecimentos hegemônicos e
colonizados que tem por objetivo reduzir as multiplicidades.
9 Particularmente, o livro Calibã e a bruxa (2017).
16
2. HISTÓRIA, ANCESTRALIDADE E ORIGEM: ANDANÇAS CIGANAS
Ainda que não haja um consenso definitivo acerca da origem dos ciganos, há
estudos importantes que apontam algumas possíveis hipóteses, estando entre elas
as origens indiana e egípcia sendo, atualmente, a teoria indiana a mais reconhecida
e também a que orienta este trabalho. Entretanto, é importante ressaltar que há
muitos outros relatos e hipóteses distintas além dessas duas mencionadas, algumas
já caídas em descrédito, por exemplo, a hipótese mítica dos ciganos serem
sobreviventes da Atlântida, o continente desaparecido, e outras ainda são
consideradas relevantes para parte da comunidade cigana.
Entre os diversos relatos sobre a origem dos ciganos, alguns perduraram até
o século XVIII quando Stephan Valyi, por meio da etnolinguística, confirmou a
relação entre a língua falada pelos ciganos - o romani - e o sânscrito. A partir daí, a
defesa de uma origem indiana dos povos ciganos foi sendo fortalecida. Além dos
ciganólogos ou de estudos feitos por não-ciganos (gadjés), boa parte das
comunidades ciganas também identificam a Índia como o local ancestral de seu
povo, incluindo a União Romani Internacional que, no primeiro congresso romani,
ocorrido em 1971 na Inglaterra, reconheceu a origem indiana dos ciganos.
O nomadismo intensifica a heterogeneidade desses povos e, portanto,
também amplia a diversidade de suas culturas, danças, dialetos, de modo que a
busca pela origem dos romá ao longo do tempo se torna complexa, além de
acarretar uma variedade de mitos fundadores acerca de seu local ancestral, pois
existem grupos que têm seu próprio mito fundador10. Além disso, por serem até
pouco tempo um povo ágrafo, sem deixarem registros escritos, também se acentua
o caráter enigmático dessa busca. Por outro lado, segundo Pereira (2009), é
justamente a tradição oral e o nomadismo que possibilitam a existência dos ciganos
ao longo dos tempos e fortalecem sua resistência cultural:
10 É o caso dos ciganos do clã Horarranê. Ver mais sobre o tema em: PRESTES, Jéssica. A etniacigana: processo histórico, social e cultural do povo Cigano, 2019.
17
Outro fator importante a se destacar é que os ciganos têm nos conceitos dosegredo e da ambiguidade, estruturados basicamente pela tradição oral epelo nomadismo, um aspecto essencial de sua resistência cultural e de suapermanência quase fantástica como minoria étnica ao longo dos tempos. Adispersão, que muitos consideram como prejudicial à existência dos ciganoscomo etnia, é tida, por eles mesmos, como um fator fundamental para a suasobrevivência como povo. (pp. 9-10)
Contudo, a partir do final da Idade Média, provavelmente por volta dos
séculos XII e XIV, período em que os ciganos entram na Europa, o interesse em
saber de onde eles vêm começa a se intensificar. A Índia passa a ganhar
notoriedade enquanto local originário dos ciganos a partir dos estudos linguísticos e,
depois, genéticos desenvolvidos a partir do século XVIII como dito anteriormente.
Junto às referências linguísticas, também encontramos etnólogos e antropólogos na
defesa da origem indiana acrescentando na discussão alguns elementos culturais
semelhantes entre esses povos, tais como a forte espiritualidade, modos de vida,
símbolos ocultos e cabalísticos, superstições, ofícios (músicos, ferramenteiros,
adivinhos) e também trajes e aspectos fenotípicos dos ciganos com os grupos
nômades do noroeste da Índia, os laubadies.
Entre os fatores que ajudaram na busca pela ancestralidade romá, tem-se
como um forte elemento o estudo sobre a língua romani. Fonseca (2004), aborda
essa questão em seu livro “Enterrem-me em pé: a longa viagem dos ciganos”, no
qual diz:
Além de um lugar de origem e da rota migratória, o estudo do romanilevantou também uma controvertida possibilidade étnica. Ela tem por base apalavra que os ciganos em geral usam para se referir a si mesmos (e quesignifica literalmente “homem” ou “marido”): rom entre os ciganos europeus;lom no romani falado na Armênia; e dom nos dialetos persa e sírio.(Constatamos assim que o termo rom, em romani, nada tem a ver com aRomênia, onde os ciganos vivem em grandes números há muitos séculos.(p. 118)
Ainda segundo Fonseca (2004), rom, dom e lom teriam correspondência
fonética com o termo domba em sânscrito e com o indiano moderno dom ou dum,
estes últimos termos fazem alusão a um “grupo particular de tribos que pode parecer
familiar” (id., p. 118), possivelmente indicando uma relação com o significado que o
termo rom apresenta para os ciganos, de homem ou pai de família. Além disso,
18
Fonseca (2004) nos aponta mais algumas relações entre as origens e significados
desses termos:
Em sânscrito, domba significa “homem de baixa casta que vive do canto eda música.” Nas línguas indianas modernas, as palavras correspondentestêm significados similares ou correlatos: em lahnda é “servente”; em sindhi,“casta de músicos itinerantes”; em panjabi, “músicos viajores”; em pahariocidental significa “homem de baixa casta e pele negra”. Existemreferências aos dom como músicos a partir do século VI. Os dom aindaexistem na Índia; são nômades que fazem uma série de trabalhos: cestaria,ferraria, metalurgia, limpeza, música. Não é de se surpreender que muitagente tenha chegado à teoria de uma origem dom para os ciganos. (p. 118)
Ainda de acordo com os estudos mencionados sobre a origem indiana, há
algumas hipóteses sobre o que teria levado os ciganos a migrarem da Índia, porém,
nada conclusivo. Segundo Pereira (2009), alguns pesquisadores apontam que a
dispersão iniciada na Índia se deu por esses povos não se submeterem ao sistema
de castas, levando os ciganos a migrarem, ainda dentro do território indiano, à
regiões mais inóspitas. Séculos depois, os conflitos e guerras provenientes das
invasões islâmicas teriam expulsado os ciganos dessa região iniciando, então, a
diáspora cigana, na qual muitos ciganos teriam sido capturados para servir os
exércitos vitoriosos das batalhas travadas pelos muçulmanos ou, então, teriam sido
escravizados em outras regiões onde chegavam, como é o caso da Valáquia e
Moldávia, atual Romênia, onde os ciganos permaneceram escravos por mais de 400
anos. Outros pesquisadores apontam, de maneira mais incisiva, justamente as
invasões naquela região como o motivo impulsionador da diáspora. Prestes (2019),
baseando-se nas pesquisas de Ronald Lee (2009)11, diz que “a saída dos que viriam
a ser identificados como “ciganos” da índia se deu a partir de invasões islâmicas na
região pelo exército Ghaznavida, uma dinastia imperial que surgiu onde hoje é o
Afeganistão”. Somado a isso, em torno do século X, teriam ocorrido também
inúmeros conflitos, com destruição de cidades e escravidão na região do Rajastão,
localizado no noroeste indiano. Além do mais, Prestes (2019) ainda aponta que “em
1038 outro grupo étnico, chamado Selljuks, teria adentrado a região Ghaznavida e
depois de três dias de batalhas no ano de 1040, o exército perde, e com ele as
tropas indianas que serviam ao antigo invasor.”
11 Ronald Lee foi um cigano da etnia kalderash, linguista e pesquisador canadense.
19
É importante ressaltar, como lembra Pereira (2009), que a migração não se
deu de uma só vez, com a saída de toda a população ao mesmo tempo e em uma
mesma época. Mas podemos considerar, a fim de se aproximar e compreender um
pouco mais da história dos ciganos, que uma primeira grande diáspora teria se dado
provavelmente entre os séculos VIII e X a partir do noroeste da Índia. Abaixo, segue
um mapa indicando algumas rotas migratórias que os ciganos teriam feito a partir
Contudo, é necessário ressaltar que boa parte dos ciganólogos pioneiros nos
estudos sobre os ciganos mais contribuíram para propagar o anticiganismo por meio
da reprodução de várias imagens estereotipadas presentes em suas obras do que
esclarecer sobre as culturas ciganas. É o caso, por exemplo, de dois pesquisadores
do século XVIII considerados, ainda hoje, referências na ciganologia, Grellmann e
Borrow.
Em The Zincali Borrow apresentou uma imagem altamente negativa eestereotipada dos ciganos espanhois: degenerados, vigaristas, ladrões, queprecisavam ser ‘civilizados’, iguais aos ‘selvagens’ de outras partes do
mundo. (...) “(os ciganos, em qualquer parte) exibem as mesmas tendências... como se não fossem de espécie humana mas antes animal, e em lugarde razão são dotados de um tipo de instinto que lhes auxilia até um certolimite e nada mais. (MOONEN, 2013, p. 105)
Antes de publicar este livro, Borrow já tinha escrito que “... os ciganosespanhois são o mais vil, degenerado e miserável povo na terra” (Willems1995: 109). Segundo Borrow, os ciganos já tinham este caráter criminoso aochegarem na Europa e foram eles que introduziram a atividade de ladrãoprofissional no Continente Europeu, sendo seu exemplo depois seguido pornão-ciganos. (MOONEN, 2013, p.106)
Ainda que Grellmann faça parte dos primeiros estudiosos a tratar da origem
indiana dos ciganos realizando uma análise filológica entre a língua romani e
dialetos indianos, é importante dizer que ele também ajudou a propagar estereótipos
ciganos em seu livro Die Zigeuner12, de 1753, publicado na Inglaterra como
Dissertation on the Gipsys, em 1807. Ressalto essa questão aqui, pois Grellmann,
assim como Borrow e outros pesquisadores ciganólogos, tornou-se referência na
ciganologia e entendo que este campo de estudos deve buscar desconstruir os
estereótipos em vez de reforçá-los e reproduzi-los. Fonseca (2004) também
comenta sobre isso em seu livro:
(...) Grellmann ajudou também a estabelecer estereótipos ciganos: a mulherdevassa, o comedor de carniça e até alguns que “apreciam a carnehumana” - calúnia que levou mais de um século para ser desmentida. Nolivro Die Zigeuner ele reservou generoso espaço para relatos de eventoscontemporâneos, ocorridos no ano anterior (1782), no condado de Hont(então parte da Hungria, hoje parte da Eslováquia). Um dos casos envolviamais de 150 ciganos, 41 dos quais foram torturados até arrancarem delesconfissões de canibalismo. Quinze homens foram enforcados, seis tiveramos ossos partidos na roda, dois foram esquartejados e dezoito mulheresdecapitadas, antes mesmo que a investigação ordenada pelo monarcaHabsburgo José II revelasse que todas as pretensas vítimas dos ciganosestavam vivas. (p. 106)
Por fim, sobre a etimologia do termo “cigano”, que historicamente carrega
sentidos pejorativos, pode-se perceber que há uma divisão acerca da sua
proveniência, por vezes remetendo ao Egito, através do termo “egiptano”, outras
vezes se referindo à Grécia pelo termo “atsinganoi”. Moonen (2013) discorre sobre
essas possibilidades:
12 Do alemão, traduz-se por “Os ciganos”.
21
No início do Século 15 estes “ciganos” migraram também para a EuropaOcidental, onde quase sempre afirmavam que sua terra de origem era o“Pequeno Egito”. Hoje sabemos que esta era então a denominação de umaregião da Grécia, mas que pelos europeus da época foi confundida com oEgito, na África. Por causa desta suposta origem egípcia passaram a serchamados “egípcios” ou “egitanos”, ou gypsy (inglês), egyptier (holandêsantigo), gitan (francês), gitano (espanhol), etc. Mas sabemos que algunsgrupos se apresentaram também como gregos e atsinganos, pelo quetambém ficaram conhecidos como grecianos (espanhol antigo), tsiganes(francês), ciganos (português), zingaros (italiano). (p. 9)
De acordo com Prestes (2019), o termo atsinganoi se referia a uma seita de
místicos persas, que no contexto das invasões muçulmanas na região, teriam fugido
para Constantinopla, no Império Bizantino. Os ciganos, então, teriam sido
confundidos com esse grupo. Prestes (2019) ainda ressalta outros autores nessa
discussão, inferindo também que uma das razões pelas quais teria se dado tal
confusão diria respeito à “similaridade sonora entre os termos”, ou ainda, à “imagem
social entre esses dois grupos''. (id., p. 8). Ainda de acordo com outros autores,
como Taylor (2015, p. 22)13, Prestes relata a existência de uma ambiguidade na
tradução do termo “atsingani/atsinganos, de origem grega e que também se tornou
utilizada pelos bizantinos para descrever grupos pagãos.” (id., p. 8).
13 Citado em Prestes (2019).
22
3. CIGANOS NA EUROPA: DA “FASCINAÇÃO” À PERSEGUIÇÃO
“Quando se consideram as vicissitudes que eles
encontraram – porque a história a ser relatada agora
será antes de tudo uma história daquilo que foi feito
por outros para destruir a sua diversidade – deve-se
concluir que a sua principal façanha foi a de ter
sobrevivido” (FRASER, 1992, p.1).14
Não são raras as confusões dos ciganos com grupos viajantes, nômades, ou
tido como exóticos provenientes de diferentes regiões e frequentemente atribuídos à
má fama, o que muito contribuiu para a construção de imagens depreciativas sobre
eles. Na Europa, os ciganos ficaram muito conhecidos como egiptanos, como se
fossem originários do Egito, pois foram confundidos com viajantes ocidentais em
Modon, uma cidade que operava como escala importante na rota entre Veneza e
Jaffa e que também ficou conhecida como Pequeno Egito. Além do mais, tal região
foi muitas vezes mencionada pelos ciganos como sendo sua origem, talvez como
uma estratégia de defesa para ocultar informações sobre eles e evitar mais
perseguições. Contudo, apesar de ser confundido com o Egito, o Pequeno Egito
nunca foi bem delimitado e há divergências a respeito de sua localização.15
Os ciganos entram no continente europeu por volta do século XIV chamando
atenção pela pele escura, vestimentas coloridas e tidas como “exóticas” para os
europeus da época e também pela habilidade com as artes, principalmente a música
e a dança, as quais provavelmente lhes serviram como estratégia de sobrevivência
naquele continente, tendo em vista que a nobreza tolerou por algum tempo a
presença dos ciganos em suas terras por conta dos serviços de entretenimento que
os ciganos lhes proporcionavam, de modo que a dança e a música talvez possam
15 Também existem outras discussões acerca da localização do chamado Pequeno Egito, entre elas,algumas apontam para a região do Peloponeso na Grécia, outras ainda indicariam uma região daTurquia, ambas indicando regiões por onde os ciganos teriam adentrado no continente europeu.
14 trecho citado em: “Por uma história dos ciganos no Brasil: políticas anticiganas e vivênciaslibertárias / Rodrigo Côrrea Teixeira, p. 347 in: Ciganos : olhares e perspectivas / Maria PatríciaLopes Goldfarb, Marcos Toyansk, Luciana de Oliveira (organizadores). - João Pessoa : Editora UFPB,2019. 442 p.
23
ser considerados elementos que inicialmente tornaram os ciganos “toleráveis” na
Europa.
Além disso, Prestes (2019) aponta também outras caminhadas dos ciganos,
após a diáspora da Índia, indicando sua entrada no continente europeu e também
sua presença em outras regiões:
(...) pequenos grupos teriam partido em diferentes regiões, cada grupo comuma liderança diferente, no qual aparecem em fontes europeias seautodenominando “condes e duques”. Essa, ao que tudo indica, não é aprimeira vez que há uma divisão entre os ciganos, já citada anteriormente,uma divisão entre grupos já ter ocorrido antes desse período, antes deadentrarem o território europeu, via Bizâncio, essa seria uma explicaçãopara a existência de grupos ciganos no continente Africano, em paísescomo o Egito e o Marrocos, e também no Oriente Médio, como no Iraque.16
(pp. 16-17)
Contudo, outros grupos ciganos tiveram de imediato outros destinos nesse
continente. Por volta de 1370, alguns grupos ciganos chegaram à Moldávia e
Valáquia, regiões que correspondem atualmente ao território da Romênia. Ali, eles
foram escravizados. Segundo Pereira (2009):
Neste país, eles foram escravizados pelos voivodas (proprietários de terra),pelo Estado e pelo clero. Os voivodas e também os hopodars (chefesguerreiros) tinham sobre os ciganos direitos de vida e morte. Dependendodo tipo de ofício que exerciam, eles pertenciam ao Estado. Estavam nessecaso os preparadores de ouro e os amestradores de ursos. Já os voivodasutilizavam os ciganos como cozinheiros, cocheiros e criados. Sem receberqualquer remuneração pelo trabalho, sofriam toda espécie de maus-tratos:eram mal alimentados, açoitados nus e, por qualquer falta cometida, tinhamos pescoços enrolados com uma espécie de coleira com ganchos, que osimpedia de dormir. (p. 28).
Além dos donos de terra e dos chefes guerreiros, o clero também escravizou
os ciganos sob a justificativa do mito da maldição cigana, pelo qual os ciganos
teriam forjado os pregos da crucificação de Cristo e por conta disso teriam sido
amaldiçoados. Outro relato acerca da participação cigana na narrativa cristã, diz
respeito aos romá terem negado abrigo à Maria e Jesus e, devido a isso, foram
castigados a peregrinar pelo mundo. Porém, Moonen (2013) lembra que tais
16 No trecho em questão, Jéssica Prestes discute a chegada dos ciganos na Europa com base naspesquisas de Ronald Lee (2009).
24
acusações seriam impossíveis de ocorrer, tendo em vista a época em que os
ciganos começaram a migrar da Índia, cerca de mil anos depois do período em que
se passa a narrativa cristã.
Outras estórias, por sinal, também falam da participação dos ciganos nacrucificação de Jesus, seja como fabricantes dos pregos usados nacrucificação, seja como ladrões do quarto prego (pelo que só sobraram trêse os pés tiveram que ser pregados com um prego só). O Novo Testamento,no entanto, em lugar algum faz referência a ciganos. Por isso talvez sejamais provável que estas estórias, lendas e fantasias, que ainda têm váriasoutras versões, tenham sido inventadas por não-ciganos.Comprovadamente, nunca um cigano esteve presente na crucificação deJesus, nenhum deles fabricou pregos e nenhum deles roubou um pregosequer. Simples: naqueles tempos ainda não existiam ciganos na “TerraSanta”, porque estes resolveram sair da Índia somente uns mil anos depois.(MOONEN, 2013, p.22)
Mais de 400 anos depois, em 1855, é quando os 200 mil ou 400 mil ciganos
escravos17 da Romênia são libertos. Parte deles seguiram na Romênia se fixando na
região e outros foram para fora do país, retomando o nomadismo. Entretanto, o
processo de abolição escravista foi se efetivando aos poucos. Segundo Moonen
(2013), a primeira libertação em massa de escravos ciganos teria ocorrido em 1837
na Valáquia, com a libertação de 4 mil famílias. Em seguida, houve a “libertação de
escravos ciganos da Igreja (dos mosteiros), em 1842 na Moldávia e em 1847 na
Valáquia. Na década de 40, escravos ciganos da Corôa, e depois também de
mosteiros, foram libertados na Moldávia” (id., p. 65). Em 1855, a escravidão se torna
ilegal na Moldávia e em 1856, na Valáquia. Ainda de acordo com Moonen (2013), a
escravidão nesse país só foi abolida de vez em 1864, quando as regiões da
Moldávia e da Valáquia se unificaram formando a Romênia.
