jurisprudência SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006 Proc. n.º 363-06 – 5.ª Secção Relator: Artur Rodrigues da Costa Adjuntos: Santos Carvalho, Costa Mortágua (vencidos); Arménio Sottomayor Presidente da Secção: Alfredo Gonçalves Pereira Descritores: Homicídio - Ocultação e profanação de cadáver- Autópsia (impossibilidade de …) - Prova do crime – Júri - Recurso do Tribunal de júri (amplitude) - Documentação da prova na acta de audiência - Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP – Fundamentação - Princípio da livre convicção – Reconstituição - Conversas informais - Provas indirectas - Depoimento de ouvir dizer - Depoimento de órgãos de polícia criminal - Princípio in dubio pro reo - Especial censurabilidade e perversidade - Dolo eventual - Medida da pena verbojuridico ® ______________ ABRIL 2006
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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006 Proc. n.º 363-06 – 5.ª Secção Relator: Artur Rodrigues da Costa Adjuntos: Santos Carvalho, Costa Mortágua (vencidos); Arménio Sottomayor Presidente da Secção: Alfredo Gonçalves Pereira Descritores: Homicídio - Ocultação e profanação de cadáver- Autópsia (impossibilidade de …) - Prova do crime – Júri - Recurso do Tribunal de júri (amplitude) - Documentação da prova na acta de audiência - Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP – Fundamentação - Princípio da livre convicção – Reconstituição - Conversas informais - Provas indirectas - Depoimento de ouvir dizer - Depoimento de órgãos de polícia criminal - Princípio in dubio pro reo - Especial censurabilidade e perversidade - Dolo eventual - Medida da pena
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ABRIL 2006
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Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
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LHomicídio Ocultação e profanação de cadáver Autópsia (impossibilidade de …) Prova do crime Júri Recurso do Tribunal de júri (amplitude) Documentação da prova na acta de audiência Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP Fundamentação Princípio da livre convicção Reconstituição Conversas informais Provas indirectas Depoimento de ouvir dizer Depoimento de órgãos de polícia criminal Princípio in dubio pro reo Especial censurabilidade e perversidade Dolo eventual Medida da pena
1 - A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente os vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no caso de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem, sendo certo que os riscos de impunidade são acrescidos, quer por força de uma alta criminalidade de teor sofisticado, quer por força do engenho ou sorte ocasional do criminoso comum, que consiga desfazer-se da principal prova directa do seu crime.
2 - O risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver ou de algum vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
3 - Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes de homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de violação só porque não foi possível o exame directo à vítima.
4 - Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e a de presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento típico a morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte (v.g., o crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo, mas, na impossibilidade de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha, devem ser admitidos outros meios de prova que indiquem “a certeza moral sobre a ocorrência do evento” (N... Hungria).
5 - O tribunal de júri tem uma legitimidade acrescida, pois a sua constitucionalização para o julgamento dos crimes mais graves, embora a sua participação não seja obrigatória (art. 207.º da lei fundamental), se inscreve nos princípios
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fundamentais do Estado de direito democrático no que toca à democratização da organização judiciária (JORGE MIRANDA Constituição e Democracia – Livraria Petrony, 1976, p. 308 e ss.).
6 - Não quer isto dizer, todavia, que a simples participação de jurados exclua ou atenue o controle que deve ser exercido pela instância de recurso sobre o processo de formação da convicção do tribunal «a quo», mas, neste caso, a convicção, para além de estar escudada numa fundamentação exaustiva, tem a suplementar garantia de nesse processo ter intervindo um tribunal de júri, assegurando-lhe uma maior democraticidade, o que quer dizer, uma base mais ampla e diversificada, de composição plural e heterogénea, como expressão concentrada da própria fonte de onde emana a soberania e, portanto, uma maior fiabilidade.
7 - Ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se pode recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-se directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de se invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, “desde que o vício (no caso do n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
8 - Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte. 9 - A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas; servirá ainda para se aquilatar se foi ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não nega ao arguido o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P., nem determina a repetição do julgamento, pois o recurso da matéria de facto não passa, no caso de julgamento com Júri, pela reapreciação da prova documentada na acta.
10 - A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena .
11 - O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.
12 - O erro notório na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências
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físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova; existe erro notório na apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto» (Acórdão de 30/1/2002, Proc. n.º 30/1/2002, da 3ª Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual 2002, p. 16/17), sendo que essa prova, não pode ser outra que não a que serviu de base à fundamentação da convicção do tribunal, visto o erro ter de decorrer do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos extrínsecos.
13 - Em qualquer caso, o erro tem de ser perceptível pelo homem médio, que é uma outra forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como tem postulado a quase esmagadora maioria da jurisprudência deste Supremo.
14 - Para além de a fundamentação constituir a pedra-de-toque de qualquer decisão e uma das vertentes fundamentais do «compromisso» democrático do órgão de soberania «tribunais» com o povo e uma decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigos 2.º, 3.º, 202.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1, todos da Constituição), a fundamentação deve ser mais exigente e tão minuciosa quanto possível no caso de crime de homicídio em que não apareceu o corpo da vítima e não foi possível realizar o exame ao respectivo cadáver para determinação exacta da causa da morte, tendo, além disso, os arguidos optado pelo direito ao silêncio e não havendo testemunhas directas dos factos.
14 - A decisão cumpre as exigências de fundamentação se suporta com plausibilidade, segundo o processo que foi objectivado no raciocínio lógico que guiou a interpretação de todas as provas conjugadas entre si e com as regras da experiência, a opção que foi tomada em matéria de facto, surgindo essa solução como consequência lógica e adequada à realidade das coisas, tendo em vista as provas de que se serviu o tribunal e as ilações que segundo tal realidade – a da experiência vivida - elas permitiam.
15 - A reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio, sem que tal configure violação do art. 357.º do CPP. 16 - A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de «declarações», pois o discurso ou «declarações» produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto.
17 - As chamadas «conversas informais» são declarações prestadas pelo arguido a órgãos de polícia criminal à margem do processo, sem redução a auto e, portanto, sem respeitarem o princípio da legalidade processual decorrente dos artigos 2.º, 57.º e segs., 262.º e segs., 275.º, 355.º a 357.º do CPP e art. 29.º da Constituição (nulla pena sine judicio), não podendo as declarações assim produzidas serem valoradas como meio de prova e concorrerem para a formação da convicção do tribunal.
18 - As informações prestadas pelo arguido no acto de reconstituição não são declarações feitas à margem do processo a órgão de polícia criminal; são a verbalização do acto de reconstituição validamente efectuado no processo, de acordo com as normas atinentes a este meio de prova e particularmente com o prescrito no art. 150.º do CPP, e mesmo que prestadas, neste e naquele passo, a solicitação de órgão de polícia criminal ou do Ministério Público, destinam-se no geral a esclarecer o próprio acto de reconstituição, com ele se confundindo.
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19 - Se o arguido que faz a reconstituição envolve outro arguido, a prova que dai resulta contra este último será havida como corroborada, numa exigência acrescida de prova, se ela for confirmada por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, que, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência, mostrem a veracidade da reconstituição relativamente a esse arguido, que no julgamento optou pelo direito ao silêncio, bem como o que procedeu à reconstituição. 20 - Tendo todas estas provas e nomeadamente a reconstituição sido produzidas e examinadas na audiência e como tal sujeitas ao princípio do contraditório, não podendo a recorrente invocar a opção pelo silêncio de ambos os arguidos para arguir, por exemplo, a violação do princípio da cross examination em relação às «declarações» que incorporam o próprio acto de reconstituição, pois uma tal pretensão está para além do círculo de interesses que constituem a protecção essencial daquele direito, integrado no direito à defesa. 21 - As provas indirectas são as que permitem a apreensão dos factos probandos a partir de deduções e induções objectiváveis a partir de factos indiciários, segundo as regras gerais da experiência.
22 - Se a impossibilidade de ouvir a fonte citada pelas testemunhas de ouvir dizer resultar do direito ao silêncio a que se remeteram os arguidos, que assim nada declararam sobre os factos versados nos depoimentos, estando presentes na audiência, essa impossibilidade não é substancialmente diferente da situação prevista na lei de impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada; e se a isso acrescer que a prova dos factos não resultou em exclusivo dos referidos depoimentos indirectos, pois foi mais um elemento (não decisivo) no conjunto das provas produzidas, e que o tribunal agiu com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da lógica e da experiência, será de concluir que a valoração dos depoimentos nesses termos relativos não ofendeu o disposto no art. 129.º do CPP, em correlação com os direitos dos arguidos, nomeadamente o direito de defesa consignado no art. 32.º , n.ºs 1 e 5 da Constituição.
23 - A lei só exclui o testemunho das entidades policiais que verse o conteúdo de declarações por elas tomadas, sendo completamente descabido que as referidas entidades não pudessem depor sobre todos aqueles factos em relação aos quais o seu posicionamento não foi outro senão o de observadoras ou de intervenientes e observadoras, que, por terem neles participado, tiveram desses factos um conhecimento privilegiado. 24 - A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova com expressão constitucional ao nível dos direitos fundamentais, pode ser sindicado pelo STJ.
25 - Todavia, essa sindicação tem de exercer-se dentro dos limites de cognição desse Tribunal, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP. Ou seja: quando, através de análise pertinente, se mostre que o tribunal recorrido valorou contra o arguido uma determinada prova, apesar da subsistência de uma dúvida razoável, ou porque o tribunal manifestamente desfavoreceu o arguido nessa situação, ou porque por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como provado contra o arguido um determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova, extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorizada a seu favor, ou ainda quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da
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convicção, a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
26 - Ocorre uma especial censurabilidade se a arguida era ascendente da vítima, tendo o especial dever de não cometer o crime e até de evitar o resultado por meio de acção adequada, por força de um especial dever de garante (Cf. TAIPA DE CARVALHO, Comentário …, p. 846 e ss.) e em segundo lugar, se ambos os arguidos praticaram o crime contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, a isso acrescendo, e no que diz respeito a um dos arguidos, o facto de ser tio da menor, o que, por um lado, lhe conferia um dever especial, embora não equiparável ao da mãe, de zelar pela saúde e bem-estar da sobrinha, e ainda o facto de terem ambos agido contra a menor, praticando actos de considerável violência sobre ela.
27 - Esse cicunstancialismo, aliado às circunstâncias previstas nos exemplos-padrão (alíneas a) e b) do n.º 2, no caso da arguida L, e alínea b), no caso do arguido J, revelam uma especial censurabilidade, uma culpa acrescida que qualificam o crime de homicídio, mas só pelas referidas alíneas, que não também pela alínea d), pois, não se sabendo qual o motivo que levou à prática do crime, não pode esse motivo ignorado ser qualificado de fútil ou torpe. 28 - O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual 29 - Tendo o crime sido cometido com dolo eventual, segundo a factualidade provada, ou seja, a forma mais enfraquecida de dolo, esse facto não pode deixar de ter repercussões consideráveis em sede de determinação da pena. 30 - Sendo embora altamente censurável a forma como os arguidos agiram, estando esse acréscimo de censurabilidade já reflectido na opção pelo tipo qualificado e tendo as circunstâncias desvaliosas em que os arguidos actuaram, quer as referidas ao desvalor da conduta, quer as referidas ao desvalor da atitude do agente, sido determinantes para a qualificação dos factos, não podem as mesmas ser novamente valoradas em sede de determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.º do CP, sob pena de infracção do princípio da proibição de dupla valoração. 31 - Tendo os arguidos retalhado o corpo da vítima, que meteram em gavetas de uma arca frigorífica e tendo feito desaparecer esses restos mortais, sem deixarem rasto deles, e iludindo sucessivamente as entidades policiais sobre a sua localização, justifica-se que a pena concreta se fixe no máximo previsto no art. 254.º do CP, pois além da ocultação, houve também profanação de cadáver e em circunstâncias particularmente censuráveis.
Acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006 Proc. n.º 363-06 – 5.ª Secção Relator: Artur Rodrigues da Costa Adjuntos: Santos Carvalho, Costa Mortágua (vencidos); Arménio Sottomayor Presidente da Secção: Alfredo Gonçalves Pereira
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Proc. n.º 363/06-5 1 Data da decisão recorrida: 11/11/2005
Tribunal recorrido: Tribunal de Júri de Portimão (330/04-1)
Relator: Artur Rodrigues da Costa
Adjuntos: Conselheiros Santos Carvalho, Costa Mortágua e Arménio Sottomayor
I. RELATÓRIO
1. JOÃO …. e LEONOR … foram submetidos a julgamento em Tribunal de Júri, na
comarca de Portimão, pronunciados pela co-autoria, em concurso real, de um crime de homicídio
qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 131.° e 132.°, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d), um crime de
ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.°, n.º 1, al. a), e um outro crime de profanação de
cadáver, p.p. pelo art.º 254.°, n.º 1, al. b), todos do C. Penal.
Por Acórdão de 11 de Novembro de 2005, o Tribunal de Júri decidiu condenar:
A – João ...:
I- como co-autor material de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos art.ºs 131.° e
132.° n.ºs 1 e 2 alínea b), ambos do C. Penal, na pena de dezoito (18) anos de prisão;
II- como co-autor material de um crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º 1,
al. a), do C. Penal, na pena de vinte (20) meses de prisão;
III- e em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de dezanove (19) anos e dois (2)
meses de prisão;
B – Leonor ...:
I- como co-autora material de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos art.ºs 131.° e
132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), ambos do C. Penal, na pena de dezanove (19) anos de prisão;
II- como co-autora material de um crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º
1, al. a), do C. Penal, na pena de vinte e um (21) meses de prisão;
1 Este processo, por vencimento do relator inicial, Cons. Santos Carvalho, veio a caber ao presente relator, que era 1.º adjunto. Convém, no entanto, especificar que, tanto quanto possível, se manteve o texto do anterior relator, modificando-se o mesmo nas partes essenciais sobre que incidiu a discordância. Estas alterações incidiram sobretudo a partir do ponto 11. 3. em diante, aproveitando-se, no entanto, certas partes do texto do primitivo relator que não colidiam com os pontos de vista adoptados.
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III- e em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de vinte (20) anos e quatro (4)
meses de prisão.
Do restante que lhes era imputado foram os arguidos absolvidos.
2. No decurso da audiência em Portimão o Ministério Público requereu, “para completo
esclarecimento dos factos, que se proceda ao visionamento em audiência da gravação vídeo da
reconstituição dos factos elaborada no dia 25.09.2004”. Dada a palavra aos defensores dos
arguidos pelos mesmos foi dito que “os arguidos não prestaram declarações e a diligência
realizada em sede de inquérito não tem valor probatório desacompanhada de outros elementos de
prova produzidos em audiência, pelo que não deverá ser deferido o douto requerimento do
Ministério Público”.
O Tribunal proferiu então o seguinte despacho: “Por se entender que a reconstituição dos
factos é um meio de prova legalmente admissível atento o disposto nos art.ºs 126.º e 127.º do CPP
e por se entender que o mesmo pode afigurar-se útil para a descoberta da verdade e boa decisão
da causa, decide o tribunal de júri deferir o requerimento do Ministério Público”.
Ambos os arguidos recorreram desse despacho por requerimento ditado para a acta e, no
final dessa sessão, “foi visionada a gravação vídeo dos factos elaborada em 25.09.2004”.
O recurso do arguido João ... não foi motivado em tempo e, portanto, não foi recebido, mas
o da arguida Leonor ... foi admitido a subir com o que viesse a ser interposto da decisão final.
E da motivação desse recurso interlocutório (por cuja decisão a arguida manifestou manter
interesse no recurso do Acórdão condenatório – art.º 412.º, n.º 5, do CPP), concluiu a mesma do
seguinte modo: 1° - Presumindo-se, em Direito, os Arguidos inocentes, e, determinando o Código de Processo Penal, as
regras da produção de prova em Audiência de Discussão e Julgamento, jamais poderia ter sido, durante a Audiência
de Julgamento, exibido o filme gravado durante o Inquérito, no qual o co-arguido João ... participou em diligência de
Inquérito, falando, quando, em sede de Julgamento, usando do direito que lhe assiste, não prestou quaisquer
declarações.
2° - A sede de produção da prova é o Julgamento, e o acto permitido pelo douto Tribunal "a quo" viola
frontalmente o disposto no artigo 357° do Código de Processo Penal, acarretando, para além da nulidade do
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inadmissível acto, a nulidade de toda a Decisão, caso houvesse lugar a condenação, designadamente, por completa
ausência de prova, e deficiente conclusão por parte dos Jurados, influenciados por acto nulo.
3° - A exibição do impugnado filme não vale como prova, o Tribunal não o poderá considerar como tal, e a
exibição de tal filme, contra as expressas regras processuais, fere de morte todo o Julgamento, que é de Tribunal de
Júri, para além de que é de nulo valor, manifestamente.
4° - Nos presentes autos, estão a ser julgados, em tribunal Colectivo COM INTERVENÇÃO DE JÚRI, os
Arguidos Leonor ..., e João ..., os quais, usando do Direito que lhes assiste, optaram por não prestar declarações no
Julgamento em que são Arguidos, não sendo admissível reprodução de declarações do Inquérito.
5°- O Tribunal de Júri é composto por três Juízes de Direito, e por quatro cidadãos, sorteados das listas de
eleitores, os quais não têm formação jurídica, sendo compreensível que desconheçam as regras de produção da prova
em sede de Julgamento, havendo que os proteger de qualquer vício na Decisão.
6° - A Lei Processual Penal define as regras da produção de Prova, em Audiência de Julgamento, vedando
reproduções, designadamente, de declarações de Arguidos, durante o Inquérito, quando as não prestaram em
Julgamento.
7° - A única matéria a considerar, deverá ser a que é discutida em sede de Julgamento, e as provas só são as
admissíveis, sendo nulas todas as que contrariem as exigências do Código.
8° - É da produção de prova, cuja única sede é o Julgamento, que deverão resultar as respostas, havendo que
respeitar as regras processuais definidas no C.P.P..
9° - É claro, e não oferece contestação, que eventuais declarações de Arguidos, em sede de Inquérito, não
podem ser utilizados em Julgamento, não podendo ser reproduzidas, se os mesmos optaram por não prestar
declarações, no exercício do Direito que a Lei lhes confere.
10°- O douto Requerimento do Ministério Público ia no sentido de ser exibido um filme, no qual o co-
arguido João ... fala - declara - acerca da matéria objecto do Inquérito, e realizado durante aquela fase processual.
11º - A Defesa, designadamente a ora Recorrente, opôs-se à exibição de tal filme, em Audiência de
Discussão e Julgamento, o que, não tendo sido deferido, levou a que, de imediato, fosse interposto o competente
Recurso para o STJ, que ora se motiva.
12° - O douto Tribunal "a quo" ordenou a exibição do filme, realizado durante o Inquérito, que contém
declarações de Arguido que, em Julgamento, optou por não prestar quaisquer declarações, violando a regra do artigo
357° do C.P.P..
13° - Sabido que é que o co-arguido da ora Recorrente não prestou declarações em Julgamento, e nada
requereu, nunca o douto Tribunal poderia permitir a exibição do filme, como fez, contrariando uma disposição legal,
que não admite diferente interpretação, com o risco de influenciar os Jurados, que, de Processo Penal, não entendem.
14° - Foi grave a violação do disposto no artigo 357° do C.P.P., porque bem sabe o douto Tribunal que tal
nunca poderia ser admitido como prova, mas mais grave, ainda, porque, tratando se de um Julgamento com Jurados,
poderiam estes, e esperemos que não, ser influenciados, e decidir contra as mais elementares regras de Justiça,
produzindo uma Decisão NULA, com tudo quanto tal implica.
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15°- Facto é que, mesmo que não valha como prova, foi visionado o filme, os Jurados viram-no, e a ausência
de formação jurídica, poderá levá-los a ignorar as regras, que, aliás, desconhecem, e concluir por uma culpa quando é
completa a ausência de prova, e quando outra decisão que não a absolvição, jamais teria lugar.
16° - Em Juízo, as regras impõem que só determinadas provas sejam admitidas, as válidas, aquelas que são
admissíveis, e ESTA, não o é, certamente, pelo que está votada à nulidade, como nula será qualquer decisão que
implique condenação.
17º - Se os Juristas, becados, ou togados, e outros, o sabem, os Jurados, aqueles elementos do povo,
sorteados das listas de eleitores, que não têm formação jurídica, poderão ser influenciados, e dar como provado o que
nunca o poderia ser, contra as mais elementares exigências da produção da prova, assim inquinando todo o
Julgamento.
18°- Não valem os depoimentos indirectos, o "disseram-me", os que constam de depoimentos prestados por
terceiros, a profissionais no exercício da sua profissão, nem declarações prestadas em Inquérito, por Arguidos, que,
em sede de Julgamento, não prestaram declarações. Se os Jurados o não sabem, os Juristas sabem-no.
19º - Não devia ter sido admitida a exibição do filme em questão, pelo douto Tribunal "a quo", e tendo-o
permitido, violou o disposto no artigo 3570 nº 1 do Código de Processo Penal, cuja consequência é a
inadmissibilidade de validação de tal, como prova, tendo, ainda, como consequência, a viciação da Decisão em sede
de apreciação da matéria de facto por parte dos Jurados, e que, lamentando-se, acarretará a nulidade do Julgamento,
para além da necessária absolvição dos Arguidos, a restituir à liberdade no dia da leitura do douto Acórdão a proferir.
Termos em que,
deve o presente Recurso merecer provimento, consequentemente se revogando o douto Despacho que
admitiu a exibição do filme realizado em sede de Inquérito, com todas as demais e legais consequências.
3. O Ministério Público na 1ª instância respondeu a esse recurso intercalar e concluiu do
seguinte modo: 1 – A motivação do recurso não se mostra efectuada em obediência ao disposto no art.º 412º do CPP, pois
que as conclusões não passam de mera reprodução da motivação, apenas tendo sido numerados os seus
parágrafos;
2 – Não existiu violação do art.º 357º do CPP, pois que não se procedeu a qualquer leitura de declarações
anteriormente prestadas pelos arguidos;
3 – O tribunal apenas visionou o auto de reconstituição em que participou um dos arguidos (que não a
recorrente), acompanhado pela sua Ilustre defensora oficiosa e, assim, com todas as garantias de defesa;
4 - A prova por reconstituição não se confunde com prova por declarações, tendo objectivos e formulação
distintos;
5 – Pelo que não foi violada a norma jurídica invocada, nem qualquer outra;
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6 – As críticas que são feitas aos jurados são irrelevantes e inconsequentes, não passando de crítica a uma
instituição prevista na Constituição, não sendo legítimo levantar suspeitas quanto à idoneidade dos jurados
apenas por os mesmos não serem necessariamente juízes de carreira.
Pelo que, no entender do Ministério Público, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pela arguida
LEONOR ....
4. O Ministério Público, a arguida Leonor ... e o arguido João ..., por esta ordem,
recorreram do acórdão final.
A – O Ministério Público concluiu que: 1. As penas de prisão impostas aos arguidos João e Leonor ... pecam por defeito;
2. Não correspondendo adequadamente à gravidade dos crimes por ambos praticados, ao modo de execução
dos mesmos, à qualidade da vítima, aos sentimentos manifestados na execução, ao comportamento posterior dos
arguidos e às características psicológicas destes;
3. Tendo sido, deste modo, violado o disposto nos art.ºs. 40º e 71° do Código Penal;
4. Necessária sendo a imposição de penas concretas de quantitativo superior, pois que a finalidade de
reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e
medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida
pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para
realizar tais finalidades;
5. No caso, as penas concretamente impostas encontram-se em oposição directa aos fundamentos expressos
para a sua escolha, bem traduzidos pela frase "dificilmente se encontrará um caso de homicídio em que a acção dos
arguidos seja mais grave e desvaliosa"
6. Não sendo de prever que a benevolência demonstrada pelo colectivo de juízes e jurados - ao impor aos
arguidos penas próximas ao ponto médio entre o mínimo e o máximo previsto
para o crime de homicídio qualificado, inferior a este ponto médio no caso do arguido João, contribua para a
efectiva ressocialização;
7. Muito menos em termos de prevenção geral e especial;
8. E muito menos ainda quando, como decorre das perícias às personalidades dos arguidos - e foi dado como
provado - o arguido João ... manifesta desprezo pela vida humana - resultado de mau ajustamento social e de frieza
afectiva - e tem tendências anti-sociais/psicopáticas com dificuldade de controlo dos impulsos, que o leva a ser
agressivo, tentando solucionar os conflitos através de tal agressividade, não sentindo remorsos pelas consequências
dos actos que assim leva a cabo, desprezando os direitos, desejos ou sentimentos dos outros, e a arguida Leonor ...
manifesta comportamento socialmente desviante ao nível das normas, valores e responsabilidades, instabilidade
emocional e dificuldades em expressar a frustração, sendo a sua socialização marcada por relações interpessoais
imaturas, superficiais e narcísicas, onde estão salientes as características de manipulação (para satisfação das próprias
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necessidades) e agressividade (de tonalidade sobretudo sádica), salientando-se na sua personalidade a ausência de
empatia e a insensibilidade, o que leva ao desprezo da arguida pelos direitos, necessidades e sentimentos dos outros,
para estes dirigindo a sua agressividade, tendo fraca capacidade para sentir remorsos. Possui personalidade limite com
traços anti-sociais/psicopáticos, narcísicos e esquizóides.
9. Antes se tornando necessário, em obediência aos preceitos legais atrás mencionados, agravar tais penas;
10. Entendendo-se que também no caso do crime de ocultação de cadáver deverão os arguido ser punidos
pelo máximo previsto na lei, tendo em conta que neste crime acabou por ficar englobada a prática de actos que,
separadamente, constituem o crime de profanação de cadáver;
11. Sendo ainda que as penas a impor aos arguidos deverão ser de igual montante, pois que, se a pena da
arguida Leonor deverá ser mais grave por via de ter sido vítima dos seus actos a sua própria filha, preciso é não
esquecer que o arguido João ... já tem antecedentes criminais precisamente na área dos crimes contra a vida.
12. E daqui que o douto acórdão recorrido deva ser alterado no sentido de aos arguidos serem impostas as
seguintes condenações:
- Ao arguido JOÃO ..., imposta a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico
entre as penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e 132°. nºs. 1 e
2, al. b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254°, nº 1, ai. a), ambos
do Código Penal.
- À arguida LEONOR ..., imposta a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante do cúmulo
jurídico das penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e 132°. nºs. 1 e
2, ais. a) e b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254°, nº 1, al. a), ambos
do Código Penal.
B - A Leonor ... concluiu que: 1° A Arguida Leonor, ora Recorrente, mantém, na íntegra, o Recurso oportunamente interposto em sede de
Audiência de Discussão e Julgamento, o qual mantém actualidade, e que deverá ser apreciado com o presente, com as
legais consequências.
2° A Arguida Leonor não tem que produzir prova da sua presumida inocência, não chegando, para a
condenar, que, designadamente, apesar de ter calças encarnadas, tivesse blusa preta, ou que, porque que perguntaram
no passado, respondeu nos mesmos termos, não sendo admissíveis improcedentes interpretações dos artigos 129°
356°-7 e 357° do Código de Processo Penal, manifestamente violados.
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3° Ao Tribunal só é legítimo decidir com base na prova validamente produzida em sede de Discussão e
Julgamento, que deve ser gravada, em obediência ao vertido nos artigos 32°-2 da C.R.P., e 356°-7, 357° e 124° e
Seg.s, e 363° do C.P.P., sendo inválidas provas indirectas, reproduções de depoimentos prestados em sede de
Inquérito, designadamente, como aquelas em que se refere ter sido fundada a convicção do douto Tribunal "a quo ",
pelo que se verifica insuficiência de matéria de facto para decidir, e, muito menos, para condenar, para além de erro
notório na apreciação da prova.
4º A prova de ouvir dizer, em que se formou a convicção do douto Tribunal "a quo", é inadmissível, nos
termos do disposto no artigo 129° do C.P.P., em que se violou também, o disposto nos artigos 356°-7 e 357° do
C.P.P., pelo que, sem outros, e imprescindíveis elementos, não poderia o douto Tribunal "a quo" ter condenado a ora
Recorrente, que deve ser absolvida, merecendo provimento o presente Recurso, verificando-se ter ocorrido errada
apreciação da prova, contra o legalmente estabelecido, não valendo depoimentos de Inspectores da P.J., que ouviram
determinados depoimentos, nem os de outros, terceiros, que dizem ter falado e ouvido dos Arguidos....
5° O depoimento indirecto, ou por ouvir dizer, depende de confirmação, que nunca ocorreu, razão por que
não poderá ser considerado.
6° O princípio da Livre Apreciação da Prova vertido no artigo 127° do C.P.P., deve ter um suporte fáctico
que, concretamente, inexiste, e, da análise de todos os elementos, a única decisão a proferir, devia ter sido a
absolvição da ora Recorrente, por via da manifesta ausência de matéria de facto, e de prova válida que a suporte.
7° Não existe excepção ao princípio da obrigatoriedade de registo da prova vertido no artigo 363° do C.P.P.,
pelo que a não documentação das declarações prestadas oralmente em Audiência, viola tal disposição legal, para além
de que nega à Arguida o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P., o que determina a repetição
do Julgamento, nos termos do disposto nos artigos 410° nº 2 e 426° nº 1, ambos do C.P.P., cuja consequência é o
reenvio do Processo para repetição do Julgamento.
8º A realização do Julgamento não deve permitir influências na formação da convicção dos Julgadores, no
caso concreto, Colectivo de Juízes e Jurados, em número de quatro, e a reprodução de que se interpôs Recurso poderá
ter interferido na convicção dos Jurados, que desconhecem que tipos de provas, directas ou indirectas, são válidos
para a apreciação da causa
9° Não podem ser reproduzidas declarações de Arguidos, que optaram por exercer o direito de não prestar
declarações, sob pena de violação do disposto no artigo 357° do C.P.P., e o depoimento indirecto é inadmissível, nos
termos do disposto no artigo 129°-1 do C.P.P., tendo o douto Tribunal "a quo" formado a sua convicção sem matéria
de facto, por um lado, de forma irremediavelmente contraditória, por outro, e com base em provas legalmente
inválidas, não podendo o Julgamento deixar de ser anulado.
10° Na dúvida, ou na ausência de certeza, cabe a absolvição da Arguida, em obediência ao Princípio "in
dubio pro reo ", e, inexiste a menor certeza de que a Leonor tenha praticado a factualidade por que veio condenada no
douto Acórdão, a revogar, por provimento do presente Recurso.
11º Declarações de co-arguido não valem como testemunho, nem como prova, nem relativamente a si, nem
relativamente a co-arguido, pelo que as referências a qualquer reconstituição, em que a Recorrente não participou, não
poderão ser atendidas como prova, o que determinará a anulação do Julgamento, para além de todo o mais.
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12° . Não constando da Acta respectiva que fosse permitida a inquirição dos Inspectores da P. J., não valem
tais depoimentos, nos termos do disposto no nº 7 do artigo 356° do Código de Processo Penal.
13° Ao não ter procedido ao registo da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, o douto
Tribunal "a quo" praticou uma inconstitucionalidade, por violação do artigo 32°-1 da C.R.P., e negou aos Arguidos o
Direito de Recurso de Matéria de Facto, além de que violou o disposto no artigo 363° do C. P. P., não sendo possível
ultrapassar tais nulidades, sem que seja repetido o Julgamento.
14° O douto Tribunal "a quo "fez errada análise dos factos ao ignorar que as perguntas feitas à Leonor, na
entrevista a que se refere, eram feitas no passado, que envergava calças encarnadas, bem como noutras conclusões a
que nos referimos supra designadamente quando concluiu que a Joana chegou a casa, só porque o vizinho que a viu
passar não ouviu gritos, nem viu carros, para além de que condenou por crime qualificado, depois de não ter dado por
provada a intenção de matar, designadamente, outra consequência não sendo possível que o reenvio do Processo para
repetição do Julgamento..
15° O douto Tribunal "a quo" devia ter absolvido a Arguida Leonor, ora Recorrente, em face das dúvidas
evidentes, e da falta de prova bastante, validamente produzida, em obediência do Princípio "in dubio pro reo ", uma
vez que, do Julgamento, e de todo o mais, nenhuma certeza resultou de que a Recorrente tivesse praticado, ou
participado na factualidade por que veio a ser condenada em 1ª Instância, não podendo concluir-se, em face dos
factos, pela culpa, para cuja prova nada existe.
16° Ao condenar a ora Recorrente, em vez de a absolver, como devia ter feito, decidindo como fez, o douto
Tribunal "a quo" violou o Princípio da Presunção de Inocência - in dubio pro reo - o disposto nos artigos 32° nºs 1 e 2
da Constituição da República Portuguesa, 356°-7, 357° 127° 128°-1, 129°-1, 133°-1 a), 136°-1 e 363° do Código de
Processo Penal, designadamente.
17º Para além disso, e conforme referido supra, verifica-se insuficiência de matéria de facto, para a Decisão,
contradição insanável da fundamentação, e erro notório na apreciação da prova, pelo que, nos termos do disposto nos
artigos 410° nº 2, a), b) e c), e 426° do Código de Processo Penal, não sendo possível decidir a causa, deverá ser
reenviado o Processo para repetição do Julgamento, caso se entenda não revogar o douto Acórdão ora em Recurso, e
substituir por outro que absolva a Arguida ora Recorrente.
Nestes termos e nos demais que Vs Exas. doutamente suprirão, a não ser o douto Acórdão de fls. anulado e
reenviado o Processo para repetição do Julgamento, face a eventuais e alegadas nulidades, aliás, do conhecimento
oficioso, o que se requer, deverá o douto Acórdão ora recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva a
Arguida Leonor, ora Recorrente, e, consequentemente, determine a sua imediata restituição à liberdade.
C - O João ... concluiu que:
1. Está em causa a liberdade de um ser humano, que se presume inocente até trânsito em julgado da sentença e
a quem assiste, em caso de dúvida razoável, o princípio in dubio pro reo.
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2. O processo penal, numa óptica jurídico-processual, tem por finalidades, na aplicação da lei penal aos casos
concretos, a descoberta da verdade material e a realização da justiça, por meios processualmente admissíveis.
3. Vigora o PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA, nos termos do qual, em caso de dúvida quanto à
matéria probatória, a decisão deve ser a mais favorável ao arguido, implicando a inadmissibilidade da
presunção da culpa.
4. A presunção da inocência, como corolário do respeito pela dignidade da pessoa humana impõe que o
processo penal seja justo, não se conformando, por isso, com um tratamento privilegiado de um qualquer
meio de prova, mesmo que de uma confissão se trate, como resulta do disposto no art.º 344º do C.P.P.
5. O silêncio é um direito do arguido, consagrado nos art.ºs 61º nº 1 alínea c) e 141º nº 5 do C.P.P.
6. O exercício, por parte do arguido, do seu direito ao silêncio nunca o pode desfavorecer, como resulta do
disposto nos art.ºs. 343º nº 1 e 345º nº 1 do C.P.P..
7. Vigora a proibição do arguido ser utilizado como meio de prova, o art.º 141º nº 5 do CPP, ao preceituar que
seja garantida a liberdade do arguido de prestar ou não declarações e de que, prestando-as, não lhe é exigível
que diga a verdade.
8. O CPP define regras inderrogáveis de produção de prova em audiência de discussão e julgamento.
9. Não valem em julgamento, designadamente para formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que
não tenham sido, igualmente de forma válida, produzidas ou examinadas em audiência, cfr. art.º 355º nºs 1 e
2 do CPP.
10. Recusando-se o arguido a prestar declarações em audiência, a leitura dos autos que contenham declarações
suas é proibida, cfr. decorre do disposto no já citado art.º 357º do CPP.
11. O arguido ora recorrente e a co-arguida, estão a ser julgados em Tribunal Colectivo com intervenção de Júri.
12. No uso do direito que lhe assiste, o arguido, em audiência de discussão e julgamento, não prestou
declarações.
13. Tão pouco usou da faculdade, que igualmente lhe assiste, de requerer a leitura de quaisquer declarações que
aa ddeecciissããoo ddaa mmaattéérriiaa ddee ffaaccttoo pprroovvaaddaa,, qquuaall aa ccoonnttrraaddiiççããoo –– ee iinnssaannáávveell –– ddaa ffuunnddaammeennttaaççããoo oouu eennttrree eessttaa ee aa ddeecciissããoo,,
6. A Sr.ª Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça apôs o seu visto,
para alegar oralmente em audiência.
7. Colhidos os vistos foi realizada a audiência com o formalismo legal.
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O Ministério Público, produzindo alegações orais, defendeu no geral a posição do
Ministério Público na 1ª instância.
A defesa dos arguidos, por seu turno, também alegou no sentido traçado pelas respectivas
motivações de recurso e cujas conclusões se acham reproduzidas em 2. e 4.
8. As questões a decidir são as seguintes:
No recurso intercalar da arguida Leonor ...:
1ª- Podia ter sido exibido na audiência de julgamento o filme gravado durante o inquérito,
no qual o co-arguido João ... participou em diligência de reconstituição dos factos, falando,
quando, em sede de julgamento, usando do direito que lhe assiste, não prestou quaisquer
declarações?
2ª- Essa exibição do vídeo violou frontalmente o disposto no artigo 357° do Código de
Processo Penal, acarretando também nulidade de toda a decisão condenatória, por ausência de
prova e influência ilegal na formação da convicção dos jurados?
Nos recursos do Acórdão final, o Tribunal coloca, desde logo, a seguinte questão:
4ª- Os crimes de homicídio, ocultação e profanação de cadáver podem verificar-se num
caso em que o cadáver, ou sequer parte dele, foi encontrado?
No recurso principal da arguida Leonor ...:
5ª- Não existe excepção ao princípio da obrigatoriedade de registo da prova vertido no
artigo 363° do C.P.P., pelo que a não documentação das declarações prestadas oralmente em
audiência viola tal disposição legal, para além de que nega à arguida o direito constitucional de
recorrer de facto – art.º 32.º, n.º 1, da C.R.P., o que determina a repetição do julgamento, nos
termos do disposto nos artigos 410.º, n.º 2, e 426.º, n.º 1, ambos do CPP?
6ª- As provas reunidas contra a arguida Leonor ..., tendo em atenção o valor que deve ser
atribuído às reconstituições em que não participou e à falta de valor dos depoimentos de ouvir
dizer, designadamente os inspectores da PJ e outras testemunhas, são insuficientes para lhe
imputar os crimes por que foi condenada, pelo que existe erro notório na apreciação da prova,
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insuficiência da matéria de facto provada para a decisão e contradição insanável entre a
fundamentação e a decisão, para além de violação do princípio in dubio pro reo?
7ª- Se assim não se entender, a qualificação como homicídio qualificado não se justifica, já
que o tribunal não deu como provado o dolo directo?
No recurso do arguido João ...:
8ª- A “reconstituição” de 25/09/2005 está ferida de nulidade, não podendo ser utilizada por
violação do disposto no citado art.º 126º do CPP, pois o arguido esteve votado a um desgaste
físico e psicológico, impedido que esteve de descansar por mais de 80 horas?
