SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12 2. UM JOGO FEITO PARA PERDER: A PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA ........... 17 2.1 A POTÊNCIA DO JOGO......................................................................................................18 2.2 DUELOS ENTRE JOGOS: AGÔN, ALEA, MIMICRY E ILINX. .....................................................31 2.3 MIMICRY .........................................................................................................................38 2.4 O MONÓLOGO DE LUCKY: NO REINO DA ILINIX ...................................................................55 3. ACASO E REPETIÇÃO: O JOGO COMO RESISTÊNCIA ............................................... 66 3.1 À ESPERA DO IMPREVISTO: ALEA .....................................................................................66 3.2 ALEA E MIMICRY : DIFERENÇA E REPETIÇÃO.....................................................................74 3.3 AGÔN: O JOGO EM FALSO ................................................................................................96 3.4 O JOGO COMO PROFANAÇÃO: A FALÊNCIA DA EMPRESA OCIDENTAL................................105 4. TRAGICÓMEDIA, COMITRAGÉDIA ............................................................................... 121 4.1 ESPERANDO GODOT: GÊNEROS EM JOGO .....................................................................122 4.2 A SUSPENSÃO DA CATARSE: O DRAMA SOB SUSPEIÇÃO ..................................................127 4.3 REARRANJOS CORAIS NA MODERNIDADE ........................................................................144 4.4 MENINO, MENSAGEIRO OU NOVO DEUS EX-MACHINA? .....................................................153 5. A LIBERDADE DE NADA SER ....................................................................................... 163 5.1 CLAUSURAS, JOGO E LIBERDADE ...................................................................................163 5.2 GINASTAS DO IMOBILISMO .............................................................................................167 5.3 O DELITO DE TER NASCIDO: O MOTIVO DA LIBERDADE EM CALDERÓN E BECKETT .............179 6. ENTRE BRINQUEDOS E RUÍNAS: JOGO E LUTO NA CENA BECKETTIANA ........... 202 6.1 REVOLVENDO ENTULHOS ..............................................................................................202 6.2 LUTO E MELANCOLIA .....................................................................................................213 6.3 A MELANCÓLICA LUDOTECA BECKETTIANA ......................................................................220 7. CONCLUSÃO .................................................................................................................. 240 8. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 248 9. ANEXOS .......................................................................................................................... 256 xi
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SUMÁRIO...eu brinco, eu tenho minha boneca; euresisto: é minha a minha infância. Assim também vejo os personagens de Samuel Beckett. De posse de seus detritos, objetos residuais
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2. UM JOGO FEITO PARA PERDER: A PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA ........... 17
2.1 A POTÊNCIA DO JOGO ...................................................................................................... 18 2.2 DUELOS ENTRE JOGOS: AGÔN, ALEA, MIMICRY E ILINX. ..................................................... 31 2.3 MIMICRY ......................................................................................................................... 38 2.4 O MONÓLOGO DE LUCKY: NO REINO DA ILINIX ................................................................... 55
3. ACASO E REPETIÇÃO: O JOGO COMO RESISTÊNCIA ............................................... 66
3.1 À ESPERA DO IMPREVISTO: ALEA ..................................................................................... 66 3.2 ALEA E MIMICRY : DIFERENÇA E REPETIÇÃO ..................................................................... 74 3.3 AGÔN: O JOGO EM FALSO ................................................................................................ 96 3.4 O JOGO COMO PROFANAÇÃO: A FALÊNCIA DA EMPRESA OCIDENTAL ................................ 105
4.1 ESPERANDO GODOT: GÊNEROS EM JOGO ..................................................................... 122 4.2 A SUSPENSÃO DA CATARSE: O DRAMA SOB SUSPEIÇÃO .................................................. 127 4.3 REARRANJOS CORAIS NA MODERNIDADE ........................................................................ 144 4.4 MENINO, MENSAGEIRO OU NOVO DEUS EX-MACHINA? ..................................................... 153
5. A LIBERDADE DE NADA SER ....................................................................................... 163
5.1 CLAUSURAS, JOGO E LIBERDADE ................................................................................... 163 5.2 GINASTAS DO IMOBILISMO ............................................................................................. 167 5.3 O DELITO DE TER NASCIDO: O MOTIVO DA LIBERDADE EM CALDERÓN E BECKETT ............. 179
6. ENTRE BRINQUEDOS E RUÍNAS: JOGO E LUTO NA CENA BECKETTIANA ........... 202
6.1 REVOLVENDO ENTULHOS .............................................................................................. 202 6.2 LUTO E MELANCOLIA ..................................................................................................... 213 6.3 A MELANCÓLICA LUDOTECA BECKETTIANA ...................................................................... 220
A foto que serve de epígrafe a este trabalho é do fotógrafo Alberto Korda (1928-
2001), que se tornou mundialmente conhecido pelas fotos de Che Guevara e Fidel durante a
Revolução Cubana. O artistaconsiderava essa fotografia uma das mais significantivas de
sua trajetória. "Eu nunca pensei em mim como um grande fotógrafo até que fiz esta imagem
da menina cubana segurando um pedaço de madeira. A mãe dela me disse que ela fingia
que era sua boneca. Esta é para mim a foto mais importante da minha carreira2”, afirmou
certa vez, Alberto Korda. É bom lembrar que Korda é o autor da célebre foto de Che
Guevara de cabelos longos, usando boina com uma estrela, considerada o maior ícone
gráfico do mundo do século XX.
A imagem, responsávelpor umaguinada na vida do fotógrafo foi, segundo seu relato,
fruto do acaso. Em 1958, enquanto trabalhava num vilarejo pobre da região de Pinar Del
Rio, Korda deparou-se com uma menina pequena e assustada com a câmera que ele
carregava. Era a testemunha perfeita da miséria da região: vestia roupas humildes e
segurava um pedaço de madeira, com o qual ela brincava como se fosse uma boneca. A
ternura e o desvelo com que a menina cuidava deseu brinquedo, que tinha inclusive uma
roupa própria, comoveram Korda. A partir de então, ele passou a se interessar pela questão
da pobreza no país e aderiu às causas revolucionárias.
Talvez Korda esteja certo em julgar que seja esse oinstante mais importante captado
por sua câmera fotográfica. O olhar de Che perdido no horizonte, icônico, mobilizou muitos
jovens em busca de uma utopia, mas a figura de Che Guevara conseguiu ser cooptada pelo
utilitarismo do capital, e tornou-se, desafortunadamente, uma das imagens mais fetichizadas
1ASSIS, André Koch Torres. Arquimedes, o Centro de Gravidade e a Lei da Alavanca. Montreal, Quebec: Apeiron Montreal, 2008. 2 Fonte: http://www.arthistoryarchive.com/arthistory/photography/Alberto-Korda.html
13
do capitalismo, aparecendo em camisetas e produtos que nada têm a ver com os ideais e o
mundo com que deveria estar sonhando o jovem revolucionário, quando o flash da máquina
roubou de seus olhos aquele lampejo de esperança.
Outra coisa, contudo, se vê, no olhar firme da garota de Korda. Sua mirada para as
lentes do fotográfo é de uma suavidadeinabalável; desafiadora,ela segura aquele pedaço de
madeira - que talvez tivesse destino mais certo como lenha para o fogão -, de forma
resoluta. É uma criança pobre, de vestes simples, mas que, em contrapartida,parece dizer:
eu brinco, eu tenho minha boneca; euresisto: é minha a minha infância.
Assim também vejo os personagens de Samuel Beckett. De posse de seus detritos,
objetos residuais e fraturados, as criaturas beckettianas parecem resistir a que lhes roubem
a possibilidade de habitarem um estranhado país da infância, no qual, à parte da catástrofe,
solidão e abandono, ainda são capazes de jogar seus jogos.
Beckett,ao referirir-se ao Work in Progress, de James Joyce,afirma que na obra do
autor de Ulisses a forma é conteúdo e conteúdo é a forma. “Os senhores queixam-se de que
esse material não é escrito em inglês. Não está escrito em forma alguma. Não é para ser
lido – ou, antes, não é só para ser lido. É para ser contemplado e ouvido. Esta não é a
escrita sobre alguma coisa; é a coisa em si” 3.
O que dizer então deEsperando Godot, cujo tema é uma ausência tão pujante quanto
qualquer presença? Poderíamos supor, talvez, que as falas ditas pelos personagens, seus
gestos e jogos, nessa peça em que a ação inexiste, mais que a tematização de uma espera,
seja uma espera em si mesma. A linguagem ali está esperando; ela é pura suspensão. Isso
parece ensejar que uma leitura da obra de Beckett não deva providenciar, necessariamente,
um encontro que coloque um fim à espera, oferecendouma interpretação definitiva para os
impasses,a latênciae o vazio que esse intervalo da espera provoca.
3Assim continua Beckett: “quando o sentido é dormir, as palavras adormecem. Quando o sentido é dança, as palavras dançam. Pegue-se a passagem no fim da pastoral de Shaun: a linguagem está bêbada, já que o personagem também está”.BECKETT, Samuel. Dante... Bruno...Vico...Joyce. In:NESTROVSKI, Arthur (organização). Riverum. Ensaios sobre James Joyce. Trad. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 331-332.
14
Talvez seja mais seguro nos atermos à escuta dessa ausência, desses detritos e
jogos encenados pelos personagens, para a busca de uma interação com essa poética
depauperada e sua relação com o silêncio, constantemente renovado numa arte da palavra
que consiste em usar os vocábulos como inutensílios:“dobrar a palavra, para, nessa medida,
restituir tudo quanto subtrai4”. Pensamos que, nessa investida, talvez, a infância, como o
silêncio, nos devolvam a uma instância em que a máscara disforme e opaca da criatura
humana, na contemporaneidade, nos seja parcialmente desvelada.
Por isso, escolhemos a categoria do jogo como base investigativa deste trabalho. A
célebre obra de Huizinga, Homo Ludens5, nos auxiliará neste itinerário, apresentando
caminhos com os quais ora convergiremos e dos quais ora nos afastaremos. Isso porque o
jogo, na obra do professor holandês, não aparece apenas como elemento de investigação
estética: para o autor, a cultura nasce do jogo. O último é anterior à primeira,
acompanhando-a e transformando-a desde as mais longínquasorigens até a
contemporaneidade. Seus estudos tomaram o jogo como uma forma peculiar de atividade,
como “forma significante”, como função social e lhe atribuem uma função seminal naquilo
que chamam hoje de civilização.
Entretanto, se pensarmos no que aconteceu com a cultura do ocidente, em diálogo
também com a obra de Freud, “O Mal estar da civilização”, (traduzida, no Brasil,
recentemente, como o “Mal estar da cultura”), talvez entendamos um pouco melhor a
maneira como se processam os jogos de Beckett, no momento em que sua obra, em nossa
opinião, aparece também uma ferrenha crítica à civilização ocidental.Nessa empresa, nos
valeremos também de Roger Caillos6 e as quatro categorias dos jogos que ele forjou para
4Cf.Tagliaferri, Aldo. Joyce e Beckett: Leitura Terminável e Interminável.In:NESTROVSKI, Arthur (organização). Riverum.Ensaios sobre James Joyce. Trad. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 176. 5HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010. 6CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990.
15
Para Huizinga, “o jogo é uma atividade voluntária7”. Sujeito a ordens, preso apenas
às regras e ao cálculo,deixa de ser jogo, perdendo sua espontaneidade e vigor criativo.
Logo, o jogo está, de uma maneira ou de outra, ligado à questão da liberdade. É evidente
que Huizinga entende a liberdade em um sentido mais lato, sem tomar como referência o
problema filosófico do determinismo, mas sim a territorialidade especial que o espaço do
jogo inaugura, ainda que seja em um espaço circunscrito. “As crianças e os animais brincam
porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade8.”
No entanto,o lugaronde brinca a criança não deixa de ser um espaço no qual ela
encena suas experiências, vitórias e frustrações. Neste trabalho, tentaremos pensar um
pouco a respeito desse espaço especial inaugurado pelo lúdico e sobre como se dá a
liberdade em seus limites. Essa liberdade se funda, em nossa visada, a partir de uma
disposição bastante singular diante do mundo: a disposição melancólica.
Nesse sentido, tomaremos o ato de brincar como uma experiência poética na
continuidade do espaço-tempo, em que uma relação extraordinária com o real se prenuncia.
O estado de quase alheamento em que se encontra a criança que brinca, aliada à
concentração que não permite intrusões, não deixa de estar em fricção com o mundo.
Tanto a criança quanto o adulto, ao brincarem, habitamuma região que não pode ser
negligenciada: “essa área do brincar não é a realidade psíquica interna. Está fora do
indivíduo, mas não é o mundo externo9”.O estado de interseção permanente que a
brincadeira instaura,coloca em diálogo o real e a fantasia, plasmando um imaginário capaz
de estender as possibilidades de compreensão da realidade.São manipulados, dentro dessa
zona, objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa. Ao fazê-lo, contudo,é revelada
uma porção deinterioridade de quem os maneja, pois,nesse domínio de orientação
autônoma,os objetos colocam em cursoprocessos procriativos de umapercepção ativada do
7HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.33. 8Ibidem. p. 3. 9 WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.76.
16
real. “Sem alucinar, a criança põe para fora uma amostra do potencial onírico e vive essa
amostra num ambiente escolhido de fragmentos oriundos da realidade externa10”.
Assim pensava Winnicott, com sua teoria dos objetos transicionais e espaço em
potencial11. Ao brincar, os fenômenos externos são manipulados a serviço do sonho; os
materiais se tornam significantes; animados por sentimentos oníricos, são investidos pela
subjetividade de quem joga. O brincar envolve o corpo em razão da manipulação de objetos;
quando a brincadeira está em curso, há um apagamento entre as fronteiras do objeto
utilizado e do ser que o manipula. Os objetos, por sua vez, adquirem novos significados,
afastados de sua instrumentalidade habitual. O ato de jogar, assim, é uma reinscrição do ser
no espaço e tempo, porque também reiventa a temporalidade, integrando-o a um tempo
muito particular - desintegrador e integrador, simultaneamente, em relação a realidade
daquele que joga. Tempo inaugural, de um novo modo de ser e estar no mundo.
Assim, o jogo também pode ser pensado como categoria ontológica.Segundo Eugen
Fink12, “o jogo humano tem um significado mundano, uma transparência cósmica”. Ele, o
jogo, é uma das mais claras evidências da nossa existência finita. Brincando, o homem não
permanece em si mesmo, perde a centralidade do eu. Desloca-se, então, para uma
realidade “extática e excêntrica”, na qual, contudo, não deixa de dialogar com a realidade
exterior. Jogando, diz Eugen Fink, “o homem sai de si mesmo, em um gesto cósmico, e dá
uma interpretação rica de sentido a todo o mundo13.”
O jogo tem como aliado o tédio. Para Huizinga, uma das características
fundamentais do jogo “é que ele jamais é imposto pela necessidade física ou dever moral, e
nunca se constiuti como tarefa, sendo sempre praticado nas horas de ócio, com exceção
dos rituais religiosos, que têm uma função cultural reconhecida14”.
10WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 76. 11 Idem. 12 FINK, Eugen. Le jeu comme symbole du monde. Le signification cosmique du jeu humain.Paris: Éditions de Minuit, 1960, p.19-20. 13Idem. 14HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.11.
17
Huizinga conclui que é inerente ao jogo o fato de ser livre. Ele próprio consiste em
uma manifestação de liberdade. Uma segunda característica do jogo, portanto, intimamente
ligada à primeira,é que o jogo não é “vida corrente”, “nem vida real”. Pelo contrário, trata-se
de uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação
própria. Os jogos das crianças, contudo, nos adverte15, não são desprovidos de seriedade:
“eles se processam com um enlevo e um entusiasmo que chega ao arrebatamento e, pelo
menos temporariamente, absorvem inteiramente seu jogador”.
Acredito que, como a menina de Korda e sua boneca, os personagens de
Beckettfizeram de seus jogos, de suas narrativas, de sua imobilidade, e, principalmente, de
sua espera, uma instância de resistência. Não tentaremos, contudo, simplificar o
estranhamento desse mundo infantil; nem supor, apressadamente, no que consistem os
jogos na construção da poética cênica de Beckett. Aqui, nesta tese, manteremos a mesma
atitude de desconfiança que Beckett atribuía à linguagem: tateamos.
2. UM JOGO FEITO PARA PERDER: A PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA
15 Idem.
18
Desta vez, eu sei para onde estou indo, não é mais a antiga noite, a noite recente. Agora, é um jogo que eu vou jogar. Nunca soubejogar, até agora. Bem que eu queria, mas era impossível. Mas tentar, tentei. Acendia todas as luzes, olhava bem em volta, começava a brincar com o que via. Brincar é o que as pessoas e as coisas mais adoram fazer, certos animais também. A princípio, todas vieram de bom grado, vieram todos a mim, felizes que alguém quisesse brincar com elas. Se eu dizia, “agora eu quero um corcunda”, imediatamente um corcunda vinha correndo, todo prosa da bela bossa com que ia representar. Não lhe ocorria que eu poderia pedir que ele tirasse a roupa. (BECKETT, in: Malone Morre) 16
2.1 A potência do jogo
Esperando Godotfoi escrita em francês pelo irlandês Samuel Beckett, durante apenas
quatro meses do ano 1949. Sua encenaçãoganhou os palcos sob a direção deRoger Blin,
depois de Beckett haver assistido, por duas vezes, Sonata dos espectros, de Strindberg,
peça da qual Blin era o encenador, no Théâtre de La Gáité-Mortparnasse.Ao que parece,
Beckett julgara-o capaz de compreender edirigir o seu texto,e, depois de alguma espera,
finalmente pôde vera estreia de Esperando Godot no pequenoThéâtre de Babylone, em 05
de janeiro de 1953.
A recepção não foi desprovida de escândalo: o público não entendeu. “Alguns
aplaudiram, outros assobiaram, protestaram, houve até troca de insultos”, segundo Emile
Lavielle17.Jean Anouilh, um dos primeiros a publicar uma matéria elogiosa em Arts,
descrevia a encenação de Godotcomo “um esquetemusic-halldos Pensées de
Pascaldesempenhados pelos Irmãos Marx” 18. Jean-Jacques Gautier manteve o mais
absoluto silêncio em Le Figaro. Alain Robbe-Grillet escreveu na Critique (Fevereiro de 1953)
um artigo, “Samuel Beckett ou a presença sobre a cena”, no qual estabelecia uma relação
16 BECKETT, Samuel. Malone Morre. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p.10-11. 17 LAVIELLE, Emile. En Attendant Godot. Paris:Librairie Hachette, 1972, p.13. 18LAVIELLE, Emile. En Attendant Godot. Paris:Librairie Hachette, 1972, p.13.
19
entre a postura dos personagens em cena e a filosofia de Martin Heidegger, no que diz
respeito ao Dasein.Outras leituras, de base teológica, viram na peça uma espécie de
reinterpretação do cristianismo.
Entre as diversas possibilidades de leitura que a obra apresentou,a interpretação a partir
do existencialismo de Sartre parece, à época, haver contado com maior número de adeptos.
Segundo Émile Lavielle19, “uma visada sartreana do trabalho é bem plausível. Embora a
doutrina de Beckett não seja a de A Nauseaou a do Ser e o Nada e esteja para além de
qualquer expressão ideológica, Esperando Godot está carregada de noções
existencialistas.” É verdade:há vários temas existencialistasna peça. Mas se os
personagens tagarelam, sua loquacidade não pretende chegar a nenhuma conclusão ou
conceito. Os temas são esvaziados, superpostos em clichês nos quais Beckett desfila aos
olhos do leitor a fragilidade, a vulnerabilidade dos discursos prontos. Os personagensnão
contam com projetos para a existência, apenas jogam. Dizerqualquer coisa,naquele
contexto, é o que precisam, e o uso de paradoxos, de forma intermitente, não nos permite
reconhecer algo que se assemelhe à proposta de Sartre, que tinha na ação do sujeito diante
do mundo, um de seus principais pressupostos.
De qualquer forma, não é difícil imaginar hoje a perplexidade que a peça causara na
ocasião de sua estreia. Sua encenação materializano palco uma crise concernente à própria
forma dramática na modernidade, na qualas três unidades – tempo, ação e espaço –
cunhadas por Aristóteles, encontram-se radicalmente subvertidas.
Esperando Godotpassa-se em um espaço impreciso. Um caminho e uma árvore são os
elementos do cenário no qual se encontram Vladimir e Estragon; personagens, que, ao que
parece, têm naquele local um encontro com um senhor a quem chamam de Godot. Nenhum
relógio ou bússola para lhes demarcarem tempo e espaço: tão incerto como o lugar em que
obrigatoriamente devem aguardar Godot é o próprio personagem a quem esperam. Sobre o
seu nome se tem edificado, no árduo esforço exegético da crítica ao longo dos anos, um
19 Idem. .
20
sem-número de apostas.Segundo o crítico George Hensel20, uma das primeiras
interpretações, dentre várias outras que tentavam explicar o nome Godot, “seria que a
primeira parte significariaGod, palavra inglesa que significa Deus; e a terminação,ot, um
sufixo extraído da língua francesa, que, anexado ao nome,estaria ali para dar a ideia de
diminutivo”.
Poderíamos supor, então, Godot como esse falso demiurgo, um artífice dotado do mais
nefasto humor negro, que se diverte à custa do sofrimento de suas criaturas? O próprio
Beckett tratou de refutar as especulações acerca do nome do ilustre visitante a quem
esperam os dois notáveis vaudevilles. Quando interrogado certa vez, em Berlim, em 1967,
se o nome Godot era inspirado em um nome de família em cuja casa ele se hospedara no
sul da França, Beckett contestou, e, em outra ocasião, acabou por afirmar, em carta a Alan
Schneider21, que nem mesmo ele sabia o que significava o nome, e, se o soubesse, o teria
explicado no próprio espetáculo22.
Os personagens se tratam por apelidos numa alternância de ternura e crueldade nunca
coincidente entre as partes. Estragon é Gogo e Vladimir é Didi. Vladimiré maisinclinado à
elucubrações, pronto para transformar o comentário mais trivial em qualquer coisa da mais
profunda aspiração metafísica. Gogo, por sua vez, está quase sempresentado, inclinando-
se, mancando, caindo. Sua postura nunca é altiva e resoluta: seus tropeços o levam ao solo
constantemente. Se Gogo dá maior atenção às suas botas, é ao seu chapéu que se detém
Didi. No encontro com Pozzo, Estragonquer que Lucky dance;Didi,que ele pense. Os pés
de Estragon fedem e Didi tem mau-hálito.Enquanto Gogoé dado apantomima,Didiinclina-se
paraa retórica.A simetria23 se estende até o número de letras que possuem os nomes dos
20HENSEL, George. Samuel Beckett. Breviarios Del Fondo del Cultura Económica 224, México, 1968, p. 34-35. 21Diretor da primeira produção americana da peça.
22 ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 38.
23 FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/ Krapp’s Last Tape. London: Faber and Faber, 2000, p.74.
21
personagens: Vladimir e Estragon possuem oito letras; os apelidos, quatro (correspondência
análoga ao outro par da peça, Pozzo e Lucky, ambos com cinco letras no nome).E mesmo
as falas obedecem amatrizes que se alternam: oAtoIItermina comas mesmaslinhas do Ato I;
apenas os personagens que as enunciam se revezam.
De acordo com Beckett, contudo, “não há nenhum interesse especial ligado à escolha de
nomes: nenhuma intenção de sua parte, por exemplo, em "internacionalizar" a peça, dando
aos personagensdenominações que provem de línguas diversas; francês para Estragon,
russopara Vladimir ou no uso do inglês para Lucky e italiano para Pozzo24”.
Em todo caso, mesmo os nomes não são fixos: se Vladimir chama-se Vladimir, o menino
que traz a mensagem de Godot se dirige a ele como "Senhor Albert" e,a certa
altura,Estragon dá o seu nome como Adam, numa alusão irônica ao personagem bíblico. No
primeiro manuscrito da peça, Estragon é chamado, ao longo do primeiro ato, de Levy (um
nome judeu com óbvias conotações bíblicas), e,já na versão oficial, Estragon, quando
questionado sobre seu nome por Pozzo,diz, sem titubear, quese chama Catulo25. Vladimir
seria o lado intelectual do homem; Estragon o corpóreo. Seus nomes sugerem aspectos
complementares da natureza humana.Eles carregam aspectos da personalidade de cada
um: “Vladimir, por exemplo, nome russo, significa “senhor do mundo”, nome que sugere sua
aspiração em dominar o universo via intelecto, dado suas inclinações filosóficas. Já
Estragon, palavra francesa para erva estragão,calha bem em um personagem com apetites
físicos tão marcantes26”.
Insigificante, porém, torna-se a discussão sobre os nomes dos personagens, quando a
empresa avança para acrítica. Como a teoria literária27 cresceu e transformou-se durante
todo este período, Godote as demais peças do autor têm sido sujeitadas a uma grande 24 Idem. 25 Na tradução brasileira, de Fábio Souza Andrade, que utilizamos neste trabalho. O texto inglês traz a palavra Adam (Adão) e não Catulle, como no francês. “Adam”, por razões óbvias, traz uma ideia de homem originário, universalidade. O nome, em hebraico, quer dizer humanidade. 26 WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 32. 27BOXALL, Peter. Waiting for Godot/Endgame. A reader’s guide to essential criticism.First Responses to Waiting for Godot and Endgame.New York:Palgrave Macmillan,2003, p.5-10.
22
variedade de abordagens analíticas, que procuraram um meio de dar expressão crítica para
a novidade dramática de Beckett.
Apesar da relutante resistência às interpretações,segundo Peter Boxall28, “o diálogo
agonístico e difícil entre Beckett e crítica literária tem o seu princípio organizador, presente
em batalhas teóricas e políticas que cercam as peças dos anos cinquenta até a década de
noventa”. Há um abismo político que se abriu na recepção crítica de Beckett na década de
cinquenta, após as primeiras montagens de Esperando Godot e Fim de Partida. Martin
Esslin e Theodor Adorno foram os primeiros a apresentarem ensaios relevantes sobre o
trabalho do autor. O primeiro, o arrolou ao grupo de produções do chamado “Teatro do
Absurdo”, destacando a forte dose de humanismo que a peça Esperando Godot trazia em
seu bojo, na atitude de persistência dos personagens em prosseguirem, mesmo
medianteuma existência que não possuía nenhuma finalidade. Já a leitura de Adorno, ao
contrário, não ofereceu tal representação, que a alguns pareceu enaltecedora, de uma
humanidade incansável. Em seu ensaio sobre Fim de Partida,29e mais tarde na Teoria
Estética,30Adorno afirmava que Beckett dramatiza a deterioração da cultura, após as
atrocidades do século XX.A realidade seria a transposição, na arte,de uma forma que visava
a um ataque ao conceitotradicional de poético, considerado até entãocomo algo superior e
consagrado. “A poesia retirou-se para o abandono sem reservas ao processo de desilusão,
que destrói o conceito de poético; é o que torna irresistível a obrade Beckett.” 31Na visão do
autor da escola de Frankfurt, a peça é uma crítica mudaaos processos sociais que levaram
a esse quadro de destruição, que é muda porque não há mais uma linguagem cultural
intacta com a qualarticular a resistência ou protesto. Para Adorno, oteatro de Beckett foi
além dos poderes interpretativos da teoria ou filosofia, porque o que ele dramatizava era
28 Idem. 29 ADORNO, Th. W. Notas sobre literatura. Intento de entender Fin de partida. Madri: EdicionesAkal, 2009, p.270. 30Ibidem. p. 34. 31Ibidem. p. 482-483.
23
justamente o fracasso de tais discursos, expressando a depravação de condiçõesdo mundo
contemporâneo.
Ainda não se desenvolveu, salvoengano32, uma abordagem da obra de Beckett, a
partir da categoria do jogode forma minunciosa. Adorno, por exemplo, eliminou a
possibilidade de um estudo nesse sentido logo de saída, quando enxergou na produção
artística do século XX, e de forma específica em Beckett, o princípio lúdicocomo uma forma
de cumplicidade secreta com o “destino, representando o peso míticoque a arte gostaria de
lançar fora.”33 Para ele, se era impossível pensar a arte sem o jogo e sem a repetição, ela,
todavia,determinava em si, como negativo, este “terrível vestígio”.
Em nossa visão, entretanto,tomaro jogo e a repetição como simplesmente uma força
disciplinadora que realiza “o tabu sobre a expressão no ritual da imitação”, é ignorar que é
concernente à própria dinâmica do jogo nãosomente “o domínio de uma coletividade cega34”
mas, também, uma atitude que põe em jogo o próprio real instituído. Esse movimento
pendular, que ora é sério, ora é jocoso, põe em xeque o universo da crença nas instituições,
doqual o imaginário é constituído e constituinte, sendo, inclusive, responsável pela
manutenção de valores que as sustentam.Também elas, as instituições, são calcadas em
uma rede simbólica, socialmente sancionada, na qual se combinam em proporções e em
relações variáveis, um componente funcional e um componente variável.O imaginário está
na raiz tanto da alienação como da criação na história.35Logo, uma acepção do jogo
relegando seu potencial crítico de ironizar a realidade para em seguida desestabilizá-la
permanece em uma chave dialética que remete a uma síntese, como se a arte fosse um
32 Ruby Cohn, em seu livro Samuel Beckett: the comic gamut, faz uma alusão à numerosa incidência de jogos na estrutura de Waiting for Godot e Endgame, citando Huizinga e uma de suas definições acerca do jogo para ilustrar seu comentário. Outros críticos fizeram o mesmo, mas não sabemos de nenhum trabalho que tenha se dedicado à questão do jogo de forma pormenorizada, como tentamos nesta tese.Cf. COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutger University Press, 1962, p.226. 33ADORNO, W.Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 482. 34 Ibidem, p.483. 35CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.161.
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negativo do real36.A arte até gostaria de “lançar forar” esse peso mítico corporificado pelo
instinto lúdico.Se não o faz, é porque há uma tensão dialética permanente, concernente à
própria ludicidade: ela não é só opressão, mas também resistência, persistência e
promessa.Muitas vezes, a exposição desse impulso lúdico, no cantar que tematiza a própria
dor da repetição, ou mesmo nas conversações que oferecem um alívio apenas temporário, é
transmudamento do sofrimento em canto e narrativa,numa tentativa, ainda que muitas vezes
frustrada, de fuga do sofrimento, de compreensão da natureza da aflição,em uma
expectativa de exorcizá-los pela repetição.
Portanto, enfocado em sua dimensão própria, o lúdico, na situação limite em que se
encontram os personagens de Esperando Godot, prenuncia-se como último recurso para
ludibriar o tédio. E mesmo que os fracassos sejam sucessivos, o exercício intermitente do
jogo não deixa de despertar nos jogadores, que são os espectros beckettianos, a esperança
de ser bem sucedido na próxima tentativa, exatamente onde acabaram de falhar.
Em nossa visão, a obra de Beckett não destrói “o conceito de poético” como quer
Adorno, pois a tessitura da obra de arte norteada pelo princípio poético de composição
nunca se prendeu ou se deixou aprisionarpor conceitos. A trama da linguagem, na qual se
inscreve o discurso poético, abarca o pensamento sem se deixar domar pelas amarras do
conceito; as imagens que seu discurso produzdiferem decisivamente do discurso conceitual,
que se fecha em uma proposição finalista.
Trabalharemos aqui com a proposta de imagem dialética, em suas duas funções
essenciais: crítica e criadora. Na esteira de Walter Benjamin37 e Didi-Huberman38,
36 Segundo Castoriadis, a criação pressupõe, tanto quanto a alienação, a capacidade de dar-se àquilo que não é (o que não é dado na percepção ou o que não é dado nos encadeamentos simbólicos do pensamento racional já constituído). E não podemos distinguir o imaginário que está atuando na criação do imaginário “puro e simples”, dizendo que o primeiro antecipa uma realidade ainda não dada, mas “se verifica” em seguida. O essencial da criação não é a descoberta, mas a constituição do novo; a arte não descobre, mas constitui; e a relação do que ela constitui com o real, relação seguramente muito complexa, não é uma relação de verificação. Idem, ibidem, p.162. 37BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
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pensaremos Beckett como inventor de uma forma poética que, exatamente enquanto
imagem dialética – imagem de memória e crítica ao mesmo tempo, “propõe com seu modo
de fazer poético, imagens de uma novidade radical que reinventa o originário”39.Tentaremos
mostrar que sua poética, fundamentada no jogo, transforma e inquieta de forma duradoura
os campos discursivos conhecidos, trazendo consigo, nessa construção, efeitos teóricos que
subvertem radicalmente “as velhas perguntas e as velhas respostas40”, como afirma Clov,
em Fim de Partida.Capaz de provocar uma inquietude nas formulações cristalizadas das
maisantigas questões da humanidade, o jogo poético ou a poética do jogo que a obra
beckettiana instaura conduz ao movimento perpétuo ou ao aparente repouso do silêncio.