17 De acordo com Pereira (2009), havia cerca de 200 mil escravos ciganos na Romênia nessa época.Porém, outros autores afirmam que seriam 400 mil, como é o caso do abolicionista romenoKogalniceanu, que diz: “Os europeus estão organizando sociedades filantrópicas para a abolição daescravidão na América, mas no seio do próprio continente da Europa, existem 400.000 ciganos quesão escravos, e outros 200.000 que são igualmente vítimas de barbaridades” (Hancock 1987: 33).Informações citadas em Moonen, 2013, p. 65.
25
Figura 2: Cartaz de venda de escravos ciganos.
(Cartaz anunciando um leilão de escravos na Valáquia: “À VENDA, excelente lote de ESCRAVOS
CIGANOS, a serem vendidos em um leilão no Mosteiro St. Elias, 9 de maio de 1852, composto de 18
homens, 10 meninos, 7 mulheres e 3 meninas, em bom estado”).18
A caça aos ciganos
Se, no século XV, “os estrangeiros chegados do país do Egito” eramconsiderados “maravilhas”, segundo os cronistas da época, já no século XIX(1854) o cronista Charles Pradier assim os descreverá: “(...) boêmios,ciganos, esses bandoleiros que o Egito vomitou sobre a Europa. (PEREIRA,2009, p. 29)
A situação dos ciganos na Europa não demora para se estremecer devido aos
choques culturais. Segundo Pereira (2009), os então “nômades com vestimentas
exóticas e costumes estranhos” (id., p. 29) que inicialmente poderiam provocar
algum encantamento sobre os europeus, com o passar do tempo e, ao se findar
qualquer resquício de “tolerância”, a Europa passa a reagir à “pele escura, ao
nomadismo - considerado legalmente como delito, associando ciganos a mendigos e
18 Imagem e descrição extraídas do livro: FONSECA, I. “Enterrem-me em pé: a longa viagem dosciganos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 204
26
bandoleiros - e sobretudo à sua língua estranha ” (id., p. 29). Tornam-se, então, a
“raça maldita” e, em 1563, uma lei anticigana inglesa já decretava que: “Todo cigano
é um demônio que se deve destruir a ferro e fogo; e levar esse nome é blasfêmia.
(id., p. 29).
Além disso, outras estratégias usadas pelos ciganos para permanecerem no
território europeu também tiveram fim. É o caso da tática de andar pelas cidades em
grupos liderados por um homem cigano que se apresentava como conde ou duque
perante às autoridades e à população - inclusive se valendo de nomes de santos
bíblicos, tais como Miguel, Mateus, Antonio, Samuel, entre outros -, com a
justificativa de que estavam em peregrinação para a terra Santa ou pagando
penitência e munidos de cartas papais ou de bispos - também chamadas de
salvo-condutos19 - que comprovavam tal fato e davam permissão para entrarem nas
cidades, exigindo que a população os abrigasse, ou desse comida e dinheiro para
eles cumprirem sua missão.
Um cronista alemão da época, o frade Körner, informa que veio do Leste um“grande número” de indivíduos errantes (cerca de 300), antes nunca vistos.(...) Segundo o frade, estes indivíduos estranhos viajavam em bandos epernoitavam fora das cidades, ao ar livre; eram feios, pretos como osTártaros e se chamavam Secani. Eram liderados por um conde ou umduque, aos quais obedeciam; eram grandes ladrões, em especial asmulheres, e vários deles foram presos e mortos. Körner informa ainda queeles portavam salvo-condutos fornecidos por reis, principalmente deSigismundo, rei da Hungria e posterior Imperador do Santo ImpérioRomano. Os ciganos explicaram que “os bispos do Leste” os condenaram aperegrinar durante sete anos, como penitência por terem abdicado a fécristã e terem voltado ao paganismo. (Gilsenbach 1994: 49-52 apudMoonen, 2013, p.19)
Tais estratégias também tiveram um fim a partir do final do século XVI,
quando a prática da peregrinação entrou em declínio na Europa, fazendo com que
não se desse mais crédito aos documentos que os ciganos portavam, o que
ocasionou mais estremecimentos nas relações entre ciganos e não-ciganos. Desse
19 Segundo Moonen (2013), as cartas e os salvos-condutos muito provavelmente contribuíram paraque os bandos ciganos fossem bem recebidos na Europa Ocidental no início do século XV, elesteriam sido expedidos até meados do mesmo século. Apesar disso, não eram aceitos em todos oslugares, “(...) em muitas cidades estas cartas nada valiam. Entre 1448 e 1497 os ciganos aparecempelo menos treze vezes na cidade de Frankfurt am Main, e sempre são logo expulsos. (Gilsenbach,1994: 87 apud Moonen, 2013, p. 25).
27
modo, a aversão aos ciganos foi se fazendo cada vez mais intensa e até as leis se
puseram contra eles. Pereira (2009) relata algumas leis anticiganas:
Ao longo do tempo, em vários países da Europa, vigoraram leis e conceitosvexatórios e discriminatórios, em relação aos ciganos. Na Alemanha, noséculo XV, se atribuíam supersticiosamente aos ciganos as epidemias ecalamidades. Na França de 1427, a primeira medida do bispo de Paris foi aexcomunhão e expulsão dos ciganos, sob acusação de serem bruxos. NaDinamarca, em 1585, se ordenava executar o chefe de qualquer grupocigano tão logo fosse capturado, e a tribo deveria ser expulsa do país, emseguida. Na Inglaterra, em 1562, uma lei prescrevia que os ciganos nãoteriam direito sequer a se refugiar nas igrejas e santuários, algo que não senegava em países cristãos a nenhum delinquente. Esta lei vigorava,também, na Espanha de Felipe V. (...) A Rússia tentou reprimir onomadismo. Já em Portugal e na Espanha, a legislação anticigana era muitorígida. Tudo lhes era proibido: falar sua língua, ser nômade, andar emgrupo, vestir seus trajes característicos, praticar a quiromancia e acartomancia. (PEREIRA, 2009, p. 30).
28
4. CIGANOS NO BRASIL
“O cigano sempre foi presente em todos os ciclos
geoeconômicos que tornaram o Brasil possível… O
ciclo do pau-de-tinta, o da cana-de-açúcar, o do
tráfico, presença na gesta das bandeiras, o ciclo do
ouro - não há ouro sem negro e sem cigano -, o ciclo
do café. É do acervo histórico.”
(Oswaldo Macedo, 1992)
Os ciganos chegam ao Brasil em um momento de intensa política anticigana
na Europa que, apesar das várias formas de punição e banimento já em vigor e
inclusive inscritas em suas leis, dá início a mais uma forma de se livrar dos ciganos,
dessa vez os enviando para as colônias na África, nas Índias Orientais e nas
Américas, como é o caso do Brasil. É nesse contexto de severa perseguição que os
ciganos começam a chegar por aqui. Num primeiro momento, entre os séculos XVI e
XVII, os ciganos entram no Brasil como degredados vindo de Portugal. A partir do
século XVIII e sobretudo no século XIX, aparecem ciganos provenientes de outros
países europeus e de outros contextos migratórios.
Inicialmente os ciganos eram deportados para as colônias africanas,principalmente para Angola e Cabo Verde, talvez por estaremgeograficamente mais próximas, mas em 1686 uma Provisão muda odegredo da África também para o Maranhão, no Brasil (MOONEN, 2013, p.41)
A dinâmica de expulsar os ciganos ou fazê-los seguir em movimento para
cidades e países vizinhos já era uma prática recorrente entre os séculos XV e XVI
na Europa, de modo que quando os ciganos chegam em Portugal e precisam sair de
lá, fica mais difícil ter para onde ir, visto que a fronteira de Portugal se dá com a
Espanha, país que, junto com os outros ao redor, já havia colocado em prática a
perseguição à população cigana. Sendo assim, segundo Moonen (2013), é provável
que esse seja um dos motivos pelos quais Portugal tenha sido pioneiro no envio de
ciganos para as colônias, deslocamento que começa a ocorrer ainda no século XVI
e se intensifica no século XVII.
29
(...) Mas abandonar o país como, se Portugal só tem limites terrestres com um únicopaís, a Espanha, onde os ciganos também eram perseguidos? Os ciganosportugueses simplesmente não tinham para onde fugir, e o governo português nãotinha para onde expulsá-los na Europa. Daí talvez porque em 1649 seria ordenada adeportação dos ciganos para as colônias ultramarinas. (MOONEN, 2013, p. 40).
Os primeiros registros dos ciganos no Brasil são datados de 1574, ainda no
período colonial, quando o cigano calón João de Torres, sua mulher Angelina e os
filhos chegam ao país.
Inicialmente João foi condenado às galés e Angelina deveria deixar o país dentro dedez dias. Alegando, no entanto, que “era fraco e quebrado, e não era para servir emcoisa de mar e muito pobre, que não tinha nada de seu”, João pediu para poder sairdo Reino, ou então que pudesse ir para o Brasil para sempre. O pedido logo foideferido e a pena foi mudada para “cinco anos para o Brasil, onde levará sua mulhere filhos. (Coelho 1995 apud Moonen, 2013, p.87)
Entretanto, como afirma Moonen (2013), depois disso nada mais é conhecido.
Não se sabe se João de Torres e sua família conseguiram embarcar, se
sobreviveram à longa viagem que muito provavelmente não ocorreu em boas
condições, se chegaram ao Brasil, quanto tempo teriam ficado aqui e se teriam de
fato retornado à Portugal após transcorridos os cinco anos mencionados no
documento. Moonen acredita, ainda, que se João chegou ao país, sua família devia
ser pequena, com poucos filhos, de modo que ele não teria liderado outras famílias
ciganas como afirmam outros autores, visto que seria muito caro embarcar tanta
gente e o movimento da deportação dos ciganos de Portugal começa a se
intensificar de fato no século XVII, provavelmente a partir de 1686. Em suas
palavras:
Ou seja, nada, mas absolutamente nada se sabe do destino dele e de sua família. Épossível que ele nunca tenha chegado ao Brasil, e que outros ciganos tenhamchegado antes dele. E de qualquer forma, se ele realmente embarcou, veioacompanhado apenas pela mulher e alguns poucos filhos e não “liderando um bandode ciganos” ou “chefiando numerosas famílias que o acompanhavam (...) (MOONEN,2013, p. 87)
Por outro lado, outros autores, como Cristina Pereira (2009), relatam que João
de Torres teria chegado ao país com sua família e também chefiando outras famílias
ciganas. Ela ainda acrescenta que as leis que perseguiam os ciganos em Portugal
também se estenderam ao Brasil Colônia de modo que suas andanças nessa terra
30
também foram reprimidas. Após a chegada desses primeiros ciganos que se tem
registro, “Do século XVI ao século XVIII, foram chegando outras levas de ciganos de
Portugal que se constituíram em comunidades na Bahia, em Pernambuco, no Rio de
Janeiro e em Minas Gerais” (id., p. 33).
Algumas movimentações dos ciganos no Brasil: séculos XVII, XVIII e XIX
As documentações sobre a história dos ciganos no Brasil ainda são bastante
limitadas e imprecisas, principalmente até o século XVIII, época que coincide com a
maior entrada de ciganos no país devido à intensificação da deportação portuguesa
no fim do século XVII. Inicialmente, a chegada dos ciganos se deu pela capitania do
Maranhão, mas há registros de que a partir de 1718, eles já estavam em outras
capitanias do país. Segundo Teixeira (2008), a opção pela região do Maranhão tinha
ao menos dois objetivos: um deles era afastar os ciganos das áreas brasileiras de
mineração, agricultura e dos principais portos da colônia, localizados no Rio de
Janeiro e Salvador, o outro objetivo visava a ocupação dos sertões nordestinos,
ocupados até então pelos indígenas. Além disso, as deportações dos ciganos no
século XVIII eram eventos públicos, Teixeira (2008) traz um registro de Donavan
(1992) sobre essa questão, com um exemplo de deportação de uma leva de
ciganos, com dezenas de homens, mulheres e crianças:
(...) Seu banimento foi um procedimento cuidadosamente planejado, servindo comoum ato de Estado. A justiça do início do período moderno era praticada de uma formadeliberadamente cerimonial. Oficiais publicizavam o evento antes através deanunciamentos boca a boca ou públicos. Nesse caso o embarque do navio brasileiro,que sempre atraía grandes multidões, forneceu o palco. A visão dos ciganos partindoacorrentados demonstrava para os espectadores o esforço da coroa pelo controlesocial. Isso é a publicação dos banimentos subsequentes assinalavam, sem dúvida,que a assimilação não era mais uma opção dos ciganos para escapar de seu statuscriminoso.20
Ou seja, a situação dos ciganos na Europa chegou a tal ponto insustentável
que até mesmo o projeto de assimilação dos romà à sociedade europeia deixou de
ser uma opção, indicando que os ciganos não eram passíveis de serem “civilizados”,
pois ‘ser cigano’ havia se tornado crime. Inclusive, o estereótipo de criminoso é tão
20 Trecho extraído em: TEIXEIRA, R. História dos ciganos no Brasil. Núcleo de estudos ciganos, 2008,p. 16.
31
forte que qualquer roubo, assassinato ou evento ruim que acontecesse onde
houvesse algum cigano por perto, a culpa era frequentemente atribuída a eles,
pouco importava se havia provas ou indícios. Além do mais, quando deportados
para as capitanias, também lhes foi proibido falar sua língua e ensiná-la às crianças,
o romani devia ser evitado a todo custo, com objetivo de erradicá-lo.
Outros documentos mostram a chegada de ciganos, ainda em meados do
século XVIII, em Pernambuco, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo. Não eram raras também as expulsões de um estado para outro, como de
Pernambuco para o Ceará, ou para fora do país, como do Rio de Janeiro para
Angola.21 Teixeira (2008) afirma que as expulsões que aconteciam na Europa se
repetem por aqui:
Ou seja, trata-se da velha política de “mantenho-os em movimento”: MinasGerais expulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio deJaneiro, que os expulsa para Espírito Santo, que os expulsa para a Bahia,de onde são expulsos para Minas Gerais, etc. Ou seja, o melhor lugar paraos ciganos sempre é no bairro, no município ou no Estado vizinho; ou entãono país vizinho ou num país bem distante. (p. 19)
No Rio de Janeiro, a presença dos ciganos começa pela região do Campo de
Sant’Anna, que então fica conhecido como Campo dos Ciganos e, atualmente, é a
Praça Tiradentes, região onde se concentrou a população cigana do Rio de Janeiro
durante os séculos XVIII e XIX. Foi durante este último século e, principalmente no
Rio de Janeiro, que a situação dos ciganos se modifica, pois vivem uma ascensão
sócio-econômica em parte por sua participação no tráfico de escravos. Com a
chegada da Independência, a abolição da escravidão e o projeto de identidade
nacional, afeito ao modelo de civilização europeia, o cenário muda novamente e os
ciganos passam a ser excluídos.
Nos anos que precederam a Independência, durante a permanência daCorte portuguesa no Brasil, parece ter sido o momento de maior aceitação ede valorização romântica da comunidade cigana, ao menos no Rio deJaneiro, durante o oitocentos. Essa comunidade vivia em plenoflorescimento econômico e artístico. Apesar de a comunidade do campo deSant'Ana ter se formado a partir de miseráveis famílias deportadas no início
21 Ver mais sobre o tema em: História geral dos ciganos no Brasil in: TEIXEIRA, R. História dosciganos no Brasil. Núcleo de estudos ciganos, 2008.
32
do século XVIII, diversos ciganos tornaram-se realmente ricos. Entre estesos que tiveram maior sucesso econômico foram os comerciantes deescravos, como veremos mais adiante em detalhes. Mas eram muitas assuas profissões. (TEIXEIRA, 2008, p. 22)
Também há registros, durante o século XIX, de que os ciganos dessa região
foram convidados para apresentarem suas músicas e suas danças na Corte de Dom
João VI e de Dom Pedro, o que reafirma a ideia de que os ciganos serviam de
entretenimento para as elites, fazendo-se presente em suas festas.22 Mas isso
também não durou muito, pois tais relações de alguns ciganos com a família real
não apagaram sua fama de ladrões e trapaceiros perante a sociedade, de modo que
“em fins da década de 1820, os ciganos já não eram mais requisitados para se
apresentarem nas festividades na Corte do império recém-fundado. Não havia
qualquer possibilidade de eles servirem ao perfil que se queria para o "ser brasileiro”
(TEIXEIRA, 2008, p. 25).
Já nos inícios do século XIX, a questão da raça era um tema fundamentalna definição da identidade nacional, mesmo que através de uma afirmaçãoromântica do exotismo. (...) Em meados do século XIX, o Império elegeu oindígena como seu símbolo fundamental e fez-se o discurso de que amiscigenação entre o branco, o negro e o índio promoveria o patriotismo econsolidaria a nação. Diante disso, a presença dos ciganos na composiçãoda população seria omitida, pois era uma minoria difícil de ser apreendidapor esse discurso nacionalista. Negando-se aos ciganos o direito à história,tentava-se colocá-los à margem da "boa sociedade”. (id., p. 25)
Com isso, podemos perceber que a ocultação dos ciganos na história do
nosso país não é recente e persiste sendo uma história posta à margem da
marginalidade, algo que ecoa nos dados da historiografia, nos censos, nas políticas
públicas de educação e de saúde desde então. Em relação à quantidade de ciganos
que havia no país, é muito difícil mensurar devido à ausência de censos sobre essa
população, uma dificuldade que perdura até os dias atuais. Contudo, é possível
22 Relatos como esses também aparecem na literatura. Na novela “Carmen” (1845), por exemplo, osciganos aparecem como animadores de festas da elite: “Fui posto de sentinela à porta da casa docoronel. Era um rapaz rico, boa-vida, que adorava diversão. (...) De repente, chega a carruagem docoronel, com seu valete na boleia. E quem eu vejo descer? A gitanilla. Dessa vez, parecia umrelicário, ataviada, paramentada, toda ouro e fitas. (...) Trazia numa das mãos um tambor basco. Comela, vinham mais duas boêmias, uma jovem e uma velha. (...) por fim, um velho com um violão,boêmio ele também, para tocar e fazê-las dançar. O senhor sabe que é comum chamar as boêmiaspara animar uma boa reunião, para dançar a romalis, a dança deles, e para outras coisas mais”(MÉRIMÉE, 2015, p. 45). Neste trecho, dom José está narrando à Mérimée sua história com Carmen.Mais adiante, falaremos sobre Carmen.
