UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
ANTROPOLOGIA
TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA
QUEM DIRIGE EM SO GONALO DIRIGE EM QUALQUER
LUGAR: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRTICAS E
REPRESENTAES DA GUARDA MUNICIPAL DE SO GONALO
(RJ).
Niteri
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA
QUEM DIRIGE EM SO GONALO DIRIGE EM QUALQUER
LUGAR: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRTICAS E
REPRESENTAES DA GUARDA MUNICIPAL DE SO GONALO
(RJ).
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre
Vnculos temticos: Cultura Jurdica, Segurana Pblica e administrao
de conflitos
Linha de pesquisa do orientador e coorientadora: Cultura
Jurdica, Segurana Pblica e
administrao de conflitos
Niteri
2015
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do
Gragoat
B
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E
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R672 Rocha, Talitha Mirian do Amaral.
Quem dirige em So Gonalo, dirige em qualquer lugar: uma
etnografia sobre as prticas e representaes da Guarda Municipal de
So Gonalo (RJ). / Talitha Mirian do Amaral Rocha 2015.
147 f.
Orientador: Edilson Mrcio Almeida da Silva. Dissertao (Mestrado)
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e
Filosofia, Departamento de Antropologia, 2015.
Bibliografia: f. 140-147.
1. So Gonalo (RJ) Guarda Municipal 2. Trnsito urbano So Gonalo
(RJ) 3. Segurana pblica So Gonalo (RJ) I. Silva, Edilson Mrcio
Almeida da. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 363.2
______________________________
Prof. Orientador Dr. Edilson Mrcio Almeida da Silva
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Profa. Coorientadora Dra. Ana Paula Mendes de Miranda
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Profa. Dra. Joana Domingues Vargas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
______________________________
Profa. Dra. Glaucia Pontes Mouzinho
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Prof. Dr. Jorge da Silva
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Para meus pais, Joo Bosco Rocha e
Odete Maria do Amaral Rocha
AGRADECIMENTOS
As palavras que vou expressar certamente sero poucas para
demonstrar o quanto sou
grata pelo apoio e ajuda que tive durante a minha caminhada at a
finalizao desta
pesquisa. Por isso, agradeo de antemo a todos que de alguma
maneira fizeram parte
nesse meu processo de aprendizagem, j que cada um com quem
convivi foi, sem dvida,
essencial em todo esse caminho. Contudo, seria injusta se no
agradecesse nominalmente
a algumas pessoas.
Inicialmente, sou muito grata ao meu orientador, Edilson Mrcio
Almeida da Silva, pelo
apoio, dedicao e, principalmente, pela pacincia em todos os
momentos de orientao.
Edilson, muito obrigada por todos os conselhos dados e todas as
conversas que tivemos.
Sem isso, certamente, no teria condies de finalizar esta
dissertao!
Agradeo tambm professora Ana Paula Mendes de Miranda que, alm de
minha
coorientadora, possibilitou-me participar do Sub-Projeto
Desenvolvimento e
Monitoramento de Indicadores de Segurana Social e de Segurana
Pblica a partir dos
atendimentos realizados pela Guarda Municipal de So Gonalo. Ana,
obrigada por todas
as oportunidades e por todo apoio que voc sempre me deu.
Aos professores que compuseram minha banca: professor Roberto
Kant de Lima,
professora Joana Vargas, professor Jorge da Silva, professora
Glaucia Mouzinho. Muito
obrigada pela gentileza de terem aceitado meu convite. Fico
muito honrada de ter o meu
trabalho examinado por professores e profissionais que eu admiro
tanto.
Agradeo tambm professora Ktia Sento-S Mello que, ainda na defesa
do projeto, me
deu sugestes e crticas valiosas para a continuao do trabalho de
campo.
CAPES, sou grata pela bolsa de estudos que me foi concedida
durante esses dois anos
de mestrado.
Aos meus amigos e companheiros de pesquisa e/ou de Programa:
Bris Maia e Silva,
Cristina Marins, Charles Rodrigues, Diano Massarni, Joelma
Azevedo, Leonardo
Pompont, Roberta Boniolo, Roberta Correa, Sandro Massarni e
Victor Rangel. Agradeo
muito pelas importantes contribuies que deram ao meu trabalho e
pela leitura atenta que
tiveram! As questes que vocs levantaram foram muito importantes
para construo
desta dissertao.
Agradeo aos colegas e professores do Ncleo Fluminense de Estudos
e Pesquisas
(NUFEP) e do Instituto de Estudos Comparados em Administrao
Institucional de
Conflitos (InEAC), que sempre esto dispostos a contribuir na
formao de qualquer um.
No poderia deixar de citar minha imensa gratido aos guardas
municipais de So
Gonalo, pela generosidade de terem me recebido to bem desde o
primeiro momento que
l estive.
Sou grata tambm a todos meus amigos, de Resende e de Niteri, que
sempre me
apoiaram. Obrigada por entenderem meus momentos de ausncia e por
partilharem
comigo momentos to importantes da minha vida.
Por fim, mas no menos importante, agradeo minha famlia. Aos meus
pais, Joo Bosco
Rocha e Odete Maria do Amaral Rocha, pelo amor incondicional e
pelo apoio emotivo e
financeiro nessa minha caminhada. Obrigada por tudo que vocs me
proporcionaram e por
colocarem minha educao como prioridade na vida de vocs. Agradeo
tambm a meu
irmo e companheiro para todos os momentos, Josu Augusto do
Amaral Rocha, pelo
exemplo de luta e de dedicao. Vocs so a base da minha vida e
tudo que sou devo aos
trs.
RESUMO
O principal objetivo desta dissertao analisar as prticas e
representaes que so
acionadas pelos guardas municipais de So Gonalo (RJ) durante o
trabalho de regulao
do trnsito. Almeja-se, ainda, refletir sobre o papel dessa
instituio na rea de Segurana
Pblica, visto que, embora a Constituio de 1988 no deixe claro
qual sua funo,
ultimamente, algumas aes tm sido adotadas no sentido de uma
pretensa
descentralizao do poder federativo e estadual de tomada de
deciso em relao s
polticas pblicas de segurana. Para isso, foi realizado um
trabalho de campo entre
novembro de 2013 e novembro de 2014, buscando, por meio da
observao direta,
compreender a atuao profissional dos guardas municipais, em um
contexto no qual o
trnsito representado como catico e desorganizado. Alm disso,
ressalta-se que, mesmo
que o municpio possua mais de um milho de habitantes, as relaes
que so construdas
nas ruas e nos seus espaos pblicos so pautadas pela pessoalidade
e proximidade, o que
produz efeitos na atuao da Guarda Municipal. Por fim,
assinala-se que o contexto
sociocultural em que a instituio est inserida influencia na
maneira como se do as aes
dos guardas municipais, levando-os a construir um saber prtico e
localmente estabelecido
a partir de suas prticas cotidianas.
Palavras-chave: Segurana Pblica, Guarda Municipal, trnsito
ABSTRACT
The present work aims to investigate practices and
representations evoked by guardas
municipais in So Gonalo (RJ), while carrying out traffic control
duties, taking into
consideration their position in a context strongly focused on
public security at the
municipal level. For this purpose, we carried out fieldwork
between November 2013 and
November 2014 in order to better understand, through direct
observation, the performance
of the guardas municipais in So Gonalo. Although Brazilian
Federal Constitution
(1988) states that the functions of Guarda Municipal are related
solely to protecting
public property, we can notice that what defines their duties
may vary according to the
particular needs of each city. As to So Gonalo, we seek to
demonstrate that, despite
being regarded as chaotic and disorganized, the traffic
constitutes a significant issue. In
order to know its importance, we aim to discuss native category
associated with that city
which somehow allow us to understand why the traffic is defined
in that way. We also
discuss some points concering the performance of the officers
and how they view it. At
last, we stress that they do not act uniformly, but rather
guided by bom senso, a locally-
constructed practical knowledge which empowers them to decide on
when to follow either
formal or informal plans.
Keywords: Public Security, Guarda Municipal, traffic
SUMRIO
1. Introduo
....................................................................................................................
10
2- So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade
.................................... 29
2.2. O Alcntara e a pequena ndia
..........................................................................
38
2.3. O Centro da cidade e o Rodo de So Gonalo: construindo e
demarcando as
diferenas
.....................................................................................................................
46
2.4. As ruas do Centro durante os grandes eventos da cidade
.................................... 50
3. A Guarda Municipal de So Gonalo: funes, atribuies e
representaes ............ 54
3.1. Regulamento Interno
............................................................................................
55
3.2. Autoridade e Poder: estrutura hierrquica do Comando da
Guarda Municipal ... 58
3.3. Ser ou estar guarda municipal? Pensando a maneira como os
agentes se classificam
.....................................................................................................................................
66
3.4. Entre o bom e o mau setor: trnsito de bairro, o buraco e a
proximidade.75
3.5. Punies
................................................................................................................
81
3.6. Outras atribuies da Guarda Municipal de So Gonalo: pensando
sobre o papel e
a(s) identidade(s)
.........................................................................................................
86
4. Prticas e Representaes dos guardas municipais no trnsito de
So Gonalo ......... 88
4.1. Como fazer o trnsito fluir? Entre o plano formal e informal
.............................. 91
4.2. A formao de um saber prtico
...........................................................................
98
4.3. Cada caso um caso: instrumentos necessrios para a construo
de um saber103
4.4. Proximidade e pessoalidade: construindo relaes e
identidades ...................... 109
4.4.1. As mltiplas relaes e identidades no espao pblico
.................................. 110
4.4.2. As relaes personalizadas entre as instituies e um dilogo
informalmente
constitudo
.................................................................................................................
117
4.5. Respeito e autoridade: a multa e a arma
.............................................................
121
4.5.1. Em busca de uma legitimidade
.......................................................................
126
4.6. Reciprocidade, jeitinho e esquema
.....................................................................
129
5. Consideraes Finais
.................................................................................................
134
6. Referncias
Bibliogrficas.........................................................................................