Nesse jogo, as imagens permanecem abertas e inquietas em sua proposital
incompletude. E o silêncio, a mudez, tão cara e tão presente em sua produção artística, não
aparece apenas no sentido de limite; mas abarca também a multiplicidade, a potência
plurissignificativa, que só no silêncio é capaz vigorar. O silêncio não é só solidão, mas
ausência que convoca presença, ausência que convoca e provoca o outro. Se a escrita
beckettiana é atravessada por silêncios e pausas, essas interrupções nem sempre estão ali
somente para enfatizar os limites da linguagem. Ao contrário, sinalizam tambéma
instauração da identidade do silêncio na diferença do corte41. Sua poética fala mais quando
se cala, já que o silêncio não é espaço vazio a ser “preenchido”, mas o máximo de
concentraçãoda fala a ser auscultado pelo leitor em sua complexidade, que pulsa nas 38 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,1998. 39 Originário aqui nada tem a ver com gênese. Como definiu o próprio Benjamin, o conceito de origem ao qual ele reporta-se não se refere ao devir de algo que nasce, mas antes a algo que emerge do processo de devir e esgotamento. “A origem está no rio do devir e o seu ritmo arrasta para a torrente os materiais da gênese. O que vem de uma origem nunca se dá a conhecer no inventário nu e óbvio do fatual, e o seu ritmo abre-se apenas a uma dupla perspectiva. Esta pede, por um lado, para ser reconhecida como restauração, enquanto reconstituição, e por outro lado, nesse contexto, como algo que é imperfeito e inacabado.” BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.257. 40BECKETT, Samuel. Fim de Partida. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.42. 41Como nos fala o professor Eduardo Portella: “O silêncio é a força da experiência confrontada com a fraqueza da expressão.” PORTELLA, Eduardo. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.16.
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entrelinhas, resistente às artimanhas do discurso. Invocar afeto não é convocar sentido, mas
pode ser um convite ao vitalismo, ainda que a apreensão imediata do mundo só ofereça
escombros.
A perspectiva aqui adotada é a de que a estrutura da obra Esperando Godot, de
Samuel Beckett, por meio de sua forma baseada em repetições e silêncios, instaura um jogo
ininterrupto, dramatizando de maneira tragicômica a existência, mas, ao contrário do que se
professa, não nos mostra apenas caracteres que agonizam em virtude do vazio e da
ausência de sentido, no qual o lúdico foi reduzido à simples negatividade. Em nossa
perspectiva, há, em Esperando Godot,uma encenação do luto, que, pela via do jogo,por um
ladopõe em curso o espanto e o terror das fantasmagorias que habitam o homem moderno
e,por outro, é capaz de trazer à cena uma possibilidade de experiência cujas
imagens,fulgurais e anacrônicas, ensejam novas possibilidades de alcance do real. Assim,
luto e ludo se imiscuem, numa interação na qual o gozo e o sofrimentoencontram-se
irremediavelmenteenredados.
O enredo, a história contada de uma forma linear que contém uma moral ou
mensagem em seu desfecho, sempre saciou a fome dos leitores que buscavam uma ficção
útil, capaz de dar uma significação à jornada humana em suas grandes e pequenas
mazelas. As narrativas com início, meio e fim não são mero entretenimento; são um
instrumento de alienação e dominação que conduzem a uma zona de conforto, na qual
respostas prontas e acabadas são fornecidas ao leitor, banindo de seu horizonte quaisquer
indagações que perturbem a falsa ordenação de sua existência. Beckett, porém,em sua
obra teatral, substitui a noção de enredo pela ideia de jogo; a poética de sua cena constrói-
se justamente a partir da impossibilidade e da insuficiência. Despida dasprerrogativas
aristotélicas que caracterizavam a ação teatral,Esperando Godot, essa peça de dois atos
que parecem se repetir de forma idêntica, antecipa aquilo que no pós-dramático
convencionou-se: “fazer do próprio corpo e do processo de sua observação um objeto
27
estético-teatral” 42. É menos como significante do que como provocação que o corpo-objeto
vem à tona. Assim, o que se apresenta em cena não é apenas o agôn, uma luta entre o eu,
o outro e o mundo dos objetos que os circundam, mas a ausência provocada por um sujeito
que desfalece subsumido em profunda agonia, atravessado por imagens que se oferecem
embaçadas e imprecisas, a partir de sua interação com os restos e resíduos que, como ele,
estão em franco processo de decomposição.
Fiados em uma crença em que a ciência e a razão se mostravam mais confiáveis
que atualmente, nossa espécie recebeu a designação de homo sapiens. Porém, com o
passar dos séculos, acabamos por compreender que, afinal de contas, não somos tão
racionais quanto o ingênuo culto à razão nos fez supor; passou então a ser moda designar
nossa espécie como homo faber, por sua capacidade de forjar objetos, que ao longo da
demanda, suprem as necessidades do homem. Ainda assim, subsistiu uma lacuna, e é aí,
nesse hiato, que Huizinga43 nos sugere uma terceira via de interpretação, que se verifica
tanto na vida humana como na animal, e é tão importante quanto o raciocínio e o fabrico de
objetos: o jogo.Huizingafoi o primeiro a pensar o jogo como um elemento intrínseco da
cultura. Sugerindo que, depois do Homo faber, e, talvez, no mesmo nível do Homo sapiens,
a expressão Homo ludens mereça um lugar em nossa nomenclatura, Huizinga associa ao
jogo e pelo jogo todo o processo de configuração daquilo que hoje chamamos
civilização.Encarandoo fenômeno da ludicidade como inerente ao processo de formação
humana, tendo suas manifestações de plenitude no jogo,Huizinga, entretanto, confere uma
realidade autônoma ao jogo, que não o limita àesfera humana.
42LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Do agôn à agonia. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac &Naify, p. 335. 43 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 3.
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“A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica
do jogo.” 44 Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que
simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque
somos mais do que simples seres racionais, pois há no jogo um forte componente irracional
que esmaece os limites entre a razão e o instinto.
Huizinga conduziu sua investigação sobre o jogo no âmbito das descrições culturais,
acentuando o caráter lúdico da cultura e surpreendendo no jogo a fonte e o impulso do
avanço civilizatório. A autonomia dada à noção de jogo por seus estudos, conferindo-lhe o
status de um macromodelo para análise dos fenômenos, fez com que extensão sugerida na
aplicabilidade do conceito fosse, por vezes, questionada. “Em que pese essa perigosa
expansão conceitual, o seu obstinado esforço teórico guarda o mérito de haver contribuído
decisivamente para recuperar a positividade, a seriedade do jogo.45”
Segundo Iser,46 a variedade de jogos (games) estimulou na teoria dos jogos um
intenso esforço para categorizá-los, uma vez que o jogo pode ser melhor entendido através
de suas estruturas. Desde o final dos anos 40 do século XX, essas classificações só
aumentam, às vezes desenvolvidas em oposição direta a Huizinga, que globalizara a
competição de tal forma que nela só via o jogo por excelência, considerando-o até mesmo
como fato anterior à cultura,47 até chegar a Roger Caillois, que, apesar de toda sua
admiração por Huizinga, afirmava que o autor deixava de lado toda descrição e classificação
dos jogos, como se eles correspondessem sem exceção às mesmas necessidades ou
expressassem, sem distinção, a mesma atitude psíquica. Para Caillois, “a obra de Huizinga
44HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 6. 45 PORTELLA, Eduardo.No jogo da Verdade a Crítica é Criação.Fundamentos da crítica literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p.137. 46 ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, p. 314. 47 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura.São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 33.
29
não apresentava ainda uma análise dos jogos, mas sim uma indagação sobre os efeitos
fecundos do princípio do jogo no campo da cultura, ou, mais exatamente, da mente que guia
um determinado tipo de jogo, a saber, as competições reguladas48”.
Assim, enquanto Huizinga destaca função e características do jogo, Caillois ressalta
o tipo de experiência que o jogo proporciona. Para o primeiro, o jogo deve ser definido como
uma atividade livre e voluntária, fonte de alegria e divertimento. Obrigatório, o jogo perderia
uma de suas características fundamentais, o fato do jogador se entregar a ele
espontaneamente, de livre vontade e de livre prazer, tendo a cada instante a possibilidade
de optar pelo recolhimento, silêncio,solidão ociosa ou por uma atividade mais produtiva.
Caillois, no entanto, vê a necessidade de um desdobramento da categoria do jogo para
melhor entendimento de suas faculdades.
Mas o que dizer da existência? Pode a vida investir-se desse caráter de livre-
escolha que fundamenta jogo? Em Esperando Godot, os personagens Estragon e Vladimir
não podem fazê-lo. Impedidos de abandonarem o palco, por mais que tentem, estão presos
à Godot e devem esperá-lo. Essa personagem, a quem aguardam ansiosamente, não lhes
dá a menor garantia de sua chegada: apenas um menino aparece a certa altura para pedir-
lhes que continuem a aguardar pelo seu senhor. Há mesmo uma tentativa de suicídio que
não se efetiva:resistemem dar cabo às suas vidas desafortunadas.Infausta e patética, a
existência não lhes oferece nenhum significado. Para John Fletcher49, Godot seria uma
espécie de emblema para expressar a nulidade do mundo. “O nascimento é uma
calamidade, porque nos lança em um caminho unidimensional do qual só nos liberaremos
com a morte50”. Esperando Godot seria, portanto, um retrato desse comportamento
disparatado da humanidade, uma vez que Vladimir e Estragon tentam distrair-se até que
48CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.26. 49 FLETCHER, John. A Faber Critical Guides: Samuel Beckett. London: Faber and Faber Limited, 2000, p.51. 50FLETCHER, John. A Faber Critical Guides: Samuel Beckett. London: Faber and Faber Limited, 2000, p.51.
30
Godot venha. Nessa perspectiva, o enigmático personagem seria apenas a morte, “que não
é encarada, sentida e vivida como tal, porque nós nos alienamos em esperanças
infundadas” 51.A espera, a expectativa gerada nesse encontro sempre adiado nos daria uma
chance de suportar essa espera pelo fim. Ou, como Estragon coloca, "Nós sempre
encontramos um jeito, não é Didi, para nos dar a impressão de que existimos?" A existência,
desse ponto de vista, seria apenas um jogo enganador, cujas regras nos são alheadas,
sendo finalizada com a morte. À coleção de perdas que se apresenta, à atmosfera de
catástrofe na qual só se enxerga ruínas e destruição, resta o jogo.
Adorno interpretou Fim de Partida como um agôn entre a consciência e a
morte.52Em nossa análise, contudo, tentaremos verificar não só a presença desseâgon,mas
também de outras três categorias do jogo sugeridas por Caillois53(alea, mímica e ilnix),na
peça que fez de Beckett um autor conhecido mundialmente: Esperando Godot.
Catapultados pelo teor lúdico, nossa proposta é de que,nessa investida teatral,
Beckett esfumaça a categoria doeu totalizado, trazendo à cena vozes que se apresentam
comopersonas difusas, que desmentem a categoria de indivíduo adulto e realizado da
modernidade. Seus jogos promovem uma poética da banalidade, que, com seus parcos
recursos, encobre uma cadeia de possibilidades cujodevir nos coloca em contato com uma
pré-linguagem, que, como na infância,é catalizadora de sentidos vários.
Nossa hipótese, portanto, é de que seria um equívocoafirmar peremptoriamente que
nada acontece em Esperando Godot. O texto, apesar de apresentar estruturas idênticas,
repete-se num processo de ressignificação no qual os personagens, Estragon e Vladimir,
parecem, continuamente, em sua aparente insignificância, driblar o vazio e o tédio por meio
de diálogos que desconstroem os enunciados que se sobrepõem por todo o tempo. O jogo,
51 Idem. 52BLOOM, Harold. O canône ocidental: Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 485. 53 CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990.
31
o devaneio e a imaginação fazem dos clowns de Beckett personagens cujas existências se
justificam por meio de passatempos com a linguagem.
Porém, os jogos de linguagem promovidos por Beckett, se, por um lado,invalidam a
ordem da experiência, por outro,não a abandonampor completo. O jogador que aposta suas
fichas sabe que a sorte pode levá-lo ao sucesso ou ao fracasso, e é com a imprevisibilidade
que conta para que saia da partida como vencedor. Essavertigem do desconhecido,
concernente ao momento do lance de dados ou do giro da roleta,carrega consigo uma dose
expressiva de leviandade: vulgariza a ordem natural dos eventos e do cálculo eé, antes de
tudo,uma forma de emprestar aos acontecimentos um caráter de choque, de subtraí-los do
contexto da experiência para conduzi-los a uma experiência outra, desprotegida e
dessacralizada.
Em Esperando Godot a necessidade de busca de um sentido para existência é
colocada em xeque continuamente, assim como a validade presente nessa busca, baseada
na concepção de destino, tão cara aos personagens gregos, haja vista o drama de Édipo. A
máxima de Sartre: “Estamos condenados à liberdade54” ganha nova acepção na espera dos
dois vagabundos, conforme se tentará demonstrar ao longo dessa tese.
2.2 Duelos entre jogos:agôn, alea, mimicry e ilinx.
Em Esperando Godot o que se ausenta ganha presença. As ações, que jamais se
realizam, vivem do que rechaçam. Os jogos, que se mostram ao público na peça são
produto de uma encenação incompleta, um sempiterno ensaio, que os detém em um círculo
vicioso, de impossível superação. No fim das contas, os homens estão sós; à sua espreita
está a sepultura, que lhes servirá de última morada. Nesse desolador cenário, a indesejada
das gentes,trazida na celeridade do tempo, encontrará apenas o homem e suas dores, após
uma tediosa espera, sem recompensa nem glórias. Na espera de Godot,os personagens
54SARTRE. Jean- Paul. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 782.
32
são compelidos a uma existência injustificada. A obstinação que depositam em uma
personagem que desconhecem, fazendo-a emblema de sua vigília, torna-se, a cada fala,
menos justificável para o espectador. Enquanto isso, aos expectantes, nenhum significado
aparente justifica a sua espera, além do óbvio sofrimento que resultaria desse quadro
trágico. Então, nessa terra livre de metafísica, como auscultar um sentido? Segundo
EugenneWebb,55 Esperando Godot“é uma peça que traduz essa perspectiva do mundo e
traz em si arquétipos que simbolizam a humanidade e seu comportamento quando
confrontado com essa questão.”Estragon-Vladimir, Lucky-Pozzo apresentam-se como pares
dissonantes, cujos papéis complementam-se e refutam-se continuamente.Os dois primeiros
são clochards que, ao que parece, passaram a maior parte de sua existência juntos. Apesar
das disputas incessantes, eles não podempassar um sem o outro.O parPozzo- Lucky seria a
encarnação do mestre-escravo e da unidade dos opostos, e,ao contrário de Vladimir e
Estragon, que não possuem os papéis alterados ao longo da peça, Pozzo e Lucky são
golpeados por uma perda no segundo ato: Pozzo fica cego e Lucky, mudo.
Entretanto, Vladimir-Estragon, Pozzo-Lucky não são personagens no sentido
tradicional do termo, capazes de traçarem referenciais precisos para suas personas: não
possuem morada, família,nenhum traço biográfico que possa confirmar especulações
acerca de experiências passadas ou futuras. Eles têm apenas um nome, nem mesmo um
sobrenome. São nômades, andarilhos em um espaço rigidamente circunscrito, a
mendigarem, com suas narrativas e jogos, algum resquício de singularidade.
Vladimir é o mais filósofo dos dois, está sempre com os olhos pregadosem um
horizonte remoto. Nele, parece buscar réplicas para suas meditações, já que entre ele e
Estragon nunca vigora um diálogo em que as perspectivas coincidam, ou que lhe dê uma
resposta satisfatória para suas inquietações existenciais.
55WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 32.
33
“A condição de ser, na perspectiva de Aristóteles, faz do homem uma criatura com o
desejo inato deconhecer; o homem não pode suportar por muito tempo a ausência de
significado. E significado, em seu sentido mais básico, é o modelo, o padrão” 56. Na
ausência de padrões que deem significação a seu mundo, o homem tentará,por todos os
meios à sua disposição, criá-los, ou pelo menos imaginá-los. “Se um frasco não está
disponível, um toco,uma latinha servirão”.57Diante da certeza da morte e do tempo que se
esvai; de um Deus morto ou indiferente, envolto em uma incompreensível nuvem de
silêncio, o único mistério entre os mistérios restantes ao homem são as dores que lhe infligir
o tempo, e fica difícil prosseguir a partir de tal constatação.
Como o nome do personagem, o principal motivo da peça, a espera de Godot,
também é uma incógnita: algo indistinto e inalcançável, do qual se vê enlaçado de forma
indissolúvel Vladimir, e de certa forma também Estragon, em virtude de sua incapacidade de
separar-se de seu companheiro, nessa longa espera. Uma espera que se estabelece não
como um substantivo, mas como um verbo, na descrição de um único gesto que se coloca
como padrão entre os personagens: a ininterrupta espera manifesta-se na resoluta atitude
de Estragon e Vladimir, mesmo em face da total ausência de evidências de que
Godotcomparecerá ao encontro. O que vemos no palco são dois seres agonizantes, presos
a um lugar, a uma espera, em um purgatório repetitivo no qual o tempo imóvel acentua
ainda mais o sofrimento da dupla. O que desejam de Godot? Na primeira cena, nos
inteiramos de que Estragon recebeu uma surra durante a noite e o deixaram em uma vala.
Quem o fez? Estragon o ignora; “foram os mesmos de sempre”, diz. Situação que se
repetirá no Ato II, quando Estragon aparece dizendo que foi novamente espancado, como
se já estivesse acostumado àquela rotina: “Mais um longo dia se foi58”. Estragon parece
mais conformado com o sofrimento, enquanto Vladimir ainda insiste em conjecturas que
nunca atingem seu ideal de sublimação. No início da peça, debate-se para livrar-se de suas
56WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações Editora, 2012, p. 32. 57 Ibidem. 58 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.112.
34
botas, que lhe fazem doer os pés. Enquanto Estragon geme em função da dor que lhe
causa o calçado, comentando o fato como a mais trivial das ações cotidianas, Vladimir vê,
no episódio das botas e nas observações do companheiro, um subterfúgio para
abstraçõesacerca das dores da vida: melancólico, manipula seu chapéu instado pela
evocação de seu companheiro “de um último momento”, a morte. Ambos lidam mal com os
objetos que dispõem, não sabem o que fazer deles.
Vladimir: Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés. (Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, bate nele, sopra no interior para vesti-lo) Alarmante, isto está ficando alarmante. (Silêncio. Estragon mexe o pé, separando os dedos para que respirem melhor) Um dos ladrões foi salvo. É uma estatística razoável. (Pausa)Gogô? (BECKETT, 2006, p.21)
Estragon sofre dos pés, o pé marca sua adesão à terra, ao mundo material.
Inspeciona seus sapatos, sente dores, e é ali, naquela circunstância física imediata,que
reside seu mal. A rubrica indica que Vladimir deve desempenhar um gesto análogo com o
seu chapéu. Seu mal é pensar em demasia, buscando a compreensão em uma atitude
tipicamente melancólica, de distanciamento do aqui, agora. Como no quadro de Dürer,
Melancolia, em que uma mulher encontra-se cercada de objetos desconexos e não há
qualquer perspectiva de harmonia entre a personagem do quadro e a realidade circundante,
Vladimir e Estragon encontram-se exauridos diante de um mundo caótico.
Entretanto, não olham passivamente para a desordem que os cerca. Todas as
personagens de Beckett guardam na manga uma arma comum contra a dor: o jogo. Para
ignorarem o silêncio divino, interpretam à laCommediadell'arte, e as regras com as quais se
defrontam, estabelecidas por uma autoridade sobre a qual nada se sabe, duelam com a
incessante vontade das personagens, que, valendo-se da improvisação contínua, buscam
saídas, por meio do jogo e da encenação.
Buscar saídas não quer dizer encontrá-las. No entanto, o labirinto e seus enigmas
podem ser um dispositivo eficaz para a distração dos expectantes. Beckett não nos diz
quem é Godot, entretanto, chega um mensageiro, um menino, que fala em seu nome e põe
35
a peça em marcha, justamente quando Vladimir, o mais crédulo, ameaçava abandonar o
jogo. O que significa o menino? Não sabemos. Da perspectiva do jogo, a vida de todo ser
humano é totalmente dependente do acaso, e, por extensão, o tempo não tem sentido,
sendo então o destino dependente do nebuloso, de forças externas que o jogador não
domina.
Caillois59, em sua obra “Os jogos e os homens”, distingue quatro categorias de jogos:
agôn, alea, mimicry e ilinix, definindo-as da seguinte maneira: agôn,60como competição,
retoma aquela característica que Huizinga atribuíra a esse jogo básico, isto é, “uma luta em
que se cria artificialmente uma igualdade e oportunidades para que os adversários possam
se confrontar sob condições ideais, sob condições que permitam atribuir um valor preciso e
incontestável ao triunfo do vencedor”.
Aleaé definidocomo um tipo de jogo “que, muito ao contrário dos jogos do agôn, se
baseia em uma decisão que não depende do jogador e sobre a qual ele não tem o menor
controle; por conseguinte, trata-se aqui menos de vencer um adversário do que domar o
destino. Dito com mais precisão, a vitória se deve ao destino, e, se existe rivalidade, a vitória
significa meramente que o vencedor foi mais favorecido pelo destino que o perdedor61”.
Já a mimicry62incorpora como jogo “a pressuposição temporária - se não de uma
ilusão (embora essa palavra signifique nada menos do que ingressar no jogo: in-lusio), ao
menos de um universo fechado, convencional e, de certa maneira, fictício”. O jogo não
consiste aqui em desenvolver uma atividade ou submeter-se, em um ambiente imaginário, 59 CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia,
1990.
60 Ibidem. p.39.
61 Ibidem. p.36.
62CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia,
1990.
36
ao destino, mas em tornar-se uma figura ilusória e comportar-se de uma forma
correspondente. O jogador confronta-se nesse caso com uma série de manifestações
diferentes, cujo traço comum é jogar com o que o próprio jogador acredita, ou fazer com que
os outros acreditem: que ele é alguém outro. O homem despe-se parcialmente de sua
memória pessoal, fantasia-se, e, temporariamente,tenta destituir-sede sua personalidade,
para simular outra.
Ilinx63, por fim, definida como uma última categoria, inclui aqueles jogos que se
baseiam no desejo do êxtase e cujo estímulo consiste em perturbar por um instante a
estabilidade da percepção e injetar na consciência um tipo de pânico voluptuoso. Trata-se
de colocar o jogador na condição de atordoamento e transe que nega a realidade com
ousada superioridade.
Ao fazer uso dessas categorias, Caillois pretende descrever os jogos como
elementos da cultura, expandindo suas classificações, uma vez que, em seu juízo, o
trabalho de Huizinga não compreende todas as especificidades dos jogos em suas diversas
manifestações sociais. Em Beckett, acreditamos contar com as quatro categorias,
conjugadas de formas diferentes a partir de determinadas circunstâncias ficcionais. Em
nossa análise, contudo, essas categorias ganharão uma distorção; aqui a abordagem
desviar-se-á de um suposto sentido literal ou da ansiedade classificatória, próprios de uma
análise que busca verificar a aplicabilidade de conceitos na realidade empírica. Levando em
consideração o nosso objeto,o caminho que escolhemos passa pelo estudo do texto
ficcional como jogo. Nesse sentido, consideramos a questão da “mimese como não imitatio”,
porque, se supusemos e desejamos aceitar os textos teatrais como jogo, devemos, antes de
tudo, estar cientes da possibilidade que surge, com a narrativa moderna, de pôr em cheque
63 Ibidem. p. 46.
37
toda a estética tradicional da representação. A mimese, ao contrário de sua falsa tradução,
imitatio, não é produção de semelhança, mas produção de diferença.64
É no jogo ficcional, que o fictício e o imaginário ganham manifestações que
transcendem suas funções pragmáticas nos mundos do discurso. Como observa Iser,65
apesar do fictício oferecer uma orientação cognitiva para o imaginário, ele libera com isso o
imaginário e também a indomabilidade. Se tal indomabilidade não existisse, não poderia
acontecer um jogo que se realiza com a mudança do que está em jogo. Tornar presente o
que é ausente faz surgir um objeto imaginário que, apesar de não existir objetivamente,
mobiliza a percepção do próprio real, colocando-o em jogo. Por isso, para Iser, essa
oposição entre ficção e realidade deveria ser substituída por uma relação tríplice: como o
texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição desse real, “então
o componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto
fingido,a preparação para um imaginário”66.
O termo “jogo” aponta não somente para a atividade específica que nomeia, “mas
também a totalidade de imagens, símbolos ou instrumentos necessários a essa mesma
atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo67”. Para jogarmos cartas ou xadrez
é necessário um conjunto de peças no qual a ausência de alguma delas implicará na
impossibilidade da partida. Todavia, essa noção de totalidade fechada, completa e imutável
que caracteriza as condições ideais do jogo não se efetiva em Beckett. O que há são 64“O conceito proposto na Antiguidade por Platão e retomado por Aristóteles tem sido interpretado, ao longo do tempo, como condição que tem a arte de reproduzir o real, funcionando como uma espécie de cópia dele. Para muitos, esta noção advém de um erro de interpretação do conceito, não desenvolvido por Aristóteles em sua Poética.” LIMA, Luis Costa. Mimesis e modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 361. 65ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, p.14. 66Idem.
67HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,
2010, p. 6.
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despojos e ruínas, resquícios de civilização, e é com esses recursos que o jogo deve
prosseguir.
Na Origem do drama trágico alemão68, Benjamin desenvolve sua teoria da alegoria
contra a teoria dos símbolos, que vem de Platão até Goethe. Ao reler as reflexões filológicas
filiadas a essa tradição, Benjamin reelabora a teoria para uma apreensão alegórica do
mundo, destruidora e distensa, na qual não há possibilidades de harmonia nem qualquer
vislumbre de totalidade, como almejava a apreensão simbólica. Benjamin encontra no
drama trágico uma subversão da unidade característica do símbolo:
E ainda é óbvio que, ao privilegiar a coisa face à pessoa, o fragmentário frente à totalidade, a alegoria é o contraponto do símbolo, mas por isso mesmo igual a ele em força. A personificação alegórica sempre nos iludiu nesse ponto: a sua função não é a de personificar o mundo das coisas, vestindo-as de personagens. (BENJAMIN, 2011, p.199)
A interpretação que Benjamin faz neste livro do luto e da percepção do mundo dos
personagens do drama trágico relaciona-se com a perspectiva que adota nas Teses sobre o
conceito de história. Inspirado pelo quadro de Paul Klee, Angelusnovus, Benjamin imagina
um anjo da história que olha para o passado enquanto é soprado para o futuro por um
vendaval, e vê o progresso como ruína, morte e destruição. O herói melancólico e alegórico
do drama trágico vê o mundo da mesma forma que o anjo da História: como um monte de
ruínas, assim como as criaturas beckettianas, elas mesmas ruínas de realidade, como
observou Paulo Leminski, em prefácio para sua tradução de Malone Morre69.
2.3 Mimicry (...) E máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo eu de súbito entrava em contato indispensável com meu
68BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001.
69BECKETT, Samuel. Malone Morre.Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p.158.
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mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério70. (Clarice Lispector)
A Mimicryconsiste em qualquer jogo que pressuponha a aceitação temporária ou de
uma ilusão (ainda que a palavra signifique apenas uma ilusão temporária:in-lusio), ou, pelo
menos, de um universo fechado, convencional e, sob alguns aspectos, imaginário.
Encontramo-nos, então, perante uma variada série de manifestações que têm como
característica comum a de se basearem no fato de o sujeito jogar a crer, fazer a si próprio a
crer ou fazer aos outros creremque se é outra pessoa e a ação que desempenha é
verossímil. Retirada do inglês,mimicry, designa o mimetismo, nomeadamente dos insetos,
com o propósito de sublinhar a natureza fundamental e radical, quase orgânica, do impulso
que o suscita: “o instinto de sobrevivência” 71. Nesse sentido, mimicryé a primeira categoria
que tentaremos perscrutar no universo beckettiano, permeado de fissuras e silêncios. No
decurso de sua espera, na aparente imobilidade em que se encontram, Estragon e Vladimir
entregam-se ao como se: nesse movimento, tentam esquecer-se, despojam-se
temporariamente da imediaticidade catastrófica que se lhes apresenta. Na tentativa de
driblarem o vazio, intensificam-no, dilatando ainda mais a atmosfera de sofrimento da qual
escapam, em saltos esporádicos, por meio das gags e gestos provenientes do repertório
cômico (musical hall e comedia dell’arte), que permeiam toda a peça.
Vladimir: Eles mudaram bastante.
Estragon: Quem?
Vladimir: Aqueles dois.
Estragon: É isso! Vamos praticar conversação. (BECKETT, 2006, p.95)
70 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 81. 71Cf. CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990, p.40.
40
Beckett concebe a existência como um jogo, um jogo feito para perder. Nele o
jogador vive o impasse de se debater com regras, as quais não compreende e não
consegue assimilar; ou criar suas próprias regras, como crianças, que, muitas vezes,
constroem as regras livremente, de acordo com a demanda, ao longo do desenvolvimento
de sua “brincadeiras.” Segundo Caillois, “um desfecho conhecido a priori, sem possibilidade
de erro ou surpresa, conduzindo claramente a um resultado inelutável, é incompatível com a
natureza do jogo72”. O jogo consiste na necessidade de encontrar, de inventar
imediatamente uma resposta que é livre dentro do limite das regras. O que fazem Vladimir e
Estragon? O único imperativo ao qual obedecem é aespera por Godot. Afora isso, nada
mais compreendem. Não conseguem resgatar o passado, declinam quando lhes aventa a
possibilidade de uma saída trágica com o suícidio- negam-se, enfim, terminantemente, à
ação. Para “passarem o tempo”, a liberdade de ação que se concedem é a de inventarem
diálogos, evocarem anedotas, canções e narrativas.Asreminiscências desvanecidas de que
dispõem, porém,ecoam como repetições, apresentando um incomôdo deja vú quando
enunciadas. Além disso, manipulam em cena, sem a menor destreza, uma série de objetos
depauperados, tais como os sapatos e chapéus velhos dos personagens:
Vladimir:(Estragon luta com a bota): O que você está fazendo?
Estragon: Tirando a bota. Nunca aconteceu com você?
Vladimir: Sapatos a gente tira todos os dias, cansei de explicar. Por que você não me ouve?
Estragon: (cansado) Me ajude!
Vladimir: Dói?
Estragon: Dói! Ele quer saber se dói!
Vladimir: (colérico) Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se você estivesse no meu lugar, o que você diria.
Estragon: Doeu?
Vladimir: Doeu! Ele quer saber se doeu! (BECKETT, 2006, p.20)
72CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990, p.27.
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Nos jogos em que não existem regras, pelo menos em termos fixos e rígidos, supõe-
se uma livre improvisação. Nos jogos de Estragon e Vladimir o principal atrativo advém do
gozo de desempenharem um papel, de se comportarem como se. Nesses jogos, assim
como todos os jogos sem regras, o como se substitui a regra e desempenha exatamente a
mesma função. Em si mesma essa ausência de regras que propicia o como se
éaplasmadorada ficção.É esse dispositivo que permite à mimicry comportar-se não apenas
na dimensão simbólica do jogo, no qual os instrumentos (palavras e gestos) possuem uma
função determinada, mas em sua dimensão poética; no corpo-a-corpo com a linguagem que
acolhe regressivamente, na forma de alegoria, os entulhos de realidade e os põe em
movimento, em jogo,mesmo que emuma partida fadada ao fracasso. Somente a impressão
de que existem, que não se caracteriza em nenhuma certeza, já acena uma possibilidade de
êxito para os dois clowns de Beckett. Porém, o silêncio que os ausculta, a ausência de
respostas e muitas vezes algumas intervenções do próprio Estragon, o mais terra-a-terra da
dupla, privam o jogo da ilusão – palavra cheia de sentido que significa literalmente “em jogo”
(de inlusio, illudere ou inludere), denunciando, que a conduta mantida é,em parte,
simulação, um mimo inútil,incapaz de lhes conferir alguma certeza ou sensação de uma
existência plena. Comportando-se como atores teatrais na busca de construção de um
outroeu a partir de um processo de despersonalização, escorregam na construção de seus
personagens por não disponibilizarem de diversidade qualitativa da atuação histórico-social
dos homens. Todavia, é essa mesma impossibilidade de fixação da máscara que os faz
atores cuja mobilidade perpétua desfalece a categoria da personagemtradicional fundada no
eu absoluto. Mimesis nada tem a ver com imitatio. Mimesthai,a que se reporta amimesis,
significa comportar-se como ator de um mimo.73 O ator não é, senão enquanto devém na
mimesis de um outro eu.