33
obter algumas noções por meio dos relatos de viajantes e memorialistas acerca de
algumas regiões. Por exemplo, sabia-se que havia uma concentração de população
cigana sedentarizada na Bahia e no Rio de Janeiro, principais regiões portuárias da
época. No Rio de Janeiro, no início do século XIX, havia uma comunidade de 400
ciganos na periferia sul da cidade e um outro grupo que vivia “em torno da Rua dos
Ciganos, Campo de Sant-’Anna e o mercado de escravos da cidade”23. Em outras
regiões, como na Bahia, os grupos ciganos pareciam ser menores, compondo cerca
de 20 ciganos e, tentando fazer uma estimativa para o país, relata-se que "excluindo
escravos e outros itinerantes morando com eles, numa estimativa conservadora de
no mínimo quatro até sete mil ciganos viviam no Brasil nas décadas precedendo a
independência" (Donavan, 1992; Teixeira, 2008, p. 26). Também há relatos de
ciganos nômades transitando por Minas Gerais e descrições de “barracas brancas” e
“casas pequenas” de tantos outros indicando que haviam também ciganos
sedentarizados no estado mineiro.24
Ainda no início do século XIX e, sobretudo, na segunda metade desse século,
começa a se registrar presença de ciganos não-ibéricos, vindos de outras regiões,
como é o caso dos Roms. Segundo Teixeira (2008), um dos primeiros roms a chegar
no país constituiu a família que posteriormente marcaria presença na história por
meio do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que teria origem cigana rom, ainda que
isso não fosse divulgado.
De acordo com as informações que pudemos apurar, o Rom que mais cedochegou ao território mineiro foi Jan Nepomuscky Kubitschek, que trabalhoucomo marceneiro no Serro e em Diamantina. Atendendo pela alcunha deJoão Alemão, era um "imigrante vindo da Boêmia, então parte do ImpérioAustro-Húngaro, que deve ter entrado no Brasil por volta de 1830-1835,casando-se pouco depois com uma brasileira." Em seu matrimônio comTeresa Maria de Jesus, teve pelo menos dois filhos. O primeiro foi JoãoNepomuceno Kubitschek, que viria a ser um destacado político. O segundofoi Augusto Elias Kubitschek, um comerciante com escassos recursos, queviveu toda sua existência em Diamantina. Augusto Kubitschek foi designadocomo 1º suplente de subdelegado de polícia em 1889. Também consta queteve pelo menos uma filha, Júlia Kubitschek, que viria a ser a mãe deJuscelino Kubitschek (1902-1976), que depois se tornou Presidente do
24 Ver mais informações nos capítulos “História geral dos ciganos no Brasil” e “Ciganos em MinasGerais no século XIX” do livro TEIXEIRA, R. História dos ciganos no Brasil. Núcleo de EstudosCiganos, 2008.
23 Dados obtidos de Donovan (1992) e citados por Teixeira (2008).
34
Brasil (1956-60), também conhecido pelo apelido “JK”, o fundador da atualcapital Brasília. Ou seja, um dos mais conhecidos e mais famosospresidentes do Brasil do Século XX foi um cigano, ou pelo menos umdescendente de ciganos, fato que, obviamente, nenhum livro didático nemhistoriador algum menciona. (id., p. 28)
Apesar da diversidade dos grupos ciganos, é possível dizer que os
estereótipos negativos recaíram sobre eles indiscriminadamente, além do que tudo
que se escreve ou se diz sobre eles era produzido por não-ciganos que quase nunca
levam em consideração o que os ciganos têm a dizer sobre si mesmos. Um efeito do
eurocentrismo que ainda repercute em nosso país colonizado e na vida das
populações ciganas por meio dos preconceitos, estereótipos e discriminações.
Teixeira (2008) comenta sobre essa problemática:
Durante a maior parte da história brasileira, praticamente só se falou deciganos quando sua presença inquietou as autoridades. Isto ocorria, porexemplo, quando eram acusados de roubarem cavalos. Nas poucas vezesque se escrevia sobre aspectos culturais dos ciganos, não havia qualquerinteresse sobre como eles próprios viam sua cultura. Os contadores daordem pública, com os chefes de polícia, os compreendiam como sendo"perturbadores da ordem", responsáveis pelos mais hediondos crimes.Outras fontes, como viajantes e memoralistas, recorriam aos estereótiposcorriqueiros, como "sujos", "trapaceiros" e "ladrões". Isto funciona como umindicador: os ciganos eram raramente considerados por si mesmos, e, comfreqüência, eram sinônimos de barbárie, imundície, desonestidade eimoralidade. Assim, a documentação se detém pouco sobre os ciganossingulares, que tornam-se desprovidos de existência. Quase sempreincidem sobre "o cigano", entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem ascaracterísticas estereotipadas. (p. 31-32)
4.1. Ciganos e a Umbanda: possíveis contribuições da Umbanda para avisibilidade das culturas ciganas
Iniciei este trabalho contando um pouco de onde veio o meu contato e
interesse em relação às culturas ciganas. Mencionei, então, que isso se deu por
meio de dois elementos que aparecem quase ao mesmo tempo na minha vida e,
desde então, caminham juntos: as danças ciganas e a Umbanda. Ao introduzir a
questão religiosa, ressaltei que os ciganos não são uma religião, são povos com
uma imensa diversidade cultural. Resolvi abordar essa questão por me deparar
repetidas vezes - seja nos relatos incômodos de ciganos, seja nas leituras que
35
tenho realizado - com essa confusão que coloca os ciganos como sendo uma
religião, ou uma espécie de culto, uma confusão que não necessariamente ou
apenas remete à Umbanda, pois também pode ser uma questão generalizada em
um universo esotérico, mas também pode acontecer envolvendo a Umbanda e é
referente a ela que irei me ater no momento, visto que é uma religião que trabalha
com entidades ciganas, as quais nesse contexto de confusão, por vezes, podem ser
tomadas como correspondentes às pessoas ciganas, o que também não se pode
dizer.
Provavelmente tais confusões se dão pelo desconhecimento que temos dos
povos ciganos, sua história e também sua (re)existência em nosso país, como
estamos vendo ao longo deste trabalho, a ponto de não ser raro pesquisadores se
depararem com a pergunta “existem ciganos no Brasil?”. Para tecer articulação com
a Umbanda, cabe falarmos um pouco dessa religião. A Umbanda é considerada uma
religião de matriz afro-brasileira, com origem afrodiaspórica bantu e indígena. O
nome Umbanda vem da língua Kimbundu e significa “arte da cura”. Segundo o
professor Claudio Zeferino (2020)25:
Quem faz Umbanda é o Kimbanda - o feiticeiro, ou seja, um agente social
que cuida, protege, orienta e direciona os caminhos Ancestrais e Espirituais
de uma comunidade e que, sempre que necessário é consultado para que
decisões da Vida Cotidiana dessa comunidade possam estar alinhadas com
os desígnios dos Ancestrais Divinizados (Os Bakuros) que dão o
direcionamento das ações daquele Povo. O Kimbanda tem então um papel
Político e Social. (p. 17)
Sobre a origem e formação da Umbanda, Laylah El Ishtar (2020)26 nos diz que teria
vindo da Makumba, embora muito estigmatizada, o nome faz referência a um
instrumento de percussão africano, ou à árvore sagrada africana, ou aos cultos
sincréticos afro-brasileiros, “Ma'Kumba - um tipo de reunião ou encontro religioso
onde se manipula magia” (id., p. 36). Nesse sentido, Laylah nos diz que:
26 Texto “A makumba não morreu”, presente na primeira edição da revista Makumba, 2020.
25 Texto “Reflexões umbandistas sobre Umbanda, política e cotidiano”, que compõe a primeira ediçãoda revista Makumba, 2020. Disponível para download no link:https://drive.google.com/file/d/1LxyBGBv6sDmtQ5UwSRElJ0x72phkiKSZ/view
Existem dois períodos de negociação em que os bantu estão muito
envolvidos e que em um momento mais recente podem ter aberto
precedentes para a Makumba se transformar em Umbanda. O primeiro
período acontece ainda na África quando o Mwene Kongo - Rei do Congo -
Nzinga a Nkuwu estreita laços com portugueses e se converte ao
Cristianismo como uma estratégia de intercâmbio e acesso ao que Portugal
poderia oferecer. Ou seja, já no Congo os bantu tiveram contato com a
religião cristã, mas não abdicaram de suas crenças originais, o culto aos
ancestrais e as Forças da Natureza. As igrejas, por exemplo, ainda
carregavam referências com nome de Nkisi... Os bantu já chegam no Brasil
com um certo sincretismo e aqui forma-se uma segunda negociação
sincrética, assimilam o culto aos ancestrais indígenas e o culto às
divindades yorubás. Algumas fontes afirmam que a Makumba passa a
existir quando a Cabula assimila os Orixás, mas eu acredito que essa
aglutinação acontece naturalmente do intercâmbio no cenário do início do
texto, nos Quilombos, nos Zungus. Mesmo que eu seja defensora de que
hoje o sincretismo não é mais necessário para mascarar as religiões afro,
eu preciso reconhecer que a Makumba é originalmente sincrética, a
estrutura bantu permitiu esse sincretismo. (pp. 37-8)
Além disso, é importante dizer também que a Umbanda, quando não
atravessada pela narrativa do Zélio de Moraes, não opera por uma concepção
eurocêntrica e que não existe uma Umbanda homogênea, cada terreiro trabalha com
seus fundamentos e cruzamentos de matrizes específicos, sincréticos ou não,
fazendo com que cada terreiro tenha sua singularidade e que a religião seja plural.
Entretanto, há algo que precisa estar presente na Umbanda onde quer que ela
esteja, que é a consciência social. Retomando novamente Zeferino (2021)27, ele nos
fala sobre o papel social das lideranças de terreiro, questionando se tais lideranças
estão articuladas com os problemas sociais enfrentados por suas comunidades, pois
é importante que isso esteja presente em sua atuação.
27 Discussão presente no texto “Reflexões Umbandistas: sobre a Umbanda, o Kimbanda e aslideranças de terreiro”, que compõe a 2a edição revista Makumba, 2021. Disponível para download nolink: https://drive.google.com/file/d/1RNPHxBNvn2kWUtnpnU4msefQ17ayToyL/view
Contudo, para além de colocar uma responsabilidade que muitas vezes pode
erroneamente operar mais como uma culpa individualizante às pessoas por seu
desconhecimento, percebo e arrisco dizer também o quanto essas associações
generalizadas são efeitos de um projeto colonizador e, portanto, atrelado a um
sistema político que intencionalmente apagou os ciganos da nossa história, junto à
disseminação de uma ciência hegemônica e de uma suposta “neutralidade”
biomédica que ignora e ridiculariza tudo o que foge à racionalidade cartesiana,
contribuindo para tudo que fique de fora de seu controle seja colocado em um limbo
indiferenciado (magias, espiritualidade, rituais, curandeirismo) e junto também a uma
religiosidade cristã que se pauta em um mundo ideal, distante e diferente da nossa
vida. Nesse sentido, enquanto religião que permanece em construção e
transformação, acredito que o caminho percorrido pela Umbanda é eminentemente
político, pautado no reconhecimento, acolhimento e incorporação de diversos
saberes em suas práticas, dialogando com uma pluralidade de sabedorias e culturas
e estabelecendo uma relação mágica com o mundo, com as forças da Natureza e
tudo que se faz presente nela, com nossos ancestrais manifestados pela
espiritualidade que trazem sabedoria de cuidado e resistência. Com isso, as ervas, a
defumação, o fogo, as águas, bebidas, o vento, a terra, os alimentos, a reza cantada
entoada pela curimba, as danças, tudo é tido como sagrado, nada está apartado de
nós e do que somos, algo que pode parecer estranho a uma concepção religiosa
hegemônica exaustivamente transcendental e distante de tudo que tange à
corporalidade e ao mundano, como nosso próprio corpo e a Natureza. Não há como
falar em Umbanda e não ver os africanos, os indígenas, os nordestinos, os ciganos,
as benzedeiras, o povo das ruas e suas sabedorias de resistência. Não há como
falar em macumba e não ver um espaço de resistência e de cuidado de si, dos seus
e do ambiente em que vive. Não há como permitir preconceitos, racismo, misoginia,
lgbtfobia, psicofobia nos terreiros, que requerem respeito a toda forma de existência,
pois permitir isso é operar no contra-axé da Umbanda e sabemos que muitos
espaços perpetuam isso. Não há porque ver Descartes ali, ele não pode habitar o
sagrado pois já separou sua mente, ou ainda, sua “humanidade” de toda a natureza
e também do restante de si mesmo.
38
Cabe mencionar também que o próprio conceito de religião difundido no
Ocidente pode não ser totalmente encaixado na Umbanda, tendo em vista que se
trata de um conceito geralmente pautado em dogmas e em um livro sagrado, e a
Umbanda não tem nada disso. Além do mais, também tem a questão do termo
religião, cujo significado mais difundido remete a religare. Em suas reflexões
umbandistas, Zeferino (2021)28 também fala sobre isso:
Devemos refletir que nem mesmo a religião (o religare a Deus) cabe o uso
diante da palavra Umbanda (a arte de curar), pois o que há é um Sistema
Espiritual e Civilizatório que nos mantém em Contato com nossos
Ancestrais. (...) Para O Povo Bantu, tudo é sagrado e como tudo é Sagrado,
o Homem nunca perdeu a sua ligação com Deus. Ou seja, ele não precisa
da religião. (p. 22)
Ainda segundo Alufá Baralenijan (2020)29, os povos originários do Brasil não
tinham uma palavra que correspondesse à religião, pois “todas as suas atividades
cotidianas estavam diretamente intrínsecas ao divino e ao sagrado” e para falar
disso, há o conceito de moyo (“vida”, “energia vital”), que “não desassocia o humano
do divino, pelo contrário entende que o ser humano é parte deste mesmo divino” (id.,
p. 10):
Os povos bantus, que foi a maioria de africanos trazidos para o Brasil no
período do genocídio negro, há o conceito de moyo, que significa “vida” ou
“energia vital”, que aponta para a compreensão de um constante fluxo
ordenador do mundo, com a qual todos os seres devem estar
harmonizados. É através de moyo que o Sol nasce, que os rios fluem, as
árvores crescem e os animais nascem. É visto como o caminho que o ser
humano deve seguir, agindo em consonância com esse fluxo predominante
do mundo. A pessoa que vive em harmonia com moyo torna-se um muntu,
ser humano, indivíduo, a força vital realizada. É moyo que liga os ancestrais
a seus descendentes atuais e as futuras gerações, e todos estes ao
complexo fluxo da natureza (...). (p. 10)
29 Referência ao texto “Por que não existe religião afro-brasileira de matriz bantu?” presente na revistaMakumba, 1 edição, 2020. Disponível para download no link:
28 Referência ao texto “Reflexões umbandistas: sobre a Umbanda, o Kimbanda e as lideranças deterreiro”, presente na segunda edição da revista Makumba, 2021.
39
A questão da religião também se estende para outras direções. No início do
século XX, nos escritos de Leal de Souza, entre os objetivos de falar sobre o que é
Umbanda para a população através dos jornais, também se estabeleceu as
“diferenciações e fronteiras com a magia negra, e o baixo Espiritismo, bem como a
demonstração dos diálogos mantidos com o Catolicismo e com o Espiritismo.”
(FERNANDES, 2019, p. 291). Ainda que nessa fala a historiadora legitime a visão de
Leal de Souza (pautada na narrativa do Zélio), podemos entender como essa
posição se traduz em uma intolerância às outras práticas de macumba tidas como
maléficas, tais como a quimbanda, macumba, feitiçaria, curandeirismo. É nesse
contexto, entre as décadas de 1930 e 1940, que esse tipo de organização do
espiritismo de Umbanda busca legitimação de seu culto enquanto religião para
escapar da perseguição e repressão, hierarquizando-o em relação aos outros em
que as presenças do afro e do indígena se faziam mais intensas e, portanto, agindo
de forma higienista, embranquecendo e despolitizando a Umbanda.
Nesse contexto de meados do século XX, ainda se proibia a prática desses
cultos, assim como a prática da cartomancia e do curandeirismo, nas quais os
ciganos também podem ser incluídos, pois eram ofícios que praticavam. Todas as
formas de praticar magia ou medicina popular que não fosse a medicina profissional,
que estava sendo regulamentada no país, era considerado crime. “A saúde era
tratada mais como caso de polícia do que como questão social" (PAIM, 2009, p. 29).
Contudo, podemos pensar também na história da saúde pública do nosso país antes
da reforma sanitária brasileira e da criação do SUS.30 Até o período do Império,
tinha-se medidas de profilaxia para controle de doenças epidêmicas e práticas
medicinais exercidas por médicos e boticários para atender a elite e curandeiros,
rezadeiras para a população geral. Depois, já na República, vemos o surgimento de
campanhas sanitárias e de vacinação para combater epidemias como febre amarela
e malária, muitas vezes sob uma atuação vertical na população e alinhada aos
interesses econômicos, além também do início de uma assistência
médico-hospitalar e da previdência social para algumas classes trabalhadoras (com
30 Ver mais sobre o tema em: PAIM, Jairnilson. O que é o SUS?. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,2009.
40
carteira assinada e dos centros urbanos). Entretanto, a maioria da população
permanecia excluída do acesso à assistência médica. No início do século XX, como
nos diz Paim (2009), vemos três subsistemas de saúde ligados ao poder público:
saúde pública, medicina previdenciária, medicina do trabalho e junto a elas, tem-se a
medicina liberal, a filantropia e a medicina popular (onde se insere também os cultos
nos terreiros). Seria somente em 1953 que um Ministério da Saúde passaria a existir
no país, provocando mudanças no desenvolvimento de um sistema público de
saúde, com um modelo hospitalocêntrico e, depois, com o que conhecemos como o
Movimento de Reforma Sanitária. Nesse sentido, um dos espaços de cuidado (que
também pode ser entendido como estratégia de resistência) para os problemas que
afligiam grande parte da população, entre indígenas, negros e classes baixas, eram
os terreiros. Com isso, podemos também perceber a importância da macumba na
história da saúde no Brasil e também para a prática psi, que pode aprender muito
com ela e se manter aliada para descolonizar a saúde.
Discorro acerca dessas questões para dizer que o espaço das giras (espaço
de troca, partilha, convívio, aprendizagem, saúde e resistência), talvez ainda seja
uma das poucas possibilidades de contato das pessoas com as culturas ciganas.