141
10
1. Introduo
Com base em um amplo levantamento da produo bibliogrfica
produzida sobre
as temticas da violncia, criminalidade, segurana pblica e justia
criminal no Brasil,
Kant de Lima, Misse e Miranda (2000) apontam que h, hoje, um
campo do conhecimento
cujos estudos empricos tm, cada vez mais, buscado explicitar os
modos de
funcionamento das instituies ligadas execuo e planejamento das
aes relativas
segurana pblica. No o fazem para critic-las, mas,
fundamentalmente, para entender
como funcionam. O meu trabalho est orientado por esse tipo de
perspectiva, ou seja, mais
do que apontar defeitos ou enfatizar faltas e ausncias dos
agentes/rgos da rea de
segurana pblica, pretendo entender qual a lgica com que eles
operam, focando,
especificamente, no caso, na atuao da Guarda Municipal1 de So
Gonalo (RJ).
A frase que intitula este trabalho Quem dirige em So Gonalo
dirige em
qualquer lugar faz referncia a uma representao associada, de
modo recorrente, ao
trnsito do municpio, segundo a qual esse seria
caracteristicamente catico e
desorganizado. Como, em So Gonalo, o trnsito regulado pela
Guarda Municipal, tive
por objetivo analisar as prticas e representaes cotidianamente
acionadas pelos agentes
durante o desempenho do seu ofcio, considerando no s a referida
representao do
trnsito, como tambm o lugar ocupado por aquela instituio num
contexto de nfase na
municipalizao da Segurana Pblica.
O contato do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da
Universidade Federal
Fluminense (NUFEP/UFF), do qual fao parte, com o contexto
emprico de So Gonalo
comeou no ano de 2007, quando foram realizados o diagnstico e o
plano de segurana
municipal. Desde ento, tm sido realizadas reflexes sobre o papel
do municpio nas
polticas de Segurana Pblica e, mais especificamente, sobre a
atuao da Guarda
Municipal. Um exemplo o trabalho de Barbosa, Mouzinho, Kant de
Lima e Silva (2008),
que destaca como uma possvel atribuio do poder da polcia para a
Guarda Municipal
poderia ser capaz de afast-la de sua principal vocao, qual seja:
a administrao de
conflitos baseada em relaes de proximidade e aes
preventivas.
1 No presente trabalho utilizo a expresso Guarda Municipal para
se referir instituio, j para me reportar
aos agentes uso o termo guarda municipal, em minsculo.
11
No Brasil, a questo da Segurana Pblica compete, formalmente, ao
chamado
Sistema de Segurana Pblica, que composto por diversos rgos em
nveis federal,
estadual e municipal. As diretrizes gerais desse sistema foram
elaboradas pela
Constituio Federal de 1988, prevendo, entre outras coisas, quais
seriam os rgos
responsveis por sua manuteno. No artigo 144, definido que a
segurana pblica um
dever do Estado e, tambm, responsabilidade de todos. Esse artigo
estabelece que o papel
da polcia, tanto militar quanto civil, cabe ao governo estadual.
Dessa forma, grande parte
das polticas pblicas desenvolvidas na rea de segurana elaborada
pelo poder estadual.
Em relao ao papel dos municpios, o artigo prev, somente, que
eles podero constituir
guardas municipais destinadas proteo dos bens, servios e
instalaes, conforme
dispuser a lei (Brasil, 1988, art 144, 8o).
Ao procurarem compreender o funcionamento das Guardas Municipais
do pas,
alguns autores questionaram a maneira como a definio de suas
funes aparece no texto
constitucional (Brasil, 1988). Vargas e Oliveira Junior (2010),
por exemplo, destacaram
que a parte da Constituio que define o papel das Guardas
Municipais considerada
ambgua, no estabelecendo, com preciso, como a segurana pblica
deve ser tratada em
mbito municipal. Mello (2011) tambm assinala que, no artigo 144
da Constituio, no
se definem claramente as competncias e rotinas de trabalho nas
Guardas, nem o seu lugar
em meio a outras instituies ligadas Segurana Pblica. Dada a
relativa impreciso do
texto constitucional, o municpio acabou, assim, por assumir,
formalmente, um papel
secundrio no que concerne implementao e elaborao das polticas da
rea.
Em contrapartida, os ltimos programas e planos de segurana
pblica
desenvolvidos no pas tm buscado incentivar as aes municipais,
estimulando a
descentralizao do poder no que concerne tomada de decises
relativas s polticas de
segurana pblica (Brasil, 2000, 2003, 2007). Nesse sentido, em
mbito nacional, pode se
dizer que, pelo menos, formalmente, desde 2000, os municpios vm
tendo um maior
destaque no campo da segurana pblica. Tanto o , que a atuao das
Guardas
Municipais objeto de ateno dos dois primeiros programas e planos
de segurana
pblica elaborados em mbito federal. Contudo, se, no de 2000, h
meno participao
das Guardas no ordenamento do trnsito e um incentivo criao da
instituio fora de
padres militares, no Programa Segurana Pblica para o Brasil,
publicado em 2003,
assinala-se que a Guarda Municipal no possui funes e metas bem
definidas, o que,
consequentemente, a priva de uma identidade institucional
formalmente estabelecida. Em
12
lugar disso, haveria, to somente, um princpio orientador da ao
dos guardas municipais
relacionado com a ideia de que eles devem atuar junto populao,
habilitados a
compreender a complexidade pluridimensional da problemtica da
segurana pblica e
agir em conformidade com esta compreenso, atuando, portanto,
como solucionadores de
problemas (Brasil, 2003, p. 58). J em 2007, com a implementao do
Programa
Nacional de Segurana Pblica com Cidadania (PRONASCI), as aes
municipais de
combate e preveno da violncia comearam a ganhar um pouco mais de
destaque,
difundindo-se, inclusive, para alm da Guarda Municipal. Isso
pode ser observado, por
exemplo, com a criao dos Gabinetes de Gesto Integrados
Municipais (GGIM) e dos
Conselhos Comunitrios de Segurana Pblica.
Nesse sentido, cabe reconhecer que o governo federal tem
apresentado estmulos
atuao dos municpios no que concerne s polticas de segurana,
ainda que muitas delas
continuem sendo preferencialmente desenvolvidas e implementadas
pelos governos
estaduais. Um desses incentivos advm da Secretaria Nacional de
Segurana Pblica
(SENASP), que, juntamente com o Ministrio da Justia, vem
liberando recursos para que
os municpios invistam na rea. Isso ocorre porque posto que as
prefeituras, por estarem
mais prximas s populaes locais e, portanto, conhecerem (ou
deveriam conhecer)
melhor suas peculiaridades e demandas, estariam mais aptas a
implementar polticas de
administrao dos conflitos no-repressivas. Por isso, pelo menos
formalmente, o
incentivo municipalizao da Segurana Pblica pode ser entendido
como parte de um
esforo na busca pela consolidao de um Estado Democrtico de
Direito2 no Brasil.
Em sua tese de livre docncia, Amorim (1975) aponta que,
historicamente, a
administrao pblica federal nunca adotou polticas de
descentralizao, mas, sim, de
desconcentrao do poder, o que tem, por consequncia, a manuteno
de uma rede de
dominao imposta pelo poder central aos poderes locais. Embora o
trabalho de Amorim
tenha como foco a burocracia do nordeste do Brasil, pode se
afirmar que, a despeito de
seus avanos, o atual movimento de municipalizao da segurana
pblica tem esbarrado
no mesmo tipo de centralismo poltico, posto que as aes
municipais permanecem
submetidas regulao federal. Da vem a concluso tomada de
emprstimo da sociloga
de que no vivemos propriamente um quadro de descentralizao, mas
de desconcentrao
de certas polticas de segurana, uma vez que as mesmas so
induzidas pela esfera central
2 Anteriormente a 1988, no perodo do Regime Militar (19641985),
a segurana pblica era tratada em
nvel de Segurana Nacional e, por conta disso, no era tratada
como direito e responsabilidade de todos.
13
e, portanto, continuam direta ou indiretamente submetidas s
tomadas de deciso e aos
recursos federais.
Nesse particular, Vargas (2010) observa que a suposta
descentralizao das
polticas pblicas assumiu uma caracterstica peculiar na rea de
segurana, j que a
Constituio no conferiu protagonismo aos municpios no que tange s
funes de
elaborao e desenvolvimento das polticas pblicas do setor. Prova
disso reside no fato
de que o texto constitucional, embora tenha previsto e, pode se
dizer, estimulado a criao
das Guardas Municipais no por acaso, foi tambm restritivo ao seu
mandato, no
especificando a sua organizao, funcionamento ou atribuies
(ibid., p. 47).
A ideia de elaborar um sistema integrando as informaes e aes das
instituies
ligadas Segurana Pblica foi apresentado, pela primeira vez, em
2004, junto com o
Programa Segurana Pblica para o Brasil (2003), atravs do Sistema
nico de
Segurana Pblica (SUSP). O projeto, que foi reelaborado em 2007,
depois da
implementao do PRONASCI, tinha o objetivo de propiciar a
articulao entre aes
federais, estaduais e municipais no campo da segurana pblica e
justia criminal,
integrando, tambm, os prprios rgos de segurana (Miranda, 2008).
Os principais eixos
de atuao eram: gesto unificada da tecnologia da informao; gesto
do sistema de
segurana; formao e aperfeioamento de policiais; valorizao das
percias e a melhora
da produo de prova; preveno da violncia e instalao de ouvidorias
independentes; e,
finalmente, modernizao da gesto da segurana pblica nos rgos de
segurana
pblica.
O projeto, embora tenha sido considerado estrategicamente
interessante, acabou se
confrontando com uma srie de obstculos. Segundo pesquisadores da
rea (Miranda,
2008; Miranda, Oliveira, e Paes, 2010; Ribeiro e Silva, 2010; e
Azevedo e Vasconcelos,
2011), um dos mais evidentes reside na resistncia quanto
divulgao dos registros
produzidos por cada uma das instncias envolvidas, o que
dificulta a efetiva integrao
dos dados e informaes sobre criminalidade, violncia e justia,
tal qual proposto pelo
SUSP (Miranda, 2008). Isso ocorre, conforme assinalam Azevedo e
Vasconcelos (2011),
devido desarticulao verificada tanto no Sistema de Segurana
Pblica quanto no
Sistema de Justia Criminal, o que tem a ver com as disputas por
prerrogativas entre as
agncias que o compem. De acordo com os autores,
A inexistncia de padro de registro unificado para os casos, o
descompasso entre
as formas organizacionais das diferentes agncias [...] e as
deficincias e
http://lattes.cnpq.br/9208010575645615http://lattes.cnpq.br/2285619103268687
14
incapacidades histricas de comunicao entre todas as agncias so
alguns dos
indicadores dessa desarticulao. A prpria ideia de Sistema de
Justia Criminal
parece mais um artifcio conceitual (e quase retrico) utilizado
por ns, cientistas
sociais, para referirmo-nos a um objeto por vezes inatingvel
empiricamente.