9ª- O documento de fls. 1885 é anexo e parte integrante de um auto de interrogatório de
arguido em sede de inquérito – fls. 1878 – perante órgão de polícia criminal, no qual a testemunha
VR foi inquiridor, mas, por força do n.º 7 do art. 356.° do CPP, para o qual remete o n.º 2 do art.
357.°, não é permitido a reprodução do conteúdo das declarações cuja leitura não é autorizada,
com recurso a quem as tiver recolhido, cuja consequência legal é a nulidade insanável, nunca
podendo aquela ser validada como prova ou valorada como tal para efeitos de decisão
condenatória?
10ª- Dando-se por provado o facto a que se refere a alínea a) (os arguidos são irmãos), o
acórdão recorrido é completamente omisso quanto aos meios de prova que serviram de base à
formação da convicção do Tribunal, e violou do dever de fundamentação, imposto nos art.ºs 374.º,
n.º 2, e 379.º, alínea a), do CPP?
11ª- O ponto 87 da Pronúncia – “Esquecendo-se de guardar nos sacos os sapatos que a
menor tinha calçados, pelo que todos os seus pares de sapatos ficaram na casa”, é diferente do
facto provado sob a alínea ao): “os arguidos não colocaram os sapatos que a menor tinha calçados
nos sacos, tendo ficado em casa todos os pares de sapatos que a menor utilizava naquele Verão”,
pelo que o que foi considerado provado diverge amplamente da imputação da pronúncia e devia o
tribunal ter tirado daí as necessárias consequências e, não o tendo feito, incorreu em omissão de
pronúncia, cuja consequência legal é a nulidade da sentença?
12ª- O mesmo sucedendo com a alínea aab) em contraposição com o ponto 105: a arguida
por vezes falava da filha no passado e vestia blusa preta é indiscutivelmente diferente de “estar de
luto” como se pretende na pronúncia?
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13ª- O mesmo sucedendo também quanto aos pontos 12, 16, 21, 24, 30, 31, 41, 47, 51, 52,
53, 54, 57, 59, 60, 68, 69, 73, 80, 83, 91, 96, 107, 113, 114, 117 e 125, em contraposição com os
factos dados como provados, tudo consistindo numa cL... omissão de pronúncia, cominada com
nulidade?
14ª- Existe uma condenação por factos diversos dos descritos na acusação, o que nos
termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 379º do CPP redunda na nulidade da decisão ora recorrida?
15ª- É manifesta a existência dos vícios do art.º 410º nº 2 do CPP, nomeadamente
insuficiência da matéria de facto, contradição insanável na fundamentação e entre a
fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da mesma, pelo que há que determinar a
repetição do julgamento para operar o suprimento dos mesmos?
16ª- O acórdão ora recorrido sofre de nulidade insuprível por falta de indicação de provas
que serviram para formar a convicção do julgador?
17ª- É nulo o acórdão recorrido por não conter a enumeração e todos os factos relevantes
para a decisão da causa, provados e não provados, desta feita os constantes da acusação?
18ª- Persiste uma dúvida razoável quanto à responsabilidade do arguido pelos factos de
que vem acusado e o Tribunal “a quo” violou o princípio da presunção da inocência consagrado
constitucionalmente no art.º 32.º, n.º 2, da CRP?
No recurso do Ministério Público:
19ª- As penas concretamente impostas aos arguidos pelo homicídio encontram-se em
oposição directa aos fundamentos expressos para a sua escolha, bem traduzidos pela frase
"dificilmente se encontrará um caso de homicídio em que a acção dos arguidos seja mais grave e
desvaliosa" e as exigências de prevenção geral e especial, esta espelhada nas perícias às suas
personalidades, pelo que se impõe um agravamento das mesmas?
20ª- No caso do crime de ocultação de cadáver deverão os arguidos ser punidos pelo
máximo previsto na lei, tendo em conta que neste crime acabou por ficar englobada a prática de
actos que, separadamente, constituem o crime de profanação de cadáver?
21ª- As penas a impor aos arguidos deverão ser de igual montante, pois que, se a pena da
arguida Leonor deverá ser mais grave por via de ter sido vítima dos seus actos a sua própria filha,
preciso é não esquecer que o arguido João ... já tem antecedentes criminais precisamente na área
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dos crimes contra a vida, pelo que a pena única para cada um deverá ser fixada em 23 anos de
prisão?
II. FUNDAMENTAÇÃO
9. Matéria de facto segundo o tribunal recorrido
9. 1. Factos dados como provados: a) os arguidos são irmãos entre si;
b) o arguido João ... nunca teve emprego nem residência certos, vivendo no interior de um veículo automóvel, ou em
casa dos seus irmãos, sobrevivendo à custa de trabalhos ocasionais que levava a cabo em diversos locais;
c) o arguido João ... manifesta desprezo pela vida humana – resultado de mau ajustamento social e de frieza afectiva –
e tem tendências anti-sociais/psicopáticas com dificuldade de controlo dos impulsos, que o leva a ser agressivo,
tentando solucionar os conflitos através de tal agressividade, não sentindo remorsos pelas consequências dos actos
que assim leva a cabo, desprezando os direitos, desejos ou sentimentos dos outros;
d) por acórdão transitado em julgado, e proferido em 10.11.1993, foi o arguido João ... condenado na pena de 4 anos
de prisão pela prática, em 2.10.1992, de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 74º e
131º do Cód. Penal, constando de tal acórdão que o arguido foi convencido, por um terceiro que vivia com uma das
irmãs do arguido (Maria João) a tirar a vida a outro que antes o tinha deixado cego, a troco de 20.000$00 e um
velocípede com motor (cfr. a certidão de fls. 675 ss que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos
legais);
e) a arguida Leonor ... manifesta comportamento socialmente desviante ao nível das normas, valores e
responsabilidades, instabilidade emocional e dificuldades em expressar a frustração, sendo a sua socialização marcada
por relações interpessoais imaturas, superficiais e narcísicas, onde estão salientes as características de manipulação
(para satisfação das próprias necessidades) e agressividade (de tonalidade sobretudo sádica), salientando-se na sua
personalidade a ausência de empatia e a insensibilidade, o que leva ao desprezo da arguida pelos direitos,
necessidades e sentimentos dos outros, para estes dirigindo a sua agressividade, tendo fraca capacidade para sentir
remorsos; possui personalidade limite com traços anti-sociais/psicopáticos, narcísicos e esquizóides;
f) a arguida Leonor ..., que teve seis filhos de cinco relações, ao longo da sua vida tem vindo a mostrar algum
desinteresse pelos filhos mais velhos;
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g) no que se refere à filha mais velha, D….. actualmente a morar como pai e a avó em Olhão, ali a deixou com 11
meses de idade, nunca mais dela se interessando, não curando de saber da mesma durante 14 anos;
h) o segundo filho, M….., que viveu com a avó paterna e vive actualmente com uma tia paterna, em Messines, foi
também por si deixado entregue ao pai, dele não se interessando mais;
i) o quarto filho, A….., que vive actualmente com o pai em Porches, quando tinha 7 meses foi deixado pela arguida
Leonor sozinho em casa, seguro na cadeira, tendo assim sido encontrado por vizinhos que se aperceberam da
situação;
j) nessa altura a arguida Leonor passou a viver com António ……., relação de que teve dois filhos, R… e L…;
l) o terceiro filho que teve foi Joana..., nascida a 31.05.1996, filha de P…..;
m) a menor Joana..., em Setembro de 2004, tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20 metros e 1,40 metros; 2
n) a menor Joana por vezes era triste;
o) a arguida Leonor não exercia qualquer actividade profissional;
p) quando a arguida se encontrava a viver com o companheiro L..., a menor Joana ajudava a mãe nalgumas tarefas
caseiras, sendo que às vezes ajudava a limpar a casa, tratava dos irmãos mais novos e fazia compras;
q) antes da arguida Leonor se encontrar a viver com o companheiro L..., pretendeu aquela deixar de ter a menor Joana
a seu cargo, tendo-a deixado, com 5 meses de idade com o pai, P... – com quem não se relacionava desde o início da
gravidez – o qual acabou por a ‘devolver’ cerca de 2 dias depois, sendo que, mais tarde, voltou a entregá-la ao pai, o
qual não quis ficar com ela;
r) em Setembro de 2003, a arguida Leonor deixou a Joana entregue a um casal de pessoas com problemas de
alcoolismo e com uma filha acamada com doença infecto-contagiosa, numa casa sem quaisquer condições, durante
cerca de 2 ou 3 semanas;
2 Na redacção original estava aí escrito “quando a menor tinha cerca de 3 anos de idade”, mas esta referência foi eliminada após a rectificação de fls. 3669.
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s) no primeiro dia de aulas da menor Joana na Escola Básica da F……, no ano lectivo de 2003/2004, a arguida
Leonor não acompanhou a menor à Escola, tendo a Joana chegado com uma vizinha, a quem pediu auxílio por não
encontrar o caminho;
t) de uma outra vez, a mesma vizinha levou a menor ao hospital, numa ocasião em que era visível a mesma estar
doente com muita tosse;
u) na madrugada do dia 12 de Setembro de 2004, o arguido João ..., depois de se ter incompatibilizado com o seu
irmão N..., foi para casa da arguida Leonor, levando consigo a sua roupa, e durante o dia 12, permaneceu naquela
casa, situada na Aldeia ……, área desta comarca de Portimão;
v) no final da tarde daquele dia 12 voltaram para casa a sua irmã, a arguida Leonor, e os filhos desta, Joana, R…. e
L….;
x) cerca das 20 h daquele dia 12 de Setembro, a arguida Leonor mandou a Joana adquirir um pacote de leite e duas
latas de conserva, num estabelecimento denominado “Pastelaria C...”, situado na Figueira, a cerca de 420 metros da
casa;
z) a sala da casa onde residia a arguida Leonor, é situada imediatamente após a porta de entrada na casa e a porta que
dá acesso à rua tem manípulo do lado exterior que permite a entrada imediata na residência;
aa) a menor Joana regressou a casa vinda da “Pastelaria C...”, onde havia adquirido os produtos alimentares atrás
mencionados;
ab) a dada altura, por motivo não concretamente apurado, ambos os arguidos começaram, em conjunto, a dar
sucessivas pancadas na cabeça da menor Joana, levando-a a embater com a cabeça na esquina da parede, sendo
visível que sangrava, da boca, nariz e têmpora, mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da
menor e a sua morte, cessando então a actividade dos arguidos;
ac) ficaram vestígios de sangue da menor nas paredes e no chão da sala, em diversos locais, e também junto à entrada;
ad) os arguidos asseguraram-se da morte da Joana, verificando que não respirava nem reagia e então, não querendo
ser responsabilizados pela morte da filha e sobrinha, decidiram obstar a que tal morte fosse conhecida de terceiros;
ae) assim, logo decidiram que teriam de fazer com que não fosse verificada na casa a existência de quaisquer sinais
do que haviam acabado de praticar, que o corpo da menor nunca fosse encontrado e que, de preferência, fosse criada a
convicção em todos que a menor teria sido levada por terceiros;
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af) assim, a arguida Leonor ficou em casa, lavando a parede e o chão onde estavam sinais de sangue da Joana, bem
como o local onde a menor ficou caída depois de morta, utilizando para tanto uma esfregona e o respectivo balde;
ag) e, como sabiam que o companheiro da arguida Leonor – A... – e o amigo deste, C….., estavam prestes a chegar a
casa, podendo descobrir o que se havia passado caso ali chegassem antes se serem limpos os vestígios, cerca das 21h
30m, o arguido João saiu, dirigindo-se à “Pastelaria C...”, onde se encontrou com o L... e o Carlos, que já ali se
encontravam, e a quem disse que a menor Joana não havia regressado a casa;
ah) quando os três regressaram a casa, a arguida Leonor já tinha limpo as marcas de sangue ali existentes, e referiu
igualmente que a menor Joana não tinha regressado a casa depois de efectuar as compras;
ai) face ao referido pela arguida, o L…. e o C…. decidiram ir procurar a menor, enquanto os arguidos ficaram em
casa;
aj) decidiram então os arguidos, em conjunto, cortar o corpo da menor para possibilitar guardar o mesmo na arca
frigorífica existente na sala;
al) na prossecução desse objectivo, os arguidos muniram-se de uma faca e de uma serra de cortar metal que se
encontravam na habitação, instrumentos aptos a obter os resultados que pretendiam, no espaço de tempo de cerca de
30 minutos;
am) com tais instrumentos, auxiliando-se mutuamente, os arguidos cortaram o corpo da Joana, separando a cabeça do
tronco e cortando as pernas pela zona dos joelhos;
an) cada um desses pedaços de corpo foi colocado dentro de sacos de plástico – a cabeça num, o tronco e parte das
pernas noutro e as duas pernas abaixo do joelho num terceiro – e após darem um nó na abertura do saco que continha
a cabeça, tentaram, pelo menos, colocar tais sacos nos três compartimentos da arca frigorífica, deixando sangue da
menor em várias zonas do interior da segunda gaveta dessa arca;
ao) os arguidos não colocaram os sapatos que a menor tinha calçados nos sacos, tendo ficado em casa todos os pares
de sapatos que a menor utilizava naquele Verão;
ap) por a menor já estar morta há cerca de duas horas, do corpo não saiu muito sangue;
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aq) entre as 22h 30m e as 23h, a arguida Leonor juntou-se ao companheiro L…. e ao C…., perante os quais reiterou
que a Joana tinha desaparecido, sendo que só então se deslocou à “Pastelaria C...” e perguntou à proprietária (O….) se
a Joana ali tinha estado, dizendo depois que ela tinha desaparecido;
ar) no entanto, a arguida de nada informou as autoridades policiais, apesar de haver militares da GNR de serviço na
Figueira, pois que aí decorria uma festa popular denominada “Festa do Berbigão”, tendo sido terceira pessoa (O...)
que o fez, telefonicamente, pelas 0h e 44m do dia 13 de Setembro, quando soube que a arguida o não havia feito
ainda, sendo que na sequência do supra referido telefonema, a arguida acabou por falar com elementos da GNR junto
à igreja da Figueira;
as) nessa altura a arguida disse que não tinha telefonado por não ter dinheiro no telemóvel;
at) mais tarde, cerca das 2h da madrugada, a arguida comprou bolos numa padaria situada na mesma localidade;
au) na manhã do dia 13, a arguida Leonor deslocou-se ao Posto da GNR, em Portimão, acompanhada do arguido
João, onde apresentou queixa pelo desaparecimento da Joana;
av) e por intervenção de terceiros, familiares do seu companheiro L..., começou verdadeiramente a ser difundido o
alegado ‘desaparecimento’, sendo distribuídas fotografias da Joana, pois até ali os arguidos tinham pretendido não
alertar as autoridades;
ax) no final da noite de dia 13, os arguidos saíram juntos de casa, levando um saco;
az) o arguido João manteve-se em casa da arguida Leonor até dia 14, espaço de tempo durante o qual os dois
arguidos, de forma que não foi possível apurar, transportaram os restos mortais de Joana para local desconhecido,
concretizando assim a intenção a que se haviam proposto – impedir a localização daqueles restos mortais – não sendo
até hoje localizados tais restos, tal como não foram localizados os instrumentos de corte utilizados, que os arguidos
esconderam em local desconhecido;
aaa) a arguida Leonor concedeu entrevistas à comunicação social, tentando fazer crer que a menor havia
efectivamente desaparecido, versão que mantinha perante muitas das pessoas que se interessavam pela sorte da menor
e a questionavam acerca da matéria;
aab) nessas entrevistas acerca do caso a arguida Leonor, por vezes, falava da filha no passado e vestia blusa preta;
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aac) as carraças, nomeadamente os chamados “chumbinhos” (carraças no início da sua fase adulta) têm receptores de
estímulos químicos associados à temperatura que lhes permitem detectar a existência dos componentes químicos
próprios do sangue;
aad) no dia 18.09, a arguida Leonor adquiriu petróleo e um esfregão de aço, com o que lavou a casa, aproveitando
assim para apagar quase todos os indícios do que ali havia ocorrido, restando apenas vestígios de sangue humano no
interior da casa, contaminados pelos produtos utilizados;
aae) por indicação da arguida Leonor, elementos da Polícia Judiciária deslocaram-se a casa da avó paterna da filha
mais velha da arguida Leonor (D….), em Olhão, à procura da Joana, bem como investigaram se um indivíduo de
nacionalidade marroquina teria levado a menor;
aaf) quando presente a psicóloga clínica, no âmbito de perícia efectuada no âmbito dos autos, a arguida Leonor referiu
a existência de uns vizinhos de nacionalidade brasileira que poderiam ter levado consigo a Joana, pois que teriam dois
carros “bons” e ter-se-iam ido embora do local na mesma data em que a menor havia “desaparecido”;
aag) seguindo indicações do arguido João ..., elementos da PJ procuraram o corpo da Joana num aterro de terra
castanha junto à estrada que dá acesso à Mexilhoeira, depois, outros locais nas imediações, ainda em Poço Barreto,
num carro acidentado, em Silves, debaixo da ponte sobre o Rio Arade;
aah) conseguiram os arguidos perturbar as actividades de investigação e impediram a localização dos restos mortais
da menor Joana... a quem haviam retirado a vida;
aai) as actividades atrás descritas foram levadas a cabo pelos arguidos em concertação de esforços e intenções, de
forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem aquelas condutas punidas pela lei;
aaj) assim no que se refere ao tirar da vida de Joana..., sua familiar directa (filha e sobrinha), o que fizeram utilizando
a força, aproveitando-se de a mesma não poder defender-se (tendo em conta a idade e compleição física) e
empregando a força bem sabendo que, tendo em conta o local vital em que atingiam o seu corpo (a cabeça)
repetidamente e com violência, levando a que a cabeça da menor embatesse na parede, lhe poderiam retirar a vida,
consequência que aceitaram, não cessando mesmo assim essa sua actividade;
aal) não obstando a tal a circunstância de a menor depender da mãe e ser familiar directa de ambos, devendo pelos
mesmos ser defendida e não vítima;
aam) também da mesma forma deliberada, livre e consciente e conhecendo a punibilidade da conduta, levaram a cabo
a acção acima descrita de cortar o corpo de Joana..., demonstrando total insensibilidade, conhecendo bem que, assim,
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ofendiam o respeito comunitário devido aos mortos, agindo com vista a que o corpo de Joana... não mais fosse
encontrado, escondendo-o em local não apropriado para o efeito, por forma a tentarem não ser responsabilizados pela
sua morte;
aan) a arguida Leonor não regista antecedentes criminais;
aao) o arguido João ..., para além da condenação supra referida em e), foi ainda condenado, em 1995, por acórdão
transitado em julgado e pela prática de um crime de furto qualificado, na pena, em cúmulo com a pena proferida pelo
crime de homicídio tentado, de 3 anos e 8 meses de prisão; em 2001, pela prática de um crime de condução ilegal de
veículo, foi condenado, por sentença transitada em julgado, na pena de 90 dias de multa; e em 2003, pela prática de
um crime de condução ilegal de veículo, foi condenado, por sentença transitada em julgado, na pena de 6 meses e 15
dias de prisão, suspensa na sua execução mediante o cumprimento de condições, vindo a suspensão a ser revogada;
aap) como habilitações literárias, a arguida Leonor tem a 3ª classe, nunca teve qualquer profissão e casou com 18
anos;
aaq) como habilitações literárias, o arguido João tem a 4ª classe e desde que saiu da escola começou a trabalhar,
embora sempre exercendo serviços indiferenciados e sem vínculo laboral;
aas) os arguidos nasceram no seio de uma família numerosa (os pais e 9 irmãos), onde se destacavam os hábitos
alcoólicos do pai e as dificuldades económicas.
9. 2. Factos dados como não provados: 1- que a arguida Leonor ..., ao longo da sua vida, não tenha vindo a prestar aos seus filhos os cuidados básicos,
maltratando-os;
2- que o A.F., filho da arguida Leonor, tenha sido socorrido por vizinhos;
3- que a arguida Leonor votasse a sua filha Joana ao desinteresse e a sobrecarregasse de trabalho, obrigando-a a
exercer as tarefas caseiras que deveria desempenhar mas que não desempenhava;
4- que a arguida Leonor tivesse abandonado a Joana, como havia já feito aos outros filhos;
5- que da segunda vez em que a arguida Leonor entregou a Joana ao pai, a menor tivesse cerca de 3 anos de idade;
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6- que a menor Joana fosse fonte de discussão entre a sua mãe, a arguida Leonor, e o padrasto L…., chegando ao
ponto de ser por aqueles ameaçada de ser posta fora de casa;
7- que cerca das 20 h daquele dia 12 de Setembro, quando os dois arguidos se encontravam sozinhos, tenham os
mesmos decidido manter entre si relações sexuais, sendo que os filhos menores da Leonor não constituíam
impedimento a tal acto, pois que se encontravam a dormir num quarto, já a Joana não poderia assistir a tais actos;
8- que quando a Joana saiu de casa, os arguidos tenham começado a manter entre si relações de cópula, no sofá da
sala e que ainda se encontrassem a manter relações sexuais quando a menor regressou a casa;
9- que ao ver o que a mãe e o tio estavam a fazer, logo a menor Joana tenha dito que iria contar ao padrasto que eles
estavam “a fazer coisas porcas”, tentando sair de casa;
10- que os arguidos se tenham levantado do sofá, dirigindo-se na direcção da Joana, visando impedi-la de denunciar
ao A... o que havia presenciado;
11- que o lado da cabeça com que a Joana embateu na esquina da parede tenha sido o esquerdo e que a parede em
questão fosse a situada junto à porta da entrada;
12- que a Joana tenha tentado fugir de casa, sendo então puxada para dentro pelo arguido João ...;
13- que a Joana tenha deixando impressões palmares e da face nas paredes, quer no lado exterior, quer interior, junto
à porta de entrada na casa;
14- que os arguidos tenham colocado o corpo da menor, embrulhado num edredon, num canto de um dos quartos da
casa, em local que não era visível para quem ali eventualmente entrasse, a fim de depois decidirem o destino que lhe
dariam;
15- que a arguida Leonor tenha utilizado detergente e lixívia na lavagem da parede e do chão onde estavam sinais de
sangue da Joana;
16- que o arguido João ... tenha estado a tomar uma cerveja com o A... e o C….., na “Pastelaria C...”, para melhor
atrasar o regresso dos mesmos a casa;
17- que os arguidos, tenham pensado colocar o corpo da menor dentro de uma fossa situada junto à casa, pelo que o
arguido João se deslocou ao local, mas verificou que tal não seria possível por a tampa da referida fossa estar
parcialmente cimentada, do que informou a arguida Leonor;
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18- que a faca com que os arguidos cortaram o corpo da menor tivesse cabo preto;
19- que os arguidos tenham colocado o corpo da Joana no chão da sala, em cima de um lençol;
20- que os arguidos tenham dado um nó na abertura dos sacos que continham o tronco e as pernas;
21- que os arguidos tenham efectivamente colocado os três sacos nos três compartimentos da arca frigorífica;
22- que os arguidos tivessem mudado de roupa que tinham vestida e a arguida Leonor, mais uma vez nessa noite,
tenha lavado o sangue que havia ficado no chão;
23- que na noite do dia 12 de Setembro a arguida Leonor invocasse o ‘desaparecimento’ da Joana perante as pessoas
que encontrava (excepção feita a A..., C... e O... a quem falou naquele ‘desaparecimento’);
24- que o saco que os arguidos levavam no final da noite do dia 13 de Setembro contivesse os instrumentos utilizados
no corte da menor;
25- que, entretanto, tenham começado a surgir carraças na casa, dada a actividade mencionada;
26- que, já depois de presa, a arguida Leonor tenha, por diversas vezes, imputado ao co-arguido João a total
responsabilidade pelos factos, bem como a tenha também imputado ao C..., para além de ter referido ter sido o corpo
colocado em carro destinado a ser prensado em Espanha, ou em diversos locais que foi indicando;
27- que o arguido João, no 1° interrogatório, tenha indicado estar o corpo da Joana debaixo de uma ponte, que liga a
Figueira à Mexilhoeira, do lado oposto àquele que inicialmente havia indicado, e que, depois, tenha indicado um seu
irmão como tendo transportado o corpo;
28- que os arguidos tivessem agido apenas com vista a que a menor não denunciasse ao padrasto o que havia visto;
29- que a menor Joana dependesse do arguido João ....
10. Motivação da convicção do tribunal de júri A fixação dos factos provados e não provados baseou-se na globalidade da prova produzida em audiência de
julgamento e de acordo com a livre convicção que o tribunal formou sobre a mesma (sempre tendo em atenção as
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regras da experiência), atendendo-se à prova pericial, documental e oral que foi produzida e aferindo-se, quanto a
esta, da razão de ciência e da isenção de cada um dos depoimentos prestados.
Concretizando…
Os arguidos optaram por não prestar declarações.
Nenhuma das testemunhas inquiridas declarou ter assistido aos factos puníveis, embora algumas tenham relatado
factos importantes para a convicção do Tribunal.
Vejamos o que disseram as testemunhas.
A testemunha MCP, sogra da arguida Leonor, declarou que o seu filho casou com a arguida e que na constância desse
matrimónio nasceu a D..., sua neta. Referiu que a arguida Leonor saiu de casa quando a filha tinha 11 anos de idade,
partindo sem nunca mais a ter visto. Disse também que a arguida Leonor ainda telefonou uma vez a saber se podia ir
buscar a D..., mas quando a testemunha lhe respondeu que tinha que falar primeiro com o pai da D..., não se
interessou mais. Referiu ainda a testemunha, que já depois de se falar no desaparecimento da Joana, a arguida chegou
a ir a casa da testemunha, em Olhão, acompanhada da Polícia Judiciária, a quem teria dito que a Joana podia ali estar.
A testemunha FE, que viveu com a arguida Leonor durante 5 anos, contou que é pai do AF, filho da arguida Leonor, e
que ela o deixou quando o filho tinha 7 meses. Referiu que a arguida se foi embora, para ir viver com o AS, e deixou
o bebé na cadeira, seguro com o cinto, sendo que foi uma vizinha estrangeira que o foi buscar e que lhe entregou o
bebé quando a testemunha chegou a casa.
A testemunha V…., que está ainda casado com a arguida Leonor, apesar de separado de facto há muitos anos, referiu
apenas que a arguida o deixou quando a D..., filha de ambos, tinha 11 meses e, ao que sabe, nunca mais a arguida viu
a filha.
A testemunha M……….., tia paterna do menor M.A. (filho da arguida Leonor, o qual tem actualmente 12 anos de
idade e vive com a testemunha, tendo-lhe sido confiado pelo Tribunal), referiu que a arguida Leonor nunca quis saber
do filho e que desde os dois meses de idade foi sempre a mãe da testemunha e avó do M.A. que cuidou dele, pois a
arguida nem sequer dava banho ao bebé, sendo que por mais que uma vez se ausentou de casa durante uma semana,
embora depois voltasse, até que se foi embora de vez.
A testemunha P..., pai da menor Joana..., contou que se separou da arguida Leonor quando esta estava grávida e que
ela veio entregar-lhe a Joana com 5 meses, dizendo que não podia cuidar dela. A testemunha disse que teve a Joana
ao seu cuidado durante 2 dias mas depois foi entregá-la à mãe. Mais contou que no dia 13 de Setembro de 2004, por
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volta das 12h 30m, a arguida Leonor foi procurá-lo e perguntou-lhe se ele tinha ido buscar a Joana porque ela tinha
desaparecido. A testemunha respondeu que não. A testemunha disse ainda que a arguida Leonor, nessa altura, não
aparentava estar preocupada, nem chocada, sendo que também não chorava e que a senhora que a acompanhava
parecia estar mais preocupada do que ela.
A testemunha I……., professora da Joana... na Escola Básica da Figueira, de 20 de Janeiro a Junho de 2004, contou
que a Joana no 1º dia em que às aulas na sua escola chegou atrasada e vinha acompanhada da N... do supermercado,
tendo explicado que a razão do atraso era por se ter perdido. Referiu que a Joana era uma miúda sossegada, havendo
uns dias em que estava mais triste, outros em que estava mais alegre. Disse que no princípio ela era uma aluna que
apresentava dificuldades, pois tinha faltado muito à escola, mas depois apanhou os outros. A Joana nunca lhe pareceu
ser uma criança maltratada, não aparecia suja nem com marcas no corpo. Às vezes parecia-lhe que ela andava mal
agasalhada, com roupas demasiado finas para a época, mas apenas isso. A Joana dizia que ajudava a mãe em casa.
Sendo-lhe perguntado referiu que a Joana devia medir 1,32 metros, ou talvez mais, mas que nunca a mediu.
A testemunha A……, psicóloga em funções na Comissão de Protecção de Menores de Portimão afirmou que a
Comissão recebeu um Processo de Promoção e Protecção de menores o qual foi remetido pela Comissão de Protecção
de Menores de Lagoa e que fazia referência ao facto de a menor Joana ter sido entregue pela mãe a um casal de
sexagenários, alcoólicos e com outros problemas. Entretanto a mãe tinha ido buscá-la e residiam agora na zona de
Portimão. Nessa altura a mãe referiu que tinha deixado a Joana com aquele casal, apenas duas ou três semanas, para
ela não faltar à escola enquanto tratava da transferência. Mais tarde receberam uma comunicação da escola a relatar
negligência ao nível da alimentação e da higiene. Na sequência, em Abril ou Maio de 2004 a testemunha efectuou
uma visita domiciliária à casa da mãe da Joana e verificou que a arguida Leonor se encontrava a fazer o almoço e
havia roupa estendida na corda. Foram à escola e a professora contou-lhes que corriam boatos de que a Joana
trabalhava demais em casa, mas que ela nunca tinha visto nada e que a Joana era uma aluna média. Falaram com
vizinhos que disseram que viam a Joana brincar. Falaram com a Joana, que disse que gostava de ajudar a mãe com os
irmãos. E decidiram arquivar o processo.
A testemunha J……. relatou que na véspera do desaparecimento da Joana, às “4h e tal da madrugada”, levou o
arguido João de Silves até à Figueira, a casa da arguida Leonor. O João levava uma mala e disse-lhe que o irmão N….
o tinha posto na rua. Quando chegaram à casa da Figueira reparou que a arguida Leonor e o L... se encontravam na
sala a ver televisão.
A testemunha A….. contou que o L... trabalhou consigo, na área de Porches, durante quase 3 anos, até vir para a
Figueira. Nessa altura eles vivam numa casa da testemunha, junto à casa onde a testemunha morava. Referiu que só o
L... trabalhava. Conheceu a Joana e considera que ela era uma criança que estava triste a maior parte das vezes, mas
acha que mãe e filha se davam bem e que a arguida Leonor não era fria com a Joana. Referiu que a arguida Leonor
mantinha a casa mais ou menos limpa, embora “não como nós”. Também referiu que a Joana ajudava a mãe, tendo-a
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visto varrer algumas vezes. Quanto ao arguido João também o conheceu e chegou a dar-lhe trabalho, nunca tendo tido
problemas com ele. Acha que ele tratava bem a Joana, nunca o tendo visto a falar alto com ela.
A testemunha C..., padrasto do A..., disse que a Joana tinha estado em casa da testemunha no dia em que desapareceu,
pois tinha havido uma festa de aniversário. Mais tarde, por volta da meia-noite, o telefone tocou e a mulher disse-lhe
que era a Leonor a perguntar pela Joana porque ela tinha desaparecido. Às 9h do dia seguinte encontrou a Leonor
com o irmão João quando ela vinha para Portimão fazer a queixa do desaparecimento da Joana. Disse que a Leonor
estava triste e que vinha com cara de choro. À tarde desse dia foi a casa da arguida Leonor que aparentava estar
preocupada (no entanto a testemunha disse que achava que ela devia estar mais preocupada) e viu o arguido João, que
estava sentado no sofá. Confirmou que a Polícia Judiciária foi diversas vezes à sucata que a testemunha explora,
algumas das quais com o arguido João, e que andaram a ver os carros. Contou a testemunha que numa altura em que
se encontrou com o arguido João nas instalações da Polícia Judiciária, perguntou-lhe “afinal o que tinha acontecido” e
o João respondeu que “estava a ter relações com a minha irmã” e que “tinham morto a miúda”, sendo que então a
testemunha já não quis saber mais nada.
A testemunha C….., irmã do A..., relatou ter estado em casa da mãe, com a arguida Leonor e a Joana, na festa de
anos. Declarou que não viu o arguido João nesse dia. Depois, na 2ª feira de manhã, uma das suas irmãs telefonou-lhe
a dizer que a Joana tinha desaparecido, pelo que foi a casa da Leonor ainda nessa manhã, antes de almoço. Quando
chegou, a arguida Leonor vinha das compras com o arguido João. Referiu que Leonor parecia “um pouco”
preocupada e disse à testemunha que a GNR só podia começar a procurar a Joana passadas 48 horas. Perguntada,
disse que a arguida Leonor sempre tratou bem a Joana. Ao ser-lhe exibida da carta junta aos autos a fls. 1232,
confirmou tê-la recebido.
A testemunha MF, que vive maritalmente com a testemunha anterior (C….), contou que na 2ª feira de manhã foi com
a companheira a casa da Leonor, confirmando que quando chegaram, a arguida Leonor vinha das compras com o
arguido João. Perguntaram pela Joana e a Leonor disse que não sabia de nada mas que já tinha feito a participação. A
Leonor pareceu-lhe “um pouco” preocupada. Disse também que a arguida Leonor sempre tratou bem a Joana.
Confirmou ter sido ele quem entregou à Polícia Judiciária a carta junta aos autos a fls. 1232 que a companheira
recebeu.
A testemunha O..., proprietária da “Pastelaria C...”, declarou que no dia 12 de Setembro a Joana apareceu na
pastelaria, pelas 8h 20m / 8 h 30m, a comprar um pacote de leite e duas latas de atum. A Joana pagou com uma nota
de 10 €, recebeu o troco e foi embora. Referiu conhecer a Joana de a ver na pastelaria e na escola. Perguntada, disse
nunca ter visto a arguida Leonor a ir levar ou a ir buscar a filha à escola. A Joana dizia que tinha que ajudar a mãe a
tratar dos irmãos, mas nunca viu sinais de maus tratos na menor, nem isso constou na aldeia. Voltando ao dia 12,
disse que meia hora depois da Joana sair, chegaram à pastelaria o A... e o C.... Estiveram lá cerca de 20 minutos, até
que apareceu o arguido João, que se dirigiu a eles e estiveram a conversar. A testemunha não se apercebeu de que
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Falaram e nenhum deles lhe perguntou pela Joana. Mais tarde, mais de uma hora depois deles saírem, apareceu no
estabelecimento a arguida Leonor, a qual vinha acompanhada pelo irmão João (que ficou à espera na rua) e que lhe
perguntou pela Joana, dizendo então que ela ainda não tinha chegado a casa. A testemunha ficou preocupada e por
isso, quando fechou a pastelaria, depois da meia-noite e meia, foi a casa da arguida Leonor perguntar se a Joana já
tinha aparecido, tendo obtido por resposta que não. A testemunha perguntou se já tinham telefonado para a GNR, e a
Leonor retorquiu que não porque não tinha dinheiro no telemóvel, pelo que a testemunha foi a casa ligar ela própria a
contar a situação. Referiu que não achou a Leonor muito preocupada.
A testemunha JP, relatou que no dia 12 de Setembro, pelas 8h 30m / 8h 40m, estava a janela de sua casa, a fumar,
quando viu a Joana, com um saco na mão, a subir as escadas na proximidade do mercado, em direcção a casa. A
testemunha disse que naquele local não havia movimento, não viu carros, nem ouviu qualquer grito, embora se tenha
mantido à janela durante mais algum tempo. Referiu que decorria a “Festa do Berbigão”, mas ocorria longe daquele
local e por ali não havia ninguém.
A testemunha LF disse ter visto a Joana nessa noite, mas não conseguiu precisar as horas.
A testemunha AS, companheiro da arguida Leonor, afirmou que à data dos factos vivia com a arguida Leonor e com a
Joana. Declarou que o arguido João tinha chegado a casa deles na madrugada do dia 12 de Setembro (domingo). A
Joana estava desde 5ª feira anterior na casa da mãe da testemunha. A arguida Leonor no domingo foi também à casa
da mãe da testemunha, a uma festa de anos, tendo regressado com a Joana à Figueira por volta das 18h. Disse também
a testemunha que foi à “Pastelaria C...” com o C... por volta das 21h e que a dada altura apareceu ali o arguido João a
dizer que a Joana tinha ido à pastelaria às 8h e ainda não tinha aparecido. Eles foram para casa (não achou nada de
estranho na casa) e a testemunha pediu à Leonor para ir procurar a Joana nos vizinhos (mas não sabe se ela foi
efectivamente) enquanto ele foi à festa do berbigão ver se a Joana por lá estaria e o C... foi dar uma volta por ali a ver
se via a menor. O arguido João ficou em casa a tomar conta dos filhos da testemunha. A testemunha ficou algum
tempo na festa do berbigão mas havia muita confusão e veio embora; voltou depois à festa com a Leonor e o C... à
procura da Joana e quando estavam a regressar a casa apareceu a D. O..., a saber da Joana e a perguntar se já tinham
chamado a GNR. Disseram-lhe que não e ela telefonou. No dia seguinte a testemunha disse à Leonor para ir à GNR.
Declarou ainda a testemunha que numa altura em que se encontrou com a arguida Leonor nas instalações da Polícia
Judiciária, a pedido daquela Polícia, mas numa altura em que se encontravam só os dois, a testemunha perguntou à
Leonor o que tinha acontecido e ela então contou-lhe que “tinha dado uma chapada na Joana e que o irmão acabou de
a matar”, tudo “porque ela os tinha visto a ter relações” e também contou que “tinham posto o corpo numa casa velha
e que tinha sido o João a levá-la às costas”. Posteriormente, quando a testemunha foi visitar a arguida Leonor à cadeia
de Odemira, ela negou o que tinha dito e referiu-lhe que só tinha afirmado aquelas coisas porque a Polícia Judiciária
lhe tinha batido. Questionado sobre se no dia em que a Leonor lhe tinha confessado ter agredido Joana, a mesma
apresentava marcas de ter sido batida, nomeadamente se tinha a cara ou os olhos inchados ou vermelhos, a
testemunha disse que não. À testemunha foi também perguntado se tinha na sua casa algum serrote, ao que respondeu
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que sim, que tinha um serrote pequeno de dentes finos, e que quando a Polícia Judiciária lhe perguntou pelo serrote
foi procurá-lo e verificou que tinha desaparecido.
A testemunha CS, que à data viva em casa da Leonor e do L..., declarou que o arguido João chegou a casa destes na
madrugada do dia 12 de Setembro. Disse que no dia 12 saiu de casa pelas 9h 30m / 10h e que só regressou pelas 18h,
altura em que foi buscar o L... para ir com a testemunha ver uma mota. Chegaram à “Pastelaria C...” por volta das 21h
30m / 22h, onde beberam uma cerveja ou duas e depois chegou o arguido João que lhes perguntou se tinham visto a
Joana. Dirigiram-se de imediato para casa. A casa não tinha nada estranho, estava normal, a testemunha também não
notou qualquer arrumação ou limpeza. A Leonor disse-lhes que não sabia da Joana e o L... decidiu ir à festa do
berbigão procurá-la, enquanto a testemunha foi dar uma volta pelo outro lado. Tornaram a ir para casa e decidiram ir
de novo à festa, desta vez acompanhados da arguida Leonor, enquanto o João ficava em casa com as crianças.