Com isso, faz-se necessário que a comunidade umbandista se implique em abrir
discussões que possam contribuir com as confusões e dúvidas que venham surgir
nessas interações e para que possamos nos pautar em um conhecimento que não
sirva para colonizar, dominar ou controlar, mas em um conhecimento que se dê por
meio dos encontros, das aproximações que produzem frestas nas barreiras já muito
sedimentadas, produzem afetações, em que afetamos e nos deixamos ser afetados,
até que essa afetação produza um novo corpo para se relacionar de uma outra
maneira com outras realidades culturais nos permitindo dialogar e sustentar as
diferenças.
Com isso, considero relevante a relação entre os povos ciganos e a
Umbanda, pois havendo a possibilidade de reconhecimento e respeito às culturas
ciganas nos terreiros, pode-se também contribuir para que esses povos estejam
mais presentes nas nossas discussões sociais, tendo em vista que o racismo e
41
discriminações contra os ciganos e suas culturas não são comumente abordados
nas escolas, suas histórias não estão nos livros didáticos, raramente aparecem
também nos conhecimentos produzidos pelas universidades e em outros espaços,
mesmo as danças ciganas, comparadas com outras modalidades de dança, não têm
uma difusão proporcional de modo que, no contexto brasileiro, as giras podem se
constituir como um espaço de conhecer e se relacionar com as culturas ciganas, o
que possibilita viver os aprendizados e as transformações desses encontros também
na comunidade externa, no cotidiano, pois é isso que a Umbanda faz, ela está
presente no nosso dia a dia. Compreendo que isso pode contribuir para desconstruir
preconceitos e estabelecer novas relações mais dialógicas com os povos ciganos e
menos excludentes e discriminatórias como acontece historicamente e permanece
até hoje. Para isso se faz necessário que os macumbeiros respeitem todas as
formas de existência e que compreendam nosso compromisso socio-político com as
comunidades onde estamos inseridos.
Pois é importante ressaltar que os estigmas e discriminações em relação aos
ciganos ainda segue muito viva. Enquanto escrevo este trabalho, está havendo uma
caça aos ciganos em Vitória da Conquista (BA)31. Não é século XV na Europa, nem
século XVII no Brasil. É julho de 2021 e a caça segue permitida e são raras as
mídias que divulgam algo sobre isso. Um policial morreu em um suposto confronto,
quem o matou? Deve ter sido um cigano, disseram. Alguém disse e isto bastou para
que dar início à caçada aos ciganos, apagando esses CPFs, inclusive de um menino
de 13 anos, Moraes da Silva. Repito: estamos em 2021 e as mesmas formas de
tratamento aos ciganos permanecem inalteradas. Nesse sentido, se o umbandista
tenta se manter neutro diante dos preconceitos e ataques que suas comunidades
sofrem, como se isso não dissesse respeito a ele ou aos seus, sua “neutralidade” já
é um posicionamento político. Não há como não misturar religião com política,
porque a religião já é política, sobretudo a macumba, que nasce como
enfrentamento, resistência política e se pauta na vida coletiva.
31 Mais informações sobre a chacina podem ser acessadas na página do instagram “Ciganagens”.Link: https://www.instagram.com/ciganagens/
“Desde sua chegada na Europa Ocidental, os ciganos
têm sido vítimas de políticas anti-ciganas, em todos
os países por onde passaram. “Cigano” virou
palavrão; ser “cigano” virou crime, o que em muitos
países significava a condenação à morte. Ainda em
pleno Século XX, os nazistas exterminaram cerca de
500.000 ciganos, um holocausto que os historiadores
preferem esquecer.”33
(Frans Moonen)
O holocausto nazista, ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, costuma
ser um tema conhecido e estudado nas escolas, marcando a vida de judeus,
homossexuais, opositores políticos, africanos que moravam na Alemanha, entre
outras minorias étnicas, marcando também a vida dos romá. Embora
frequentemente esquecido ou ignorado, o holocausto também vitimou a população
cigana ocasionando um genocídio desses povos, com cerca de 500 mil ciganos
mortos. Segundo Prestes (2019), há uma denominação específica para o holocausto
cigano, que é “Porrajmos” que significa “devoração”, tal termo teria sido criado pelo
cigano britânico Ian Hancock.34
Em suas pesquisas, Moonen (2013)35 elenca alguns fatores que contribuíram
para a perseguição e etnocídio dos ciganos na Alemanha de Hitler:
(...) (1) o já tradicional ódio dos alemães e de outros europeus aosciganos, existente já desde o Século 15; (2) os arquivos desde o final doSéculo 19 existentes sobre ciganos na polícia criminal e (3) as teorias deantropólogos, psiquiatras e médicos sobre “higiene racial” e “biologiacriminal.
Moonen (2013) ainda acrescenta que “A diferença era que agora os ciganos
passaram a ser perseguidos - e depois exterminados - também por motivos raciais, e
35 Aqui, Moonen faz menção às pesquisas de Gilsenbach 1988: 16 e segs. Ver mais em: Moonen,2013, p. 51)
34 Ian Hancock é um pesquisador cigano, linguista e professor doutor da Universidade do Texas.
33 Trecho de Frans Moonen no Núcleo de Estudos Ciganos, 2000. disponível em:http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/ciganos03.html
não apenas por serem considerados associais ou criminosos natos” (id., p. 52).
Contudo, mesmo após a Segunda Grande Guerra, a Alemanha não reconheceu o
fator racial cometido no crime contra os ciganos, apenas contra os judeus,
ausentando-se, portanto, do pagamento de indenizações a essas vítimas do
holocausto. Ainda segundo Prestes (2019), há um marco importante na história dos
ciganos durante o regime nazista. No dia 16 de maio de 1944, no campo de
concentração de Auschwitz, aconteceu uma grande resistência cigana frente ao
nazismo: os ciganos rom e sinti presos se rebelaram e confrontaram os soldados da
SS nazista. Esse dia costuma ser lembrado todo ano pelas comunidades romani.
Figura 3: ciganos no campo de concentração de Belzec.
(Fotografia nazista: ciganos Kalderash em Belzec,
marcada para redução pelo fotógrafo, 1940.)36
Soria (2015) relata que a violência dos estereótipos e preconceitos contra os
ciganos se naturalizou em todos os campos, inclusive na arte, contribuindo para no
século XX ocasionar um holocausto desses povos, além das perseguições que
ainda sofrem com a xenofobia que, no caso, é expressada como ciganofobia:
36 Fotografia extraída do livro Fonseca, Isabel. Enterrem-me em pé: uma longa viagem dos ciganos,2004, p. 302.
45
Essa dinâmica explicável, porém perversa, contribuiu substancialmente,tanto para a história ininterrupta de perseguição que culminou com oPorrajmos (holocausto rom) e para o que hoje se chama, principalmente naEuropa, de ciganofobia generalizada, que contudo é um problema mundialque só varia de matiz, indo do racismo declarado ao sutil e do preconceitoaberto ao velado. (p. 23)
A ciganofobia ainda ocorre atualmente em todo o mundo, inclusive na Europa.
Em muitos países da chamada Europa Ocidental é tida como uma discriminação
“velada”37, mas também há muitos locais onde isso se manifesta de forma
escancarada, como é o caso de países situados no leste europeu.38 Nesse caso, é
importante salientar que o contexto de isolamento do leste europeu durante a Guerra
Fria39, em meio aos regimes soviéticos e posterior busca por identidade nacional -,
como atesta, por exemplo, Fonseca (2004) ao relatar que “O novo governo socialista
na Polônia do pós-guerra aspirava construir um estado nacional e etnicamente
homogêneo” (id., p. 20) -, contribuiu para acentuar a aversão aos ciganos, somado
também à ocorrência do próprio holocausto40 e ao passado de escravidão na
Romênia.
40 Vale lembrar que durante a Guerra Fria o muro de Berlim dividiu a Alemanha entre parte Ocidentale parte Oriental. Na fronteira da Alemanha Oriental com os países do leste ocorreram muitos conflitosentre ciganos, alemães e as diversas nacionalidades dos países do leste europeu. Ver mais sobre otema em: FONSECA, I. Enterrem-me em pé: a longa viagem dos ciganos. São Paulo: Companhia dasLetras, 2004)
39 “Na década de 90, após a reunificação das duas Alemanhas (Ocidental e Oriental) e o fim da UniãoSoviética, a Alemanha se tornou o país preferido por dezenas de milhares de refugiados e migrantesdo Leste, entre os quais muitos ciganos, principalmente da Romênia e da ex-Iugoslávia.” ( MOONEN2013, p.57).
38 A jornalista Isabel Fonseca aborda essa questão em seu livro “Enterrem-me em pé: a longa viagemdos ciganos”, no qual relata sucessivos ataques aos ciganos, como o ateamento de fogo em várias desuas casas, por parte da população civil dos mais diversos países do leste europeu no período do fimda Guerra Fria e do desmantelamento dos regimes soviéticos. A referência completa do livro seencontra na bibliografia deste trabalho.
37 Em 2010, na França de Sarkozy, uma leva de ciganos foram expulsos do país por supostamenteestarem em situação de ilegalidade. Ver mais sobre o tema nas reportagens:https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/08/100818_franca_ciganos_dg ehttps://oglobo.globo.com/mundo/franca-expulsa-mais-283-ciganos-para-romenia-2959635
“As sociedades ou grupos, como os ciganos, que têm na tradição oral suaprincipal fonte de manutenção da memória, inscrevem em seus corpos suasmemórias, porque o corpo representa lugar e temporalidade. Desta forma, ocorpo-documento como relatou Tavares (1984, p.42), pode ser entendido"...como sendo a memória motora, a própria documentação escrita, só quepelas indumentárias, pelos gestos e movimentos corporais". (HILKNER,2008, p. 172)
Se há algo que é capaz de expressar a diversidade dos ciganos, sua história,
suas culturas são as danças ciganas e a musicalidade que as acompanham, visto
que as danças são realizadas a partir da leitura musical, são elas que expressam a
memória e a história dos ciganos, povos marcados por uma cultura ágrafa, mas não
sem história. Através da experiência da dança e dos estudos das culturas ciganas,
pude compreender que a dança cigana, na verdade, abrange uma diversidade de
estilos de dança de modo que é preciso falar em danças ciganas no plural. Isso
porque a dança e a música ciganas são resultados de uma relação intercultural, pois
é por meio do contato do grupo cigano com a cultura local onde eles estão, que
emerge um estilo de dança e uma musicalidade específica, tornando uma dança
cigana e a musicalidade envolvida conectadas entre si e inscritas em um contexto
histórico, geográfico e cultural, o que as diferencia de outras danças e músicas,
também ciganas, mas produzidas em outros contextos. Ou seja, as danças ciganas
estão fortemente ligadas à história que os ciganos viveram em um local, assim como
suas músicas. Vale ressaltar, ainda, que a interculturalidade não se dá apenas de
modo dialógico, mas também por meio de confrontos e choques culturais e essas
relações inter-étnicas estão presentes na história dos ciganos. Isso ressoa no ritmo,
sonoridade e instrumentos utilizados nas músicas e também nos movimentos de
saia, passos e marcações das danças. Por exemplo, na rumba gitana, uma dança
cigana tida como “aflamencada” devido à influência do flamenco espanhol, tem
muitas diferenças em relação a uma dança cigana russa, também chamada de
ruska. Na rumba gitana, as saias não necessariamente têm muita roda, os braços
41 Dedicado à Bárbara Gorgátti, cigana calin e professora de dança cigana, com quem pude aprendersobre as culturas romani por meio da dança.
47
adquirem postura aflamencada, angulares, firmes, as mãos fazem dedilhados ao
girar o punho, há sapateado, os movimentos de saia se concentram na altura da
cintura/quadril, com movimentos curtos, secos, rápidos, os joelhos ficam levemente
flexionados, imprimindo força para o solo. Já na dança cigana russa, as saias
precisam ser soltas nas pontas, com muita roda, geralmente têm babados com
tecidos leves, os movimentos com as saias são amplos e altos, acima do peito ou,
pelo menos, na altura dele, é uma dança com muitos giros, os braços já adquirem
uma força mais delicada, há sapateado fazendo marcação com os pés, estalos de
dedo marcando tempo e ritmo, uso dos ombros, pulos, as pernas ficam estendidas,
também é comum músicas com ritmos acelerados e deslocamentos mais amplos.
Além disso, alguns acessórios podem também ser incorporados à dança. Nas
rumbas, por exemplo, pode-se usar leques ou mantón/xale, enquanto que, na dança
cigana russa, costuma-se usar pandeiros meia-lua, geralmente com fitas coloridas
amarradas neles.
Sayonara Linhares42 afirma que os ciganos são polinizadores e mantenedores
culturais, pois ao absorverem as culturas dos locais por onde passam e as levarem
com eles para outras regiões, eles acabam por preservar culturas que poderiam ter
desaparecido ao longo da história devido à períodos de invasões e guerras, por
exemplo, na região dos Balcãs, onde houve muitas invasões do Império Otomano.
Por meio da influência e absorção das culturas, os ciganos formatam estilos de
dança e música específicas, com passos específicos, movimentos típicos. No Brasil,
ainda não há uma formatação específica de dança, ela está em construção.
FESTA CIGANA
Dançar…mãos e pés livrescom sua linguagem própria.Dançar… música no ar
42 Sayonara Linhares é dançarina e pesquisa danças e culturas ciganas há mais de 20 anos, é umadas pioneiras no ensino das danças ciganas no Brasil, fundadora da Casa Z (onde aconteceformação em danças ciganas) e membro CID - UNESCO. Para ver mais informações referentes aoque foi mencionado aqui, acesse a página do instagram Hunna, um coletivo de mulhereshistoriadoras que dançam e pesquisam sobre danças ciganas e orientais, no qual há disponível umvídeo com a Sayonara Linhares falando sobre os ciganos, disponível no link: “O que é a dançacigana”, https://www.instagram.com/tv/CRHhB8cpLQh/?utm_source=ig_web_copy_link
cigana, mágica, feiticeiraem volta da fogueiraque, em noites de lua cheia,ilumina todo o terreno
e nossas tcêras.Ah! Dançar…saias farfalhantes que sussurramhistórias há muito vividasdo meu povo erranteporque não se prende a cadeiase sábio, porque conheceo infinito e as estrelas;sabedoria que nós trazemos
quando nascemos,no uso do baralho,do olhar e dos dados,nos colares e pulseirase na dança, quando,como pássaros livresdamos asas a nossos
sonhos e simplesmentedançamos … dançamos… Dançamos
[pela noite adentro!”(Esmeralda Liechocki)43
Além disso, também existem as danças ritualísticas, que não estão ligadas a
nenhuma religião, elas compõem as tradições e rituais romà, ou seja, fazem parte de
suas culturas. Essas danças trabalham com os elementos da Natureza e suas
diversidades, por exemplo, uma dança ritualística com flores está conectada com o
elemento terra e com o simbolismo que as flores trazem para as culturas romà,
indicando conexão e saudação à mãe Terra, ao útero, à sutileza e à beleza que as
flores despertam. Também se faz dança ritualística com incensos e frutas, os aromas
são bastante valorizados pelos ciganos e, entre as frutas de referência, destacam-se
a maçã e o romã. O romã, cujo nome se aproxima dos povos romà, é considerado
um símbolo dos ciganos, representando abundância, prosperidade e fertilidade. As
músicas ritualísticas também são ciganas e tendem a ser serenas, misteriosas e
envolventes e essas danças podem ser realizadas de forma individual ou em grupo.
Quiromancia:
43 Poema da cigana Esmeralda Liechocki extraído do livro: LIECHOCKI, Sally Edwirges Esmeralda.Ciganos e a realidade. Niterói: Heresis, 1999.
49
“ - Quem qué lê sorte? Diz tudo: passado, presente e futuro! Esvoaçavamos lenços amarelos, os aventais vermelhos, as saias cheias de ramagens(...)“Tua amiga te engana. Tua amiga branca. Tu toma cuidado com a tuacabeça. No fim do ano tua vida vai mudar.” (...)OLHINHOS DE GATO ficava olhando para a palma de sua mão. Cadarisquinho daqueles queria dizer então uma coisa… E suas mãos eram tãoriscadas… (...)É 500 réis… Lê tudo: passado, presente, passado, futuro… Lê a sorte, dizse casa, adivinha herança e dinheiro da loteria… O vento inchava a saia deramagens, as ciganas limpavam o suor no avental e, chocalhando aspulseiras, e balançando as tranças, iam-se embora, inclinadas para trás,coloridas como pássaros. Uma parava para arrancar espinho do pé.”(Cecília Meireles)44
A quiromancia ou leitura das linhas da mão é um ofício praticado pelas
mulheres ciganas e que lhes ajudava a garantir o sustento de suas famílias.
Também conhecida popularmente como buena-dicha (leitura da sorte, sina, futuro),
segundo Teixeira (2008), essa prática está presente no Brasil pelo menos desde o
final do século XVII e início do XVIII, quando Nuno Marques Pereira esteve no Brasil
e comentou sobre as superstições dos ciganos dizendo: "A chiramancia, é a que
hoje professam os Ciganos, de mentir e enganar pelas raias das mãos: e com ser
manifesto engano, há nos homens appetencia de saber o futuro." (id., p.55). Como
podemos perceber, as práticas ciganas já despertavam incômodos e eram tidas
como enganosas de maneira recorrente também no nosso país. Ainda segundo
Teixeira (2008):
A buena-dicha não era para os ciganos um ritual sagrado, e nem poderiaser considerada pela sociedade mineira como algo demoníaco. Para asciganas, era uma atividade lúdica e sua principal e mais rendosa atividade.Para as consulentes, quase sempre, a buena-dicha significava boas novas,ou seja, a esperança de mais sorte na vida. (p. 55)
A cigana Esmeralda Liechocki também fala um pouco sobre a quiromancia
em seu livro “Ciganos: a realidade” (1999):
Para os ciganos, as linhas das mãos são ‘sentidas’ através do toque da mãoda cigana e no apalpar da palma das mesmas. Então, a cigana vai falando oque sente, e não o que vê ali desenhado. E a mão que se lê é sempre a
44 Trecho do livro Olhinhos de gato, de Cecília Meireles. Trata-se de uma narrativa da infância de umamenina na qual há presença de ciganos e, segundo Pereira (2009), esse romance pode ser um livrode memórias de Cecília. Há relatos de que Cecília tinha origem cigana. Ver mais em: MEIRELES,Cecília. Olhinhos de gato. São Paulo: Moderna, 1980.
50
mão que trabalha ou domina, ou seja, a direita e, no caso do canhoto, aesquerda. (p.39)
Cartomancia:
Pereira (2009) relata que as origens da cartomancia são incertas,
provavelmente vem do Egito ou da Índia, entretanto, é muito provável que os
ciganos levaram essa prática para a Europa por volta do século XIV. “Os dois países
onde ela mais se difundiu foram Espanha e França (id., p. 98). Assim como a
quiromancia, a cartomancia também é um ofício praticado pelas ciganas e que
ajudava a sustentar suas famílias. As cartas podem dizer sobre os acontecimentos
presentes, passados ou futuros. Segundo Pereira (2009), as ciganas costumam
trabalhar com o baralho comum e com o baralho cigano, dificilmente usam o tarô,
sendo comum também “lerem a sorte na bacia com moedas e nos dados” (id., p.