Vladimir: E se você experimentasse?
Estragon: Já tentei de tudo. 73SORBON, G. Mimesis and Art. Studies in the Origin and Early Development of an Aesthetic Vocabulary.Estocolmo: 1966. Apud: SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis.Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 17.
42
Vladimir: As botas, quero dizer.
Estragon: Acha que devo?
Vladimir: Ajuda a passar o tempo. Garanto que será uma grande diversão.
Estragon: Um desenfado.
Vladimir: Uma distração.
Estragon: Um desenfado.
Vladimir: Experimente.(...)
Estragon:Até que a gente se vira, não é Didi, os doisjuntos?(...) Estamos sempre achando alguma coisa, não é, Didi, para dar a impressão que existimos? (BECKETT, 2006, p.138)
Distração, desenfado. Tal impulso lúdico não é desprovido de ironia: a repetição de
cada enunciado (procedimento análogo às brincadeiras de criança) não se dá como no
universo infantil, no qual a repetição do refrão aparece, na maioria das vezes,como um
acalanto, um aspecto que traz harmonia à estrutura do jogo: a repetição se institui
tambémcomodiferença, demonstrando o caráter desarmônico e falível da repetição como
elemento constitutivo do real, assim como a falência completa na empresa de uma possível
restituição de umaunidade perdida. Seria o homem no mundo, à parte de toda sua
prepotência e sua confiança na razão, um meropalhaço melancólico que o destinofaz de
fantoche?
A faculdade de tornar-se outro e o mistério do jogo manifesta-se de forma acentuada
no gesto de levar à face uma máscara. O indivíduo disfarçado ou mascarado desempenha
um papel como se fosse outra pessoa, ou melhor, torna-se outro, à medida que busca para
si uma imagem palpável, como aquela que se reflete ao espelho. No caso de Esperando
Godoté a plateia que reflete a solidão e a miséria a qual estão abandonados os clochards de
Beckett. Os dois personagens travam uma luta incansável para serem alguma coisa ou
representarem alguma coisa. Esses dois ímpetos que os atravessam eos mobilizam; essas
duas funções que se interpõem e confundem-se de tal modo ao longo da peça, mobilizam o
jogo entre fala e escuta, no qual plateia/leitordeveriamcomparecer como cúmplices
indispensáveis para que o jogo de cena se efetive.
43
Estragon:Lugar encantador. (Dá a volta, caminha em direção à boca de cena, junto à plateia) Esplêndido espetáculo. (Volta-se para Vladimir) Vamos embora. (BECKETT, 2006, p.27)
Esse est percipi (ser é ser percebido), disse o filósofo Berkeley, ideia que agradava
particularmente a Beckett a ponto de aparecer em outras de suas obras.Vladimir, a certa
altura, parece ter assimilado alguma sabedoria, chegando a duvidar da realidade dos
eventos de sua vida.Ao revelar um distanciamento até então inaudito, inicia um pequeno
solilóquio no qual parece constatar a inutilidade do espetáculo do mundo e a mediocridade
de seus passatempos; além da gratuidade de suas interações com os poucos sobreviventes
de uma realidade mórbida, habitada por farrapos humanos. Nesse momento, ensaia um
abandono a uma das premissas da mimicry, o como se, denunciando o caráter absurdo da
ausência de leis e regras daquele jogo com o qual compactua. Ele parece não mais querer
jogar, recusa-se.Nesse fragmento, compartilha da visão de mundo de Segismundo,
personagem de Calderón de La Barca, em A vida é sonho, de que tudo que se passa em
vigília é sonho, pura e vã ilusão:
Vladimir: Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi dessa jornada? Que esperei Godot com Estragon, meu amigo, neste lugar até o cair da noite? Que Pozzo passoupor aqui com o seu guia, e falou conosco? Sem dúvida. Mas quanta verdade haverá nisso tudo? (Tendo pelejado em vão com as botas, Estragon volta a se encolher. Vladimir o observa) Ele não saberá de nada. Falará dos golpes que sofreu e lhe darei uma cenoura. (Pausa) Do útero para o túmulo e um parto difícil. (...) Para mim também, alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (Pausa) Não posso continuar. (Pausa) O que foi que eu disse? (BECKETT, 2006, p.186)
Como sobreviver ao confronto direto da consciência com o real e todo o seu caráter
artificioso? Quando o hábito é relativizado, lançando luzes à espera como algo inútil,
Vladimir ameaça, com uma clarividência até então inédita, abandonar definitivamente o
palco. Estragon continua o duelo com as botas, todavia a rubrica aponta que se encolhe,
desistindo da luta, num gesto análogo ao do companheiro de jornada. O insight é
atravessado por uma indicação de silêncio, parecem perdidas todas as
esperanças.Entretanto, a memória deficiente de Vladimir é uma cúmplice vigorosa para que
o jogo prossiga: mal acaba de enunciar aquelas palavras e ela já não sabe mais precisar o
44
que disse; a síntese lhe foge, e eis que surge o menino, um mensageiro, com um aviso de
Godot, lançando-os novamente em um território em que, se a ilusão não é reconstituída
plenamente, ao menos os enreda novamente na dinâmica da mimicry, cujo caráter reflexivo
joga com a dialética da crença e não crença, própria da brincadeira infantil:
Menino: Senhor... (Vladimir se vira) Senhor Albert...
Vladimir: Aí vamos nós de novo. (Pausa. Ao menino) Não está me reconhecendo?
Menino: Não senhor.
Vladimir: Não foi você que veio ontem?
Menino: Não senhor.
Vladimir: É a primeira vez?
Menino: Sim, senhor.
Silêncio. (BECKETT, 2006, p.186)
A ilusão da mimicry, no limite do como se das brincadeiras infantis, percebe-se,
sabe-se, como uma ilusão fraturada, que joga com o real e o imaginário. Vladimir e Estragon
só jogam se quiserem, quando quiserem e o tempo que quiserem. Aliás, a não coincidência
de perspectivas, que gera a maioria de mal-entendidos entre eles, é justamente um dos
mecanismos que dá curso à peça. A fala de Vladimir “Aí vamos nós de novo” revela que sua
nova adesão ao jogo é, em certa medida, cônscia de sua ineficácia, de seu caráter
repetitivo. Entretanto, “no nível mais radical, em circunstâncias em que a realidade se
revela insuportável, só se pode retratar a experiência subjetiva sob o disfarce da ficção74”.A
circularidade de palavras, gestos e situações é percebida parcialmente pelos personagens,
que, contudo, não conseguem (e parecem mesmo não desejar) escapar das malhas da
repetição. E a incomunicabilidade mediatizada pelas lacunas, pausas e silênciosindicadas
pelas rubricas, que impõem tropeços ao ritmo da encenação, insinua que o jogo se instala
como um jogo que não visaêxito, ou, ainda, seu êxito consiste em fracassar, em jamais
entregar-se ao logro de um resultado satisfatório. Uma ficção inútil, na qual Vladimir e
74ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 49.
45
Estragon são brincantes. Brincantes, porque capazes de se desligarem de uma ação que
visasse a uma utilidade imediata, para atingirem a liberdade que a mimicry solicita75.
Vladimir: Um ossário, um ossário.
Estragon: Basta não olhar.
Vladimir: Mas atrai a visão.
Estragon:É verdade.(...)
Estragon: Devíamos ter mergulhado profundamente na
Natureza.
Vladimir: Tentamos.
Estragon: É verdade.
Vladimir: Ah, com certeza, não é o pior.
Estragon: Pior, o quê?
Vladimir: Ter pensado.
Estragon: De fato.
Vladimir: O que você queria?
Estragon: Eu sei, eu sei.
Silêncio.
Estragon: Não foi tão mal como contracena.
Estragon: É verdade. (BECKETT, 2006, p.127)
Se nos basearmos no fato de que o jogo se funda na manipulação de certas
imagens, numa certa “imaginação da realidade” (ou seja,na transformação desta em
imagens), nossa preocupação fundamental seria, nessa tese, captar o valor e significado
dessas imagens e dessa “imaginação”. Porém, um complicador já se anuncia: Beckett não
75Em capítulo posterior (capítulo V), faremos uma discussão mais aprofundada acerca da questão da liberdade nos personagens de Beckett. Por hora, diremos que não pensamos a liberdade simplesmente como o oposto de necessidade causal determinística, mas também como um modo específico de causalidade, a autodeterminação do agente, fundada na subjetividade. Apesar da ausência absoluta de um horizonte que possa alimentar esperanças de Estragon e Vladimir, a capacidade de escolher/determinar de modo retroativo quais causas irão lhes determinar naquele universo fechado, optando pelo jogo e pela repetição, torna-se também um gesto que parece nos insinuar uma ética outra. Nesse caso, o “Nada a fazer”, refrão adotado pelos personagens de Beckett reincidentemente, nos aparece como um gesto análogo ao “Prefiriria não” de Bartleby;mas como dissemos, discutiremos o tema com mais propriedade em capítulo posterior. .
46
trabalha com recortes precisos da realidade. Se EsperandoGodottraz em sua atmosfera um
quadro pós-apocalíptico, mostra-o sem jamais apresentar-nos símbolos ou metáforas
precisas de um evento histórico específico. Nele, o século XX, o século de duas guerras, de
duas repetições que envergonharam os princípios humanistas e seus ideais de civilização,
se revela por signos dinamitados, estilhaçados pela violência absurda e falta de senso que
marcaram seu tempo.Desse modo, na esteira de Didi-Huberman76, que nos convida a
pensar a imagem artística como encenação de uma ausência - ou uma ausência em
processo -, tentaremos nesse trabalho, a partir da categoria do jogo, pensar as imagens que
se nos oferecem na obra de Beckett. No entanto, nessa reflexão, não tomaremos essas
imagens nem como pura sensorialidade, nem como pura rememoração; mas como tensão
dialética constante entre essas duas instâncias, em que o anacronismo da história e sua
contemporaneidade é capaz de produzir diferença, alteridade. Isso porque as obras de
Beckett inventam formas novas, que dialogam com a tradição tanto dramática quanto
romanesca de maneira revolucionária, pois se movem no elemento do responso, da
pergunta devolvida, e não da tomada de posse, promovendo uma simples paródia. Ela
modifica e estremece as regras de sua própria tradição.77
E para minartoda e qualquer experiência reveladora que a representação, via
mimese,pudesse trazer aos personagens, intercala-se o cômico, criando-se um
distanciamento que instala, na poética cênica de Esperando Godot, uma dialética entre riso
e melancolia, na qual as rasuras do grotesco disputam comcargas de intensa tonalidade
76DIDI–HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha.Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2005, p.179. 77 Aqui, de novo, nos reportamos ao conceito de imagem dialética proposta por Benjamin em consonância com as reflexões de Didi-Huberman: “Seja como for, Benjamin nos deu a compreender a noção de imagem dialética como forma de transformação, de um lado, como conhecimento e crítica de outro’. Ela é, portanto, - segundo um motivo um tanto nietzscheano – comum ao artista e ao filósofo.” Não é mais uma coisa somente “mental”, assim como não deveria ser considerada como uma imagem simplesmente “reificada” seja num poema ou num quadro, seja em uma peça de teatro ou em um romance, ela mostra justamente o motor dialético da criação como conhecimento e do conhecimento como criação. Cf.DIDI- HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2005, p.179.
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trágica, sem que se possam definir os contornos de um ou de outro, como gênero
dominante na cenabeckettiana.
Vladimir: O certo é que o tempo custa a passar, nestas circunstâncias, e nos força a preenchê-lo com maquinações que, como dizer, que podem, à primeira vista, parecer razoáveis, mas às quais estamos habituados. Você dirá: talvez seja para impedir que o nosso entendimento sucumba. Tem toda razão. Mas já não estaria ele perdido na noite eterna e sombria dos abismos sem fim? Está acompanhando o raciocínio?
Estragon: Nascemos loucos. Alguns continuam.
Pozzo: Socorro, eu pago bem!
Estragon: Quanto?
Pozzo: Cem francos.(BECKETT, 2006, p.161)
Em Skakespeare78, “os clowns podem expressar-se quando os heróis trágicos fazem
uma pausa; em Beckett, os clowns tornaram-se os heróis trágicos”. Os grandes atos
heroicos de poder, de arte, da metafísica, estão irremediavelmente ligados, e são
representados pelas personagens como partes cômicas de um triste programa de
variedades. Ainda que se deixem abandonar a esses jogos, que os divertem em suas falas,
quando aparece a dor, são calados pelas pausas e silêncios, para logo em seguida
retomarem o jogo, imbuindo-se novamente de seus “papéis”:
Estragon: E se você cantasse?
Vladimir: Ah, não. (Pensa) Só temos que recomeçar.
Estragon:É, não parece muito complicado.
Vladimir: O primeiro passo é o mais difícil.
Estragon: Podemos começar de qualquer parte.
(...) Estragon: Já sei! Vamos nos contradizer.
Vladimir: Impossível.
Estragon: Você acha?
Vladimir: Não corremos mais o risco de pensar. [...]
Estragon: E então? O que você acha de repassarmos nossas bênçãos?
78HENSEL, George. Samuel Beckett.México: Breviarios Del Fondo Del Cultura Económica 224,1968, p.31.
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Vladimir: O terrível é já ter pensado um dia.
Estragon:Mas será o nosso caso?
Vladimir:De onde vêm esses cadáveres? (BECKETT, 2006, p.126)
Nesse fragmento da peça, o jogo encena o luto, a perda, o horror frente àquilo que é
impossível de ser pensado, verbalizado, diante do trauma que encerra. As pausas e os
silêncios das rubricas que entrecortam as falas dos personagens corporificam o trágico, que
no caso em questão, parece nos apontar para os limites do discurso conceitual e o que
silencia esse discurso. Para duelarem com a atmosfera de temor e terror,Mimicry e Alea
interpõem-seemcena:Estragon e Vladimir estão em um mundo desordenado, onde, como
jogadores, se veem constantemente impelidos a improvisar, entregando-se a uma fantasia
que resvala na agudez e na aspereza do deserto em que habitam.
Sob a sombra da morte que os espreita,luto e jogopõem em tensão, via alegoria, a
dialética imanente ao Trauer-spiel. Por certo, os jogos dos clowns de Beckett estão
impregnados de melancolia, possuídos pela perda de uma regra perene, queos desloca à
condição de seres de exceção, na qual uma máscara definitiva jamais poderá ser colada à
face. A perda de uma identidade fixa torna-os, contudo, portadores de uma máscara, cujo
núcleo esvaziado os faz polimorfos. Tal esvaziamento, portanto, não impede que uma
produtividade abundante nasça desta perda da identidade e do reconhecimento desta
perda.
Há muitos jogos que não envolvem regras. Deste modo, não existem regras, pelo
menos em termos fixos e rígidos, para se brincar de bonecas, soldados, polícia e ladrão ou
fazer imitações de coisas, pessoas ou personalidades.“Apesar do caráter paradoxal da
afirmação, é possível afirmar que, na mimicry, o sentimento de como se substitui a regra e
desempenha a mesma função79”. Em si mesma a regra cria uma ficção. Tais jogos supõem
uma livre improvisação, cujo principal atrativo advém do gozo de desempenharmos um
papel, de nos comportarmos como se fôssemos outra coisa que não nós mesmos.
79CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.41.
49
Estragon: Qual o nosso papel nisso tudo?
Vladimir: Papel?
Estragon: Não se apresse.
Vladimir: Qual o nosso papel? O de suplicantes.
Estragon: É tão ruim assim?
Vladimir: O senhor tem mais alguma exigência
a fazer?(BECKETT, 2006, p.40)
Em Seis personagens à procura de um autor, uma nova forma dramática se
anuncia.O enredo consiste na busca de seis personagens concebidos pela imaginação de
um autor e recusados por ele em seguida, que ganham vida própria eadentram no lugar em
que se desenvolve a cena à revelia de seu criador.Reivindicama recuperação de suas
narrativas para edificação de suas personas. Nessa peça de Pirandello, vê-se nascer uma
nova forma dramática: ometateatro ou metadrama 80,um teatro palimpsesto, um drama
sobre outro drama.É com essa dramaturgia, que “desarticula e desconstrói o papel
tradicional da relação criador e criatura, que a crise da mimese instala-se no âmago da
escrita dramática81”.Operando uma desestabilização das construções que até então haviam
regido a mimese teatral, a nova escrita pirandellianase detém muito particularmente à
estrutura do personagem, que é submetida a uma crítica radical. Tal empresa,contudo,
longe de tornar o “teatro impossível”, constitui, a partir desse momento, sua força motriz. O
humor, fundamentado pelo tropo da ironia, expõe a fragilidade da linguagem para comportar
a complexidade do real, empenhando-se em mostrar que o próprio real é ilusório, e que, em
virtude disso, nenhuma fórmula artística seria capaz de abarcá-lo. Há, na prática teatral
beckettiana, um incessante jogo dramático que se filia a essa tradição inaugurada por
Pirandello, porém detentora de novos artifícios que ampliam a desestabilização por ele
iniciada. Nele, o criador não é mais a figura central da qual dependem suas criaturas. O
teatro de Beckett se compraz naexposição deliberada da insuficiência de todos os meios
80SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.106. 81 Idem.
50
disponíveis de expressão do real via arte dramática, mas, paradoxalmente, se retroalimenta
dessa própria impossibilidade para forjar sua encenação.
Beckett introduz em suas peças questões da humanidade com as quais os seres
humanos vêm se debatendo ao longo dos séculos. Impasses que remontam aos pré-
socráticos e passam por toda a história da filosofia ocidental sem alcançaremrespostas
satisfatórias. E, por desconhecer, assumidamente, as respostas para tais perguntas, ele as
apresenta na forma dojogo da mimicry.Como a criança que brinca de ser um artista de
cinema ou um extraterrestre, os personagens atuam, inventam para si papéis, no intuito de
ludibriarem a deserção que os rodeia. Um exemplo desse procedimento pode ser verificado
no II Ato, deEsperando Godot, quando, depois de uma longa pantomima com os chapéus,
tem-se o seguinte diálogo:
Vladimir: Ficou bom?
Estragon: Não sei.
[...]
Vladimir: Então vou ficar com ele. O meu incomodava.
(Pausa)Como explicar. (Pausa). Arranhava.
Estragon: Vou embora.
Vladimir: Não quer representar?
Estragon: Representar o quê?
Vladimir: Podíamos fazer de Pozzo e Lucky.
(BECKETT, p.144-145)
A repetição das cenas e situações possui um fundo trágico, já que jamais consegue
trazer à tona as memórias perdidas, a situação essencial que evocam. São como ensaios
sucessivos, nos quais os atores veem progressivamente seus conteúdos de verdade se
dissolverem,a cada tentativa de encenação. Contudo, em Beckett, essa repetição é também
irônica, cujo humor, às vezes cáustico e cruel, às vezes melancólico e nostálgico, vem
acompanhado de uma crítica aguda ao hábito; aos seres humanos que se entretêm com
miudezas, brincando de entender o mundo, sob o disfarce do pensamento metafísico
51
ocidental, que,a despeito de suas aspirações totalizantes, não lhes oferece nenhuma
explicação plausível para a realidade.A tensão do trágico converge com a elasticidade do
riso, duas forças complementares entre si, que a vida põe em jogo. Uma das leis
fundamentais da vida seria jamais repetir-se. “Quando um mecanismo funciona
automaticamente já não é a vida, é o automatismo instalado na vida, imitando a vida. Nisso
consiste a comicidade de algumas situações.82” Estragon e Vladimir adotam uma disposição
usual, simples, infantil: esperar Godot. O gesto é enfático: não há uma explicação ou motivo
que os mobilize, agem como autômatos, programados para a tarefa que aparece como um
mecanismo de repetição calcado em uma ideia fixa83, que os faz parecer tolos. A espera de
Estragon e Vladimir é cômica porque é inútil e é simultaneamente trágica, pelo mesmo
motivo.
Em Beckett, joga-se para afastar o tédio. Tempo e espaço são abolidos, em favor de
um instante-já que celebra a vertigem de seus personagens. E com isso temos ilinx.
Enquanto Estragon e Vladimir filosofam e se distraem a partir de uma conversação
de frases curtas desencadeada pelo ato de comer uma cenoura (Ato I), aparecem no palco
Pozzo e Lucky. Lucky tem o dorso acentuadamente curvado sob o peso demuitos objetos:
carrega consigo uma mala pesada, uma banqueta dobrável, uma cesta de provisões e um
casaco. Tem fixado ao pescoço uma cordasegurada em sua outra extremidade por Pozzo,
que traz na outra mão um chicote. Em princípio, confundem-no com Godot, mas,após uma
pequena confusão, as expectativas são logo frustradas.Pozzo então passa a uma exibição
na qual assume o papel de domador e Lucky de uma atração de circo. Pozzo demonstra
contentamento em ter para si uma plateia que possa se deleitar com seu número.
82BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da Comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 36. 83 “Fazer tanto caminho para voltar, sem saber, ao ponto de partida, é despender grande esforço por um resultado nulo. Poderíamos ser tentados a definir a comicidade desta última maneira. Essa parece a ideia de Herbert Spencer: o riso seria o indício de um esforço que de repente cai no vazio. Kant já dizia: “O riso provém de uma expectativa que se resolve subitamente em nada.” Ibidem. p.63.
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Pozzo:Vejam vocês, caríssimos, não posso passar tanto tempo sem a companhia de meus semelhantes (observa seus semelhantes), mesmo quando a semelhança é tão imperfeita. (A Lucky) Banqueta! (Lucky põe a mala e a cesta no chão, avança, desloca a banqueta) Mais perto! (Lucky põe a mala e a cesta no chão, avança, desloca a banqueta, recua, torna a pegar a mala e a cesta.Pozzo senta-se, encosta o cabo do chicote contra o peito de Lucky e o empurra) Para trás. (Lucky recua mais um pouco) Alto! (Lucky para. A Vladimir e Estragon:) É por isso que, com a sua permissão, vou-me deixar ficar mais um pouco em sua companhia, antes de aventurar-me adiante. [...] O ar livre me abre o apetite. (BECKETT, 2006, p.51)
Pozzo e Lucky, de forma semelhante a Vladimir e Estragon, podem também ser
considerados figuras arquetípicas, que representam certos aspectos do homem. Muito já se
falou na relação entre mestre-escravo concernente a esses dois personagens, mas não
podemos reduzi-la somente a esse propósito em face às múltiplas leituras que a situação
nos oferece.84A exposição de Lucky promovida por Pozzo é cruel. O alça à condição de
animal, enquanto arroga para si o papel de senhor do mundo, daquelas terras, de Lucky, do
espetáculo. Pozzo quer dominar a cena. A ironia do nome de Lucky - em inglês
“lucky”,sorte-,reside no fato de o personagem nada desejar, segundo Pozzo, gozando da
bênção dos alienados, daqueles que tudo ignoram e por isso mesmo são capazes da
felicidade.Lucky, na condição de servo, é aquele que não coloca sua existência em jogo,
que busca conservá-la a partir de um estado de alienação. Pozzo expõe deliberadamente
Lucky ao ridículo; ele se compraz em exibir a dependência de sua vítima. Mas também ele
padece ao vislumbrar um rompimento com Lucky. Depois de Vladimir lhe perguntar, nada
menos que sete vezes, “O senhor quer se livrar dele?” e Pozzo tergiversar, ele, finalmente,
diz que poderialibertá-lo, se quissesse, mas fará de outro modo:
Pozzo: De fato. Mas em vez de expulsá-lo, coisa ao meu alcance, quero dizer, em vez de simplesmente colocá-lo no olho da rua, dar-lhe um pé na bunda, vou levá-lopor bondade minha ao mercado de São Salvador, onde espero embolsar alguma coisa. A bem da verdade, expulsar criaturas assim não é mesmo possível. Para fazer direito, seria possível matá-las. (BECKETT, 2006, p.64)
84Como afirma Eugene Webb, “é evidente que Pozzo é um latifundiário escravagista e que Lucky é seu escravo, mas seria reducionista demais tomá-los como simples símbolos de uma relação econômica, como queria Bertolt Brecht: estão em jogo outros tipos de exploração, igualmente significativas. Pozzo, por exemplo, pode ser interpretado como símbolo da plateia de massas que controla e vilipendia as artes (já que Lucky é dançarino), ou como um mundo não intelectual que usa o pensamento como brinquedo (já que Lucky é filósofo e teólogo). E não se deve esquecer de que Lucky está tão apegado à relação quanto Pozzo, já que nas palavras desse último, Lucky quer impressioná-lo com seu número”. WEBB, Eugene. As peças de Samuel Beckett. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 33.
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Lucky chora, confirmando as colocações de Pozzo. Se Vladimir e Estragon
aguardam o seu senhor na figura de Godot, o senhor de Luckyjá está bem ali, à sua frente.
O cachimbo e a pomposidade com a qual fuma, lhe dão ares de um aristocrata. A utilização
do vaporizador,que constantemente leva à boca ao proferir suas falas para limpar a voz,
pode ser considerada como uma ironia à tirania dos discursos totalitários, que, sob o
invólucro da clareza eda polidez estética, instituem-se como portadores de uma suposta
verdade.
Em seu ato, Pozzo, muitas vezes, entra em ligeiro desespero quando, por alguns
instantes, Vladimir e Estragon trocam palavras entre si. Teme que seu protagonismo seja
perdido.
Pozzo: Ótimo. Todos a postos? Todos olhando para mim? (Olha para Lucky, puxa a corda, Lucky levanta a cabeça) Olhe para mim, porco! (Lucky olha para ele) Ótimo. (Coloca o cachimbo no bolso, retira um pequeno vaporizador, vaporiza a garganta, recoloca o vaporizador no bolso, pigarreia, cospe, pega novamente o vaporizador no bolso, volta a vaporizar a garganta, recoloca-o no bolso) Estou pronto. Estão todos me escutando? (Olha para Lucky, puxa a corda) Adiante! (Lucky avança) Aí! (Lucky para) Todos prontos?[...] Não gosto de falar no vazio. Bem. Vejamos. (Pensa) (BECKETT, 2006, p.61)
No objetivo de manter Vladimir e Estragoncomo expectadores,impedindo que se
entediem,Pozzo lança mão de sua atração sem o menor escrúpulo: ordena-lhe que dance,
insulta-o, coloca-o na posição de fera amestrada, rebaixa-o em sua já premente
animalidade, chamando-o deporco, cão. Porém, quando Pozzo dá a Lucky a instrução de
que pense, este, que ficara mudo até então, executa um desconcertante monólogo no qual a
mimicrydá lugar gradativamente a ilinix, até implodi-la, quando a rubrica aponta: “Grande
silêncio”. A essa altura, nenhum dos personagensé capaz de deter o pensamento de Lucky.
Quando Pozzo lhe ordena “Pense,” ele já não pode pará-lo em seu delírio. A fala de Lucky
dilui o mundo em uma espécie de apocalipse. O erro seria aquele que Beckett menciona em
Textos para nada: "O erro que eu tinha era ter tentado pensar"85. “Ser e pensamento estão
85“Le tort que j’ai eu, c’est de vouloir penser”. BECKETT, Samuel. Nouvelles et Textes pour rien. Édition de Minuit, p. 59.
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em diferentes níveis86.” O modo de existência do homem e o modo de pensá-lasão coisas
radicalmente distintas.Até então o jogo deslizava sob a premissa de que, como ator, Pozzo
deveria fascinar o espectador, evitando que um erro o conduzisse à recusa da ilusão;
apesar de por vezes se entediarem, Vladimir e Estragon se deixam levar, principalmente
quando Pozzo torna o número mais abjeto, quando expõe Lucky de forma indecorosa.
Porém, quando Lucky toma posse de sua voz, uma suspensão se efetiva, e mesmo Pozzo,
até então ator/dramaturgo do ato, vê seus domínios dissolvidos. É aí que supomos ser
possível pensar como o modelo produtivista, que engloba até mesmo a produção intelectual,
pode estar insinuado. “Pense porco!”, ordena Pozzo a Lucky. O pensamento pode ser um
jogo, uma brincadeira na qual a ordem de Pozzo ecoa, não sem propósito, em um ser
cindido em conflito, cuja cabeça (razão) encontra-se dissociada do corpo, e, nessa cisão,
derrama em sua plateia toda a confusão que tal disjunção apresenta. Agora, não há
contracena: Lucky é o Corifeu infeso em fúria, que, nesse momento da peça, descola-se
dos outros personagens para descortinar algumas camadas de realidade, para
desagravá-la.
A lógica capitalista à qual está ligada até mesmo a produção filosófica e acadêmica,
com seus prazos e senhores que a ditam,ignora que o pensamento possui temporalidade
própria e esta, obviamente, não coincide com a do capital. O século XXI não desmente o
tom imperativo de Pozzo, quando a tecnocracia com seus tentáculos, já tomou,há
muito,posse do conhecimento, na tentativa de controlá-lo e destituí-lo de sua carga
subversiva, domesticando-o com suas ampulhetas, relógios e calendários.
A aliança do jogo da mimicrye dailinx, porém, permite fúria inexpiável, total, que em
suas formas mais claras, aparece como uma força compressora do jogo; é quando a vozse
levanta contra uma cena justaposta e, sob a forma de transe, suspende totalmente outras
possibilidades de contracena, impondo-se de forma furiosa contra quaisquer demarcações
86JANVIER, Ludovic. Beckett. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988, p.132.
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prévias. O monólogo de Lucky pode ser visto a partir desse binômio. Depois de ser
apresentado por Pozzo como uma atração circense, após uma longa exposição na qual
Estragon e Vladimir se comprazem em contemplá-lo como um animal encoleirado, a voz de
Lucky dá curso a uma profusão de vozes, ruídos, em uma atitude performativa que renuncia
completamente ao discurso consciente. Portanto, ilinx, esse jogo vertiginoso no qual a
loucuraapresenta-se como porta-voz de uma perspectiva de mundo inusitada, promove com
o monólogo de Lucky, que se dá bem no centro da peça, entre os atos I e II, um interstício
no qual há uma erupção entre a melancolia e a visão irônica do mundo. Momento no qual a
voz repreendida de Lucky, mais assertiva do que nunca, se levanta dabílis negra e desfere,
contra os interlocutores (plateia e personagens que o observam), um discurso corrosivo no
qual o caos do mundo ganha forma.
2.4 O monólogo de Lucky: no reino da ilinix A morte da terra é tornar-se água,
a morte da água é tornar-se ar,
a morte do ar é tornar-se fogo
e vice-versa.
(Heráclito)
Ilinx87foi o termo encontrado por Caillois para associação de um tipo de jogo que
busca a vertigem, que consiste na tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da
percepção, atingindo uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que
desvanece a realidade com uma imensa brusquidão.Ilinix,“um nome grego para o turbilhão
das águas, e de que deriva precisamente, na mesma língua, o designativo de vertigem
(ilingos)”,é o momento em que a pulsão de morte se revela de forma estonteante, cujo
delírio, fascínio e gozosão simultaneamente sua própria potência, que advém do paroxismo
87CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p. 45.
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de temer a morte e desafiá-la. O arrebatamento, a exaustão provocada em Lucky por seu
senhor, deflagra uma cena de profundo assombro, na qual sua fala ininterrupta
condensa,por meio de fragmentos, aparentemente aleatórios, um dos eixos fundamentais da
peça: o engodo dos discursos calcados na razão instrumental, incutidos na ânsia humana
em dominar o mundo via pensamento racional-científico, que mobilizou desde sempre o
mundo Ocidental.