Demoraram uma hora ou duas e antes de irem para casa foram comprar bolos para comer.
A testemunha ML, mãe de A..., declarou que a Joana esteve em sua casa desde 5ª feira a domingo, dia 12 de
Setembro, indo para a Figueira com a mãe pelas 18 h. Nesse dia à noite (já estava deitada) o L... telefonou-lhe a
perguntar se estava lá a Joana, tendo a testemunha respondido que a Joana tinha ido com a mãe, ao que o L... a
informou que a Joana tinha desaparecido. Disse ainda a testemunha que a arguida Leonor tinha a casa sempre limpa e
tratava bem da casa. Num dia, depois de lá ter ido a SIC, reparou que havia carraças à porta de casa e num pilar e
disse à Leonor para ela ir comprar creolina para as matar. A Leonor comprou petróleo, dizendo que não havia
creolina, e foi a própria testemunha que procedeu à limpeza, no exterior da casa, com a esfregona.
A testemunha FF, militar da GNR, declarou que nessa noite decorria o festival do berbigão na Figueira e que após a
chamada da D. O... encontrou-se com a arguida Leonor, o L... e outro indivíduo, junto à igreja, tendo a mãe contado
que a Joana tinha desaparecido, referindo que a tinha mandado ao café e que a última vez que a menor tinha sido vista
tinha sido ali, também junto à igreja. A testemunha disse-lhe que no dia seguinte teria que ir ao Posto em Portimão
formalizar a queixa. Declarou ainda a testemunha que a mãe não aparentava muita preocupação para um caso destes.
A testemunha SF, militar da GNR, referiu que no dia 13 de Setembro de 2004, no Posto da GNR de Portimão, entre
as 10h 30m / 11h, recebeu a queixa do desaparecimento da Joana. Foi a mãe que fez a queixa, acompanhada do
arguido João. A arguida Leonor aparentava tristeza, mas não chorou. A testemunha recebeu as fotografias que a mãe
levava e perguntou-lhe se havia motivos para a Joana fugir de casa ou se tinha algumas desconfianças, a tudo tendo a
arguida Leonor respondido que não.
A testemunha NM contou que estava na “Pastelaria C...”, por volta das 11h 15m quando apareceram o L... e o C... a
falar no desaparecimento da Joana. Mais tarde, pelas 24h 15m tornou a vê-los, agora acompanhados da arguida
Leonor, a saírem da festa do berbigão. A testemunha falou com eles e reparou que a Leonor estava calma. O L... disse
que a Joana talvez estivesse com a mãe dele, pelo que a testemunha lhe emprestou o telemóvel para ele fazer a
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chamada para verificar. A testemunha ainda viu o encontro da Leonor com a GNR junto à igreja, mas não assistiu à
conversa. À 1h 45m tornou a encontrar o L..., a Leonor e o C..., a dirigirem-se para casa, sendo que nessa altura a
Leonor trazia um embrulho que disse serem bolos. A Leonor continuava muito calma, não estava chorosa, nem
agitada. A testemunha referiu que nessa noite não viu o arguido João.
A testemunha CM, que à data era proprietária de uma fábrica de bolos na Figueira, contou que só na 2ª feira soube
que a Joana tinha desaparecido. Confirma que na noite anterior, talvez por volta das 2h, a Leonor, o L... e o C...
estiveram na sua fábrica a comprar bolos (parece-lhe que foi a Leonor que pagou com uma nota de 20 €). Nessa altura
a Leonor não lhe disse que a filha tinha desaparecido, só perguntou se a miúda tinha lá estado. Comprou os bolos
normalmente, não aparentando qualquer preocupação.
A testemunha LS, companheira de um meio-irmão do L..., contou que na 2ª feira de manhã (dia 13) a cunhada S... lhe
telefonou a dizer que a Joana tinha desaparecido, pelo que nessa tarde foi a casa da Leonor. Referiu que a Leonor
tinha estado a chorar e que estava em baixo, nervosa, mas contou-lhe que tinha tido que gastar 2 € para vir a Portimão
participar o desaparecimento na GNR. A testemunha contou também que, por sua iniciativa, logo na 3ª feira, fez um
panfleto no computador com a fotografia da Joana a falar no desaparecimento, o qual fotocopiou, sendo que com o
companheiro e a cunhada S... andaram a espalhar os panfletos por vários locais de Portimão e Lagos.
A testemunha VBM, meio-irmão do L... e companheiro da anterior testemunha, contou que 2ª feira à tarde foi com a
companheira a casa da arguida Leonor, onde se encontrava também o arguido João (que a testemunha não conhecia).
Disse que se via que a Leonor tinha chorado. Confirmou que a companheira fez os panfletos e que ele os ajudou a
distribuir em Portimão e em Lagos.
A testemunha NR, proprietária de um supermercado na Figueira, declarou conhecer muito bem a Joana, de quem era
amiga, tendo sido a testemunha que levou a menor à escola no primeiro dia de aulas na Figueira. Também contou que
uma vez levou a Joana ao Hospital porque ela já andava há muitos dias com tosse e dizia que a mãe não tinha vagar
para a levar. A testemunha soube que a Joana tinha desaparecido no dia 13 de Setembro de manhã, pelas 9h, por uma
vizinha. Declarou que cerca das 10h 20m apareceu no supermercado a arguida Leonor, a qual lhe disse que já tinha
vindo a Portimão à GNR fazer a queixa. A testemunha achou que a arguida estava muito calma, mas pensou que era
modo de ser. A Leonor contou-lhe que a GNR pôs a hipótese de a menor estar com o pai e a testemunha logo arranjou
maneira de uma sua prima ir a Lagoa com a arguida Leonor, ver se a Joana estava com o pai, mas não estava. No dia
13 à noite, depois das 21h, a testemunha foi a casa da Leonor para perguntar se ela já sabia alguma coisa. Em casa
estavam a Leonor, o arguido João, o L... e o C.... A Leonor continuava muito calma e a filha da testemunha comentou
que era muito estranha tal calma. Depois de sair de casa da arguida Leonor a testemunha ficou a conversar com uma
vizinha e pouco depois viu a Leonor passar com o irmão João. A Leonor trazia um saco de asas na mão. A
testemunha não viu o que tinha o saco e também não sabe para onde eles se dirigiram. Perguntada, declarou que
nunca viu a Leonor bater na filha Joana ou maltratá-la.
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A testemunha CC contou que na 2ª feira à noite (dia 13), quando estava a conversar com a testemunha NR, pelas 21h
30m / 10h, viu os arguidos Leonor e João, vindos de casa, a subir a rua. Recorda-se que um deles trazia um saco de
plástico de asas na mão, mas já não se lembra quem e não se apercebeu de qual seria o conteúdo.
A testemunha MP relatou que na 2ª feira à noite (dia 13), viu a testemunha N... sair de casa da arguida Leonor e a
filha C… chamou-a, ficando todas a conversar. Pelas 21h 30m / 10h, viu os arguidos Leonor e João, vindos de casa,
com um saco de plástico, mas já não recorda quem trazia o saco e não faz ideia o que continha.
A testemunha MDV, prima da testemunha N…, contou que na 2ª feira de manhã (dia 13), foi ao supermercado da
N…., onde já se encontrava a arguida Leonor. Referiu que o arguido João se encontrava à porta do supermercado.
Contou que a pedido da N... foi com os dois arguidos a Lagoa procurar o pai da Joana, que disse não ter a menor
consigo. No regresso, a arguida Leonor quis ir à Aldeia da Companheira ver se a Joana estaria em casa da tia
Almerinda, pelo que também lá foram mas sem sucesso. Perguntada sobre o estado de espírito da arguida Leonor, a
testemunha declarou que não a conhecia anteriormente, mas achou que ela estava com “uma cara estranha”.
A testemunha PSS, companheira de NS (irmão dos arguidos), contou que só soube do desaparecimento da Joana 3
dias depois, quando o marido leu a notícia no jornal. Declarou que antes do arguido João ir para a Figueira tinha
estado na sua casa, dado não ter residência, mas que se tinha ido embora após se ter zangado com o N... A testemunha
e o companheiro, após saberem do desaparecimento, foram visitar a Leonor, que estava nervosa e chorosa. No entanto
contou-lhes que ia aparecer na televisão. A testemunha ainda referiu que o relacionamento da Leonor com a Joana era
bom.
A testemunha SS, irmã do L..., disse que no domingo, por volta da meia-noite, a mãe referiu-lhe que o L... tinha
telefonado a saber se a Joana estava lá em casa. Declarou a testemunha que a Joana tinha estado lá em casa desde 5ª
feira até domingo e que era para só ir para casa na 2ª feira, mas como a mãe tinha ido à festa de anos, convenceu-a a ir
mais cedo, dizendo que podiam ir ao festival do berbigão e que também lá estava o tio. Saíram por volta das 18h. Na
2ª feira de manhã (dia 13), por volta das 14h, a testemunha foi ver a Leonor. Em casa estavam também o João e o L....
Nessa altura a Leonor referiu-lhe como é que a Joana estava vestida e calçada quando desapareceu. Mais tarde, a
testemunha deparou com os sapatos que a Leonor tinha dito que a Joana tinha calçados e confrontou a Leonor com
isso, tendo ela respondido que então a Joana devia ter trocado de sapatos e que tinha levado as chinelas. Porém,
posteriormente, a testemunha encontrou uma das chinelas debaixo do sofá da sala e a outra chinela no quarto.
Procurou o calçado da Joana e encontrou em casa todos os sapatos, sandálias e chinelas que ela usava nesse Verão.
A testemunha AD, tia dos arguidos, contou que na 2ª feira de manhã (dia 13) apareceram em sua casa os arguidos
João e Leonor. A Leonor disse-lhe que tinham ido à polícia dizer que “tinham roubado a Joana”. Nem a Leonor nem
o João estavam nervosos, estavam calmos. Contou ainda a testemunha que tinha visto o João no sábado anterior com
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um saco, dizendo-lhe o João que vinha da casa do NS. Mais tarde o JA, conhecido por “Zé M...”, disse-lhe que tinha
levado o João até à casa da Leonor, na Figueira.
A testemunha HV, sogra da AC (irmã dos arguidos) declarou que passados 2 ou 3 dias depois de ter ouvido que a
Joana tinha desaparecido, o arguido João apareceu em casa da sua nora AC, que vive ao pé da testemunha, a pedir
comida. Nesse dia à tarde, apareceram uns senhores da Polícia Judiciária que levaram o João e depois o trouxeram.
Referiu que o João esteve uns dias em casa da Anabela.
A testemunha AC, irmã dos arguidos, confirmou que o João esteve uns dias em sua casa, como já tinha estado de
outras vezes, dado não ter emprego ou residência certos. Não se recordava de ter falado com o João ao telefone.
Declarou que passados 8 dias do desaparecimento da Joana foi a casa da Leonor que lhe disse que não sabia o que foi
feito da filha.
A testemunha CS, médica-veterinária na D.G.A.A., declarou que os porcos em idade adulta comem um cadáver de
um ser humano com 8 anos de idade, esclarecendo que se forem 5 ou 6 porcos comem um cadáver de 8 anos em 10
ou 12 horas e que se o cadáver estiver cortado será mais rápido ainda. Disse que os porcos comem o cadáver
totalmente, fazendo-o desaparecer por completo e só restando resíduos, nas fezes, que não fossem digeridos.
Perguntada sobre a existência de carraças numa casa, declarou que as carraças fêmeas se alimentam de sangue. Disse
que as carraças precisam de um hospedeiro para sobreviver e por isso se pegam aos animais, sendo possível encontrá-
las ainda na vegetação. Referiu que as carraças só abandonam o hospedeiro para ir para uma parede se houver sangue
fresco nessa parede.
A testemunha GA, coordenador de investigação criminal da P.J., declarou que começaram a investigar o caso
passados 9 dias do desaparecimento da Joana, sendo que o caso estava classificado como crime de sequestro/rapto.
Tomou conhecimento das declarações prestadas na GNR e visionou as entrevistas televisivas, estranhando logo a
postura da mãe, que vestia de preto e parecia estar a mentir, sendo que falava da filha no passado. Começaram a
tomar declarações e decidiram ir examinar a casa da Leonor. Quando lá chegaram viram que o interior da habitação
tinha sido lavado, sendo que tal lavagem contrastava com o desleixo de limpeza e arrumação do resto da casa, mas
mesmo assim ainda encontraram vestígios hemáticos no chão, nas paredes, no balde e esfregona e na sola de umas
sapatilhas que estavam na sala – a testemunha confirmou o auto de busca e apreensão de fls. 173. Quando o resultado
dos exames foi conclusivo no sentido de que esses vestígios eram de sangue humano e mistura de sangue humano e
animal, detiveram os arguidos, tendo o João sido detido em Cacela. Declarou também que com o auxílio do arguido
João procederam à reconstituição dos factos como consta do auto de fls. 273 ss, cujo teor confirmou pois que esteve
presente na diligência. Confirmou que a configuração da casa é a que consta da planta de fls. 294 e que a porta que dá
acesso à rua tem um manípulo do lado exterior que permite a entrada imediata na residência. Disse ainda que na
sequência desta reconstituição, e seguindo indicações do arguido João, procuraram o corpo da menor num aterro de
terra e noutros locais da Mexilhoeira Grande, numa lixeira, em Poço Barreto, nos carros acidentados existentes na
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sucata do padrasto do L... e em Silves, locais onde procuraram exaustivamente mas sem êxito. Confirmou ainda a
pesquisa pela técnica denominada Projectina de vestígios na sala da casa da arguida Leonor, de onde resultou o
apuramento dos sinais fotografados nos autos a fls. 896 ss. A testemunha confirmou também o auto de busca e
apreensão junto aos autos de fls. 578 a 580 (arca frigorífica) e que no interior da arca foi recolhido um vestígio
hemático da espécie humana, realçando que este vestígio de sangue humano foi recolhido no interior da gaveta,
concretamente no painel de trás da segunda gaveta da arca.
A testemunha JS, inspector-chefe da P.J., confirmou o auto de busca e apreensão de fls. 173 na casa da arguida
Leonor, quando foram encontrados vestígios hemáticos no chão, nas paredes, no balde e esfregona e na sola de umas
sapatilhas que estavam na sala. Referiu que os vestígios eram muito pequenos e que era visível que o interior da
habitação tinha sido lavado, e não só o chão, notando-se ainda as marcas da passagem da esfregona nas paredes e nas
portas. Referiu ainda que esta lavagem do chão e paredes contrastava com o resto da casa, que estava “imunda”, com
roupa suja por todo o lado e louça por lavar “de 15 dias”. A testemunha esteve presente na reconstituição dos factos,
como consta de fls. 273 ss, cujo teor confirmou e referiu que na sequência desta reconstituição, seguindo indicações
do arguido João, procuraram o corpo num aterro de terra e noutros locais da Mexilhoeira Grande, numa lixeira, em
Poço Barreto, num carro acidentado existente na sucata do padrasto do L..., em Silves, etc., locais onde procuraram
exaustivamente mas sem êxito. Confirmou que a configuração da casa é a que consta da planta de fls. 294 e que a
porta que dá acesso à rua tem um manípulo do lado exterior que permite a entrada imediata na residência. Confirmou
que a arguida tinha na sua posse, quando chegou à cadeia de Odemira, o recibo da compra de 1 litro de petróleo e de
um esfregão de arame, de que se tentou desfazer, e que foi entregue à P.J. pela Directora do E.P. – confirmou que o
recibo é o de fls. 876. Ainda referiu que seguiu a pista de um cidadão marroquino que podia ter levado a Joana,
segundo indicações da arguida Leonor, mas veio a apurar que na altura do desaparecimento da Joana esse indivíduo
estava em França.
A testemunha AS, inspector da P.J., relatou que foi a Olhão, a casa da testemunha MCP, com a arguida Leonor, pois
esta tinha referido que a Joana podia estar lá, o que não era verdade. Relatou também que procedeu a diversas buscas,
em diversos locais, segundo indicações do arguido João de que era ali que se encontrava o corpo, não tendo obtido
qualquer resultado positivo.
A testemunha JS, inspector da P.J., declarou ter procurado o arguido João, que entretanto se tinha ausentado da
Figueira – apurou a testemunha que se ausentou no dia 14 – vindo a detê-lo em Altura, Cacela, a dormir dentro de um
carro velho, local onde também encontraram a roupa dele.
A testemunha VR, inspector da P.J., confirmou ter procedido à apreensão de um saco que continha roupas do arguido
João. Questionado sobre os desenhos de uma faca e de uma serra que se encontram juntos a fls. 1885 dos autos,
declarou que tais desenhos foram efectuados pelo arguido João, na presença da testemunha, destinando-se os mesmos
a retratar os objectos que teriam sido utilizados para proceder ao esquartejamento da Joana. A testemunha esteve
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presente no auto de reconstituição de esquartejamento junto aos autos a fls. 2100 ss, cujo teor confirmou,
esclarecendo que o arguido é que escolheu os instrumentos de corte mais parecidos com os que tinha utilizado e que o
médico-legista, que estava presente, confirmou que os mesmos eram adequados para o acto; confirmou também que o
arguido indicou a forma como procedeu ao esquartejamento, ajudado pela irmã (nas fotografias representada por uma
agente), bem como o tempo que demorou, e que o médico-legista afirmou ser aquela a maneira correcta de efectuar os
cortes e aquele o tempo necessário; mais confirmou que o arguido reconstituiu também o modo como colocou as
partes do corpo em sacos e os meteu nos compartimentos da arca, que era precisamente a mesma arca que estava na
casa da Figueira e que tinha sido apreendida. Disse depois a testemunha que logo após a reconstituição se deslocou à
Figueira para procurar os instrumentos de corte que o arguido João disse ter utilizado, mas não os encontrou em casa,
pelo que inquiriu o L... sobre isso e ele confirmou-lhe que tinha tido uma serra daquelas e que não tinha dado conta
quando tinha desaparecido. A testemunha declarou ainda ter medido a distância da casa da Leonor à “Pastelaria C...”
e que o resultado foi cerca de 420 metros, os quais, percorridos a pé, em passo normal, levam cerca de 6 minutos a
percorrer.
A testemunha CD, inspector da P.J., relatou que procedeu a buscas para encontrar o corpo da Joana, seguindo
sucessivas indicações do arguido João, sem nada ter encontrado. Relatou também que foi à escola primária da
Figueira para tentar apurar a altura da Joana com base numa fotografia que ali foi tirada e onde se viam uns desenhos,
mas os desenhos já não eram os mesmos, sendo que ainda assim tentou apurar medidas, tendo obtido o valor de 1,35
m ou 1,40 m, como resulta do relato que consta a fls. 2078 e que confirmou.
A testemunha AS, médico com especialidade em medicina-legal, confirmou ter estado presente na reconstituição de
esquartejamento a que procedeu o arguido João ..., esclarecendo que o arguido escolheu os instrumentos de corte mais
parecidos com os que tinha utilizado e que os instrumentos escolhidos eram os que melhor se coadunavam com o acto
de esquartejamento que o arguido estava a reconstituir, sendo que a serra cortaria ossos e músculos e a faca era
necessária para cortar nervos e tendões. Também confirmou que o arguido indicou a forma como procedeu ao
esquartejamento, ajudado pela irmã, bem como o tempo que demorou, o que tudo lhe pareceu adequado ao acto
reconstituído. Esclareceu que o arguido hesitou na altura de reconstituir o modo como colocou as partes do corpo nos
compartimentos da arca, pois só quando a testemunha disse ao arguido que lhe parecia difícil que o tronco com os
membros coubessem no 2º compartimento, é que o arguido demonstrou a colocação depois de ter tirado a gaveta. A
testemunha, perguntada se o corpo de uma miúda magra, de 8 anos, caberia naquela arca, não excluiu tal hipótese,
respondendo que caberia “no limite”. Disse ainda que do corte de um corpo morto há duas horas sai pouco sangue.
A testemunha LC disse que na madrugada de 13 de Setembro, entre a 1h 30m e as 3h, foi a casa da Leonor e do L... e
verificou que o reboque se encontrava estacionado ao pé de casa.
*
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“Percorrida” a prova testemunhal, verificamos que não existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter
visto cometer o crime.
Acresce que nem sequer existe prova directa do homicídio, pois que não apareceu o corpo morto da menor.
Em que é que se baseou então o Tribunal para dar como provados os factos? É o que passamos a expor.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem
objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou
não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se
regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou
para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para
a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com
excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as
provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do
princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia
Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99
ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a
factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao
tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que
na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da
experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que
ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do
testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode
extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a
que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o
fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser
sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários
indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
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Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é
apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da
livre apreciação da prova.
De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) “a livre valoração da
prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão
unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de
acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que
permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1), chamado a pronunciar-se sobre
a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e estribando-se nos ensinamentos dos Prof.
Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que “esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova
moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo
intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um
valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de
justificar a decisão. Este discurso é um discurso mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais
(Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso «está apta para o consenso». A justificação da decisão é
sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de
racionalidade e de justiça”.
O princípio da livre apreciação da prova tem duas vertentes: na sua vertente negativa significa que na apreciação
(valoração, graduação) da prova, a entidade decisória não deve obediência a quaisquer cânones legalmente pré-
estabelecidos – tem o poder/dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente, não existindo qualquer
pré-fixada tabela hierárquica elaborada pelo legislador; na sua vertente positiva, significa que os factos são dados
como provados, ou não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material
probatório validamente constante do processo, quer ele provenha da acusação, quer da defesa, quer da iniciativa do
próprio (Ac. da Relação de Coimbra de 9.2.2000, in C.J., ano XXV, tomo 1, p. 51).
Assim…
A matéria dada como provada nas alíneas aa), ab), ac), ad), ae), af), ag), ah) ai), aj) al), am), an), ap), aah), aai), aaj) e
aam) teve por base o depoimento das testemunhas JP, GA, JS, VR, AS, A..., C..., C... e SS, os autos de reconstituição
e os autos de busca e apreensão, bem como a prova pericial subsequente, tudo interpretado à luz das regras da
experiência.
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A testemunha JP, pelas 8h 30m / 8h 40m viu a Joana ir em direcção a casa subindo as escadas perto do mercado, com
um saco, sinal que vinha das compras (e sabemos que fez as compras pelo depoimento da testemunha O...). Esta
testemunha, que estava à janela a fumar, manteve-se na janela durante mais algum tempo e verificou que no local não
havia movimento, não viu carros, nem ouviu qualquer grito. Ou seja, de acordo com as regras da experiência, e dado
que o percurso é curto, o normal é que a menor tenha regressado a casa. E não há dúvida de que a Joana chegou a
casa e que foi nessa altura que os arguidos lhe bateram. Tal resulta claro do auto de reconstituição junto aos autos a
fls. 273 ss, nomeadamente das fotografias de fls. 282, 284, 285, 286, 287, 291 e 292, sendo que o conteúdo daquele
auto de reconstituição foi confirmado pelos inspectores GA e JS, que estiveram presentes no acto e descreveram os
actos praticados pelo arguido João durante tal reconstituição. Na dita reconstituição o arguido exemplifica as
chapadas que deu à Joana, o local onde esta bateu com a cabeça, novo local onde bateu com a cabeça na sequência de
agressão da mãe, mostrou que a menor sangrou do nariz, têmpora e boca, exemplificou a queda da menor, como
constataram que a menor estava efectivamente morta e como a co-arguida Leonor procedeu à limpeza das marcas de
sangue, com o auxílio de um balde e de uma esfregona.
Por outro lado, os actos que constam do auto de reconstituição são compatíveis com os vestígios hemáticos recolhidos
na sala (repare-se que a reconstituição tem lugar na sala), como resulta do auto de busca e apreensão efectuado em
22.9.2004 (cfr. fls. 173 e 233 ss), onde consta que foram recolhidos vestígios no chão, junto à porta de entrada,
exterior e interiormente, junto ao interruptor eléctrico interior à direita da porta de entrada, junto à entrada do lado
esquerdo do sofá, num par de ténis de C….. que se encontrava entre os sofás, numa esfregona (haste) e respectivo
balde. Estes vestígios, segundo perícias efectuadas, são de sangue humano e de sangue humano e animal (cfr. fls.
235), e embora fossem insuficientes para averiguar a quem pertencem através do ADN (fls. 1780 ss), são reveladores
de que naquela sala aconteceu algo terrível, algo que deu origem a que houvesse sangue humano no chão e nas
paredes, que foram limpos com uma esfregona e balde, sendo que o sangue que estava na esfregona se encontrava na
haste, revelador que quem utilizou a esfregona tinha por sua vez as mãos sujas de sangue. Assim, os vestígios
recolhidos na sala vêm reforçar a fiabilidade da reconstituição.
De seguida os dois arguidos decidiram que o corpo da menor não podia ser encontrado. Daí que tivessem optado por
esquartejá-lo, como resulta do auto de reconstituição de fls. 2100 ss. Para tanto tiveram oportunidade (enquanto a
arguida Leonor limpava os vestígios existentes na sala o arguido João foi ao café onde encontrou as testemunhas A...
e C..., que confirmam ter estado no café com o arguido João e relatam que de seguida foram procurar a Joana – assim,
os dois arguidos tiveram oportunidade de ficar sozinhos em casa e proceder ao esquartejamento). E não há dúvidas de
que os arguidos procederam ao corte do corpo da menor. Com efeito, o arguido João desenhou pelo seu próprio
punho os instrumentos utilizados no esquartejamento (fls. 1885) – facto confirmado pela testemunha VR – e
participou na reconstituição, demonstrando como utilizou a serra e a faca, como os dois arguidos se entre-ajudaram,
como procederam aos cortes, o tempo que demoraram, como ensacaram as partes do corpo da menor e como as
tentaram colocar na arca frigorífica. A esta reconstituição, legal e válida porque feita voluntariamente pelo arguido,
assistiram as testemunhas VR (inspector da PJ) e AS (médico-legista), que também confirmaram o modo como o
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arguido procedeu à reconstituição, sendo que a testemunha VR confirmou ainda que a arca utilizada na reconstituição
foi apreendida na residência da arguida Leonor em 15.10.2004 (cfr. fls. 578 a 580 e fotografias a fls. 1712 ss). Por
outro lado, que os actos constantes deste auto de reconstituição constituem o que se passou, resulta deles serem
compatíveis com outros elementos de prova recolhidos. Repare-se que a testemunha L... confirmou ter em casa uma
serra que desapareceu e a testemunha AS, para além de esclarecer que do corte de um corpo morto há duas horas sai
pouco sangue, esclareceu ainda que os instrumentos que o arguido escolheu para utilizar na reconstituição eram os
que melhor se coadunavam com o acto, que o tempo que o arguido evidenciou ter despendido era adequado e não
excluiu a hipótese de o corpo de uma miúda magra, de 8 anos, caber naquela arca, embora “no limite”. Assim, não
podemos concluir com certeza que o corpo, ou todas as partes do corpo da menor tenham sido colocadas na arca, mas
que pelo menos as tentaram colocar lá resulta, não só do auto de reconstituição, como do facto de na arca, em
16.10.2004, terem sido recolhidos vestígios hemáticos da espécie humana no interior traseiro da segunda gaveta da
arca (cfr. fls. 585), o que foi novamente confirmado pelo relatório do exame efectuado pelo LPC (fls. 1780 ss, com
especial relevo para fls. 1786 (ponto B) e 1792). Recorde-se ainda que a testemunha GA explicou que os vestígios
hemáticos que foram recolhidos no interior da gaveta se encontravam precisamente no painel de trás da segunda
gaveta da arca. Ora se se poderia pôr a hipótese de o sangue humano encontrado na arca resultar do manuseamento da
arca por alguém ferido nas mãos, o facto de o sangue humano ter sido encontrado no interior da parte de trás da
gaveta afasta tal hipótese e aponta para a conclusão de ali ter sido colocado ou tentado colocar uma parte de um corpo
humano.
Como se deixou dito, nesta matéria o Tribunal deu particular atenção aos autos de reconstituição existentes no
processo, com reportagem fotográfica, a fls. 273 ss e 2100 ss.
No mais, nomeadamente quanto à gravação em vídeo de uma daquelas reconstituições, não necessitou o Tribunal, e
para o efeito que ora nos ocupa, de dela se servir. É que o auto de fls. 273 ss, para além de reproduzir, com patente
aptidão para o fim a que se destina, a reconstituição do facto que ilustra, ficou justamente circunscrito às
características modelares desse meio de prova, insusceptível de deriva em amálgama ou sequer confusão com
qualquer outro meio de prova.
Esclareça-se que se é verdade que os arguidos se remeteram ao silêncio e este não os pode desfavorecer (art. 343º 1
do Cód. Proc. Penal) – silêncio que se repercute na impossibilidade de o Tribunal poder proceder à leitura das
declarações anteriormente prestadas pelos arguidos (art. 357º do Cód. Proc. Penal) – isto não significa que não
possam ser levados em conta outros meios de prova como a reconstituição do facto ainda que nessa reconstituição
tenha participado qualquer dos arguidos – no caso, participou o arguido João.
Desde que a reconstituição do facto tenha sido obtida de forma legal e válida, trata-se de um elemento de prova a
valorar dentro dos limites legalmente estabelecidos (livre convicção criada com base na análise dos indícios segundo
as regras da experiência). Ora as duas reconstituições do facto efectuadas nos autos e supra referidas, foram obtidas
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de forma legal e válida, não tendo o arguido João sido sujeito a qualquer coacção ou mesmo pressão para proceder às
reconstituições. Aliás, ao acto de reconstituição de fls. 273 ss estiveram presentes um Magistrado do Ministério
Público e a Defensora do arguido, não podendo ser questionada a regularidade do acto; e ao acto de reconstituição de
fls. 2100 ss esteve presente, o médico-legista, além de elementos da Polícia Judiciária. E só quem tivesse tido a
vivência dos factos os poderia reconstituir do modo como foram, havendo ainda a confirmação através de outros
indícios de que os factos assim ocorreram (sangue humano na sala e na arca). O auto de reconstituição, não sendo um
auto de declarações, mas um registo objectivo da forma como o acto foi reconstituído e pôde ser observado por quem
lá estava (órgãos de polícia criminal, MP, defensora do arguido) não foi valorado em si mesmo ou de forma isolada,
mas em conexão com outros elementos conjugados com ele, permitindo uma leitura a outro nível e não exactamente
reconduzível ao acto em si.
Refira-se que a reconstituição do facto está especialmente prevista no art. 150º do Cód. Proc. Penal como um dos
meios de prova típicos (e diverso dos demais, nomeadamente diverso das declarações do arguido), definindo aquele
normativo os respectivos pressupostos e procedimento.
Nos termos do nº 1 deste art. 150º, a reconstituição do facto “consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das
condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.
Seguindo de perto a recente jurisprudência do STJ (Ac. de 5.1.2005, in CJ, ano XIII, tomo 1, p. 159 ss) se dirá que
pela sua própria configuração e natureza – reprodução tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se
supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo – a reconstituição do facto, embora não
imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a não exclui, sempre que este se disponha a participar na
reconstituição, e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação
da vontade (seja por meio de coacção física ou psicológica) que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como
métodos proibidos enunciados no art. 126º do Cód. Proc. Penal. Assim, o meio de prova previsto no art. 150º citado,
“só não será admissível se não tiver sido validamente adquirido: se na reconstituição, ou para criar os pressupostos de
facto necessários à reconstituição, tiver sido utilizado qualquer meio (tortura, coacção, ou, em geral, ofensa da
integridade física ou moral) que afecte a liberdade de determinação, o consentimento ou a disponibilidade do arguido
para a participação na reconstituição do facto. A reconstituição do facto, como meio de prova tipicamente previsto,
uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das
contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os
termos e o resultado da reconstituição. As declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que
tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos
próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for
processualmente adquirido”. Ainda, como consta do sumário deste Acórdão que se vem citando “a reconstituição do
facto como meio de prova, uma vez realizado e documentado em auto ou por outro modo (vg em registo audiovisual),
vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de
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demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, nos termos do disposto no art. 127º do
Cód. Proc. Penal, ou seja, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador” e “uma vez realizada no
respeito dos procedimentos legais a que está sujeito, nada impede que o julgador possa valorar, como meio de prova,
a reconstituição do facto para efeitos de formação da sua convicção, nos termo do art. 127º do Cód. Proc. Penal,
mesmo que o arguido em audiência de julgamento se tenha recusado a prestar declarações e tenha antes participado
em tal reconstituição; nada impedindo ainda que, nessas circunstâncias, os órgãos de polícia criminal que nela tenham
também intervindo, possam prestar declarações sobre o modo e os termos em que a mesma decorreu”. A autonomia
do meio de prova previsto no art. 150º do Cód. Proc. Penal determina que os termos da colaboração prestada pelo
arguido e as consequências derivadas no plano da aquisição probatória, não devem ser postos em causa caso venha a
invocar, em momento posterior, o direito ao silêncio, tal como não devem ser postas em causa, por exemplo, as
apreensões efectuadas na sequência de informações prestadas pelo arguido (salvo se a vontade e determinação do
arguido tenha sido perturbada, constrangida ou condicionada de tal modo que a situação possa ser enquadrada nas
proibições do art. 126º do Cód. Proc. Penal).
Ou seja, a reconstituição do facto, como meio de prova autónomo, não pode ser confundido com as declarações
prestadas nos autos pelo arguido, essas sim, expressamente previstas na lei processual penal como ‘não permitidas’ se
não se contiverem dentro do âmbito previsto no art. 357º, sendo que se tem como certo que, nos casos em que o
arguido não presta declarações em audiência, não pode haver contradições ou discrepâncias que possibilitem tal
leitura.
Já desde o Ac. do STJ de 11.12.1996 (BMJ 462, p. 299) se decidiu que os agentes da PJ que procederam à
reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, por essa
situação não estar abrangida pelo nº 7 do art. 356º do CPP.
Mais recentemente, no Ac. da RC de 22.10.2003, proferido no Proc. de Recurso nº 3054/2003, também se decidiu que
“havendo no processo auto regular, de reconstituição do crime em que tomou parte o arguido, mesmo que o arguido
se cale em julgamento, valem como prova as informações das testemunhas que a ele assistiram e descrevem os actos
pelo arguido praticados durante a mesma reconstituição”. E no Ac. da RC de 15.12.2004, CJ 2004, tomo V, p. 53
decidiu-se que “muito embora não possam ser tidas em conta as conversas informais do arguido com os agentes
policiais que intervieram na fase de inquérito, os depoimentos desses agentes sobre a reconstituição dos factos em que
participaram, reduzida a auto e complementada por fotografias, constituem prova susceptível de valoração”. Ainda no
Acórdão do STJ de 25.3.2004, proferido no Proc. 248/04 da 5ª Secção Criminal, se decidiu que “ainda que o arguido
não preste declarações em audiência, pode ser valorado o auto de reconstituição em que este livremente participou”.
Ali se refere que “são diligências diferentes, ainda que possam ser complementares, as declarações prestadas e a
reconstituição dos factos. Na primeira, é o discurso do declarante, de teor eminentemente verbal, que está em foco e é
valorado; na segunda é o modus faciendi que está em causa e nele a pessoa que procede à reconstituição mostra como
fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção e se a reconstituição é reduzida a auto, esse auto não é
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um auto de declarações, não obedece à lógica dele nem a ele se reconduz. A reconstituição é uma revivescência do
facto e da sua realização e se, de uma forma geral, não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto crucial da
reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial relevância”.
Para além dos autos de reconstituição e da prova testemunhal e pericial com eles relacionada e que os corrobora, é
ainda de realçar que várias das testemunha inquiridas referem a despreocupação da arguida com o “desaparecimento”
da menor, aceitando-o sem desespero ou angústia. Repare-se que a arguida só vai “procurar” a menor ao café entre as
22h 30m e as 23h (de acordo com a testemunha O...), mais de duas horas depois da Joana ali ter estado, não contacta
mais ninguém perguntando sobre o paradeiro da Joana e também não é por sua iniciativa que é contactada a GNR. De
realçar ainda a compra pela arguida de petróleo e de um esfregão de aço (fls. 876), com que lavou a casa no dia 18 de
Setembro, sendo que as testemunhas GA e JS referiram que a limpeza do chão e paredes da casa contrastava com o
estado de sujidade do resto da casa, nomeadamente no que se refere à louça e à roupa – ora este tipo de limpeza,
nestas circunstâncias, só é compatível com o desejo de eliminar indícios de sangue que pudessem manter-se na casa.
Pelo que podemos concluir que a representação feita pelo arguido João no auto de reconstituição de fls. 273 ss,
quanto ao desfecho das agressões, resulta da forma como estas se produziram, tendo eles sucessivamente aplicado
violência que se revelou apta a produzir embates da cabeça da vítima contra a parede, pelo que a todas as luzes não
podem ter deixado de intuir aquele desenlace. Já a forma como é levado a cabo o esquartejamento do cadáver, patente
no auto de reconstituição de fls. 2100 ss, não deixa dúvida quanto à directa intencionalidade do acto e bem assim
quanto ao respectivo motivo.
O que antecede é assim bastante para fundar a convicção do Tribunal relativamente aos correspondentes factos.
Acresce ainda, e relativamente à mesma factualidade, que a testemunha C... (padrasto do L...) declarou que o arguido
João lhe confidenciou que “tinham morto a miúda”. Também a testemunha A... referiu que a Leonor lhe disse que
“tinha dado uma chapada à Joana e o João acabou de a matar” (posteriormente a arguida Leonor teria tentado
justificar a afirmação dizendo ao L... que só tinha dito aquilo porque a PJ lhe tinha batido, porém no dia em que lhe
falou na agressão à Joana, a Leonor e o L... estavam sós e este não viu marcas na Leonor de que a mesma tivesse sido
batida, não havendo qualquer motivo para ela fazer tais afirmações ao companheiro se não fossem verdade). Claro
que os depoimentos destas testemunhas não podem ser vistos como confissão dos arguidos – que não confessaram,
mas optaram pelo silêncio durante a audiência de julgamento – mas isso não significa que não possam pura e
simplesmente não ser valorados pelo tribunal.
O art. 129º do Cód. Proc. Penal estabelece a proibição, em princípio, do testemunho que não verse sobre factos
concretos e de conhecimento directo, em particular do “testemunho de ouvir dizer”, por isso se determina a
necessidade de uma confirmação do depoimento indirecto, com a consequente audição das pessoas “a quem se ouviu
dizer”. Só após confirmação pode tal depoimento indirecto ser eficaz como meio de prova, só que no caso a
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confirmação teria que ser efectuada pelos arguidos e estes não prestaram declarações nem podem ser obrigados a
prestá-las. Por força do nº 7 do art. 356º do CPP, para o qual remete o nº 2 do art. 357º, não é permitido a reprodução
do conteúdo das declarações cuja leitura não é autorizada, com recurso a quem as tiver recolhido, o que bem se
compreende, mas coisa diferente é o testemunho de pessoa que não é órgão de polícia criminal e não recolheu
declarações, apenas perguntou e ouviu a resposta.