98).
Contudo, as artes adivinhatórias ou oraculistas não são praticadas apenas por
ciganas, existem cartomantes não-ciganas que também fazem uso dessas
ferramentas, inclusive com outros tipos de baralhos ou mesmo o tarô, inclusive eu
mesma sou uma praticante desse oráculo e costumo trabalhar com um baralho de
pombagira. Pereira (2009) também traz alguns relatos de ciganos comentando sobre
a prática da cartomancia, entre eles:
A nossa raça é basicamente intuitiva. Mesmo que as ciganas do Catumbinão saim por aí lendo a sorte, são as adivinhações que vão auxiliá-las aresolver seus problemas e até os de seus parentes. A maioria das ciganasdaqui costumam ver o destino numa taça de champanhe. (Davi)
A cigana Esmeralda Liechocki (1999) também comenta sobre a prática da
cartomancia:
Assim como na quiromancia, a cigana vai deitando as cartas e falando. Acigana não lê o baralho, esse é que responde e confirma o que a cigana vaidizendo. Não existe possibilidade de o jogo não abrir, de o consulente nãopoder cruzar braços e pernas ou de a consulente não poder estarmenstruada. Tudo isso é engodo. Carta cigana é infalível e vai predizer emqualquer situação. (pp.39-40)
51
7. ANTICIGANISMO: ESTEREÓTIPOS, PRECONCEITOS E DISCRIMINAÇÃO
“Presentes no ocidente desde meados do século XV,
aqueles que hoje se reconhecem etnicamente, ou são
reconhecidos, como “ciganos”, ocupam no imaginário
do outro, “não cigano”, imagens diversas e às vezes
dicotômicas. Se por um lado são vistos como sujos,
fedorentos, ladrões, vagabundos, e trapaceiros –
como mostram diversas pesquisas etnográficas - por
outro, são seres metafísicos, detentores de
conhecimentos mágicos e de dádivas divinas,
capazes de acessar através do jogo de cartas, ou da
palma da mão, facetas do passado, presente e
futuro.”45
(Lucas Vale)
Ao longo da história, aos ciganos foram atribuídos as mais diversas ofensas,
injúrias, xingamentos, contribuindo para a intensa cristalização dos preconceitos e
de suas representações negativas em nosso imaginário popular. Teixeira (2008),
analisando as definições de ciganos nos dicionários, encontra no primeiro dicionário
de Portugal, de autoria do padre Raphael Bluteau, dizeres que remetem ao
comportamento herege dos ciganos, no início do século XVIII, por não seguirem os
sacramentos católicos:
Ciganos – Nome que o vulgo dá a uns homens vagabundos eembusteiros, que se fingem naturais do Egito e obrigados aperegrinar pelo mundo, sem assento nem domicílio permanente,como descendentes dos que não quiseram agasalhar o DivinoInfante quando a Virgem Santíssima e S. José peregrinavam com elepelo Egito (BLUTEAU, 1712, p.311-312)
Em seguida, ele também confere a atualização da definição no mesmo
dicionário um século depois, já sob a direção do brasileiro Antonio de Moraes Silva:
45 VALE, Lucas Medeiros de Araújo. "Vinha caminhando a pé, para ver se encontrava uma cigana defé": o culto aos espíritos ciganos no Catimbó/Jurema do Ylê Axé Nagô Ôxáguiã (Caicó/RN) / LucasMedeiros de Araújo Vale. - João Pessoa, 2019. 92 f.
52
Raça de gente vagabunda, que diz vem do Egito, e pretende conhecer defuturos pelas rayas, ou linhas da mão; deste embuste vive, e de trocas, ebaldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairro juntos, tem algunscostumes particulares, e uma espécie de Germania com que se entendem.(…) Cigano, adj. que engana com arte, subtileza, e bons modos (SILVA,1922, p.396)
Podemos ver que as imagens de vagabundos, trambiqueiros, itinerantes ainda
permaneceram, alterando apenas os aspectos religiosos, que foram retirados, dando
maior destaque para os aspectos culturais, como suas artes, suas práticas
comerciais e a buena dicha, leitura de mãos feita pelas ciganas, que também é vista
como trapaça. Teixeira (2008) acrescenta ainda que:
Na consulta de outras fontes, muitos outros adjetivos negativos foramlistados; imorais, sem honra, gananciosos, esbanjadores, sujos etc. Cadauma destas imagens teve períodos de maior e menor destaque. Além disto,combinaram-se entre si das mais diversas maneiras, produzindo um painelextremamente amplo de imagens dos ciganos. (p. 6)
Pilares do anticiganismo
Frans Moonen, em seu livro “Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no
Brasil” (2013), faz uma distinção acerca dos conceitos de estereótipo, preconceito e
discriminação, relacionando suas incidências sob a população cigana. Estão eles
listados a seguir:
O estereótipo - a dimensão cognitiva - se refere ao suposto conhecimento(mas quase sempre ignorância), às idéias preconcebidas, aosprejulgamentos sobre os outros e costuma manifestar-se em frases como“os ciganos são ladrões”, “as mulheres ciganas são trambiqueiras”, “ascrianças ciganas são sujas e não gostam de estudar. (MOONEN, 2013,p.199)
O preconceito - a dimensão afetiva – se refere ao sentimento, à antipatia(quase nunca simpatia) que o indivíduo tem para com os outros, e semanifesta em frases como “tenho medo de ciganos”, “odeio ciganos” ou“não confio em ciganas. (MOONEN, 2013, p.199)
Já a discriminação - a dimensão comportamental – se refere à ação, àprática, como não permitir a entrada de ciganos em lugares públicos, proibira matrícula de crianças ciganas nas escolas, incendiar casas ciganas, eque, em último caso, pode ir até a extinção física dos ciganos. (MOONEN,2013, p.199)
53
Ainda segundo Moonen (2013), os estereótipos sobre os ciganos começaram
a surgir já no século XV.
Os documentos históricos deixam claro que muitos destes ciganosaparentemente tinham uma conduta pouco compatível com os valoresculturais europeus da época, pelo que, já no Século 15, começaram a serformados os primeiros estereótipos, segundo os quais os ciganos: 1) eramnômades, que nunca paravam muito tempo num mesmo lugar; 2) eramparasitas, que viviam mendigando ou aproveitando-se da credulidade dopovo; 3) eram avessos ao trabalho regular; 4) eram desonestos e ladrões; 5)eram pagãos que não acreditavam em Deus e também não tinham religiãoprópria. (MOONEN, 2013, p. 101)
Moonen (2013) em sua obra tenta traçar algumas possíveis justificativas para
o ódio aos ciganos iniciado na Europa Ocidental. Menciona a crucificação de Cristo
e a negação de hospedagem à virgem Maria, entretanto, lembra que isso seria
impossível pelo fato de os ciganos migraram da Índia, cerca de mil anos depois.
Também fala sobre a condição de serem mendigos, o que por sua vez é muito vago,
tendo em vista que existiam outras pessoas não ciganas nessa condição na Europa,
além de uma variedade de tipos de mendicância oficializadas na legislação. Além
disso, fala-se de uma prática comum na época, já mencionada aqui, a peregrinação,
(o que também não seria um elemento em si suficiente para o ódio aos ciganos),
tendo em vista que isso já ocorria na Europa e, é provável que os ciganos
percebendo a ocorrência desse movimento nas terras europeias, tenham adotado a
condição de peregrinos como mais uma estratégia de garantir recursos para seu
grupo. Também aparecem explicações nas quais os ciganos não respeitavam as
propriedades alheias e que eram ladrões. Contudo, Moonen ressalta que havia
outros europeus não-ciganos exercendo a mesma prática e que, no caso dos
ciganos, no geral, ocorriam pequenos furtos para sobrevivência, sem violentarem ou
matarem outras pessoas.
A tentativa de Moonen de buscar explicações para a má fama e perseguições
aos ciganos obviamente não se efetiva, pois não existe nenhuma justificativa
plausível para tamanho preconceito e discriminação com um povo, que no caso dos
ciganos, ainda culmina um etnocídio sem fim, pois eles seguem sendo alvos das
mais diversas confabulações da sociedade gadje majoritária. A partir disso, tentarei
54
tecer mais adiante algumas reflexões acerca da construção do anticiganismo que se
espalhou pelo mundo e como a psicologia, área na qual estou inserida, pode se
implicar nesse processo.
55
8. ALGUMAS REFLEXÕES E IMPLICAÇÕES DA PSICOLOGIA
8.1. A incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho capitalista
“A batalha contra a magia sempre acompanhou o
desenvolvimento do capitalismo, até os dias de hoje.
A premissa da magia é que o mundo está vivo, que é
Com a transição de uma sociedade feudal para uma sociedade capitalista,
vemos emergir no horizonte europeu um novo modo de vida mais compatível com o
capital: a disciplina do trabalho. A magia, entendida em aspecto amplo, torna-se
incompatível com esse novo regime. É nessa época e contexto transicional, a partir
do fim do século XIV, que os ciganos entram e se espalham pelas terras europeias.
É também essa uma das possíveis razões pelas quais os grupos ciganos foram
excluídos, perseguidos e expulsos da Europa, mostrando que esse período de
gestação do modo de produção capitalista e da modernidade não foi nada pacífico,
muito menos sem mobilidade, turbulências e resistências, visto que não só os
ciganos desobedeciam as leis do disciplinamento, mas também os camponeses e
artesãos expropriados de suas terras não aceitaram facilmente o trabalho
assalariado.
Em seu livro “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”,
Silvia Federici trata dessa transição da Europa para o mundo capitalista, buscando
desdobrar o papel apagado que as mulheres e, portanto, bruxas assumem nesse
processo, evidenciando também as mudanças nas concepções do corpo, que se
torna um protagonista fundamental a ser capturado para catalisar o modo de
produção capitalista. Para isso, fez-se necessário o que Foucault chamou de
“disciplinamento do corpo” e Federici discorre sobre esse processo que, segundo
ela, “consistia em uma tentativa do Estado e da Igreja de transformar as
potencialidades dos indivíduos em força de trabalho.” (p.240). Mais do que produzir
56
força de trabalho e para que ela possa efetivamente ser produzida, veremos adiante
que esse processo envolveu também uma transformação nos modos de
subjetivação.
Primeiro, fazendo jus à obra de Silvia Federici, gostaria de diferenciar o
trabalho colocado como elemento centralizador e definidor do modo de produção
capitalista e do homem moderno enquanto sujeito - tratado exaustivamente nos
temas que implicam a economia capitalista e que também será trazido aqui -
gostaria de diferenciar este trabalho assalariado, dirigido ao homem, de um outro
trabalho, extremamente fundamental para a existência do capital, que é o trabalho
não remunerado e compulsório da maternidade destinado às mulheres, cuja
capacidade reprodutiva serve para produzir a tão obcecada mão-de-obra ou força de
trabalho do capital. A maternidade foi a educação dada às mulheres que, no século
XVIII, saem da condição aristotélica de “homem menor” e dão esse “salto” no novo
grau de desumanidade que lhes é destinado, configurando uma escravidão ocultada
para as mulheres, que devem ser casadas e confinadas ao ambiente doméstico,
servindo à lógica patriarcal e burguesa da monogamia e da família nuclear, que
então nos leva à naturalização do trabalho doméstico como sendo próprio e natural
da mulher, incluindo a função de cuidadora do marido e dos filhos, garantindo assim,
a produção de mão-de-obra que constituirá a máquina de trabalho do capitalismo.
Segundo, partindo da compreensão de que o disciplinamento do corpo e a
produção de subjetividade são processos mutuamente implicados, vemos nesse
período como a articulação entre a burguesia e o Estado produziu outros
entendimentos sobre o corpo, realocando-o como condição para existência do
trabalho, ao mesmo tempo em que o distancia e o esvazia dos valores conferidos a
ele anteriormente. Para isso, colocou-se como necessário a supressão do corpo
enquanto receptáculo mágico, conferindo inferioridade e desprezo a ele e aos
sentidos, aspectos imprescindíveis na concepção que perdurava até o século XVI,
ao mesmo tempo em que se promove uma ruptura entre o homem, possuidor de
razão, e o restante da Natureza, de modo que tudo o que se aproxima da
corporalidade é tido como algo de valor inferior, ou animalizado ou menos humano.
57
A referência de humanidade se torna o homem branco europeu e tudo o que diverge
desse modelo passa a ser passível de desvalorização, desumanização,
animalização, desrazão, dominação e exploração, isso vale tanto para outros povos
quanto para os recursos naturais e os animais, numa espécie de direito
auto-concedido para quem se julga acima de tudo em uma hierarquização que tem
como aposta mais valorosa o humano, no caso, um humano que tem sexo, gênero,
cor, classe, endereço e racionalidade definidos. “Sou homem branco colonizador,
logo posso explorar o que eu bem entender” caberia bem como sendo as bases
epistemológicas fundantes da modernidade.
Vamos separar esse negócio aí, gente e terra, essa bagunça. É melhorcolocar um trator, um extrator na terra. Gente não, gente é uma confusão. E,principalmente, gente não está treinada para dominar esse recurso naturalque é a terra.” Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentávelpara quê? O que é preciso sustentar? (KRENAK, 2020, p. 22)
O disciplinamento do corpo se dá de forma dupla. De um lado, ocorre no
âmbito individual por meio do domínio de si, do autocontrole exercido pela mente
sobre o próprio corpo e, por outro lado, esse controle se estende ao corpo do outro,
configurando o domínio do corpo social. Contudo, o disciplinamento não foi uma
tarefa fácil a ser realizada, além da enorme resistência proletária em relação ao
trabalho assalariado, nos relatos dos filósofos e pensadores da época,
principalmente Descartes, fala-se muito sobre a batalha travada entre partes baixas
e as partes altas da alma, entre as paixões do corpo e a razão, dando a entender
que o exercício do autocontrole era uma tarefa árdua, mas necessária e honrosa de
ser cumprida. Além disso, para que haja um sucesso do disciplinamento do
proletariado ou do corpo social, em que este se transforma em máquina de trabalho,
torna-se fundamental a internalização dos mecanismos de poder, expressos na
lógica do domínio de si, que contribui para catalisar o desenvolvimento do sistema
capitalista, uma vez que a força coercitiva ou de obediência deixa de depender
apenas dos aparelhos do Estado e passa a operar pelo próprio sujeito em si mesmo.
Concomitante a isso, constatamos o disciplinamento do corpo e controle da vida da
mulher, que se dá sobretudo por meio dos dispositivos materno e amoroso, a fim de
controlar seus poderes reprodutivos. Nisso, vemos como os corpos rebeldes, para
usar um termo que Federici utiliza, tornam-se um problema que precisa ser corrigido
58
ou eliminado. Além das mulheres - “um animal imperfeito, sem fé, sem lei, sem
medo, sem consistência”, ditado francês do século XVII sobre as mulheres que
Federici (2017) lembra em seu livro - além das mulheres, que se tornam bruxas a
serem queimadas nas fogueiras, também há o indisciplinamento do proletariado ou
das “classes baixas” ao autocontrole imposto no curso do desenvolvimento
capitalista. Federici (2017) relata a provável baixa adesão à autodisciplina que era
esperado das "pessoas comuns", tendo em vista a quantidade de crimes punidos
com pena de morte na Inglaterra no século XVIII, cerca de 160 punições (Linebaugh,
1992) e também a quantidade expressiva dessas "pessoas comuns", eram milhares
por ano, que foram transportadas para as colônias ou condenadas às galés (p. 277).
Nisso, podemos perceber que muitos ciganos estavam incluídos nesses
deslocamentos, tendo em vista tanto as figuras que esses povos representavam
para a Europa, tido como feiticeiros, contrabandistas, boêmios, ladrões, canibais -
exímios inimigos do trabalho perante a ordem capitalista - quanto a intensificação
da deportação de ciganos da Europa para as colônias a partir do século XVII, sendo
o Brasil um dos países a que foram destinados os ciganos de Portugal. Além disso,
existem muitos registros sobre as punições aos ciganos em diversos países da
Europa, em que o fervoroso anticiganismo era consumado com pena de morte,
condenação às galés, açoites, degredo e deportação, o que sugere que boa parte
das pessoas comuns que eram punidas ou exterminadas se tratavam de ciganos.
No caso da Inglaterra, que é o exemplo trazido por Federici, os ciganos estão por lá
desde o início do século XVI e, logo depois, a partir de meados deste mesmo século,
o governo já começa a adotar leis anticiganas as quais, segundo Moonen (2013),
apontavam praticamente dois destinos para os ciganos: morte ou deportação.
É um abuso do que chamam de razão46
Em meio a esse contexto, o que muito contribuiu para impulsionar de vez o
desenvolvimento do capital e coroar a modernidade foi a influência e a internalização
46 Referência à Krenak (2020, p.19), que comenta sobre a excessiva modernização da sociedade quedevora a Natureza e também sobre a existência de múltiplas relações: “No Equador, na Colômbia,em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais.Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas quevivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganhampresentes das montanhas. Por que essas narrativas não nos entusiasmam?” (id., pp. 18-19)
59
do cogito cartesiano. De acordo com Federici (2017), um objetivo fundamental do
projeto de Descartes foi “instituir uma divisão ontológica entre um domínio
considerado puramente mental e outro, puramente físico.” (id., p. 249).
Na filosofia mecanicista se descreve o corpo por uma analogia com amáquina, com frequência colocando a ênfase em sua inércia. O corpo éconcebido como matéria bruta, completamente divorciada de qualquerqualidade racional: não sabe, não deseja, não sente. O corpo é puramenteuma “colação de membros”, disse Descartes em seu Discurso sobre oMétodo. (FEDERICI, 2017, p.251)
Com isso, vemos como o corpo protagoniza as discussões desse período com
uma conotação degradada, delegando tudo que se refere a ele como algo inferior,
imoral, degenerado, próximo à Natureza e aos animais. Essa divisão entre corpo e
mente, entre corpo e humano também se refletirá no campo do trabalho e na
hierarquização dicotômica de seu valor (trabalho braçal versus trabalho intelectual)
e, é por meio das internalizações dessas condutas, que se vai produzindo uma
subjetividade delimitada, unificada, civilizada, colonial, centrada no indivíduo, liberal,
intimista, moderna, enfim, cartesiana.