(Ratton apud Azevedo e Vasconcelos, 2011, p 64).
Como apontam diversos estudos da rea de Cincias Sociais3, a noo
de sistema
pressupe harmonia, comunicabilidade e interdependncia entre os
seus elementos, de tal
maneira que a alterao em uma das partes, consequentemente, causa
efeito no conjunto.
Nesse sentido, pode se afirmar que no h, na verdade, um Sistema
de Segurana Pblica
no Brasil, posto que no se verifica uma integrao sistmica entre
os rgos e instituies
que o compem. Todavia, embora no seja possvel encar-lo como um
sistema
propriamente dito, no h como avaliar corretamente a atuao de
instituies como, por
exemplo, as Guardas Municipais sem levar em conta as relaes que
os seus agentes
estabelecem com outros agentes da rea de segurana pblica. Como
pretendo apontar no
decorrer do trabalho, a relao da Guarda Municipal de So Gonalo
com outras
instituies se d, sobretudo, por meio das relaes pessoais que os
seus agentes
estabelecem entre si, o que, de alguma maneira, promove a difuso
de algumas ideias e
valores como, por exemplo, as derivadas da influncia militar
sobre as prticas e
representaes dos agentes da Guarda. No caso especfico de So
Gonalo, desde a
elaborao do Plano Municipal de Segurana Pblica, pelo Ncleo
Fluminense de Estudos
e Pesquisas (NUFEP/UFF), em 2008, notrio que muitos dos guardas
municipais, apesar
de reclamarem da disciplina militarizada que lhes imposta, ainda
desejam possuir um
status semelhante ao dos militares. Como irei ressaltar, muitos
deles acreditam que a
instituio a que pertencem somente ter credibilidade diante dos
outros rgos de
segurana pblica e do pblico em geral se os seus atributos
puderem ser comparados aos
da Polcia Militar.
Em contraposio a esse tipo de influncia na organizao e
constituio das
Guardas Municipais, foi instituda, em agosto de 2014, a lei
13.022, tambm conhecida
como Estatuto Geral das Guardas Municipais. Essa lei afirma que
as Guardas so
instituies de carter civil, ficando, assim, proibida a
incorporao de princpios militares
em sua estrutura hierrquica e, tambm, nos seus regulamentos
disciplinares. Do ponto de
vista legal, buscou-se, fundamentalmente, definir a abrangncia e
esmiuar as
3 Alguns autores que trataram e discutiram a noo de sistema nas
Cincias Sociais foram Durkheim (2009),
Radcliffe-Brown (2013) e Lvi-Strauss (1991).
15
competncias das Guardas Municipais no Brasil. Desse modo, se o
texto constitucional
centrava o papel das Guardas Municipais somente na proteo do
patrimnio pblico, com
o Estatuto Geral das Guardas Municipais, as suas funes teriam se
ampliado
significativamente, conforme possvel observar abaixo:
Captulo III
Das Competncias
Art. 4o competncia geral das guardas municipais a proteo de
bens, servios,
logradouros pblicos municipais e instalaes do Municpio.
Pargrafo nico. Os bens mencionados no caput abrangem os de uso
comum, os
de uso especial e os dominiais.
Art. 5o So competncias especficas das guardas municipais,
respeitadas as
competncias dos rgos federais e estaduais:
I - zelar pelos bens, equipamentos e prdios pblicos do
Municpio;
II - prevenir e inibir, pela presena e vigilncia, bem como
coibir, infraes penais
ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os
bens, servios e
instalaes municipais;
III - atuar, preventiva e permanentemente, no territrio do
Municpio, para a
proteo sistmica da populao que utiliza os bens, servios e
instalaes
municipais;
IV - colaborar, de forma integrada com os rgos de segurana
pblica, em aes
conjuntas que contribuam com a paz social;
V - colaborar com a pacificao de conflitos que seus integrantes
presenciarem,
atentando para o respeito aos direitos fundamentais das
pessoas;
VI - exercer as competncias de trnsito que lhes forem
conferidas, nas vias e
logradouros municipais, nos termos da Lei no 9.503, de 23 de
setembro de 1997
(Cdigo de Trnsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante
convnio
celebrado com rgo de trnsito estadual ou municipal;
VII - proteger o patrimnio ecolgico, histrico, cultural,
arquitetnico e
ambiental do Municpio, inclusive adotando medidas educativas e
preventivas;
VIII - cooperar com os demais rgos de defesa civil em suas
atividades; IX -
interagir com a sociedade civil para discusso de solues de
problemas e projetos
locais voltados melhoria das condies de segurana das
comunidades;
X - estabelecer parcerias com os rgos estaduais e da Unio, ou de
Municpios
vizinhos, por meio da celebrao de convnios ou consrcios, com
vistas ao
desenvolvimento de aes preventivas integradas;
XI - articular-se com os rgos municipais de polticas sociais,
visando adoo
de aes interdisciplinares de segurana no Municpio;
XII - integrar-se com os demais rgos de poder de polcia
administrativa, visando
a contribuir para a normatizao e a fiscalizao das posturas e
ordenamento
urbano municipal;
XIII - garantir o atendimento de ocorrncias emergenciais, ou
prest-lo direta e
imediatamente quando deparar-se com elas;
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm
16
XIV - encaminhar ao delegado de polcia, diante de flagrante
delito, o autor da
infrao, preservando o local do crime, quando possvel e sempre
que necessrio;
XV - contribuir no estudo de impacto na segurana local, conforme
plano diretor
municipal, por ocasio da construo de empreendimentos de grande
porte;
XVI - desenvolver aes de preveno primria violncia, isoladamente
ou em
conjunto com os demais rgos da prpria municipalidade, de outros
Municpios
ou das esferas estadual e federal;
XVII - auxiliar na segurana de grandes eventos e na proteo de
autoridades e
dignatrios; e
XVIII - atuar mediante aes preventivas na segurana escolar,
zelando pelo
entorno e participando de aes educativas com o corpo discente e
docente das
unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a
implantao da cultura
de paz na comunidade local.
Pargrafo nico. No exerccio de suas competncias, a guarda
municipal poder
colaborar ou atuar conjuntamente com rgos de segurana pblica da
Unio, dos
Estados e do Distrito Federal ou de congneres de Municpios
vizinhos e, nas
hipteses previstas nos incisos XIII e XIV deste artigo, diante
do comparecimento
de rgo descrito nos incisos do caput do art. 144 da Constituio
Federal, dever
a guarda municipal prestar todo o apoio continuidade do
atendimento.
(BRASIL, Lei n 13.022, 2014, art. 4 e 5)
Como possvel se notar na reproduo acima, com a aprovao da lei
13.022, fica
estabelecido que uma das possveis funes da Guarda Municipal diz
respeito ao exerccio
das competncias de trnsito, desde que essas lhes sejam
formalmente conferidas. No caso
de So Gonalo, foi sobre tal exerccio, suas prticas e
representaes que recaiu a minha
ateno.
***
Meu interesse pelo tema surgiu quando realizei uma etnografia na
Guarda
Municipal de Rio Bonito (RJ), que posteriormente resultou no meu
trabalho monogrfico
de concluso da graduao em Cincias Sociais, intitulado Telefone
sem fio: Uma
etnografia do processo de registro dos atendimentos prestados
pela Guarda Municipal de
Rio Bonito (Rocha, 2013)4. Para produzi-lo, procurei compreender
as diferentes vises dos
agentes envolvidos nos processos de registro dos atendimentos,
desde o momento em que
o fato operacional ou administrativo acontecia, passando pelo
registro propriamente dito,
at chegar aos seus possveis usos e destinos. Em relao a este
trabalho, foi possvel
perceber que as funes que um guarda municipal deve realizar,
muitas vezes, no so
4 Durante o desenvolvimento dessa pesquisa, fui bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciao
Cientfica (PIBIC).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art144http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art144
17
formalmente conhecidas nem pela populao e nem pelos prprios
agentes, o que
prejudica a construo de uma identidade institucional formal que
sirva de base para a sua
atuao (Miranda, Mouzinho e Mello, 2003; Mello, 2011).
O presente trabalho corresponde a um desdobramento da minha
participao no
subprojeto Desenvolvimento e Monitoramento de Indicadores de
Segurana Social e de
Segurana Pblica a partir dos atendimentos realizados pela Guarda
Municipal de So
Gonalo, coordenado pela professora Ana Paula Mendes de Miranda e
integrante do
Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia Instituto de Estudos
Comparados em
Administrao Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). O objetivo
do subprojeto era
compreender o processo de classificao das ocorrncias atendidas
pelos agentes da
Guarda Municipal, visando o desenvolvimento de um banco de dados
que viabilizasse a
construo de um painel de indicadores para o monitoramento das
polticas pblicas de
segurana.
Durante o desenvolvimento do projeto, Azevedo (2012) observou
que os registros
realizados em livros de ocorrncias e no Talo de Registro de
Ocorrncia (TRO) no
eram organizados para subsidiar o trabalho da instituio e, sim,
para resguardar o
guarda de eventuais problemas ou, ento, para punir outro(s)
agente(s). A autora concluiu
que a introduo do TRO no alterou a maneira como eram registrados
os atendimentos,
percebendo, assim, que no adianta ter o melhor programa de
computador para estruturar
um banco de dados se os agentes envolvidos no compartilharem da
mesma lgica
(Miranda, Azevedo e Rocha, 2014). A no sistematizao das
informaes levou os
pesquisadores do projeto a desenvolvermos uma pgina virtual,
chamada Informaes
sobre conflitos no espao Urbano CEU5 , que se constituiu
enquanto uma proposta
alternativa frente ao cenrio encontrado, possibilitando, por
essa via, a construo de um
instrumento que contribusse para o aperfeioamento e a
acessibilidade dos registros
realizados6. A partir das informaes inseridas no site,
observamos que os casos
categorizados como Coliso sem vtima constavam como os principais
atendimentos
registrados pelos guardas municipais desde o incio de 2010 at
agosto de 2013. Com isso,
comecei a perceber que a principal atividade da Guarda Municipal
de So Gonalo era a
organizao do trnsito da cidade e, a partir de ento, passei a ter
interesse em
compreender como ocorre essa atividade e quais so os
instrumentos usados pelos agentes
5 URL: < http://www.uff.br/ceu-ineac>. Acesso:
16/11/2015.