Aliás, os nossos tribunais superiores já decidiram que: “a prova por ouvir dizer, quando reportada a afirmações
produzidas extraprocessualmente pelo arguido, é passível de livre apreciação por parte do tribunal (Ac. da RC de
6.10.1988, BMJ 380, p. 552); “se a testemunha relata ter ouvido a confissão do próprio arguido, tal não configura
depoimento indirecto nos termos e para os efeitos do art. 129º do CPP (Ac. STJ de 15.11.2000, proc. 2551/2000-3ª);
“a prova por ouvir dizer, quando reportada a afirmações produzidas extraprocessualmente pelo arguido, é passível de
livre apreciação pelo tribunal quando o arguido se encontra presente em audiência e, por isso, com plena
possibilidade de a contraditar, ou seja, de se defender” – no caso o arguido tinha optado por se remeter ao silêncio em
audiência (Ac. RC de 18.6.2003, CJ 2003, tomo III, p. 51).
Também o Tribunal Constitucional já decidiu que “o art. 129º 1 (conjugado com o art. 128º 1) do CPP, interpretado
no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas
tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge,
de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso não
havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal forma não é inconstitucional” (Ac. Trib.
Constitucional nº 440/99 de 8.7, proc. 268/99, DR II Série de 9.11.1999).
Conjugado todo o conjunto de prova indiciária, criou o Tribunal a convicção de que a Joana está morta (não sendo
necessário o aparecimento do corpo face à convicção do Tribunal de que os arguidos o fizeram desaparecer da forma
descrita) e de que foram os arguidos que praticaram os factos. Todos os elementos apurados, apreciados em conjunto,
afastaram qualquer dúvida razoável e criaram a plena convicção de que ambos os arguidos cometeram os factos do
modo descrito neste acórdão.
11. O art.º 710.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável supletivamente, dispõe que
“a apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua
interposição”.
Assim, conheceremos em primeiro lugar do recurso interlocutório interposto pela arguida
Leonor .... Contudo, quanto aos recursos do acórdão condenatório não é viável conhecê-los pela
ordem de interposição, pois razões de imperativo lógico levam-nos a relegar o recurso do
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Ministério Público para último lugar. Efectivamente, versando este tão só a medida das penas, há
que estabelecer primeiro quais os factos provados e a sua qualificação jurídica, o que só ficará
concluído com a apreciação e julgamento dos recursos dos arguidos.
11. 1. Recurso interlocutório da arguida Leonor ...
O Código de Processo Penal estabelece a regra de que “são admissíveis as provas que não
forem proibidas por lei” (art.º 125.º do CPP).
Apesar da formulação desta norma legal parecer tautológica, dela podemos retirar que, por
um lado, são permitidos outros meios de prova que não apenas os configurados na lei, por outro,
que aqueles que aí estão previstos só se tornarão proibidos se forem obtidos por meios
expressamente excluídos, designadamente (mas não só), por tortura, coacção ou, em geral, ofensa
da integridade física ou moral das pessoas (art.º 126.º do CPP).
Um dos meios de prova configurados no Código de Processo Penal é a reconstituição dos
factos, pois «Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa
forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível,
das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de
realização do mesmo» (art.º 150.º, n.º 1)».
E a lei dispõe sobre o procedimento a adoptar nos seguintes termos: «O despacho que
ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora
e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com
recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de
operações determinadas» (art.º 150.º, n.º 2).
Da reconstituição do facto deve ser lavrado um auto, pois esse é o instrumento destinado a
fazer fé quanto aos termos em que se desenroL...m os actos processuais (art.º 99.º), mas o mesmo
pode ser parcialmente substituído ou completado por documentação audiovisual ou por outra
adequada, como a fotográfica, tal como resulta do citado art.º 150.º, n.º 2.
A reconstituição do facto, assim, é um meio de prova permitido, a valorar «segundo as
regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art.º 127º do CPP).
E nada impede que seja um meio de prova que pode ser levado à audiência, pois nesta «o
tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo
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conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa» (art.º
340.º, n.º 1).
Como já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 05-01-2005, proc. 3276-04,
relator Conselheiro Henriques Gaspar) «Pela sua própria configuração e natureza - reprodução,
tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto - a
reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a
não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não
tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja
por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como
métodos proibidos enunciados no artigo 126º do CPP.»
A colaboração do arguido na reconstituição do facto, porém, suscita um problema de
compatibilização com a prova por declarações. É que o arguido no decurso da reconstituição do
facto poderá fornecer algumas indicações verbais e, por isso, torna-se necessário saber se a prova
assim adquirida se engloba nos actos de inquérito ou instrução cuja leitura, em princípio, não é
permitida na audiência, por conterem declarações de arguido (art.º 356.º, n.º 1-b).
O arguido tem direito ao silêncio, sem que o mesmo o possa desfavorecer (art.ºs 61.º-c e
343.º, n.º 1) e tem direito a que não sejam lidas as suas declarações anteriores, mesmo que
prestadas perante juiz, salvo se nisso consentir ou se, querendo prestar declarações, seja
necessário reavivar-lhe a memória ou confrontá-lo com contradições (art.º 356.º, n.ºs 3, 4 e 6).
Ora, sobre a compatibilidade das provas por reconstituição e das que contêm declarações
do arguido pronunciou-se não só o referido Acórdão do STJ, como também, entre outros, o de 25
de Março de 2004, proc. 248/04-5, relatado pelo mesmo relator deste processo – acórdão que tem
o seguinte sumário: 1- As declarações prestadas em sede de inquérito e a reconstituição dos factos são diligências diferentes,
embora possam ser complementares: nas declarações, é o discurso do declarante, de teor eminentemente verbal e até
oral, embora reduzido a escrito, seguindo um encadeamento de perguntas e respostas, que está em foco e é valorado, e
nele o declarante, sendo o arguido, diz sobretudo o que fez, explica o modo de execução e as circunstâncias do acto;
na reconstituição dos factos, é o modus faciendi que está em causa, e nele a pessoa que procede à reconstituição
mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção (A lei diz: reprodução tão fiel quanto
possível das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do
mesmo).
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2- Trata-se, portanto, de uma revivescência o mais «ao natural» possível de uma situação. E, se esta
revivescência de uma forma geral não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto crucial da reconstituição,
visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial relevância.
3- Ao passo que não há declarações sem palavras e, mais especificamente, sem discurso verbal, já se admite
que uma reconstituição possa prescindir deles. A reconstituição é reduzida a auto – é certo -, mas esse auto não é um
auto de declarações, não obedece à lógica deste, nem a ele se reconduz. O que lá fica escrito não é o produto das
declarações; é a tradução para escrito de uma revivescência do que foi feito e que consistiu, sobretudo, numa
reprodução do acto que teve lugar no passado.
4- Daí que a reconstituição seja dirigida à obtenção de uma mais perfeita inteligibilidade do que aconteceu –
inteligibilidade em acto, que não propriamente em palavras. E daí que só quem viveu o acontecimento o possa
reconstituir de uma maneira inconfundível.
5- Não tendo as declarações prestadas pelo recorrente no inquérito e na instrução, na qualidade de arguido,
sido levadas em conta e tendo ele optado pelo silêncio na audiência de julgamento, sendo certo que este não pode
desfavorecê-lo, nos termos do art. 343.º n.º 1 do CPP, foram todavia considerados os outros meios de prova, entre os
quais o auto de reconstituição.
6– Este, não sendo um auto de declarações, mas um registo objectivo da forma como o acto foi reconstituído
e pôde ser observado por quem lá estava (os órgãos de polícia criminal, os demais intervenientes) não foi valorado em
si mesmo ou de forma isolada, mas em conexão com outros elementos objectivos, com outros dados constatáveis por
outras pessoas, com outros elementos conjugados com ele e permitindo assim uma leitura a outro nível, não
exactamente recondutível ao auto em si.
Por sua vez, o referido acórdão deste STJ de 05-01-2005 afirmou que «A reconstituição do
facto, como meio de prova tipicamente previsto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e
procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha
participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado
da reconstituição. As declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que
tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o
facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no
modo como o meio de prova for processualmente adquirido (...) O privilégio contra a auto-
incriminação significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a
contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer
informações ou elementos (v. g., documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações,
sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis
no plano da valoração probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal
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Europeu dos Direitos do Homem, no caso J. B. c. Suíça) (...) Sendo, porém, este o conteúdo do
direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais
e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas
tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição
probatória, ou a realização e a prática de actos processuais com formato e dimensão própria na
enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto.»
Face a estes dados jurisprudenciais, estamos em condições de afirmar que nenhum
obstáculo legal impede ou impedia o visionamento na audiência de julgamento da prova por
reconstituição dos factos, apesar do arguido João ..., que nela colaborou activamente, ter usado do
direito ao silêncio.
Trata-se de prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde
com a prova por declarações. Por outro lado, nenhum elemento nos permite duvidar que o arguido
João ... participou voluntariamente nessa reconstituição e que não foi sujeito a qualquer coacção
ou ofensa da integridade física ou moral, pois para além de aí se encontrar o Procurador da
República do Círculo, foi assistido no acto pela sua defensora, que estava presente.
Assim, tal meio de prova não era proibido por lei e tinha virtualidade para ser exibido na
audiência de julgamento através da sua gravação por meio audiovisual, pois, recorde-se, a lei
permite que a documentação do acto se faça dessa maneira. E anota-se que a gravação existe
como complemento de um auto escrito da diligência, no qual figura também uma reportagem
fotográfica, tudo a constar do I volume, fls. 273 a 294.
E como meio de prova legal e admissível podia ter sido objecto de livre apreciação pelos
julgadores, como foi (art.º 127.º do CPP), não se confundindo tal meio de prova, como vimos,
com declarações anteriormente prestadas e cuja leitura fosse proibida em julgamento.
É certo que o arguido, ao proceder à reconstituição, «falou», como diz o recorrente, isto é,
produziu um discurso verbal que acompanhou a reprodução em acto (poderíamos chamar-lhe em
sentido teatral, representação ou mise-en-scène, mas de um acontecimento não ficcionado) do
modus faciendi que envolveu a prática do crime. Porém, esse discurso verbal não se reconduz ao
estrito conceito processual de «declarações», sendo antes a verbalização do acto de recriação do
acontecimento. Por conseguinte, o discurso ou «declarações» produzidos não têm valor autónomo,
dado que são instrumentais em relação àquela recriação. Daí que num dos arestos atrás referidos,
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se tenha dito que «as declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que
tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o
facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no
modo como o meio de prova for processualmente adquirido».
E, por outro lado, as intromissões dos elementos da PJ e do Procurador da República que
intervieram no acto, tal como o visionamento do vídeo permite apercebermo-nos, não
corresponderam a nenhum interrogatório ou tomada de declarações, mas a pedidos de
esclarecimento que vinham na sequência dos passos que o arguido João ... ia reconstruindo, de
modo a possibilitarem a sua ligação e concatenação, a sua intelegibilidade e precisão, ou
simplesmente a pedidos de exemplificação.
Não podendo reconduzir-se a declarações de arguido as informações assim prestadas,
também não podem elas ser havidas como «conversas informais».
Conforme pode colher-se da jurisprudência sobre este assunto que este Tribunal tem
produzido, as chamadas «conversas informais» são declarações prestadas pelo arguido a órgãos de
polícia criminal à margem do processo, sem redução a auto e, portanto, sem respeitarem o
princípio da legalidade processual decorrente dos artigos 2.º, 57.º e segs., 262.º e segs., 275.º,
355.º a 357.º do CPP e art. 29.º da Constituição (nulla pena sine judicio), não podendo as
declarações assim produzidas serem valoradas como meio de prova e concorrerem para a
formação da convicção do tribunal (Cf., entre outros, os Acórdãos de 30/10/01, Proc. n.º 2630/01,
da 3ª Secção, relator: Conselheiro Armando Leandro; de 3/10/02, Proc. n.º 2804/02, da 5ª Secção,
relator: Conselheiro Pereira Madeira, e de 9/7/2003, Proc. n.º 615/03, da 3ª Secção, tendo como
relator o primeiro dos juízes-conselheiros indicados).
Ora, como vimos, as informações prestadas pelo arguido João ... não são declarações feitas
à margem do processo a órgão de polícia criminal; são a verbalização do acto de reconstituição
validamente efectuado no processo, de acordo com as normas atinentes a este meio de prova e
particularmente com o prescrito no art. 150.º do CPP, tendo o arguido feito a reconstituição de
livre vontade, sem estar sujeito a qualquer forma de coacção e com a presença da sua defensora.
Tais informações, ainda que prestadas, neste e naquele passo, a solicitação de órgão de polícia
criminal ou do Ministério Público, destinaram-se a esclarecer o próprio acto de reconstituição,
com ele se confundindo.
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Como se salienta num dos acórdãos citados, as referidas informações ou
declarações, integrando-se num meio de prova com uma configuração autónoma no conjunto dos
meios probatórios, estão para além do círculo protegido pelo direito ao silêncio, pois este tem
apenas o alcance de não colocar o arguido sob a obrigação de ter que prestar declarações ou
informações que o auto-incriminem, sem que do seu silêncio possam resultar consequências
negativas ou dele possam ser tiradas ilações desfavoráveis, mas não que não possam ser feitos
valer em julgamento meios de prova de dimensão e formato próprios para os quais ele tenha
concorrido voluntariamente, disponibilizando a informação necessária.
Deste modo, podendo a reconstituição ser levada a julgamento como meio de prova
específico, distinto de quaisquer declarações que o arguido pudesse ter prestado no inquérito ou
na instrução e que, em virtude da sua opção pelo direito ao silêncio, não pudessem ser lidas em
audiência, também se não vê que o visionamento do vídeo ofendesse qualquer proibição legal, à
luz das normas acima transcritas, ainda que tal suporte documental comportasse as informações,
isto é, os esclarecimentos por ele prestados na recriação do facto, e ainda que tais esclarecimentos
fossem prestados, algumas vezes, a solicitação dos órgãos de polícia criminal e do Ministério
Público intervenientes no acto e tendentes à sua melhor compreensão e concentração no essencial.
De qualquer modo, o tribunal de 1ª instância não se serviu da gravação em vídeo para a
condenação dos arguidos e nomeadamente das informações que foram sendo prestadas ao longo
da reconstituição.
Diz o Acórdão recorrido em determinado passo: «No mais, nomeadamente quanto à
gravação em vídeo de uma daquelas reconstituições, não necessitou o Tribunal, e para o efeito
que ora nos ocupa, de dela se servir. É que o auto de fls. 273 ss, para além de reproduzir, com
patente aptidão para o fim a que se destina, a reconstituição do facto que ilustra, ficou justamente
circunscrito às características modelares desse meio de prova, insusceptível de deriva em
amálgama ou sequer confusão com qualquer outro meio de prova.»
Por conseguinte, não obstante a legitimidade da exibição da gravação em vídeo em
audiência de julgamento, o certo é que, nos termos da fundamentação da convicção, nem sequer
foi preciso recorrer a ela para o tribunal formar a convicção decisória. E tal ressalta não só da
transcrita afirmação, mas de toda a fundamentação, que, extensa e exaustiva como é, nunca
recorre ao teor de quaisquer «declarações» ou «informações» prestadas pelo arguido João ... no
decurso da reconstituição para fundamentar a prova de qualquer facto, e esse seria um dado
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objectivo que conviria registar, se tal fosse necessário (que não é) para afastar a relevância para a
prova daquelas «declarações» ou «informações», visto o seu alcance e significado no meio de
prova específico que aqui se considera.
Assim, o recurso intercalar da arguida Leonor ... improcede, pois a sua pretensão era a de
que fosse declarado nulo o despacho do tribunal de Júri que permitiu o visionamento em vídeo na
audiência da reconstituição dos factos e não ocorre tal nulidade.
11. 2. Homicídio, profanação e ocultação de cadáver
11. 2. 1. Considerações gerais
Como resulta dos factos provados (e é do domínio público) nunca foi encontrado ou visto
o corpo da menor Joana, nem mesmo parcialmente.
Todavia, os dois arguidos foram condenados por crimes que têm como elemento típico e
necessário a morte da vítima.
Este é motivo para reflexão.
Não encontrámos nenhum caso semelhante que tenha sido julgado nos tribunais
portugueses.
A doutrina e a jurisprudência portuguesas são parcas em informação sobre esta
problemática, o que não sucede no Brasil, onde o tema é largamente debatido e até tem solução
legal, possivelmente por aí haver uma criminalidade mais violenta.
O Código de Processo Penal do Brasil dispõe no art.º 158.º que «Quando a infracção
deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo
supri-lo a confissão do acusado», mas o art.º 167.º refere que «Não sendo possível o exame de
corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a
falta».
N... Hungria, nos “Comentários ao Código Penal”, V, 63-65, reflectiu sobre este tema
assim:
«Prova da materialidade do homicídio. O homicídio é, tipicamente, um crime material: é
inconcebível sem que se verifique o evento morte de um homem. Como em geral nos crimes que
deixam vestígios, é base essencial da acusação, na espécie, o exame de corpo de delito, isto é, a
constatação da materialidade do crime. Nem mesmo a confissão do acusado, sem outro elemento
de convicção, supre a falta do corpus delicti pois o confitente pode ter-se equivocado ou ser um
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mórbido auto-acusador, ou ter sido coagido a declarar-se autor do crime.3* O exame de corpo de
delito pode ser directo (mediante a inspecção ocular e autópsia do cadáver, para averiguação da
causa mortis, meios que a produziram, etc.) ou indirecto (por meio de testemunhas, quando os
vestígio do crime não possam ser pericialmente verificados). Será possível o êxito de um processo
penal por crime de homicídio sem que apareça o cadáver da vítima? Dizia Carrara: “Não se
pode afirmar que existe crime de homicídio, enquanto não esteja averiguado que um homem
tenha sida morto por obra de outro. E não se pode dizer que um homem haja morrido, enquanto
não se encontra o seu cadáver ou, pelo menos, os restos deste, devidamente reconhecidos.” Tal
critério é demasiadamente rigoroso, e poderia, na sua irrestrição, conduzir à impunidade de
manifestos autores de homicídio. Haja vista o caso citado por IRURETA GOYENA: dois
indivíduos, dentro de uma barca no rio Uruguai, foram vistos a lutar renhidamente, tendo sido
um deles atirado pelo outro à correnteza, para não mais aparecer. Foram baldadas as pesquisas
para o encontro do cadáver. Ora, se, não obstante a falta do cadáver, as circunstâncias eram de
molde a excluir outra hipótese que não fosse a da morte da vítima, seria intolerável deixar-se de
reconhecer, em tal caso, o crime de homicídio. Faltava a certeza física, mas havia a absoluta
certeza moral da existência do homicídio. Conforme justamente observa GOYENA, não se deve
confundir o “corpo de delito” com o “corpo da vítima”, e para a comprovação do primeiro basta
a certeza moral sobre a ocorrência do evento constitutivo do crime. Somente enquanto seja
possível formular-se dúvida, ainda que mínima, em torno à morte da desaparecida vítima de uma
violência, que se deve afastar a possibilidade de imputação do homicídio. Eloquente advertência
em tal sentido foi um filme titulado Fúria, exibido, há alguns anos, nos cinemas brasileiros. O seu
episódio central era um crime de multidão contra um indivíduo suspeito de kidnapping e que fora
recolhido a uma cadeia pública. Os sediciosos atearam fogo à cadeia, que ficou reduzida a
escombros. Entre estes não foi encontrado o cadáver do prisioneiro, mas apenas um anel
reconhecido como de seu uso. Deduziu-se, então, que o corpo do desgraçado fora totalmente
consumido pelo fogo e, embora não estivesse excluída a hipótese de ter o prisioneiro conseguido
3 Por se haver desatendido a isso, com violação, aliás, do artigo 158 do Código de Processo Penal, é que ocorreu o famoso erro judiciário de Araguari, de que resultou a condenação dos irmãos Naves pelo suposto homicídio de Benedito Pereira Caetano, que, anos depois, retornava, vivo e são, da Bolívia, para onde se mudara, levando dinheiro subtraído a seus pais. A confissão dos acusados havia sido extorquida pela violência de um delegado militar.
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salvar-se, fugindo, sem ser visto, por uma brecha que se abrira na parede de sua cela, os
incendiários foram processados, e estavam a pique de ser condenados, quando, em plena sala de
julgamento, surgiu a pseudovítima: a hipótese de sua fuga e salvamento, até então rejeitada, era
a única verdadeira.
Se o fugitivo não tivesse voltado, movido por um impulso de generosidade, os sediciosos
teriam sido injustamente condenados por homicídio consumado. Desde que seja formulável uma
hipótese de inexistência do evento “morte”, não é admissível uma condenação a título de
homicídio. A verosimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e somente
esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é condenar um
possível inocente.»
E Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, 2, 19.ª edição, S. Paulo, 2002, pág.
66, também refere que «A prova do homicídio é fornecida pelo laudo de exame de corpo de delito
(necroscópico). Quando não é possível o exame directo (o corpo da vítima não é encontrado ou
desaparece), permite-se a constituição do corpo do delito indirecto por testemunhas, por
exemplo, não o suprindo a simples confissão do agente (art.ºs 156 e 167 do CPP)»
Também Magalhães Noronha, Direito Penal, 2, 27.ª Edição, S. Paulo, 1995 pág. 18, diz o
mesmo: «Prova-se o homicídio com o exame de corpo de delito, que, em regra, é directo. Na
impossibilidade deste, é aceitável o indirecto, constituído por testemunhas. Irureta Goyena cita o
caso de dois indivíduos que foram vistos lutando em um barco, tendo um deles arrojado o outro à
corrente caudalosa, não havendo o corpo sido encontrado⌠J. Irureta Goyena, El delito de
homicídio, 1928, p. 8⌡. Por falta de exame directo é que não deixaria de haver imputação de
homicídio.
Ressalve-se, naturalmente, o caso em que pode haver dúvida quanto ao resultado,
impondo-se, então, a solução favorável ao acusado. Lembre-se, por exemplo, que mesmo a
confissão do réu isolada não é prova bastante, como no caso que Carrara invoca de dois marujos
de Chiaja que se acusaram de haver afogado dois jovens que, entretanto, se tinham salvado e
viviam comodamente em Roma ⌠ Carrara, Programma, cit., § 1.088, nota 5⌡. Não só pode haver
equívoco como auto-acusação falsa.»
Encontrámos em http://juris.tjdf.gov.br/revista/D647.doc uma sentença exaustiva sobre
este tema, da Juíza de Direito do Distrito Federal de Brasília, Dr.ª Leila Cury, onde recolhemos os
seguintes trechos:
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A respeito do cabimento da realização de exame de corpo de delito indireto quando torna-se impossível a realização do exame direto
em face do desaparecimento do corpo da vítima, existe um caso concreto na literatura forense, ocorrido nos idos de 1964, mas bastante conhecido e
citado na atualidade, relativo ao julgamento de LEOPOLDO HEITOR, acusado de matar e ocultar o corpo da vítima DANA DE TEFFÉ. Aquele
acusado impetrou diversos habeas corpus visando sua soltura e/ou trancamento da respectiva ação penal, contudo, todos foram denegados, sendo
certo que um deles, julgado pelo Pretório Excelso, teve como relator o Eminente Ministro Victor Nunes, de cujo voto extraio o seguinte trecho,
litteris:
“... Alega-se ainda que a materialidade não se poderia comprovar pela falta de corpo-
de-delito, mas não é isso que acontece, pois o Código de Processo Penal, prescreve em seu art. 167,
que esta prova pode ser feita por intermédio de testemunhas, isto é, indiretamente, e os tratadistas,
como Espínola e outros, entendem ainda que para tanto basta apenas o depoimento de uma
testemunha. Ora, o Excelso Pretório já se pronunciou também a êsse respeito, quando do
julgamento de um dos “habeas corpus” impetrado pelo acusado Leopoldo Heitor, concluindo o
Ministro Gonçalves de Oliveira por que, se assim fôsse, muito fácil seria a qualquer criminosos
eliminar a sua vítima, ocultar seu cadáver e fugir dêsse modo à sanção penal ...” (HC 40.540/RJ DJ
13.08.64, p. 02825 – destaquei).
Em época mais recente, outro caso bastante semelhante ao de DANA DE TEFFÉ e ao de M. ocorreu na Comarca de Uberlândia-MG,
tendo como acusado DACI ANTONIO PORTE e como sua vítima MARIA DENISE LAFETÁ SARAIVA. Este fato foi julgado pelo Tribunal do
Júri daquela Comarca mineira, ocasião em que DACI foi condenado a pena de 13 anos de reclusão.
(...)
Invoco novamente o entendimento doutrinário a respeito do mesmo assunto, trazendo, por oportuno, à colação, o pensamento de
HENRIQUE FERRI, verbis:
“... Num século de civilização aumentam paralelamente a sagacidade e as manhas dos
criminosos; a ponto de para os descobrir e poder acusar, já não bastar apenas o senso comum, que,
no entanto, não é tão comum como certas pessoas julgam, mas ser necessária toda a lógica, que, por
isso, se tornou uma faculdade habitual de exercício judiciário (...) Esses crimes são tecnicamente
concebidos, tecnicamente preparados e tecnicamente ocultados. Porque o mais importante destes
crimes é a sua ocultação posterior, não só para evitar a condenação, o que é preocupação de todos
os criminosos, mas, sobretudo, para assegurar o gozo do produto do crime ...” (Discurso de acusação,
p. 167/168 – destaquei).
MITTERMAIER, a seu turno, in Tratado da prova em Matéria Criminal, p. 24, questionando o entendimento de CARRARA, assim
como já o fizera HUNGRIA, afirmou o seguinte:
“... que a certeza exigida como coisa essencial em matérias criminais não se pode
encerrar em regras científicas ou legais, mas repousa no senso íntimo e inato que guia o homem nos
atos importantes da vida (...) é um erro acreditar que a evidência material é a única fonte de certeza
(...) a sentença criminal não é resultado de cálculo aritmético...” (destaquei).
Em http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_desarquivando7.html pode ler-se
um artigo intitulado “A verdade republicana” de Fábio K. Comparato, onde, a propósito dos
crimes contra a humanidade se escreve: Os nossos militares decidiram, pois, recorrer a esse estratagema: os homicídios continuariam a ser praticados, mas seria dado
completo sumiço aos cadáveres. No começo dos anos 90 do último século, as instâncias internacionais decidiram-se, afinal, a enfrentar o
problema. Uma Resolução da Assembleia Geral das Nações, datada de 18/12/92, bem como a DECLARAÇÃO de Viena e o Programa de Acção
adoptado na Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, condenaram, pela primeira vez, a prática de desaparecimentos forçados,
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qualificando-os como uma forma disfarçada de homicídio. Finalmente, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 definiu esse ato como
crime contra a humanidade (art. 7, alínea/).
E em http://www.edmarger.com/article_CorpusDelicti.htm há uma referência ao Supremo
Tribunal de Justiça do Estado de Indiana (E.U.A.) de cujo enunciado de princípios se pode retirar
que não é preciso um corpo para estabelecer o crime de homicídio quando há a evidência de uma
morte e uma evidência adicional que permite a inferência de que a morte foi o resultado da acção
criminal de alguém. Esses factos podem ser provados apenas por provas circunstanciais. E aí
também se menciona uma decisão de um tribunal da Califórnia onde se escreveu que o facto do
assassino poder dispor do corpo da vítima com sucesso não o habilita a uma absolvição, essa é
uma forma de sucesso que a sociedade não recompensa.
Entre nós, só encontrámos a seguinte referência em Luís Osório, Notas ao Código Penal,
III, pág. 58, sobre os crimes em que a morte da vítima é elemento típico: «A morte é elemento
essencial em todo o crime consumado. Nalguns casos há talvez presunção de morte – vid. arts.
332.º e 344.º, § 2.º». Todavia, os crimes enunciados nestes artigos do C. Penal de 1886 referem-se
ao cárcere privado e à ocultação de menor de 7 anos, quando o autor do crime não mostra “onde
existe” o encarcerado ou o menor, pelo que a morte não é um elemento típico, mas a sua
presunção constitui uma agravante.
A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente
os vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no caso
de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem. Na verdade, a
impossibilidade de proceder a exame directo tornaria impune certos actos de enorme gravidade,
quer patrocinada pela alta criminalidade, quer pelo criminoso comum que, por engenho ou sorte
ocasional, conseguiu desfazer-se de todos os vestígios dos seus actos hediondos.
É evidente que o risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver
ou de algum vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o
aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
O erro judiciário pode sempre vir a ser corrigido, pois a lei prevê a existência de um
processo de revisão de sentença transitada em julgado, que ocorre, por exemplo, face à descoberta
de novas provas. Mas a reparação do mal pode revelar-se tardia e totalmente insatisfatória.
Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes
de homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi
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examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de violação só
porque não foi possível o exame directo à vítima.
Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma
solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e a de
presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento típico a
morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte (v.g., o
crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo, mas, na
impossibilidade de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha, devem ser
admitidos outros meios de prova que indiquem “a certeza moral sobre a ocorrência do evento”
(N... Hungria). Haverá, portanto, uma exigência acrescida quanto à avaliação da prova.
11. 2. 2. O caso dos autos
No caso em apreço, uma testemunha viu a menor Joana regressar a casa, já muito perto, e
cerca da hora a que ocorreu o crime; a arguida comunicou tardiamente às entidades policiais o
desaparecimento nunca explicado da menor; apareceram vestígios hemáticos no chão, nas
paredes, no balde e esfregona, na sola de umas sapatilhas que estavam na sala e no interior de uma
gaveta da arca frigorífica; o arguido João ... colaborou numa reconstituição dos factos na qual
indicou como veio a falecer a menor; colaborou ainda noutra reconstituição de esquartejamento da
menor; isto, para além do depoimento de quem ouviu os arguidos dizer que mataram (ou que o
João acabou por matar) a menor. Os referidos vestígios, segundo perícias efectuadas, são de
sangue humano e de sangue humano e animal (cfr. fls. 235), e embora fossem insuficientes para
averiguar a quem pertencem através do ADN (fls. 1780 ss), são reveladores de que na sala da casa
onde vivia a Joana e para onde ela se dirigia aconteceu algo terrível, algo que deu origem a que
houvesse sangue humano no chão e nas paredes, que foram limpos com uma esfregona e balde,
sendo que o sangue que estava na esfregona se encontrava na haste, revelador de que quem
utilizou a esfregona tinha por sua vez as mãos sujas de sangue.
Toda a prova aponta para a ocorrência da morte da menor Joana e é incompatível com
qualquer outra hipótese factual verosímil, que nunca ninguém, nem os próprios arguidos, tentou
conceber. Na verdade, como explicar a profusão de vestígios hemáticos humanos na casa da
Joana, mesmo no interior traseiro de uma gaveta da arca frigorífica, e simultaneamente o seu
desaparecimento?
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Por isso, face ao que já explicámos sobre o assunto, não será o facto de não ter sido
possível o exame directo do cadáver que impedirá a condenação por crime em que o resultado
típico é a morte da vítima ou por crime que tem como pressuposto essa morte.
Resta notar que nem os próprios recorrentes, nas conclusões dos seus recursos, colocam a
hipótese da Joana não estar morta.
O que parece significativo.
11. 3. Recurso da arguida Leonor ...
11. 3. 1. Como se lê no acórdão recorrido, “Percorrida” a prova testemunhal, verificamos
que não existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter visto cometer o crime.
Acresce que nem sequer existe prova directa do homicídio, pois que não apareceu o corpo morto
da menor.»
A prova do homicídio resultou, por isso, da avaliação que o Tribunal de Júri fez sobre um
conjunto de provas, de acordo com o princípio da livre apreciação do material probatório, o qual
postula que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras
da experiência e a livre convicção da entidade competente” (art.º 127.º).
A livre apreciação da prova significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que
predeterminem ou hierarquizem o valor dos diversos meios de prova (veja-se Figueiredo Dias,
"Direito Processual Penal, I vol. 1974, págs. 202 e segs.).
A livre apreciação da prova pode envolver, como é natural, uma grande dose de
subjectivismo, pois é impossível desligar o julgador da sua experiência pessoal, da sua cultura,
das suas ideias de vida, da sua moral, etc.
Porém, tal «princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação
imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida» (obra citada).
A discricionariedade com que o julgador aprecia a prova não pode confundir-se com
arbitrariedade. Por isso, «a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos
e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo...A verdade "material" que se busca em
processo penal não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, que todos
sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm,
irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata de conhecimento de
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acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de
prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal... - se revelam
particularmente falíveis» (idem).
Perante tal princípio da livre apreciação da prova, «uma das funções primaciais de toda a
sentença (máxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão... As
considerações feitas dão exigência de que as comprovações judiciais sejam sempre motiváveis»
(idem).
Por isso, o art.º 97º obriga a que todos os actos decisórios - sentenças, despachos e
acórdãos - sejam sempre fundamentados. E tal fundamentação tem de incidir, não só sobre os
aspectos de interpretação da lei, como era tradicional, mas também sobre a decisão da matéria de
facto, pelas razões já apontadas.
Efectivamente, o art.º 374º, n.º 2, dispõe sobre a elaboração da sentença que «ao relatório
segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem
como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto
e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram
para formar a convicção do tribunal».
Esse exame crítico das provas foi feito exaustivamente pelo tribunal recorrido.
Pede-se, agora, a este Supremo Tribunal de Justiça que, em recurso da decisão, reaprecie a
matéria de facto, dentro dos limites dos seus poderes de cognição.
Recorde-se que estamos perante um recurso directo da decisão final do Júri para o Supremo
Tribunal de Justiça que, como se sabe, é um tribunal de revista, só conhece matéria de direito, e a
cujos poderes cognitivos, portanto, escapa a sindicância da matéria de facto, exceptuado o que
resulta do exacto contexto do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, isto é, da
eventualidade de o texto do acórdão recorrido ostentar algum dos vícios a que ali se alude, no que
se convencionou designar, por isso, revista alargada – art.ºs 432.º, c), e 434.º.
Efectivamente, o art.º 432.º, al. c), determina que haja recurso directo para o Supremo
Tribunal de Justiça “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri”. Mas o art.º 434.º estabelece
que o recurso para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, “sem prejuízo do
disposto no art.º 410, n.ºs 2 e 3”.
Por sua vez, estas últimas normas dispõem que:
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2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de
direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão
recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do
tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de
nulidade que não deva considerar-se sanada.
Fora do âmbito deste art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, o recurso do acórdão final do tribunal de Júri
não pode ter outro fundamento quanto à matéria de facto, pois a lei não permite a impugnação dos
factos pela reapreciação das provas produzidas na audiência, que eventualmente pudessem impor
decisão diversa da recorrida.
Assim, ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se
pode recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas
documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-se
directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de se
invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, “desde que o vício (no caso do
n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência
comum”.
Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na
fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte.
Recorde-se que no direito anglo-saxónico não há recurso da matéria de facto quando o
julgamento se processa com Júri. As garantias de defesa provêm da escolha dos jurados e do
comprometimento da sociedade que aí se faz representar por estes. No nosso direito não é
exactamente assim, mas, ao se restringir o direito de recurso em matéria de facto, o legislador quis
prestigiar a intervenção do Júri, sem afectar de forma inadmissível os direitos constitucionais de
defesa.
Daí que, embora a lei determine que as declarações prestadas oralmente na audiência
devam ser documentadas na acta [quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou
estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas,
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bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser (art.º 363.º)], a falta dessa
documentação, nos casos em que há audiência perante tribunal de Júri, constitui mera
irregularidade processual que não afecta os direitos de defesa, pois não lhe é permitida a
impugnação dos factos provados e não provados mediante uma confrontação pela documentação.
A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no
momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas; servirá ainda para se
aquilatar se foi ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não “nega à
Arguida o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P.”, nem determina a
repetição do julgamento como alega a recorrente na conclusão 7ª do seu recurso, pois o recurso da
matéria de facto não passa, no caso de julgamento com Júri, pela reapreciação da prova
documentada na acta.
A irregularidade da falta de documentação em acta das declarações prestadas no
julgamento devia ter sido arguida no acto e, não o tendo sido, nem constituindo qualquer
diminuição dos direitos de defesa, considera-se sanada (art.º 123.º do CPP).
11. 3. 2. A recorrente invoca os vícios de insuficiência da matéria de facto para a decisão,
contradição insanável na fundamentação e o erro notório na apreciação da prova.
Como sabemos, estes vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarada em si
ou com recurso às regras gerais da experiência, mas sem que se possa lançar mão de outros
elementos extrínsecos à decisão, como decorre do disposto no art. 410.º, n.º 2 do CPP. Estes
vícios não podem ser confundidos, como frequentemente sucede, com erro de julgamento, que
resultaria de errada apreciação da prova produzida ou insuficiência desta para fundamentar a
decisão recorrida.
A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são
insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem -
absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena,
circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou
de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou
resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido
apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou
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determinação da pena (entre outros, cf. o Acórdão de 3/7/2002, Proc. n.º 1748/02 da 3ª Secção,
Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual 2002, p. 242).
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão «ocorre
quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma
ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e
ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação
probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão,
quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão» (Acórdão de
11/10/05, Proc. n.º 898/05 – 5.ª, relatado pelo Cons. Costa Mortágua).
O erro notório na apreciação da prova, por seu turno, consiste em o tribunal ter dado como
provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a
contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados
cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar
princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um
princípio ou regra fundamental em matéria de prova. Existe erro notório na apreciação da prova
quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a
decisão do tribunal sobre essa matéria de facto» (Acórdão de 30/1/2002, Proc. n.º 30/1/2002, da 3ª
Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual 2002, p. 16/17), sendo que
essa prova, não pode ser outra que não a que serviu de base à fundamentação da convicção do
tribunal, visto o erro ter de decorrer do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos
extrínsecos, nos termos já assinalados. E, em qualquer caso, o erro tem de ser perceptível pelo
homem médio, que é uma outra forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como
tem postulado a quase esmagadora maioria da jurisprudência deste Supremo, pois, de outro
modo, nem sequer se admitiria que pudesse haver julgamentos com intervenção de jurados, os
quais têm, como se sabe, uma importância decisiva no julgamento da matéria de facto, com maior
relevância e até com um sentido exclusivo nos países de forte tradição de jurados, como sucede
nos países anglo-saxónicos.
Ora, relativamente aos alegados vícios, a insuficiência da matéria de facto para a decisão
não ocorre manifestamente, dado que a matéria de facto adquirida é suficiente para a decisão de
direito, ou seja para se encarar a solução jurídica do caso sub judice nas várias vertentes
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relevantes possíveis, nomeadamente a condenação ou a absolvição, tendo presentes os factos
alegados pela acusação e pela defesa e os resultantes da discussão da causa.
Acontece que a recorrente, ao referir-se ao vício da insuficiência da matéria provada para a
decisão, pretende aludir à prova produzida na audiência de discussão e julgamento, ou seja, a erro
de julgamento e não a erro-vício, escapando aquele, como vimos, ao controle deste Tribunal. A
prova a considerar tem de ser, como já referido, a prova em que assentou a convicção do tribunal,
para, a partir daí e em conjugação com a matéria factual assente, ver se tal prova não poderia
suportar os factos que foram dados como provados, mas neste caso, não por força de uma
insuficiência da matéria de facto provada, mas como resultado de uma incongruência,
incompatibilidade ou ilogismo patentes, ou ainda por violação de regras gerais da experiência, de
regras ou princípios científicos ou de princípios atinentes à prova e que se impusessem como
limites à livre apreciação da prova e que só por erro patente não tivessem sido considerados ou
tivessem sido postergados. Neste último âmbito, poderemos já estar caídos no domínio dos
princípios que regem a livre apreciação da prova, cuja aplicação também é posta em causa neste
recurso, sendo de assinalar que, no entrelaçamento das questões, nem sempre é possível
compartimentar os diversos domínios, tão imbricados eles se encontram uns nos outros.