8.2. A caça às bruxas também se estendem às ciganas
“Disse que a maioria das boêmias metia-se a ler a
sorte. Saem-se muito bem nisso. Mas uma fonte de
grandes lucros para elas é a venda de poções e
elixires do amor. Não apenas têm pernas de sapo
para amarrar corações inconstantes e pó de ímã para
apaixonar os insensíveis; se for o caso, conhecem
conjuras poderosas que obrigam o diabo a lhes
prestar serviços.” (MÉRIMÉE, 2015, pp.81-2)
Assim como o fenômeno da caça às bruxas permanece apagado da história
da Europa e da história do capitalismo, a história dos ciganos também se encontra
invisível na história europeia - ainda que os ciganos sejam a maior minoria social do
continente.47 - e também na história do mundo, ainda que estejam espalhados por
47 Segundo as informações do site do parlamento europeu, os ciganos são a maior minoria étnica daEuropa. Disponível em:
60
toda parte. Tento mostrar aqui como as histórias da caça às bruxas e dos ciganos
estão fortemente relacionadas, pois, ainda que os ciganos também fossem
perseguidos como hereges, não é incomum que estejam presentes em vários
segmentos de perseguição. Ademais, gostaria de ressaltar essa relação também
porque muitos pesquisadores destilam preconceitos sobre bruxaria, quiromancia,
cartomancia e magia, delegando pouca ou nenhuma importância a elas ou
simplesmente tomando-as como sinônimo de ridículo e irrisório, o que indica que
foram efetivamente colonizados.
O trecho que abre este tópico, do escritor francês Prosper Mérimeé, refere-se
à novela Carmen (1845), que retrata a personagem cigana que pulou da literatura
para a ópera, o palco e as telas de cinema se transmutando e ficando conhecida no
imaginário popular como a figura da “femme fatale”. Carmen muito provavelmente
inspirou nossa Capitu48, com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, tendo em vista
que Machado de Assis era leitor do francês. Aliás, Carmen também é revelada
através do olhar de narradores masculinos: além do próprio autor, ela é sentenciada
também pelo seu ciumento amante e algoz dom José, um cabo de cavalaria que
busca ser promovido na hierarquia da profissão e se tornar sargento, homem de
origem nobre que vai se aburguesando e encontra em Carmen a negação de todos
seus valores:
Sob o embate telúrico entre dom José e Carmen, entre o homem e amulher, que um dia será o combustível exclusivo da ópera de Bizet,insinua-se aos poucos um outro conflito, igualmente tremendo, que opõe anorma burguesa à recusa da mesma.49
O trecho de abertura se refere à última parte da novela, em que o enredo de
Carmen já havia se consumado com o feminicídio e, no qual, o autor Mérimée
retorna como narrador - até então dom José estava narrando sua história com
Carmen - relatando aspectos sobre os ciganos na Espanha, as regiões onde
levavam suas vidas errantes, sua origem, ofícios que exerciam, nomes pelos quais
49 Trecho do posfácio da novela “Carmen”, do tradutor Samuel Titan Jr. Ver em: MÉRIMÉE, Prosper.Carmen. São Paulo, editora 34, 2015, p. 104.
48 Personagem do romance “Dom Casmurro” (1889), de Machado de Assis.
eram conhecidos, suas características físicas, incluindo fisionomias animalizadas
-“Seus olhos, notavelmente oblíquos, bem rasgados, muito negros, são sombreados
por cílios longos e grossos. Não há como não comparar seu olhar ao de um animal
selvagem.” (id., p. 78) - em meio a tais descrições, Mérimée relembra uma história
que uma espanhola havia lhe contado no ano anterior. A mulher andava triste pela
rua quando uma boêmia lhe avistou da calçada e disse que ela havia sido traída
pelo amante. A mulher confirma e, em seguida, aceita fazer um feitiço para ter o
amante de volta. A gitana a orienta como fazer o trabalho, usando um lenço,
costurando as piastras (moedas) e uma moeda de ouro, que precisaria ser levado ao
campo-santo à meia-noite. A cigana convida a espanhola para ir com ela fazer o
feitiço, mas “A boêmia partiu sozinha para o campo-santo, pois a senhora tinha
medo demais do diabo para acompanhá-la.” (id., p. 81).
Nessa e em outras passagens, vemos que os ciganos são chamados de
boêmios da Espanha, boêmios da Alemanha, ou então gitana, gitanilla, feiticeira,
desígnios que aparecem com mais frequência quando se trata das mulheres ciganas
de modo que os termos gitana e feiticeira se tornam intercambiáveis. Como feiticeira
e bruxa também são usados como sinônimos nesse contexto, sendo também
frequentemente tidas como amigas e amantes do diabo, logo, a figura da mulher
cigana também se torna a figura da bruxa. No momento em que Carmen entra em
cena já aparece, mais uma vez, sua associação com a feitiçaria e com o diabo:
- Ora, vamos! O senhor bem vê que sou boêmia; não quer que lhe leia labaji?50 Já ouviu falar de Carmencita? Sou eu.”“Quinze anos atrás, eu era um tal descrente que não recuei horrorizado aome ver diante de uma feiticeira. “Muito bem!”, disse comigo. Semanapassada, jantei com um salteador51; hoje, tomarei sorvetes com umaservidora do diabo. (MÉRIMÉE, 2015, p. 26)
Considero válido ressaltar que as noções de bem e mal, assim como a figura
diabólica que são apresentadas nestas narrativas e nesse contexto histórico
51 O salteador a que Mérimée se refere é dom José, eles se conhecem quando Mérimée chega àEspanha. Na época, dom José já havia se tornado o bandido mais procurado de Andaluzia, fama quealcança por viver com Carmen e outros ciganos, conhecidos por viverem como contrabandistas,culpando-a por seu destino.
50 Ler a sorte ou o futuro, refere-se à leitura da mão, um ofício das mulheres ciganas tambémconhecido como quiromancia ou buena dicha.
62
europeu fazem parte do universo simbólico cristão, de modo que outras práticas
religiosas, pagãs ou espirituais, não compartilham desses mesmos elementos e
concepções, uma vez que partem de outras cosmogonias e entendimento distintos
de bem, mal, divino estabelecendo, portanto, outras relações com o sagrado, com a
Natureza, com o corpo, com os valores. Entretanto, essa lógica cristã é inserida na
vida dessas populações como forma de homogeneizá-las, ou então, deparando-se
com resistências ou "heresias", passam a difamar e menosprezar suas vidas, suas
culturas, suas crenças e tudo que lhes dizem respeito, a partir de uma crença que se
supõe universal e hegemônica, mas que provavelmente nunca fez sentido para
muitas pessoas. A própria Umbanda, que eu abordo um pouco neste trabalho, é alvo
disso até hoje.
Dando seguimento à história dos ciganos na Europa, que se cruza com o
período da perseguição às bruxas, encontramos representações dos ciganos muitas
vezes tidos como radicalmente o outro do europeu. Fazito (2006) retoma Bourdieu
em sua análise sobre as representações dos ciganos que povoam nossa
consciência coletiva para dizer que os povos romà seriam uma espécie de espelho
em negativo da sociedade ocidental, sedentária e moderna, que toma a si mesma
como modelo de civilização e desenvolvimento produzindo, então, pela violência
física e simbólica, a marginalidade e exclusão de todos que sequer chegaram a
ocupar um lugar em seu jogo social.
Assim, o cigano é tido e visto como selvagem – um mau selvagem, desdeos primeiros contatos no Ocidente, identificado como sarraceno imoral,ignorante e herege, facínora e covarde. Na melhor das hipóteses, oestereótipo cigano negociado com o imaginário gadjo, em geral, sustenta afigura de um indivíduo indolente, bárbaro e perigoso (Hancock, 1987;Willems & Lucassen, 1990, pp. 33-4)52
Muitas são as designações atribuídas aos ciganos, quase sempre pejorativas,
desde que adentraram as terras da Europa. Os “sarracenos” eram conhecidos como
especialistas nas artes mágicas e, de acordo com Federici (2017), nos séculos VII e
VIII, já houve lei criminalizando o maleficium nos reinos teutônicos, provavelmente
52 Trecho extraído em Fazito, 2006, p. 691.
63
como uma reação ao medo das elites frente ao avanço dos "sarracenos" no período
da conquista árabe, momento em que isso parecia trazer um risco de revolta dos
escravos contra seus senhores estimulados pela liberdade, uma vez que magia era
suspeita de operar como instrumento de insubordinação. Séculos depois, já em
meados do século XV e no século XVI, vemos como a figura dos “sarracenos”
também se confundem com os ciganos ou se fundem a eles, pressupondo que os
ciganos também estão ligados à magia e reafirmando, mais uma vez, sua fama de
feiticeiros. A punição também sofreu alterações, se antes os crimes de maleficium
puniam as práticas mágicas que infligiam dano às pessoas e às coisas (Federici,
2017, p. 296), agora, em meio à crise feudal, com as revoltas populares e o início
dos julgamentos das bruxas, “a feitiçaria foi declarada como uma forma de heresia e
como o crime máximo contra Deus, contra a Natureza e contra o Estado.” (Federici,
id., apud Monter, 1976, pp. 11-7). Não é difícil imaginar que os ciganos também
seriam atacados por essa questão. A peça de teatro “Além da Lenda”, dirigida pelo
casal cigano Neiva Camargo e Claudio Iovanovitch e encenada em Curitiba (PR) no
ano 2000, denuncia que a perseguição ao seu povo na Europa também levou as
mulheres ciganas para a fogueira:
De onde vim?- Na inquisição espanhola nossas mulheres foram mortas como bruxas, oshomens foram enviados para as galés e suas orelhas cortadas. O últimorefúgio para um perseguido era a igreja. Mas não para o cigano que mesmodentro da casa de Deus, não encontrou abrigo.53
Moonen (2013) afirma que, em 1745, as leis contra os ciganos se tornam
ainda mais severas na Espanha, “dentro de quinze dias os ciganos têm que fixar
residência nos lugares indicados, é permitido disparar contra os ciganos e matá-los,
e as igrejas não podem mais dar asilo a ciganos.” (id., p. 38). Além disso, vemos ao
longo dos séculos como os ciganos são altamente incluídos em praticamente todos
os grupos perseguidos, mesmo quando a lei não visava puni-los diretamente, eles
acabavam sendo generalizados por ela. Em 1530, na Inglaterra, foi promulgado um
“decreto contra mendigos e vagabundos, incluindo aqueles praticando a
quiromancia, ou seja ciganos (as). Punição: o pelourinho, açoite e a perda de uma
orelha.” (id., p. 33).
53 Texto da peça disponível em: http://dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/alemdalenda.html
A cigana Esmeralda Liechocki (1999) traz em seu livro um capítulo chamado
“feiticeiros e feiticeiras”, no qual fala um pouco a respeito desse aspecto dos ciganos
e, principalmente, das ciganas:
É dada à cigana mais velha do grupo a obrigação de tomar conta dessemesmo grupo, afastando doenças através de rezas, exorcismos e poções,que são feitas na própria tribo, na própria carroça, sem que outros ciganosmais moços tenham conhecimento do que é feito. Nem o rom doacampamento se intromete, pergunta algo ou o porquê de algumas atitudesdas feiticeiras ou xamãs (...) Há uma reza para cada situação, ou seja, paraum parto difícil, para um animal doente e outras coisas mais. (p.35)
Federici (2017) nos diz que boa parte das bruxas eram mulheres curandeiras
e feiticeiras reconhecidas em seus vilarejos, parteiras, adivinhas, mulheres que não
desejavam a maternidade, que muitas vezes viviam em condições precarizadas, a
“mendiga que, a duras penas, ganhava a vida roubando um pouco de lenha ou de
manteiga de seus vizinhos” (id., p. 322), a prostituta ou libertina que não respondia à
sexualidade esperada na estrutura do casamento burguês e cristão e isso também
servia como acusação nos julgamentos por bruxaria, nos quais a “má reputação” era
prova de culpa. “A bruxa era também a mulher rebelde que respondia, discutia,
insultava e não chorava sob tortura.” (id., p. 322). Contudo, não foram apenas as
mulheres consideradas suspeitas de cometer algum delito específico que sofreram
perseguições, “as mulheres enquanto mulheres, em particular aquelas das classes
inferiores, as quais geravam tanto medo que, nesse caso, a relação entre educação
e punição foi virada de ponta-cabeça (id., p. 333). Ou seja, podemos ver que a
pobreza facilmente se tornava também uma acusação de bruxaria, além do mais,
outras mulheres que, muitas vezes, recorriam às bruxas de sua comunidade em
busca de ajuda para algum problema também foram alvos de punição. “Devemos
disseminar o terror entre algumas, castigando muitas”, declarou Jean Bodin” (id., p.
333).
Nesse movimento, vemos como as práticas das curandeiras e das parteiras
vão sendo perseguidas, ao mesmo tempo em que também começam a ser
substituídas. Segundo Federici (2017), a prática da obstetrícia foi sendo retirada das
65
mulheres que, no fim do século XVI na França e na Inglaterra, por exemplo, quase já
não podiam mais exercer o ofício, enquanto que a partir do século XVII, começam a
aparecer homens parteiros e, em torno de um século depois, a obstetrícia se
encontra praticamente sob controle estatal. Em relação ao curandeirismo, Federici
(2017) aponta o surgimento da medicina profissional, da qual as mulheres foram
excluídas:
Com a perseguição à curandeira popular, as mulheres foram expropriadasde um patrimônio de saber empírico, relativo a ervas e remédios curativos,que haviam acumulado e transmitido de geração em geração - uma perdaque abriu o caminho para uma nova forma de cercamento: o surgimento damedicina profissional, que, apesar de suas pretensões curativas, erigiu umamuralha de conhecimento científico indisputável, inacessível e estranhopara as “classes baixas” (Ehrenreich e English, 1973; Starhawk, 1977).54
A partir disso, podemos supor que parte das bruxas queimadas na fogueira
eram mulheres ciganas, tendo em vista que o repertório de acusação por bruxaria
incidia tanto nas atividades praticadas pelas ciganas quanto nos estereótipos
construídos sobre elas. A própria figura da Carmen percorre essas instâncias, ainda
que ela seja uma figura do século XIX e já entremeada também por traços
românticos. Carmen é tida como sensual e, logo, hiperssexualizada, irreverente,
libertina, trapaceira, dissimulada, heróina às avessas, embora também se torne
inclassificável, principalmente quando sua imagem ultrapassa a literatura e atinge
outros espaços, provocando releituras. Aqui, gostaria de ressaltar o fato de que, em
geral, as representações e estereótipos da mulher cigana na literatura ocidental
não-cigana são pautados na figura da cigana espanhola, o que, por sua vez, traz
uma dupla generalização, pois atinge não só as ciganas dessa região ou de
determinados grupos étnicos, como também generaliza todas as ciganas de todos
os lugares e grupos. Talvez, possamos dizer que a imagem de Carmen e das
mulheres ciganas foram forjadas sob a influência e disseminação da imagem
degradada da mulher construída com o fenômeno da caça às bruxas em nome de
uma feminilidade subserviente à nova ordem patriarcal entrecruzada, também, aos
estereótipos dos ciganos produzidos pelo anticiganismo, que dominou a Europa em
nome de um disciplinamento necessário ao capital, centrado no trabalho e na
54 Trecho extraído em Federici 2017, p. 329.
66
propriedade privada, além da já mencionada e imprescindível posição subalterna
das mulheres, sem a qual muito provavelmente o capitalismo não teria vingado.
Soria (2015), uma romi estudiosa dos estereótipos ciganos e da literatura
romani, ainda nos diz que o patriarcalismo e o sexismo também estão presentes na
sociedade romani, deixando as mulheres ciganas em uma condição extremamente
difícil, não apenas em relação à sociedade gadjé, mas também em relação ao seu
grupo. Ela aponta que o machismo se confunde aos traços culturais das
comunidades ciganas, estabelecendo lugares bastante delimitados para os gêneros.
Resta-nos saber se esse machismo já ocorria nos grupos ciganos ou se foi
construído e modulado no contato dos ciganos com os valores europeus, por
exemplo, nesse contexto que estamos abordando. Em suas palavras:
A dificuldade de mudança efetiva em relação ao papel dos gêneros égrande, pois desde um ponto de vista de boa parte dos romà, o machismo –entendido por muitos, não como machismo, mas como traço cultural – não é“politicamente incorreto”, nem motivo de vergonha. É uma forma de respeitoà honra do coletivo e de proteção à romi. A condição atual das mulheresromani – embora não possa ser generalizada, porque sofre variaçõesrelacionadas ao país em que vivem, à classe social, ao maior ou menoracesso aos estudos e ao grau de conservadorismo ou mudanças efetivadapelos grupos ou famílias – é de uma violência triple: a primeira é divididacom todas as mulheres e se insere nas questões de desigualdades degênero mais amplas e no machismo que também impera nas sociedadesmajoritárias. Problema que é eclipsado pela violência do sexismo interno epela violência advinda da subalternização imposta pelas sociedades, quemesmo sendo direcionada à etnia como um todo, pesa muito mais sobre a“cigana” (pp. 25-26).
Além da conexão mais direta entre bruxas e ciganas, em que a mulher cigana
é encarada como bruxa, também é possível estabelecer outras relações entre a
caça às bruxas e a caça aos ciganos. Relações essas que remetem a um projeto
político que na época intencionou o extermínio da bruxaria, da ciganidade e, por
extensão, promoveu a expurgação dos modos de vida incompatíveis com o novo
regime em desenvolvimento, ou seja, impulsionou o subjugamento de grupos sociais
cujo comportamento havia se tornado inaceitável. “Foi depois de meados do século
XVI, nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as
populações americanas, que começou a aumentar a quantidade de mulheres
julgadas como bruxas.” (Federici, 2017, p. 297). Nessa mesma época, a perseguição
67
às bruxas se descentralizou da Inquisição e também passou a operar pelas cortes
seculares, somando-se então a forte contribuição da iniciativa estatal para queimar
as mulheres na fogueira. “A caça às bruxas alcançou seu ápice entre 1580 e 1630,
ou seja, numa época em que as relações feudais já estavam dando lugar às
instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil.” (id., p. 297). É
nesse contexto também que acontece a Grande Internação55 (1656), em que “a
loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o
trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo” (Foucault, 2012),
enclausurando, então, no Hospital Geral todos aqueles tidos como alienados morais
e, portanto, destituídos de cidadania, direitos e liberdade: pobres, prostitutas,
leprosos, homossexuais, mulheres que não queriam se casar ou que não queriam
ter filhos, criminosos ou considerados perigosos em geral. Não devemos excluir a
possibilidade de que os ciganos também tenham composto a leva de pessoas que
foram destinadas a esse confinamento. Federici (2017) também reconhece a
extensão dessas relações:
De fato, existe uma continuidade inconfundível entre as práticas que foramalvo da caça às bruxas e aquelas que estavam proibidas pela novalegislação introduzida na mesma época com a finalidade de regular a vidafamiliar e as relações de gênero e de propriedade. ( p. 334)
Federici (2017) afirma também que a caça às bruxas operou como
instrumento de controle dos corpos das mulheres, seu trabalho, seus poderes
sexuais e reprodutivos que foram apropriados pelo Estado e transformados em
recursos econômicos no momento em que uma nova ordem patriarcal começa a ser
instalada. Com isso, podemos entender que o genocídio das bruxas se dava menos
como uma forma de castigo por suas transgressões do que pelo interesse em
eliminar comportamentos femininos que haviam se tornado intoleráveis e que
precisavam se tornar abomináveis aos olhos da população. Não por acaso, como
menciono anteriormente, o mito da maternidade56 - criado para ensinar às mulheres
seu papel social e, sobretudo biológico, de cuidadora inata e devota dos filhos e da
56 Ver mais sobre o tema em: BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno.Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2009.