A realidade é caótica e quaisquer discursos que se apresentem como capazes de
demonstrá-la por meio de uma síntese são passíveis de serem satirizados em virtude de sua
pretensão inútil de totalizar algo que é inapreensível. O regime simbólico das
correspondências analógicas tenta impor uma ordenação a partir do postulado mimético da
coincidência entre realidade e ficção. Mas tal sistema não consegue deter, nem apresentar,
a dinâmica do real que se dá continuamente, jamais se confinando em uma realização
plena.
A alegoria, ao contrário, é capaz de mobilizar a dialética do dito e do não-dito, para
indicar, ao mesmo tempo, que as imagens não cessam de ser outras, sempre inacabadas,
apresentando fendas e cesuras que não as imobilizam em um sentido fechado, absoluto,
finalista. A função da ironia no discurso de Lucky consiste em denunciar a ingenuidade
periclitante ou a mistificação ideológica de todo o discurso pretensamente verdadeiro. Dizer
o outro, decompondo as estruturas de seu discurso a partir de uma poética alegórica, traz à
cena uma perspectiva irônica da realidade, transformando-a, nesse processo de
pulverização, numa parábase permanente88. Armado pela visão da ironia e da alegoria, o
88A parábase é um elemento da estrutura da antiga comédia ática, utilizada notadamente por Aristofánes em suas peças. É parte integrante da comédia grega, geralmente situada no meio da peça, quando consiste essencialmente no discurso do Corifeu. A parábasedivide-se em duas partes: na primeira, o poeta dirige-se ao público, apresenta-lhe suas queixas e reclamações. Nesse tipo de digressão, o autor explicita aos expectadores suas intenções, suas opiniões pessoais. Na segunda, composta de uma estrofe e de uma antístrofe, o coro fala ainda em nome do poeta, mas não como autor, e sim como cidadão: à crítica literária substitui-se a sátira política. No momento em que a parábase é pronunciada pelo coro, os coreutas, sozinhos em cena, arrancam todos os disfarces cômicos (manto e máscaras) e voltam-se para os expectadores para refletirem a respeito da ilusão concernente às ações desempenhadas pelos personagens no palco. BRANDÃO, Junito. Teatro grego: origem e evolução. São Paulo: Ars Poetica, 1992, p. 70-71.
57
discurso de Lucky libera o homem, o mundo e os seres da tutela ontoteológica, para levá-los
à heterogeneidade radical de tudo que existe.
Na primeira parte de sua exposição89, que, conforme a rubrica, deve se iniciar de
forma monótona, Lucky cita, ironicamente, dois nomes de supostos pesquisadores para
referendar seu monólogo:Poiçon e Wattman90, que trouxeram a público trabalhos sobre um
Deus que, do alto de “sua divina apatia, sua divina athambia, sua divina afasia, nos ama,
não se sabe por quê.”Em todo seu discurso não há pontuação; a fala, dita num jorro,
comporta várias modalidades discursivas nas quais são escamoteados o discurso científico,
o religioso, o senso comum que se esconde na tradição carcomida dos provérbios; enfim, as
instituições de modo geral, que se inscrevem em espaços de poder e se apresentam como
detentoras de supostas verdades e certezas. Tudo acompanhado do intermitente refrão:
“não se sabe por que[...]”. O princípio de causalidade que rege o pensamento científico é
apresentado como refugo da ignorância, apontando o quão falível foi esse pensamento ao
longo do decurso de nossa cultura. Ao terminar seu discurso, Pozzo sapateia sobre o
chapéu de Lucky, dizendo: “Assim ele nunca mais vai pensar91”. Pozzo representa o
indivíduo que se fia nos discursos de manutenção de poder, e seus corolários, “ordem”,
“civilização” e“progresso”. Vendo-se ameaçado, vislumbra o quão frágeis são os alicerces
que o sustentam e os refuta com violência física. Assim como no Elogio à Loucura, de
Erasmo de Rotterdã, no qual a Loucura se levanta contra as instituições mostrando a
precariedade dos valores que as legitimam, a fala de Lucky vem apontar os desmandos da 89 O próprio Beckett explicou aos atores do Teatro Schiller o tema deste monólogo: "encolher sobre uma terra impossível e sob um céu indiferente." Ele divide-se, dessa maneira, em três partes: Parte I: Indiferença (apatia, athambia, afasia) de Deus, o criador de uma humanidade sofredora. Sua iniqüidade, “ele nos ama com algumas exceções”. Parte II: Encolhimento do homem, sob a ação do tempo letal. Constatamos no segundo ato a repetição circular e regressiva do ato anterior; no esgotamento dos recursos (a cenoura, por exemplo) e da vida em geral. Parte III: Reunião dos quatro elementos primordiais, exprimindo a impossibilidade de viver a condição humana sobre uma terra feita mais de pedras que de homens. THIBAULT, Rémy. En attendant Godot.Fin de Partie. France:Éditions Nathan, 1991, p. 55. 90Whattman: em inglês, condutor de bonde. Algumas leituras também sugerem “What man?” 91BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 87.
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razão em um mundo que, regido por esse princípio, encontra-se desfigurado, ao contrário da
falsa ordenação quecertas ideologias vinculadas ao poder insistem em sustentar.
Lucky: Dada a existência tal como se depreende dos recentes trabalhos públicos de Poiçon e Wattmann de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca quaqua fora do tempo e do espaço que do alto de sua divina apatia sua divina athambia sua divina afasia nos ama a todos com poucas exceções, não se sabe por quê... (BECKETT, p.85, 2006)
A total indiferença de um Deus(apatia) que observa do alto, em silêncio(afasia),
enquanto a terra mais se assemelha a um purgatório infinito, seria resultado do desconcerto
de um ser “divino”, cuja humanidade foi plasmada à sua imagem e semelhança? A lógica
que beneficia seus eleitos não obedece a nenhum critério plausível, e, como na parábola
dos ladrões,permanece incompreensível, impossível de enredar-se na cadeia dos “fatos”.
... não se sabe por quê mas o tempo dirá atormentados atirados ao fogo às flamas às labaredas que por menos que isto perdure ainda e quem duvida acabarão incendiando o firmamento a saber levarão o inferno às nuvens tão azuis às vezes e ainda hoje calmas de uma calma que nem por ser intermitente é menos desejada mas não nos precipitemos [...](BECKETT, p.85, 2006)
O fragmento parodia o Apocalipse bíblico, numa sobreposição de sentenças que
imitam o seu tom ameaçador, a partir da exposição de uma atmosfera de vingança, acerto
de contas. No monólogo de Lucky vigora uma mescla de gêneros, na qual, a despeito da
intensa carga satírica, inscreve-se até mesmo um tom lírico, pingos de melancolia em meio
à sua –quase indomável92vociferação. Intercalando onomatopeias seguidas de pressupostos
que parecem imitar a estruturação do discurso científico,cuja gagueira,ao serem
enunciados,torna-os incapazes de alçar uma conclusão em virtude de sua dicção titubeante;
Beckett parece satirizar a ideologia sobre a qual se edificou, a partir do elogio à técnica eao
progresso, o que se revelou como a catástrofe e a ruína da sociedade ocidental. De fato, a
repetição, presente na fala torrencial de Lucky, trabalha com signos e grupos de termos-
chave, tais como: homem (quatro vezes), cabeça (seis vezes), Deus (quatro vezes) e
principalmente a sentença “não se sabe por que”, que aparece nada menos que dez vezes
no monólogo. Se o discurso não possui uma linearidade, por outro lado, a escolha aleatória 92Durante sua fala, luta com todos, até ceder, exausto.(BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 85-86.)
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dos signos e suas combinatórias, juntamente ao ritmo impresso à fala de Lucky, nos leva a
crer que Beckett, ao compor esse discurso, tinha claras intenções derrisórias a respeito da
criatura humana e suas pretensões metafísicas.
O quaquaqua que corta as setenças, se, por um lado, pode ser a emissão de uma
atitude de escárnio frente aos enunciados que são apresentados, por outro, pode remontar
também à tradição teriomórfica dos antigos dramas de Aristofánes, que traziam ruídos de
animais para as cenas, a fim de demonstrar a animalidade humana, seu viés irracional93. O
curioso é que essa onomatopéia, agora, aparece em um contexto no qual até mesmo a
natureza investiu-se de um caráter mecânico, isto é: a própria Physisdesapareceu em
virtude da incapacidade do pensamento ocidental de apreendê-la a partir de sua dinâmica
essencial.
Para os pré-socráticos94, unidade e multiplicidade são formas de ser, e o ser é a
physis, a natureza. “A physis, estendendo-se ao todo do real, permite compreender unidade
e multiplicidade, pois ambas são interiores à natureza.”A physis está presente em tudo o
que é, se manifesta no real nas mais diversas maneiras. “E o modo de ser da multiplicidade,
na medida em que se afirma como tal e não reconhece a sua unidade no ser, faz com que
se troque o ser pela aparência de ser.95”No fragmento 112, Heráclito diz que a sabedoria
consiste em “agir conforme a natureza, ouvindo sua voz96”. A recusa em escutar a voz da
93A comédia ática deriva do kommos licencioso das festividades dionisíacas. Foi só numa fase posterior que ela se transformou em um exercício conscientemente literário, e mesmo nessa fase, na época de Aristofánes, Eurípedes, Ésquilo e Sófocles, conservou inúmeros aspectos de suas origens dionisíacas. O vestuário fálico dos atores assim como as máscaras animais com que os elementos do coro se disfarçam são vestígios da remota antiguidade. Não é apenas por capricho que Aristóteles usa as vespas, os pássaros e as rãs como tema de suas comédias; o fundamento dessa escolha é toda tradição teriomórfica. (...) Do mesmo modo, também a tragédia não é em sua origem uma reproduçãovoluntariamente literária do destino humano. Originalmente era uma coisa muito distante da literatura destinada ao palco, era um jogo sagrado ou um ritual lúdico. Mas, com a passagem do tempo, a “representação” dos temas míticos tornou-se uma interpretação teatral, com mímica e diálogos, de uma série de acontecimentos que constituem uma história com enredo. (HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.160) 94SOUZA. José Cavalcante de (Org.) Os Pré-Socráticos. Fragmentos. Doxografia e Comentários. São Paulo: Nova Cultural/Pensadores, 1985, p. 99. 95 Idem. 96SOUZA. José Cavalcante de (Org.) Os Pré-Socráticos. Fragmentos. Doxografia e Comentários. São Paulo: Nova Cultural/Pensadores, 1985, p. 99.
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physis e a atitude de independência do homem diante dela, se diferenciando pelo uso da
razão instrumental, pode ter sido o principal delito da humanidade, na visão beckettiana. A
compreensão da sabedoria como um saber escutar a voz do ser é patrimônio comum da
filosofia pré-socrática, mas aparece ter sido esquecida pelas vozes mortas que deixaram
como sobreviventes apenas os pares Didi-Gogô e Lucky-Pozzo, que, ali, naquele deserto,
“são a humanidade inteira97.”
Uma das possíveis leituras, que podemos depreender, seria a de existência de uma
sátira ao indivíduo adulto, realizado, da modernidade, que, em seu aparente modo de vida
saudável e ideal, nada mais faz que reproduzir padrões de comportamento burgueses cuja
idealidade beira o ridículo, sendo justamente o anverso de uma existência singular e
invejável. Talvez, profetizando a filosofia dobusiness friendlydos yuppies, a citação do tênis,
esporte comum entre as classes abastadas amantes do status quo,apareceria comoa
derrocada da subjetividade, substituindo o traço lúdico que há no esporte, por uma
funcionalidade estúpida, que nada mais faz a não seracentuar o servilismo humano, escravo
do capital até mesmo ao travar suas relações intersubjetivas.
As superações perseguidas pelos atletas, os prazeres e a alienação que tomam as
massas na assistência das grandes exibições esportivas; as grandes invenções: tudo isso é
satirizado nesse fluxo aparentemente irascível, não sem uma dose de escatologia, que
mostra o quanto o princípio da racionalidade humana não se descolou de seus instintos
mais ferozes: a razão, alcoviteira da vontade98, é reduzida a cafetina legitimadora dos
anseios de poder e status de uma cultura adoecida:
[...] não obstante os avanços na educação física na prática de esportes tais quais quaisquais o tênis o futebol a corrida o ciclismo a natação a equitação
97BECKETT. Samuel. Esperando Godot.Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.160.
98SHEAKESPEARE, William. Hamlet. Ato III, Cena IV. Trad. Millôr Fernades. Porto Alegre: L&PM, 1991, p.87.
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a aviação a conação o tênis o a camogia a patinação no gelo e no asfalto o tênis a aviação os esportes os esportes de inverno verão e outono de outono o tênis na grama no saibro na terra batida a aviação o tênis o hockey na terra no mar no ar a penicilina e seus sucedâneos numa palavra recomeço ao mesmo tempo paralelamente de novo não se sabe por quê [...] (BECKETT, 2006, p.86)
Lucky, ao desferir seu monólogo, de forma irascível e eloquenteaos personagens e à
plateia,abandona a situação de servo/escravo daquele que prudencia, para encarar a morte
de frente. A colocação em jogo da vida, do sentido da vida, que Lucky executa com radical
virulência, expõe e ridiculariza valores que embasam a lógica, status quo, e a legitimidade
das hierarquias de senhores do mundo, nas quais se fiou o Ocidente ao longo dos séculos.
A performance de Lucky subtrai ao horizonte do sentido pressupostos que se ofereceram
desde sempre como princípios reguladores da civilização: o esclarecimento, o saber; a
razão e a ciência.
... numa palavra enfim tanto faz fatos são fatos e considerando por outro lado o que é ainda mais grave aquilo que se evidencia o que é ainda mais grave à luz de à luz das experiências em curso de Steinweg e Petermann o que se evidencia ainda mais grave à luz de à luz das experiências em curso de Steinweg e Petermann que nas planícies na montanha no litoral junto aos rios de água corrente fogo corrente o ar é o mesmo a terra a saber o ar e a terra na grande glaciação o ar e a terra feitos de pedras na grande glaciação ai de mim no sétimo ano de sua era o éter a terra o mar feitos de pedras na grande escuridão na grande glaciação sobre o mar sobre a terra e pelos ares que pena recomeço não se sabe por quê não obstante o tênis fatos são fatos não se sabe por quê (BECKETT, 2006, p.86)
Nesse processo cíclico, os chavões do discurso científico (“à luz das experiências
de”, “que se evidencia”, “fatos são fatos”) são incorporados de forma irônica ao caótico
monólogo de Lucky, embaralhando-se e amontoando-se como registros
irreconhecíveis;redemoinhos, a partir dos quais o sujeito (“ai de mim”) não consegue
desvendar ou encontrar nenhum axioma científico ou máximaque corroborem sua
compreensão do mundo. Antes, como na cantiga do cachorro ou na parábola dos dois
ladrões, deságua na perplexidade, a partir do uso recorrente do refrão “não se sabe por
quê”:
(...) não se sabe recomeço adiante numa palavra enfim ai de mim adiante feitos de pedras quem poria em dúvida recomeço mas não nos pricipitemos recomeço adiante numa palavra enfim ai de mim adiante feitos de pedras quem poria em dúvida recomeço mas não nos precipitemos recomeço a
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cabeça ao mesmo tempo paralelamente não se sabe por quê (BECKETT, 2006, p.86)
O pragmatismo, a veracidade do discurso científico, carece sempre de uma prova
que o referende. Em seu percurso, os pressupostos científicos evoluem progressivamente,
visando à superação das antigas formulações de forma ascendente. Entretanto, o que
vemos no discurso de Lucky, é uma fala titubeante, que tartamudeia e gagueja, expondo
toda sua fragilidade e impotência na investida de abraçar a totalidade dos fenômenos.
Segundo Bergson99, ordinariamente, é no ritmo impresso à fala que reside a
singularidade física destinada a completar o ridículo de determinada profissão no cômico.
“Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de coisa.” O cômico, muitas vezes,
advém do mecânico ou automático insistindo em se sobrepor ao vivo. A gagueira de Lucky e
seu ritmo desenfreado podem ser considerados procedimentos cômicos que engendram
uma sátira à cristalização da vida, subjugada pela razão. À imobilização do espírito, em
certas formas, corresponde o enrijecimento do corpo segundo certos defeitos.No caso em
questão,há uma sátira ao vernizde superioridade dos “homens da ciência”, que, em sua
pose de detentores da verdade,acabam por calcificar seu discurso, tornando-o mecânico e
automatizado, a preço de preservarem seu apego às metodologias e sistemas
comprometidos com o utilitarismo como teleologia, como finalidade em si. A conclusão se
perde em meio ao caos, não há síntese possível.“Voltaire, como representante do século
das luzes e do esclarecimento, está morto100.”Há mesmo o uso de escatologias101, que
servem para satirizar e infantilizar a academia, que é reduzidaà caca, popo102·:
... Acacademia de Antropopopometria de Berna-sobre-Bresse de Testu e Conard ficou estabelecido sem a menor margem de erro tirante a intrínseca a todo e qualquer cálculo humano éhumano que considerando os resultados da investigação interrompida interrompida de Testu e Cunard ficou evidente dente dente o seguinte guinte guinte (BECKETT, 2006, p.86)
99 “Quando o juiz Brid’oison entra em cena gaguejando, não estará preparando, com sua gagueira, para compreender o fenômeno de cristalização intelectual cujo espetáculo nos oferecerá? Que secreto parentesco físico vinculará esse defeito físico àquela debilidade moral?” BERGSON, Henri.O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 41. 100 THIBAULT, Rémy. En attendant Godot.Fin de partie.France: Éditions Nathan, 1991, p. 54-55. 101Escatologias: Testu: (testículos), Conard, Fartov e Belcher: (em inglês, fart =peido, belch= arroto). 102Caca e popo são palavras que as crianças usam para excrementos e penico.
63
O discurso de Lucky, contudo, possui forma propositalmente circular: as repetições
aqui funcionam como um recurso estilístico capaz de satirizar o formato dos discursos
calcados na lógica tradicional, insinuando o quanto são tautológicas suas prescrições e o
quão presunçoso e risível éo seu alcance na apreensãode um sentido definitivo para as
coisas e os seres.
(...) o tênis adiante a barba as labaredas as lágrimas as pedras tão azuis tão calmas ai de mim a cabeça a cabeça a cabeça a cabeça na Normandia não obstante o tênis adiante a barba as labaredas as lágrimas as pedras tão azuis tão calmas ai de mim a cabeça a cabeça a cabeça na Normandia não obstante o tênis os esforços interrompidos e inacabados mais grave as pedras numa palavra o recomeço ai de mim ai de mim interrompidos a cabeça a cabeça na Normandia não obstante o tênis a cabeça ai de mim as pedras Conard Conard... (...) Tênis!... As pedras!... Tão calmas!... Conard! ...Inacabadas! (BECKETT, 2006, p.87)
A palavra cabeça103, repetida de forma recalcitrante no monólogo, a ponto de gerar
uma cacofonia incômoda, entrecorta o discurso como uma bola que repica e oblitera a
relação de sentido entre os enunciados, caso se tomasse consciência de toda a inutilidade
concernente aos elementos reguladores da civilização: tênis, barba (indivíduoadulto e
realizado ou menção metonímica à crença no deus cristão?),labaredas (apocalipse, inferno,
sofrimento calcado no medo do juízo final?)...A instabilidade semântica, própria da
modernidade, enfileira os signos de forma regressiva; são apenas significantes cujo sentido
foi vilipendiado por uma lógica inacabada, que, no entanto, toma-se como absoluta.
Esta desautomatização do sentido,presente na ambiguidade progressiva das
palavras na fala de Lucky,encena,no plano da linguagem, a instabilidade e o
enfraquecimento das relações entre os seres e o mundo.Homens e coisas encontram-se
apartados na realidade. A cabeça aparece como metonímia, como parte residual, um
fragmento que se descolou no corpo e que se encontra perdida, em outro lugar, em outro
tempo; enquanto o homem, em sua ingênua pretensão de totalidade na apreensão do real,
103Beckett manifestou, desde os tempos de sua École Normale, profundo interesse pelo pensamento de alguns filósofos. Em destaque, os pré-socráticos (e, mais particularmente, Demócrito). Além de Malebranche e Ocassionalistas, como o belga Arnold Geulincx. Os dois últimos, inclusive, haviam se detido no problema da tensão, da bipartição entre mente e corpo, que, segundo suas formulações, só poderiam ser reunidos por Deus. In: KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett.New York: Grove Press, 1996, p.206.
64
segue como um imbecil (Connard, em francês, significa beócio, imbecil),incapaz de se
defrontar com sua própria pequenez e finitude.O que se vê na sobreposição de palavras ao
conjunto dos quatro elementos primordiais (ar, água, fogo e terra104) são fragmentos de todo
o repertório inútil que serviu de recurso para a distração do homem frente à natureza
incompreensível, ao inumano, a tudo que lhe fugia à razão sacralizada e que o levou,
paradoxalmente, a um “mar de pedras", de obscuridade.
Poderíamos dizer que, no discurso de Lucky, a implosão do verbo como constituinte
do real, aponta para a deteriorização da palavra tanto na função tradicional que essa
desempenhava no teatro clássico como em sua função sistematizadora, mediadora da
realidade. Como observa Derrida105, sabe-se o valor que Artaud dava àquilo que se
denomina onomatopeia.Lucky, em sua perfomance,incorpora aquilo aque Artaud chamou de
glossopoiese, que não é nem uma linguagem imitativa nem uma criação de nomes;
reconduz-nos à beira do momento em que a palavra ainda não nasceu, em que a
articulação não mais é grito, mas ainda não é discurso, em que a repetição precisa é quase
impossível, e com ela a língua em geral: “a separação do conceito e do som, do significado
e do significante, do pneumático e do gramático, a liberdade da tradução e da tradição, a
diferença entra a alma e corpo, o senhor e o escravo, Deus e homem, ator e autor"106
A relação senhor-escravo, tal como desenhada por Hegel (“A verdade do senhor está
no escravo e transformado em senhor, o escravo, permanece um escravo recalcado”),então,
é transcendida por Lucky, via delírio, no discurso enunciado sem o compromisso com os
sistemas elaborados a partir de padrões de percepção, comprometidos com as instituições,
com aquilo a que denominam realidade. A ausência de sentido pode significar a morte. O
104Como observa Eugene Webb, do estudo do homem, Lucky passa à natureza e às filosofias que a explicaram. Os quatro elementos de Empédocles, de um lado,são dissolvidos heracliteanamente em “rios que correm como água que correm como fogo” e de outro, congelaram na entropia da morte: “e então a terra a saber o ar e a terra na grande glaciação(...)”. WEBB, Eugene. The plays of SamuelBeckett. Washington: Library of Congress Cataloging in Publication, 1972, p. 40. 105DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 350. 106 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 350.
65
fim de referências, o abismo. É ilinx, esse momento de vertigem, que no monólogo de Lucky
rompe as instâncias de poder de forma assustadora e violenta.
Aqui, a vertigem anula todas as outras possibilidades de jogo: é evidente que a
vertigem não poderia nunca associar-se a uma rivalidade sujeita a regras, sem que logo a
adulterasse. A paralisia que ela origina frente à realidade que desnuda, bem como o furor
cego em que se dá sua performance, constituem a estrita negação de um esforço
controlado. No discurso de Lucky, âgon,a categoria de jogo que se apresenta como recurso
eficaz à destreza, à força, ao cálculo,ao autodomínio,ao respeito pela regra,ao desejo de
medir forças em condição de igualdade é destruído. Nada subsiste, pois regra e vertigem
são decididamente incompatíveis. A simulação (mimicry) e a sorte (alea)são também
temporariamente anuladas. E antes que Pozzo retome a cena, ao amassar o chapéu de
Lucky107, o grande silêncio sugerido pela rubrica parece apontar isso: a suspensão
temporária de todas as referências, o assombro diante do olhar, que, petrificado, enxerga de
perto a morte - Medusa personificada. O silêncio, que Beckett introduz de forma intermitente
ao longo da peça de forma breve, alarga-se, e, ao de ser compreendido aqui como a
diferença, com mais eloquência que nunca, exibe o chão sem fundo da linguagem, em uma
terra arruinada, na qual só subsistem escombros.
É óbvio que odiscurso deLucky, em seu ludismo, oscilando entre a ironia e a sátira, é
polissêmico e não se prende apenas às observações aqui sugeridas. Esperando Godot é
um texto escrito para ser encenado, e, apesar das minuciosas indicações presentes nas
rubricas, é possível vislumbrar infinitas outras possibilidades de interpretação para a obra,
quando executada no palco. A forma caótica de sua estrutura, os ruídos, as onomatopeias,
parecem corresponder a alguns dos propósitos do Teatro da Crueldade de Artaud, que
107 “Lucky não pode pensar sem o chapéu - é cômico, porque acabamos de ver que os outros três
não podem pensar com seus chapéus. “Na verdade o pensamento de Lucky é abruptamente encerrado em pela remoção de seu chapéu, quase como se ele tivesse o plugue puxado para ele. Tal é o prestígio do chapéu de Lucky que Vladimir irá adotá-lo como seu dali por diante. O “ato de pensar” e seus significados possíveis têm gerado muitas especulações críticas. Cf. FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/ Krapp’s Last Tape. Lodon: Faber and Faber, 2000, p.92.
66
desafia o teatro como representação da realidade, afirmando-se, antes, como uma
manifestação da vida. Ou sobrevida, no caso de Beckett, quando nos deparamos com a
agonizante situação em que se encontram seus personagens frente a um mundo
desordenado,não se sabe por quê...
3.ACASO E REPETIÇÃO: O JOGO COMO RESISTÊNCIA
3.1 – À espera do imprevisto: Alea
Se não se espera, não se encontra o inesperado.
(Heráclito)
Com efeito, se um tema recorrente em Esperando Godot éa crise da razão, do saber
e do poder; que parecem sintetizados na fala de Lucky, o motivo da existência, na peça, não
deixa de ser problematizado a partir, justamente, da faculdade de pensar. A capacidade de
refletir sobre a própria condição conferiu ao homem, ao longo dos séculos,uma nítida
sensação de superioridade, mesmo quando confrontado ( na própria consciência) com o
caráter miserável da existência. A gravidade daformulação, que se baseia na afirmação de
Pascal (“O homem é mero grão de pó insignificante no universo infinito, mas sabede sua
nulidade, e isso faz toda a diferença”108)engendra essa noção de grandeza, não só como
oposta à miserabilidade, mas como “miserablidade com consciência de si109”.
Diversas interpretações da peça, como já se observou nesse trabalho, têm sido
sugeridas desde a sua estreia, há 60 anos, até os dias atuais. Aliás, uma das primeiras
108 Pascal, Blaise. Pensamentos.Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A., 1973 XVI. 109 Segundo Zizek, “essa noção de grandeza, não só como miserabilidade, mas como miserabilidade com consciência de si, é paradigmaticamente moderna.” Cf. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 221.
67
interpretações, que se seguiram às suas primeiras apresentações, admitiu essa perspectiva
pascalina. Nisso, J. Anouilh parece ter sido a principal autoridade. À primeira vista, a visão
parece justa: “ As Pensées de Pascal num esquete de music-hall encenadas pelos palhaços
Fratellini”.110Beckett não deixa de observar, com o humor que lhe é característico, o
conteúdo narcísico da formulação que acompanhou “os avanços” do conhecimento que se
converte em poder: Vladimir, o mais reflexivo e melancólico dos dois, diz a certa altura:
Estragon: Devíamos ter mergulhado profundamente na Natureza.
Vladimir: Tentamos.
Estragon: É verdade.
Vladimir: Ah, com certeza não é o pior.
Estragon: Pior, o quê?
Vladimir: Ter pensado. (BECKETT, 2006 p.127)
Entretanto, não há mais natureza. Seu resquício está no cenário, na forma de uma
árvore delgada que reaparece no segundo ato, agora com algumas folhas. Ao longo de toda
a peça, a atitude reflexiva aparece como leitmotiv em Vladimir, atitude diametralmente
inversa em Estragon, que possui uma visão mais concreta das coisas e do mundo. Vladimir
é o Dom Quixote do século XX, que ao sugerir ao seu Sancho Pança uma cumplicidade em
seu estado de desencantamento do mundo, encontra uma interlocução um tanto mais
indiferente, -mas igualmente dependente, comparável à do personagem de Cervantes. A
dupla, cavaleiro e escudeiro, com seus respectivos pangaré e mula, necessitavam um do
outro para prosseguirem em sua saga. Um era magro, alto, com a cabeça nas nuvens. O
outro era gordo, baixo, com os pés bem fincados no chão. Quixote, o desvairado, e Pança, o
pragmático, são opostos complementares que não podem prescindir um do outro.Estragon
assemelha-se mais à Sancho, ao aderir à causa do amigo sem que saiba exatamente
110 BECKETT. Samuel. Esperando Godot.Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Apud: Apêndices: Sobre Esperando Godot. Jean Anouilh.
68
porquê.O único momento em que alcançam alguma concordância ocorre quando
pronunciam o mágico refrão:
Vladimir: Você também, deve estar contente lá
no fundo,confesse.
Estragon: Contente por quê?
Vladimir: De me reencontrar.
Estragon: Você acha?
Vladimir: Diga, mesmo que não seja verdade.
Estragon: O que quer que eu diga?
Vladimir: Diga: estou contente.
Estragon:Estou contente.
Vladimir: Eu também.
Estragon: Eu também.
Vladimir: Estamos contentes.
Estragon: Estamos contentes. (Silêncio) O que vamos fazer agora que estamos contentes?
Vladimir: Esperar Godot.
Estragon: É mesmo.
Silêncio. (BECKETT, 2006 p.114)
O engenhoso fidalgo de La Mancha possui um comportamento análogo ao de
Vladimir: ambos são personagens que seguem uma ideia e voltam a ela sempre, entregam-
se a ela com “a precisão do sonâmbulo”, nada os demove. Vladimir e Estragon pertenceriam
à categoria de personagem cômico que se aferra a uma ilusão obstinadamente e operam
uma inversão: “ao invés de regrarem seu pensamento pela realidade imediata das coisas,
submetem todas as coisas à sua ideia.111”Vladimir constantemente argumenta com seu
companheiro sobre a necessidade de esperarem por Godot.Sem Sancho Pança, Dom
Quixote não seria ninguém, e o mesmo acontece com a dupla de clochards de Beckett: um
não pode prescindir do outro. Segundo Raymond Willians, a convenção da ilusão absoluta e 111BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 138.
69
da inabilidade do homem em se comunicar, que poderia parecer, então, simplesmente, o
mais recente e mais burguês dos lugares-comuns, é transcendido por Beckett:
O método de Esperando Godot é mais antigo. A peça é construída em torno de um conjunto incomum e explícito de contrastes: entre os vagabundos, Vladimir e Estragon, e os viajantes Pozzo e Lucky; e os contrastes adicionais no inteiro de cada par. Essa oposição polar de personagens foi usada na fase inicial do expressionismo para mostrar os conflitos de uma única mente. Mas agora o método foi desenvolvido para mostrar os conflitos no interior de uma condição humana absoluta. (WILLIAMS, 2002,p.201)
Para Willians112 (2002), o fato de Estragon e Vladimir permanecerem juntos, sem
nada buscar nem nada esperar, senão a frustração, retoma um ritmo trágico antigo e
profundo. A possibilidade de reconhecimento humano e de amor, aliado à condição de
absoluta falta de perspectivas, faz com que, estranhamente, ‘essa vida que responde, num
ponto além do reconhecimento da aporia, seja convincente e tocante’.
Estragon: Há quanto tempo estamos juntos o tempo todo? Vladimir: Não sei. Uns cinquenta anos, eu acho. Estragon: Lembra do dia em que me atirei no Reno? Vladimir: Na colheita das uvas. Estragon: Você me pescou de volta. Vladimir: Tudo isso está morto e enterrado. Estragon: Minhas roupas secaram ao sol. Vladimir: Deixa isso para lá, sim? Vamos. (Como antes) Estragon: Espere. Vladimir: Estou com frio. Estragon: Fico me perguntando se não devíamos ter ficado sozinhos, cada um por si. (Pausa) Não fomos feitos para a mesma estrada. Vladimir:(sem se zangar): Não dá pra ter certeza. Estragon: Não, não se tem certeza de nada. Vladimir: Ainda podemos nos separar, se você achar melhor. Estragon: Agora não vale mais a pena. (…) Estragon: Então, vamos embora? Vladimir: Vamos lá. Não se mexem. (BECKETT, 2006, p.106-107)
Entretanto, permeia toda a peça uma sensação de ironia à resistência humanista
intermitente, quando o homem se nega a conceber-se como mero produto do acaso. Um
112WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna.Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 201.