O tribunal «a quo», como já se disse, fundamentou amplamente e de uma forma
extremamente minuciosa a sua convicção em matéria de facto. Aliás, para além da preocupação
que sempre deve nortear o tribunal, um qualquer tribunal, em matéria de fundamentação, já que se
centra aí a pedra-de-toque de qualquer decisão e uma das vertentes fundamentais do
«compromisso» democrático do órgão de soberania «tribunais» com o povo, para além de uma
decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigos 2.º, 3.º, 202.º, n.º 1 e 205.º, n.º
1, todos da Constituição) o caso requeria uma fundamentação tão minuciosa quanto possível,
desde logo porque, não tendo aparecido o corpo da vítima e não tendo sido consequentemente
realizado exame ao respectivo cadáver para determinação exacta da causa da morte, a convicção
assenta em grande medida em provas indiciárias, acrescendo que os arguidos optaram pelo direito
ao silêncio e não há testemunhas directas dos factos.
Ora, o tribunal «a quo», consciente desta realidade, começou por analisar miudamente os
depoimentos de todas as testemunhas que depuseram em audiência, as quais, embora não tivessem
presenciado os factos que serviram de base à incriminação, relataram, todavia, «factos
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importantes para a convicção do tribunal», como se assinalou logo no começo da fundamentação
desta.
O que de relevante trouxeram tais testemunhas prende-se com factos ocorridos antes e
depois da morte da menor, um «antes» situado muito próximo do acontecimento, envolvendo
também uma história pregressa do relacionamento familiar, principalmente do relacionamento
entre a mãe e a menor, e um «depois» que vai dos momentos imediatos à prática do crime, até
momentos mais distanciados, alongando-se pelos dias que se seguiram ao desaparecimento da
menor Joana e durante os quais tiveram lugar eventos importantes do ponto de vista da sua
significação para a «leitura» do que aconteceu.
Os elementos trazidos por estas provas indirectas ou indiciárias foram conjugadas com
outras provas, como a reconstituição efectuada pelo arguido João ..., provas periciais quer à
personalidade dos arguidos, quer a vestígios recolhidos no local no seguimento de buscas e
apreensões, enfim, provas testemunhais, o que, tudo conjugado, de acordo com as regras da
experiência, permitiu ao tribunal extrair a ilação de que ambos os arguidos praticaram os factos
que deram origem à morte da menor Joana.
Por conseguinte, foram todos esses elementos, inseridos num todo ou numa unidade
significativa e significante, de que não é lícito, logo à luz das regras da experiência e também da
incindibilidade da convicção, fazer cisões ou compartimentações, mormente de carácter temporal
(o que se passou «antes» e o que se passou «depois», como se o «antes» e o «depois» se não
inter-relacionassem na produção de uma significação de conjunto), que estruturaram a convicção
do tribunal, que, diga-se, se apresenta de uma forma coesa, lógica e unitária.
Ora, o tribunal «a quo», depois de fazer um excurso, na forma assinalada, por toda a prova
produzida, descrevendo o que de relevante cada testemunha referiu ao tribunal e enunciando todos
os meios de prova que serviram de base à convicção, integrados pelas regras gerais da
experiência, particularizou as provas que serviram para dar como provados os factos integradores
do crime de homicídio, referindo concretamente a matéria provada nas alíneas aa), ac), ad), ae),
af), ag), ah), ai), aj), al), am), an), ap), aah), aai), aaj) e aam), indicando como base da convicção o
depoimento das testemunhas JP, GA, JS, VR, AS, A..., C..., C... e SS, os autos de reconstituição,
os autos de busca e apreensão, bem como a prova pericial subsequente.
De entre esta prova que foi indicada, ressalta o auto de reconstituição em que o arguido
João ... exemplifica o modo como o crime foi praticado. Esta reconstituição não foi, porém,
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avaliada só por si, mas em conexão com todas as outras provas produzidas, as quais mostram a
compatibilidade da reconstituição com essas provas e destas com aquela, referindo a decisão
minuciosamente todos os elementos probatórios e conjugando-os criticamente uns com os outros,
de modo a evidenciar o processo lógico seguido pelo tribunal para chegar à convicção a que
chegou.
Assim, os vestígios hemáticos recolhidos na sala (no chão e nas paredes) onde foi
praticado o crime e onde foi feita a reconstituição, e localização precisa daqueles, os vestígios da
mesma natureza encontrados no balde e na haste da esfregona de que a arguida se serviu para
proceder à sua remoção, os vestígios hemáticos da espécie humana encontrados no interior
traseiro da segunda gaveta da arca frigorífica, explicando o tribunal a forma como, a partir do
depoimento de uma testemunha especializada (um perito), chegou à conclusão de que esses
vestígios tinham de resultar da colocação ou tentativa de colocação nessa gaveta de uma parte de
corpo humano e não do manuseamento dela por alguém ferido nas mãos, a diversificada prova
carreada pelas testemunhas inquiridas, as quais, se não forneceram prova directa dos factos
probandos, referiram todavia factos considerados relevantes e que se conjugaram, como peças de
um «puzzle», para a intelegibilidade da acção dos arguidos.
Essas testemunhas depuseram de forma a que pudessem ser representados os passos dados
pela menor nos momentos que precederam imediatamente o crime, o trajecto feito por ela desde
que saiu da «Pastelaria C...», reconstituído com uma precisão cronológica comprovada por
diversos testemunhos, até praticamente ao momento em que entrou em casa, onde ninguém a viu
efectivamente entrar, mas que se pode dar como certo, a partir de vários depoimentos e
nomeadamente do de JP – a tal testemunha que estava a fumar à janela quando viu a menor passar
em direcção a casa, sendo curta a distância entre a sua e a residência que era a da menor e não
tendo vislumbrado movimento na rua, nem carros, nem ouvido qualquer grito.
Outras testemunhas referiram outros aspectos relevantes que, embora situados
cronologicamente depois da prática do crime, não deixam de ter significado quanto a este,
enquanto elementos conjugados numa unidade significativa, como sejam as que referiram a
despreocupação da arguida com o «desaparecimento» da menor, «aceitando-o sem desespero ou
angústia», o facto de a arguida não ter logo participado à polícia o pretenso desaparecimento da
menor, sendo a dona da pastelaria referida que, preocupada com tal suposto «desaparecimento»,
depois de ver, fechado o estabelecimento às 24,30 h., que a arguida não tinha feito participação a
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pretexto de não ter dinheiro no telemóvel, fez a respectiva comunicação. E ainda uma quantidade
de outros elementos, referidos com minudência na decisão, como a cena dos sapatos da menor,
que se encontravam todos (todos os que ela usava, incluindo os que trazia calçados nesse dia) em
casa, não conseguindo a arguida evitar de cair em contradição, quando questionada a tal
propósito pela testemunha S... Silva, irmã do companheiro com quem vinha partilhando a sua
vida.
Acresce o depoimento do companheiro da recorrente, A..., que referiu que a recorrente lhe
disse, quando o depoente, no decurso de uma visita aos calabouços da PJ lhe perguntou o que
aconteceu, que «tinha dado uma chapada à Joana e o João acabou de a matar» e tudo porque ela os
tinha visto a ter relações um com o outro, e o depoimento do padrasto daquele A..., que também
referiu que, no decurso de uma visita aos mesmos calabouços, o arguido João, a pergunta sua,
respondeu que «estava a ter relações com a minha irmã» e que «tinham morto a miúda». Porém,
porque a recorrente pôs em causa a valia de tais depoimentos, acerca do seu valor teceremos
oportunamente considerações autónomas.
Também os depoimentos dos agentes da PJ que estiveram presentes no acto de
reconstituição e relataram o que sobre ela observaram serviram de base à convicção dos
julgadores. Sobre tais depoimentos faremos também incidir a nossa análise de forma particular,
tendo os mesmos sido impugnados na sua legalidade pela recorrente.
O auto de reconstituição do esquartejamento do corpo, feito pelo arguido João, e a que
assistiu, entre outras testemunhas, um perito de medicina legal, que, ouvido em audiência,
relatou o modo como o arguido fez a reconstituição, os objectos que utilizou para o efeito (uma
serra metálica, adequada a cortar ossos e músculos, e uma faca, a cortar nervos e tendões) e a
ajuda que lhe deu a arguida nessa operação, a demonstração que fez a respeito da introdução das
diversas partes do corpo nas gavetas da arca frigorífica, tendo-se comprovado a forte possibilidade
de aqueles objectos terem sido efectivamente utilizados (a serra sendo provavelmente pertença do
companheiro da arguida, que a partir da data do crime deixou de a ver) entrou, a par de todos os
elementos já mencionados, na formação da convicção do tribunal.
Como também todo o comportamento da arguida tendente, nos dias seguintes, a apagar os
vestígios de sangue que ainda restavam, tendo adquirido petróleo e um esfregão de arame para o
efeito.
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Como ainda a sincronização de movimentos entre ambos os arguidos, numa verdadeira
luta contra o tempo e contras as suspeitas que poderiam atrair.
Enfim, foi toda esse material probatório e ainda outras provas indiciárias não mencionadas
aqui mas constantes da motivação que se reproduziu no ponto 10., que conjugados entre si e com
as regras da experiência, serviram de base à convicção dos julgadores, cuja explicitação foi
objectivada até onde o poderia ser, sendo que a convicção comporta sempre alguma margem que
não é recondutível a termos de pura racionalidade, sem que todavia se possa falar de
arbitrariedade, pois mesmo a actividade cognitiva que intervém na aquisição do chamado «saber
objectivo» não prescinde de uma certa carga de emoção, de subjectivismo e de convicção não
inteiramente objectivável, como têm salientado filósofos e cientistas da estirpe de Fernando Gil (A
Convicção) e António Damásio (O Erro de Descartes e Ao Encontro de Espinosa).
E convém assinalar mais uma vez que a convicção assim formada foi adquirida por um
tribunal de júri, que tem uma legitimidade acrescida, pois a sua constitucionalização para o
julgamento dos crimes mais graves, embora a sua participação não seja obrigatória (art. 207.º da
lei fundamental), se inscreve nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático no que
toca à democratização da organização judiciária (JORGE MIRANDA Constituição e Democracia
– Livraria Petrony, 1976, p. 308 e ss.).
Não quer isto dizer, evidentemente, que a simples participação de jurados exclua ou
atenue o controle que deve ser exercido pela instância de recurso sobre o processo de formação da
convicção do tribunal «a quo», mas, neste caso, a convicção, para além de estar escudada numa
fundamentação exaustiva, tem a suplementar garantia de nesse processo ter intervindo um tribunal
de júri, assegurando-lhe uma maior democraticidade, o que quer dizer, uma base mais ampla e
diversificada, de composição plural e heterogénea, como expressão concentrada da própria fonte
de onde emana a soberania e, portanto, uma maior fiabilidade.
Essa fundamentação suporta com plausibilidade, segundo o processo que foi objectivado
no raciocínio lógico que guiou a interpretação de todas as provas conjugadas entre si e com as
regras da experiência, a decisão que foi tomada em matéria de facto. Com efeito, essa solução
surge como consequência lógica e adequada à realidade das coisas, tendo em vista as provas de
que se serviu o tribunal e as ilações que segundo tal realidade – a da experiência vivida - elas
permitiam.
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Daí que se possa afirmar que a decisão de facto respeitou, a par do cumprimento de dever
de fundamentação, os princípios inerentes à livre, mas não imotivada, formação da convicção do
tribunal, de acordo com os critérios do art. 127.º do CPP, não aparecendo como arbitrária, ilógica
ou expressão do mero subjectivismo dos julgadores.
Ora, conjugando a fundamentação da convicção com a matéria dada como provada e não
provada, constata-se que a decisão recorrida não padece de qualquer dos vícios do art. 410.º, n.º 2
do CPP, ou seja: a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, sendo o
acervo factual suficiente para tal decisão e tendo o tribunal apurado toda a matéria relevante, de
acordo com a acusação e a defesa; a contradição insanável na fundamentação e entre esta e a
decisão, que de todo não ocorre, e especialmente o erro notório na apreciação da prova, sendo a
correcção desta um corolário de tudo quanto se afirmou precedentemente. A recorrente
manifestamente confunde todos estes vícios com o que, do seu ponto de vista, seria um erro de
julgamento, isto é, um erro de apreciação e valoração da prova produzida, que está para além dos
poderes cognitivos do STJ, que apenas se pode ater aos vícios manifestados no próprio texto da
decisão, por si só ou em conjugação com as regras gerais da experiência.
Mas vejamos algumas questões em particular, focadas na motivação de recurso.
11. 3. 3. Declarações dos arguidos
A recorrente pretende aludir à reconstituição cujo vídeo contendo os esclarecimentos que o
co-arguido João ... ia fornecendo a propósito da reconstituição foi exibido no julgamento. Ora,
sobre tal questão já em parte nos pronunciámos (Cf. o precedente n.º 11.1.) Aí tecemos
considerações sobre a legalidade do uso de tal meio de prova na audiência, apesar da opção pelo
silêncio feita pelos arguidos, não se confundindo a reconstituição com declarações de arguido
prestadas em inquérito ou na instrução, das quais estruturalmente divergem. E também dissemos o
suficiente sobre a natureza do discurso verbal produzido pelo arguido João ... no decurso dessa
diligência, o qual correspondeu à verbalização do acto de reconstituição, não sendo este um acto
puramente mudo, mas feito da utilização de diversas linguagens, fundamentalmente a linguagem
gestual e oral. E no que toca a esta última, a «fala» produzida pelo arguido não correspondeu a
«declarações» em sentido estrito ou técnico-jurídico, mas a esclarecimentos ou explicitações dos
passos que ia desenvolvendo na reconstituição do crime, muitas vezes a solicitação do órgão de
polícia criminal ou do Ministério Público, os quais pediam ao arguido que esclarecesse, por
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exemplo, as posições exactas dos intervenientes (dele, arguido, da recorrente e da menor), o local
onde a menor bateu com a cabeça na sequência das agressões, o local onde caiu, a posição em que
ficou, e que exemplificasse certas cenas, servindo-se para tanto de um banco, que representava o
corpo da menor.
Nesse contexto, concluímos que esses esclarecimentos ou informações disponibilizadas
pelo arguido para possibilitar a reconstituição não constituíam declarações que estivessem
abrangidas pela proibição do art. 357.º do CPP. Aliás, o tribunal «a quo» não se serviu, para a
formação da convicção, do vídeo que foi exibido, como foi expressamente declarado na respectiva
motivação, dela não constando efectivamente que as «declarações» ou informações que o arguido
foi debitando na reconstituição tivessem sido usadas como fundamento da referida convicção. O
que serviu de prova foi o próprio auto de reconstituição, onde foi precipitada a essência da
diligência.
Na reconstituição, o arguido João ... envolveu a recorrente. Todavia, esse
envolvimento não é o resultado de declarações de co-arguido, mas de um meio de prova com
configuração diferente, como foi assinalado. Com efeito, não foi em resultado de declarações
prestadas pelo arguido João ..., que até optou pelo silêncio no julgamento, que a recorrente, que
também optou pelo silêncio, foi atingida. Foi em resultado de uma reconstituição feita por aquele,
que é um meio de prova que pode ser feito valer em julgamento, não obstante os arguidos
escolherem a via do mutismo no respeitante à matéria da incriminação, como já foi devidamente
salientado.
Mas, mesmo que se pretenda assimilar a reconstituição nessa parte (isto é, na parte
que incrimina a recorrente) a declarações de co-arguido ou simplesmente estabelecer um paralelo
com elas, para o efeito de se lhe aplicar uma exigência acrescida de prova, aquela exigência que
se traduz na corroboração necessária das declarações de co-arguido por outros meios de prova,
dada a especial fragilidade dessas declarações, como tem referido a doutrina, particularmente
TERESA PIZZARRO BELEZA («Tão amigos que nós éramos»: o valor probatório do
depoimento de co-arguido no Processo Penal português», Revista do Ministério Público, n.º 74, p.
39 e ss.) e ANTÓNIO ALBERTO MEDINA SEIÇA, (O Conhecimento Probatório do Co-
Arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 205 e ss.), e também a jurisprudência deste STJ (entre outros,
os acórdãos de 30/10/01, Proc. n.º 2630/01 – 3.ª, relator - Conselheiro Armando Leandro;
de17/11/02, Proc. n.º 3210/02, 5.ª, relator - Conselheiro Pereira Madeira; de 5/6/03, Proc. n.º
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976/03 – 5.ª, relator – Conselheiro Simas Santos, de 18/11/04, Proc. n.º 3272/04 – 5.ª, relator –
Conselheiro Carmona da Mota e de 13/4/05, Proc. n.º 648/05 – 3.ª, relator – Conselheiro Antunes
Granxo) o certo é que a reconstituição não foi a única prova de que se serviu o tribunal para dar a
recorrente como comparticipante nos factos.
Como vimos já, foi toda a prova produzida conjugadamente com a reconstituição,
na inter-relação dialéctica de uma e outra, que contribuiu para a formação da convicção do
tribunal. A reconstituição dos factos, na forma como o arguido João mostrou que eles foram
praticados, incluindo a participação da recorrente, ajustou-se aos conhecimentos trazidos pelas
restantes provas, mesmo que não fossem provas directas, tornando aquela reconstituição
verosímil, e as restantes provas, por sua vez, adquiriram uma outra (inte)legibilidade com a
reconstituição. A decisão recorrida exprimiu a mesma ideia desta maneira: «O auto de
reconstituição (…) não foi valorado em si mesmo ou de forma isolada, mas em conexão com
outros elementos conjugados com ele, permitindo uma outra leitura a outro nível e não
exactamente reconduzível ao acto em si.»
Todo esse acervo probatório, preenche o tal requisito da corroboração por outros
meios de prova, que a doutrina focada, divergente de uma outra corrente doutrinal, que pretende
ver nas declarações de co-arguido uma prova proibida, com a consequente proibição da sua
valoração (entre nós, veja-se RODRIGO SANTIAGO, «Reflexões Sobre «As Declarações Do
Arguido» Como Meio De Prova No Código de Processo Penal de 1987», Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, 1994, n.º 4, p. 27 e segs.) e também a jurisprudência mencionada exigem, para
se poder conferir valor probatório às declarações de co-arguido.
Por conseguinte, ajustando-se a reconstituição, com o valor resultante das demais
provas, ao facto traduzido na supressão da vida da menor Joana, amolda-se também ela ao facto
de tal resultado ter sido produzido por acção de ambos os arguidos. Não só por ser indesmentível
a circunstância de ambos os arguidos se encontrarem em casa quando a menor aí teve o seu
trágico fim, como por força de todos as aquisições cognitivas que as restantes provas
possibilitaram, desde os vestígios de sangue humano já referidos e que persistiram depois das
aturadas acções de limpeza levadas a cabo principalmente pela recorrente, como também por todo
o comportamento que esta teve, já limpando imediatamente as manchas de sangue que ficaram no
chão e nas paredes, já colaborando com o arguido no esquartejamento do corpo e na sua
colocação ou tentativa de colocação nas gavetas da arca frigorífica, já exibindo uma atitude
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
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totalmente desfasada em relação ao pseudo-desaparecimento da criança, não comunicando o facto
à polícia imediatamente, a pretexto de não ter dinheiro no telemóvel, já mostrando uma atitude
despreocupada, segundo certas testemunhas, bem como sincronizando os seus actos com os do
arguido de uma forma que se pode considerar perfeita, no sentido de despistar suspeitas de quem
quer que fosse.
Um tal comportamento, se imediatamente se referencia ao crime de ocultação e profanação
de cadáver, não pode deixar de ter um significado profundo, segundo as regras da experiência, em
relação ao facto que produziu a morte, pois não seria normal uma mãe agir assim se ela própria
não tivesse uma ligação íntima ao que se passou antes, isto é, se não tivesse participado nos
factos. Um filho que cai fulminado no chão não é propriamente uma peça de louça que se parte e
cujos cacos se removem o mais depressa possível para serem deitados ao lixo com este sentimento
que normalmente acompanha esses acidentes: «Paciência! Acabou-se!»
Ora, todas estas provas e nomeadamente a reconstituição foram produzidas e examinadas na
audiência e como tal sujeitas ao princípio do contraditório, não podendo a recorrente invocar a
opção pelo silêncio de ambos os arguidos para arguir, por exemplo, a violação do princípio da
cross examination em relação às «declarações» que incorporam o próprio acto de reconstituição,
pois uma tal pretensão está para além do círculo de interesses que constituem a protecção
essencial daquele direito, integrado no direito à defesa. De qualquer forma, para além da
reconstituição em si, foram inquiridas testemunhas que assistiram ao acto e que a recorrente teve
oportunidade de contraditar em audiência, formulando as objecções que porventura entendesse e
pondo ou podendo pôr em causa as razões da sua credibilidade, particularmente naquilo que
afectava a sua posição enquanto comparticipante dos factos.
Deste modo e para concluir, mesmo fazendo a equiparação do acto de reconstituição com
declarações de co-arguido na parte em que o arguido João ... envolveu a recorrente, respeitaram-se
as exigências de particular cuidado na aquisição da prova que a doutrina e a jurisprudência deste
Tribunal associam às declarações de co-arguido, nomeadamente no que se refere ao requisito de
corroboração por outros meios de prova.
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Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
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11. 3. 4. Depoimentos de elementos da Polícia Judiciária.
A recorrente põe em causa a legalidade de tais depoimentos, tendo eles sido prestados,
como já foi referido, no âmbito das reconstituições que foram efectuadas, sendo certo que na
reconstituição do esquartejamento do cadáver, intervieram outras pessoas, como seja o caso de um
perito de medicina legal, para além daqueles elementos policiais.
Ora, esta questão tem sido inúmeras vezes abordada por este Supremo Tribunal e pode
dizer-se que a solução unânime que ela tem merecido não favorece a recorrente.
Efectivamente, a jurisprudência referida tem sistematicamente entendido que os órgãos de
polícia criminal só não podem depor em julgamento relativamente ao conteúdo de declarações
que tiverem recebido e cuja leitura não seja permitida, como será o caso das declarações
anteriormente prestadas pelo arguido quando ele opte pelo silêncio no julgamento, tudo nos
termos dos artigos 356.º, n.º 7, 357.º e 343.º, n.º 1, todos do CPP, mas não já relativamente a
factos de que tenham conhecimento directo obtido por meios diferentes das declarações de
arguido no decurso do processo. Assim, entre outros, os Acórdãos de 11/12/96, Proc. n.º 780/96 –
3.ª (relator: Relator: Cons. Flores Ribeiro); de 22/5/97, Proc. n.º 152/97 – 3.ª (Cons. Abranches
Martins); de 22/4/04, Proc. n.º 902/04 – 5ª (Relator: Cons. Pereira Madeira); de 15/1/05, Proc. n.º
3276/04 – 3.ª, este relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, tendo já sido referido a propósito
de recurso interlocutório da arguida e, na parte que aqui interessa, dizendo o seguinte: «Vista a
dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o
processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as
contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a
reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham
acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre o modo e os termos em que
decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos
das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na
proibição do art. 356.º, n.º 7 do CPP.»
Por conseguinte, o reparo da recorrente não tem fundamento à luz de tal jurisprudência,
que é também a que temos seguido, nomeadamente nos Acórdãos de 22/4/04, Proc. n.º 902/04 –
5.ª e de 8/7/04, Proc. n.º 1124/04 – 5.ª
A isso acresce que as referidas testemunhas depuseram sobre outros factos que
directamente presenciaram, como a localização espacial de certos aposentos da casa onde foram
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praticados os factos, os vestígios que encontraram e onde os encontraram, o estado em que
toparam a habitação, sobretudo os indícios das lavagens feitas com esfregão de arame e petróleo,
cujos recibos de compra surpreenderam na posse da recorrente e de que ela, segundo o
depoimento de uma dessas testemunhas, tentou desfazer-se, as pistas que seguiram a partir de
indicações falsas dos arguidos, os desenhos feitos pelo arguido João dos instrumentos que
serviram para o retalhamento do corpo de Joana, etc.
Ora, seria completamente descabido, à face da lei, que as entidades policiais não pudessem
depor sobre todos esses factos em relação aos quais o seu posicionamento não é outro senão o de
observadores ou de intervenientes e observadores, que, por terem neles participado, tiveram deles
um conhecimento privilegiado. Mas a lei, como vimos, dessas intervenções que não podem ser
objecto de testemunho só exclui, por razões evidentes, as declarações tomadas por aquelas
entidades.
Como acentua GERMANO MARQUES DA SILVA (Curso de Processo Penal, II,
Lisboa, 1993, pág. 140): "os órgãos de polícia criminal podem testemunhar sobre todos os factos
de que tenham conhecimento directo, só não podendo ser objecto do seu depoimento os
conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que
deveriam ser reduzidos a auto e não foram, sendo a leitura desse auto também proibida".
11. 3. 5. Depoimento indirecto
Duas testemunhas – o companheiro da recorrente, A..., e o padrasto deste, C... – referiram
no julgamento agressões por parte de ambos os arguidos à menor, sendo que o primeiro declarou
que a recorrente lhe disse, no decurso de uma visita nas instalações da Polícia Judiciária, a pedido
desta mas numa altura em que estavam sós, que «tinha dado uma chapada à Joana e o João acabou
de a matar», e o segundo, que o arguido João, também nas instalações da mesma Polícia, lhe
confidenciou que «tinham morto a miúda».
Trata-se de testemunhos indirectos. Além disso, o depoente A... disse ainda que a
recorrente, posteriormente e já no estabelecimento prisional de Odemira, desmentiu a afirmação
anteriormente feita, dizendo que não era verdadeira e que só a tinha produzido porque a PJ lhe
tinha batido, sendo certo que ela não apresentava sinais de ter sido agredida.
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Ora, estes testemunhos foram avaliados segundo o princípio da livre apreciação da prova e
não foram valorados em toda a sua dimensão nem literalmente, pois de contrário os factos dados
como provados e não provados teriam sido diferentes.
O que se questiona é o seguinte: podiam esses testemunhos ter sido avaliados segundo o
mencionado princípio?
A lei diz que o testemunho de ouvir dizer só vale se for indicada a pessoa a quem se ouviu
dizer e se o juiz chamar essa pessoa a depor, salvo se a inquirição não for possível por morte,
anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (art. 129.º, n.º 3 do CPP).
O objectivo da lei é, em substância, o de fazer com que a prova sobre os factos probandos
seja directa, imediata e sujeita a instâncias da defesa. Este objectivo contende, por isso, com a
natureza do processo acusatório, implicando as garantias de defesa (art. 32.º, n.ºs 1 e 5 da
Constituição), a realização do princípio do contraditório, que naquelas se inscreve, aqui sob a
forma de possibilidade de exercer o contra-interrogatório da testemunha ou cross examination, e o
princípio da imediação. Princípios que, como se vê, se articulam com a natureza de um processo
penal de raiz democrática-acustória, em contraposição a um processo inquisitório e não
democrático, como assinalou COSTA ANDRADE no seu célebre parecer publicado na
Colectânea de Jurisprudência (CJ), ano VI, 1981, tomo 1.º, p. 11, na fase de transição que mediou
entre a entrada em vigor da Constituição de 1976 e a entrada em vigor do novo Código de
Processo Penal, que só ocorreria em 1987.
A proscrição de testemunhos de outiva ou de ouvir dizer, na linha dos direitos de raiz
anglo-saxónica, que proibiam a hearsey evidence, não foi, porém, consagrada de forma absoluta.
Como vimos, o depoimento indirecto em princípio não vale como prova, devendo, para produzir
esse efeito ser confirmado pela pessoa nomeada e, por isso, sendo imediatamente de pôr de parte
se o depoente indirecto se recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte
donde promana a informação transmitida. Mas nos casos já referidos de o depoimento das pessoas
indicadas não ser possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de
serem encontradas essas pessoas, o depoimento indirecto vale com prova, podendo a esse título
contribuir para a formação da convicção do tribunal.
No dizer do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 213/94, relatado pelo Conselheiro
Ribeiro Mendes, e que faz uma excursão doutrinal sobre essa problemática, essa excepção revela-
se «como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do
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arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão
penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a
descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law) ⌠DR 2.ª S de
23/8/94⌡.
No caso dos autos, a impossibilidade resulta de os arguidos terem optado pelo direito ao
silêncio. Mas será que neste caso, estando a pessoa presente e não querendo prestar declarações
por força do seu estatuto especial, que é o de ser arguido, não pode de forma alguma o testemunho
produzir qualquer efeito de prova?
A esta questão parece responder, de alguma forma, embora em contexto que não é
inteiramente coincidente com o destes autos, um outro Acórdão do Tribunal Constitucional – o de
8/7/1999, relatado pelo Conselheiro Messias Bento – Acórdão n.º 440/99, proferido no Proc. n.º
268/99, que se pronunciou sobre um Acórdão deste STJ e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
Nesse aresto, estava em causa a valoração segundo o princípio da livre apreciação da
prova de depoimento de testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que
relatava, sendo que esse arguido, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do
seu direito ao silêncio.
O enquadramento factual, porém, continha algumas «nuances», como já foi assinalado, do
seguinte teor: as testemunhas (porque eram várias) tinham também participado nos factos, mas na
parte em que não participaram depuseram indirectamente, referindo a fonte de onde tinham
ouvido o que relatavam. Todas as pessoas indicadas foram chamadas a depor e puderam ser
contraditadas. Porém, o arguido em causa, também indicado como fonte, escudou-se no direito ao
silêncio.
Ora, o Tribunal Constitucional começou por equiparar esta situação de recusa à de
impossibilidade absoluta, decorrente da própria lei, de interrogar o mencionado arguido. E daí
partiu para uma outra equiparação: a de que «não há diferença substancial entre a situação do
arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito
ao silêncio para não depor». E assim, no contexto daquele processo, com as características já
sumariamente referidas, concluindo que as testemunhas puderam ser contraditadas, não havia
nenhum facto cuja prova tivesse assentado exclusivamente nos depoimentos indirectos, tendo o
tribunal apreciado tais depoimentos com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte
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impunha e de acordo com as regras da lógica e da experiência, sendo por isso razoável e
proporcionado que esses depoimentos tivessem sido valorados como meios de prova, o TC acabou
por decidir que:
(…) o artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128.º, n.º 1) do Código de Processo
Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos
indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido, que, chamado a
depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma
intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.
E acrescentou:
Não o atinge, ao menos na dimensão em que essa norma foi aplicada no caso.
Para concluir:
Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal
norma não é inconstitucional.
Ora, sendo evidentes as cautelas que o TC pôs no tratamento da questão, o cuidado em dar
o recorte concreto da situação e o escrúpulo em restringir os efeitos da decisão, bem evidenciado
no acrescento da parte final, que pusemos em destaque, cremos que o caso dos autos pode, de
certo modo, beneficiar da teoria ali exposta.
Com efeito, as testemunhas referiram ter ouvido os arguidos falar em agressões à menor
Joana. Todavia, os arguidos, presentes na audiência, usaram do direito ao silêncio e, por isso, não
foram questionados sobre esses factos, embora os respectivos advogados tivessem podido exercer
o respectivo contraditório em relação a essas testemunhas.
Os depoimentos apresentaram outras particularidades. No caso da testemunha A..., esta
referiu que foi a pedido da PJ que interpelou a recorrente Leonor sobre o sucedido, mas que, na
altura, o depoente e a arguida estavam sós na sala, acontecendo ainda que, mais tarde, no decurso
de uma outra visita, a recorrente desdisse o que antes tinha afirmado, pretextando ter sido
agredida por elementos da PJ, mas não tendo o depoente visto sinais dessa agressão, o que, diga-
se, abona a favor da autenticidade da testemunha.
Por outro lado, os depoimentos são relativamente vagos, pois aquele L... referiu que a
arguida Leonor disse que «tinha dado uma chapada na Joana e o João tinha acabado de a matar» e
o depoente Carlos referiu que o arguido João disse que «tinham morto a miúda». Em ambos os
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casos, referiram as testemunhas que os arguidos lhes comunicaram que estavam a ter relações
sexuais um com o outro, quando a menor entrou em casa.
Ora, o tribunal «a quo» valorou esses depoimentos segundo o princípio da livre apreciação
da prova, mas nessa valoração não parece ter excedido a prudência. Por um lado, foi depois de ter
concluído, na motivação da convicção, pela comparticipação de ambos os arguidos na aplicação
de violência física sobre a menor, que, a título de acrescento, referiu os depoimentos das citadas
testemunhas, iniciando esse parágrafo, quase na parte final, desta maneira significativa: «Acresce
ainda e relativamente à mesma factualidade …», o que sugere um mais em relação à prova
essencial já explanada ao longo de dezenas de páginas. Por outro, não considerou provadas as
relações sexuais e apenas parece ter retido dos depoimentos o que já estava comprovado por
outros meios de prova, ou seja, as agressões à menor.
Deste modo, tal como naquele acórdão do Tribunal Constitucional, podemos considerar
que a impossibilidade de ouvir a fonte citada pelas testemunhas, tendo resultado do direito ao
silêncio a que se remeteram os arguidos, que assim nada declararam sobre os factos versados nos
depoimentos, estando presentes na audiência, não é substancialmente diferente da situação
prevista na lei de impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada. E a isso acrescendo que a
prova dos factos não resultou em exclusivo dos referidos depoimentos indirectos, pois foi mais
um elemento (não decisivo) no conjunto das provas produzidas, e que o tribunal agiu com a
prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da lógica e
da experiência, será de concluir que a valoração dos depoimentos nesses termos relativos não
ofendeu o disposto no art. 129.º do CPP, em correlação com os direitos dos arguidos,
nomeadamente o direito de defesa consignado no art. 32.º , n.ºs 1 e 5 da Constituição.
Mesmo, porém, que fosse de considerar tais depoimentos como de nulo efeito em matéria
de prova, e visto que se não trata de um meio de prova proibido em termos absolutos, e por isso
não produz efeitos à distância, nem comunica a nulidade a toda a prova obtida por força da livre
convicção do tribunal, a consequência que daí poderia resultar seria pura e simplesmente a de
retirar efeito de prova a esses depoimentos, o que, vistas as contribuições probatórias que
entraram na formação da convicção do tribunal e a relativa, senão mesmo marginal importância
de tais depoimentos, não traria consequências relevantes para o resultado a que chegou, em termos
de convicção, o tribunal «a quo», não se perfilando por isso a alteração da matéria de facto dada
como provada e não provada.
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11. 3. 6. Quanto ao mais que a recorrente alega em matéria de provas indiciárias,
nomeadamente a entrevista que refere em que usava linguagem no passado e a vestimenta que
trajava , são – permita-se a metáfora - gotas de água no oceano. São pormenores que, se referidos
na decisão, não têm a importância que a recorrente pretende atribuir-lhes no conjunto de todo o
comportamento por ela manifestado e já dilucidado. Por isso, referir esses pormenores a uma
errada análise dos factos, para além de traduzir uma divergência quanto à apreciação e valoração
da prova produzida, que escapa, pelas razões já bastas vezes aduzidas, aos poderes de cognição
deste Tribunal, que são, no caso, os de uma revista alargada (isto é, os de reexame da matéria de
direito com extensão aos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP), significa tomar a parte pelo todo, ou,
para empregarmos outra metáfora de uso comum, confundir a árvore com a floresta.
Não vamos, por isso, perder mais tempo com tal questão.
11. 3. 7. Princípio in dubio pro reo
Refere a recorrente a violação do princípio in dubio pro reo, que se encontra plasmado na
Constituição sob a forma da consagração do princípio da presunção de inocência do arguido (art.
32.º, n.º 2).
O princípio in dubio pro reo vale para a matéria de facto, que não para a matéria de direito,
e vem a traduzir-se em que «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de
actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no
caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (FIGUEIREDO
DIAS, Direito Processual Penal, p. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, ele actua em todas as vertentes fácticas
relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo
incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo -, quer elas
digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma
terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a
determinação da pena.
Tem este Tribunal entendido que o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio
pro reo, se da decisão resulta que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto
e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido (entre outros, os Acórdãos de 5/6/03, Proc.
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n.º 976/03 – 5.ª e de 12/7/05, Proc. n.º 2315/05 – 5.ª, ambos relatados pelo Cons. Simas Santos, e
de 7/12/05, Proc. n.º 2963/05. 3ª, relatado pelo Cons. Flores Ribeiro ), ou ainda quando, não
reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar evidente do texto da decisão recorrida,
por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, naqueles casos em que se
possa constatar que a dúvida só não foi reconhecida em virtude de erro na apreciação da prova,
nos termos do art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP (entre outros, os Acórdãos de 30/10/01, Proc. n.º
2630/01 – 3.ª, relatado pelo Cons. Armando Leandro, de 6/12/2002, Proc. n.º 2707/02 – 5.ª,
relatado pelo Cons. Oliveira Guimarães, e de 24/11/05, Proc. n.º 2831/05 – 5ª, relatado pelo Cons.
Costa Mortágua, tendo como adjunto o aqui relator).
«A sindicância do princípio in dubio pro reo está limitada aos aspectos externos da
formação da convicção das instâncias: há-de ficar-se pela exigência de que tal convicção seja
objectivada e motivada na análise crítica das provas, dela sendo a expressão de um processo
racional convincente que suporte a conclusão final do tribunal recorrido pela valoração feita
deste ou daquele meio de prova» (Ac. de 20/10/05, Proc. n.º 2431/05 – 5ª, relatado pelo Cons.
Pereira Madeira).
Por conseguinte, a violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de
facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova com
expressão constitucional ao nível dos direitos fundamentais, pode ser sindicado pelo STJ.
Todavia, essa sindicação tem de exercer-se dentro dos limites de cognição desse Tribunal,
devendo por isso de resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do
art. 410.º, n.º 2 do CPP. Ou seja: quando, através de análise pertinente, se mostre que o tribunal
recorrido valorou contra o arguido uma determinada prova, apesar da subsistência de uma dúvida
razoável, ou porque o tribunal manifestamente desfavoreceu o arguido nessa situação, ou porque
por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como provado contra
o arguido um determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova, extraído do material
probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser
valorizada a seu favor, ou ainda quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da
motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize
numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar
dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
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Ora, a recorrente pretende ter sido violado o princípio in dubio pro reo, como resultado de
todas as deficiências que apontou à decisão, seja por desvalorizar a reconstituição como prova que
não podia ter sido reproduzida na audiência face ao silêncio dos arguidos, seja por considerar que
ela continha declarações de co-arguido que não podiam valer contra a recorrente, seja ainda por
entender que foram valorizados contra a lei depoimentos indirectos ou depoimentos de entidade
policial, ou ainda porque a prova era insuficiente para a condenação, não tendo havido prova
directa do crime ou tendo sido incorrectamente valorados contra ela os elementos probatórios
carreados pelos escassos meios de prova. Porém, tudo isso foi já amplamente analisado nos
números precedentes, tendo-se concluído pela compatibilidade lógica, racional e de acordo com as
regras da experiência das conclusões em matéria de prova com o sentido evidenciado pela análise
dos diversos meios de prova que a motivação da convicção exaustivamente põe em destaque.