55 Ver mais sobre a temática em: FOUCAULT, M. História da loucura na Idade clássica. São Paulo:Perspectiva, 2012 e AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro:Editora Fiocruz, 2007.
68
família - é potencializado no século XVIII, ocultando um trabalho compulsório e não
remunerado. A punição aos ciganos, considerados abomináveis em muitos países
europeus, acontece concomitantemente ao julgamentos das bruxas e não acaba
mesmo quando a bruxaria na Europa deixa de ser uma ameaça, de modo que é
possível supor que, se há uma redução ou ausência de ciganas nas fogueiras em
alguns países ou regiões, é porque provavelmente os ciganos já haviam sido
expulsos daquele país, transportados às galés, deportados para as colônias ou
mesmo assassinados, já que a punição de pena de morte era bastante comum em
muitas legislações anticiganas. Ou ainda, seria possível também que estivessem
sendo punidos de outras formas, tendo em vista a extensa lista de punições da
política anticigana em vigência principalmente na Inglaterra e Escócia (ilhas
britânicas), Holanda, Sacro Império Romano Germânico, Espanha e Portugal.
Ainda sobre essa questão, Federici (2017) comenta que os julgamentos por
bruxaria frequentemente remetiam a situações que haviam ocorrido há décadas, ou
então que a bruxaria, considerada um crime exceptum, isto é, um crime que deveria
ser investigado por meios especiais, dava margem para variadas formas de
investigação, até mesmo o uso da tortura. Além do mais, esses crimes eram
passíveis de punição mesmo sem ter causado nenhum dano às pessoas ou às
coisas, o que confirmaria que o alvo da caça às bruxas não se tratava dos crimes
socialmente reconhecidos, e sim das práticas e comportamentos anteriormente
aceitos, mas que agora precisavam ser erradicados e, para isso, valiam-se do terror
e da criminalização, algo que costuma ocorrer em tempos de repressão política, de
grandes mudanças e conflitos sociais. Com isso, também é possível compreender
porque a severidade das leis anticiganas cada vez mais evidenciavam que um
cigano poderia ser punido apenas por ser cigano, mesmo que não tivesse cometido
nenhum delito que servisse como justificativa, pois ser cigano passou a ser crime. A
propagação dos estereótipos negativos sobre eles também pode ser entendida
como uma forma de causar terror e repúdio entre a população, pois até mesmo se
proibiu andar com ciganos ou acreditar neles e nas mulheres que liam a sina, - há
relatos de que em certo momento elas se tornaram perturbadoras da ordem porque
falavam das traições dos cônjuges, ocasionando rupturas matrimoniais, o que era
69
inadmissível para a reputação burguesa - sob ameaça de ser punido também. Desse
modo, todas as formas de disciplinar e expulsar os ciganos foram tentadas e, de
algum modo, sem grande sucesso, porque em geral os ciganos continuaram
indisciplinados. Uma prova disso é a quantidade de leis promulgadas por décadas e
séculos a fio e a decisão de deportá-los para as colônias, dando a entender que
houve sucessivos fracassos ao contê-los. Infelizmente, essa perseguição também
deixa a herança de todo esse repertório discriminativo que ainda se faz presente na
nossa sociedade.
Por indisciplinados podemos entender que não se tornaram gadjè, que é o
que lhes era exigido: fixar-se nos locais escolhidos pelos governos, não falar sua
língua, não usar suas roupas, não andar mais em grupos - por vezes nem em
duplas! - e exercer um trabalho dignamente capitalista, ou seja, tratava-se de um
projeto de assimilação do cigano à sociedade ocidental, torná-lo um gadjo europeu,
mas não qualquer gadjo, o cigano precisava se tornar um proletário - um gadjo
subalterno - sob ameaça de banimento ou morte como bem expressam as leis e a
criminalização do ‘ser cigano’ numa Europa que busca reduzir todas as
multiplicidades.
8.3. Descolonização da Psicologia: por uma subjetividade não delimitada e nãounificada
“Que crime cometi?
Não estar na História?
Qual? Na sua História?
- Na sua História fomos expulsos, perseguidos e
mortos, sem ao menos saber por quê. Nos seus livros
somos sinônimos de errantes, vadios e trapaceiros.
(...)
- Mas eu tenho a minha História
Mas participamos também da sua História, nas
embarcações sobre os rios e mares que vocês
cruzaram.”
70
( Peça de teatro “Além da Lenda”57)
Como vimos nas reflexões anteriores, as acusações e execuções da caça às
bruxas na Europa partiram sobretudo das organizações estatais, de autoridades
religiosas cristãs, também de intelectuais, juristas, cientistas e demonólogos. Em
relação aos ciganos, a construção e propagação de seus estereótipos também são
atribuídos à discursos legitimados, como afirma Fazito (2006):
As imagens sobre os ciganos não foram difundidas e cristalizadas noimaginário popular apenas pelos depoimentos de cronistas e jornalistas, oupelas histórias e narrativas construídas pelos escritores da época. Muitasdas representações coletivas que fundamentam as relações entre ciganos enão-ciganos, atualmente, foram elaboradas a partir dos discursosacadêmicos e científicos desenvolvidos desde o período renascentista. (p.703)
Tais relações assimétricas também se estenderam culminando no
confinamento da loucura e nos subjugamentos dos povos colonizados nas Américas
e no continente africano. A lógica colonial também é herdada pela Psicologia, campo
de saber que foi gestado nesse mesmo contexto europeu do desenvolvimento
capitalista até implodir tal como o conhecemos no século XIX. Fanon (2008) é um
teórico negro pós-colonial que estudava as implicações subjetivas da colonização.
Para ele, a relação entre colonialismo e racialização ajudavam a pensar os efeitos
dos sofrimentos psíquicos, relacionando, portanto, a dimensão política à dimensão
subjetiva. Geni Nuñes, psicóloga e ativista indígena, também menciona a
contribuição de Fanon para repensarmos nossas práticas:
Como este autor nos aponta, a colonização diz respeito a um processo deedição arbitrária, de valores, de saberes, de vidas. Por ser uma edição, elaproduz um empobrecimento simbólico não só daquele que vê como osdemais como seu “outro” mas também de si mesmo. Tanto por isso queneste empobrecimento é muito frequente observarmos que a violência e oextermínio sejam a única ou principal forma de lidar com as relações, algoque pode ser nitidamente observado no feminicídio e nos genocídios dopovo negro e indígena. (s.d., p. 8)58
58 Texto disponível no link: https://crpsc.org.br/public/images/boletins/crp-sc_plural-agosto%20Geni.pdf
57 Peça de teatro encenada em Curitiba (PR) no ano 2000. Dirigida pela cigana Neiva Camargo eescrita pelo cigano matchuaia Claudio Iovanovitch. Texto da peça disponível em:http://dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/alemdalenda.html
Diante do exposto por Nuñez, eu também acrescentaria o genocídio dos
povos ciganos, pois é preciso incluí-los nessa discussão, uma vez que não estão
fora dela, além do que seu etnocídio ainda é pouco reconhecido. Sendo assim, a
partir do momento que reconhecemos a violência intrínseca, inseparável, constitutiva
da lógica colonial, não é possível seguir na surdez com nosso trabalho como se ele
estivesse promovendo apenas benefícios às pessoas, “auxiliando-as” a se
encaixarem em um modelo normopático do qual de antemão nunca fizeram parte,
pois o pacto social não as inclui. É necessário reconhecer que o racismo, o sexismo,
o especismo, o classismo e suas derivações tais como o machismo, a psicofobia, o
capacitismo, a xenofobia estão essencialmente inseridas no sistema capitalista e, se
o fazer psicológico serve ao capital e à sua lógica neoliberal, ele também carregará
isso tudo na sua práxis, o que implica na permanência de escutas seletivas para
alguns e na surdez para muitos outros, em uma tentativa incessante de adaptar
esses outros que por algum motivo percorrem um desvio de pelo menos algumas
das normas estabelecidas. A descolonização é, portanto, anticapitalista. Ainda
segurando a mão de Nuñez e unindo nossas vozes:
Em vez de contribuir para o reconhecimento e reparação dessas violências,diversos ramos da Psicologia optamos historicamente por individualizar eculpabilizar o sujeito por toda sua precariedade, como se opassado-presente coletivo não tivesse nada a ver com tudo aquilo que seconcebe como mérito, sucesso, fracasso, perigo, segurança, ameaça,saúde, doença. Se do ponto de vista da clínica, compreendemos que aescuta da trajetória de vida importa para melhor acolhermos o sofrimentopsíquico, por que por vezes não estendemos esse cuidado à trajetóriapsicossocial sobre a qual nosso país se construiu? Nesse sentido, pensarcolonialidade implica em reconhecer que a colonização não incidiu apenassobre o território geográfico, mas também sobre nosso território-corpo, emnossa forma de nos concebermos como sujeitos no mundo, em como nosrelacionamos conosco mesmos, com outros humanos e com todas asdemais formas de existência. (s.d., p. 8)
Deivison Faustino (2018), um grande estudioso das obras de Fanon, ao falar
sobre a hierarquização de valores presentes nas colônias relata que “Dada a
racialização das posições sociais, a busca pela aproximação ao europeu tornou-se a
norma e o seu oposto foi patologizado.59 Ou seja, podemos perceber que a divisão
59 Aqui Faustino faz uma observação, segundo ele: O conceito de racialização é pensado aqui combase na definição de Silvério (2013: 25) quando afirma que: “Em referência às condições objetivasque fazem possível a emergência destes significantes, a definição de classificações raciais - cujadinâmica pode ser pensada como um processo de racialização - traduz, no plano ideológico, algumas
72
racial possui estreitas relações com a imposição ou até mesmo o “desejo”,
construído por meio da socialização, de assimilação ao modelo do branco/europeu e
também com a racionalidade liberal e, hoje, neoliberal que, ao centralizar e
transformar o problema em doença, ela o inscreve no âmbito individual, nunca no
social ou no político, produzindo uma sociedade extremamente patologizante. Esse
ainda é o modus operandi hegemônico no campo da saúde, em que a lógica
biomédica na medicina opera sob a medicalização60 da vida e no campo da saúde
mental opera pela medicamentalização61 de processos sociais e políticos. Assim,
seguimos naturalizando uma série de questões políticas que requerem uma
implicação coletiva e não uma culpa do indivíduo.
Por isso, em face dos povos ciganos e da psicologia, desejo que olhemos
para as diferenças raciais, culturais e epistemológicas na produção do cuidado, pois
não é possível falar em cuidado em saúde ao mesmo tempo em que se segue com
“justificativas racionais” ou “científicas”, leia-se baseadas em concepções
eurocêntricas e colonizadoras, que acabam por produzir e validar preconceitos e
estereótipos sobre essas populações, algo que se reflete no racismo sistêmico62
presente nas instituições de saúde e que também incide sobre os ciganos, além de
atingir também a maior parte dos brasileiros - lembrando que fomos e somos
62 Paul Baker, sociólogo e assistente social britânico que atua na saúde mental, fala do racismo queexiste dentro do próprio sistema de saúde mental. Em uma de suas aulas de “Boas práticas em saúdemental”, ele comenta que os grupos mais marginalizados e oprimidos são os que mais usam osserviços de saúde mental e cita o exemplo dos homens negros vindos da Jamaica e do Caribe, osquais são 9 vezes mais propensos a serem diagnosticados com esquizofrenia do que os homensbrancos. A partir disso, ele diz que “se nós mudarmos as práticas sociais, a gente pode prevenirquestões em saúde mental”, assim, “ao invés de olhar para as pessoas que estão nesse abismo,vamos olhar para quem está empurrando essas pessoas para esse abismo”. Aula disponível no link:https://www.youtube.com/watch?v=cKGZxm9P_IU&t=1978s
61 Medicamentalização pode ser entendida como um desdobramento da medicalização, diz respeitoao uso excessivo de medicamentos psiquiátricos (psicofármacos), aludindo a uma medicalização dasaúde mental, pela qual se patologiza sofrimentos psíquicos muitas vezes associados às dinâmicasda vida do sujeito consideradas anormais pela sociedade ou à problemas de cunho sociais/políticosque atravessam o sujeito e recaem sob a forma de culpabilização do sujeito por seu sofrimento,centralizando o problema nele e não na realidade social, portanto, ajusta-se o sujeito com uso dosremédios. Ver mais sobre a discussão no mesmo link colocado referente à medicalização.
60 Ver discussão sobre o tema no livro “Psiquiatria no Divã: entre as ciências da vida e amedicalização da existência”. Livro digital disponível em:https://laboratoriodesensibilidades.files.wordpress.com/2017/08/a-psiquiatria-no-divacc83-adriano-amaral-de-aguiar.pdf
das tensões econômicas, políticas e culturais de cada sociedade. Neste sentido, podemos perceberuma dupla dinâmica, onde as condições objetivas no plano simbólico, reproduzem, modelam ecristalizam as oposições estruturais no plano discursivo”.
colonizados - pois isso intensifica as desigualdades e os adoecimentos. Fazito
(2006) explicita os efeitos dessas práticas sobre a população cigana ao longo do
desenvolvimento das ciências humanas e da modernização da saúde:
Os preconceitos, as imagens e as histórias “inventadas” cotidianamentepelo senso comum são freqüentemente legitimados por determinadosdiscursos científicos – ou pretensamente científicos –, fundindo-se e seconfundindo com estes. Como na Teoria dos Climas de Montesquieu,diferenças culturais são justificadas “objetivamente” pelas leis naturais. Adiferença cultural em relação aos ciganos, depois de naturalizada, torna-sepassível de tratamento, correção e extermínio. A “imoralidade” e “impureza”ciganas podem ser explicadas cientificamente pela biologia, antropologia oupsicologia e, posteriormente, corrigidas e adaptadas aos padrõesconsiderados “normais”, “saudáveis”, “puros” e "dominantes''.(...) Utilizado como recurso para o estabelecimento de estratégias e políticaspúblicas, o discurso mitológico-científico da ciganologia contribuiu, emalguma medida, para a consolidação das perseguições aos ciganos eexclusões deles, além da cristalização e manutenção de muitas de suasimagens deterioradas (pp. 713-14).
Diante do exposto na discussão, considero necessário que o campo da saúde
- no qual a psicologia se insere - percorra caminhos que vão de encontro à
desconstrução dos conhecimentos colonizados que recebemos muitas vezes
durante a própria formação, ao menos em boa parte dela, sob o risco de nosso
trabalho permanecer olhando para uma pessoa, povos, ou culturas - quando não
para nós mesmos - de uma forma em que sempre se verá ou identificará uma falta,
um erro, uma falha que deve ser consertada, ou seja, uma forma de olhar que não
reconhece a lógica que produz esse suposto “erro”, nem que enxerga as falhas
como parte de processos da vida, muito menos percebe que tais erros podem na
verdade indicar uma diferença pela qual, se percebida, o tal “erro” deixa de ser
atribuído como constituinte do indivíduo ou do grupo já generalizado e, portanto,
também individualizado para ser entendido como um efeito da lógica normativa
bastante sedimentada na cultura psicologizante e também em nós, a mesma lógica
que produz a loucura e com a qual tanto nos debatemos visando modificar nossas
práticas para que sejam cada vez menos manicomiais e para que não operemos,
portanto, uma psicologia ortopédica, na qual as falhas não tem vez, não há espaço
nem possibilidade para que existam, já que precisam constantemente ser
adequadas, corrigidas ou extinguidas como manda a escuta normopática ou, se
preferirem, colonizada.
74
Por isso, faz-se pertinente que a psicologia siga rompendo, transformando e
inventando suas práticas de escuta, de acolhimento, de cuidado, de um trabalho que
não pode ser ensimesmado e que não opere apenas pelo distanciamento afetivo,
mas um trabalho que reconheça cada vez mais que a saúde mental não é neutra,
pois ela ocupa a dimensão da vida e, com isso, nosso trabalho é um fazer político.
Além do mais, é válido ressaltar que a saúde mental é inclusiva e precisa, portanto,
dialogar com todos os sujeitos sociais, pois são todos eles que a constroem, não é
um campo restrito à especialistas e profissionais da psicologia e da psiquiatria. Digo
isso, porque esse reconhecimento requer desconstruções epistêmicas - que mantém
relações inseparáveis da realidade concreta - , desconstruções dos sensos
colonizados, ruptura com o paradigma de neutralidade ancorada em uma suposta
universalidade proveniente do poder hegemônico que paira sobre o campo científico
de uma ciência régia e também sobre a prática das psicologias hegemônicas. Como
produzir cuidado integral em saúde com um modelo de saúde em psicologia criado
para responder a um ideal de humano cuja lógica implica na exclusão de povos
inteiros do próprio conceito de humanidade? Uma lógica que opera esmagando as
multiplicidades que escapam a esse ideal? Que desconsidera e apaga suas
subjetividades? Que os culpabiliza pelos seus sofrimentos, pelos seus destinos,
pelas suas diferenças que, como já mencionado, são transformadas em erros, em
doenças, em um inimigo a ser combatido, medicalizado, medicamentalizado e
normalizado. Um discurso que os desvalidam pelas suas reações tidas como
exageradas, violentas, raivosas. Refletindo ainda sobre os ciganos, Teixeira (2019)
nos indaga:
Assim, devemos nos questionar sobre como construir um saber sobre ascomunidades ciganas sem promover uma representação que os isole,fechando-os em uma perspectiva eurocêntrica de ciência, já que as culturasciganas são, antes de tudo, abertas, flexíveis e intercambiantes. E aqui noscabe uma pergunta fundamental: Como criar possibilidades de inclusão dosciganos na sociedade nacional, quando suas características são,fundamentalmente, transnacionais? Como propiciar políticas públicas deinclusão quando se depara com culturas que se desenvolveram de formasempre contra-hegemônica, como resultado de perseguições e fugas, enum processo de contínua reinvenção das fronteiras (entre o mundo nãocigano)? ( pp. 344-45)
75
De fato, talvez não se trata de se encaixar e fazer parte deste clube63 que é o
ideal de humano, mas de construir uma outra humanidade, de fazer ruir esse ideal
para que possam ser reconhecidas as multiplicidades da vida e tantas outras
subjetividades e de uma forma não apartada da nossa casa maior, a Natureza, pois
essa lógica não se relaciona e adoece apenas as pessoas, como assertivamente
nos diz Nuñez (s.d., p.7); “Este processo de expropriação colonial não termina na
exploração da mão-de-obra humana, mas também diz de uma relação extrativista
com as matas, com as terras, com as águas, com os demais animais que co-existem
conosco.”