70
acaso rísivel, completamente despropositado, cujo propósito, se algum houver, é de
absoluta ignorância dos compêndios, das enciclopédias, do conjunto de saberes do qual o
homem dispõe. Beckett parece frustrar, em Godot, esse fundamento da humanidade; essa
ânsia, esse caráter sublime e pseudohumanista que compõe seus pressupostos,
principalmente quando o objeto de reflexão é ela mesma.
Na visão pascalina,“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza,
mas é um caniço pensante”113. Pascal defende o pensamento como essência humana, o
diferencial com relação à natureza e a qualidade primeira que dignifica a espécie humana. É
essa mesma faculdade de pensar que torna o ser humano “tão especial”, distinguindo-o da
Phisys-esse lugar indiferenciado, inabitado pelos deuses, anterior à linguagem, que, com
sua grandeza e seus “silêncios infinitos”, tanto apavora os seres racionais.
Os personagens de Beckett, ao contrário, aceitam o acaso e se entregam a ele.
Claro, não o fazem passivamente: imersos em horizonte incerto, para não serem tragados
pela nulidade que se lhes apresenta, subsistem pelo ato de contar histórias, anedotas,
entoar canções e praticarem a conversação. Para resistirem ao deserto que se lhes impõe,
usam o refrão “Nada a fazer” apenas como intervalo para logo em seguida retomarem “os
seus trabalhos”. Alea e mimicry, assim conjugadas, nos fazem pensar que o acaso, uma vez
aceito como viés inevitável da aventura humana, nos evoca a temática do amor fati de
Nietzsche- gozo possível, mesmo em uma atmosfera ameaçada pelo terror e pela
catástrofe. Aliás, é mesmo essa atmosfera ameaçadora que potencializa o gozo e a fruição
do instante. Em face da morte que se anuncia inevitável, com as perdas e as mortes já
experienciadas, resta-lhes converter as perdas em imagens, imagens que jamais
substituirão o objeto perdido, mas que, de alguma forma, figuram como possiblidade de
encenação dessa perda e elaboração de um interstício,ainda que matizado pelo
luto/melancolia. Imagens que convidam, que carecem do olhar do espectador/leitor para
113 Pascal, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A., 1973 XVI.
71
colocá-las em movimento. Isso não consiste, no entanto, em “preencher as lacunas”, mas
em incorporá-las no processo de leitura do mundo.
E para isso, abdicam involuntariamente da memória. Como no caso Dora, de Freud,
os personagens apenas atuam. O ato de narrar não se constitui em uma ação de tomada de
consciência ou desvelamentoque os levará a uma espécie de cura, como na psicanálise:
não é a cura pela fala, mas a sobrevivência na linguagem, pela linguagem, ainda que essa
se ofereça como ruína, subsídio de um sujeito fraturado, que, apesar de tudo, teima em
sepresentificar, emboratal empresa seja sempre, dialeticamente, acompanhada por uma
ausência. 114
Espectros, fantasmas: mesmo que a identidade seja um horizonte inalcansável, e
toda e qualquer tentativa de afirmação nunca logre êxito, o duelo com o tempo continua.
Depois do número de Lucky, Pozzo, não sem antes hesitar bastante, deixa o palco. Vladimir
e Estragon estão novamente a sós:
Vladimir: Ajudou a passar o tempo.
Estragon: Teria passado igual.
Vladimir: É. Mas menos depressa.
Pausa.
Estragon:O que a gentefaz agora?
Vladimir: Não sei.
Estragon: Vamos embora.
Vladimir: A gente não pode.
Estragon: Por quê?
114Talvez seja possível entender melhor o que Walter Benjamin queria dizer ao escrever que “somente as imagens dialéticas são imagens autênticas”, e porque, nesse sentido, “uma imagem autêntica deveria se apresentar como imagem crítica”: uma imagem em crise, uma imagem que questiona a si mesma. Como observa Didi-Huberman, uma imagem que assim se manifesta em uma obra de arte é “capaz de um efeito, de uma eficácia teórica-, pois é uma imagem que se apresenta, criticando nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituí-lo.” DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 171.Acrescentaríamos a essa observação, o fato de que a imagem dialética só pode ser considerada “autêntica” a partir de sua incompletude, de sua estrutura lacunar, que impede que se estabeleça uma síntese nessa dialética em processo.
72
Vladimir: Estamos esperando Godot.
Estragon: É mesmo.
Pausa.
Vladimir: Eles mudaram bastante.
Estragon: Quem?
Vladimir: Aqueles dois.
Estragon: É isso! Vamos praticar a conversação.
(BECKETT, 2006, p.94)
Se a açãodesloca-se do sentido tradicional atribuído na tríade aristótelica – ação,
tempo eespaço,como elementos fundamentais para a composição da cena, - aqui o gesto
de nada fazer corresponde a uma atitude de grande carga subversiva, que é justamente
reagir, subsistir e não aderir à ordem. O palco que acolhe uma estrada, espaço perdido no
qual encontram-se esses personagens, é também espaço catalizador para essa
heterotopia115,que funda a possibilidade de um devir lugar/lugares de uma existência outra.
Não se trata mais de uma visão egocentrada ou locuscentrada: a redução dos personagens
a ruínas e a diluição do espaço sugerem grande mudança para o paradigma do herói, que,
no caso em questão, desliza entre o trágico e cômico, sem poder ser identificado
plenamente como pertencente a nenhum gênero específico.
Lembremos que, para Pascal, a imaginação personificava-se como “senhora de erro
e falsidade”.“Ela é uma espécie de distorção do entendimento porque não cumpre a mesma
115As utopias, segundo Foucault “são espaços sem lugar real.” São lugares que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta e oposta. É a própria sociedade idealizada ou o seu contrário, mas, de qualquer forma, essas utopias formam espaços que não existem e que são, fundamentalmente, irreais, idealizados. Em contraponto a esses espaços inalcançáveis, existem aqueles lugares reais, efetivos; lugares que estão inscritos exatamente na instituição da sociedade, e que são, um tipo de contra-espaços, um tipo de utopias efetivamente realizadas. Esses espaços reais, representados, contestados e invertidos se tornam um tipo de lugar que está fora de todos os lugares, ainda que sejam efetivamente localizáveis: “Esses lugares, porque são absolutamente diversos de todos os espaços que refletem e sobre os quais falam, eu os chamarei, por oposição às utopias, de heterotopias.” www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/outros-espacos.pdf. Acesso: 10/10/2013.
73
função que este executa.116” Porém, no caso de Godot, é justamente essa faculdade de criar
imagens, que fará com que os personagens consigam prosseguir.
Desde a antiguidade, a potência desestabilizadora das imagens suscita
controvérsias. Eugen Fink, em sua obra Le Jeu Comme Symbole Du Monde117, afirma que a
posição da filosofia metafísica de Platão para o jogo é, antes de tudo, de uma ambiguidade
surpreendente. Ora, por um lado, o pensamento platônico se movimenta no elemento lúdico.
Ele é um jogo de ideias que se apresenta com rigor e seriedade, análoga à atenção que as
crianças depositam em uma brincadeira séria. Isso porque, ao penetrar, através da ironia
socrática, nos esconderijos profundos da dialética, ela, a ironia, sabe a atração exercida
pela máscara e gosta do que faz. O que é diversão neste pensamento é mais do que
elemento artístico, estilístico. Por outro lado, no entanto, Platão combate apaixonadamente
a interpretação do mundo através do jogo, “a sabedoria do mistério e tragédia, a pretensão
dos poetas em dizerem a verdade sob a inspiração das Musas e de Apolo.” Não seria
paradoxal que um usuário do jogo em seus diálogos se voltasse contra ele? Esse combate
não é simplesmente negar, negar a possibilidade de entusiasmo divino, na apreensãodo
homem. “Platão não se opõe à existência de um princípio racional na embriaguez poética,
mas sim a uma razão que é extática, uma razão em êxtase. Esta é a sophie para Platão118”.
O conhecimento é um reconhecimento, visto que seria impossível atingir a ideia pura,
partindo de coisas que deixam de ser a todo instante; o conhecimento é, em última análise,
o reconhecimento de um conceito contemplado em estado puro. O mundo dos “entes” nada
mais é do que o pálido reflexo do “ser belo” em estado puro. Daí a conclusão de Platão de
que “a arte (a tragédia...) sendo mímesis, imitação, é técnica imperfeita” 119. A arte,
alimentando-se da imitação, vive nos domínios da aparência e afasta os espíritos do
alethes, da verdade, sendo, por isso mesmo, intrinsecamente condenável. O conceito de
116Pascal, Blaise. Pensamentos, Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A., 1973 XVI. 117 FINK, Eugen. Le Jeu comme symbole du monde.Paris: Les Éditions Minuit, 1960, p.89. 118Ibidem. p. 90. 119FINK, Eugen. Le Jeu comme symbole du monde.Paris: Les Éditions Minuit, 1960, p. 90.
74
arte em Platão está em que os significantes não encerram o verdadeiro significado da obra.
Assim a arte seria a corrupção da ideia pela imagem.
Entretanto, o que fazer quando a realidade se oferece em franco processo de
destruição? A cada nova imagem de Esperando Godot, espraiam-se matizes lúdicos que
formam um caleidoscópio em fagulhas, produto de um real estilhaçado.Segundo
Benjamin120,a estrutura e o pormenor têm sempre, afinal, uma carga histórica. Sua função é
transformar em conteúdos de verdade filosóficos os conteúdos históricos objetivos, que
estão na base de toda obra de arte significativa. “O valor dos fragmentos é tanto mais
decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor
depende o fulgor da representação, na mesma medida em que do mosaicodepende a
qualidade da pasta121.” A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um
ponto de vista plástico e mental, demonstra que às vezes o verdadeiro (e não a verdade) se
deixa apreender somente através da mais exata descida ao nível dos pormenores do
mundo material. Em um século devastado por guerras, o substrato da poética de Esperando
Godotsão escombros, restos, ruínas de realidade. É a partir desse material deteriorado,
que o verbo, enfraquecido,enuncia o lamento lutuoso em sua encenação.
3.2 Alea e Mimicry: Diferença e repetição
“Alea jacta est" (“A sorte está lançada”) é uma expressão utilizada na linguagem
popular, quando todos os aspectos de uma situação já foram determinados e realizados,
restando apenas revelá-los ou descobri-los. Corrobora uma concepção de destino, na qual
condições predeterminadas irão decidir, a despeito da ação ou vontade do indivíduo, qual
será sua sorte.
120BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011,
p. 259-260.
121 Ibidem. p.17.
75
Alea, em latim, é o nome para o jogo de dados. Sinônima de sorte, risco e acaso, a
palavra "alea" servia para nomear não só o dado, o objeto, mas também o ato de participar
num jogo de azar. O poeta romano Juvenal, conhecido pelas suas máximas, comenta o fato
de a maioria dos cidadãos comuns apenas se interessarem por "pão e circo" ("panem et
circenses"), em vez de lutarem pela sua liberdade -, condenando assim o fascínio, o jogo
convertido em vício,como responsável pelo processo de alienação crescente entre os
cidadãos. Entretanto, nem sempre se viu o jogo a partir de sua natureza alienantizante.
Sabe-se que, em 1897,Stéphane Mallarmé escreve o poema tipográfico "Um lance
de dados jamais abolirá o acaso". No texto oitocentista, o autor francês afirma a potência
criativa contida no imprevisto. Mallarmé, em seu poema, evoca a força criadora do acaso, a
positividade da ausência, que atribuiàtrajetória do poema um movimento infinito, sempre se
construindo e reconstruindo cada vez que se depara com um novo leitor.
No caso da teoria dos jogos desenvolvida por Caillois122, em clara oposição à âgon
(competição), alea não dispõe de uma decisão, de uma determinação que depende do
jogador, do sujeito. Aqui se trata mais de vencer o destino que um adversário propriamente
dito. Em verdade, nessa categoria, o destino seria o único artífice da vitória ou do fracasso,
e, em caso de triunfo, significaria apenas que o vencedor foi mais bafejado pela sorte que o
vencido. Alea assinala a fortuna ou o infortúnio que advém de contingências que fogem ao
controle do jogador. O jogador, face a ela, pode ser inteiramente passivo, limitando-se a
aguardar, expectante e receoso, resignando-se; ou optar por elevar-se contra ela,
constituindo-se, assim, como figura trágica.
As personagens de Esperando Godot, contudo, conseguem guardar-se, em
parte,desse fatalismo. Poderíamos pensar, em princípio, que Estragon e Vladimir se rendem
aos caprichos de alea: a demissão da vontade a favor de uma espera ansiosa e passiva do
curso da sorte (alea) parece representar, em primeira instância, uma franca e antecipada
aceitação da derrota. Mas, talvez, seja justamente aí, nessa voluntária atitude de ataraxia, 122CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.36.
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na deliberada imobilidade em que se encontram os personagens, que resida um dos
principais artifícios de Estragon e Vladimir. Dante descreveu seu inferno como sendo um
local cujo portal, sem portas ou cadeados, teria a seguinte inscrição: “Renunciai às
esperanças, vós que entrais123”. Já houve quem comentasse que essa inscrição seria pior
do que qualquer inferno em si. Mas o sentido da inscrição não é apreendido naquele
instante pelo poeta, que, incentivado por Virgílio a encarar com coragem a experiência que
irá vivenciar, parte para sua viagem inaudita. Quem desacredita dos seus próprios recursos,
é levado a entregar-se ao destino. No caso de Dante, há um ritual de passagem, marcado
por uma escolha, o abandono de um território para incursão emoutro, cujas leis específicas
devem ser obedecidas pela personagem que nele penetra.Embora ele ignore essas regras,
dado o caráter da argumentação do poeta mentor, que o incentiva à ação, há a
recomendação que o chama à ciência de que ele não será amparado por antigos
referenciais. Já a dupla beckettiana encontra-se presa àquele espaço, uma beira de
estrada,que parece ser um percurso interrompido que os andarilhos não podem abandonar.
Devem, antes, se fixar ali, já que,por desígnios e sinais que não são revelados aos
espectadores e aos leitores, estão quase certos de que junto àquela árvore, estariam
fadados a se encontrar com Godot.
Há um imperativo desconhecido que os impede de se afastarem daquele pedaço de
terra, daquela árvore: como a personagem de Kafka, de O Processo, que aguarda junto a
uma porta sem consciência do que fazer, velam, em uma desabrigada espera, por uma
presença sem saber sequer o que desejam dessa misteriosa figura:
Vladimir: Então, que fazemos?
Estragon: Nada. É o mais prudente.
Vladimir: Esperar para ver o que ele nos diz.
Estragon: Quem?
Vladimir: Godot.
Estragon: Isso!
123 ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
77
Vladimir: Vamos esperar até estarmos completamente seguros.
Estragon: Por outro lado, talvez fosse melhor malhar o ferro
antes que esfrie.
Vladimir: O que era mesmo que queríamos dele?
Estragon: Você não estava junto?
Estragon: Não prestei muita atenção.
Vladimir: Ah, nada de muito específico.
Estragon: Um tipo de prece.
Vladimir: Isso!
Estragon: Uma vaga súplica.
Vladimir: Exatamente.
Estragon: E o que ele respondeu?
Vladimir: Que ia ver. (BECKETT, 2006, p.38)
Porém, Vladimir e Estragon não se deixam arrastar pacificamente pela realidade
catastrófica que os cerca.Se o personagem de Kafka não sabe o que fazer, os de Beckett
sabem que não querem fazer nada. Optam por existir, se fazerem existir, não raro
tragicamente, à parte da angústia e do desespero, via mimicry.A espera, portanto, no caso,
pode ser mais produtiva que o encontro nesse sentido, porque acumula todos os encontros
possíveis, encetando uma pluralidade de perspectivas. O encontro com Godot, sempre
adiado, se, por um lado, significa o acúmulo de energia, a ansiedade provocada pelo ato
contínuo do que parece ser uma espera inútil em um inferno em que nada acontece, por
outra via, pode acarretar também a solicitação da mimicry como aliada no perigo de que o
jogo seja extinto. A espera então se revela como condição de possibilidade para a
encenação. E é assim, que a aliança entre Alea/Mimicry se inscreve em Esperando Godot:
via repetição.
Segundo o crítico John Fletcher124, em qualquer produção desta peça, um ponto
fundamental é alcançar uma certa solidez. “Ainda que sua encenação não tenha sido
124 In: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Apêndices. Sobre Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 209.
78
construída segundo linhas tradicionais de base aristotélica, com exposição,
desenvolvimento, peripécia e desenlace, ela apresenta uma estrutura firme, de outra
natureza.”O texto apresenta uma estrutura baseada na repetição, noretorno intermitentede
leimotifs e “no equilíbrio exato de elementos variáveis.”
Tal aspecto também é observado por Harold Bloom. Para o crítico, embora os
protagonistas de Beckett manifestem surpreendente variedade, quase todos partilham de
uma característica básica: a repetição. Condenados a contar e encenar umas histórias
repetidas vezes, “seguem na esteira do Judeu Errante, do Velho Marinheiro de Coleridge, do
Holandês Voador de Wagner, do Caçador Gracchus de Kafka125”.
De fato, a repetição se dá tanto na forma quanto no conteúdo.126Em artigo, Célia
Berretini, partindo da dramaturgia da peça, elaborou uma lista na qual verifica quantas vezes
certos vocábulos ou expressões se repetem ao longo do espetáculo. Eis alguns números: O
termo * Nada é usado no total de cinquenta vezes. Sendo o termo que abre a peça, na fala
de Estragon, quando este faz menção ao sapato que o incomoda, aparece sempremarcado
pelo negativismo, embora acompanhado, frequentemente, com o refrão *Estamos
Esperando Godot. As frases* A gente espera Godot”(oito vezes),Esperar Godot (quatro
vezes),*Esperamos que Godot venha (uma vez) , pela sua incidência, torna-se autêntico
refrão a atravessar toda a obra, seguidas do inevitável *É verdade” (dez vezes). A
repetição dessa contrução reforça o argumento de que “o esperar Godot” é uma realidade
(ou a única realidade dentro da peça), sobre a qual não pairam dúvidas, quem ou o que quer
que ele seja. Além disso, o verbo *esperar é usado 37 vezes, com exclusão dos casos em
que aparece como substantivo *espera(duas vezes). O nome * Godot é repetido trinta e
seis vezes, sem computar os casos citados e o emprego dos “ele”, além das constantes
125 BLOOM, Harold. O cânone Ocidental. Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.475 126 Apud: (BARRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 87-88)
79
sugestões. O emprego dos verbos *dizer (115 vezes), *falar (23 vezes), * tagarelar (duas
vezes), *conversar (duas vezes), *contar (quatro vezes), com seu elevado total
(146vezes),expressivo como evidência da combinação entre os jogos mimicry e aleapara
preencherem o longo tempo de espera de Godot, é verdadeiramente já que, uma vez
entregues à própria sorte, optam por improvisar.
Cabe aqui uma breve revisão sobre o tema da repetição na filosofia, antes de
retomarmos sua estrutura em Esperando Godot. Repetir (do latim repetere) significa “tornar
a dizer ou escrever”, isto é, algo que diz respeito à linguagem ou, num sentido mais amplo,
aos atos humanos e não aos fenômenos naturais.Tema antigo nas investigações filosóficas,
a repetição aparece nas obras de alguns dos mais diversos filósofos, psicanalistas e
escritores, tais como Kierkegaard, Nietzsche, Freud, e, mais contemporaneamente, Deleuze
e Derrida. “Ainda na antiguidade, a repetição era uma questão central para o homem. Desde
o mito, passando pelo eterno retorno de Heráclito até Nietzsche, o tema da repetição
atravessa a história do pensamento ocidental.127” Para Garcia-Roza (1986), quando ele
ressurge na obra de Freud – no início timidamente, até transformar-se em tema central de
Além do Princípio de prazer –, o faz com o peso dessa história, e o Édipo é a sua marca
registrada. Dentre os autores que tratam a questão da repetição, e que fazem parte do
mesmo solo do saber no interior do qual a psicanálise fez sua emergência, Hegel,
Kiekegaard e Nietzsche transformaram-se em referenciais privilegiados pelos comentadores
de Freud.
Em A Repetição128 – um ensaio de psicologia experimental por Constantin
Constantius, Kierkgaard adotará o pseudônimo de Constantin Constantius para pensar a
questão da escolha pelo singular viés do cotidiano repetitivo da existência.A visão
kierkegaardiana da repetição não admite totalização, é uma crítica à visão anterior do
assunto, a de Hegel, que via o presente como resultado retroativo de situações pretéritas. 127GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 34 128KIERKEGAARD, Soren. A Repetição.Lisboa: Relógio D’água, 2009.
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“Para Kierkegaard, entretanto, a noção de repetição vai distinguir-se daquilo que ele chama
de repetição numérica (pura reprodução de algo) da repetição propriamente dita.129”
Segundo o filósofo dinamarquês130, enquanto a primeira é a repetição que encontramos na
natureza, uma forma de manutenção do mesmo, a segunda é produtora de diferenças;
enquanto a primeira se expressa em forma de lei e diz respeito ao semelhante, à
generalidade, a segunda é contrária à lei. “É nesse sentido que Kierkegaard afirma que é
preciso entender a repetição “no sentido grego”, isto é, como algo que diz respeito a uma
singularidade, singularidade esta que afirma a eternidade, mas não a permanência. Não se
trata de afirmar uma eterna repetição do “mesmo”, mas de mostrar que o eterno retorno, de
que falam os gregos, aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial131”. Os
acontecimentos, quando repetidos, já não são os mesmos.A própria repetição de uma
palavra não traz com ela a repetição do sentido.
É movido por esse sentimento de que o tempo impõe ao eterno retorno uma marca
renovadora que Constantin/Kierkgaard empreende a tentativa de reviver todo o encanto de
uma noite de estreia num teatro de Berlim, e a experiência fracassa. O fracasso ocorre
porque o personagem de Constantin Constantinus empreende sua tentativa de forma
excessivamente objetiva. Não se trata, evidentemente, de proceder auma reprodução pura e
simples da experiência anterior (a hipótese é mesmo colocada como impossível) nem de
retomá-la desde fora, da exterioridade; ao contrário, trata-se de um exercício de liberdade.“A
repetição como liberdade,como potência de interioridade, como subjetividade132.”
Também Nietzsche deteve-se na temática da repetição diferencial, o que, de alguma
maneira, tornou-o o filósofo trágico por excelência.“Trágico no sentidoda afirmação do
acaso, que é puro devir.133” A crítica de Nietzsche, segundo Herbert Marcuse134, distingue-se
129GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. 2ªedição: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 31. 130 Idem. 131 Idem. 132GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e Repetição em Psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. 2ªedição: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 31. 133 Idem.
81
de toda a Psicologia social acadêmica pela posição a partir da qual a empreende: Nietzsche
fala a partir de um princípio de realidade fundamentalmente antagônica a da razão ocidental.
A forma tradicional da razão é rejeitada na base da experiência do ser como um – fim – em-
si – como gozo e fruição.
A questão, para Nietzsche, está inextricavelmente ligada à maneira como se
experimenta o tempo na apreensão metafísica do mundo. A luta contra o tempo
desencadeia-se a partir dessa posição: a tirania do devir sobre o ser deve ser quebrada, se
o homem quiser tornar-se ele mesmo num mundo que seja seu. “Enquanto existir o
incompreendido e inconquistado fluxo do tempo – uma perda sem sentido, o doloroso “era”
que nunca mais voltará a ser – o ser conterá a semente de destruição que perverte o bem
em mal e vice versa135”. O homem só se torna ele mesmo quando a transcedência for
conquistada – quando a eternidade se tornar presente no aqui e agora. Não há trágico
naquele que é absolutamente novo, para Nietzsche, o trágico implica a repetição. Para
Marcuse, a concepção de Nietzsche termina com a visão do círculo fechado – não
progresso, mas “eterno retorno”:
O anel, o círculo fechado, já nos apareceu antes: em Aristóteles e Hegel, como o símbolo do ser-como-fim-em-si-mesmo. Mas, enquanto Aristóteles o reservava para o nous theos e Hegel o identificava com a idéia absoluta, Nietzsche considera-o o eterno retorno do finito exatamente como é em sua plena concretização e finitude. Isso é a afirmação total dos instintos vitais, repelindo toda a evasão e negação. O eterno retorno é a vontade e visão de uma atitude erótica em relação ao ser, na qual a necessidade e a realização coincidem. (MARCUSE, 2010, p.117)
No entanto, o eterno retorno não pode significar o retorno do Idêntico, pois ele supõe,
ao contrário, um mundo em que todas as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. E,
Derrida, em sua leitura do eterno retorno,no rastro de Nietzsche, afirma:
(...) o que retorna não é o Todo, o Mesmo ou a identidade prévia em geral. Não é nem mesmo o pequeno ou o grande como partes do todo ou elementos do mesmo. Só as formas extremas retornam – aquelas que, pequenas ou grandes, se desenvolvem no limite e vão até o extremo da
134MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: LTC, 2010, p.116. 135Idem.
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potência, transformando-se e passando umas nas outras. Só retorna o que é extremo, excessivo, que passa no outro e se torna idêntico. (...) A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição. (DERRIDA, 2006, p.73)
Como em Kierkegaard, Nietzsche e Derrida, a repetição em Esperando Godot não
substitui a recordação, nem visa a uma superação ou progresso. Como sabemos, a tentativa
de trazerà cena fatos passados nunca logra êxito, já que o repertório de que dispõem os
personagens está por demais embaçado e embaralhado, são fragmentos de suas memórias
falhadas; quebra-cabeças nos quais sempre faltarão peças decisivas para a formação de
seus quadros.
Assim, o ato de contar histórias, tão incidente entre os personagens de Beckett, não
se constitui num relato propriamente dito ou na comunicação de uma experiência, mas na
própria impossibilidade de fazê-lo. Se, no entanto,pode-setomar a repetição como
negatividade, à medida que operacomo resistência ao ambiente inóspito no qual se
encontram os personagens,é possível, por conseguinte,considerá-la como fundamento da
transferência do desejo de prosseguirem ou sobreviverem, via mimicry, como produtora de
novidade.Impulsionada pelo desejo de preencher o vazio na agonizante espera, a repetição
é trágica no sentido em que se torna uma necessidade naquelas circunstâncias adversas,
mas é também cômica, à medida que faz uso de um repertórioda tradição cômica (“comedia
dell’ arte e music hall).A repetição de gestos e cacoetes são artifícios usuais da comédia. A
repetição periódica de uma palavra ou uma cena, a inversão simétrica dos papéis, o
desenvolvimento geométrico dos quiproquós e muitos outros jogos extraem força cômica
dessa fonte. Para Bergson136, “consiste talvez nesse expediente a arte do autor de
136 “Pois uma das leis fundamentais da vida seria jamais repetir-se. Mas eis que um movimento de braço ou meneio volta esporadicamente. Por quê? Porque tenho agora diante de mim um mecanismo que funciona automaticamente. Já não é a vida, é o automatismo instalado na vida, imitando a vida. É a comicidade. (...) é que a vida bem viva não deveria repetir-se. Quando há repetição, similitude completa, suspeitamos do mecanismo a funcionar por trás do que está vivo. (...) Essa inflexão da vida na direção da mecânica é a verdadeira causa do riso. BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24-25.
83
vaudeville, ao nos apresentar uma articulação visivelmente mecânica dos acontecimentos
humanos ao mesmo tempo em que conserva seu aspecto exterior de verossimilhança”.
As repetições do texto beckettiano escapam à estrutura interna de sua ficção. Além
da relação intertextual com outros autores, Beckett estabelece, com vertiginosa frequência,
uma permanente atitude intratextual.Bruno Clément137 comenta que um dos princípios
articuladores fundamentais do texto de Beckett é dizer o que ele já disse em outros textos,
repetir perguntas que ele já fez, mencionar citações já evocadas em outras obras (a
parábola dos dois ladrões, por exemplo, de Esperando Godot, aparece também em Malone
e o lulu da pomerânea,mencionado porMolloy, estará também emPrimeiro amor eFim de
Partida).
Algumas repetições buscam situações idênticas. O retorno periódico do Purgatório
de Dante e a atitude de inação e apatia de Belacqua138 em sua espera, por exemplo, não
são diferentes em sua função.
É frequente o retorno de objetos, personagens, perguntas, citações, posturas.Para
um leitor contumaz e advertido, o universo beckettiano se apresenta, se não com
familiaridade, dado a estranheza que suas atmosferas instalam, ao menoscom ar de
reencontro com seu universo estranhado. Isso porque, obra após obra, seus textos instalam
os mesmos quadros, os mesmos nomes de personagens (que vestem as mesmas roupas e
137 CLÉMENT, Bruno. L’ouevre sans qualités. Rhétorique de Samuel Beckett. Reprises. Paris: Éditions du Seuil, 1994, p. 382. 138Belacqua, emMorePricksthan Kicks, é um estudante emDublinnos anos vinte, vivendo suas aventuras,encontros eamores, que, através deseu estilo originale comentárioirônico diante da realidade,consegue transformarincidentesdo cotidiano emum grande dramaenos permite ver as ruas e avida universitáriaatravés dasagacidade do olhar atento ecáusticodo autor.Publicado pela primeira vezem 1934, este primeiro personagem de Beckett estará presente em Murphy, da mesma maneira que Murphy reaparecerá em Watt;Malone e Molloy, por sua vez, serão citados em “OInominável”. “O retorno dos personagens, que foi rapidamente concebido e realizado de forma sistemática, é apenas um dos fatores, entre muitos outros, que contribuem para que a obra como um todo constitua uma memória particular; a repetição de caracteres, situações, temas e objetos é uma das marcas da produção beckettiana.” CLÉMENT, Bruno. L’ouevre sans qualités. Rhétorique de Samuel Beckett.Reprises. Paris: Éditions du Seuil, 1994, p. 382.
84
aos quais ele atribui os mesmos movimentos ea mesma imobilidade),as mesmas falas, que
se repetem eacabam se tornando para oleitor tão familiaresquanto os objetos e os temas de
sua obra.
A condição anônima de Vladimir e Estragon ultrapassa a ausência de um contexto
que possa identificá-los firmemente. A imprecisão de seus retratos, enquanto caracteres, os
aproxima do anonimato das máscaras da farsa e da commédia dell’arte.Como Geneviève
Serreau observou: “No circo, os palhaços, tradicionalmente, possuem uma função paródica,
desmistificadora” 139.Há ainda o parentesco comChaplin, Buster Keaton, Laurel e Hardy e Os
Irmãos Marx, que dará às duplas Estragon-Vladimir e Pozzo-Lucky, alguns traços
concernentes ao repertório cômico do cinema do século XX, no qual o riso e a melancolia,
não raro, encontram-seentretecidos.
Na obra Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text, Steven Connor recupera a
interpretação crítica de Robbe-Grillet na ocasião de estreia de Esperando Godot,
repensando se realmente o teatro de Beckett encarna a noção heideggeriana do Dasein, do
primordial ser-aí: Segundo a leitura de Robbe-Grillet, a condição humana, preconizada por
Heidegger, é estar láe, provavelmente no teatro, mais do que qualquer outro modo de
realidade, que se representa e reproduz esta situação o mais naturalmente. O fato do
evento dramático dar-se no palco é a sua principal qualidade: Robbe-Grillet encontra na
espera deGodot uma afirmação de liberdade tal como antevista em Sartre na construção
existencialista: o homem em situação140. A própria ausência de programa ou princípios a
priori é o que garante essa liberdade. "Eles estão lá; eles devem se explicar, mas eles não
parecem ter um texto preparado de antemão que escrupulosamente aprenderam de cor,
para apoiá-los. Eles devem inventar. Eles são livres141.” Porém, Connor discorda dessa
139IN: LAVIELLE, Emile. En Attendant Godot. Paris: Librairie Hachette, 1972, p.71. 140CONNOR, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text. Colorado: the Davies Group, Publihers Aurora, 2007, p.129. 141Ibidem. p.130.
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presentificação initerrupta proposta por Grillet. Para ele, a repetição está inestrincavelmente
ligada à maneira com a qual os personagens experimentam o tempo em Esperando Godot.
“Ela, a repetição, é variável, e não obedece a uma estrutura que pode ser facilmente
rastreada. Quanto mais tempo eles passam no palco, progressivamente, para eles e para o
público, o imediatismo simples do presente torna-se atraído para a complexa rede de
relacionamento e repetição, que reúne variados matizes da experiência.142” Na acepção de
Connor, parece haver dois procedimentos essenciais de repetição em Esperando Godot. “O
primeiro é circular, e sugere a impossibilidade de qualquer presente estável, pois o passado
e o futuro estão alinhados de maneira inextrincavelmente ambígua.”143Como exemplo, tem-
se a música circular que Vladimir entoa no início do ato dois e fornece o modelo para este
tipo de repetição.