Deste modo, só nos resta concluir que a decisão recorrida não patenteia a violação do
princípio in dubio pro reo por qualquer das formas que vimos que ele podia ser revelado.
Quanto aos restantes problemas, nomeadamente no que se refere à qualificação do crime e
à pena, eles serão analisados ulteriormente, conjuntamente com a análise do recurso do arguido
João ... e do Ministério Público.
12. Recurso do arguido JOÃO ...
12. 1. Nulidades do acórdão recorrido:
O recorrente invoca nulidades do acórdão recorrido que percorreremos rapidamente, pois é
manifesta a sua falta de razão.
Diz ele que a “reconstituição” de 25/09/2005 está ferida de nulidade, não podendo ser
utilizada por violação do disposto no citado art.º 126º do CPP, pois o arguido esteve votado a um
desgaste físico e psicológico, impedido que esteve de descansar por mais de 80 horas.
A verdade, porém, é que esse “desgaste físico e psicológico” não está documentado nos
autos (nem evidentemente alguma vez estaria). Mas, mais importante, é que, para além do
Ministério Público, representado pelo Procurador de Círculo, a defensora do ora recorrente esteve
presente no acto e não suscitou a questão, o que afasta qualquer dúvida sobre a voluntariedade da
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conduta do recorrente, que livremente quis colaborar então, mas não agora, na descoberta da
verdade.
Improcede esta alegada nulidade.
12. 2. Documento de fls. 1885 e sua validade
Diz o recorrente, também, que “o documento de fls. 1885 é anexo e parte integrante de um
auto de interrogatório de arguido em sede de inquérito – fls. 1878 – perante órgão de polícia
criminal, no qual a testemunha VR foi inquiridor, mas, por força do n.º 7 do art. 356.° do CPP,
para o qual remete o n.º 2 do art. 357.°, não é permitido a reprodução do conteúdo das declarações
cuja leitura não é autorizada, com recurso a quem as tiver recolhido, cuja consequência legal é a
nulidade insanável, nunca podendo aquela ser validada como prova ou valorada como tal para
efeitos de decisão condenatória, o que se verifica”.
Todavia, na audiência foi examinado o documento de fls. 1885 e não as declarações do
arguido em sede de inquérito, no decurso das quais terá elaborado esse documento (um desenho).
Também improcede esta alegada nulidade.
12. 3. Parentesco entre os arguidos
Invoca o recorrente que dando-se por provado o facto a que se refere a alínea a) (os
arguidos são irmãos), o acórdão recorrido é completamente omisso quanto aos meios de prova que
serviram de base à formação da convicção do tribunal, em completa violação do dever de
fundamentação, imposto nos art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), do CPP.
Contudo, na identificação dos arguidos perante o tribunal na audiência de julgamento, na
qual os mesmos estavam obrigados a responder com verdade, disseram ter os mesmos pais. A
prova, portanto, resultou das suas próprias declarações e, portanto, o tribunal não tinha de
fundamentar o que eles próprios admitiram.
Também não se verifica esta nulidade.
12. 4. Alteração dos factos constantes da acusação e contradições
O recorrente alega ainda que existe uma condenação por factos diversos dos descritos na
acusação, o que nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 379º do CPP redunda na nulidade da
decisão ora recorrida.
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Porém, não basta qualquer modificação dos factos da acusação para que ocorra a invocada
nulidade, pois os factos diversos dos descritos na acusação que geram nulidade da decisão são só
os que estejam «fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º». Ora, estas
normas referem-se às condições em que o tribunal pode fazer uma alteração substancial ou não
substancial dos factos da acusação e reportam-se a factos «com relevo para a decisão da causa»
(alteração não substancial – art.º 358.º) ou que tiverem por efeito a imputação ao arguido de um
crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (alteração substancial –
art.º 1.º-f).
E que factos diversos são esses no caso dos autos?
O recorrente diz que o ponto 87 da Pronúncia – “Esquecendo-se de guardar nos sacos os
sapatos que a menor tinha calçados, pelo que todos os seus pares de sapatos ficaram na casa”, é
diferente do facto provado sob a alínea ao): “os arguidos não colocaram os sapatos que a menor
tinha calçados nos sacos, tendo ficado em casa todos os pares de sapatos que a menor utilizava
naquele Verão”. Porém, não se vê que relevo tem para a decisão condenatória a ligeira mudança
operada.
Quanto à apontada incongruência entre a alínea q) dos factos provados com o facto dado
como não provado no ponto 5, diz respeito ao tratamento que a arguida Leonor dispensava à filha,
só a ela dizendo respeito, não se percebendo por isso por que é que o recorrente levanta o
problema, quando nem a arguida a quem o facto se reporta o levantou. A decisão, nesse aspecto,
não foi contra ele proferida.
O mesmo sucede com a alínea aab) em contraposição com o ponto 105, dizendo o
recorrente: “a arguida por vezes falava da filha no passado e vestia blusa preta é indiscutivelmente
diferente de “estar de luto” como se pretende na pronúncia”. Este facto também nada tem a ver
com o recorrente, mas com a arguida Leonor, que não arguiu a pretensa contradição ou alteração.
E quanto aos pontos 12, 16, 21, 24, 30, 31, 41, 47, 51, 52, 53, 54, 57, 59, 60, 68, 69, 73,
80, 83, 91, 96, 107, 113, 114, 117 e 125, que o recorrente diz estarem em contraposição com os
factos dados como provados, o mais que se pode dizer é que cabia ao recorrente o ónus de
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explicar que diferenças são essas “com relevo para a decisão da causa”, pois não compete a este
Tribunal fazer uma procura que só a ele, recorrente, cabia, e investigar por ele em que medida a
defesa foi afectada.
De resto, é impensável que o tribunal de julgamento estivesse vinculado aos dizeres da
acusação, nos seus mais ínfimos pormenores, não podendo alterar nada (nem mesmo a sua
redacção, por vezes defeituosa ou errática) sem o conhecimento prévio dos arguidos, pois o que se
visa quando se tem de dar esse conhecimento é assegurar a plenitude dos direitos de defesa.
De modo que improcede igualmente a arguição destas nulidades.
12. 5. Nulidade por falta de indicação de provas
Por fim, o recorrente diz que o acórdão ora recorrido sofre de nulidade insuprível por falta
de indicação de provas que serviram para formar a convicção do julgador. E que também é nulo
por não conter a enumeração de todos os factos relevantes para a decisão da causa, provados e não
provados, desta feita, os constantes da acusação.
Estas alegações não estão devidamente explicadas e são manifestamente infundadas, pois é
exuberante a preocupação que o tribunal recorrido teve em enumerar todos os factos provados e
não provados, quer os alegados na acusação, quer os resultantes da audiência, já que os arguidos
ofereceram o mérito dos autos. Para além de se constatar que a fundamentação e o exame crítico
das provas foram pormenorizados e exaustivos, como já foi salientado.
Improcedem manifestamente estas alegadas nulidades.
12. 6. Reconstituições
Quanto aos problemas levantados com as reconstituições, nomeadamente quanto à
especificidade deste meio de prova, diferente das declarações ou depoimentos prestados em
inquérito ou instrução e podendo ser reproduzido em audiência sem violação do disposto no art.
357.º do CPP, porque tais problemas são comuns com os levantados pela arguida Leonor, remete-
se para as considerações expendidas no ponto 11. 1.
Quanto ao valor delas para a formação da convicção no conjunto da prova produzida,
remete-se para os pontos 11. 2. e 11. 3. 2.
12. 7. Declarações dos arguidos
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Quanto ao aspecto de os arguidos terem usado do direito ao silêncio e a colisão com tal
direito da alegada reprodução de declarações anteriores, deve confrontar-se o ponto 11. 3. 3., onde
a questão foi analisada com desenvolvimento.
12. 8. Depoimentos dos órgãos de polícia criminal
Sendo a questão exactamente a mesma que a colocada pela arguida Leonor, deve ver-se o
que ficou exarado no ponto 11. 3. 4.
12. 9. Vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, fundamentação da decisão e motivação da
convicção
Nesta parte remete-se para o teor da explanação constante do ponto 11. 3. 2., onde a
questão dos vícios foi extensamente desenvolvida em correlação com a análise da motivação da
convicção e a sua conformidade com as exigências de fundamentação do art. 374.º, n.º 2 do CPP
e com as regras e os princípios basilares de apreciação da prova, nomeadamente nos termos do
art. 127.º mesmo diploma legal.
12. 10. Princípio in dubio pro reo
Sendo esta problemática também comum à arguida Leonor, remete-se para o ponto 11. 7.,
impondo-se a teoria aí desenvolvida com razões acrescidas ao aqui recorrente.
13. Conclui-se, assim, que o recurso interposto pelo arguido João ... não merece
provimento em nenhuma das questões formuladas, que a seu ver determinariam o reenvio do
processo para novo julgamento.
14. Qualificação dos factos
14. 1. O homicídio
Os factos, tais como foram dados por provados consubstanciam indubitavelmente o crime
de homicídio, praticado em comparticipação por ambos os arguidos e com dolo eventual.
É que, entre o mais, foi dado como provado que:
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A dada altura, por motivo não concretamente apurado, ambos os arguidos começaram, em
conjunto, a dar sucessivas pancadas na cabeça da menor Joana, levando-a a embater com a cabeça
na esquina da parede, sendo visível que sangrava da boca, nariz e têmpora, mercê dos embates na
parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte, cessando então a actividade dos
arguidos (facto dado como provado sob a alínea ab)
e que
(…) no que se refere ao tirar da vida de Joana..., sua familiar directa (filha e sobrinha), o
que fizeram utilizando a força, aproveitando-se de a mesma não poder defender-se (tendo em
conta a idade e compleição física) e empregando a força bem sabendo que, tendo em conta o local
vital em que atingiam o seu corpo (a cabeça) repetidamente e com violência, levando a que a
cabeça embatesse na parede, lhe poderia retirar a vida, consequência que aceitaram, não cessando
mesmo assim essa actividade (facto dado como provado em aaj).
Para dar como provado esse dolo eventual, o tribunal «a quo» serviu-se, como vimos, de
toda a prova em que se estribou a convicção, e não apenas da reconstituição feita pelo arguido
João, sendo que aqui também relevam, para além das provas directas, as provas indirectas,
permitindo a apreensão dos factos probandos a partir de deduções e induções objectiváveis a partir
de factos indiciários, (Acórdão de 9/7/03, Proc. n.º 615/03 – 3.ª, relatado pelo Cons. Armando
Leandro) e tendo a prova um sentido unitário que não é possível dissociar enquanto unidade de
significação que foi apreendida, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas e as
regras da experiência, pelo tribunal de júri.
O tribunal «quo», na motivação da convicção, nunca se ateve só a um meio de prova, em
especial a reconstituição e os depoimentos de certas testemunhas, mas a toda a prova
conjugadamente apreciada, sendo visível o seu esforço para correlacionar todos esses elementos.
E no final concluiu:
Pelo que podemos concluir que a representação feita pelo arguido João no auto de
reconstituição de fls. 273 e ss., quanto ao desfecho das agressões, resulta da forma como estas se
produziram , tendo eles sucessivamente aplicado violência que se revelou apta a produzir
embates da cabeça da vítima contra a parede, pelo que a todas as luzes não podem ter deixado de
intuir aquele desenlace.
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E se isso foi assim quanto à previsão do resultado como possível, face ao anteriormente
dado como provado («sucessivas pancadas aplicadas na cabeça da menor Joana, levando-a a
embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava da boca, nariz e
têmpora, mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte,
cessando então a actividade dos arguidos»), também o foi relativamente à aceitação das
consequências possíveis de acordo com tal previsão, sendo que este elemento subjectivo, que é de
ordem psicológica, mas também normativa, sendo de difícil objectivação em termos de
racionalidade do processo de apreensão da realidade, se extrai de todo o comportamento mantido
pelos arguidos, analisado à luz das regras da experiência.
Temos, pois, um crime de homicídio cometido em comparticipação e com dolo eventual.
Mas esse crime foi ainda cometido em circunstâncias que têm de ser realçadas, porque
relevantes para a sua caracterização típica.
Estamos a referir-nos a circunstâncias qualificativas típicas que agravam especialmente o
crime de homicídio, como são as do art. 132.º do CP.
Este art.º 132.º reporta-se ao homicídio qualificado e nele o legislador não quis organizar
as circunstâncias qualificativas de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta,
embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das
circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito
legal de homicídio qualificado.
Trata-se de um tipo de culpa, que começa por enunciar no seu n.º 1 uma cláusula geral ou
um critério generalizador, com recurso a elementos atinentes à culpa: “Se a morte for produzida
em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com
pena de prisão de 12 a 25 anos”.
Mas aliou-se essa formulação genérica à “chamada técnica dos exemplos-padrão, que
funcionam como critério especializador, em que a cláusula geral é concretizada por diversas
circunstâncias enumeradas no n.º 2, mas de forma exemplificativa, que não taxativa (Cf.
FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 25 e ss. e TERESA
SERRA, Homicídio Qualificado – Tipo De Culpa E Medida Da Pena, 2000, p. 15).
Alguns desses exemplos-padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132.º deste modo: «É
susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número
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anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado
ou adoptante, da vítima; b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de
idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar
o sofrimento da vítima; d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar
sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou
fútil; e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político; f) Ter em vista preparar, facilitar,
executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um
crime; g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio
particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; h) Utilizar
veneno ou qualquer outro meio insidioso; i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os
meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;...».
Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma
afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas, «entre
outras», as circunstâncias que podem concretizar a especial censurabilidade ou perversidade. E,
como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal (Acs. STJ
de 2002/11/14, proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc. n.º 43109, de
1997/12/16, proc. n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in www. dgsi.pt.).
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º leva a
que possa ocorrer um homicídio em que se verifique alguma das circunstâncias previstas no n.º 2
e, contudo, não se tratar de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância
pode não revelar “especial censurabilidade ou perversidade” (n.º 1), como pode suceder o
contrário: a circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga a
qualquer delas (Comentário…,p. 26) e poder integrar-se no tipo especial de culpa.
Vem a doutrina entendendo, embora dividida, que os exemplos-padrão se prendem
essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a
um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho),
não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa Leal Henriques e Simas
Santos assinalam no “Código Penal Anotado”, II, pág. 61 e segs., que não é exacta a afirmação do
Ac. do STJ de 1990/06/06 de que “no caso de parricídio a regra é a de que se verifica especial
censurabilidade ou perversidade”, pois esta tem de ser sempre comprovada).
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Como se diz no Acórdão deste STJ de 11/12/1996, proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), “A
qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de
qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial é que as
circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou
perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade)
daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples».
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. cit., págs. 63 a 65):
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se
funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é,
censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No
artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi
causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente
em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial
perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido
determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela
sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode
reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que
fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que
prevalecem as tendências egoístas do autor, especialmente perversa, especialmente rejeitável,
será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e
determinaram quase exclusivamente a conduta do agente. Importa salientar que a qualificação de
especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do
homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas
circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto
lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou
perversidade do agente que o comete».
No caso dos autos há uma especial censurabilidade, pois, em primeiro lugar, a arguida
Leonor era ascendente da menor, tendo o especial dever de não cometer o crime e até de evitar o
resultado por meio de acção adequada, por força de um especial dever de garante (Cf. TAIPA DE
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CARVALHO, Comentário …, p. 846 e ss.) e em segundo lugar, porque ambos os arguidos
praticaram o crime contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, pois trata-se de
pessoas adultas que agrediram, com violência e repetidamente, uma criança que em Setembro de
2004, tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20 metros e 1,40 metros.
A isso acresce, e no que diz respeito ao arguido João ..., o facto de ser tio da menor, o que,
por um lado, lhe conferia um dever especial, embora não equiparável ao da mãe, de zelar pela
saúde e bem-estar da sobrinha, por outro, conferia-lhe uma autoridade familiar sobre a mesma.
Acentue-se ainda que agiram os dois contra a menor, praticando actos de considerável
violência sobre ela.
Esse cicunstancialismo, aliado às circunstâncias previstas nos exemplos-padrão (alíneas a)
e b) do n.º 2, no caso da arguida Leonor, e alínea b), no caso do arguido João ..., revelam uma
especial censurabilidade, uma culpa acrescida que qualificam o crime de homicídio, mas só pelas
referidas alíneas, que não também pela alínea d), como foi decidido pelo tribunal «a quo», pois,
não se sabendo qual o motivo que levou à prática do crime, não pode esse motivo ignorado ser
qualificado de fútil ou torpe.
O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se
com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual, como acentua
FIGUEIREDO DIAS no citado Comentário Conimbricense: «O homicídio qualificado é, tal como
o homicídio simples, um tipo unicamente punível a título de dolo sob qualquer uma das suas
formas inscritas no art. 14.º: intencional, directo ou eventual». Isto, muito embora se não
desconheçam certas vozes discordantes, como a de MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA,
Direito Penal II – Os Homicídios, apontamentos das aulas teóricas dadas ao 5.º ano 96/97, Lisboa,
1998, p. 71 e 72. Aliás, já assim foi decidido por este Supremo Tribunal, por exemplo nos
Acórdãos de 11/12/97, Proc. n.º 1050/97 – 3ª, relatado pelo Cons. Oliveira Guimarães, e de
21/4/05, Proc. n.º 3975/04 – 5ª, este do mesmo relator deste processo.
14. 2. Ocultação e profanação de cadáver
Quanto ao crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, os
factos provados integram todos os seus elementos objectivos e subjectivos, pelo que este crime
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lhes é imputado em concurso real com o anterior, dando-se por reproduzidas as considerações
tecidas na 1ª instância.
As penas a aplicar pelos dois crimes serão fixadas na decisão do recurso do Ministério
Público.
15. Recurso do Ministério Público
O Ministério Público recorreu do acórdão condenatório, por entender que se justificava
uma agravação das penas aplicadas aos dois arguidos: “Na verdade, se como atrás se referiu, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida
pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial que
se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente e pela intensidade da advertência que se
revele suficiente para realizar tais finalidades, no caso destes arguidos as penas que lhes foram impostas pecaram por defeito.
Certo é que, face à gravidade dos crimes levados a cabo pelos arguidos, à falta de qualquer mostra de arrependimento da sua
parte e às conclusões das perícias juntas aos autos quanto à sua personalidade, dúvidas surjam quanto à possibilidade de algum
vez virem a integrar normalmente a sociedade...
Mas também não parece haver qualquer esperança de, com a relativamente curta pena de prisão em que acabaram por ser
condenados, tal integração na vida normal se veja facilitada.
É que, com as penas que lhes foram impostas, não se consegue - como atrás se mencionou - cumprir as exigências de prevenção
especial que se mostram necessárias ao caso.
Não se esqueça que, muito embora se tenha qualificado como tendo actuado com dolo eventual na morte da menor, esse é o único
elemento "atenuante" que se encontra na conduta dos arguidos (para além de certa colaboração com as autoridades policiais, no
caso do arguido João ...). Todos os demais elementos são agravantes da culpa dos agentes, quer se fale no momento da prática
dos crimes, quer nos momentos posteriores. Basta lembrar que até hoje não reveL...m o paradeiro dos restos mortais da menor
Joana...
“Beneficiar” os arguidos com penas situadas junto ao ponto médio entre o limite mínimo e máximo da pena prevista para o crime
de homicídio parece-nos indevido e violador das normas que determinam o modo de escolha da pena.
Mesmo no caso do crime de ocultação de cadáver não se verifica razão alguma para não se aplicar aos arguidos o máximo da
pena prevista em abstracto. Para mais quando - como acabou por ser entendido - nesse crime acabou por ficar consumido um
outro, o de profanação de cadáver. Actividade mais desvaliosa em termos jurídicos e sociais não se encontra. Não se consegue
vislumbrar qualquer caso em que se consiga obter maior ilicitude e culpa por parte do agente na ocultação de um corpo (para
mais de uma filha e sobrinha dos arguidos).
Daqui que, sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, se entenda que as penas a impor deverão ser agravadas.
Mais se entendendo que deverão ser os arguidos punidos de forma idêntica, tendo em conta que, por um lado, o desvalor da acção
da arguida Leonor ... é superior (a menor era sua filha, e daí também a qualificativa d alínea a) do nº 2 do art.º 132º do C. Penal
se lhe aplicar) mas que, por seu lado, o arguido João ..., ao contrário da irmã (primária) tem já diversos antecedentes criminais,
um deles precisamente por crime contra a vida.
Assim, propõe-se a alteração da decisão nos seguintes termos:
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- O arguido JOÃO ..., na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico entre as penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e 132° n.ºs. 1 e 2, al. b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
- A arguida LEONOR ..., na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131º e 132º nºs. 1 e 2, als. a) e b); e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.”
Ora, não cremos que o Ministério Público tenha razão relativamente ao crime de
homicídio. Sendo embora altamente censurável a forma como os arguidos agiram, a verdade é que
esse acréscimo de censurabilidade está já reflectido na opção pelo tipo qualificado. As
circunstâncias desvaliosas em que os arguidos actuaram, quer referidas ao desvalor da conduta,
quer ao desvalor da atitude do agente, fazendo parte do tipo (de culpa), foram já determinantes
para a qualificação dos factos, não podendo, por isso, ser novamente valoradas em sede de
determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.º do CP, sob pena de infracção do
princípio da proibição de dupla valoração.
Por outro lado, o recorrente estriba-se numa pretensa oposição entre os fundamentos
expressos para a determinação da pena e as penas concretamente impostas, pois, na decisão
recorrida, usou-se a expressão «dificilmente se encontrará um caso de homicídio em que a acção
dos arguidos seja mais grave e desvaliosa». Porém, essa afirmação corresponde mais a um
sentimento do que a um fundamento. É uma espécie de desabafo emocional, e o que conta para a
determinação concreta da pena são circunstâncias bem definidas, relevantes em termos de culpa e
prevenção, que não as afirmações feitas em estilo de comentário mais ou menos impressionista.
Acresce que o crime foi cometido com dolo eventual, segundo a factualidade provada, ou
seja, a forma mais enfraquecida de dolo, o que não pode deixar de ter repercussões consideráveis
em sede de determinação da pena, tanto mais que, como vimos, não é sequer de todo pacífica a
compatibilidade do crime de homicídio qualificado com o dolo eventual. E se uma tal
circunstância não nos impediu de avançarmos decididamente, de acordo com o que pensamos ser
uma correcta solução jurídica, para o crime qualificado, o certo é que a polémica traduzirá, ao
menos, um consenso quanto à natureza mais débil desta forma de dolo, a merecer consideração
em sede de determinação da pena concreta.
Deste modo, ao contrário do que preconiza o Ministério Público, as penas aplicadas até
devem baixar em relação às que foram impostas na 1.ª instância.
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Num ponto tem o Ministério Público razão: as penas de ambos os arguidos devem ser
idênticas, pela decisiva consideração de que, se a pena a aplicar à arguida Leonor deve levar em
conta a maior gravidade da conduta resultante da circunstância de ser ascendente da menor, a que
deve ser aplicada ao arguido João ... tem de pesar o factor de este arguido ter antecedentes
criminais precisamente na área dos crimes contra a vida.
Assim, considerando os factores susceptíveis de influenciarem a determinação da pena,
dentro dos parâmetros estabelecidos pelo art. 71.º do CP e, nomeadamente, a ilicitude, de grau
acentuado, o dolo, que reveste, como dissemos, a modalidade menos intensa de todas, as elevadas
exigências de prevenção, quer geral, quer especial, aquelas traduzidas nas fortes expectativas
comunitárias na «estabilização contrafáctica» da norma jurídica violada, ou seja, a necessidade
sentida pela comunidade relativamente à defesa do ordenamento jurídico, e estas bem
evidenciadas pela carência de reinserção social dos arguidos (prevenção especial positiva), como
o mostram as perícias à personalidade, a circunstância de não terem confessado os factos, nem
mostrado arrependimento e, no caso do arguido, os referidos antecedentes criminais, considerando
ainda que as exigências de prevenção geral devem ser limitadas, na sua tendência expansiva, pela
culpa, entendemos como mais adequada ao caso uma pena de 16 (dezasseis) anos de prisão para
cada um dos arguidos. Pena esta que já leva em consideração, em ambos os casos, as atenuantes
derivadas da sua situação económico-social e cultural, com parcas habilitações literárias, sem
profissionalização ou sem profissionalização estável, nascidos no seio de família numerosa e com
hábitos alcoólicos por parte do pai, e ainda a colaboração prestada pelo arguido João na
investigação, mas que, em relação à arguida, é compensada negativamente pela existência de
antecedentes criminais na área de crimes contra a vida.
No que diz respeito ao crime de profanação e ocultação de cadáver, procede inteiramente a
alegação do Ministério Público.
Na realidade, a ilicitude do crime atinge aqui o seu máximo expoente, dado que não houve
apenas ocultação, mas também profanação de cadáver, em termos particularmente repugnantes,
pois o corpo foi retalhado, metido em gavetas de uma arca frigorífica da casa onde estavam todos,
no momento, a habitar (arguidos e vítima), tendo os arguidos feito desaparecer esses restos
mortais, sem deixarem rasto deles, e iludindo sucessivamente as entidades policiais sobre a sua
localização. Como se lê no acórdão recorrido: «de comum acordo e em conjugação de esforços,
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demonstrando total frieza e insensibilidade perante a menor de 8 anos que tinham acabado de
matar, filha da arguida, munem-se de uma faca e de uma serra e esquartejam a menor levando os
pedaços do corpo para local desconhecido e que até hoje não foi possível apurar qual seja. A
acção, o modo como é cometido este crime de ocultação, é assim especialmente desvaliosa.
Quanto ao resultado da acção que dizer de uma mãe que depois de matar a filha ainda lhe nega a
possibilidade de um funeral? Não há palavras para descrever o desvalor do resultado».
A culpa dos arguidos é também especialmente intensa, tendo ambos agido com o propósito
de tentarem evitar a perseguição criminal. Não confessaram os factos, não se mostraram
arrependidos, não constituindo atenuante, pelo que respeita à arguida, a ausência de antecedentes
criminais, já que não se provou bom comportamento e, pelo contrário, a perícia médico-legal à
sua personalidade aponta para a existência de uma forte necessidade de prevenção especial .
Numa moldura penal abstracta de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias, a pena
deverá situar-se no seu máximo - 2 anos de prisão, sendo de considerar aqui tudo o mais que já foi
dito em relação à determinação da pena no crime de homicídio.
Reapreciando os factos em globo e a personalidade dos arguidos, para os efeitos do
disposto no art.º 77.º do C. Penal, sendo de fazer ressaltar a expressão de personalidades
particularmente desvaliosas que o conjunto dos factos revela, fixa-se a pena única resultante do
cúmulo jurídico daquelas penas parcelares em 16 anos e 8 (oito) meses de prisão.
Deste modo, o recurso do Ministério Público procede parcialmente.
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102
III: DECISÃO
16. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
em:
A) negar provimento ao recurso interlocutório da arguida Leonor ..., mantendo-se o
despacho recorrido;
B) conceder provimento parcial aos recursos dos arguidos João ... e Leonor ... e , em
consequência, revogando parcialmente a decisão recorrida, decidem:
- condená-los como co-autores do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos
artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alinea b), quanto ao primeiro, e alíneas a) e b), quanto à segunda,
na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão cada um deles;
C) no provimento parcial do recurso do Ministério Público, condená-los pelo crime de
ocultação e profanação de cadáver, previsto e punido no art.º 254.º, n.º 1, als. a) e b), do C. Penal,
na pena de 2 anos de prisão;
- em cúmulo jurídico destas penas, condená-los na pena única de 16 anos e 8 (oito) meses
de prisão;
17. A arguida Leonor ... pagará, pelo decaimento parcial, 8 UCs de taxa de justiça, com
metade de procuradoria.
8. O arguido João ... pagará, pelo decaimento parcial, 8 UC de taxa de justiça, com metade
de procuradoria.
9. Os arguidos manter-se-ão em prisão preventiva, pois a presente condenação reforça as
exigências que levaram à aplicação dessa medida, nomeadamente o receio de fuga e o de
perturbação da ordem pública (art.ºs 202.º, n.º 1 e 204.º-a/c, do CPP).
Notifique.
Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Abril de 2006
Os Juízes Conselheiros
Artur Rodrigues da Costa (relator)
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Arménio Sottomayor
Santos Carvalho (vencido, com DECLARAÇÃO de voto anexa))
Costa Mortágua (vfencido)
Alfredo Gonçalves Pereira (presidente da secção)
DECLARAÇÃO DE VOTO
No projecto que apresentei, defendi que a arguida Leonor ... devia ser absolvida do
crime de homicídio qualificado, mas condenada pelo crime de profanação e ocultação de
cadáver, enquanto que o arguido João ... devia ser condenado por dois crimes, um de ofensa
à integridade física grave, agravada pelo resultado (morte) e qualificada por revelar especial
censurabilidade do agente, outro de profanação e ocultação de cadáver.
Entendi que num caso com esta gravidade, em que não há prova directa e só
circunstancial, mesmo no que respeita ao efectivo falecimento da vítima, a Justiça tem de se
limitar à verdade processual, isto é, à que resulta da legalidade e do valor objectivo dos meios
de prova, pois a busca de qualquer outra “verdade” pode conduzir a um sério e irreparável
erro judiciário.
A simples leitura da sentença condenatória demonstra que a única prova que
permitiu estabelecer os acontecimentos que levaram à morte da menor Joana é a das
reconstituições dos factos, realizadas no decurso do inquérito com a colaboração do arguido
João ..., mas sem a presença da arguida Leonor .... Não houve testemunhas presenciais, os
arguidos remeteram-se ao silêncio no julgamento, as suas declarações no inquérito não
podiam ser valoradas pelo tribunal e não foi possível o exame directo ao cadáver.
Como apurou o tribunal de júri que a menor foi espancada pelos dois arguidos? E
como soube que embateu com a cabeça na esquina da parede? E que era visível que
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sangrava, da boca, nariz e têmpora, mercê dos embates na parede? E que tais embates e
queda causaram morte da menor? E que os dois arguidos se asseguraram (!) da morte da
menor? E que depois esquartejaram o cadáver e o meteram em sacos de plástico nas gavetas
da arca frigorífica?
A resposta a estas perguntas foi obtida unicamente pelas reconstituições do arguido
João ..., pois os outros meios de prova indicados na sentença permitem afirmar que houve
uma morte, mas não como aconteceu e quem a provocou.
Ora, se é possível sustentar que a reconstituição dos factos tem um valor probatório
por si próprio contra o arguido que nela colaborou, ainda que não tenha prestado
declarações em audiência – pelo menos tem sido esta a jurisprudência do STJ – já o mesmo
não se pode dizer em relação a co-arguido que não colaborou na diligência, salvo se outros
meios de prova vierem corroborar os factos.
Na verdade, não sendo um meio de prova proibido no que respeita ao co-arguido, é
no entanto particularmente frágil e não deve ser considerado suficiente para sustentar uma
condenação, salvo se houver corroboração por outras provas, pois o arguido que colabora
na diligência não presta juramento, não está impedido de mentir e tem interesse em sacudir
as suas próprias responsabilidades.
A valoração das reconstituições sem corroboração quanto à arguida Leonor, como
aconteceu, é ilegal e inconstitucional e devia ter conduzido à sua absolvição pelo crime de
homicídio. Já não assim quanto ao crime de profanação e ocultação de cadáver, pois não
podia ter sido executado pelo arguido João ... sem a colaboração activa da arguida, com ele
presente no local e hora do crime.
O tribunal de júri definiu que o arguido João ... agiu com intenção de matar, ainda
que a título de dolo eventual. Porém, das reconstituições resulta a intenção de agredir e não
se produziu qualquer outra prova útil. Se tivesse sido provada a forte motivação que
constava da pronúncia, talvez fosse possível concluir que houve intenção de matar, ainda
que a título de dolo eventual. Mas nem a motivação do crime foi possível estabelecer.
Mesmo o posterior corte do cadáver e sua ocultação nada nos dizem sobre a intenção
de matar deste arguido, nem quanto à participação da arguida Leonor nas ofensas à
integridade física da menor, pois são conhecidos casos em que o agente procedeu do mesmo
modo apesar da morte não ter sido provocada intencionalmente, bastando que se instale o
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pânico e o receio da perseguição policial. E não se conjecture que a menor pode ter falecido
como resultado desses cortes, pois a acusação definiu que a menor já então estava morta e
tais factos não podem ser alterados neste Supremo Tribunal.
Em suma, é patente pela leitura da sentença condenatória que o tribunal de júri
decidiu, nos pontos indicados, contra os arguidos e, assim, violou o princípio da presunção
de inocência que obriga o tribunal a só proferir uma condenação quanto não persista
qualquer dúvida razoável. E a condenação fundada em meras suposições ou no carácter
eventualmente perverso e associal dos arguidos é também ilegal e inconstitucional.
Estas são, em resumo, as razões da minha discordância.
Para completo esclarecimento, junto parte do projecto que elaborei e que não logrou
vencimento.
III
RECURSO INTERLOCUTÓRIO DA ARGUIDA LEONOR ...:
III_A
O Código de Processo Penal estabelece a regra de que “são admissíveis as provas que não
forem proibidas por lei” (art.º 125.º do CPP4).
Apesar da formulação desta norma legal parecer tautológica, dela podemos retirar que, por
um lado, são permitidos outros meios de prova que não apenas os configurados na lei, por outro,
aqueles que aí estão previstos só se tornarão proibidos se forem obtidos por meios expressamente
excluídos, designadamente (mas não só), por tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade
física ou moral das pessoas (art.º 126.º).
Um dos meios de prova configurados no CPP é a reconstituição dos factos, pois «Quando
houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a
sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se
afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo» (art.º
150.º, n.º 1)».
4 Diploma a que nos reportaremos quando outro não for mencionado.
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E a lei dispõe sobre o procedimento a adoptar nos seguintes termos: «O despacho que
ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora
e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com
recurso a meios áudio-visuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de
operações determinadas» (art.º 150.º, n.º 2).
Da reconstituição do facto deve ser lavrado um auto, pois esse é o instrumento destinado a
fazer fé quanto aos termos em que se desenroL...m os actos processuais (art.º 99.º), mas o mesmo
pode ser parcialmente substituído ou completado por documentação audiovisual ou por outra
adequada, como a fotográfica, tal como resulta do citado art.º 150.º, n.º 2.
A reconstituição do facto, assim, é um meio de prova permitido, a valorar «segundo as
regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art.º 127º do CPP).
E nada impede que seja um meio de prova que pode ser levado à audiência, pois nesta «o
tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo
conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa» (art.º
340.º, n.º 1).
Como já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 05-01-2005, proc. 3276-04,
relator Conselheiro Henriques Gaspar) «Pela sua própria configuração e natureza - reprodução,
tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto - a
reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a
não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não
tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja
por meio de coação física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como
métodos proibidos enunciados no artigo 126º do CPP.»
A colaboração do arguido na reconstituição do facto, porém, suscita um problema de
compatibilização com a prova por declarações. É que o arguido no decurso da reconstituição do
facto poderá fornecer algumas indicações verbais e, por isso, torna-se necessário saber se a prova
assim adquirida se engloba nos actos de inquérito ou instrução cuja leitura, em princípio, não é
permitida na audiência, por conterem declarações de arguido (art.º 356.º, n.º 1-b).
O arguido tem direito ao silêncio, sem que o mesmo o possa desfavorecer (art.ºs 61.º-c e
343.º, n.º 1) e tem direito a que não sejam lidas as suas declarações anteriores, mesmo que
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prestadas perante juiz, salvo se nisso consentir ou se, querendo prestar declarações, seja
necessário reavivar-lhe a memória ou confrontá-lo com contradições (art.º 356.º, n.ºs 3, 4 e 6).
Ora, sobre a compatibilidade das provas por reconstituição e das que contêm declarações
do arguido pronunciou-se não só o referido Acórdão do STJ, mas antes dele já o fizera, por
exemplo, o de 25 de Março de 2004, proc. 248/04-5, relator Conselheiro Rodrigues da Costa, este
com o seguinte sumário: 1- As declarações prestadas em sede de inquérito e a reconstituição dos factos são diligências
diferentes, embora possam ser complementares: nas declarações, é o discurso do declarante, de teor eminentemente verbal e até oral, embora reduzido a escrito, seguindo um encadeamento de perguntas e respostas, que está em foco e é valorado, e nele o declarante, sendo o arguido, diz sobretudo o que fez, explica o modo de execução e as circunstâncias do acto; na reconstituição dos factos, é o modus faciendi que está em causa, e nele a pessoa que procede à reconstituição mostra como fez, refazendo no próprio local todos os passos da sua acção (A lei diz: reprodução tão fiel quanto possível das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo).
2- Trata-se, portanto, de uma revivescência o mais «ao natural» possível de uma situação. E, se esta revivescência de uma forma geral não prescinde de palavras, estas não constituem o ponto crucial da reconstituição, visto que a linguagem gestual e corporal assume aqui uma primacial relevância.
3- Ao passo que não há declarações sem palavras e, mais especificamente, sem discurso verbal, já se admite que uma reconstituição possa prescindir deles. A reconstituição é reduzida a auto – é certo -, mas esse auto não é um auto de declarações, não obedece à lógica deste, nem a ele se reconduz. O que lá fica escrito não é o produto das declarações; é a tradução para escrito de uma revivescência do que foi feito e que consistiu, sobretudo, numa reprodução do acto que teve lugar no passado.
4- Daí que a reconstituição seja dirigida à obtenção de uma mais perfeita inteligibilidade do que aconteceu – inteligibilidade em acto, que não propriamente em palavras. E daí que só quem viveu o acontecimento o possa reconstituir de uma maneira inconfundível.
5- Não tendo as declarações prestadas pelo recorrente no inquérito e na instrução, na qualidade de arguido, sido levadas em conta e tendo ele optado pelo silêncio na audiência de julgamento, sendo certo que este não pode desfavorecê-lo, nos termos do art. 343.º n.º 1 do CPP, foram todavia considerados os outros meios de prova, entre os quais o auto de reconstituição.
6– Este, não sendo um auto de declarações, mas um registo objectivo da forma como o acto foi reconstituído e pôde ser observado por quem lá estava (os órgãos de polícia criminal, os demais intervenientes) não foi valorado em si mesmo ou de forma isolada, mas em conexão com outros elementos objectivos, com outros dados constatáveis por outras pessoas, com outros elementos conjugados com ele e permitindo assim uma leitura a outro nível, não exactamente recondutível ao auto em si.
Por sua vez, o referido acórdão deste STJ de 05-01-2005 afirmou que «A reconstituição o
facto, como meio de prova tipicamente previsto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e
procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha
participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado
da reconstituição. As declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que
tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o
facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no
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modo como o meio de prova for processualmente adquirido (...) O privilégio contra a auto-
incriminação significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a
contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer
informações ou elementos (v. g., documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações,
sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis
no plano da valoração probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, no caso J. B. c. Suíça) (...) Sendo, porém, este o conteúdo do
direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais
e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas
tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição
probatória, ou a realização e a prática e actos processuais com formato e dimensão própria na
enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto.»