6 As informaes presentes na pgina virtual so oriundas do Talo de
Registro de Ocorrncia (TRO).
http://www.uff.br/ceu-ineac
18
para a sua organizao. Em 2010, em razo do subprojeto
supracitado, acompanhei o
trabalho dos guardas municipais por um perodo de trs meses,
observando, sobretudo, a
sua atuao na regulao do trnsito pelas ruas da cidade.
Posteriormente, j inserida no
Programa de Ps-Graduao em Antropologia (PPGA), da Universidade
Federal
Fluminense, para cursar o mestrado, voltei a realizar observao
direta das atividades
desenvolvidas pelos guardas, inspirada pela questo que acabou
por se tornar o meu objeto
de pesquisa.
A primeira vez que fui a So Gonalo foi no incio do ano de 2010.
Antes disso, j
tinha escutado, algumas vezes, a mxima que intitula este
trabalho, e foi ela que guiou
minhas primeiras idas cidade. Com o passar do tempo, medida que
frequentava as suas
ruas, fui observando o trabalho dos guardas municipais e
percebendo que a representao
associada ao trnsito no municpio correspondia a uma imagem
genrica e
homogeneizante. No entanto, no poderia desconsider-la, muito
embora, ao analisar o
trabalho dos guardas municipais de So Gonalo, tenha me dedicado
a compreender o
contexto no qual a instituio estava inserida, de modo a
identificar at que ponto a
atuao da Guarda Municipal dialogava com esse tipo de
representao, assim como com
as demais ideias e valores presentes no entorno social.
O fato de o meu lcus de pesquisa ser em So Gonalo me
proporcionou o acesso a
algumas informaes que serviram de base preliminar para a
realizao da pesquisa.
Alguns colegas e companheiros da Universidade Federal Fluminense
moram e/ou
possuem famlia nessa cidade, e, por isso, conversar e trocar
ideias com eles, a respeito
dos meus interesses de pesquisa, me ajudou a entender um pouco
da representao que os
moradores tm do municpio, principalmente, quando se trata do
trnsito. Muitas vezes,
quando falava da pesquisa para algum que morava ou tinha alguma
relao com o
municpio, escutava diversos comentrios sobre as caractersticas
do trnsito do Alcntara,
inclusive sobre o porqu do ditado que nomeia este trabalho.
Apesar de meus colegas e
amigos no terem sido, propriamente, os interlocutores da
pesquisa, o dilogo com eles foi
til para que eu comeasse a refletir a respeito das questes das
quais iria me ocupar. De
certa maneira, era como se eles, em nossas conversas sobre o
trnsito da cidade,
estivessem me introduzindo no universo com o qual eu iria lidar
durante o trabalho de
campo.
Como disse, j tinha feito algumas incurses e observaes para o
projeto de
pesquisa do qual tinha participado anteriormente. Contudo, a
tarefa de comear a fazer
19
trabalho de campo naquela Guarda Municipal, agora movida por
novas inquietaes e
perguntas, fazia parecer como se estivesse iniciando minha
primeira experincia
etnogrfica.
1.1- Um (re)comeo
Era a primeira semana de novembro de 2013 quando voltei a
frequentar e
acompanhar o trabalho dos guardas de So Gonalo. A agente
Fabiana7, que tinha mais de
vinte anos na instituio, convidou a mim e outros colegas para
fazermos uma palestra
sobre nossa pesquisa8. A palestra seria dirigida nova turma de
guardas municipais que
havia sido convocada no meio do ano. Como tinha ocorrido em
outras oportunidades, a
agente ficou responsvel por organizar o curso de formao dos
novatos. Segundo ela, sua
base para estruturar o curso foi a Matriz Curricular Nacional
para as Guardas Municipais,
e, a partir da, ela buscava parcerias com outras instituies ou,
mesmo, com guardas que
pudessem ministrar os contedos da grade curricular. Antes de
participar da palestra que
eu e meus colegas iramos fazer, fui at o colgio onde estavam
sendo ministradas as aulas
do curso para, de alguma maneira, comear a me aproximar dos
agentes. O colgio ficava
na Avenida Maric, ao lado de um grande supermercado. Quando
cheguei, os recrutas9 e
demais guardas j estavam em uma sala, esperando o palestrante do
dia. Assim que entrei
na sala, os guardas olharam para trs, achando que era eu quem
iria fazer a palestra.
Cumprimentei a guarda Fabiana e um outro agente que estava ao
seu lado. Sentei-me
numa carteira ao fundo da sala, um pouco longe de onde eles
estavam. Antes da fala do
palestrante, um guarda chamado Walace tinha dado uma aula para
os recrutas sobre
Tcnicas de telecomunicao, focando no alfabeto fontico que deve
ser utilizado em
comunicaes com rdio e na possibilidade de se montar uma rede de
comunicaes na
Guarda Municipal. Um pouco antes de o agente terminar, o
palestrante chegou. Era um
senhor vestido de terno, que, depois fiquei sabendo, se tratava
de um agente da Polcia
Federal. O guarda Walace, ento, interrompeu sua aula para
apresentar o palestrante:
Bom dia senhores, aqui est o senhor Fernandes, agente da Polcia
Federal, que dar,
7 Optei por usar nomes fictcios para preservar a identidade dos
agentes
8 Os colegas que tambm foram convidados a participar da palestra
para a Guarda Municipal de So
Gonalo foram: Joelma de Souza Azevedo e Marcos Vincius Moura. 9
Recrutas era a maneira como os demais guardas municipais se
referiam aos guardas que ainda estavam
em processo de formao.
20
hoje, uma palestra sobre o Estatuto do Desarmamento. Um, dois!.
Assim que o agente
concluiu a frase, os recrutas levantaram, ficaram em posio de
sentido e falaram: Trs,
quatro! em um tom de voz elevado, s voltando a se sentar quando
o agente da Polcia
Federal falou descansar.
Durante a aula, o palestrante focou nos pontos necessrios para a
obteno do porte
de arma de fogo. Por conta disso, a discusso sobre a sua
pertinncia ou necessidade na
atividade da Guarda foi o tema central naquela manh. A guarda
Fabiana havia dito que,
h algum tempo, eles fizeram uma pesquisa entre os guardas de So
Gonalo para saber a
sua opinio sobre o assunto. Segundo ela, os guardas, em sua
maioria, eram favorveis ao
armamento da Guarda, mas ela acreditava que, para isso, era
preciso que o comando e
demais gestores tambm estivessem de acordo. O guarda Walace, por
sua vez, disse que
no era nem a favor nem contra o armamento da Guarda, mas que, na
sua viso, seria
preciso, antes de mais nada, discutir qual a funo da Guarda
Municipal para, s ento,
decidir quais eram os equipamentos e treinamentos realmente
necessrios.
Observar cenas como essas, alm de outras ocorridas durante as
aulas do curso, me
fizeram notar que havia alguns valores e princpios militares
influenciando, de alguma
forma, a ao daqueles agentes, a despeito de seu papel estar mais
ligado administrao
dos pequenos conflitos existentes nas ruas e no trnsito. Comecei
a perceber isso mais
claramente quando passei a frequentar, com regularidade, as ruas
da cidade, observando e
acompanhando o trabalho deles.
1.2- Algumas observaes metodolgicas
Depois de assistir a algumas palestras realizadas durante o
curso de formao da
turma 22 mil10
, passei a acompanhar os estgios11
. Essa atividade era a forma como os
guardas municipais mais antigos ensinavam aos recrutas como
deveriam atuar na
organizao e nos atendimentos prestados no trnsito. Ficava,
normalmente, um grupo de
dois ou trs guardas mais novos com um outro agente mais antigo.
A primeira vez em que
10
Conforme irei explicar posteriormente, os guardas municipais de
So Gonalo se classificam de acordo
com as turmas de ingresso na instituio. Os dois nmeros iniciais
da matrcula dos agentes servem para
diferenciar a turma a que cada um pertence. 11
Estgio era a maneira como os guardas municipais chamaram as
primeiras incurses dos recrutas no
trabalho junto aos guardas mais antigos nas ruas da cidade.
21
testemunhei esse tipo de atividade foi no Alcntara, quando
acompanhava o trabalho dos
recrutas Mrcia, Jnior e Umberto, ento supervisionados pelo
guarda Fbio. A partir de
ento, passei a ir com mais frequncia a esse bairro, no s para
observar o trabalho dos
guardas municipais, como tambm para conhecer as suas ruas.
Mesmo j tendo ido algumas vezes a So Gonalo, aquela realidade
era um pouco
distante da minha, j que moro na cidade vizinha, Niteri.
Lembro-me, at hoje, de uma
situao que me fez perceber isso, quando passei pela primeira vez
na frente de um
inusitado estabelecimento comercial. Fiquei um tempo na frente
da loja, tentando entender
o que era aquilo. Na frente do estabelecimento, ocupando uma
parte da calada, ficavam
algumas mesas com verduras e legumes. Ao fundo, havia um balco
com um senhor logo
atrs. Compondo o ambiente, havia, ainda, um freezer com carnes e
algumas pessoas
fazendo compras. No canto esquerdo, uma parede inteira era
ocupada por gaiolas com
galinhas vivas e presas. Fiquei um tempo ali, observando, quando
percebi que o senhor
atrs do balco me olhava fixamente, e, por isso, decidi ir embora
sem saber, afinal, o que
era o estabelecimento, se um aougue, um armazm ou uma
verduraria. Depois,
conversando com uma guarda, descrevi a loja e perguntei o que
era. Ela me respondeu, em
tom de gozao: Ah, o abatedouro! Tem muitos por aqui.. A situao
me fez
compreender que o que tinha naquele bairro ainda era muito
estranho para mim, assim
como eu tambm era uma estranha naquele lugar. Passei, ento, a
flanar pelas ruas sem um
ponto fixo de observao, buscando, de alguma maneira, realizar
aquilo a que Da Matta
(1978) se referiu como a primeira operao do ofcio do etnlogo: a
transformao do
extico em familiar (p. 04). Com o passar do tempo, medida que os
guardas iam se
acostumando com minha presena, tambm fui me acostumando com a
deles e com as
ruas, de modo que aquilo que antes me surpreendia passava tambm
a fazer parte do meu
dia-a-dia.