Vladimir:
Um cão foi à cozinha
Roubar pão e chouriço.
O chefe e um colherão
Deram-lhe fim e sumiço
Outros cães, tudo assistindo,
O companheiro enterraram...
(Para, breve ensimesmamento, depois continua)
Outros cães tudo assistindo,
O companheiro enterraram,
Sob uma cruz que dizia
Aos demais que ali passavam:
Um cão foi à cozinha... (BECKETT, 2006, p.112)
142 Ibidem. p.132-135. 143 Ibidem. p.135.
86
A estrutura da canção repete-se, com algumas pausas e inflexões de estranhamento
por parte de Vladimir ao entoá-la. Seu desconcerto insinua que a prioridade e a progressão
encontram-se anuladas, uma vez que cada elemento da canção é, antes e depois,a
repetição de todos os outros elementos que retornam, sempre inapreensíveis.A música que
aparece entre os dois atos é como um redemoinho, em círculos que se superpõem e
retornam. O fim retorna ao início, não há desenvolvimento ou progressão, mas um eterno
refazer em que a morte não perfaz um caminho que leva ao céu ou ao inferno. O símbolo
ambivalente da cruz, cujo significado em nossa cultura remete ao sofrimento e à esperança,
é fraturado e profanado, destituído de sua qualidade redentora. O outro modelo de
repetição, segundo Connor, é linear. “Algumas das repetições em Esperando Godot
parecem indicar reduplicações não infinitas, mas um declive entrópico.”144 (CONNOR, 2007,
p.135) De fato, o dialógo que abre o ato II parece denunciar tal expediente:
Vladimir: Quem espancou você?
Estagon: Mais um longo dia que se foi.
Vladimir: Não ainda.
Estragon: Para mim, já acabou, aconteça o que
acontecer. (Silêncio)
Agora há pouco, você estava cantando, eu ouvi.
(BECKETT, 2006, p.110)
Os personagens parecem ter uma vaga consciência de que tudo se repete, como se
reconhecessem ecos do passado que retornam incompletos, como na ocasião em que se
processaram anteriormente. A sensação parece insinuar uma experiência temporal cujo
144Connor lembra, neste capítulo, que Beckett insistirá cada vez mais nesse tipo de repetição com decréscimo em obras posteriores. Como em Dias Felizes, no processo gradual de soterramento de Winnie, o abrandamento do ritmo da fala em Play ou no enfraquecimento da voz da mulher em Rockaby (Cadeira de Balanço), a repetição-retração é uma constante. CONNOR, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text. Colorado: The Davies Group, Publihers Aurora, 2007, p.135.
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núcleo ou passado originário se perdeu, tornando-se cada ato de repetição um suplício,
dada a perplexidade que se amplia a cada novo ato de enunciação, em que os sentidos em
fuga os desnorteiam continuamente. Entretanto, a casualidade (alea) é também uma aliada
decisiva para que o jogo prossiga. A ausência de memória permite que os personagens
anulem por instantes a sensação de pavor que o eterno retorno do mesmo pudesse lhes
causar:
Vladimir: As coisas mudaram por aqui, de ontem para hoje.
Estragon: E se ele não vier?
Vladimir:(depois de um momento de espanto) Aí a gente
decide.(Pausa) Estava dizendo queas coisas mudaram
por aqui, de ontem para hoje.
Estragon: Tudo escoa.
Vladimir:Repare bem a árvore.
Estragon: Nunca se desce duas vezes pelo mesmo
pus. (BECKETT, 2006, p.110)
Em um de seus aforismos, Heráclito de Éfeso enfatiza o caráter mutável da
realidade, repetindo uma tese que já surgira nos mitos arcaicos e, com dimensão filosófica,
desde os milesianos. Em Heráclito, a noção de fluxo universal torna-se um mote
insistentemente glosado: “Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas
águas correm sempre sobre ti”. O fragmento trata da mutabilidade das coisas do mundo, em
que tudo segue um fluxo infinito de transformações e nada permanece o mesmo. A alusão
ao fragmento heraclitianodenuncia, no entanto, a imutabilidade da atmosfera de dor e
sofrimento em que se encontram Vladimir e Estragon.A imagem de um rio que flui, com
águas que se renovam, dá lugar a um fluxo de pus, derivado de feridas quenão cicatrizam e
estão ali, como força motriz da sociedade ocidental. Se o rio é a metáfora do fluir do tempo,
em Beckett, sua imagem aparece como uma história que se se desenrola a custo da
violência e sofrimento de muitos. De novo, enxergamos aqui uma crítica à noção de tempo
88
linear, no qual o discorrer dos dias nos levaria a um ponto de progresso. O tempo se revela
imóvel, entrópico e, repetidamente, incompreensível.
Estragon: E você disse que foi ontem, a coisa toda?
Vladimir: Sem dúvida.
Estragon: Aqui mesmo?
Vladimir: Mas é claro, que ideia! Não está reconhecendo?
Estragon:(repentinamente furioso)
Reconhecendo? Reconhecendo o quê? Passei minha
vida de merda rastejando nesta lama e você vem me fa-
lar de nuances! (Olha ao redor) Repare bem nessa
imundície! Nunca pus os pés fora daqui!
(...)
Vladimir: E no entanto estivemos juntos em Macon, ponho
minha mão no fogo. Colhemos uvas, isso, no vinhedo de...
(estala os dedos) está na ponta da língua... numa cidade-
zinha chamada...esqueci o nomedo lugar, não lembra?
Estragon:(mais calmo) Pode ser. Não notei nada de especial.
(BECKETT, 2006, p.118-119.)
De fato, o sentimento de melancolia que transversaliza toda a peça não permite que
se instaure, em nenhum momento, a sensação de segurança, de apreensão absoluta do
tempo, ou a sensação de pertencimento ao espaço. Logo a identificação plena, ou qualquer
príncipio que possa insinuar o sentimento absoluto de presença, não podem mesmo estar
presentes no teatro de Beckett. Nesse sentido, a mimicry desempenha o papel de não
fixação das máscaras, num trânsito incessante, no qual,se a memória é incapaz de
reproduzir com exatidão a experiência, é hábil, contudo, em encená-la, trazendo à cena sua
imprecisão:
Vladimir: Diga alguma coisa.
Estragon: Estou tentando.
Longo silêncio.
89
Vladimir: (angustiado): Diga qualquer coisa!
Estragon:O que vamos fazer agora?
Vladimir:Estamos esperando Godot.
Silêncio.
Vladimir:Como é difícil!
Estragon: E se você cantasse?
(BECKETT, 2006, p. 122.)
Mimicry e Alea, via imaginação,conduzem a ação de jogar à possibilidade de
ressignificação do real, promovendo uma reativação do olhar infantil, o olhar
inexperimentado das coisas do mundo. Combinadas, alea e mimicry evidenciam algo que se
aproxima de uma atitude que reabilita a percepção automatizada do olhar, devolvendo sua
capacidade de recolher a poesia do entorno.
“Trata-se da capacidade de produzir analogias e correspondências extrassensíveis
entre as coisas e o mundo, resgatando uma espécie de experiência polifônica do universo
que preconiza um outro saber e um outro modo de estar na linguagem145.”
Assim, ao dirimir a vontade em favor de uma espera ansiosa e passiva do curso da
sorte (Alea), alia-se ao gosto de revestir uma nova perspectiva ao real (mimicry).É inerente
ao melancólico, de uma ou outra maneira, o sentimento de desejo de fuga da realidade
imediata. Seja retornando ao passado ou a outro topos, o aqui, agora sempre lhe é
insatisfatório.
Vladimir: E, na sua opinião, onde estávamos ontem à tarde?
Estragon: Não sei. Em outro lugar. Noutro compartimento.
Vazio éque não falta.
Vladimir:(seguro de si): Tudo bem. Não estávamos aqui ontem à tarde?
Estragon: O que nós fizemos?
145BINES, Rosana Kohl. Infância, palavra de risco. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; GINZBURG, Jaime; FOOT HARDMAN, Francisco (Orgs.). Escritas da violência. Vol.1: o testemunho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 212
90
Vladimir: Tente se lembrar.
Estragon: Bom...acho que jogamos conversa fora.
Vladimir:(se controlando): Sobre o quê?
Estragon: Ah...isto e aquilo...sobre botas. (Com certeza) Isso, me lembrei, ontem à tarde ficamos falando de botas. A mesma conversa, há cinquenta anos.
Vladimir: Não se lembra de nada que aconteceu, nenhuma circunstância?
Estragon:(cansado) Chega de me torturar, Didi.
Vladimir: E do Sol? Da Lua? Não lembra?
Estragon: Deviam estar por perto, como sempre.
(BECKETT, 2006, p.130)
Logo, parecepertinente a leitura de Connor, que nega uma presentificaçãoabsoluta
na cena beckettiana. Desde Aristóteles sabemos que os melancólicos são seres de
exceção. “O melancólico é essencialmente polimorfo (...) isso quer dizer que o melancólico
tem como possíveis todos os caracteres de todos os homens” 146.SeEstragon e Vladimir
evadem-se temporariamenteda realidade imediata que se lhes apresenta, redimensionando-
a, éporque uma tomada de consciência que reconhecesse plenamente o terror que os
rodeia, os levaria a uma apreensão do absurdo do mundo e, fatalmente,a uma decisão
trágica frente à realidade, como o suicídio, por exemplo. Não é o caso, contudo, dos
personagens de Beckett: a razão, a tomada de consciência absoluta não se aplica ao
universo de seus exauridos caracteres. É justamente nessa falha, nessa ausência, nesse
lapso de consciência, que seplasma a mascarada beckettiana. Mimicry e Alea são
cúmplices nesse jogo de ressignificação das máscaras.
Estragon: Estou cansado. (Pausa) Vamos embora.
Vladimir: A gente não pode.
Estragon: Por quê?
Vladimir: Estamos esperando Godot.
Estragon: É mesmo. (Pausa) O que vamos fazer então? 146 Aristóteles. O Homem de Gênio e a Melancolia. Problema XXX, 1. Rio de Janeiro: Editora: Lacerda, 1998, p. 99.
91
Vladimir: Não há nada a fazer.
(...)
Vladimir: E se você experimentasse?
Estragon: Já tentei de tudo.
Vladimir: As botas, quero dizer.
Estragon: Acha que devo?
Vladimir: Ajuda a passar o tempo. (Estragon hesita)
Garanto que será uma diversão. (BECKETT, 2006, p. 137.)
Alea associa-se ao universo infantil por excelência. Assim como na brincadeira
infantil, em que um pedaço de bambu pode tornar-se uma espada; um pedaço de pau uma
boneca, e, com o auxílio de um graveto, esse mesmo pedaço amorfo de madeira pode
transformar-se em violino, as personagens de Beckett lidam com os restos e resíduos,
transformando-os em objetos, na tentativa de mimetizar a existência do que lhe é alheio,
habitando os objetos imaginariamente, abrindo a possibilidade de diálogo com o entorno,
que se lhes apresenta de forma tão estranha.
Estragon: Estamos sempre achando alguma coisa, não é Didi, para dar a impressão que existimos?
Vladimir: É, é mesmo, somos mágicos. Mas não vamos nos desviar. (Pega uma bota) Venha, me dê o pé. (Estragon aproxima-se, levanta o pé) O outro, porco!(...) E então, serviu?
Estragon: Serviu.
Vladimir: Vamos amarrar.
Estragon:(com veemência): Nada disso, nada de laços, nada de laços!
Vladimir: Vai se arrepender. Agora o outro. (Como antes) E então? (...)
Estragon: São grandes demais. (BECKETT, 2006, p. 137.)
Não há encaixe. Nada se assenta perfeitamente em uma realidade desconexa, onde
não mais é possível uma descrição objetiva dos eventos. A apreensão do mundo na infância
perfaz uma trajetóriaem que “a experiência não parte de uma subjetividade soberana e
92
solipsista, encapsulada e apartada no universo das coisas147”. Estragon e Vladimir lidam
com as botas na tentativa de experimentarem o momento presente.Como crianças, se
entregamao mundo sensorialmente, desafiando as demarcações que separam sujeito e
objeto e as temporalidades instituídas. É nessa interação renovadora pela via da experiência
sensível que lida com resquícios, queGogô e Didi serão capazes de adiar o encontro com
espectro da morte que os espreita. A presença do âgon se daria na atitude deliberada dos
personagens em assumirem intimamente a essência de algo condenado à morte. O desejo
incansável de prosseguiremfaz com queâgon,incorporada na agonia que osmobiliza, se
converta em cúmplice da alea e da mimicry, para o prosseguimento do jogo.
A repetição dos jogos, aqui, nos impede de ver a primeira vez como
necessariamente a primeira, e, a última, como final. Ambas são repetições, e como observa
Connor, repetições “nas quais estamos privados de sentido de prioridade ou finalidade”
148.Há uma dobra no interior de cada cena, que faz com que as estruturas repetitivas imitem
o jogo infantil no sentido de encenação de uma perda, de uma ausência. É esse núcleo
ausente, esse vácuo, que permite o equilíbrio, mesmo que a passos trôpegos, dos
personagens de Beckett.Com efeito, a instabilidade temporal da peça, correlativa com sua
estrutura no que tange à repetição, dramatiza a memória como um conteúdo que
permanece parcialmente oculto e incompleto. Cada cena soa como umdejavú, no qual ecoa
uma estranha premonição em que presente, passado e futuro aparecem como uma
estrutura unitáriamal suturada, pressentindo-se que pouco, ou quase nada, resta de
“memorável”.
A repetição que mescla o trágico e o cômico, cujo humor apresenta uma similaridade
com a atitude das crianças, que, abandonadas em seus jogos, se entretêm com miudezas,
147 BINES, Rosana Kohl. Infância, palavra de risco. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; GINZBURG, Jaime; FOOT HARDMAN, Francisco (Orgs.). Escritas da violência. Vol.1: o testemunho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 212. 148CONNOR, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text.Colorado: The Davies Group, Publishers, 2007, p.135.
93
enquanto se distraem à exaustão com seus diálogos. E mesmo os diálogos em Beckett
obedecem à estrutura de composição baseada na repetição, pois se caracteriza pelo
empobrecimento, pelo depauperamento, pela presença de falas curtas em que subsistem
alguns resquícios do diálogo dos clássicos. Como apontou Célia Berretini149, são
encontrados na repetição expedientes que remontam aos grandes dramaturgos gregos e
latinos da Antiguidade. “Há um sem-número de exemplos que poderiam ser transcritos e
que revelam a presença da oposição, concisa e rápida, nos diálogos de Godot.”Trata-se em
sua visão de uma oposição inovadora,que remete à esticomitia do teatro greco-romano,
sugerindo a paródia ou a caricatura do teatro tradicional e da própria vida.
Berrettini também chama a atenção para o jogo de palavras, simultâneos aos
jogoscom os objetos, que circulam nas mãos de Estragon e Vladimir, “ritmicamente, com
regularidade calculada150”, enquanto o diálogo duela com o marasmo. Aesticomitia, que
também apresenta um caráter lúdico,adquire, no entanto, um novo aspecto, graças à elipse
da parte inicial e ao desencontro das falas. Aliás, poderíamosdizer que há bem mais do
quiproquó do vaudeville que da esticomitia grega. Isso porque, se, na esticomitia, há um
propósito de que haja um vencedor na discussão, sendo, por isso, um diálogo agonístico por
excelência, em Beckett, o âgoné justamente o jogo que se apresenta com menos força no
embate entre os jogos. O autor geralmente evita o desenvolvimento de suas tiradas de
pensamento ou a conclusãode seus monólogos. Os diálogos tropeçam na palavra final do
discurso de Lucky: são inacabados.Aparentemente, cada ideia, em sua formulação, é
extremamente simples, a tal ponto que podem parecer, em primeira instância, como uma
brincadeira trivial em que os vocábulos se tornaram palavras-objetos, palavras-brinquedo,
como num jogo de montagem e desmontagem.
Assim, se Beckett utilizaessa forma tradicional, ele o faz justamente minando os
dispositivos dessa retórica, numa construção que boicota propositalmente o bom
149BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.85. 150Idem.
94
acabamento das falas e fragmenta o diálogo,impedindo que a comunicação se efetive entre
os interlocutores:
Estragon:Enquanto esperamos, vamos tratar de
conversarcom calma, já que calados não conseguimos
ficar..
Vladimir: É verdade, somos inesgotáveis.
Estragon: Para não pensar.
Vladimir: Temos as nossas desculpas.
Estragon: Para não ouvir.
Vladimir: Temos as nossas razões.
Estragon: Todas as vozes mortas.
Vladimir: Um rumor de asas.
Estragon: De folhas.
Vladimir: De areia.
Estragon: De folhas.
Silêncio. (BECKETT, 2005, p.120-121)
É só aparente, portanto, em nossa visão, a presença da esticomitia tradicional.Isso
porque, além da introdução da elipse, há um descompromisso total entre os jogadores de
duelarem entre si. O verdadeiro adversário, aqui, é o tempo, e os passatempos com a
linguagem nada mais são que tentativas de driblá-lo. Valendo-se desse procedimento,
pulveriza-se o caráter de aforismo ou de uma verdade absoluta que qualquer fala pudesse
reivindicar. Para além da paródia, uma maneira de escapar a uma possível sugestão de
coincidência do real com a linguagem, revelando, antes de tudo, a tensão entre esses dois
elementos. Segundo Huizinga151, “uma das qualidades fundamentais do jogo reside na
capacidade de repetição, que não se aplica apenas ao jogo em geral, mas também à sua
estrutura interna”. Em quase todas as formas mais elevadas de jogo, os elementos de
151 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.13.
95
repetição e alternância (como no refrain) constituem como que o fio de tessitura do objeto.
A repetição, essa figura retórica, de tão caro emprego não apenas pelos clássicos, é
também usada por Beckett, que procede de duas maneiras: ora, numa única fala, a
personagem repete várias vezes o mesmo termo; ora reiterando o termo ou uma frase,
espaçadamente, tal como um tema musical ou leitmotiv, assim sublinhando ou evocando
umritornelo. Desse modo, a linguagem aparece recortada, em chavões repetidos de forma
recalcitrante sem fluidez ou elegância, como que em um retorno de um tema musical que,
sempre que se insinua, é interrompido ao longo da peça.
A repetição, com seus estribilhos e clichês,de incidência simultânea em diversos
níveis de Esperando Godotencena o tédio da vida, o interminável eterno retorno do
mesmo.Assim, calcada na repetição,é tecida, em diversas camadas, a dramaturgia da peça:
os silêncios, gestos, vocábulos e expressões se reiteram continuamente. A reapropriação do
passado pelos personagens, no entanto, não logra êxito. As reminiscências surgem como
lampejos, clarões que cegam a cada investida de resgate. É a falência da história, do ato de
narrar como transmissão da experiência. A mimicry aqui não serve a um propósito de
reconstituição dos acontecimentos. Ela é fundadora de uma nova forma de apreensão do
real, quando já se veem desgastados os dispositivos que, em outras circunstâncias, eram
válidos. Se por um lado a mimicry é um passatempo, e ludibria personagens e público, por
outro, ela cria condições para que o jogo prossiga com a suspensão do espaço e do tempo
delimitados.Conjugada àmimicry,alea, leva às últimas consequências o princípio da
imobilidade que rege o comportamento dos personagens, o “Nada a fazer”. Nesse conluio, o
jogo livre triunfa sobre o jogo instrumental, alea e mimicrycomprimem agôn, o jogo que
visava obter um resultado diante de uma situação em que os oponentes se encontram em
condições equânimes em uma disputa.A instabilidade semântica gerada pela primeira, ao
decompor as redes de relações semânticas constituídas por mundos referenciais, e
adesestabilização das máscaras promovida pela segunda, impedem que a peça se
encaminhe para um desfecho catártico, abandonando, em sua estrutura, a concepção
96
rigorosa de evolução, tão cara ao modelo aristotélico. O tempo é ora espiral, ora circular. O
plano de escapar quando a noite cair não é factível;não há sono ou descanso possível:
enquanto demandar a temporada, a peça, como um ensaio ininterrupto, repetirá,
exaustivamente, seus dois atos incompletos.
3.3.Agôn: o jogo em falso
Além da intervenção direta dos deuses em suas peripécias, Ulisses, o herói grego da
Odisseia, tinha como principal aliado para sua sobrevivência a astúcia (métis),representação
prototípica da “razãoinstrumental”152. Na modernidade, diferentemente do herói homérico,
ospersonagens de Beckett não se fiam na razão para “subsistirem”.Antes, aguardam as
imposições da sorte, alea. Estão sós, não há sombra divina que lhes dê guarida. A regra de
ouro, neste caso, para Vladimir e Estragon, é, como personagens que representam um
papel, fascinarem os espectadores, evitando que o erro ou tédio os conduza à recusa da
ilusão. Contudo, como cada investida para entretê-los vem acompanhada de seu fracasso,
mimicry e alea não estão sozinhas em Esperando Godot. Deixamos por último, em nossa
análise, uma das primeiras categorias do jogo verificadas pela crítica especializada nas
peças de Samuel Beckett: agôn.
A parábola dos dois ladrões153, evocada nos dois atos por Vladimir, parece traduzir
esse combate entre agôn e alea no interior da peça. “Sim, um dos ladrões foi salvo, é uma
boa porcentagem”, afirma Vladimir a certa altura. Seria por mera sorte (leia-se oportunismo)
que o ladrão fora salvo? Duas versões do episódio indicariam que as chances de salvação
152ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 153 Segundo Esslin, quando se indagava de Beckett qual seria o tema de Esperando Godot, ele por vezes fazia referência a uma das passagens dos escritos de Santo Agostinho: “Há uma frase maravilhosa em Santo Agostinho. Pena eu não me lembrar em latim. (...) Não se desespere: um dos ladrões foi salvo. Não seja presunçoso: um dos ladrões foi condenado.” E, às vezes, acrescentava: “A conformação das ideias me interessa mesmo quando não acredito nelas... A forma dessa frase é maravilhosa. E o que importa é a forma.” In: ESSLIN, Martin. O Teatro do absurdo. Samuel Beckett: a busca do eu.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, p. 47.
97
são equivalentes?Claro, há alta dose de ironia nas duas formulações e o paradoxo da
situação não se resolve ao longo da peça.
Agôn e Alea traduzem atitudes opostas e de certa forma simétricas, mas obedecem
à mesma lei: “a criação artificial entre jogadores das condições de igualdade absoluta que a
realidade recusa aos homens154.”Agôn é o jogo sob forma de competição, ou seja, como um
combate em que a igualdade de oportunidades é criada artificialmente para que os
adversários se defrontem em condições ideais, suscetíveis de dar valor preciso e
incontestável ao triunfo do vencedor. Trata-se sempre de uma rivalidade que se baseia
numa única qualidade (rapidez, resistência, vigor, memória, habilidade, engenho, etc.) “No
caso do agôn, o jogador conta apenas consigo, e assim se esforça e se aplica com todo seu
ardor155”.Alea, por sua vez, despreza o trabalho, a paciência, a habilidade e aqualificação.
Elimina, de uma só vez, o valor profissional, o domínio da técnica, a regularidade para dar
lugar à demissão da vontade e à sorte. Seu princípio fundamental é abolir com os
resultados acumulados. “É a desgraça total ou a graça absoluta.156” Se alea significa uma
entrega ao destino, agôn reivindica a responsabilidade individual.
Vladimir e Estragon estão no palco, e, se por um lado, são jogadores porque
resistem ali a partir da arte de improvisar (mimicry), portanto, abdicam de, como jogadores,
lançarem mão dos recursos de agôn. Didi e Gogô negam-se ao trabalho, esquivam-se do
uso de estratagemas ligados a habilidades tais como força ou inteligência, para resistirem à
catástrofe que se lhes impõe.
Antes, a atitude dos personagens insurge como uma insolente e soberana zombaria
ao mérito. Nenhum deles se dispõe a uma vida de trabalho, disciplina e fadiga. São
clochards, vagabundos, que nada esperam de si mesmos, sendoa única exigência que
154 CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.37. 155 Ibidem. p. 66. 156CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.37.
98
impõem a si,a proibição de queo espetáculo seja interrompido, mesmo que com os mínimos
recursos disponíveis. Esperar Godot é a única tarefa a cumprir, além de matar o tempo.
Benjamin,157 em “O narrador” descreve o desaparecimento gradual da arte de narrar.
A insurgência do mundo moderno é verificada na ruptura da tradição, pela fragmentação dos
discursos e pela separação entre apreensão subjetiva do real e mundo desencantado. “É
como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a
faculdade de intercambiar experiências158.”“Nesse contexto, a correlação entre vida e
palavra aos poucos se desfaz; a experiência comunicável é colocada em crise; a sabedoria
épica e a possibilidade de conselho (Rat) e da transmissão da narrativa já não se oferecem
espontaneamente num mundo comum159.”Beckett, contudo, transforma, paradoxalmente,
em experiência narrável a experiência de dissolução da palavra narrativa; seus clowns não
pretendem vencer o jogo, apenas não admitem serem vencidos por ele. São seresrotos,
párias, nômades, que só têm a anunciar fragmentos, relatos de um roteiro no qual faltam
muitas páginas. “O interesse do jogo é, para aqueles que competem, o desejo de ver
reconhecida a sua excelência num determinado domínio” 160.Agôn, portanto, consistiria uma
atenção persistente, um treino apropriado, esforços assíduos e vontade de vencer. Não é,
definitivamente, esse o propósito dos personagens de Beckett, tampouco dos modos de
fazer revelados pela carpintaria de sua escrita.
Suas narrativas se colocam assim, inacabadas, e não há mesmo uma preocupação dos
personagens em arrematá-las com sucesso. O jogo é um jogo feito para perder e a ironia, o
humor, é o recurso do qual se valem os personagens para se afastarem da ortodoxia do
157 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198. 158 Idem.
159OLIVEIRA, Luís Inácio. Do canto e do silêncio das sereias. Um ensaio à luz da teoria da
narração de Walter Benjamin. São Paulo: EDUC, 2008, p. 311.
160CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990, p.37.
99
pensamento que se fia em axiomas, cuja verdade se insinua como universal. Outro aspecto
da dissolução da sabedoria épica em Beckett é a inconstância dos personagens que não
pretendem dar às suas reflexões um desenvolvimento lógico de fundo cartesiano. Homo
ludus e homo ridens: o jogo e o riso unem-se para desacatar o sujeito cheio de certezas da
modernidade. Nietzsche afirmava que quanto mais o espírito está seguro, mais o homem
desaprende a gargalhada, necessária para sair da crença na razão e na positividade de
existência. O riso relaciona-se assim com a tragicidade da vida, mas também com a
capacidade de distanciamento. Em geral visto como manifestação de alegria, o riso pode
revelar o sofrimento em toda a sua crueza. Porque há também o riso nervoso do grotesco,
queremete ao mesmo riso de alguém, que, como num surto, tem vontade de rir numa Igreja,
num velório,mas é obrigado a conter o riso, dadas as circunstâncias. Nesse caso, o riso
seria decorrente de uma atitude histérica do sujeito, que deseja negar a objetividade do
evento que se dá diante de seus olhos; o riso se dá como vertigem, que confere uma
suposta superioridade àquele que ri, naquela situação limite, na qual o cadáver exposto lhe
dá dimensão de sua própria finitude161.
Mas não se trata disso em Godot, ou, pelo menos, não é o que acontece
comumente. Aqui o riso é contido, talvez levemente esboçado numa ironia nervosana qual a
gargalhada que extravasa a tensão não tem vez. A pergunta acerca do riso no grotesco em
Beckett tropeça no mais difícil complexo parcial de todo o fenômeno; com efeito, nele não
encontramos como motivo estranhador, o riso involuntário abridor de abismos, mas o riso
interrompido, que se contém, na figura de estilo da ironia, antes de qualquer explosão. Nos
diálogos entre Estragon e Vladimir, em várias ocasiões em que uma reflexão com fundo
tragicizante vem à tona, temos uma ruptura abrupta em que o princípio irônico de
composição implode os clichês de uma suposta superioridade humana, capaz de dar
sentido à existência:
161“Donald Hayword sugeriu uma interessante teoria de que a principal função da gargalhada seria avisar aos outros que não há perigo, e que agora podem relaxar, comer ou brincar. Demonstramos nossas emoções para os outros e as tomamos de volta.” Apud: SCHILDER, Paul. A imagem do corpo: as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p.90.
100
Vladimir:Não percamos tempo com palavras vazias.(Pausa. Com veemência) Façamos alguma coisa, enquanto há chance! Não é todo dia que precisam de nós. Ainda que, a bem da verdade, não seja exatamente de nós. Outros dariam melhor conta do recado. O apelo que ouvimos se dirige a toda humanidade. Mas neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. (...) Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha.
Estragon: É mesmo.
Vladimir: Ou que a noite caia. (Pausa) Estamos no lugar e hora marcados e ponto final. Não somos santos, mas estamos no lugar e hora marcados. Quantos podem dizer o mesmo.
Estragon: Multidões.
Vladimir: Você acha?
Estragon: Não sei.
Vladimir: É possível. (BECKETT, 2006, p. 161.)
Agôn sagra-se em uma disputa na qual a rivalidade se baseia em atributos tais como
rapidez, resistência, vigor, memória, habilidade e engenho. Ora, se, por um lado, não
reconhecemos essas características nos personagens de Beckett, por outro, um resquício
de permanecer em jogo se evidencia no impulso à repetição. Esse expediente não deixa de
ser também o despertar do desejo de ser bem sucedido na próxima tentativa, exatamente
onde se acaba de falhar.Nesse contexto, o agôn dá vez, gradativamente, na exposição dos
jogos daqueles caracteres fraturados que são as criaturas beckettianas a seres cuja ação
não corresponde a uma competição, mas a uma agonizante situação concreta, na qual
personagens e plateia buscam a todo custo a manutenção da ilusão dramática perdida. Ou
seja, o jogo, sob suspeição, já não evidencia seu vigor enquanto agôn, é necessário
travestir-se em mimicry e alea para prosseguir. No caso de Beckett, os personagens se
apresentam como figuras tragicômicas, que desejam apenas a repetição das tentativas, sem
que, ao final, lhes aguarde a vitória ou algum prêmio. É um jogo, mas um jogo em falso, no
qual a resistência em permanecer no palco e encarar os silêncios como réplicase faz mais
premente que o logro de qualquer resultado positivo.Entretanto, em Beckett, os
101
personagens jamais se rendem. “Falhar, falhar de novo, falhar melhor.162”A máxima que visa
ao mínimo estará presente até a prosa tardia do escritor.Assim, para todos os seus
personagens, o jogo não possui uma meta, mas é um fim em si mesmo: um rodízio de
apresentações de fracassos que impedem, contudo, que o jogo termine.Para Michel
Maffesoli163, a modernidade se fundou, progressivamente, sobre uma concepção muito
mecânica de tempo:
Um tempo útil, um tempo estritamente linear, um tempo projetivo.É o tempo da história individual, da história social. O tempo hegemônico, com um princípio e um fim “parece ter feito tábula rasa de qualquer outro tipo de temporalidade, em sua visão. (MAFFESOLI, 2003, p. 64)
Porém, com Beckett, estamos longe das certezas que dominaram a modernidade: há
intranquilidade no ar. Os personagens que esperam Godot encarnam uma percepção
temporal outra, num processo de eterno retorno que,se por lado se perfaz ecoando
fragmentos de um passado incompreendido, por outro, nas incessantes tentativas, insinuam
a possibilidade de um devir, de um vir a ser. Agem como tolos, como crianças,e, em suas
incansáveis tentativas, não visam a recompensas ou troféus. Não há catarse e ao final da
peça sabemos que “o jogo” continua, eles permanecerão ali, à espera de Godot.
O indivíduo moderno, átomo indivisível de um mecanismo do qual não é mais que
um elemento, é obrigado a desempenhar uma função precisa no mundo social, de uma
maneira unívoca, ao longo de toda existência. Essa função requer uma “máscara” que é
puramente funcional. “À imagem do tempo “homogêneo e vazio, do relógio de ponto de
fábrica, a máscara funcional, e o indivíduo que lhe serve de suporte, diz e repete
sempiternamente a monotonia da existência.164” A pessoa, em contrapartida, não é senão
uma máscara (persona); pontual, representa seu papel em uma comunidade, do qual jamais
162 “Tudo de outrora. Nada mais nunca. Nunca tentado. Nunca falhado. Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor.” Pra frente pior. In: BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Editora Globo, 2012, p. 65. 163MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003, p. 64. 164 Idem.