III_B
Convém precisar um conceito que está implícito nestes Acórdãos do STJ e que assume
particular relevo no caso dos autos. É que as contribuições verbais do arguido que se têm de
considerar diluídas nos termos da reconstituição são só as que se mostrarem indispensáveis à
compreensão dos actos que o arguido pretende reconstituir.
Assim, tudo o mais que na altura da reconstituição o arguido tenha adiantado e que esteja
para além do âmbito intrínseco da diligência, designadamente porque lhe foi perguntado, excede o
âmbito probatório do meio de prova em causa e tem de merecer o mesmo tratamento das
“conversas informais”, que, como refere o mesmo Acórdão, «em rigor processual, não existem
(cfr., v. g., os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30/10/2001, proc. 2630/01; de 3/10/20º2, proc.
2804/02 e de 19/7/2003, proc. 615/03; na doutrina, DAMIÃO DA CUNHA, “O Regime Processual de
Leitura de Declarações na Audiência de Julgamento (art.ºs. 356º e 357º do CPP)”, in Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7,Fasc. 3º, Julho-Setembro de 1997, p. 403 ss, desig. 422-
433).»
III_C
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Outra questão é a de saber se, no caso de co-autoria, a reconstituição em que colabora um
dos arguidos pode ser usado como meio de prova válido contra outro arguido que ficou alheio a
essa diligência.
Estamos aqui perante problema similar ao do valor probatório das declarações de co-
arguido.
E sobre tal assunto, este STJ tem discorrido assim, conforme citação do Acórdão de 29 de
Janeiro de 2004, proc. 4247/05-5, relator Conselheiro Carmona da Mota:
«Se bem que o depoimento de um co-arguido não constitua, no direito processual penal
português, «uma prova proibida no sentido do art. 126.º do CPP» (TERESA BELEZA, Revista do
Ministério Público, n.º 74, ps. 45/48), a verdade é que a sua «diminuída credibilidade» (idem, ps.
48/49), a «impossibilidade de depoimento sob juramento do arguido no direito português» (idem,
ps. 49/59), o «direito do arguido ao silêncio» (idem, ps. 50/51), a «exigência legal de coerência
de todas as confissões» (idem, ps. 51/57), a «impossibilidade de submissão ao contraditório em
caso de depoimento de co-arguidos» (idem, ps. 57/58) e a «impossibilidade de uma cross-
examination em caso de depoimento de co-arguidos» têm conduzido a doutrina à conclusão de
que:
«O depoimento de co-arguido - não sendo, em abstracto, uma prova proibida, é no
entanto um meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para
basear uma pronúncia e, muito menos, para sustentar uma condenação»;
«Não sendo esse depoimento (...) corroborado por outras provas, a sua credibilidade é
nula»;
«A sua valoração seria ilegal e inconstitucional» (TERESA BELEZA, Revista do
Ministério Público, n.º 74, ps. 58/59);
«A regra da corroboração (5) traduz de modo particular uma exigência acrescida de
fundamentação, devendo a sua falta merecer a censura de uma fundamentação insuficiente»
5 «Com a corroboração significa-se a existência de elementos oriundos de fontes probatórias distintas da DECLARAÇÃO que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado na DECLARAÇÃO, permitem concluir pela veracidade desta» (ANTÓNIO ALBERTO MEDINA DE SEIÇA, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra Editora, 1999, p. 228)
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(ANTÓNIO ALBERTO MEDINA DE SEIÇA, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra
Editora, 1999, ps. 205 e ss.)6».
De igual modo, a reconstituição dos factos feita com a colaboração de um arguido não é
uma prova proibida para averiguar da responsabilidade de outro co-arguido que nela não tenha
colaborado, mas não sendo corroborada por outras provas, a sua credibilidade é nula quanto a
este.
III_D
Temos agora elementos para decidir o recurso interlocutório da arguida Leonor ....
Nenhum obstáculo legal impede ou impedia o visionamento na audiência de julgamento da
prova por reconstituição dos factos, apesar do arguido João ..., que nela colaborou activamente, ter
usado do direito ao silêncio.
Trata-se de prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde
com a prova por declarações. Por outro lado, nenhum elemento nos permite duvidar que o arguido
João ... participou voluntariamente nessa reconstituição e que não foi sujeito a qualquer coacção
ou ofensa da integridade física ou moral, pois para além de aí se encontrar o Procurador da
República da comarca, foi assistido no acto pela sua defensora, que estava presente.
Assim, tal meio de prova não era proibido por lei e tinha virtualidade para ser exibido na
audiência de julgamento através da sua gravação por meio audiovisual, pois, recorde-se, a lei
permite que a documentação do acto se faça dessa maneira. E anota-se que a gravação existe
como complemento de um auto escrito da diligência, no qual figura também uma reportagem
fotográfica, tudo a constar do I volume, fls. 273 a 294.
6 «A ausência de uma norma expressa a comandar a exigência da corroboração e a cominar-lhe as consequência da sua verificação na concreta decisão, impede-nos, naturalmente, de afirmar a existência de uma proibição de valoração do conhecimento probatório do co-arguido que não se mostre corroborado. Porém, pensamos que a falta de corroboração merece censura, embora a um outro plano. Se (...) a regra da corroboração traduz, essencialmente, uma exigência acrescida de motivação da sentença, mostra-se insuficiente que a motivação exprima as razões pelas quais o tribunal não considerou aquela fonte probatória imerecedora de crédito (primeiro estádio da valoração); ou mesmo as razões por que a considerou digna de crédito (segundo estádio da valoração). Torna-se necessário ainda que a motivação contenha explicitado os elementos de corroboração detectados pelo tribunal para sustentar a credibilidade da própria DECLARAÇÃO (terceiro estádio da valoração). Apreciar livremente significa motivar correctamente; a corroboração constitui um elemento da apreciação e, por conseguinte, da motivação: a sua ausência traduz uma insuficiência da fundamentação, que não logrou alcançar o padrão de convencimento a que toda a fundamentação, enquanto discurso justificativo da decisão, se destina» (ob. cit., p. 227).
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E como meio de prova legal e admissível podia ter sido objecto de livre apreciação pelos
julgadores, como foi (art.º 127.º).
Todavia, o visionamento do vídeo da reconstituição revela que o arguido João ..., a
pretexto da reconstituição dos factos, foi sujeito também a perguntas várias, ao jeito de
interrogatório, às quais foi respondendo e, portanto, forneceu muitos elementos que não podem
deixar de considerar-se fora das meras indicações estritamente necessárias ao âmbito da
reconstituição.
Tais declarações, espúrias à diligência de reconstituição, não podiam valer como prova no
julgamento, pois, sendo produzidas sem o formalismo legal necessário, não passaram de
“conversas informais» sem qualquer valor probatório. Assim, deviam ter sido expurgadas do
vídeo antes da sua exibição em julgamento.
O Tribunal não entendeu desse modo. Mas não estamos perante uma nulidade do
julgamento, já que não devemos confundir a nulidade dos actos a que se reportam os art.ºs 118.º a
123.º, que obrigam à repetição do acto nulo (se não estiver já sanado) e ainda de todos os que
estiverem subsequentemente afectados, com o uso de meios proibidos de prova, pois aqui a
respectiva nulidade determina apenas que a prova não possa ser utilizada (art.º 126.º, n.º 1).
Importa, portanto, saber se foi feito uso de um meio proibido de prova.
Sucede que as «conversas informais» que se podem ouvir na reprodução em vídeo da
reconstituição de 25.09.2004 não serviram de fundamento ao tribunal de 1ª instância para a
condenação dos arguidos, pois não são mencionadas em qualquer parte do acórdão recorrido.
Nota-se até que se tivessem constituído um dos fundamentos da decisão, provavelmente não
haveria condenação por crime de homicídio voluntário, pois o arguido João ... apenas admitiu a
prática de ofensas à integridade física.
Diz o Acórdão recorrido em determinado passo: «No mais, nomeadamente quanto à
gravação em vídeo de uma daquelas reconstituições, não necessitou o Tribunal, e para o efeito
que ora nos ocupa, de dela se servir. É que o auto de fls. 273 ss, para além de reproduzir, com
patente aptidão para o fim a que se destina, a reconstituição do facto que ilustra, ficou justamente
circunscrito às características modelares desse meio de prova, insusceptível de deriva em
amálgama ou sequer confusão com qualquer outro meio de prova.»
Assim, não se fez uso de um meio proibido de prova, pois o tribunal, após o visionamento
da cassete vídeo, aproveitou apenas o que já estava documentado em auto escrito, isto é, os actos
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de reconstituição do facto e o significado que na altura lhe deu o arguido João ..., através de
indicações que se diluíram na diligência, sendo que a participação do arguido foi voluntária e fora
de qualquer constrangimento físico ou psicológico.
Mas uma outra questão se coloca. É que sempre que num processo são disponibilizados
meios proibidos de prova põe-se o problema de saber se, uma vez anulados ou invalidados, não
ocorrem outros efeitos consequenciais, «o chamado “efeito à distância”, “Fernwirkung des
Beweisverbot”, ou, na formulação americana, “fruit of the poisonous tree”.» (citado no acórdão
3276-04, já referido).
Esses “frutos da árvore envenenada” são, aliás, referidos pela recorrente, pois numa sua
conclusão diz que «...mesmo que não valha como prova, foi visionado o filme, os Jurados viram-no, e a
ausência de formação jurídica, poderá levá-los a ignorar as regras, que, aliás, desconhecem, e concluir
por uma culpa quando é completa a ausência de prova, e quando outra decisão que não a absolvição,
jamais teria lugar.»
Não sabemos nem nunca poderemos saber se algum dos jurados ou juízes foi influenciado,
no seu íntimo, pelas “conversas informais” do arguido, pois trata-se de uma realidade não
mensurável directamente.
Todavia, o que nos importa neste recurso é o aspecto objectivo e não o subjectivo. E a
convicção do conjunto dos julgadores, juízes e jurados, está objectivada no texto da sentença e,
por este, podemos certificar-nos que não houve qualquer influência da tal “árvore envenenada”.
Em qualquer caso, este Supremo Tribunal de Justiça tem os poderes necessários para intervir,
mesmo no domínio da matéria de facto, pois a fundamentação de facto foi extensa e exaustiva, o
que facilita a tarefa de averiguar em que se baseou a convicção dos julgadores
Assim, o recurso intercalar da arguida Leonor ... improcede, pois a sua pretensão era a de
que fosse declarado nulo o despacho do tribunal de Júri que permitiu o visionamento em vídeo na
audiência da reconstituição dos factos e não ocorre tal nulidade.
Todavia, a seu tempo veremos que influência teve a reconstituição dos factos como meio
de prova para a condenação da recorrente e quais as consequências que daí se têm de retirar, já
que, como dissemos anteriormente, não sendo corroborada por outras provas, a sua credibilidade é
nula quanto a ela. E essa apreciação poderá ser decisiva na decisão final deste recurso, não como
nulidade da sentença como pretende a recorrente, mas por se vir a atribuir uma nova configuração
aos factos provados.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
113
IV
HOMICÍDIO, PROFANAÇÃO E OCULTAÇÃO DE CADÁVER SEM O “CORPO
DA VÍTIMA”:
IV_A
Como resulta dos factos provados (e é do domínio público) nunca foi encontrado ou visto
o corpo da menor Joana, nem mesmo parcialmente.
Todavia, os dois arguidos foram condenados por crimes que têm como elemento típico e
necessário a morte da vítima.
Este é motivo para reflexão.
Não encontrámos nenhum caso semelhante que tenha sido julgado nos tribunais
portugueses.
A doutrina e a jurisprudência portuguesa são parcos em informação sobre esta
problemática, o que não sucede no Brasil, onde o tema é largamente debatido e até tem solução
legal, possivelmente por aí haver uma criminalidade mais violenta.
O Código de Processo Penal do Brasil dispõe no art.º 158.º que «Quando a infracção
deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo
supri-lo a confissão do acusado», mas o art.º 167.º refere que «Não sendo possível o exame de
corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a
falta».
N... Hungria, nos “Comentários ao Código Penal”, V, 63-65, reflectiu sobre este tema
assim:
«Prova da materialidade do homicídio. O homicídio é, tipicamente, um crime material: é
inconcebível sem que se verifique o evento morte de um homem. Como em geral nos crimes que
deixam vestígios, é base essencial da acusação, na espécie, o exame de corpo de delito, isto é, a
constatação da materialidade do crime. Nem mesmo a confissão do acusado, sem outro elemento
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de convicção, supre a falta do corpus delicti pois o confitente pode ter-se equivocado ou ser um
mórbido auto-acusador, ou ter sido coagido a declarar-se autor do crime.7* O exame de corpo de
delito pode ser directo (mediante a inspecção ocular e autópsia do cadáver, para averiguação da
causa mortis, meios que a produziram, etc.) ou indirecto (por meio de testemunhas, quando os
vestígio do crime não possam ser pericialmente verificados). Será possível o êxito de um processo
penal por crime de homicídio sem que apareça o cadáver da vítima? Dizia Carrara: “Não se
pode afirmar que existe crime de homicídio, enquanto não esteja averiguado que um homem
tenha sida morto por obra de outro. E não se pode dizer que um homem haja morrido, enquanto
não se encontra o seu cadáver ou, pelo menos, os restos deste, devidamente reconhecidos.” Tal
critério é demasiadamente rigoroso, e poderia, na sua irrestrição, conduzir à impunidade de
manifestos autores de homicídio. Haja vista o caso citado por IRURETA GOYENA8: dois
indivíduos, dentro de uma barca no rio Uruguai, foram vistos a lutar renhidamente, tendo sido
um deles atirado pelo outro à correnteza, para não mais aparecer. Foram baldadas as pesquisas
para o encontro do cadáver. Ora, se, não obstante a falta do cadáver, as circunstâncias eram de
molde a excluir outra hipótese que não fosse a da morte da vítima, seria intolerável deixar-se de
reconhecer, em tal caso, o crime de homicídio. Faltava a certeza física, mas havia a absoluta
certeza moral da existência do homicídio. Conforme justamente observa GOYENA, não se deve
confundir o “corpo de delito” com o “corpo da vítima”, e para a comprovação do primeiro basta
a certeza moral sobre a ocorrência do evento constitutivo do crime. Somente enquanto seja
possível formular-se dúvida, ainda que mínima, em torno à morte da desaparecida vítima de uma
violência, que se deve afastar a possibilidade de imputação do homicídio. Eloquente advertência
em tal sentido foi um filme titulado Fúria, exibido, há alguns anos, nos cinemas brasileiros. O seu
episódio central era um crime de multidão contra um indivíduo suspeito de kidnapping e que fora
recolhido a uma cadeia pública. Os sediciosos atearam fogo à cadeia, que ficou reduzida a
escombros. Entre estes não foi encontrado o cadáver do prisioneiro, mas apenas um anel
reconhecido como de seu uso. Deduziu-se, então, que o corpo do desgraçado fora totalmente 7 Por se haver desatendido a isso, com violação, aliás, do artigo 158 do Código de Processo Penal, é que ocorreu o famoso erro judiciário de Araguari, de que resultou a condenação dos irmãos Naves pelo suposto homicídio de Benedito Pereira Caetano, que, anos depois, retornava, vivo e são, da Bolívia, para onde se mudara, levando dinheiro subtraído a seus pais. A confissão dos acusados havia sido extorquida pela violência de um delegado militar. 8 Ob. cit., pág. 18.
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consumido pelo fogo e, embora não estivesse excluída a hipótese de ter o prisioneiro conseguido
salvar-se, fugindo, sem ser visto, por uma brecha que se abrira na parede de sua cela, os
incendiários foram processados, e estavam a pique de ser condenados, quando, em plena sala de
julgamento, surgiu a pseudovítima: a hipótese de sua fuga e salvamento, até então rejeitada, era
a única verdadeira.
Se o fugitivo não tivesse voltado, movido por um impulso de generosidade, os sediciosos
teriam sido injustamente condenados por homicídio consumado. Desde que seja formulável uma
hipótese de inexistência do evento “morte”, não é admissível uma condenação a título de
homicídio. A verosimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e somente
esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é condenar um
possível inocente.»
E Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, 2, 19.ª edição, S. Paulo, 2002, pág.
66, também refere que «A prova do homicídio é fornecida pelo laudo de exame de corpo de delito
(necroscópico). Quando não é possível o exame directo (o corpo da vítima não é encontrado ou
desaparece), permite-se a constituição do corpo do delito indirecto por testemunhas, por
exemplo, não o suprindo a simples confissão do agente (art.ºs 156 e 167 do CPP)»
Também Magalhães Noronha, Direito Penal, 2, 27.ª Edição, S. Paulo, 1995 pág. 18, diz o
mesmo: «Prova-se o homicídio com o exame de corpo de delito, que, em regra, é directo. Na
impossibilidade deste, é aceitável o indirecto, constituído por testemunhas. Irureta Goyena cita o
caso de dois indivíduos que foram vistos lutando em um barco, tendo um deles arrojado o outro à
corrente caudalosa, não havendo o corpo sido encontrado9. Por falta de exame directo é que não
deixaria de haver imputação de homicídio.
Ressalve-se, naturalmente, o caso em que pode haver dúvida quanto ao resultado,
impondo-se, então, a solução favorável ao acusado. Lembre-se, por exemplo, que mesmo a
confissão do réu isolada não é prova bastante, como no caso que Carrara invoca de dois marujos
de Chiaja que se acusaram de haver afogado dois jovens que, entretanto, se tinham salvado e
viviam comodamente em Roma10. Não só pode haver equívoco como auto-acusação falsa.»
9 J. Irureta Goyena, El delito de homicidio, 1928, p. 8. 10 Carrara, Programma, cit., § 1.088, nota 5.
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Encontrámos em http://juris.tjdf.gov.br/revista/D647.doc uma sentença exaustiva sobre
este tema, da Juíza de Direito do Distrito Federal de Brasília, Dr.ª Leila Cury, onde recolhemos os
seguintes trechos: A respeito do cabimento da realização de exame de corpo de delito indireto quando torna-se impossível a realização do
exame direto em face do desaparecimento do corpo da vítima, existe um caso concreto na literatura forense, ocorrido nos idos de 1964, mas bastante conhecido e citado na atualidade, relativo ao julgamento de LEOPOLDO HEITOR, acusado de matar e ocultar o corpo da vítima DANA DE TEFFÉ. Aquele acusado impetrou diversos habeas corpus visando sua soltura e/ou trancamento da respectiva ação penal, contudo, todos foram denegados, sendo certo que um deles, julgado pelo Pretório Excelso, teve como relator o Eminente Ministro Victor Nunes, de cujo voto extraio o seguinte trecho, litteris:
“... Alega-se ainda que a materialidade não se poderia comprovar pela falta de corpo-de-delito, mas não é isso que acontece, pois o Código de Processo Penal, prescreve em seu art. 167, que esta prova pode ser feita por intermédio de testemunhas, isto é, indiretamente, e os tratadistas, como Espínola e outros, entendem ainda que para tanto basta apenas o depoimento de uma testemunha. Ora, o Excelso Pretório já se pronunciou também a êsse respeito, quando do julgamento de um dos “habeas corpus” impetrado pelo acusado Leopoldo Heitor, concluindo o Ministro Gonçalves de Oliveira por que, se assim fôsse, muito fácil seria a qualquer criminosos eliminar a sua vítima, ocultar seu cadáver e fugir dêsse modo à sanção penal ...” (HC 40.540/RJ DJ 13.08.64, p. 02825 – destaquei).
Em época mais recente, outro caso bastante semelhante ao de DANA DE TEFFÉ e ao de M. ocorreu na Comarca de Uberlândia-MG, tendo como acusado DACI ANTONIO PORTE e como sua vítima MARIA DENISE LAFETÁ SARAIVA. Este fato foi julgado pelo Tribunal do Júri daquela Comarca mineira, ocasião em que DACI foi condenado a pena de 13 anos de reclusão. (...)
Invoco novamente o entendimento doutrinário a respeito do mesmo assunto, trazendo, por oportuno, à colação, o pensamento de HENRIQUE FERRI, verbis:
“... Num século de civilização aumentam paralelamente a sagacidade e as
manhas dos criminosos; a ponto de para os descobrir e poder acusar, já não bastar apenas o senso comum, que, no entanto, não é tão comum como certas pessoas julgam, mas ser necessária toda a lógica, que, por isso, se tornou uma faculdade habitual de exercício judiciário (...) Esses crimes são tecnicamente concebidos, tecnicamente preparados e tecnicamente ocultados. Porque o mais importante destes crimes é a sua ocultação posterior, não só para evitar a condenação, o que é preocupação de todos os criminosos, mas, sobretudo, para assegurar o gozo do produto do crime ...” (Discurso de acusação, p. 167/168 – destaquei).
MITTERMAIER, a seu turno, in Tratado da prova em Matéria Criminal, p. 24, questionando o entendimento de CARRARA, assim como já o fizera HUNGRIA, afirmou o seguinte:
“... que a certeza exigida como coisa essencial em matérias criminais não se pode encerrar em regras científicas ou legais, mas repousa no senso íntimo e inato que guia o homem nos atos importantes da vida (...) é um erro acreditar que a evidência material é a única fonte de certeza (...) a sentença criminal não é resultado de cálculo aritmético...” (destaquei).
Em http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_desarquivando7.html pode ler-se
um artigo intitulado “A verdade republicana” de Fábio K. Comparato, onde, a propósito dos
crimes contra a humanidade se escreve: Os nossos militares decidiram, pois, recorrer a esse estratagema: os homicídios continuariam a ser praticados, mas seria
dado completo sumiço aos cadáveres. No começo dos anos 90 do último século, as instâncias internacionais decidiram-se, afinal, a
enfrentar o problema. Uma Resolução da Assembleia Geral das Nações, datada de 18/12/92, bem como a DECLARAÇÃO de Viena
e o Programa de Acção adoptado na Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, condenaram, pela primeira vez, a prática
de desaparecimentos forçados, qualificando-os como uma forma disfarçada de homicídio. Finalmente, o Estatuto do Tribunal Penal
Internacional de 1998 definiu esse ato como crime contra a humanidade (art. 7, alínea/).
E em http://www.edmarger.com/article_CorpusDelicti.htm há uma referência ao Supremo
Tribunal de Justiça do Estado de Indiana (E.U.A.) de cujo enunciado de princípios se pode retirar
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Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
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que não é preciso um corpo para estabelecer o crime de homicídio quando há a evidência de uma
morte e uma evidência adicional que permite a inferência de que a morte foi o resultado da acção
criminal de alguém. Esses factos podem ser provados apenas por provas circunstanciais. E aí
também se menciona uma decisão de um tribunal da Califórnia onde se escreveu que o facto do
assassino poder dispor do corpo da vítima com sucesso não o habilita a uma absolvição, essa é
uma forma de sucesso que a sociedade não recompensa.
Entre nós, só encontrámos a seguinte referência em Luís Osório, Notas ao Código Penal,
III, pág. 58, sobre os crimes em que a morte da vítima é elemento típico: «A morte é elemento
essencial em todo o crime consumado. Nalguns casos há talvez presunção de morte – vid. arts.
332.º e 344.º, § 2.º». Todavia, os crimes enunciados nestes artigos do C. Penal de 1886 referem-se
ao cárcere privado e à ocultação de menor de 7 anos, quando o autor do crime não mostra “onde
existe” o encarcerado ou o menor, pelo que a morte não é um elemento típico, mas a sua
presunção constitui uma agravante.
IV_B
A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente
os vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no caso
de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem. Na verdade, a
impossibilidade de proceder a exame directo tornaria impune certos actos de enorme gravidade,
quer patrocinada pela alta criminalidade, quer pelo criminoso comum que, por engenho ou sorte
ocasional, conseguiu desfazer-se de todos os vestígios dos seus actos hediondos.
É evidente que o risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver
ou de algum vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o
aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
O erro judiciário pode sempre vir a ser corrigido, pois a lei prevê a existência de um
processo de revisão de sentença transitada em julgado, que ocorre, por exemplo, face à descoberta
de novas provas. Mas a reparação do mal pode revelar-se tardia e totalmente insatisfatória.
Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes
de homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi
examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de violação só
porque não foi possível o exame directo à vítima.
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Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma
solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e a de
presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento típico a
morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte (v.g., o
crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo, mas, na
impossibilidade de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha, devem ser
admitidos outros meios de prova que indiquem “a certeza moral sobre a ocorrência do evento”
(N... Hungria). Haverá, portanto, uma exigência acrescida quanto à avaliação da prova.
IV_C
No caso em apreço, uma testemunha viu a menor Joana regressar a casa, já muito perto e à
hora estabelecida para o crime; a arguida comunicou tardiamente às entidades policiais o
desaparecimento nunca explicado da menor; apareceram vestígios hemáticos no chão, nas
paredes, no balde e esfregona, na sola de umas sapatilhas que estavam na sala e no interior de uma
gaveta da arca frigorífica; o arguido João ... colaborou numa reconstituição dos factos na qual
indicou como veio a falecer a menor; colaborou ainda noutra reconstituição de esquartejamento da
menor e por várias vezes referiu à PJ locais onde o corpo poderia ser encontrado; para além do
depoimento de quem ouviu os arguidos dizer que mataram (ou que o João acabou por matar) a
menor. Os referidos vestígios, segundo perícias efectuadas, são de sangue humano e de sangue
humano e animal (cfr. fls. 235), e embora fossem insuficientes para averiguar a quem pertencem
através do ADN (fls. 1780 ss), são reveladores de que na sala da casa onde vivia a Joana e para
onde ela se dirigia aconteceu algo terrível, algo que deu origem a que houvesse sangue humano no
chão e nas paredes, que foram limpos com uma esfregona e balde, sendo que o sangue que estava
na esfregona se encontrava na haste, revelador que quem utilizou a esfregona tinha por sua vez as
mãos sujas de sangue.
Toda a prova aponta para a ocorrência da morte da menor Joana e é incompatível com
qualquer outra hipótese factual verosímil, que nunca ninguém, nem os próprios arguidos, tentou
conceber. Na verdade, como explicar a profusão de vestígios hemáticos humanos na casa da
Joana, mesmo no interior traseiro de uma gaveta da arca frigorífica, e simultaneamente o seu
desaparecimento?
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Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
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Por isso, face ao que já explicámos sobre o assunto, não será o facto de não ter sido
possível o exame directo do cadáver que impedirá a condenação por crime em que o resultado
típico é a morte da vítima ou por crime que tem como pressuposto essa morte.
Resta notar que nem os próprios recorrentes, nas conclusões dos seus recursos, colocam a
hipótese da Joana não estar morta.
O que parece significativo.
V
RECURSO DA ARGUIDA LEONOR ...:
V_A
Como se lê no acórdão recorrido, «“Percorrida” a prova testemunhal, verificamos que
não existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter visto cometer o crime. Acresce
que nem sequer existe prova directa do homicídio, pois que não apareceu o corpo morto da
menor.»
Acresce, diremos nós, que ambos os arguidos usaram do direito ao silêncio e que não
podem ser valoradas as suas declarações em inquérito.
A prova do homicídio resultou, por isso, da avaliação que o Tribunal de Júri fez sobre um
conjunto de provas, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, o qual postula que
“salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da
experiência e a livre convicção da entidade competente” (art.º 127.º).
A livre apreciação da prova significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que
predeterminem ou hierarquizem o valor dos diversos meios de prova (veja-se Figueiredo Dias,
"Direito Processual Penal, I vol. 1974, págs. 202 e segs.).
A livre apreciação da prova pode envolver, como é natural, uma grande dose de
subjectivismo, pois é impossível desligar o julgador da sua experiência pessoal, da sua cultura,
das suas ideias de vida, da sua moral, etc.
Por isso, tal «princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação
imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida» (obra citada).
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A discricionariedade com que o julgador aprecia a prova não pode confundir-se com
arbitrariedade. Por isso, «a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos
e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo...A verdade "material" que se busca em
processo penal não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, que todos
sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm,
irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata de conhecimento de
acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de
prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal... - se revelam
particularmente falíveis» (idem).
Perante tal princípio da livre apreciação da prova, «uma das funções primaciais de toda a
sentença (máxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão... As
considerações feitas dão exigência de que as comprovações judiciais sejam sempre motiváveis»
(idem).
Por isso, o art.º 97º obriga a que todos os actos decisórios - sentenças, despachos e
acórdãos - sejam sempre fundamentados. E tal fundamentação tem de incidir, não só sobre os
aspectos de interpretação da lei, como era tradicional, mas também sobre a decisão da matéria de
facto, pelas razões já apontadas.
Efectivamente, o art.º 374º, n.º 2, dispõe sobre a elaboração da sentença que «ao relatório
segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem
como de uma exposição, tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de
direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para
formar a convicção do tribunal».
Esse exame crítico das provas foi feito exaustivamente pelo tribunal recorrido.
Pede-se, agora, a este Supremo Tribunal de Justiça que, em recurso da decisão, reaprecie a
matéria de facto, dentro dos limites dos seus poderes de cognição.
Recorde-se que estamos perante um recurso directo da decisão final do Júri para o Supremo
Tribunal de Justiça que, como se sabe, é um tribunal de revista, só conhece matéria de direito, e de
cujos poderes cognitivos, portanto, escapa a sindicância da matéria de facto, exceptuado o que
resulta do exacto contexto do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal isto é, da
eventualidade de o texto do acórdão recorrido ostentar algum dos vícios a que ali se alude, no que
se convencionou designar, por isso, revista alargada – art.ºs 432.º, c), e 434.º.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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Efectivamente, o art.º 432.º, al. c), determina que haja recurso directo para o Supremo
Tribunal de Justiça “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri”. Mas, o art.º 434.º
estabelece que o recurso para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, “sem
prejuízo do disposto no art.º 410, n.ºs 2 e 3”.
Por sua vez, estas últimas normas dispõem que:
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de
direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão
recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do
tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de
nulidade que não deva considerar-se sanada.
Fora do âmbito deste art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, o recurso do acórdão final do tribunal de Júri
não pode ter outro fundamento quanto à matéria de facto, pois a lei não permite a impugnação dos
factos pela reapreciação das provas produzidas na audiência, que eventualmente pudessem impor
decisão diversa da recorrida.
Assim, ao contrário do que sucede com o acórdão final do tribunal colectivo, de que se
pode recorrer quanto à matéria de facto para o tribunal da relação com apelo às provas
documentadas em suporte áudio ou vídeo, quando intervém o tribunal de Júri o recurso dirige-se
directamente ao STJ e visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo de se
invocar algum dos vícios a que aludem os n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º, “desde que o vício (no caso do
n.º 2) resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência
comum”.
Entendeu o legislador que a intervenção do Júri dá maiores garantias de fidedignidade na
fixação da matéria de facto, pelo que restringiu o direito ao recurso nessa parte.
Recorde-se que no direito anglo-saxónico não há recurso da matéria de facto quando o
julgamento se processa com Júri. As garantias de defesa provêm da escolha dos jurados e do
comprometimento da sociedade que aí se faz representar por estes. No nosso direito não é
exactamente assim, mas, ao se restringir o direito de recurso em matéria de facto, o legislador quis
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prestigiar a intervenção do Júri, sem afectar de forma inadmissível os direitos constitucionais de
defesa.
Daí que, embora a lei determine que as declarações prestadas oralmente na audiência
devam ser documentadas na acta [quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou
estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas,
bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser (art.º 363.º)], a falta dessa
documentação, nos casos em que há audiência perante tribunal de Júri, constitui mera
irregularidade processual que não afecta os direitos de defesa, pois não lhe é permitida a
impugnação dos factos provados e não provados mediante uma confrontação pela documentação.
A documentação em acta da audiência perante o Júri servirá para recordar ao tribunal, no
momento da decisão da 1ª instância, o que foi dito pelas testemunhas, servirá ainda para se
aquilatar se foi cometida ou não cometida alguma nulidade de julgamento, mas a sua falta não
“nega à Arguida o direito constitucional de recorrer de facto - art.º 32°-1 da C.R.P.”, nem
determina a repetição do julgamento como alega a recorrente na conclusão 7ª do seu recurso, pois
o recurso da matéria de facto não passa no caso de julgamento com Júri pela reapreciação da
documentação.
A irregularidade da falta de documentação em acta das declarações prestadas no
julgamento devia ter sido arguida no acto e, não o tendo sido, nem constituindo qualquer
diminuição dos direitos de defesa, considera-se sanada (art.º 123.º).
V_B
Padecerá, então, a decisão recorrida de algum dos vícios a que se reporta o art.º 410.º, n.º
2, como invoca a recorrente?
A condenação da recorrente Leonor ... pelo crime de homicídio não resultou de prova
directa, como já dissemos.
Então em que se baseou o tribunal de Júri para estabelecer o facto fulcral do homicídio,
que está contido na al. ab) dos factos provados: a dada altura, por motivo não concretamente
apurado, ambos os arguidos começaram, em conjunto, a dar sucessivas pancadas na cabeça da
menor Joana, levando-a a embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que
sangrava, da boca, nariz e têmpora, mercê dos embates na parede, que causaram também a
queda da menor e a sua morte, cessando então a actividade dos arguidos?
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A esta questão o acórdão recorrido disse o seguinte: «A matéria dada como provada nas
por base o depoimento das testemunhas JP, GA, JS, VR, AS, A..., C..., C... e S... Silva, os autos de
reconstituição e os autos de busca e apreensão, bem como a prova pericial subsequente, tudo
interpretado à luz das regras da experiência.»
Ora, as reconstituições feitas pelo co-arguido João ... têm uma relevância nula no que
respeita à recorrente, se desacompanhadas de outros elementos que corroborem a comparticipação
dela, como já foi referido e explicado anteriormente (ponto III_C).
Existirá essa corroboração?
Os autos de busca e apreensão, bem como a prova pericial subsequente, apenas servem
para confirmar, ainda que indirectamente (como também já esclarecemos no ponto IV), a morte da
Joana, mas não a comparticipação da recorrente num eventual homicídio, pois referem-se a
vestígios hemáticos e orgânicos que, apesar dos muitos e dedicados esforços da PJ, nada
adiantaram quanto à autoria.
E as referidas testemunhas, segundo a fundamentação do acórdão, o que de mais
importante disseram foi o seguinte:
- a testemunha JP, pelas 8 h 30 m / 8 h 40 m viu a Joana ir em direcção a casa, com um
saco de compras;
- os inspectores GA e JS estiveram presentes na reconstituição dos factos e descreveram os
actos praticados pelo arguido João ... nessa diligência;
- as testemunhas VR, inspector da PJ, e AS (médico-legista) estiveram presentes na
reconstituição do esquartejamento e confirmaram o modo como o arguido aí procedeu;
- a testemunha A... referiu que a arguida Leonor ... lhe disse que “tinha dado uma chapada
à Joana e o João acabou de a matar”;
- a testemunha C... referiu que, numa altura em que se encontrou com o arguido João nas
instalações da Polícia Judiciária, perguntou-lhe “afinal o que tinha acontecido” e o João respondeu
que “estava a ter relações com a minha irmã” e que “tinham morto a miúda”, sendo que então a
testemunha já não quis saber mais nada;
- a testemunha C... confirmou que a arguida Leonor ... estava em casa por volta das 21 h
30 m/ 22 h e disse que não sabia da Joana;
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- a testemunha SS disse que a Leonor lhe referiu como é que a Joana estava vestida e
calçada quando desapareceu. Mais tarde, a testemunha deparou com os sapatos que a Leonor tinha
dito que a Joana tinha calçados e confrontou a Leonor com isso, tendo ela respondido que então a
Joana devia ter trocado de sapatos e que tinha levado as chinelas. Porém, posteriormente, a
testemunha encontrou uma das chinelas debaixo do sofá da sala e a outra chinela no quarto.
Procurou o calçado da Joana e encontrou em casa todos os sapatos, sandálias e chinelas que ela
usava nesse Verão.
Isto é, no essencial a prova testemunhal relevante para formar a convicção do tribunal ou
confirmou as reconstituições feitas pelo co-arguido João ... ou contribuiu com um testemunho “de
ouvir dizer”, já que os depoimentos do JP e da S... Silva têm alguma importância no que respeita à
morte da Joana e ao conhecimento que a recorrente dela necessariamente teve, mas não quanto à
sua eventual comparticipação nos actos de violência que a antecederam.
Os depoimentos que confirmam o que se passou na reconstituição validam apenas o que se
passou nessa diligência, mas não corroboram uma eventual comparticipação da recorrente na
produção da morte da Joana.
Os depoimentos de ouvir dizer têm a validade que o acórdão recorrido refere e estão
sujeitos a livre apreciação pelo tribunal, mas o seu valor é sempre diminuto e indirecto, para mais
quando se sabe que as duas testemunhas que ouviram os ora arguidos pronunciar-se sobre a morte
da Joana foram, por sua vez, constituídos arguidos nos autos. Assim, os depoimentos de ouvir
dizer mostram-se insuficientes para corroborar as reconstituições do co-arguido no que toca a uma
eventual comparticipação da ora recorrente na morte da sua filha.
O acórdão recorrido ainda invoca que «Para além dos autos de reconstituição e da prova
testemunhal e pericial com eles relacionada e que os corrobora, é ainda de realçar que várias
das testemunha inquiridas referem a despreocupação da arguida com o “desaparecimento” da
menor, aceitando-o sem desespero ou angústia. Repare-se que a arguida só vai “procurar” a
menor ao café entre as 22h 30m e as 23h (de acordo com a testemunha O...), mais de duas horas
depois da Joana ali ter estado, não contacta mais ninguém perguntando sobre o paradeiro da
Joana e também não é por sua iniciativa que é contactada a GNR. De realçar ainda a compra
pela arguida de petróleo e de um esfregão de aço (fls. 876), com que lavou a casa no dia 18 de
Setembro, sendo que as testemunhas GA e JS referiram que a limpeza do chão e paredes da casa
contrastava com o estado de sujidade do resto da casa, nomeadamente no que se refere à louça e
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Proc. n.º 363/06-5 Relator: Conselheiro Artur Rodrigues da Costa
125
à roupa – ora este tipo de limpeza, nestas circunstâncias, só é compatível com o desejo de
eliminar indícios de sangue que pudessem manter-se na casa.»
Todavia, esta prova, conjugada com a restante, tem força suficiente para sustentar que a
recorrente estava em casa quando a sua filha morreu na sequência de agressões feitas pelo co-
arguido e que tudo fez para apagar os vestígios dessa morte, ajudando o seu irmão a esquartejar o
cadáver e a posteriormente o ocultar.
Na verdade, ela estava em casa, como a própria confirma na participação que fez à GNR
de Portimão pelo desaparecimento da Joana (fls. 18).
Também é ponto assente que o irmão agrediu a menor, pois ele próprio se colocou na
posição de agressor no decurso da reconstituição a que voluntariamente se sujeitou, e que por
causa dessas agressões a menor veio a morrer, até porque ficaram vestígios hemáticos humanos na
casa e em objectos (balde, esfregona, ténis) que a recorrente tentou limpar com produtos de
limpeza, enquanto que o seu irmão ia ao café para impedir que o companheiro da recorrente e o
Carlos regressassem tão cedo a casa.