Passei a frequentar as ruas de So Gonalo em novembro de 2013,
quando os
guardas da ltima turma eram ainda recrutas. Continuei fazendo
campo no municpio
at novembro de 2014. Ia de duas a trs vezes por semana cidade,
acompanhando e
observando o trabalho dos guardas nas ruas do Alcntara e do
Centro. Durante a
realizao do projeto sobre as formas de registro dessa Guarda,
percebi que a maior parte
deles envolvia coliso sem vtima e com vtima e se concentrava no
Alcntara. Por isso,
num primeiro momento, minha inteno era fazer trabalho de campo
observando apenas a
atuao dos guardas que trabalhavam nesse bairro. Com o passar do
tempo, os prprios
22
guardas comearam a me perguntar por que eu no ia aos
setores12
localizados em outros
bairros, incentivando-me a ir ao Centro, j que l, segundo eles,
havia menos movimento
de veculos e pessoas. Resolvi comear, ento, ainda no incio de
2014, a ir ao Centro de
So Gonalo. L tambm se concentrava grande parte dos setores de
atuao dos
guardas responsveis pela regulao do trnsito. Por conta do
trabalho de campo, acabei
frequentando mais o Centro e o Alcntara, embora tambm tenha ido
a outros setores,
como os que ficam no bairro Paraso e no Coluband.
Chegava a So Gonalo por volta das nove horas e ficava at as 18
horas, mais ou
menos. Quando estava ainda no nibus, indo de Niteri para So
Gonalo ou fazendo o
caminho inverso, procurava conversar com passageiros enquanto
prestava ateno no
itinerrio que fazamos at chegar ao meu destino. Como, no incio,
So Gonalo se
mostrava relativamente distante de minha realidade, esse
exerccio me ajudava a
compreender como as pessoas usufruam e se apropriavam daqueles
espaos. Quando
chegava ao Alcntara ou ao Centro, procurava andar pelas ruas e
observar as primeiras
movimentaes da manh: os comerciantes abrindo suas lojas, os
camels montando suas
barracas, as filas dos nibus com destino ao Rio de Janeiro e a
Niteri aumentando.
Andava pelas ruas da cidade para conhecer um pouco melhor aquela
realidade, procurando
me perder em cada local potencialmente capaz de me surpreender
com o novo e o
diferente. Por vezes, apenas procurava por um guarda municipal
ao qual, caso no
conhecesse, prontamente me apresentava.
A observao direta foi uma estratgia metodolgica importante.
Quando no
estava andando pelas ruas, mantinha-me prximo a um guarda,
procurando observar seu
trabalho e sua interao com o entorno. Tambm conversava com eles;
mas, na maior
parte das vezes, ficava um pouco afastada para no atrapalhar
e/ou interferir
demasiadamente em suas aes. Aproximava-me, porm, quando ocorriam
imprevistos,
tais como, colises, acidentes, pequenos conflitos etc. Buscava
no ficar muito tempo
junto a um nico guarda. Durante o dia, ia de um lado a outro do
bairro observando o
trabalho de diversos agentes e conversando com eles. A observao
do trabalho dos
guardas foi realizada, portanto, do ponto de vista de um
transeunte, mesmo porque nunca
cheguei a dirigir pelas ruas da cidade.
12
Setor a maneira como os guardas municipais de So Gonalo
denominam os locais de trabalho no
trnsito da cidade.
23
Ao andar pelas ruas e vagar pelas esquinas, era confrontada com
uma srie de
informaes, sons e significados difceis de assimilar em sua
totalidade. Da emerge a
necessidade do exerccio de transitividade a que me submeti
frente aos variados
estmulos que surgem quando se observa a cidade, mesmo que de uma
determinada
perspectiva (Caruso, 2009). Essa estratgia foi empregada, tambm,
por Caruso (2009) em
sua tese de doutorado intitulada Entre ruas, becos e esquinas:
por uma antropologia dos
processos de construo da ordem na Lapa carioca. No caso, o
trabalho de campo da
autora foi marcado por um exerccio de transitividade (p. 37),
que lhe permitiu
compreender as especificidades na relao espao-tempo observadas
no contexto em
questo. Ao demonstrar o desafio de experimentar a cidade em sua
totalidade, ela (2009)
enfatiza que
os fragmentos de realidade que compem o mosaico da vida
metropolitana trazem
baila o desafio de observar o que est em movimento, em repensar,
o que para
qualquer antroplogo crucial, que definir o seu ponto de
observao. Nesse
sentido, o trabalho etnogrfico na metrpole imps o desafio de
perambular pela
cidade, num estado de deriva (p. 37, grifos da autora)
Em grande medida, o meu trabalho de campo tambm foi marcado por
esse
perambular pela cidade, por esse estado de deriva (p. 38) que me
levava a flanar e
transitar pelos mais variados caminhos percorridos no s pelos
guardas municipais, como
tambm por outros agentes que transitavam pela cidade. Observar
essa interao entre os
guardas municipais e demais agentes era importante para perceber
como os seus espaos
de atuao eram construdos, assim como para compreender as ideias
e valores presentes
nos mltiplos atendimentos prestados. A arte de perambular ou de
flanar pelas ruas de So
Gonalo me permitiu perceber de que maneira diferentes agentes
construam seus trajetos,
revelando, assim, a forma como significavam as suas relaes e os
seus pertencimentos
quele(s) espao(s).
Conforme comecei a vagar pelas ruas, percebi que os guardas mais
antigos em
atividade no Alcntara j me conheciam, sobretudo, por conta do
mencionado projeto de
que participei. Mesmo assim, muitos deles se sentiam intimidados
a conversar comigo, j
que no sabiam se a pesquisa que eu estava fazendo poderia
exp-los de alguma forma.
Alguns chegaram a me perguntar se eu tinha alguma ligao com o
secretrio de
Segurana Pblica da cidade, desconfiados de que eu poderia ser
algum tipo de espi ou
algo assim. Deve ser mesmo algo incmodo ter alguma pessoa ao seu
lado observando o
24
seu trabalho sem se saber ao certo quem ela ou o que pretende
fazer. Por mais que eu me
apresentasse e falasse qual era meu objetivo, todas as vezes em
que me dirigia a um agente
com o qual no tinha proximidade, permanecia uma certa
desconfiana sobre quem eu era
e as razes que me levavam quelas ruas. Devido ao curso de formao
e palestra que
ministrei, j tinha conseguido construir uma relao de proximidade
com os guardas
municipais mais novos, inteirando-os, antecipadamente, da minha
inteno. Por isso, num
primeiro momento, o trabalho de campo acabou se centrando na
observao do trabalho
dos guardas municipais que tinham entrado na instituio no ano de
2013.
Com o passar do tempo e medida que ia mais vezes a campo, fui
criando maior
intimidade com os outros guardas municipais, mesmo com aqueles
mais antigos que, a
princpio, me evitavam. Percebi que estava comeando a ser aceita
entre eles quando
comearam a lembrar do meu nome. No incio, como disse, alguns
acreditavam que eu
estava indo ao Alcntara para vigi-los. Gustavo, um agente que
possua trs anos na
instituio, era um deles. O guarda chegou at a me falar isso
algumas vezes, mesmo que,
reiteradas vezes, eu tentasse explicar o que fazia ali. Certo
dia, estava prximo entrada
do terminal de nibus, ao lado dos guardas Las e Gustavo, e esse
perguntou, mais uma
vez, qual era o meu nome. Depois de responder, ele me questionou
sobre a pesquisa.
Expliquei novamente e, ento, o agente me falou um pouco da sua
maneira de atuar ali. A
partir de ento, ele e sua colega no esqueceram mais o meu nome,
passando a se mostrar
mais abertos a conversar comigo, inclusive sobre os assuntos
relacionados ao seu trabalho.
Assim como aconteceu no Alcntara, inicialmente, minha presena
tambm foi
vista com certa desconfiana pelos guardas que atuavam no Centro
de So Gonalo. Mas,
medida que a pesquisa se desenvolvia, tambm construa com eles
uma relao de maior
proximidade. certa altura, minha presena nas ruas do Alcntara e
do Centro j tinha se
tornado to comum que passei a escutar frases como: J pode se
tornar guarda!, Vou te
dar um apito para puxar o trnsito tambm. ou, ainda, S falta
vestir a farda!.
Percebi que construir uma relao de proximidade com as guardas
que trabalhavam
no Alcntara foi essencial para que os demais agentes, inclusive
homens, me aceitassem.
Inicialmente, elas se sentiam mais vontade com minha presena,
mostrando-se curiosas
sobre meu trabalho e conversando bastante comigo. Na maioria das
vezes, as respostas s
minhas perguntas geravam interaes mais detidas, ou seja, no eram
monossilbicas
como aquelas que alguns guardas homens forneciam em uma primeira
aproximao. Criei
uma intimidade maior com as guardas Flvia e Las, ambas
pertencentes ltima turma de
25
agentes que entraram na instituio. Com elas, conversava desde
assuntos relacionados a
sua atuao profissional at curiosidades sobre cabelo e maquiagem.
Las, por exemplo,
chegou at a me dar um presente quando estava prximo do meu
aniversrio. As duas, em
diferentes momentos, passaram a me convidar para lanchar ou
acompanh-las at o local
onde costumavam tomar gua e ir ao banheiro. Estar presente
nesses momentos de
informalidade, em que os guardas poderiam ficar sem a
cobertura13
e sem a rigidez que o
uniforme exigia, foi essencial no s para criar uma proximidade
maior com os demais
agentes, mas, tambm, para conhecer e entender quem era cada um
deles. Alguns guardas
tinham, mais ou menos, minha idade, outros eram mais velhos. Nas
conversas que
tnhamos, passava a conhecer um pouco da famlia de cada um, o que
faziam em seus
momentos de folga, as situaes que ocorreram por aquelas ruas nos
dias em que eu no
estava presente etc. Com o passar do tempo, j sabia os locais
onde eles costumavam
comer, os horrios em que chegavam ou iam embora, aqueles que
eram reconhecidos
como dures e aqueles que eram vistos como bonzinhos. Muitas
vezes, ia lanchar com
os guardas, andava com eles pelas ruas, de um lado a outro do
setor, e participava de
uma srie de momentos de suas rotinas dirias.
Com o passar do tempo, alguns guardas comearam a acreditar que a
realizao da
pesquisa seria uma forma de divulgar ou, at mesmo, de dar
visibilidade ao seu trabalho.