102
poderá, amanhã, escapar para expressar e assumir outra figura. Vladimir e Estragon,
contudo,nos fazem auscultar uma possibilidade de existência na qual também somos
convidados à mimicry, ao cultivo de nossas personas, numa sociedade em que papéis pré-
determinados não mais terão lugar.
O mito de Sísifo165, escrito por Camus em 1942, evocou ao mencionar este
episódio mitológico, a absurda condição do homem na sociedade moderna. Sísifo fora
condenado a carregar, por toda eternidade, uma pedra ao alto de uma montanha somente
para vê-la cair e ter de repetir a operação. Julgaram os deuses, à época, ser esse o mais
terrível dos castigos: “o trabalho inútil e sem esperança” A repetição exaustiva à qual se via
aprisionado Sísifo causava espanto e terror.Assim seria o homem moderno, cuja vida é
absurda, porque destituída de um sentido final, já que apesar do laborioso esforço que lhe é
dispensado, não conduz a nada.
O absurdo nasce do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do
mundo. O mito de Sísifo só é trágico porque seu herói é consciente de sua miséria. No caso
de Beckett, contudo, não há tomada de consciência absoluta: salvo um átimo de
clarividência de Vladimir a certa altura da peça, o que fazem os personagens de Beckett?
Esperam. Aguardam por Godot entretidos por passatempos e narrativas, brincam apenas. À
parte de toda sua prepotência e sua confiança na razão, seria o ser humano um pobre títere
nas mãos do acaso? Beckett nos apresenta seres em paulatina decomposição, que,
fadados à morte desde o dia do nascimento, se apresentam em sua obra como um uma
nova versão de Sísifo, poisguardam consigo uma espécie de infância intocada em seus
processos de apreensão do mundo.Clowns, mas também crianças– prosseguem
persistentemente com seus pequenos gestos, suas brincadeiras e encenações.
Sísifo realizava seu penoso labor nos Infernos – labor que constitui, para Camus, a
grandeza desafiadora do homem diante da inutilidade de seus esforços, visto que a rocha
165 CAMUS, Albert. O mito de sísifo.Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2010.
103
não permanece na montanha, sempre deslizando novamente para o sopé. O homem, na
visão beckettiana, contudo, não traz em si uma centelha sequer de grandeza, quiçá de
sabedoria. A rocha de Vladimir e Estragon torna-se um adereço de um número de comédia
no qual há uma completa dissolução do ego. Não há espanto, pois o espanto é o
escândalo da razão frente a um mundo absurdo. Seus personagens, no entanto, se movem
na ignorância, na esfera do não-saber.Gogô e Didi parecem reencarnar um novo Sísifo em
sua espera, parecido com o de Camus, mas com um novo matiz: não há assombro na
repetição contínua, mas humor, ironia. É esse estratagema elaborado por Beckett que os faz
habitar, simutaneamente, topografias em que o trágico e o cômico não mais se distinguem.
A solidão, o desespero e a incomunicabilidade entre os seres e o mundo de total imobilismo
que a peça apresenta são atravessados poruma dinâmica trágico-lúdica, na qual o riso,
ainda que cerrado, opera um dizer sim à vida, ao agasalhar, mesmo que de modo um tanto
desconfortável, a possibilidade de ironizar a condição humana via humor. Assim, a
imobilidade, em Beckett, não se trata simplesmente de uma espera contemplativa e passiva,
mas de uma atitude criativa que, por meio dos jogos irônicos presentes em sua linguagem,
produzem, a despeito da atmosfera de ataraxia que envolve os personagens, um incansável
desejo de afirmação, de liberdade.
Essas características combinadas na dimensão irônica da linguagem nos dão o
paradoxo básico na apreensão da subjetividade moderna, que Esperando Godot encena na
sua dimensão trágica e cômica: o dístico da humilhação do homem empírico e o
rebaixamento do sujeito transcedental. Descartes166, que afirmou o cogito como ponto de
partida da filosofia, reduziu ao mesmo tempo toda a realidade, inclusive a vida, a res
extensa, campo da matéria que obedece a leis mecânicas. O autor do Discurso sobre o
Método foi a expressão máxima do racionalismo de sua época. Mas, ao contrário de seus
contemporâneos, Descartes privilegiou a dúvida em detrimento da certeza para dar curso à
166 DESCARTES, DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Col. Pensadores, vol. XV, p. 248.
104
sua filosofia. Sua dúvida era tida por metódica, pois colocava em xeque todas as supostas
certezas, tanto do conhecimento sensível, quanto do intelectual, sendo o principal
pressuposto para o método cartesiano de investigação científica.A proposição de Decartes,
“Cogito, ergo sum”, na qual o pensamento consiste na prova da existência do homem,
pressupõe um ajuste perfeito entre o ser e o que ele pensa, diz e fala. Essa relação de
equivalência, no entanto, não se efetiva no universo de Beckett. Seus personagens são
andarilhos, não possuem consciência de nada; são párias, que não aspiram a nenhuma
forma de conhecimento ou mediação da realidade que o ato de pensar pudesse
proporcionar.
Beckett pode ser definido, sem entremeios, como um escritor cuja escrita encerra
uma série de ataques vigorosos e céticos a Descartes e à filosofia fundada pelo autor das
Meditações. “Em sua desconfiança da axiomática cartesiana, Beckett alinha-se a Nietzsche
e Heidegger, e a seu contemporâneo mais jovem, Jacques Derrida167”. A atitude satírica em
relação ao cogito cartesiano (estou pensando, logo devo existir) aproxima-se da decisão de
Derrida de revelar as premissas metafísicas por trás do pensamento ocidental:“não
podemos deixar de mencionar, senão uma influência direta de Beckett sobre Derrida, no
mínimo um caso notável de vibração em sintonia168”.Se o raciocínio está correto,
poderíamos pensar em Beckett como um precursor do desconstrucionismo:
“Parece que falo, não sou eu, de mim, não é de mim169.” Essa frase de O Inominável, como tantas outras de Beckett, ataca as fundações da longa tradição humanista da ficção autobiográfica e da autobiografia ficcional que surge com Robison Crusoé, passa por Grandes Esperanças e chega até Em busca do tempo perdido, como uma promessa consoladora de autoconhecimento. Nesse sentido, antecipa a noção elaborada por Derrida sobre a différance inevitável do discurso verbal: “o eu que fala é sempre diferente do eu de quem se fala, e assim o ajuste preciso entre a linguagem e a realidade vê-se eternamente postergado. (LODGE, 2009, p. 226)
167COETZEE, J.M.Mecanismos internos: ensaios sobre literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 213. 168 Idem. 169BECKETT, Samuel. O Inominável. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009, p. 29.
105
Desse modo, a idéia de subjetividade moderna que a peça traz não é um
humanismo, mas um anti-humanismo. Como observa Zizek170, “o humanismo caracteriza o
pensamento do Renascimento, que louvava o homem como pináculo da criação, o termo
mais elevado de seres criados.”Em contrapartida, a modernidade propriamente dita só
ocorre quando o homem perde seu lugar privilegiado e é reduzido somente a mais um
elemento da realidade- perdendo sua substancialidade, que em Beckett é acentuadamente
escancarada nas peripécias inúteis de seus heróis fracassados.
3.4 O jogo como profanação: a falência da empresa Ocidental
B: Por que você não se deixa morrer171? A: Eu tenho pensado nisso. B:(irritado): Mas você não faz isso! A: Eu não sou infeliz o suficiente. (Pausa.) Esta sempre foi minha infelicidade; infeliz, mas não o suficiente. Samuel Beckett, "Teatro I" (em Fins e Odds, 1976).
Martin Esslin foi um dos primeiros críticos a investir em uma sistematização da obra
de Beckett e de todo um conjunto de obras, às quais, incluindo Beckett, Adamov, Ionesco e
Arrabal num mesmo arrolamento, chamou de Teatro do Absurdo. Esse equívoco rendeu-lhe
alguma desconsideração por parte da crítica, mas é importante assinalar que sua leituraé
basilar para a compreensão das transformações do drama a partir daquele contexto e,
principalmente, para um entendimento de como se configurou a recepção da forma
dramática revolucionária apresentada pelo escritor irlandês. É na reinvenção crítica e 170ZIZEK, Slavoj.A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 222. 171B: Why don't you let yourself die?
A: I have thought of it.
B:(irritated): But you don't do it!
A:I'm not unhappy enough. (Pause) That was always my unhap, unhappy, but not unhappy enough.
BECKETT, Samuel. "Theatre I" (in: Ends and Odds, 1976).
106
renovadora dos elementos fundamentais que compunham a estrutura do teatro
tradicionalque se funda a dramaturgia trágica e cômica de Samuel Beckett.
Roger Blin, diretor responsável pela primeira encenação de Esperando Godot no teatro
Babylone, em 1953, disse certa vez: “Beckett é único em sua capacidade em misturar
escárnio, humor e comédia com a tragédia: suas palavras são simultaneamente, trágicas e
cômicas172”. Visto desta maneira, não haveria conflito entre o repertório de circo, vaudeville
e musical hall presente em diversas passagens da peça (queda das calças, quiproquós, jogo
com os chapéus e botas) e a intensa atmosfera trágica que atravessa esses eventos.
Enquanto velam pela presença de Godot, para se alhearem da paisagem desoladora
que os cerca, Vladimir e Estragon usam os recursos de que dispõem, inventando pequenas
distrações, na forma de disputas verbais e pantomimas. Gaiatices de toda sorte se
sobrepõem, nesse duelo com o tempo: jogos com botas e chapéus, anedotas; pequenas
narrativas inacabadas, canções; conversações exaustivas, incluindo reflexões acerca da
existência a partir de uma cenoura: esses são apenas alguns dos ardis encontrados por
esses dois vagabundos incansáveis, ao travarem um malogrado duelo com silêncio e vazio.
Nesses jogos, há traços explícitos do repertório cômico; são numerosas as gags com
base na comédia: calças que caem, tombos, cordas que arrebentam em malfadadas
tentativas de suicídio. Aspectos que remetem ao circo, vaudeville, music hall, comedia
dell’arte, além de números alusivos aos famosos comediantes americanos da época,
Charles Chaplin, Buster Keaton, Os Irmãos Marx eLaurel and Hardy 173.Se, por um lado, é
possível perceber indiscutíveis elementos do universo cômico, por outro não há, contudo, o
mesmo efeito que ele proporciona em circunstâncias usuais. Em Esperando Godot, o humor
surge estranhamente conjugado a um retesamento, que não permite o riso franco, a
gargalhada ostensiva, nem o alívio da tensão, que tradicionalmente acompanha o gênero. 172 FLETCHER, John. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot./Endgame/ Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.79. 173Beckett admirava o cinema mudo e a tradição do music-hall presente nesses filmes. A troca de chapéus frenética em uma das cenas memoráveis da peça, por exemplo, tem seus malabarismos inspirados em um filme dos Irmãos Marx, Duck Soup, aludindo também a “gags” de Laurel and Hardy, aqui no Brasil conhecidos como “O Gordo e o Magro”.
107
A peça,como reconhecem os críticos, pega seus modelos no vaudeville, na mímica, no
circo, no teatro e revista, na comédia do cinema mudo, e em última análise nas origens
desses gêneros: a farsa, medieval e posterior. Alain Badiou174 vai mais longe: para ele, os
caracteres cômicos presentes na peça partem de Aristófanes, Plauto, passando por Molière
para chegarem, finalmente, a Chaplin. Segundo Blin175, é muito provável que, ao escrever
Godot, Beckett tenha se inspirado, em alguma medida, em quatro personagens
interpretados por aqueles que foram os grandes comediantes americanos da época. O
primeiro diretor de Godot afirma que até ele próprio, enquanto pensava na concepção da
peça, estava verdadeiramente obcecado por eles e, um dia, teve uma visão súbita dos
personagens tais como os concebia: “eram, na forma ideal, Charlie Chaplin, como Vladimir,
Buster Keaton, como Estragon e Charles Laughton como Pozzo”. Vislumbrar a encenação
com tais atores não deixa de ser um interessante exercício de imaginação: Buster Keaton, o
melancólico, como registra seu epíteto, “palhaço que não ri”, de fato, encarnaria um bom
Estragon. Já Chaplin, no papel do segundo,daria a Vladimir contornos de Carlitos, o
vagabundo que despertava o riso e o pranto, em suainabilidade de lidar com as
transformações da vida moderna.Entretanto, não foi assim que as coisas se deram. Ele
mesmo,Blin,foi intérprete de Pozzo e, mais tarde, de Estragon, o que não impediu que a
peça alcançasse sucesso retumbante, embora não imediatamente à ocasião de sua estreia.
Em Esperando Godot interpõem-se, enredam-se e duelam tons do trágico e do
cômico.Apesar de Beckett tê-la definido na tradução para o inglês como “uma tragicomédia
em dois atos”, há uma ampla discussão acerca da presença ou não do trágico na obra de
Beckett. A crítica americana Ruby Cohn176, por exemplo, cunhou o termo comitragédia para
a peça,já que esta não oferecia a mesma estrutura da tragicomédia tradicional. De fato, a
tragicomédia clássica consiste em um drama no qual são combinadas as qualidades da
174BADIOU, Alain. L'increvable désir. Paris: Hachette Littératures, 1995. 175 Cf. Blin, Roger. Apêndices. Apud: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. e prefácio: Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 204. 176 COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutgers University Press, 1962.
108
tragédia e da comédia, em geral sendo um espetáculo principalmente de caráter trágico, que
se encaminha para um final feliz, o que não acontece na estrutura circular de Esperando
Godot. No desfecho da peça,as calças de Estragon caídas até os calcanhares, em mais
uma tentativa de suicídio fracassada, fazem com que os personagens retomem o mote da
espera.
Dada a natureza repetitiva em que se estrutura, insinua-se que a encenação não
terminou: quando se fecham as cortinas, nos despedimos dos dois clochards imóveis, numa
atmosfera que sugere que tudo recomeçará novamente. Privado de uma catarse,restaao
espectador desorientado, o confronto com a patética condição dos personagens,matizada
pelo desalento da espera sempre adiada, que permanece em suspensão.
Em nossa perspectiva, a experiência trágica e cômica da peçaacontece em sua
materialidade, na trama da sua linguagem, sendo bem menos producente buscá-la a partir
de um suposto eixo temático. É na própria forma, a partir de um método teatral cuja partitura
consiste no entrechoque deelementos heterôgeneos de linguagem, que se dá uma cadeia
de ebulições que torna indistinta a fronteira entre os gêneros.Isso porque os tons do trágico,
na peça,são indissociáveis de seus elementos cômicos, que se evidenciam, não só por meio
dos diálogos, mas também pelo manejo em cena dos objetos, pelo gestual dos
personagens,sua movimentação no palco e silêncios.
O traço inovador de Esperando Godot, no que tange a uma poética de gêneros, reside
na indeterminação entre as fronteiras entre o trágico e o cômico. Tal discernimento não
opera apenas no curso de sua estrutura, que desconstrói a ordem tradicional da
tragicomédia clássica, mas na construção de cada enunciado cujo caráter ambivalente se
impõe de forma intermitente, sendo-nos impossível pinçar situações exclusivamente
cômicas ou absolutamente trágicas. São, portanto, da ordem do grotesco, dado que seja
impossível a dissociação dos gêneros, amalgamados que estão na escrita beckettiana.
Ogrotesco aparece diante de nós como o lugar, o advento de uma impossibilidade. Mas
esta impossibilidade passa a ser também, talvez, a primeira palavra que é responsável pela
expressão. Isto resulta em ditos paradoxais, palavras e gestos que podem ser qualificados
109
como estranhos porque se desviam de quadros realistas que poderiam ser justificados pela
razão. Porém é essa impossibilidade fundadora, originária, em que se inscreve a própria
linguagem e suas limitações, que a palavra grotesca torce e retorna o emprego contra seu
natural significante, contra a sua lógica de produção de sentido: ela se utiliza para dar uma
visibilidade às formas. Aí reside a tentativa de Beckett em extrapolar a potência da língua
em uma sub-linguagem, que, no desconcerto de seus jogos, é capaz de impor diretamente
suas formas com o alcance de seus lampejos, redimensionando leitores e espectadores
para a realidade fundada em seu mundo ficcional.
De fato,as leituras que tentaram identificar a natureza do cômico em Esperando
Godotforam muitas. Geneviève Serreau177, em um artigo intitulado “Beckett’s Clowns”,
chamava atenção para os elementos presentes na peça que pertencem ao universo
“clownesco”.A indicação de que todos devem usar chapéu-coco, a entrada espetacular de
Pozzo e Lucky, a menção de número de circo, quando Pozzo acossa Lucky com seu
chicote,além da pantomima dos chapéus, são aspectos que, em sua opinião, aproximam a
peça dessa tradição circense. Serreau compara os diálogos aos diálogos dos clowns
profissionais, que, alimentados pela diferença de temperamento dos personagens, dão
curso à cena com seus duelos verbais. Uma tradição que remonta a Zanni da Comédia
Italiana, petulante e ativo, confrontando com o segundo Zanni, lesado e pacífico. Faz
alusões também à oposição tradicional entre Clown Blanc e Auguste (François et Albert
Fratellini). Serreau, no mesmo artigo, assinala a importância do jogo na peça. Tudo seria
jogo em Esperando Godot,“é esse jogo que separa os protagonistas do nada, a única arma
que eles ainda têm para lutar contra o vazio, para suportar o insuportável da espera”.
Segundo ela, essa “atividade incessante, de intensa vitalidade”, que sustentaria a presença
dos personagens em cena, poderia ser comparada aos movimentos de “uma afogado que
se debate entre as ondas para manter a respiração e salvar sua pele178.”
177 Cf. SERREAU, Geneviève. Beckett’s Clowns. In: COHN, Ruby. In: Casebook on Waiting for Godot.New York: Grove Press, 1967, p.171-175. 178Cf. SERREAU, Geneviève. Beckett’s Clowns. In: COHN, Ruby. In: Casebook on Waiting for Godot.New York: Grove Press, 1967, p.171-175.
110
Decerto, uma imagem tão desesperadora, como a de um afogamento em processo,
não pode comportar apenas subsídios cômicos. A visada de Serreau é bem conivente com
a interpretação existencialista da época, que, em coro com Sartre, se debruçava na luta
entre o Ser e o Nada. Tal combate seria a tentativa do homem condenado à liberdade em
edificar sua máscara social, que, diante de inúmeras possibilidades, plasmava sua
identidade a partir de suas escolhas, a partir de sua inteira responsabilidade. A diferença
fundamental, contudo, entre os personagens de Beckett e a doutrina de Sartre, no que tange
a esse processo de tomada de consciência, é que, nos caracteres exaustos do primeiro, não
se observa nenhum senso de responsabilidade em suas ações, que não seja a irredutível
atitude de espera por Godot.
Tanto a tragédia como a comédia tiveram origem no jogo179, em um ritual público em
que se imiscuíam o lúdico e o religioso, no qual toda a comunidade estava envolvida. A
comédia ática nasce do kommos licencioso das festividades dionisíacas. Somente numa
fase posterior ela se transformou em um exercício conscientemente literário, e, mesmo
nessa fase, na época de Aristofánes, Eurípedes, Ésquilo e Sófocles, conservou inúmeros
aspectos de suas origens dionisíacas.
“No decorrer do cotejo do coro, chamado parabasena comédia, o coro dividia-se em filas
e movimentava-se para trás e para frente, voltando-se para o público e apontando as
vítimas, com frases de escárnio.180” O vestuário fálico dos atores assim como as máscaras
animais com que os elementos do coro se disfarçam são vestígios da remota antiguidade.
“Não é apenas por capricho que Aristófanes usa as vespas, os pássaros e as rãs como
tema de suas comédias; o fundamento dessa escolha é toda tradição teriomórfica.181” Do
mesmo modo, também a tragédia não é, em sua origem, uma reprodução voluntariamente
literária do destino humano. Originalmente era uma coisa muito distante da literatura
179 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura.São Paulo: Perspectiva, 2010, p.160. 180 Idem. 181Idem.
111
destinada ao palco, era um jogo sagrado ou um ritual. Com a passagem do tempo, contudo,
a “representação” dos temas míticos tornou-se uma interpretação teatral, com mímica e
diálogos, de uma série de acontecimentos que constituem uma história com enredo.
Bem mais tarde, “os artistas românticos e pós-românticos ainda concebiam a arte com
algum conteúdo soteriológico” 182. A arte possuía um compromisso com a salvação, era uma
espécie de curadora espiritual. Aos líderes do “estilo-moderno” coube moderar as ambições
da criação estética. “A arte-magia se converte, com eles, em arte-jogo.” 183O
ascetismoestético cede o passo a um ludismo irônico, a uma seriedade ambivalente,
“imbuída do senso de máscara, convicta de que todo gesto artístico é transfiguração
semiconsciente, imitação necessária, “mentira” indispensável ao vislumbre da realidade”.
O romantismo supervalorizava a subjetividade em detrimento do saber racional; o
pensamento de Schopenhauer, cultuado pelos pós-românticos, atribuía à música o dom de
alcançar a verdade, dirimindo as ilusões da percepção ordinária; mas a estilística praticada
pelos modernos parece ter adotado antes a estética apregoada por Nietzsche184, “que
colocando a arte novamente sob o signo de Diônisos, o deus máscara, nela reconheceu
uma positiva vontade de enganar”.
Assim o estilo moderno abandonou a impostação soteriológica do processo artístico por
uma adesão à arte- jogo – e isso, tanto no plano do conteúdo quanto da forma.Jogo quanto
ao conteúdo185,no tratamento parodístico dos sentimentos e situações. “A lírica moderna
instala uma flutuação no seu próprio phatos, não se contentando com o simples exílio
patético temático. De Rimbaud a Joyce, enorme parte da literatura moderna consiste em
criptoparódias, sátira dissimulada.”186 Toda a arte moderna tende a brincar com seus temas,
mesmo quando os leva terrivelmente a sério.
182 CUNHA, Helena Parente. Portella, Eduardo. Castro, Manuel Antonio de. Pandolfo, Maria do Carmo. Sodré, Muniz. Silva, Anazildo Vasconcelos. Teoria Literária. Gêneros e narrativas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 42, 1975, p. 84-88. 183 Ibidem. p. 84. 184 Idem. 185 Ibidem. p. 85. 186CUNHA, Helena Parente. Portella, Eduardo. Castro, Manuel Antonio de. Pandolfo, Maria do Carmo. Sodré, Muniz. Silva, Anazildo Vasconcelos. Teoria Literária.Gêneros e narrativas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 42, 1975 p. 85.
112
Em estreita conexão com a rejeição à sátira pura e simples está o recuo da visão
unicamente tragicizante e sua aglutinação com a ótica grotesca. “Do declínio da visão
tragicizante unívoca resultou a morte do “herói” e o aparecimento de anti-heróis como
Gregor Samsa, Joseph K. (A Metamorfose, O Processo), Leopold Blomm (Ulisses), ou Ulrich
de O Homem sem Qualidades, de Musil187.”
Mas a arte moderna também é jogo quanto à forma, porque é resolutamente
experimentalista. O pleno experimentalismo é uma conduta reservada ao ânimo lúdico dos
modernos. Só com o advento da arte moderna ocorre a dessacralização da forma que
possibilita o jogo das linguagens experimentais. “O fundamento dessa dessacralização é
conhecido: “é o fim da obra-fetiche. A produção artística transfere as virtudes da “obra” – os
valores do “bem feito”, do bom “acabamento”, da forma “cinzelada”, etc. para o domínio das
ideologias em eclipse.
Poucos como Beckett incorporaram à sua obra esse jogo de dessacralização. O
“horizonte laico” percorrido por seu teatro e prosa aposta, sem concessões, em uma atitude
regressiva188tanto no plano da forma quanto no do conteúdo, que leva às últimas
consequênciasuma estética da banalidade, na qual o sublime,se não é definitivamente
banido, passa por um radical processo de reelaboração. No plano formal, fugindo do
espectro de Joyce189, a quem considerava uma espécie de pai literário, Beckett optou por
uma estética do menos, por uma escrita depauperada que investia cada vez mais em um
empobrecimento da linguagem em contraponto à exuberância da escrita joyceana. Essa
admiração ao conterrâneo determinou em certa medida a escolha em escrever parte de sua
obra em francês: para Beckett, em um idioma estrangeiro, ele poderia alcançar seu objetivo
187 Idem. 188 O Work in regress, como ele mesmo chamou, em contraponto ao work in progress de Joyce. 189 Em entrevista, Beckett afirmou certa vez: “Quanto a Joyce, a diferença é que ele é supremo manipulador do material – talvez o maior. Fazia as palavras trabalharem ao máximo. Não há uma sílaba que seja supérflua. Numa obra como a minha, não sou senhor do meu material. Quanto mais Joyce sabia, mais podia. Ele tendia para a onisciência e a onipotência como artista. Eu lido com a impotência, com a ignorância. (...)” Apud: ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: osilênciopossível. São Paulo: Ateliê Editorial, p.187. Algumas Entrevistas. Uma entrevista com Beckett – Israel Shenker no New York Times (5.5.56, 11,1,3)
113
de “escrever mal".A língua francesaemprestaria à sua literatura uma forma mais despojada,
tornando-a menos susceptível aosvícios de estilo de que estariaimpregnada a língua
materna.Ao mesmo tempo, tornaria o princípio de composição de sua escrita, pautado na
vulnerabilidade, mais evidente. “É mais fácil escrever sem estilo em francês190”, disse
Beckett, certa vez.
No que diz respeito ao conteúdo, Beckett operou uma dessacralização dos temas, que
transcende à paródia, pois não se restringe à mera sátira, à simplificadora oposição
deliberada aos temas. Agamben191 nos fala sobre esse tipo de deslocamento:“Profanar
significa abrir possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação,
ou melhor, faz dela um uso particular”. A passagem do sagrado ao profano pode acontecer
também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente com o
sagrado. Trata-se do jogo.
Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim a “profanação” do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos. É comum, tanto nesses casos de profanação do sagrado, a passagem de uma religio, que já é percebida como falsa ou opressora, para a negligência como vera religio. E essa não significa descuido (nenhuma atenção resiste ao confronto com a da criança que brinca), mas uma nova dimensão do uso que crianças e filósofos conferem à humanidade. (AGAMBEN, 2007, p.07).
A poética da cena de Beckett brinca prontamente com toda a tradição judaico-cristã. A
todo o momento são mencionados elementos que fazem parte dessa herança, porém
Beckett o faz de forma completamente descomprometida com o contexto em que foram
190 Cf. SOUZA, Ana Helena. A tradução como outro original. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p.121. 191AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: 2007, p.06.
114
enunciados em primeira instância. Em uma ocasião192 o autor fora perguntado a respeito do
uso reincidente de elementos do cristianismo em sua obra: "Cristianismo" - disse a alguém
que o inquirira a respeito"é uma mitologia que conheço, então, naturalmente, irei usá-la193".
Em outras palavras, eleestá interessado em mitologias para uso próprio no sentido de
apropriação. De maneira que os elementos dos quais dispõe serão redimensionados em um
novo jogo,que promoverá deslocamentos e distorções de matrizes e sistemas. Como ele
disse para outro entrevistador: "Eu não estou interessado em nenhum sistema. Eu não
posso ver qualquer traço de sistema em nenhum lugar."194
Por seu turno, Ruby Cohn195, crítica literária americana, é enfática nanecessidade de
uma contextualização cultural para um completo entendimento do drama beckettiano.Porém,
a base de sua leitura é de que a obra de Beckett é a“última vala teatral” contra o colapso
dos valores da civilização ocidental. O processo de demolição para alcançar tal efeito se dá
na implosão da forma teatral em que se baseava a tríade aristótelica – ação, tempo,
espaço,considerada fundamental para a composição da cena até então.
Jacques Ranciére196, em sua obra A partilha do sensível, chama-nos a atenção com uma
interessante assertiva: “O real precisa ser ficcionalizado para ser pensado”. Em sua
perspectiva, “escrever a história e escrever histórias pertencem ao mesmo regime de
verdade”. O que comunica a frágil experiência dos personagens de Beckett?O tom é trágico,
o cenário, assustador, e poderíamos chamar de otimista a insistência das personagens em
persistirem naquele espaço. Vladimir e Estragon não estão propriamente regozijantes;
Pozzo e Lucky também estão descontentes por estarem ali; estes quatro seres vão e
retornam neste espaço aprisionado, pois eles falam e esquecem-se do que acabaram de
dizer, falam e suportam, fazendo gestos para sentirem-se vivos, e insinuam, de alguma 192 FLETCHER, John. A Faber Critical Guide: Samuel Beckett. London:Faber and Faber Limited, 2000, p. 49. 193 Idem. 194 Idem. 195 BOXALL, Peter. Samuel Beckett: Waiting for Godot/Endgame. A reader’s guide to essencial criticism. New York: Palgrave Macmillan, 2013, p.83. 196 RANCIÈRE, Jacques.A partilha do sensível. Ed.34, 2005, p. 58.
115
maneira, que tudo é inútil. Mas eles não estão tristes. Como observou Ludovic Janvier197 “A
espera de Godot não é o inferno, é um lugar neutro, e há até mesmo certa felicidade no
mais negro de seu abandono, no que deveria ser sentido como escuro, mas que é apenas a
totalidade da condição humana”.
Freud, em O Mal Estar na Civilização, ao analisar a sociedade ocidental,chegou à
conclusão de que o programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é
inexequível em virtude das renúncias que somos obrigados a fazer para a manutenção dos
principais elementos reguladores daquilo a que chamam de civilização.Nesse sentido, a
felicidade deve estar subordinada à disciplina, ao sistema estabelecido da lei e da ordem. O
sacrifício metódico da libido, a sua sujeição rigidamente imposta às atividades e expressões
sociais úteis são os pilares da cultura moderna.Em sua teoria, o princípio de realidade
sacrifica o princípio do prazer, em prol do que se chamou de progresso, na civilização
ocidental.
A questão da finalidade da vida humana já foi posta inúmeras vezes. Jamais encontrou resposta satisfatória, e talvez não a tenha sequer. Muitos dos que a puseram acrescentaram: se a vida não tiver finalidade, perderá qualquer valor. Mas esta ameaça nada altera. Parece, isto sim, que temos o direito de rejeitar a questão. (...) Novamente, apenas a religião sabe responder à questão sobre a finalidade da vida. Dificilmente erramos, ao concluir que a ideia de uma finalidade na vida existe em função do sistema religioso. (FREUD, 2010, p.29)
De fato, a obra Esperando Godot pode ser lida como testemunha de um momento
histórico em que agoniza, frente às instituições, a ideia de sujeito. As duplas Estragon-
Vladimir, Pozzo-Lucky são retratos fiéis dessa decadência, pois é claro, a qualquer um que
leia a peça ou a assista, que os clowns de Beckett abdicaram de um dos principais preceitos
da civilização: serem felizes. Antes, são caracteres para os quais a vida não possui qualquer
finalidade específica, além de esperar Godot. A crise da ação é sintomática; ela reverbera a
crise do sujeito, nas fissuras do eu e de sua capacidade de desejar. Sem funcionar como
bengala metafísica, os temas pertencentes ao imaginário religioso198 aparecem reduzidos a
197JANVIER, Ludovic. Cyclical Dramarturgy. Apud: COHN, Ruby. (Org.)Casebook on Waiting for Godot. New York: Grove Press, 1967, p.170. 198Para Freud, a religião estorva esse jogo de escolha e adaptação, ao impor igualmente a todos o seu caminho para conseguir a felicidade e guardar-se do sofrimento. Sua técnica consiste em
116
simples substrato material para a manutenção da conversação entre os personagens. Em
seus jogos verbais, ao se reportarem à mitologia judaico-cristã,rechaçam quaisquer
possibilidades de compreensibilidade do mundoque parta de seus compêndios.