Como confirmado está que houve esquartejamento da menor na casa da recorrente, pois o
co-arguido admitiu esse acto em reconstituição que consta dos autos e há vestígios hemáticos
humanos na parte interior de uma das gavetas da arca frigorífica, onde o corpo, já desmanchado e
colocado em sacos de plástico foi provisoriamente escondido.
Assim, razões de ordem lógica e que se prendem com critérios de experiência comum,
levam-nos a confirmar, como fez o tribunal de Júri, que a recorrente colaborou no
esquartejamento e ocultação do cadáver, tanto mais que esses actos não podiam ser levados a cabo
apenas por uma actividade do co-arguido, sendo forçosa a sua colaboração activa, como única
adulta que na casa acompanhava o seu irmão na altura.
Mas a reconstituição do crime de homicídio não é corroborada por outras provas quanto ao
facto da ora recorrente também ter agredido a sua filha, pois, não havendo confissão nem
testemunhas presenciais, apenas o depoimento por ouvir dizer de uma testemunha com interesse
na decisão da causa (foi constituído arguido nos autos), a quem a recorrente terá contado que “deu
uma estalada na Joana e depois o irmão acabou de a matar”, as indicações do co-arguido não são
suficientes para a incriminar por esses factos (morte da filha).
Tudo ponderado, verifica-se pela própria leitura da decisão recorrida (factos e respectiva
fundamentação) que o tribunal de Júri valorizou a reconstituição dos factos, em que só colaborou
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o co-arguido João ... e não a recorrente, como sendo suficiente para incriminar esta última pela co-
autoria nas agressões de que foi vítima a menor Joana, de que resultou a morte desta, apesar de
não existir uma só prova que corroborasse esta versão.
E a ausência de corroboração de uma prova pessoal que provém de co-arguido não é
suficiente para a condenação, pelas várias razões já referidas anteriormente.
Isto é, perante duas hipóteses possíveis na fixação dos factos provados, pois a arguida ou
participou com o irmão nas agressões de que resultou a morte da Joana, ou limitou-se a assistir às
agressões do seu irmão à menor, o tribunal optou, na sua convicção, pela primeira, escudado na
reconstituição do crime em que só participou o arguido.
Para além do direito a um julgamento justo (“a fair trial”), a condenação da arguida só
poderia ocorrer “para além de qualquer dúvida razoável”.
Ao optar por um meio de prova de duvidoso valor, o tribunal de Júri violou, quanto a este
ponto, o “in dubio pro reo”, pois valorou-o em prejuízo da recorrente.
Estamos em presença de um erro notório da apreciação da prova quanto a este aspecto
(art.º 410.º, n.º 2-c), pois há uma evidente discrepância entre os factos provados em ab), ae), aah),
aai) e aaj) e a respectiva fundamentação.
V_C
Em princípio, a ocorrência de um dos vícios a que se reporta o art.º 410.º, n.º 2, obriga ao
reenvio do processo para novo julgamento, para nova decisão sobre todo o processo ou sobre
pontos de facto concretamente identificadas.
Porém, o reenvio só deve ser ordenado se “não for possível decidir da causa” (cfr. art.º
426.º, n.º 1).
Não é o caso, pois o Supremo Tribunal de Justiça está habilitado pelos elementos da
própria decisão recorrida, a sanar o erro notório detectado, pois basta expurgar a intervenção da
arguida Leonor ... naqueles factos.
E assim, os factos provados ab), ae), aah), aai) e aal) ficarão a constar com a seguinte
redacção: ab) a dada altura, estando os dois arguidos presentes, por motivo não concretamente apurado, o arguido João ... começou a dar sucessivas pancadas na cabeça da menor Joana, levando-a a embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca, nariz e têmpora, mercê dos embates na
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127
parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte, cessando então a sua actividade; ae) assim, logo decidiram que teriam de fazer com que não fosse verificada na casa a existência de quaisquer sinais do que o João ... havia acabado de praticar, que o corpo da menor nunca fosse encontrado e que, de preferência, fosse criada a convicção em todos que a menor teria sido levada por terceiros; aah) conseguiram os arguidos perturbar as actividades de investigação e impediram a localização dos restos mortais da menor Joana..., a quem o João ... havia retirado a vida; aai) as actividades atrás descritas foram levadas a cabo pelos arguidos em concertação de esforços e intenções, com excepção do facto referido em ab) que foi só praticado pelo João ..., de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem aquelas condutas punidas pela lei; aal) não obstando a tal a circunstância de a menor ser sobrinha do arguido, devendo pelo mesmo ser defendida e não vítima;
No facto aaj) será retirada também a participação da recorrente, mas ainda ficará sujeito a
nova reapreciação quando se decidir o recurso do recorrente João .... Só então se lhe dará a
redacção final.
Será acrescentado um novo facto não provado do seguinte teor: (não ficou provado que) «a arguida Leonor ... tenha dado pancadas na sua filha Joana no decurso
dos factos provados em ab)»
V_D
Em suma, atento o princípio “in dubio pro reo”, a recorrente será absolvida do crime de
homicídio qualificado que lhe era imputado.
Quanto ao crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, os
factos provados integram todos os elementos objectivos e subjectivos, dando-se por reproduzidas
aqui as considerações tecidas na 1ª instância.
A pena a aplicada na 1ª instância por este crime (21 meses de prisão) será reapreciada no
momento em que decidirmos o recurso do Ministério Público, que pediu uma agravação.
Quanto à prática de um eventual crime de favorecimento pessoal [a ocultação de cadáver
teve por finalidade impedir a reacção criminal contra o seu irmão (ponto aam) da matéria de
facto)] não é o mesmo punível, pois a recorrente agiu em benefício de parente em segundo grau
(art.º 367.º, n.º 5-b, do CP).
Termos em que o recurso principal da arguida Leonor ... merece provimento parcial.
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128
VI
RECURSO DO ARGUIDO JOÃO ...:
VI_A
Nulidades do acórdão recorrido:
O recorrente invoca nulidades do acórdão recorrido que percorreremos rapidamente, pois é
manifesta a sua falta de razão.
Diz ele que a “reconstituição” de 25/09/2005 está ferida de nulidade, não podendo ser
utilizada por violação do disposto no citado art.º 126º do CPP, pois o arguido esteve votado a um
desgaste físico e psicológico, impedido que esteve de descansar por mais de 80 horas.
A verdade, porém, que esse “desgaste físico e psicológico” não está documentado nos
autos (nem evidentemente alguma vez estaria). Mas, mais importante, é que a defensora do ora
recorrente esteve presente no acto e não suscitou a questão, o que afasta qualquer dúvida sobre a
voluntariedade da conduta do recorrente, que livremente quis colaborar então, mas não agora, na
descoberta da verdade.
Improcede esta alegada nulidade. E quanto ao valor probatório das reconstituições em que
o arguido colaborou, já tudo foi dito no ponto III_A.
Diz o recorrente, também, que “o documento de fls. 1885 é anexo e parte integrante de um
auto de interrogatório de arguido em sede de inquérito – fls. 1878 – perante órgão de polícia
criminal, no qual a testemunha VR foi inquiridor, mas, por força do n.º 7 do art. 356.° do CPP,
para o qual remete o n.º 2 do art. 357.°, não é permitido a reprodução do conteúdo das declarações
cuja leitura não é autorizada, com recurso a quem as tiver recolhido, cuja consequência legal é a
nulidade insanável, nunca podendo aquela ser validada como prova ou valorada como tal para
efeitos de decisão condenatória, o que se verifica”.
Todavia, na audiência foi examinado o documento de fls. 1885 e não as declarações do
arguido em sede de inquérito, no decurso das quais terá elaborado esse documento (um desenho).
Também improcede esta alegada nulidade.
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Invoca o recorrente que dando-se por provado o facto a que se refere a alínea a) (os
arguidos são irmãos), o acórdão recorrido é completamente omisso quanto aos meios de prova que
serviram de base à formação da convicção do Tribunal, em completa violação do dever de
fundamentação, imposto nos art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), do CPP.
Contudo, na identificação dos arguidos perante o tribunal na audiência de julgamento, na
qual os mesmos estavam obrigados a responder com verdade, disseram ter os mesmos pais. A
prova, portanto, resultou das suas próprias declarações e, portanto, o tribunal não tinha de
fundamentar o que eles próprios admitem.
Também não se verifica esta nulidade.
O recorrente também alega que existe uma condenação por factos diversos dos descritos
na acusação, o que nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 379º do CPP redunda na nulidade da
decisão ora recorrida.
Porém, não basta qualquer modificação dos factos da acusação para que ocorra a invocada
nulidade, pois os factos diversos dos descritos na acusação que geram nulidade da decisão são só
os que estejam «fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º». Ora, estas
normas referem-se às condições em que o tribunal pode fazer uma alteração substancial ou não
substancial dos factos da acusação e reportam-se a factos «com relevo para a decisão da causa»
(alteração não substancial – art.º 358.º) ou que tiverem por efeito a imputação ao arguido de um
crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (alteração substancial –
art.º 1.º-f).
E que factos diversos são esses no caso dos autos?
O recorrente diz que o ponto 87 da Pronúncia – “Esquecendo-se de guardar nos sacos os
sapatos que a menor tinha calçados, pelo que todos os seus pares de sapatos ficaram na casa”, é
diferente do facto provado sob a alínea ao): “os arguidos não colocaram os sapatos que a menor
tinha calçados nos sacos, tendo ficado em casa todos os pares de sapatos que a menor utilizava
naquele Verão”. Porém, não se vê que relevo tem para a decisão condenatória a ligeira mudança
operada, pois esta, sendo uma restrição à pronúncia, é favorável à defesa dos arguidos [face à
pronúncia, a menor quando “desapareceu”, na versão dos arguidos, teria de ir descalça - todos os
sapatos ficaram em casa - mas pelos factos provados no julgamento, poderia estar calçada com
sapatos que não tinha utilizado nesse Verão].
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O recorrente também diz que o mesmo sucede com a alínea aab) em contraposição com o
ponto 105: “a arguida por vezes falava da filha no passado e vestia blusa preta é indiscutivelmente
diferente de “estar de luto” como se pretende na pronúncia”. Esta mudança, porém, é muito
favorável aos arguidos, pois o relevo probatório que foi atribuído nos autos resultou de se ter
admitido que a arguida Leonor, quando deu uma entrevista à televisão, estava de “luto”, quando,
ao que consta, vestia uma blusa preta e umas calças encarnadas.
Diz, por fim, que o mesmo sucede quanto aos pontos 12, 16, 21, 24, 30, 31, 41, 47, 51, 52,
53, 54, 57, 59, 60, 68, 69, 73, 80, 83, 91, 96, 107, 113, 114, 117 e 125, em contraposição com os
factos dados como provados. Mas se assim é, cabia ao recorrente o ónus de explicar que
diferenças são essas “com relevo para a decisão da causa”, pois não espera que este Supremo
Tribunal de Justiça faça uma procura que só a ele, recorrente, cabia e que investigue por ele em
que medida a defesa foi afectada.
De resto, é impensável que o tribunal de julgamento estivesse vinculado aos dizeres da
acusação, nos seus mais ínfimos pormenores, não podendo alterar nada (nem mesmo a sua
redacção, por vezes defeituosa ou errática) sem o conhecimento prévio dos arguidos, pois o que se
visa quando se tem de dar esse conhecimento é assegurar a plenitude dos direitos de defesa.
Também improcede esta nulidade.
Por fim, o recorrente diz que o acórdão ora recorrido sofre de nulidade insuprível por falta
de indicação de provas que serviram para formar a convicção do julgador. E que também é nulo
por não conter a enumeração e todos os factos relevantes para a decisão da causa, provados e não
provados, desta feita os constantes da acusação.
Estas alegações não estão devidamente explicadas e são manifestamente infundadas, pois é
exuberante a preocupação que o tribunal recorrido teve em enumerar todos os factos provados e
não provados, quer os alegados na acusação, quer os resultantes da audiência, já que os arguidos
ofereceram o mérito dos autos. Para além de se constatar que a fundamentação e o exame crítico
das provas foram pormenorizados e cuidados, muito para além do que era exigível.
Improcedem manifestamente estas alegadas nulidades.
VI_B
Erro notório na apreciação da prova?
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131
De tudo o que já dissemos a propósito dos recursos da co-arguida Leonor ..., resulta que a
prova decorrente das duas reconstituições em que o recorrente João ... livremente colaborou é
válida, ainda que em julgamento tenha usado do direito ao silêncio.
E como prova válida, poderia ter sido livremente apreciada pelo tribunal de Júri, como foi.
Para além dessa prova por reconstituição dos factos, os outros elementos probatórios
recolhidos também já abordados coadjuvam a convicção firme de que o recorrente João ..., por
motivos não apurados, agrediu a menor Joana, com sucessivas pancadas na cabeça, levando-a a
embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca, nariz e têmpora,
mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte.
Contudo, é preciso reflectir sobre a intencionalidade da conduta do recorrente.
O acórdão recorrido (mencionando os dois arguidos) diz o seguinte na parte que respeita à
fundamentação de direito: «Resulta dos factos dados como provados que os arguidos, em
conjunto, agindo com vontade livremente determinada e não desconhecendo a punibilidade de tal
conduta, deram sucessivas pancadas na cabeça da menor Joana, levando-a a embater com a
cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava da boca, nariz e têmpora, mercê dos
embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua morte, consequência que os
arguidos previram que resultasse da sua actuação e com que se conformaram, cessando apenas a
sua conduta quando a menor já estava efectivamente morta. Não há qualquer dúvida, assim, de
que os arguidos cometeram em co-autoria um crime de homicídio doloso, ainda que na vertente
de dolo eventual (cfr. o nº 3 do art. 14º do Cód. Penal).»
Ora, já está excluída a comparticipação da arguida nestes factos, mas resta saber quais os
elementos probatórios em que se baseou o tribunal de 1ª instância para concluir que houve dolo
eventual por parte do recorrente.
Recordemos que ficou provado que «a dada altura, por motivo não concretamente
apurado, o arguido João ... começou a dar sucessivas pancadas na cabeça da menor Joana,
levando-a a embater com a cabeça na esquina da parede, sendo visível que sangrava, da boca,
nariz e têmpora, mercê dos embates na parede, que causaram também a queda da menor e a sua
morte, cessando então a sua actividade».
Por estes factos sabemos que o João deu pancadas (com as mãos) na cabeça da Joana o que
a levou a embater mais do que uma vez (“embates”) na esquina da parede, o que, por seu turno,
causou a queda da mesma e a morte.
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Mas, se é evidente que houve uma acção voluntária do arguido para agredir a menor na
cabeça (dolo directo nas ofensas à integridade física), não é afirmado que essa acção fosse dirigida
intencionalmente para que a mesma embatesse na esquina da parede e para que caísse no chão,
pois terão sido esses embates ou essa queda que causaram as lesões mortais e não as pancadas na
cabeça. Tanto mais que “levando-a a embater” não é o mesmo que “forçando-a a embater”.
Ainda assim, mesmo que as pancadas na cabeça não tenham sido dadas com a intenção de
atirar a menor contra a esquina da parede, esse resultado era necessário, já que as agressões
ocorreram dentro de uma casa e praticadas por um homem adulto contra uma menor de 8 anos de
idade. Por isso, pelas regras de experiência comum, podemos dar como assente que o recorrente
previu que a menor embatesse com a cabeça na parede ou no chão e que daí pudessem resultar
lesões causadoras da morte, pois o embate da cabeça numa superfície dura pode sempre causar
uma lesão no órgão vital que é o cérebro.
Resta saber se o recorrente se conformou com esse resultado (morte), como estabeleceu o
tribunal de Júri (facto aaj), ou se confiou que tal não sucedesse, pois esse ponto ab) da matéria de
facto não permite qualquer ilação a esse respeito.
O ponto aaj) parece resolver essa questão, ao afirmar (ainda com referência aos dois
arguidos) «... bem sabendo que, tendo em conta o local vital em que atingiam o seu corpo (a
cabeça) repetidamente e com violência, levando a que a cabeça da menor embatesse na parede,
lhe poderiam retirar a vida, consequência que aceitaram, não cessando mesmo assim essa sua
actividade.)
Mas estes “factos” contidos no ponto aaj) são conclusivos e, portanto, careciam de uma
fundamentação que não existe. Em que se baseou o tribunal recorrido para afirmar que o
recorrente aceitou que com a sua conduta poderia tirar a vida à menor?
A única prova de que se valeu o tribunal para descrever a acção que conduziu à morte da
menor Joana foi a reconstituição do crime levada a efeito em 25 de Setembro de 2004.
Ora, em tal reconstituição não se afigura haver qualquer elemento objectivo ou subjectivo
que tivesse permitido ao tribunal concluir pela conformação do arguido com o evento morte. E se
esse elemento existe, o tribunal teria de fundamentar como a ele chegou.
Nem parece que para aqui devam ser chamadas as regras de experiência comum, tanto
mais que não se apurou qual a motivação do crime. Se tivesse sido provada uma forte motivação,
como constava da pronúncia (cfr. pontos 8 e 9 da matéria de facto não provada), talvez fosse
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possível concluir através dessas regras de experiência comum pela existência da intenção de
matar, ainda que a título de dolo eventual.
Mesmo o posterior corte do cadáver e sua ocultação nada nos dizem sobre a intenção de
matar, pois são conhecidos casos em que o agente procedeu do mesmo modo apesar da morte não
ter sido provocada intencionalmente, bastando que nele se instale o pânico.
Por isso, na falta de elementos probatórios sobre se o recorrente se conformou ou não se
conformou com o resultado “morte” da menor Joana, o tribunal devia ter optado pela solução mais
favorável ao arguido, atento o princípio “in dubio pro reo”.
Há, assim, erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2-c), pois o tribunal, só
tendo elementos probatórios quanto ao dolo em relação à conduta inicial e ao evento pretendido
(lesão corporal), mas não os tendo quanto ao resultado mais grave efectivamente ocorrido (morte
da menor), optou quanto a esse resultado final pela hipótese mais desfavorável ao arguido, com
violação do princípio “in dubio pro reo”.
VI_C
O reenvio para novo julgamento também não se mostra necessário, pois este Supremo
Tribunal de Justiça tem elementos suficientes para decidir.
E, na sanação desse vício, levando em conta apenas o texto da decisão recorrida e a
respectiva fundamentação quanto à matéria de facto, estabelece-se a redacção final do ponto aaj)
do seguinte modo: «assim no que se refere à morte da Joana..., sua sobrinha, o arguido
João ... utilizou a força e aproveitou-se de a mesma não poder defender-se (atenta a idade e compleição física), pelo que, tendo em conta o local em que atingia o seu corpo, repetidamente e com violência, era possível que a cabeça da menor embatesse na parede e no chão e, assim, lhe viesse a retirar a vida, como efectivamente aconteceu, resultado esse que previu mas com o qual não se conformou;»
VI_D
Qualificação jurídica dos factos imputados ao recorrente:
O recorrente agiu com dolo directo na produção de ofensas à integridade física da menor
Joana, pois quis provocar-lhe essas ofensas (art.º 14.º, n.º 1, do CP).
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Mas, quanto ao resultado final do seu acto, isto é, quanto à morte daquela, não agiu com o
cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, porque admitiu como
possível que da sua conduta pudessem resultar lesões mortais para a menor e, contudo, não se
conformou com esse resultado. “O que é a conformação? Haverá conformação quando o agente tome a sério
a possibilidade de violação dos bens jurídicos respectivos e, apesar disso, se decida pela execução do facto, não bastando a previsão do resultado como possível” (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 1º vol., p.
232). Não haverá conformação se o agente confiou que a realização do crime não teria lugar,
apesar de o ter previsto, ou mostrou-se indiferente a essa produção.
O artigo 15.º do C. Penal diz o seguinte: «Age com negligência quem, por não proceder
com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar
como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se
conformar com essa realização;».
É a chamada negligência consciente, que apresenta uma diferença muito ténue em relação
ao dolo eventual (art.º 14.º, n.º 3, do CP), já que neste o agente prevê a realização do facto
criminoso como consequência possível da sua conduta e conforma-se com essa realização.
Tendo o agente actuado com dolo nas ofensas à integridade física de outrem, mas com
negligência quanto ao resultado “morte”, estamos perante o crime preterintencional de ofensas à
integridade física agravado pelo resultado, genericamente previsto no art.º 145.º, do CP: «1- Quem
ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido: a) Com pena
de prisão de 1 a 5 anos no caso do artigo 143º; b) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do
artigo 144º.»
«A preterintenção constitui um misto de dolo e culpa. Dolo em relação à conduta inicial e ao evento pretendido (lesão corporal); culpa, em relação ao
resultado mais grave» (Helena Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Especial, 100).
Este Supremo Tribunal de Justiça já teve oportunidade para se debruçar por várias
ocasiões sobre esta problemática, como, por exemplo, no Ac. de 15-06-2000, proc. 154/2000: «1-
São co-autores do crime dos art.ºs 144.º e 145.º, n.º 1, al. b) do C. Penal os arguidos que, como
castigos corporais, agridem um menor de 3 anos de idade, filho da arguida, com intenção de lhe
causar apenas ofensas corporais susceptíveis de determinar perigo para a vida, mas das mesmas
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vem a resultar a sua morte. 2- Neste caso, os arguidos agem com dolo para as ofensas corporais e
com negligência para a morte, pois, embora tenham violado o dever de cuidado que sobre eles
impendia, não se conformaram com o risco do resultado morte.»
Mas, no caso, tendo o arguido agredido a menor com sucessivas pancadas dadas na
cabeça, com força suficiente para a levar a embater com essa parte vital do corpo na esquina da
parede e a cair ao chão, provocou-lhe perigo para a vida, pelo que estamos perante ofensa à
integridade física grave, prevista no art.º 144.º, al. d), do C. Penal.
O crime previsto e punível pelos art.ºs 145.º, n.º 1, al. b) e 144.º do C. Penal, pode ainda
ser qualificado «se as ofensas previstas nos artigos 143º, 144º ou 145º forem produzidas em
circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido
com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e
máximo» (art.º 146.º, n.º 1). «São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou
perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º» (n.º 2).
Este art.º 132.º reporta-se ao homicídio qualificado e nele o legislador não quis organizar
as circunstâncias qualificativas de uma forma taxativa, antes optou por uma fórmula aberta,
embora cingida a certos parâmetros, que deixa ao aplicador uma margem de ponderação das
circunstâncias, por forma a casuisticamente determinar se este ou aquele facto integra o conceito
legal de homicídio qualificado.
Isso é feito pela afirmação genérica de um especial tipo de culpa, que vem assim descrito
no n.º 1: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.
Mas aliou-se essa formulação genérica à “chamada técnica dos exemplos-padrão
(«Regelbeispieltechnik»11), em que a cláusula geral seria constituída por um tipo de culpa (art.º
132.º, n.º 1) combinado com uma exemplificação não definitiva e facultativa (art.º 132.º n.º 2)”12.
11 «Técnica dos exemplos da regra». 12 ”Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Teresa Serra, 2000, pág. 15.
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Alguns desses exemplos padrão, estão formulados no n.º 2 do art.º 132.º deste modo: «É
susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número
anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado
ou adoptante, da vítima; b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de
idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar
o sofrimento da vítima; d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar
sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou
fútil; e) Ser determinado por ódio racial, religioso ou político; f) Ter em vista preparar, facilitar,
executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um
crime; g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio
particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; h) Utilizar
veneno ou qualquer outro meio insidioso; i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os
meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;...».
Que estas circunstâncias estão enunciadas a título meramente exemplificativo, é uma
afirmação inequívoca, pois resulta directamente da lei, quando refere que são essas «entre outras».
E, como não podia deixar de ser, é essa a Jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal13.
Mas a técnica legislativa resultante da conjugação do n.º 1 com o n.º 2 do art.º 132.º, leva a
que possa ocorrer um homicídio em que se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 e,
contudo, não se trata de um homicídio qualificado, pois, no caso concreto, aquela circunstância
não revela “especial censurabilidade ou perversidade” (n.º 1), como pode suceder o contrário, a
circunstância não estar prevista no n.º 2, mas poder ser substancialmente análoga14, e integrar-se
no tipo especial de culpa do n.º 1.15
Vem a doutrina entendendo, embora dividida16, que os exemplos-padrão prendem-se
essencialmente com a questão da culpa, mais do que com a ilicitude, pois ainda que se refiram a
um maior desvalor da conduta (por exemplo, o homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho),
13 Acs. STJ de 2002/11/14, proc. 3316/02, de 1991/12/12, proc. 42640, de 1992/05/06, proc. n.º 43109, de 1997/12/16, proc. n.º 102/98, de 1990/12/20, proc. 41848, etc., todos eles in www. dgsi.pt. 14 “Comentário Conimbricense...”, ob. cit. pág. 26. 15 Teresa Serra, ob. cit, págs. 67 e segs., na esteira de Wessels, designa o primeiro caso por homicídio simples atípico e o segundo por homicídio qualificado atípico. 16 “Comentário Conimbricense...”, ob. cit., pág. 27.
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não é essa circunstância, por si, que determina a qualificação do crime, antes a especial
censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa17.
Como se diz no Acórdão deste STJ de 1996/12/11, in proc. n.º 188/97 (www.dgsi.pt), “A
qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de
qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial, é que, as
circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou
perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade)
daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples».
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. referida, págs. 63 a 65).
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se
funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é,
censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No
artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi
causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente
em relação a uma determinação normal de acordo com os valores...Com a referência à especial
perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido
determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela
sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode
reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que
fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que
prevalecem as tendências egoístas do autor, especialmente perversa, especialmente rejeitável, será
então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e
determinaram quase exclusivamente a conduta do agente...Importa salientar que a qualificação de
especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do
homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas
circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto
17 Leal Henriques e Simas Santos assinalam no “Código Penal Anotado”, II, pág. 61 e segs., que não é exacta a afirmação do Ac. do STJ de 1990/06/06 de que “no caso de parricídio a regra é a de que se verifica especial censurabilidade ou perversidade”, pois esta tem de ser sempre comprovada.
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lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou
perversidade do agente que o comete».
No caso dos autos há uma especial censurabilidade, pois o recorrente praticou ofensas à
integridade física graves contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, pois trata-se
de homem adulto que agride, com força e repetidamente, uma criança que em Setembro de 2004,
tinha 8 anos, sendo magra e com altura entre 1,20 metros e 1,40 metros.
Esta enorme desproporção física aliada ao facto de ser tio da menor, o que, por um lado,
lhe conferia um dever especial de zelar pela saúde e bem-estar da sobrinha, por outro, conferia-lhe
uma autoridade familiar sobre a mesma, revelam uma especial censurabilidade, uma culpa
acrescida que nos levam a qualificar o crime cometido pelo recorrente como ofensa à integridade
física grave, agravada pelo resultado (morte) e qualificada por revelar especial censurabilidade do
agente, previsto e punível pela conjugação dos art.ºs 146.º, 145.º, n.º 1, al. b) e 144.º, al. d), do C.
Penal, para o qual se convola a pronúncia pelo crime de homicídio qualificado.
Tal convolação é permitida, pois a possibilidade de vir a ocorrer foi comunicada ao Il.
Defensor do recorrente na audiência de julgamento realizada neste Tribunal, para que pudesse
organizar a sua defesa e, em qualquer caso, sempre lhe é muito mais favorável.
Quanto ao crime de ocultação de cadáver, p.p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, os
factos provados integram todos os seus elementos objectivos e subjectivos, pelo que este crime
lhe é imputado em concurso real com o anterior, dando-se por reproduzidas as considerações
tecidas na 1ª instância.
As penas a aplicar pelos dois crimes serão fixadas na decisão do recurso do Ministério
Público.
VII
RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público recorreu do acórdão condenatório, por entender que se justificava
uma agravação das penas aplicadas aos dois arguidos:
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“Na verdade, se como atrás se referiu, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso,
prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências
de prevenção especial que se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente e
pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades, no caso destes arguidos as
penas que lhes foram impostas pecaram por defeito.
Certo é que, face à gravidade dos crimes levados a cabo pelos arguidos, à falta de qualquer mostra de
arrependimento da sua parte e às conclusões das perícias juntas aos autos quanto à sua personalidade, dúvidas
surjam quanto à possibilidade de algum vez virem a integrar normalmente a sociedade...
Mas também não parece haver qualquer esperança de, com a relativamente curta pena de prisão em que acabaram
por ser condenados, tal integração na vida normal se veja facilitada.
É que, com as penas que lhes foram impostas, não se consegue - como atrás se mencionou - cumprir as exigências
de prevenção especial que se mostram necessárias ao caso.
Não se esqueça que, muito embora se tenha qualificado como tendo actuado com dolo eventual na morte da menor,
esse é o único elemento "atenuante" que se encontra na conduta dos arguidos (para além de certa colaboração com
as autoridades policiais, no caso do arguido João ...). Todos os demais elementos são agravantes da culpa dos
agentes, quer se fale no momento da prática dos crimes, quer nos momentos posteriores. Basta lembrar que até hoje
não reveL...m o paradeiro dos restos mortais da menor Joana...
“Beneficiar” os arguidos com penas situadas junto ao ponto médio entre o limite mínimo e máximo da pena prevista
para o crime de homicídio parece-nos indevido e violador das normas que determinam o modo de escolha da pena.
Mesmo no caso do crime de ocultação de cadáver não se verifica razão alguma para não se aplicar aos arguidos o
máximo da pena prevista em abstracto. Para mais quando - como acabou por ser entendido - nesse crime acabou por
ficar consumido um outro, o de profanação de cadáver. Actividade mais desvaliosa em termos jurídicos e sociais não
se encontra. Não se consegue vislumbrar qualquer caso em que se consiga obter maior ilicitude e culpa por parte do
agente na ocultação de um corpo (para mais de uma filha e sobrinha dos arguidos).
Daqui que, sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, se entenda que as penas a impor deverão ser
agravadas.
Mais se entendendo que deverão ser os arguidos punidos de forma idêntica, tendo em conta que, por um lado, o
desvalor da acção da arguida Leonor ... é superior (a menor era sua filha, e daí também a qualificativa d alínea a) do
nº 2 do art.º 132º do C. Penal se lhe aplicar) mas que, por seu lado, o arguido João ..., ao contrário da irmã (primária)
tem já diversos antecedentes criminais, um deles precisamente por crime contra a vida.
Assim, propõe-se a alteração da decisão nos seguintes termos:
- O arguido JOÃO ..., na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico entre as penas
de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131° e 132° n.ºs. 1 e 2, al. b);
e de
- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254.º, n.º 1, al. a), ambos do
Código Penal.
- A arguida LEONOR ..., na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas
de:
- 22 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs. 131º e 132º nºs. 1 e 2, als. a)
e b); e de
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- 2 anos de prisão pela prática de um crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º 1, al. a), ambos do
Código Penal.”
O recurso do M.º P.º, porém, já está em parte comprometido.
Na verdade, quanto à arguida Leonor ... a mesma irá ser absolvida do crime de homicídio
qualificado por que foi condenada. Quanto ao arguido João ..., o mesmo também não irá ser
condenado por tal crime, mas por um outro cuja moldura penal abstracta é mais baixa.
A procedência do recurso do M.º P.º só vai ocorrer quanto à pena parcelar pelo crime de
ocultação de cadáver, aplicada à arguida Leonor ....
Na realidade, a ilicitude do crime é aqui máxima, pois não houve apenas ocultação, mas
também profanação de cadáver, em termos particularmente repugnantes, pois o corpo foi
retalhado, metido em gavetas de uma arca frigorífica da casa onde estavam todos, no momento, a
habitar, arguidos e vítima, e depois os arguidos desfizeram-se desses restos mortais de um modo
que ainda hoje se desconhece. Como se lê no acórdão recorrido: «de comum acordo e em
conjugação de esforços, demonstrando total frieza e insensibilidade perante a menor de 8 anos
que tinham acabado de matar, filha da arguida munem-se de uma faca e de uma serra e
esquartejam a menor levando os pedaços do corpo para local desconhecido e que até hoje não foi
possível apurar qual seja. A acção, o modo como é cometido este crime de ocultação, é assim
especialmente desvaliosa. Quanto ao resultado da acção que dizer de uma mãe que depois de
matar a filha ainda lhe nega a possibilidade de um funeral? Não há palavras para descrever o
desvalor do resultado».
A culpa da arguida é também máxima, pois agiu com dolo intensíssimo, com o único
propósito de tentar evitar a perseguição criminal contra o seu irmão e também contra ela própria
(o que contudo aconteceu). Não confessou os factos, não está arrependida e não constitui
atenuante a ausência de antecedentes criminais, já que não se provou bom comportamento e, pelo
contrário, a perícia médico-legal à sua personalidade aponta para a existência de uma forte
necessidade de prevenção especial (“a arguida Leonor ... manifesta comportamento socialmente desviante ao nível das
normas, valores e responsabilidades, instabilidade emocional e dificuldades em expressar a frustração, sendo a sua socialização
marcada por relações interpessoais imaturas, superficiais e narcísicas, onde estão salientes as características de manipulação (para
satisfação das próprias necessidades) e agressividade (de tonalidade sobretudo sádica), salientando-se na sua personalidade a
ausência de empatia e a insensibilidade, o que leva ao desprezo da arguida pelos direitos, necessidades e sentimentos dos outros,
para estes dirigindo a sua agressividade, tendo fraca capacidade para sentir remorsos. Possui personalidade limite com traços anti-
sociais/psicopáticos, narcísicos e esquizóides”).
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Numa moldura penal abstracta de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias, a
arguida Leonor ... deverá ser condenada na pena máxima de 2 anos.
Face a uma pena de prisão inferior a 3 anos, é obrigatório fundamentar a razão porque não
se suspende a sua execução.
Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do Cód. Penal:
"O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3
anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e
posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça
da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Este preceito consagra agora um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que
terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais
conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários
Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o juiz tem o dever de suspender a
execução da pena: esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.
Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não
ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao
comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para
realizar as finalidades da punição.
Não é o caso que temos em presença, pois como já explicámos, a personalidade da arguida
aponta para a existência de uma forte necessidade de prevenção especial e, portanto, não é
possível fazer um juízo de prognose favorável, nem a simples censura do facto realizaria de forma
adequada e suficiente as finalidades da punição.
Não é, pois, de suspender a pena de dois anos de prisão e, nesta pequena parte, procede o
recurso do M.º P.º.
Quanto ao arguido João ..., temos a considerar que cometeu dois crimes, um de ofensa à
integridade física grave, agravada pelo resultado (morte) e qualificada por revelar especial
censurabilidade do agente, previsto e punível pela conjugação dos art.ºs 146.º, 145.º, n.º 1, al. b) e
144.º, al. d), do C. Penal, a que corresponde a pena abstracta de 4 a 16 anos de prisão, e um crime
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de ocultação e profanação de cadáver, p.p. no art.º 254.º, n.º 1, als. a) e b), a que corresponde uma
pena abstracta de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
A ilicitude do crime preterintencional é elevadíssima, pois a acção deve considerar-se
muito próxima da de um homicídio qualificado, a que corresponderia uma pena de 12 a 25 anos
de prisão.
O dolo foi muito intenso quanto às ofensas à integridade física e de uma negligência
grosseira quanto à produção do resultado “morte”.
O arguido não confessou os factos na audiência nem mostrou arrependimento e a
personalidade revelada pelo exame médico-legal indica que “manifesta desprezo pela vida
humana - resultado de mau ajustamento social e de frieza afectiva - e tem tendências anti-
sociais/psicopáticas com dificuldade de controlo dos impulsos, que o leva a ser agressivo,
tentando solucionar os conflitos através de tal agressividade, não sentindo remorsos pelas
consequências dos actos que assim leva a cabo, desprezando os direitos, desejos ou sentimentos
dos outros”.
E acrescenta o acórdão recorrido: Como habilitações literárias, o arguido João tem a 4ª classe e desde que saiu da escola começou a trabalhar, embora sempre exercendo serviços indiferenciados e sem vínculo laboral, nunca tendo emprego nem residência certos e vivendo ultimamente no interior de um veículo automóvel, ou em casa dos seus irmãos, sobrevivendo à custa de trabalhos ocasionais que levava a cabo em diversos locais. O arguido sofreu já várias condenações: foi condenado, em 10.11.1993, na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio na forma tentada; em 1995, foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na pena, em cúmulo com a pena proferida pelo crime de homicídio tentado, de 3 anos e 8 meses de prisão; em 2001, foi condenado na pena de 90 dias de multa pela prática de um crime de condução ilegal de veículo; e em 2003, de novo pela prática de um crime de condução ilegal de veículo, foi condenado na pena de 6 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução mediante o cumprimento de condições, vindo a suspensão a ser revogada. O arguido nasceu no seio de uma família numerosa (os pais e 9 irmãos), onde se destacavam os hábitos alcoólicos do pai e as dificuldades económicas.
Em benefício do arguido só temos a colaboração voluntária com a investigação no decurso
do inquérito, que levou a que fosse possível apresentar no julgamento provas decisivas. Contudo,
o facto de ter indicado à PJ muitas provas falsas quanto à localização do corpo da vítima,
esmorece de algum modo o valor atenuativo daquela colaboração.
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Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das
penas, mas sem se perder de vista a culpa do agente.
Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside
na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a
necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante
a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (Anabela
Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra
Editora, pág. 570).
“É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale
aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que
a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas:
o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das
necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a
comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das
normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas
expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção
geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa
finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica
(mesma obra, pág. seguinte).
A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do
agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros
crimes.
“Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel
de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” (ainda a mesma obra,
pág. 575). “Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite
da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (pág. 558).
Tudo ponderado, de acordo com os critérios definidos nos art.ºs 70.º e 71.º do CP, tendo
em consideração a enorme ilicitude dos factos, o grau elevado de culpa, a personalidade do
arguido e as fortes exigências de prevenção geral do crime, levam a fixar a pena pelo crime p.p.
nos art.ºs 146.º, 145.º, n.º 1, al. b) e 144.º, al. d), do C. Penal, em 15 anos de prisão.
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Quanto ao crime de ocultação e profanação de cadáver, valem aqui as considerações que
fizemos quanto à co-arguida. Mas, como a sua colaboração foi decisiva para apurar este crime,
mesmo com as limitações apontadas, entende-se adequado manter a pena por este crime que foi
fixada no tribunal recorrido (20 meses de prisão).
Reapreciando os factos em conjunto e a personalidade do arguido, para os efeitos do
disposto no art.º 77.º do C. Penal, entende-se fixar a pena única resultante do cúmulo jurídico
daquelas penas parcelares em 16 anos de prisão.
Na parte que respeita ao arguido João ..., o recurso do M.º P.º improcede totalmente.
*
Num caso com esta gravidade, em que não há prova directa e só circunstancial, mesmo no
que respeita à morte da vítima, a Justiça tem de se limitar à verdade processual, isto é, à que
resulta da legalidade e do valor objectivo dos meios de prova, pois a busca de qualquer outra
“verdade” pode conduzir a um sério e irreparável erro judiciário.