Foram vrias as vezes em que escutei que eu deveria colocar minha
pesquisa em uma
matria de jornal para que a populao, de alguma forma, pudesse
ver o que os guardas
fazem diariamente. O guarda Fbio, por exemplo, mencionou isso
algumas vezes. Ele era
um dos criadores de um jornal que, alm de veicular reportagens
com contedos sobre a
instituio, apresentava notcias sobre variedades, tendo como
fonte os jornais e pginas
virtuais de grande circulao. Outros guardas achavam que eu
deveria escrever uma
matria no jornal contando os problemas estruturais da cidade,
tais como os relativos
sinalizao e ao asfaltamento das ruas. Diante de tais
expectativas, procurava deixar
claro que eu no era jornalista e no tinha inteno de fazer uma
matria de jornal, mas
um trabalho acadmico, tendo por base aquilo que eu estava
observando em suas rotinas
dirias.
Para a realizao da pesquisa, assumi como pressuposto
epistemolgico que a
etnografia busca compreender o outro atravs dos atos de olhar,
ouvir e escrever, trs
faculdades fundamentais para o fazer antropolgico (Cardoso de
Oliveira, 1998, p.17).
13
Cobertura o nome dado pelos guardas municipais ao bon que faz
parte do uniforme oficial.
26
Nesse sentido, vagar, perambular, flanar pelas ruas de So
Gonalo, sem um ponto fixo de
observao, a fim de experimentar a cidade e realizar observao
direta do trabalho dos
guardas municipais, foram, sem dvida, as estratgias metodolgicas
que mais utilizei
durante o ano em que empreendi o trabalho de campo. No entanto,
empreguei tambm
outros recursos que foram igualmente importantes para a construo
dos dados. Por meio
de entrevistas informais, busquei entender como era a atuao dos
guardas nas ruas, assim
como obter informaes especficas sobre a instituio a que serviam.
Muitas vezes, ficava
prxima dos guardas, em seus setores, e conversava sobre situaes
ocorridas naquele
momento ou em outro qualquer, sobre as quais ainda me restavam
dvidas. Quando no
tinha muita proximidade com o agente, costumava fazer perguntas
mais amplas para, de
alguma forma, iniciar uma conversa. Fazia perguntas como, por
exemplo: Como sua
relao com a populao que passa por aqui? ou O que voc faz para
organizar o
trnsito no seu setor?. A partir da, dispunha-me a escutar aquilo
que o guarda tinha a
dizer e, em seguida, fazia uma ou outra pergunta para dar
sequncia ao dilogo.
A partir de um roteiro pr-estruturado, fiz, tambm, entrevistas
com alguns guardas
que trabalhavam na sede da instituio e com o Comandante da
Guarda Municipal de So
Gonalo. Por conta da pesquisa anterior, j conhecia parte dos
guardas, tendo, inclusive,
proximidade com alguns deles. Contudo, o fato de ter ido mais
vezes s ruas do que sede
fez com que me aproximasse mais dos agentes do trnsito e
acabasse me distanciando dos
guardas que ficavam na base14
. Todas as vezes em que ia l, era bem recebida; os
agentes me ofereciam caf, diziam para eu voltar mais vezes e
respondiam prontamente s
minhas perguntas. Todavia, por no possuirmos mais tanta
proximidade, as conversas e
entrevistas informais j no fluam to bem. No raro, eles se
mostravam mais
preocupados em me ouvir do que em falar, dando respostas curtas
para o que era
perguntado. Por isso, optei por realizar entrevistas
pr-estruturadas com guardas que
ocupavam posies hierarquicamente destacadas, como, por exemplo,
a guarda Fabiana,
que era assessora da Ronda Escolar e trabalhava no setor
administrativo. O mesmo se
passou com o guarda Abreu, que trabalhava no setor responsvel
por fazer as escalas de
servio15
e alocar os guardas nos setores e postos fixos16
de trabalho. Em ambas as
14
Base era a maneira como os guardas municipais que trabalhavam
nas ruas chamavam a sede da
instituio. 15
Escala de servio um documento produzido pela Guarda Municipal de
So Gonalo a fim de distribuir
os agentes de acordo com os plantes e horrios de trabalho
disponveis. 16
Postos fixos era a maneira como os guardas municipais
denominavam os locais de trabalho em prdios
pblicos.
27
ocasies, pedi permisso antecipada para fazer as entrevistas,
retornando num dia
posterior para realiz-las, com base num roteiro previamente
estruturado. A entrevista com
o Comandante seguiu o mesmo protocolo.
Acompanhar pginas e grupos no Facebook foi, tambm, importante
para
comear a compreender as vises dos guardas municipais e de
moradores de So Gonalo
a respeito de alguns assuntos de meu interesse. Durante a
pesquisa, acompanhei duas
pginas17
que faziam postagens sobre temas como as mazelas por que o
municpio
passava. Tanto aquilo que era publicado quanto os comentrios
feitos por pessoas que
curtiam as pginas foram importantes para eu comear a perceber
qual era a viso que
parte da populao tinha a respeito de determinadas reas, assim
como da cidade em geral.
Adicionar alguns interlocutores da guarda municipal ao meu
perfil em uma rede social
tambm foi importante para construir uma relao de maior
proximidade com alguns
agentes. Percebi que estar aberta para compartilhar alguns
assuntos, tambm virtualmente,
poderia ser uma forma de manter ou cultivar o vnculo
estabelecido. De certa forma, era
como se, com isso, eu me aproximasse um pouco mais de um mundo
que ainda estava
relativamente distante. Por isso, alm de adicion-los, procurei
fazer parte dos grupos nos
quais os guardas partilhavam assuntos entre si, como, por
exemplo, sobre as motivaes
que os levaram a organizar uma manifestao que ocorreu em
novembro de 2014.
Participei, tambm, de grupos e comunidades dos quais guardas de
todo Brasil faziam
parte e nos quais eram discutidas pautas mais gerais, como as
referentes votao da lei
13022, chamada de Estatuto Geral das Guardas Municipais.
Antes de tratar especificamente dos contextos em que a Guarda
Municipal de So
Gonalo est inserida, importante ressaltar que optei por utilizar
nomes fictcios para, de
alguma forma, preservar a identidade dos guardas com quem
mantive contato. Alm disso,
procurei, tambm, mudar ou ocultar os nomes das ruas e pontos de
referncias que faziam
parte dos documentos oficiais e internos a fim de respeitar o
sigilo dessas informaes.
No que se refere estrutura desta dissertao, alm de uma introduo
e das
consideraes finais, ela composta de mais trs captulos. No
captulo dois, denominado
So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade, enfatizo
que, muito antes
de a lei 13.022 ser sancionada, o trnsito j era uma questo cara
ao municpio.
17
A saber: So Gonalo da depresso (URL: .
Acesso: 16/11/2015) e So Gonalo tenso (URL: .
Acesso: 16/11/2015).
https://www.facebook.com/SaoGoncaloDaDepressao?ref=ts&fref=tshttps://www.facebook.com/saogoncaloetenso?ref=ts&fref=ts
28
Concentro-me em apresentar So Gonalo, descrevendo mais
pormenorizadamente o
bairro do Alcntara18
e o Centro da cidade, onde concentrei meu trabalho de campo.
De
maneira geral, o objetivo do captulo discorrer sobre algumas
categorias nativas que se
costumam associar cidade e que, de alguma maneira, ajudam a
entender por que o seu
trnsito descrito como catico e desorganizado. Isso, por
consequncia, contribui para a
compreenso das formas de atuao da Guarda Municipal de So
Gonalo.
No terceiro captulo, intitulado A Guarda Municipal de So Gonalo:
funes,
atribuies e representaes, empenho-me em apresentar alguns pontos
relativos ao
funcionamento da instituio e maneira como ela costuma ser
representada por seus
membros. Nesse sentido, so expostas: as competncias previstas no
Regulamento Interno
da Guarda Municipal de So Gonalo; a maneira como a autoridade e
a estrutura
hierrquica tendem a ser vistas pelos agentes que trabalham nas
ruas; a forma como esses
guardas classificavam a si mesmos e seus locais de trabalho; as
punies normalmente
estabelecidas etc.
No quarto captulo, cujo ttulo Prticas e representaes dos guardas
municipais
no trnsito de So Gonalo, me dedico a descrever a atuao desses
agentes na regulao
do trnsito da cidade. A exemplo do que foi observado por outros
pesquisadores (Miranda,
2002; Mello, 2011), o bom senso aparece enquanto uma categoria
chave para se
entender a maneira como eles agem, que, por vezes, tem como base
o plano formal e, em
outras ocasies, o plano informal. So apresentadas vrias situaes
que nos permitem
entender de que maneira eles classificam os atendimentos e suas
aes, como, por
exemplo: o que preciso para fazer o trnsito fluir; quais os
aspectos que devem ser
levados em conta para saber quando multar e quando no; quais as
maneiras de se usar o
apito; quando as relaes de proximidade e pessoalidade devem ser
levadas em conta; por
que o porte de arma de fogo continua sendo exigido por alguns
guardas; e, no menos
importante, como so estabelecidas as relaes de reciprocidade no
trnsito.
18
Neste trabalho, fao referncia ao bairro como o Alcntara, assim
como alguns guardas municipais e
demais agentes o chamavam. Por isso, esclareo que, mesmo em
possveis situaes em que no seria
preciso us-lo, utilizo o artigo definido o para me aproximar da
maneira como esse bairro era, por vezes,
caracterizado.
29
2- So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade
Ao distinguir o objeto de estudo do lcus de uma pesquisa, Geertz
(1989)
estabelece que os antroplogos no estudam as aldeias (tribos,
cidades, vizinhanas...),
eles estudam nas aldeias. (p. 32). Nesse sentido, antes de
observar como os guardas
municipais organizavam o trnsito de So Gonalo, foi preciso me
familiarizar um pouco
mais com aquele contexto emprico que era, at ento, relativamente
distante de mim. Por
isso, conforme mencionado, procurava conversar com amigos e
colegas que moravam ou
nasceram em So Gonalo, a fim de ter acesso a informaes iniciais
sobre a cidade.
Desde ento, j escutava a mxima quem dirige em So Gonalo dirige
em qualquer
lugar. Ao me dizerem essa frase, eles no pretendiam enfatizar a
destreza dos motoristas
que transitavam pelas ruas da cidade, mas pr em evidncia uma
imagem do trnsito que
seria, supostamente, catico e desorganizado.