Considero que talvez caiba pensar também sobre as particularidades e
extensão do colonialismo em relação aos povos ciganos de modo que tentarei
exercer aqui algumas reflexões iniciais tendo em vista tudo o que já foi exposto até
aqui, sobretudo em relação ao contexto europeu que gesta os estereótipos ciganos
e que coincide com o colonialismo.
Retomando as reflexões anteriores, vimos que a primeira parte das reflexões64
busca discorrer sobre o modo de produção capitalista e suas implicações, que
correspondem ao amassamento de tudo aquilo que se torna incompatível de
coexistir com a sua instalação - é por isso que a magia se faz presente de imediato,
visto que é tomada como radicalmente diferente do modus operandis da disciplina
do capital - e vimos também que a segunda parte das reflexões65 tenta desdobrar
algumas consequências dessa nova ordem, ou seja, os efeitos produzidos pelo
amassamento de outros modos de vida, inserindo então na discussão as temáticas
da caça às bruxas e da perseguição aos ciganos. Essas temáticas nos permitem
ampliar uma variedade de questões já abordadas em torno da formação do
65 Refiro-me ao tópico “ A caça às bruxas também se estendem às ciganas”.64 Refiro-me ao tópico “A incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho”.
63 A ideia de clube aqui dialoga com o clube da humanidade expressa por Krenak (2020) do qualfazem parte os homens brancos do Atlântico Norte apartados da Terra: “As andanças que fiz pordiferentes culturas e lugares do mundo me permitiram avaliar as garantias dadas ao integrar esseclube da humanidade. E fiquei pensando: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo emparticipar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação,existência e liberdade?” Será que não estamos sempre atualizando aquela nossa velha disposiçãopara a servidão voluntária? Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já sedesmancharam, que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem?” (pp. 13-14)
76
capitalismo, visto que as bruxas e os ciganos não costumam aparecer nessa
discussão, então eu tento reforçar a implicação dessas questões com a nova ordem,
ao mesmo tempo em que, a partir delas, outras relações vão sendo estabelecidas,
como a provável inclusão das ciganas no genocídio das bruxas, uma vez que é
comum encontrar nos registros históricos e literários referências das ciganas como
feiticeiras e também pelo fato de que os ciganos acabavam por participar de
praticamente todas as perseguições existentes na Europa naquela época.
Sendo assim, podemos entender que essas perseguições vão de encontro
com o amassamento de outros modos de vida tidos como completamente diferentes
e até mesmo impossibilitados de coexistirem com a disciplina do trabalho capitalista.
Nesse sentido, pensando na lógica colonial do capital que vai sendo estabelecida
nesse contexto, podemos entender que houve um braço do colonialismo operando
internamente no continente europeu. Se falamos do colonialismo pelo qual os
europeus invadem terras fora da Europa, seja nas Américas, ou no continente
africano, provocando escravidão, genocídio, exploração e domínio dos povos
habitantes desses locais, no caso dos ciganos, o que ocorre é um processo de
colonização dentro da própria Europa, sobretudo pela via do etnocídio. Com isso,
quero dizer que há similaridades dos ciganos e os outros povos, uma vez que dentro
da dicotomia de poder colonial, todos eles estão sob a condição de subjugados,
inclusive os ciganos também serão exportados e degredados para as áreas
coloniais, entretanto, os povos ciganos não possuem uma terra própria (nem mesmo
se apropriam desse conceito), não há uma terra dos ciganos para ser invadida pelas
potências europeias, de modo que eles também se encontram em uma situação
distinta dos outros colonizados. Dessa maneira, os ciganos se encontram dentro da
Europa, desterritorializados no aspecto mais literal do termo e, sendo também
considerados uma raça degenerada que não é bem-vinda ao clube do gadjo
europeu branco, o colonialismo age sobre eles, senão pela invasão, que seja pelo
extermínio.
Então, em um primeiro momento, vemos acontecer o banimento dos ciganos
por meio da política de mantê-los em movimento, com as sucessivas expulsões dos
77
ciganos de uma cidade para outra, de um país para outro e, seguindo assim, eles
acabavam por retornar aos locais onde já haviam sido expulsos para serem
expulsos novamente. Percebendo que isso não era suficiente para acabar com o
‘problema cigano’, logo em seguida, a Europa passa a criar leis pelas quais os
criminalizam por absolutamente qualquer coisa, inclusive por serem ciganos. Nessas
leis anticiganas, são legitimadas diversas punições, tais como as perseguições, que
eu prefiro chamar de caça aos ciganos, os açoites, os banimentos, as condenações
às galés e principalmente a pena de morte. As leis persistem por décadas e séculos
a fio sendo constantemente reafirmadas, com o acréscimo de novas punições,
tornando-se cada vez mais severas e configurando uma necropolítica66 contra os
ciganos. Justamente porque há um fracasso em conter os ciganos, em
transformá-los em mão-de-obra da máquina capitalista, como acontece com o
proletariado (embora não sem muita resistência), os ciganos se encontram em uma
condição diferenciada, na qual em geral não se tornam proletariado, como as outras
populações das classes baixas (que também são subjugadas pela posição de
inferioridade na hierarquia social), de modo que resta à Europa expulsá-los de suas
terras ou fazê-los morrer através das leis que não se findam, pois mesmo quando o
processo de caça às bruxas entra em declínio na Europa, dando a entender que a
situação foi controlada, com o projeto de que as mulheres deveriam ocupar seu
lugar de servir à família burguesa e gerar o proletário, a perseguição aos ciganos
continua a todo vapor.
Esse mecanismo do disciplinamento passa também pelo controle da
mentalidade, que vai sendo modulada ao longo do tempo e, aqui, podemos entender
como se formam os processos de subjetivação, pelos quais as regras do capitalismo
vão sendo internalizadas e, consequentemente, naturalizadas. A ciência também
contribui para isso ao se posicionar cada vez mais distante ou de forma cética em
relação às concepções e práticas que foram aniquiladas frente às exigências do
66 Conceito do teórico negro Achille Mbembe, presente em sua obra “Necropolítica: biopoder,soberania, estado de exceção e política de morte” (2018), que diz respeito a uma política de morteoperada pela máquina estatal pela qual é sentenciada quem deve viver e quem deve morrer, sejapela seletividade de atuação das políticas sociais, seja pelo uso ilegítimo da força sob territórios epopulações específicas, ou pela política da inimizade em que se produz inimigos a serem combatidosou aterrorizados.
78
capital, entre elas a relação mágica com o mundo, de modo que essas outras formas
de entender e se relacionar com a vida acabam sendo punidas e depois
banalizadas, ridicularizadas e extintas de circulação até serem suficientemente
contidas e desvalidadas a ponto de, tempos depois, poderem coexistir com a nova
ordem por não representarem nenhuma ameaça de reverter o processo do
capitalismo que já se encontrava encaminhado e instalado no território europeu.
Dito tudo isso, pode-se perceber a correlação entre a situação de
subjugamento dos ciganos, das mulheres, do proletariado e da loucura diante do
colonialismo operando dentro de uma Europa que inicia o processo de acumulação
primitiva e vai tornando a si mesma como a referência máxima de desenvolvimento,
e humanidade. O não cumprimento de sua função subalterna na sociedade
capitalista, implica em morte e expulsão. Nesse sentido, se o cigano não vai se
tornar um proletário e a cigana não vai ocupar a prisão destinada às mulheres pela
lógica da família burguesa, então suas existências irão acabar na execução, na
fogueira, no manicômio, ou então finalmente no degredo para as colônias. Krenak
(2020) sintetiza o que foi a colonização para os povos considerados bárbaros, entre
os quais, os ciganos foram incluídos:
A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra semfim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados quepoderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não sãoindivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que conseguem transmitiratravés do tempo suas visões sobre o mundo.
Com isso, o que desejo ao discutir como a colonização atinge os ciganos e ao
inserir a psicologia nessa discussão, é que para além de analisar e tentar
compreender as motivações e intencionalidades que levaram às perseguições aos
ciganos - o que tentei fazer um pouco durante essa caminhada na pesquisa - é que
também possamos pensar quais efeitos que nossa sociedade anticigana produz
nesses povos, pois entendo que, entre a multidão de efeitos, também estão os
psicossociais. Para isso, é imprescindível que escutemos os ciganos e que eles
também ocupem suas posições de protagonizadores, assim como tem acontecido
na luta dos povos indígenas, dos negros, das mulheres, dos usuários de saúde
79
mental, entre outros. Além do mais, também pude perceber a infinidade de questões
que atravessam uma única situação, evidenciando a complexidade dessa temática
que requer que mais pessoas venham a compor as discussões, incluindo os próprios
ciganos, para que possamos fortalecer as desconstruções de suas imagens muito
estigmatizadas e cristalizadas e potencializar liberações. Enfim, clamo para que
possamos cada vez mais descolonizar para libertar, para liberar outras afetividades
e outras subjetividades, outros modos de produção de conhecimento e de cuidado
anticoloniais e antimanicomiais afeiçoados a uma lógica que aumente as
multiplicidades e nossa potência de agir. Krenak (2020) nos inspira nessa
empreitada:
Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comumem muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não ohorizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossassubjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos querconsumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também umapor consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamosvivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela nomercado. (p. 32)
Na lógica colonial, só o europeu branco é considerado sujeito, logo, só ele
também portará subjetividade, diz Fanon (2008), o que implica em um ideal de
subjetividade construído por meio dos parâmetros cartesianos. Nesse sentido,
reconhecer a multiplicidade das subjetividades implica em um processo de
dessubjetivação desse ‘clube’, no qual impera, sem possibilidade de concomitâncias,
uma subjetividade delimitada e unificada. Descolonizar a psicologia se aproxima
também da desinstitucionalização da saúde mental67, o que implica uma articulação
com novas estratégias de atuação na saúde mental rompendo, assim, com o
paradigma psiquiátrico herdado do modelo biomédico que coloniza a saúde. O livro
“Novas práticas em saúde mental68, introduz o que seriam as nova abordagens em
saúde mental:
Novas abordagens em saúde mental representam, primeiramente, umaruptura com abordagens historicamente dominantes no campo da saúde
68 Ebook promovido pelo CENAT (Centro Educacional Novas Abordagens Terapêuticas). Disponívelpara download em: https://materiais.cenatcursos.com.br/ebook-novas-abordagens-saude-mental
67 Ver mais sobre o tema em: A instituição inventada, de Franco Rotelli. Texto disponível em:https://saudeecosol.files.wordpress.com/2012/10/a-instituic3a7c3a3o-inventada-franco-rotelli1.pdf
mental, que, em geral, estiveram (e ainda estão) associadas àpatologização e à medicalização da existência, bem como à individualizaçãoda atenção e à padronização das técnicas. Tais abordagens dominantes sãobaseadas na hierarquia arbitrária entre profissionais e “pacientes”, na qualos primeiros são vistos como especialistas superiores e os segundos comodoentes passivos. Assim, romper com essas abordagens hegemônicasimplica subverter esses princípios, com a consequente construção dealternativas a eles. Nesse sentido, novas abordagens em saúde mentalenfatizam diferentes interpretações possíveis para o sofrimento humano, aconstrução de novas relações humanas baseadas no diálogo e ofavorecimento do protagonismo daqueles que historicamente ocuparam olugar de objetos.(...) Assim, o novo não pode se limitar a uma técnica nova, mas àproblematização teórica e epistemológica que fundamenta o campo dasaúde mental. Nesse processo, gera-se novos referenciais, que, por umlado, permitem explicar o sofrimento humano de diferentes formas,dialogando com a complexidade individual e social que representam, e, poroutro, favorecem novas estratégias de ação profissional e comunitáriabaseadas nos saberes produzidos. Implica, nesse sentido, que oconhecimento não se volte para a colonização do outro, de modo aoferecer respostas técnicas conclusivas sobre o outro, mas para ofavorecimento de possibilidades mediante construção conjunta denovas formas de estar no mundo e se relacionar com a vida. (grifosmeus)
Acolher e sustentar as diferenças diz muito sobre o trabalho de psicóloga em
que acredito e que desejo tecer: um trabalho inspirado pela artesania e
potencialização das multiplicidades. Quem sabe, inspirado também em uma clínica
cigana, que pede passagem, ou em uma psicologia menor. Ainda de mãos dadas
com Krenak (2020), indagamos como se dá a resistência contra a colonização:
Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queriaacabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram paracruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando,reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentesmanobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, dacriatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. (p. 28).
Por ora, encerro aqui as andanças reflexivas, com a intuição certeira de que a
dança e a música inspiraram e ainda inspiram a resistência dos povos ciganos.
“Nossa História está na nossa memória,
na nossa música e na nossa dança.
Nossa fala não tem desenhos.
A nossa língua é nossa Pátria.
E nossa língua é todas as línguas.
81
Quando estamos alegres ou tristes, dançamos.”69
69 Peça “Além da Lenda”, disponível em:http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/alemdalenda.html
Gostaria de encerrar essa caminhada agradecendo a oportunidade de ter tido
esse bom encontro com as culturas ciganas, pois tem sido potente, transformador e
sobretudo desafiador. Gostaria de dizer também que a temática das culturas romani
não se esgotam com o que foi trazido nesta pesquisa, ao contrário, apenas se
iniciam, pois percebi que ainda há muitas lacunas, muitos questionamentos, muitas
desconstruções a serem feitas, muita história para ser lembrada e reconhecida em
nossa memória, assim como outros temas que permanecem distantes das
pesquisas acadêmicas e também das políticas públicas e que necessitam que sejam
visibilizados, tais como as artes ciganas, sobretudo a dança e a música, que
certamente tem muito a contribuir para a história dos povos romá, pois são elas que
os fazem caminhar, que escrevem suas histórias e adiam um pouco mais o fim do
mundo, mas também a literatura romani70, sobre a qual deixo aqui uma colaboração
da Soria (2015):
O surgimento de uma literatura escrita divide o coletivo étnico, pois as“sequelas da história” levam boa parte do grupo a temer que o dar-se aconhecer os torne vulneráveis ao “outro” ameaçador. A escrita ainda étemida para um povo de pensamento baseado na oralidade. Leis, decretose pragmáticas contra os romà foram ditados por ela, estereótipos irreaisforam difundidos. E escrever na língua do “outro”, utilizando as ferramentase suportes das maiorias dominantes suscita a recorrente pergunta: éresistência ou submissão? Em primeiro lugar, os escritores romà sabem quese escreverem em sua língua mãe, reduzirão o alcance de suas obras, oque não é interessante, pois a proposta é de inclusão da literatura romaniem um contexto não guetizado. Sabe-se ainda que o submeter-se alinguagem do dominante é uma condição comum imposta à escrita deminorias. Cíntia Schwantes, em relação à escrita feminina afirma que paraser entendida “ela precisará utilizar a linguagem masculina. [...] negociar noestreito espaço entre o apagamento e a possibilidade de representação”9 .Considerando estas colocações, a emergência da literatura romani não éresistência, nem submissão, é o inicio de uma (re)construção.”É tornar-se sujeito de suas narrativas a partir de um discurso próprio,mesmo que não ausente de “ruídos”. O reconhecimento implicado em poderfalar é mais significativo do que o que advêm da atitude “tolerante” aodiferente. (...) A literatura romani, a que nomeio como um emergente esimbólico “território escrito” dos romà, se apresenta desterritorializada,nômade e transnacional, contemplando identificações com o passadoromani e o futuro proposto pelas minorias ativas e “novos romà”. Lugarpropício para a desconstrução da subalternidade, um território contornadopor vozes. (p. 24)
70 Paula Soria vem fazendo um trabalho importantíssimo sobre esse tema.
83
Além das artes, também aponto para os censos sobre a população cigana,
que frequentemente se encontram ausentes ou defasados, interferindo na garantia
de direitos e na criação de políticas públicas destinadas a esses povos. Não temos
até hoje, por exemplo, a opção de etnia cigana no censo de raça/cor/etnia do IBGE,
assim como não temos também um Estatuto dos Povos Ciganos, projeto de lei que
tramita no senado desde 2015. Outra temática extremamente pertinente de ser
acompanhada pelas pesquisas, é o recente e tão necessário feminismo cigano,
também ainda marginalizado, mas que tem uma potência gigante. Incluiria também a
questão que se mostra bastante atual da xenofobia/ciganofobia, que mantém
estreitas relações com o histórico de perseguição, preconceito, refúgio e imigração
dos povos romá, inclusive o nomadismo merece uma atenção mais cuidadosa, pois
percebi que é um tema bastante complexo.
Além disso, também é necessário relatar a condição dos ciganos durante a
pandemia de COVID-19 no Brasil. Apesar de os ciganos fazerem parte dos povos e
comunidades tradicionais71, eles não foram incluídos como grupo prioritário no plano
de vacinação. Sabemos que pelo modo de vida coletivo que muitas comunidades
ciganas vivem, isso representa uma política de morte contra essa população.
Ressalto também uma questão no âmbito educacional, referente ao ensino da
história e culturas ciganas nas escolas e também em relação às cotas, que são
inexistentes para os ciganos em nosso país. Não temos cotas para ciganos nas
universidades, com exceção da UFBA que, recentemente, aprovou cotas para
ciganos em sua seleção de mestrado em estudos interdisciplinares em maio deste
ano de 2021.72 Contudo, na seleção para entrada nas universidades pelo sistema
SISU, por exemplo, elas não existem e podemos perceber o quanto isso tem
possibilitado maiores transformações e debates tanto na academia quanto na
comunidade com a inclusão de outras minorias étnicas, como as populações negra e
indígena.
Por fim, insisto na problemática dos estereótipos, pois eles têm capacidade de
interferir negativamente em todas as áreas da vida dos ciganos e sobretudo das
72 ver mais em: https://ihac.ufba.br/30211/71 Ver mais em: http://portalypade.mma.gov.br/ciganos
mulheres ciganas, dificultando inclusive os meios de se ganhar a vida, de conseguir
trabalho, de poder ocupar algum espaço na sociedade gadjé, pois se são tomados
como ladrões e não confiáveis, todas as portas permanecem fechadas.73 Com isso,
expresso e registro meu desejo de que o campo psi se atente cada vez mais para as
diferenças e as mais diversas especificidades das minorias étnicas, religiosas e
outras mais, contribuindo para que possamos construir outras psicologias, cada vez
mais descolonizadas e que se ponham a atuar afetivamente com todas essas
existências menores.
Optchá!
73 “Como a venda de panos de prato nunca foi suficiente para manter a família, as ciganas já tentaramtrabalhar como lavadeiras de roupa, na limpeza de banheiros e utensílios de cozinha – mesmo queessas atividades não pertençam à cultura Calon. Mas lhes foi dito que, por serem ciganas, não eramde confiança.” Ver mais em:https://www.geledes.org.br/historia-do-unico-acampamento-cigano-chefiado-por-mulheres/