Neste captulo, procuro explorar os aspectos e efeitos simblicos
que acompanham
esse tipo de representao construda sobre o trnsito de So Gonalo.
Considero o termo
representao da maneira proposta por Durkheim (2009), segundo a
qual as ideias que
os homens tm sobre si so forjadas no interior das relaes,
coletivamente, ultrapassando,
assim, a autonomia dos indivduos. importante ressaltar que,
segundo o autor, as ideias
alimentam os fazeres, muito embora as prticas no sejam
estritamente um reflexo daquilo
que se pensa. Dessa maneira, dependendo do contexto, ideias e
prticas podem tanto se
coadunar como se contrapor.
Essa discusso possui uma relao direta com o objetivo deste
captulo, j que
pretendo analisar como se constitui a morfologia social de So
Gonalo, especialmente
dos bairros do Alcntara e do Centro da cidade. Assim como
definiram Mauss (2013) e
Halbwachs (2006), a morfologia social tem a ver com a maneira
como, a partir de
determinados usos e costumes, so organizadas e estruturadas as
relaes num
determinado contexto socioespacial. Com base nessa perspectiva,
procurei mapear a
maneira como as ruas dos referidos bairros so ocupadas e
utilizadas pelos agentes que
nelas transitam e/ou atuam, de modo a compreender, com isso,
como tais espaos so
socialmente construdos.
2.1. So Gonalo: nomes e esteretipos
30
So Gonalo uma cidade que fica na regio metropolitana do Rio de
Janeiro, a
apenas vinte quilmetros da capital. Sua populao estimada pelo
Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE), em 2014, consta de 1.031.903 de
habitantes, uma das
maiores do estado19
. O municpio faz divisa com Niteri, Maric e Itabora,
apresentando
uma ampla extenso territorial de 247.709 km (Mapa 1).
Mapa 1 Municpio de So Gonalo
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas. URL:
. Acesso: 25/08/2014.
Os 91 bairros de So Gonalo (Mapa 2) esto divididos em cinco
distritos (Mapa
3). So eles: So Gonalo (distrito sede), Ipiiba, Monjolo, Neves e
Sete Pontes20
(Quadro
1).
19
URL. Acesso: 01/04/2015 20
As informaes oficiais so oriundas da pgina virtual oficial da
prefeitura municipal de So Gonalo.
URL: . Acesso: 13/01/2015.
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=330490&search=||infogr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpiohttp://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=330490&search=||infogr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpiohttp://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=330490http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php
31
Mapa 2 Bairros de So Gonalo
Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de
2015 s 10h32min
Mapa 3 Distritos de So Gonalo
Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de
2015 s 10h25min
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.phphttp://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php
32
Quadro 1 Diviso dos bairros de So Gonalo por distritos
Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de
2015 s 10h38min
O Centro (tambm apontado, no Quadro 1, como rodo de S.G.) e o
Alcntara se
encontram no primeiro distrito da cidade. Grande parte dos nomes
das localidades,
principalmente, dos primeiros bairros, se refere s fazendas,
indstrias ou portos que antes
existiam na regio. Em meados do sculo XX, quando a cidade comeou
a crescer
industrialmente, muitas fazendas comearam a fazer loteamentos, o
que deu origem a
muitos dos bairros hoje existentes. Segundo um guarda municipal,
essa transformao do
municpio tem consequncias diretas na maneira como o trnsito da
cidade se apresenta na
atualidade:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php
33
So Gonalo era, antes, tudo fazenda. At pouco tempo, era tudo
mato. Depois,
foram vendendo as fazendas para fazer loteamentos de casas. []
por isso que,
aqui, tem todas essas ruas estreitinhas. No se v uma avenida
grande, no teve
planejamento, tudo rua. Agora, qualquer coisa que acontece fica
tudo parado [o
trnsito].
(Joo, guarda municipal h 13 anos)
Durante o trabalho de campo, percebi que vrias categorias
nativas eram
empregadas para fazer referncia cidade de So Gonalo, tais como:
Manchester
Fluminense, cidade invadida, cidade dormitrio e cidade das
praas. A partir do
que depreendi, cada uma delas diz respeito a um perodo da
histria do municpio, de
modo que, para analis-las corretamente, preciso respeitar uma
sequncia, ao mesmo
tempo, lgica e cronolgica. Durkheim (2009) j nos demonstrou que
as categorias usadas
por nossos interlocutores fazem parte de um sistema
classificatrio, o que pressupe que
elas possuem significados que, quando decodificados, permitem
compreender a lgica
com que operam em determinado sistema. Com isso, o que pretendo
enfatizar que, a
partir do tipo de categoria que os agentes empregam para se
referir cidade, possvel
entender o tipo de compreenso que levada em conta sobre So
Gonalo.
No ano de 1948, o IBGE realizou uma Sinopse Estatstica,
abrangendo dados
sobre os municpios brasileiros ento existentes. A pesquisa
englobou os aspectos
histricos, geogrficos e censitrios da dcada. So Gonalo havia se
emancipado
politicamente havia pouco mais de 50 anos, e sua populao era de
apenas 94.446
habitantes. Em relao produo industrial, o documento afirma
que:
Atualmente, o Municpio de So Gonalo atingiu um elevado grau
de
desenvolvimento e prosperidade econmica. O seu parque industrial
considerado
um dos mais importantes do Estado e mesmo do pas, tendo
localidade merecida
a cognominao de Manchester Fluminense. Nos setores social e
agrcola,
intenso o progresso que se verifica, ensejando a que se tenha So
Gonalo como
uma das mais produtivas e adiantadas comunas fluminenses.
(IBGE, 1948, p. 05)
34
Como mostra a pesquisa do IBGE, a partir da dcada de 1940, o
municpio chegou
ao auge de sua produo e concentrao industrial, fazendo com que
So Gonalo
figurasse como um dos mais importantes plos industriais do
antigo estado do Rio de
Janeiro. Segundo Araujo e Mello (2014), o processo de
industrializao da regio foi
deflagrado por iniciativa do setor privado que, quela altura,
contava com incentivos
oferecidos pelo governo federal. Essa poca de pujana econmica
rendeu ao municpio a
alcunha de Manchester Fluminense, em analogia famosa cidade
industrial britnica21
.
Uma das consequncias desse alardeado crescimento econmico foi a
ida de amplos
segmentos sociais, das mais diversas procedncias, para o
municpio em busca de
trabalho.
A esse respeito, o jornal O So Gonalo enfatiza, na edio
comemorativa do
aniversrio de 119 anos da cidade, publicada em 2009, que, poca,
muitas pessoas
foram do nordeste do pas e do interior do estado para a cidade.
A matria reala, ainda,
que, por estar perto da ento capital do estado, Niteri, e da
capital federal, Rio de
Janeiro, [So Gonalo] ocupava lugar estratgico nesse fluxo
migratrio.22
. Como
assinala Mendes (2002), por conta da grande afluncia de
migrantes, o municpio passou
pelo mais alto crescimento populacional de sua histria, o que
ocasionou a ampliao do
movimento de loteamentos de antigas fazendas, a que j fiz meno.
A denominao de
cidade invadida est diretamente relacionada a esse momento
histrico, j que foi depois
do perodo de crescimento econmico que ocorreu uma maior
diversificao da
populao, haja vista que vrios tipos de pessoas, com diferentes
origens e modos de vida,
passaram a conviver num mesmo espao.
Segundo Guedes (1997), esses so episdios importantes na
constituio da
identidade do gonalense (p. 58). Tal identidade, como qualquer
outra, construda de
forma contrastiva e relacional, sendo que, no caso de So Gonalo,
as fronteiras
simblicas que separam seus habitantes de niteroienses e cariocas
se revelam de forma
especificamente significativa. Isso se d por meio das
representaes produzidas pelos
21
A cidade britnica a qual estou me referindo Manchester,
importante, at hoje, pelo seu grande centro
industrial e econmico. Durante a Revoluo Industrial, no sculo
XIX, a cidade comeou a ganhar uma
posio central para o desenvolvimento da Inglaterra, j que l se
concentrava grande parte das industrias
fabris. Engels (2008), quando escreveu sobre a situao dos
trabalhadores na Inglaterra, j falou da
importncia da cidade para a industrializao do pas e enfatizou,
tambm, a misria e as pssimas condies
de trabalho que os operrios e proletariados possuam. 22
A matria est disponvel em URL:
. Acesso: 18/03/2015.
http://www.osaogoncalo.com.br/esg+119+anos/2009/9/22/2271/uma+cidade+em+constante+transformacaohttp://www.osaogoncalo.com.br/esg+119+anos/2009/9/22/2271/uma+cidade+em+constante+transformacao
35
autointitulados gonalenses histricos (que possuem uma forte
identificao com a
cidade), segundo as quais os desenraizados teriam transformado
So Gonalo numa
cidade-dormitrio (ibid., p.59). Numa entrevista realizada pela
autora, um antigo
morador fala da reconfigurao da cidade a partir da invaso desses
gonalenses
desenraizados:
uma So Gonalo que, se voc chegar a e perguntar quem nasceu em
So
Gonalo, s as criancinhas com menos de cinco anos, porque os
outros tm origem
fora de So Gonalo. Essas pessoas vieram pra ocupar os terrenos
dos
loteamentos, porque elas j eram fruto do xodo rural, da
especulao imobiliria
do Rio de Janeiro... Ento o que aconteceu? Essas pessoas fizeram
uma So
Gonalo absolutamente diferente, desenraizadas, elas no conhecem
algumas a
maioria delas no passam nem por aqui, os nibus sobem pela
Rodovia Amaral
Peixoto, se voc perguntar a elas onde fica o centro
administrativo, onde fica a
prefeitura, elas no sabem. Ento, essa uma outra So Gonalo.
(Guedes, 1997, p. 60)
De acordo com essa viso, a cidade teria sido invadida por
gonalenses
desenraizados, que no conhecem e no se identificam com o
municpio, o que a
transformou em uma outra So Gonalo, muito diferente daquela que
era conhecida
como a Manchester Fluminense. Segundo essa perspectiva, a invaso
da cidade
tambm estaria relacionada posterior decadncia industrial que o
municpio sofreu.
Sobre essa decadncia, Araujo e Melo (2014) observam que o
processo de crescimento
industrial teve pouco flego, em pouco tempo, os investimentos
industriais deram sinais
de esgotamento, e, j no incio da segunda metade do sculo, deu-se
incio ao processo de
esvaziamento industrial (p. 84). De acordo com esses autores,
por mais que as indstrias
contassem com incentivo fiscal para permanecer na cidade, o
tardio investimento em obras
infraestruturais, como em gua e saneamento bsico, fez com que
vrias delas passassem a
deixar o municpio a partir da dcada de 1970. Ao apontar como
essa decadncia
econmica afetou mais especificamente o bairro de Neves, Guedes
(1997) afirma que,
nessa poca, aconteceu o fechamento de fbricas, como, por
exemplo, a Companhia
Fluminense de Manufatura, a Fiat Lux e algumas indstrias de
conservao de pescado
(p.68).
O descompasso entre a grande procura de empregos e a pouca
oferta fez com que
a populao passasse a procurar empregos na capital do estado e,
tambm, na ento capital
federal, Rio de Janeiro. Em consequncia, So Gonalo passou a ser
conhecida como uma
36
cidade dormitrio. At os dias de hoje, o municpio assim
caracterizado, conforme
podemos ver na introduo da Leitura Tcnica do Plano Diretor da
Cidade23
:
Terceiro municpio mais populoso do Estado do Rio de Janeiro So
Gonalo
caracteriza-se como cidade dormitrio. Essa situao no recente;
distante
apenas cerca de 10 km de Niteri, h muitos anos verifica-se entre
as duas
localidades um intenso movimento de migrao pendular diria,
concentrando-se
em So Gonalo o reservatrio de mo-de-obra e as funes
complementares,
sobretudo de moradia para os trabalhadores, ficando Niteri com
as tarefas
produtivas e de acmulo do capital.
(So Gonalo, 2006)
A intensa frequentao das praas, nos mais diversos bairros de So
Gonalo, tem
relao direta com uma das maneiras como a cidade costuma ser
representada. A primeira
vez que escutei a expresso cidade das praas ocorreu quando um
guarda municipal
conversava comigo a respeito das obras que um antigo governante
municipal havia
realizado na cidade. Naquela ocasio, lembrei que esse
governante, ao tentar eleger seu
sucessor, exaltava o fato de ter revitalizado grande parte das
praas da cidade. Segundo o
guarda, a campanha que elegeu o referido gestor ficou
popularmente conhecida como
campanha do tijolinho e contava com a seguinte frase de impacto:
Vamos reconstruir
So Gonalo. o que, no caso, significava, fundamentalmente,
pavimentar ruas e
construir praas. O agente, ento, me disse que So Gonalo sempre
foi a cidade das
praas, elas sempre foram importantes para a vida dos bairros.
Posteriormente, em outras
conversas com guardas municipais e alguns colegas, voltei a
escutar essa expresso. No
entanto, a ideia de se encarar So Gonalo como a cidade das praas
parece ser
relativamente recente, no porque no houvesse praas antigamente
ou porque as pessoas
no as frequentassem, mas porque a valorizao pblica desses espaos
como um
patrimnio dos gonalenses tem a ver com um contexto histrico
bastante atual. claro
que a Praa do bairro Trindade24
, a Praa dos Ex-combatentes25
, a localmente conhecida
23
A Leitura Tcnica do Plano Diretor do municpio de So Gonalo, pode
ser vista na ntegra na seguinte
pgina virtual, URL:. Acesso: 18/03/2015. 24
O bairro de Trindade se localiza no terceiro distrito da cidade.
25
A praa dos ex-combatentes est localizada no bairro Paraso, mais
especificamente, no quarto distrito de
So Gonalo. No centro dessa praa, encontra-se uma rplica de um
tanque de guerra, em homenagem aos
http://www.pmsg.rj.gov.br/urbanismo/plano_diretor/leitura_tecnica/index.htm
37
Praa Z Garoto26
ou quaisquer outras praas da cidade possuem diferenas e
peculiaridades quanto s formas de sociabilidade nelas
desenvolvidas. No me cabe, aqui,
enfatiz-las ou discuti-las. Entretanto, acredito que esse um
aspecto importante para a
compreenso do modo como muitas das relaes sociais so
estabelecidas em So
Gonalo, sobretudo, no que concerne pessoalidade tpica das
interaes desenvolvidas
em tais espaos. impossvel no passar pela praa do bairro
Trindade, por exemplo,
numa sexta ou num sbado noite, e no encontrar ela cheia tanto de
jovens como,
tambm, de famlias com suas crianas. Nesse sentido, So Gonalo ser
reconhecida
enquanto cidade das praas significa se identificarem e se
assumirem a familiaridade, a
pessoalidade e a coletividade, por exemplo, enquanto
caractersticas importantes para a
construo das relaes sociais na cidade.
Outro ponto abordado por Guedes (1997), e que, ainda hoje, muito
representativo
de So Gonalo, diz respeito proximidade social do municpio com
queles da chamada
Baixada Fluminense, a saber: Nova Iguau, Nilpolis, So Joo de
Meriti e Duque de
Caxias. Se levarmos em conta somente os termos geoespaciais,
percebemos, como
demonstrado no primeiro mapa (Mapa 1), que So Gonalo se situa na
outra margem da
Baa de Guanabara e no tem nenhuma proximidade com tais
municpios. Entretanto,
apesar de essas cidades no estarem fisicamente prximas, suas
caractersticas sociais as
aproximam. Essa questo vai ao encontro de uma crtica feita por
um guarda municipal
durante meu trabalho de campo. Era muito comum que os agentes
reclamassem dos
pedestres, tanto por no atravessarem na faixa como por o fazerem
com o sinal aberto para
carros. Em uma dessas circunstncias, um guarda me disse que So
Gonalo parecia ser
uma extenso da Baixada Fluminense, j que a Baixada uma terra sem
lei, e So
Gonalo parece que tambm . Os pedestres nunca acham que as leis
de trnsito tambm
valem para eles. Desse ponto de vista, embora So Gonalo e a
Baixada Fluminense
estejam a quilmetros de distncia um do outro, sendo, portanto,
fisicamente distantes,
esses dois espaos acabam por ser representados como semelhantes
e, desse modo,
socialmente prximos (Park, 1979), uma vez que recebem o
esteretipo de terras sem
lei, onde pedestres e motoristas acreditam que podem tudo.
gonalenses que serviram na Segunda Guerra Mundial. URL:
. Acesso: 14/01/2015. 26
A praa Z Garoto oficialmente conhecida como Praa Estefnia de
Carvalho e se localiza no bairro Z
Garoto. O nome do bairro e o nome popular da praa se referem a
um comerciante, filho de imigrante
portugus, que possua um armazm prximo de onde se encontra a praa
hoje em dia. URL:
. Acesso: 14/01/2015.
http://www.saogoncalo.rj.gov.br/historia.phphttp://www.saogoncalo.rj.gov.br/historia.php
38
Ao desenvolver os seus estudos em um bairro habitado por
imigrantes pobres
descendentes de italianos (ento identificado como Corneville),
Foote-Whyte (2005) se
defrontou com uma srie de representaes previamente construdas
sobre o local. A rea
era vista como problemtica e degradada, com altos ndices de
criminalidade e
delinquncia juvenil, o que foi gradativamente superado medida
que era realizada a
pesquisa emprica por meio da qual o autor conseguiu lanar um
outro olhar sobre aquela
realidade. De certa forma, foi um movimento parecido com esse
que tentei empreender ao
realizar a pesquisa em So Gonalo. Busquei, fundamentalmente, ir
alm de um olhar
generalizante e homogeneizante para, a partir da pesquisa
emprica, confront-lo com a
lgica local conforme foi apresentada pelo(s) ponto(s) de vista
nativo(s) a que tive acesso.
2.2. O Alcntara e a pequena ndia
Comecei a frequentar as ruas do Alcntara em novembro de 2013.
Desde o
primeiro dia, tive contato com os diversos sons e movimentos
caractersticos daquele
local. O calor escaldante do vero j se anunciava. As ruas e
caladas estavam cheias de
camels27
, assim como de possveis compradores, por conta do Natal que se
aproximava.
Era preciso prestar muita ateno ao andar pelas caladas para no
pisar nos produtos que
os ambulantes estendiam no cho ou, mesmo, para no tropear em
algum caixote ali
deixado ao acaso. Alguns camels montavam barracas provisrias com
caixotes e
madeiras, ocupando grande parte das caladas. Esses espaos eram
como uma espcie de
quebra-cabea, onde cada coisa tinha o seu lugar: uma parte da
calada era destinada aos
camels, outra era ocupada pelas enormes filas de pessoas que
esperavam nibus, e o
que restava era destinado ao fluxo de pessoas que iam e vinham
em sentidos contrrios.
Aquelas que estavam com mais pressa cortavam caminho pelos
cantos das ruas. Nesse dia,
apesar de j conhecer alguns guardas municipais, resolvi no
conversar com eles.
Interessava-me observar as atividades e as maneiras como aqueles
espaos eram ocupados,
o que, mal sabia eu, levaria muito mais do que um dia.
O bairro do Alcntara um dos importantes plos de negcios e
comrcio de So
Gonalo. Como mostra o Quadro 1, ele fica situado no primeiro
distrito da cidade. L se
27
Apesar de saber que as categorias camel e ambulante possuem
diferenas quanto ao uso, emprego as
duas com o mesmo sentido, assim como alguns guardas municipais o
faziam.
39
encontram lojas de eletrodomsticos, lojas de mveis, bares,
agncias bancrias,
lanchonetes, hospitais, supermercados, escolas, clnicas,
shopping centers e diversos
outros edifcios comerciais. Quando vagava, pelas primeiras
vezes, nas ruas do bairro,
ainda tomada de um estranhamento inicial, indagava-me sobre como
era possvel
aglutinar, em um mesmo local, linhas comerciais e de servios to
diferentes, que iam
desde barbeiros, sapateiros e abatedouros at lojas de grife, alm
de grandes redes de
fast food.
A localmente conhecida rua da feira (Rua Joo Caetano) se destaca
pelo
comrcio de txteis, contando com muitas lojas conhecidas no setor
varejista. Alm dos
inmeros e variados estabelecimentos comerciais, a rua apresenta
uma grande
concentrao de ambulantes em toda a sua extenso, que destinada,
exclusivamente,
ao fluxo de pessoas (Fotografia 1). Quando andava por essa rua,
ficava sem saber