Em uma de suas obras mais influentes, Samuel Beckett: The Comic Gamut199, Cohn
realiza uma análise rigorosamente detalhada e esclarecedora da maneira em que os
dispositivos cômicos foram empregados por Beckett em todo o conjunto de sua obra. O
tema dominante desta leitura é que o humor de Beckett reflete criticamente sobre a morte de
uma civilização que, no entanto, continua a informar criativamente a imaginação
contemporânea. A obra de Beckett representa, acima de tudo, um mundo que tem sido
desertado pelos valores éticos, morais e culturais que são utilizados para sustentá-lo -"a
ação dramática apresenta a morte do estoque de adereços da civilização ocidental - coesão
familiar, devoção filial, amor parental e conjugal, fé em Deus, conhecimento empírico e
criação artística.”Sua leiturademonstra até que ponto o drama beckettiano é absolutamente
cheio de referências a uma empresa degradada e empobrecida, que é tradição clássica
ocidental. Para Cohn, Esperando Godot, apresenta os ecos bíblicos como ecos
zombeteiros, “provavelmente porque o cristianismo (tal qual o amor, outro grande alvo de
Beckett) parecia prometer tanto para o homem”200.
No teatro de Beckett, este comentário irônico sobre o colapso de nossas bases de apoio
se estende ao trabalho artístico, pois, como dizia Aristóteles, na Poética, a comédia
apresenta caracteres pouco nobres, que não são dignos de admiração. Assim, até mesmo
rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência. “A este preço, pela veemente fixação do infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual. Mas pouco mais que isso. Quando o crente se vê obrigado a falar “dos inescrutáveis desígnos” do Senhor, está admitindo que restou, como última possibilidade de consolo e fonte de prazer no sofrimento, apenas a submissão incondicional. E, se está disposto a isso, provavelmente poderia ter poupado o rodeio.” FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferâncias introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.42. 199 COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut.New Jersey: Rutgers University Press, 1962. 200 Cf. Ruby Cohn in: BOXALL, Peter. Samuel Beckett: Waiting for Godot/Endgame. A reader’s guide to essencial criticism.New York: Palgrave Macmillan, 2013, p.83.
117
os atores, ao interpretarem os farrapos humanos, que são as criaturas beckettianas, são
convidados a se retirarem de sua zona de conforto; as ações elevadas, próprias dos
personagens trágicos, são substituídas por gestos cômicos, destituídos de qualquer
nobreza.Além de um abalo sistemático, digamos assim, nos mecanismos de sublimação e
de proteção do ego - que, para um ator que se proponha a fazer uma personagem
beckettiana, podem se mostrar, ao longo do processo, sensivelmente fragilizados. Suas
peças, segundo Cohn, anunciam oréquiemda lógica e da literatura. “Evocativa de ambos os
afetos, compaixão e derrisão, os vagabundos de Beckett nos apresentam uma imagem de
nós mesmos.201”
Cohn demonstra que as alusões bíblicas que aparecem com reincidência em Esperando
Godot encontram-se completamente distorcidas do contexto em que foram enunciadas. A
parábola dos dois ladrões, por exemplo, extraída do Evangelho de São Lucas, aparece mais
como um paradoxo que intensifica a perplexidade diante da existência do queuma narrativa
da qual se possa retirar algum sentido elucidativo da vida humana. O episódio da peça
sugere que a existência é baseada em um senso de oportunidade,e, por extensão, a vida
humana é baseada em mero acaso. Vladimir pergunta a Estragon se ele já lera a Bíblia.
Estragon: A Bíblia...? (Pensa) Devo ter passado os olhos.
Vladimir: Lembra dos Evangelhos? Estragon: Lembro dos mapas da Terra Santa. Coloridos. Bem bonitos. O mar Morto de um azul bem claro. Dava sede só de olhar... (...)
Vladimir: Onde é que eu estava? E seu pé, que tal? Estragon: Inchado. Vladimir: Ah, é, os dois ladrões. Você lembra da história? Estragon: Não. Vladimir: Quer que eu conte? Estragon: Não.
Vladimir: Ajuda a passar o tempo. (Pausa) Dois ladrões,crucificados lado a lado com o nosso Salvador. Um deles... Estragon: Nosso o quê?(BECKETT, 2006, p.24.)
Vladimir tenta entender a parábola e solicita que Estragon atenda às suas réplicas para
que o assunto prossiga. Estragon, contudo, lhe dá somente respostas evasivas. Resgata
reminiscências de um suposto passado amoroso, fala dos pés que lhe doem, age com 201 Idem.
118
alheamento às referências bíblicas e às menções de elementos do imaginário cristão.
Vladimir,no entanto, não se faz de rogado: cita os quatro evangelistas, e busca entender o
por quê de só dois terem mencionado o episódio dos ladrões, sendo que apenas um deles,
São Lucas, garante que um dos ladrões fora salvo. A salvação seria determinada pelo acaso
também? De acordo com o Evangelho, os discípulos de Jesus estavam presentes durante a
sua crucificação e assistiram um, dos dois ladrões que foram crucificados ao lado de Jesus,
ser salvo. Todos os quatro discípulos estavam presentes, mas apenas dois deles afirmam
que algo fora do comum aconteceu,sendo que,somente um delesdará a versão de que de
fato houve a absolvição.
Com efeito, é realmente difícil imaginar como, em uma situação limite como aaquela na
qual se encontravam Cristo e os ladrões, fosse possível agir de maneira diferente àquela do
larápio, que resolvera arrepender-se dos pecados ali mesmo e fora absolvido por isso. Por
outro lado, o desespero do ladrão que não foi salvo, também é compreensível: como
regatear estando pregado numa cruz?
Vladimir: Como é possível que, dos quatro evangelistas, só um fale em ladrão salvo? Todos quatro estavam lá – ou por perto – e apenas um fala em ladrão salvo. (Pausa),Vamos lá, Gogô, minha deixa, uma vez em mil. (BECKETT, 2006, p.24.)
Além das relações intertextuais mais explícitas, há também evocações mais veladas à
questões concernentes ao universo religioso. Vivian Mercier202faz uma analogia à espera de
Estragon e Vladimir ao Purgatório. Para ele, esse é um outro conceito teológico queem
Beckett tornou-se extremamente útil para fins estruturais.O crítico afirma que, embora o
assunto não fizesse parte da tradição protestante na qual ele cresceu, é bem possível que a
atmosfera lhe tenha tomado a imaginação a partir da leitura de Dante, por quem o autor
tinha grande admiração. E não deixa de ser alusiva a espera de Estragon e Vladimir à
espera de Jó, com a não insignificante diferença de que Jó, apesar de todos os sofrimentos
que lhe foram infrigidos, gozava da interlocução divina, enquanto aos dois clochards de
Beckett resta apenas o silêncio do absoluto.
202MERCIER, Vivian. Beckett/Beckett. New York: Oxford University Press, 1977, p.136.
119
Mas há outras referências mais diretas. Em outra ocasião, em mais um exercício de
conversação para “passar o tempo”, tem-se,mais uma vez, uma atitude derrisória em
relação ao imaginário judaico-cristão.Ao criar um deussem faltas, onipresente e onisciente,
cujas feições foram forjadas à imagem e semelhança dos seres humanos, a teologia
ocidental revelou sua inaptidão para a modéstia:
Vladimir: Mas você não pode andar descalço. Estragon: Jesus andava. Vladimir: Jesus! Olha só o que você está dizendo! Não vai querer se comparar a ele? Estragon: A vida toda me comparei. Vladimir: Mas por lá fazia calor! Não chovia! Estragon: É. E crucificaram rápido.Silêncio. (BECKETT, 2006, p.24.)
O sofrimento que se arrasta e desconhece sua causa é mais intenso que o sofrimento
que é rapidamente extirpado.No Ato I, quando Pozzo e Lucky entram em cena e Estragon o
toma por Godot. Após alguma confusão, em que Vladimir e Estragon distraem-se com jogos
verbais sobre a origem do desconhecido, Pozzo, que julga-se poderoso e dono daquelas
terras, ameaça Vladimir e Estragon, por esses relutarem em reconhecê-lo e legimarem de
pronto sua autoridade, irritando-o, com suas réplicas e contra-réplicas.
Estragon: Não somos daqui, meu senhor.
Pozzo(estacando): Mas ainda assim, são seres humanos. (Coloca os óculos)Até onde se vê, pelo menos. (Tira os óculos) Da mesma espécie que eu. (Explode num riso aberto) Da mesma imagem que Pozzo. Feitos à imagem de Deus. (BECKETT, 2006, p.24.)
Esse primeiro gesto de identificação, no qual Pozzo equipara-se a Deus para, em
seguida, comparar-se a Vladimir e Estragon, estabelece, já em princípio, uma hierarquia na
sua intenção de aproximação com o modelo divino. Porém, depois de conseguir a adesão
de Didi e Gogô como interlocutores, Pozzo diminui ainda mais a importância dos dois em
contraponto à sua própria figura: Pozzo:“Vejam vocês, caríssimos, não posso passar tanto
tempo sem a companhia de meus semelhantes (observa seus semelhantes), mesmo
quando a semelhança é um tanto imperfeita.” Quando, porém, Vladimir ameça ir embora,
Pozzo tenta alcançar-lhe a atenção, anunciando um número de circo. Ao pedir que Lucky
pegue a banqueta, Pozzo blefa mais alto : “Ele não consegue suportar a minha presença.
120
Talvez eu não seja particularmente humano, mas isso é lá motivo?” Argumenta para que
fiquem, falando sobre os perigos da noite, valendo-se da possibilidade da chegada de
Godot... Quando finalmente consegue por um átimo que o escutem, dada a curiosidade
despertada em relação à figura de Lucky, Pozzo se volta a sua plateia recém formada com
uma série de clichês, apesar do alheamento de ambos às suas falas:
Estragon:Por que ele não põe a bagagem no chão? Vladimir:Também eu ficaria feliz em conhcê-lo. Também eu ficaria feliz em conhecê-lo.Quanto mais gente conheço, mais feliz eu fico. Até da maishumilde dascriaturasnós nos despedimos mais sábios, mais ricos, mais seguros de nossas bençãos. Até vocês...(encara-os atentamente, primeiro um, depois o outro, a fim de que ambos se percebam visados) até vocês, quem sabe, me acrescentarão alguma coisa. Estagon: Por que ele não põe a bagagem no chão?(BECKETT, 2006, p.24.)
Quando, no ato II, Pozzo novamente irrompe a cena, recomeça o jogo sobre seu nome,
pois Estragon não consegue reconhecê-lo. Nesse episódio é Valdimir que mostra-se
entediado em relação à retomada do mesmo mote, insinuando que a discussão em torno de
Pozzo e suas inclinações metafísicas acerca de seu lugar no mundo já não interessam
mais.
Vladimir: Estou dizendo que se chama Pozzo. Estragon:É o que veremos. Deixa eu ver. (Pensa) Abel! Abel! Pozzo: Aqui. Vladimir: Estou ficando cheio desse tema. Estragon: Talvez o outro se chame Caim. (Chama) Caim! Caim! Pozzo: Aqui. Estragon: A humanidade inteira!(Silêncio)Olhe aquela nuvenzinha. (BECKETT, 2006, p.169-170.)
Para Esslin203, o episódio em que são citados Caim e Abel também aparece como
ensejo para ironizar a lógica divina na elaboração de seus juízos. “Também ali graça do
Senhor caiu sobre um e não sobre o outro sem qualquer explicação racional”. De fato,
Beckett parece insinuar, que a “humanidade inteira” estaria a mercê de um julgamento
aleatório, caso os preceitos cristãos fossem realmente válidos. Com efeito, não é apenas a
vontade divina que padece da ausência de parâmetros: “O próprioGodot é imprevisível na
outorga de bondade ou de punição”. O menino, por exemplo, que aparece como seu
203ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, p.40.
121
mensageiro, é pastor de cabras, e Godot trata-o bem. Mas o irmão dele, que é pastor de
ovelhas, é espancado por Godot.
Cohn204citavários outros exemplos nos quais a tradição clássica é espicaçada pela
mordaz ironia de Beckett. O panteão grego não é poupado. Pozzo se refere ao Atlas e Pan.
Estragon, cansado de suportar Pozzo, informa ao tirano cego que ele e seu amigo não são
cariátides, colunas gregas com forma de estátuas de mulheres que sustentavam grande
peso.
Assim, fiel ao hábito, Beckett zomba de toda a tradição clássico-cristã na peça. Quando
Pozzo retorna cego, Vladimir parece fazer uma alusão velada a Tirésias: “Pozzo: Pare de
me interrogar. Os cegos não têm noção do tempo. (Pausa) As coisas do tempo eles não
veem. Vladimir: Veja só! Jurava que fosse o contrário.” Temos, nessa passagem, a
demolição de mais um mito.
No mundo grego, Tirésias205era aquele que, com seus dons divinatórios, seria capaz de
dominar o tempo e ser portador de uma verdade cósmica.Também Édipo, ao final da sua
jornada em Colono, alcançará a sabedoria e a paz quando já não vê mais com os olhos dos
homens. Na terra de Beckett, porém, os mitos antigos caíram por terra.
4. TRAGICÓMEDIA, COMITRAGÉDIA
Nada é mais engraçado que a infelicidade.
(Nell, em Fim de Partida206)
14.1 Esperando Godot: Gêneros em Jogo
204COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutgers University Press, 1962, p. 219. 205 O mais significativo profeta do mito grego, possivelmente é o profeta Tirésias. De acordo com Junito Brandão, “porque era cego, possuía o dom da mantéia, da adivinhação. Era um vates, um profeta, dotado do vaticinium, do poder da predição”. IN: BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega, vol.I. Vozes: Petrópolis, 1994, p.175. 206BECKETT, Samuel.Fim de Partida. Trad. Fábio de Souza Andrade. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2001, p. 62.
122
O aspecto grotesco do teatro de Beckett, desde cedo chamará atenção da crítica.A
peça, que já foi chamada de farsa metafísica, estabelece uma oscilação permanente entre o
trágico e o burlesco, o físico e o espiritual.É certo que as peças de Beckettnão se ocupavam
de temas pertencentes ao tradicional repertório do teatro de costumes ou do drama
convencional. Ao contrário – nos diz Jan Kott,“elas engendram, em seu bojo, temas
concernentes aos problemas, conflitos e temas da tragédia”. O grotesco é a antiga tragédia
com novos matizes, já que sua forma deve incorporar também o ridículo e o patético da
condição humana.
Entretanto, se, em sua forma, o conteúdo trágico da cena beckettiana não repete a
forma da tragédia em sua realização, veremos reelaborada,por meio de procedimentos de
linguagem e reestruturação, diversos temas comuns ao gênero.
A situação trágica transforma-se em grotesca quando as duas alternativas contraditórias,
em que uma decisão é necessária, são absurdas, inadequadas ou comprometedoras. “O
herói deve jogar, mesmo se não existe jogo207”. Qualquer solução é prejudicial, mas ele não
pode desistir do jogo, pois isso poderia se configurar em uma solução, mas não seria uma
solução satisfatória. A partir dessa premissa, segundo Kott,“certamente seria possível
apresentar a tragédia de Édipo como um problema da teoria dos jogos”.
Decerto poderíamos concordar com isso no caso do príncipede Tebas, pois,em princípio,
o jogo é justo, pertence à categoria do agôn,já que, no início da partida, o jogador possui as
mesmas chances de ganhar e perder,não conta com a intervenção dos deuses e pode jogar
a partir de regras pré-estabelecidas. Porém, no desenrolar dos eventos, o jogo modifica-se
e,aofim,é o destino que se revelacomo o verdadeiro adversário de Édipo.
Édipo fora advertido pelos deuses sobre sua sina de assassinar o pai e desposar a mãe.
O herói possui livre-arbítrio, logo, os deuses não intervêm, apenas observam. “Édipo
épunido pelos deuses de forma justa, já que cometeu um crime; queria, mas não escapou
do fatum, não havia como escapar.” 208 Se Édipo se entregasse à imprevisibilidade de alea,
se se esquivasse à ação, provavelmente não encontraria tantos infortúnios.
Mas Édipo é o herói trágico por excelência e precisa perder a visão do mundo para, em
sua trajetória, encontrar o terceiro olho, a sabedoria na cegueira, na ignorância. Na
escuridão, ele deixa quealea o tome, quando então já não se considera senhor de nada;
liberta-se de agôn para deixar o destino guiá-lo. Arrancar os olhos é um ato de negação do
saber e de se deixar tomar pela escuridão, que, no caso de Édipo, o levará à sabedoria.
A jornada do filho de Laio começa promissora. Ele conquista Tebas, tem a mão da
rainha, decifra o enigma da esfinge. Até aí é agôn, pautando o caminho do jogador, que
utiliza sua destreza, cálculo e habilidades para tornar-se senhor do mundo. Entretanto,
sobrevém o golpe: é este mesmo conhecimento adquirido, que garantira sua felicidade
durável e forte, que o levará, em sua busca, a encontrar-se com o responsável pela
desonra, desgraça e peste de seu povo. Édipo vivia pleno de fé em si mesmo, e podia se
considerar afortunado. Possuía a confiança de seus concidadãos para orientá-los, tinha
filhos, que perpetuariam sua linhagem. E eis que uma praga devasta a cidade, como um
sinal da ira dos deuses; cidadãos aterrorizados e as profecias não oferecem nenhum alento,
ao contrário, as coisas iriam ficar piores. Este sentimento de angústia incentivará Édipo por
uma busca radical pela verdade. E, aos poucos, peça por peça, desponta,terrível, a
verdade.
Édipo encontra em si mesmo o assassino do rei, é sua própria pessoa que se revela
como profanador da mãe. Tornando-se cego, atormentado pela morte de sua mãe-esposa,
abandonado por seu filho, liberto do poder e fora da cidade, segue a estrada amarga e longa
que leva a Colono para, lá, depois de ter expiado suas faltas, serremovido pelos deuses. “O
destino de Édipo que traça o destino da paixão que o homem tem pela verdade, é de uma
grandeza e de uma simplicidade monumental.” 209
208KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.132. 209 FINK, Eugen. Le jeu comme symbole du monde.Paris: Les Editions Minuit, 1960, p. 21.
124
Antes de arrancar os olhos, Édipo acreditava em suas habilidades e artifícios,
colecionava triunfos de seu trabalho e inteligência. Não tomava a physis como algo
inapreensível, de enigmasindevassáveis: ele confiava plenamente em seus recursos, em
sua retidão e seu senso de justiça. Mas tal conhecimento é o suficiente para as coisas do
mundo?
A tragédia de Édipo é uma metáfora simbólica da vontade humana pela (por uma)
verdade. O verdadeiro adversário de Édipo era o destino, alea, aquilo que não se pode
prever. “É um desafio para o pensamento filosófico: a verdade joga, confunde com o jogo
total do mundo, é saber extático, carregada de sentidos matizados, nem sempre ordenáveis
por um princípio racional210.”
Tal princípio é análogo ao pensamento de Heráclito, que viu no logos o princípio e o fim
de tudo. Esse pressuposto foi o primeiro passo dialético consciente do pensamento do
ocidente, justamente por abarcar o caráter supralógico da dinâmica do real. O logos é uma
dinâmica de jogo; livre, sem leis nem regras fixas. A temporalidade do logos é o seu jogo.
Heráclito assim falou num Fragmento famoso, de nº 52 –“a temporalidade do logos é uma
criança deslocando pedrinhas para lá e para cá: a vida da criança. O jogo é a própria
dinâmica de estruturação da temporalidade.211”
Ao contrário de Édipo, Estragon e Vladimir se deixam levar pelos caprichos de alea. A
espera é um imperativo que nega aos personagens o poder de ação. Não podem ser como
o príncipe de Tebas; sequer se concebem como capazes de qualquer ato heróico e negam,
peremptoriamente, qualquer possibilidade de agirem, quaisquerque sejam as
circunstâncias.Talesgarçamento do personagem é ao mesmo tempo causa e conseqüência
da crise do drama. Antes vetor da ação, condutor da identificação e garantia da mimese, o
personagem, que se achava incumbido de funções múltiplas no drama clássico, torna-se
agora obscenamente exposto em sua fragilidade, que revela a fragilidade da própria cena
210Ibidem.p. 28. 211 PORTELLA, Eduardo. Fundamento da Investigação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p.140.
125
em plasmar o real.Num mundo desprovido de sentido, em que a realidade se oferece imersa
na mais completadesordem, o teatro vai voltar-se exatamente para sua representabilidade,
para sua teatralidade, denunciando-se como forma estética, como convenção artística.
Se a arte não pretende mais reproduzir o real, mas dar conta de sua caótica baderna,
resta-lhe pôr em questão as novas formas de relacionamento entre ficção e realidade. A
crise da mimese instala-se no cerne da escrita dramática, na qual opera uma
desestabilização, que induz a novas formas, particularmente, uma peça dentro da peça. “No
século XX,é de primeira ordem para os dramaturgos tornar o objeto artístico alvo de reflexão
crítica no momento mesmo de sua elaboração, procedimento ao qual se dá o nome
de metateatro212”.
No retorno de Pozzo e Lucky, no segundo ato, Pozzo torna-se cego e Lucky, mudo.
Pozzo não sabe como aconteceu, “um dia acordou cego como o destino213”A visão trágica e
a visão grotesca do mundo são compostasde elementos similares. Quer este mundo seja
trágico ou grotesco, a situação do homem nomundoparece ser imposta, compulsória,
necessária. A liberdade de escolha e de decisão é condicionada por esses fatores. Numa tal
situação imposta, “tanto o ator trágico quanto o ator grotesco são perdedores no combate
com o absoluto214”. A derrocada do herói trágico é a vitória do absoluto; o fracasso do ator
grotesco é a profanação e a ridicularização do absoluto, sua transformação num mecanismo
cego, uma espécie de autômato. “Em última instância, a tragédia é um julgamento sobre a
condição humana, uma medida do absoluto; o grotesco é a crítica do absoluto em nome de
uma experiência frágil215”. Por isso a tragédia conduz à catarse, enquanto o grotesco não
oferece nenhum remédio aos espectadores.
212 SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.106. 213 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.176. 214KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.131. 215KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.131.
126
Beckett deliberadamente enfatizou a duração da espera, em detrimento da ação. A crise
da ação situa-se, por natureza, no cerne da crise do drama, uma vez que este “é
representação (...) de ação,216”logo, os fundamentos da mimese também encontram-se
abalados, uma vez que a relação arte e real se vê redimensionada a partir desse teatro que
se funda no imobilismo.
Para Aristóteles217, em conformidade com seus princípios filósoficos e, particularmente,
com sua teoria da mimese, o autor trágico é acima de tudo um “artífice da fábula”. Isso
significa que a sua preocupação principal é ocupar-se das ações que compõem a peça.
“Agenciá-las” de maneira a que essa fábula tenha um começo, um meio e um fim; de
maneira que ela comporte trama e desenlance - através da peripécia e (eventualmente)
reconhecimento – do conflito e assim permita a catarse.
Entretanto, como observou Gunter Anders218, Esperando Godot não corresponde à
forma ideal de fábula clássica. E a impossibilidade de que a peça se apresente sob a
fórmula da fábula tradicional é a sua própria fraqueza, seu próprio fracasso, que acaba
resultando em sua força. “Isso porque, se, por um lado, a peça sofre pela ausência de
coesão, é nessa mesma falta de coesão que irá manifestar-se sua matéria constitutiva.”
Assim, a temática de incomunicabilidade e deserção do mundo, comum aos escritores
seus contemporâneos, não seria o suficiente para tornar Beckett um autor do que se
chamou teatro do absurdo. Quanto à questão de gêneros, o mesmo acontece: o hibridismo
presente em Esperando Godot confereà peça um caráter heterogêneo, que lhe permite
vasculhar a complexidade da existência humana.Oscila, sem distinção, entre o patético e o
trágico, o sério e o jocoso, como nos antigos Dramas Satíricos da Antiguidade, quando
Dioniso, em sua pluralidade de máscaras, era partícipe da cena grega. Mas os dramas
satíricos possuíam um final feliz, como a tragicomédia,que é sua sucessora direta na história 216 SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do Drama Moderno Contemporâneo. São Paulo, Cosac Naify: 2012, p. 37. 217 Idem. 218ANDERS, Gunter. Being without time: On Beckett’s Play Waiting For Godot. In: ESSLIN, Martin.(org.)Samuel Beckett: A Collection Critical Essays.New Jersey: A Spectrum Book, 1965, 140-151.
127
de uma poética da cena. Assim, para analisarmos com profundidade de que maneira se
opera a transgressão beckettiana dentro do quadro evolutivo do drama, teríamos de
repensar também o conceito de catarse.
4.2A suspensão da catarse: o drama sob suspeição
A catarse219 significa, na linguagem médica grega, purgação, purificação. Afirma
Aristóteles que a tragédia, pela compaixão e terror, provoca uma catarse restrita a tais
emoções. Desse modo, nãosão todas as paixões concernentes à alma humana que se
manifestam no ápice de uma apresentação teatral na visão do autor da Poética. O teatro
dramático de origem grega caracterizava-se por apoiar-se na identificação que se
estabelece entre público espectador e o problema apresentado na ação encenada. No teatro
grego ou aristotélico, o espectador, por empatia, sofre a tensão, chegando ao desfecho.
Quando a tensão se desfaz, o público alcança a catarse e libera as emoções.
A tragédia se apresenta como a primeira manifestação estruturada do teatro, tendo seu
apogeu no período ático, ao século V a.C. A tragédia grega encontrou na Arte Poética, de
Aristóteles, seu primeiro grande registro formal, que, a partir de então, parece ter sido
compreendido como uma espécie de “manual da tragédia220”.
Eis a definição aristotélica: “É, pois, a tragédia a imitação de uma ação séria e completa,
dotada de extensão, em linguagem condimentada para cada uma das partes, imitação que
se efetua por meio de atores e não mediante narrativa e que opera, graças ao terror e à
piedade, a purificação de tais emoções.”Ou seja: quando Aristóteles, na Poética, confere à
tragédia um estatuto de superioridade com relação à comédia, por exemplo,
desenvolveformas de normatividade segundo as quais as imitaçõespodem ser reconhecidas
como pertencendo propriamente a uma arte e apreciadas a partir de um conjunto de
pressupostos reconhecidos por seu método de comparação. Vinca características inerentes
219BRANDÃO, Junito. Teatro Grego: Origem e evolução. Ars Poética.São Paulo, 1992, 41.
220 Idem.
128
para cada um dos gêneros,estabelecendo parâmetros de bom e ruim, preescrevendo
hierarquias e criando exigências para as diversas modalidades da arte.
Esperando Godotengendra, simultaneamente, elementos do trágico e do cômico, que
aparecem de forma paradoxal: procedimentos concernentes à forma das duas categorias
sãonegados no tema, mas afirmados na forma e vive-versa. Ardilosamente, torna-se uma
tarefa quase impossível encaixar a peça em uma categoria fixa, ou fixar algum recorte em
um único gênero. O próprio dramaturgo classificaria Esperando Godotcomo “uma
tragicomédia em dois atos.”
No que seria seguido, dentre outros, por Valerie Topsfield, que fala da existência vista como tragicomédia, da mistura do riso e tragédia em Beckett; por Helen Regueiro Elam, que fala também de uma sopreposição de máscaras da tragédia e da comédia, em tragédia feita de cenas cômicas, por Régis Salado, ao sublinhar sua inesgotável tragicomédia da descoincidência e da aproximação; por Ruby Cohn, que, invertendo os termos, trata da “comitragédia beckettiana, e da predominância, em sua obra, de um movimento que iria do risível, do irrisório, ao desastre, e não da desolução à salvação (como nas tragicomédias). (SÜSSEKIND, 2010, p.110).
Mas o desentendimento por parte dos estudiosos em torno do tema é de considerável
magnitude. Basta dizer que Adorno221, “por exemplo, desconsidera categoricamente a
classificação de tragicomédia em se tratando de Beckett. Para ele, as obras do dramaturgo
irlandês não poderiam passar nem por trágicas nem por cômicas”, pois a radicalidade das
peças de Beckett residiria justamente em “colocar em xeque tanto o gênero dramático como
forma de apresentação teatral quanto a possibilidade mesma de sobrevivência da
filosofia222.”
Süssekindaponta ainda, em seu ensaio “Beckett e o coro”, que Wolfgang
Iser,223“desconsideraa classificação de categorias mistas. Para Iser, nestas peças, tanto o
trágico como o cômico são anulados e não há estratégias estilísticas ou temáticas que
renovem aspectos de cada um dos gêneros.”
Sabe-se que Beckett exigia profunda fidelidade de seus atores à rubrica, tanto no que
dizia respeito à movimentação em cena, quanto à inflexão apontada nas falas. O ritmo
221SÜSSEKIND, Flora. Beckett e o coro. Folhetim 12. Teatro Pequeno Gesto, 2002, p.110. 222Idem. 223 Ibidem. p.111.
129
emprestado às cenas, a coreografia minunciosa no jogo com os objetos trariam à cena uma
reconfiguração tanto do coro trágico quanto do cômico. Neste capítulo, tentaremos apontar
alguns procedimentos adotados na dramaturgia de Esperando Godot, que parecem
atualizar, no mundo moderno, certos elementos da tragédia e da comédiada antiguidade,
conferindo-lhes, nessa fusão, as formas distorcidas e pictórias do grotesco.
O monólogo de Lucky em Esperando Godot, os silêncios indicados pelas pausas,
renovam aspectos concernentes ao trágico e ao cômico no que tange a sua forma. Isso
porque também se inscrevem na dramaturgia de Beckett elementos da comédia ática.
Em Aristófanes, a parábase ocorria quando o coro momentaneamente se desligava das
açõese, sozinho em cena, transmitia ao público o apelo do dramaturgo, funcionando como
contraponto crítico da representação teatral. A recusa da ilusão dramática quese reveza à
compulsão de narrar histórias dos personagensconcilia aspectosdo coro das peças trágicas
e cômicas ao ímpeto de sobrevivência dos personagens por meio do jogo.
Walter Benjamin salienta que o sofrimento do herói é reverenciado pela comunidade,
que agradece por seu sacrifício em nome da harmonia geral. Daí a purgação de sentimentos
dolorosos, um dos conceitos fundamentais da teoria aristotélica, a catarse, para o efetivo
cumprimento do prazer trágico. Encenando as desgraças da aristocracia, a tragédia grega
apresenta seus heróis como homens melhores que as pessoas comuns. Distanciando o
espectador da condição do herói, além de afirmar o status quo, mantém uma relação de
respeito, para que o homem comum busque um modelo de comportamento.
O herói da tragédia ática traz consigo valores essenciais de uma civilização grega
em consolidação, configurando-se como um bode expiatório da pólis. Portanto, sua inscrição
não se dá a partir de um percurso individual, mas sim através de um compromisso com as
ordens divina e/ou coletiva. A trajetória deste herói trágico geralmente tem início na
eudaimonia (glória), que avança em direção à daimonia (desgraça), ou vice-versa.
Paradigmática, como vimos aqui,é a figura do rei tebano Édipo, em Édipo-Rei, de Sófocles,
que, do alto de sua realeza, sucumbe à desgraça, que não é necessariamente a morte, mas
o exílio proferido por um decreto de seu próprio punho, algo que se apresenta como ainda
130
mais terrível que a morte.
Tal inversão na condição do herói, da eudaimonia à daimonia, ou seu contrário, no
caso de Édipo, pode ter origem em uma falha estrutural, e não ética ou moral, que lança ao
infortúnio um homem de boa reputação. E o próprio Aristóteles demonstra os limites ao
distinguir caráter e ação: “(...)a tragédia é uma representação, não de homens, mas de ação
e vida, de felicidade e infortúnio - e a felicidade e o infortúnio estão relacionados com a
ação.
“A finalidade da vida é um objeto que não é uma espécie de atividade, e sim de
qualidade; é, na realidade, o caráter que faz dos homens o que são, mas é em virtude de
suas ações que eles se tornam felizes ou infortunados.” Nesta perspectiva, a forma trágica
aristotélica coloca em foco o homem em conflito com o mundo em que se insere. Através de
suas ações, o herói incorre na falha estrutural, a hamartía, que não traz consigo nenhum
juízo de valor. Entretanto, leva a uma desmedida (hybris), que faz pender o fiel da balança
para a catástrofe, o que afeta as ordens divina e política, que, em conjunto com a individual,
compõem o universo estrutural do mundo grego.
A partir de sua hamartía, então, o herói ultrapassa seu métron (a medida de cada um).
Junito Brandão define hybris como o orgulho desmedido e a insolência excessiva. Nisso
Édipo, personagem de Sófocles, é o exemplo mais clássico. Seu orgulho já o levara a
cumprir os desígnios do oráculo: lutar com uma comitiva e assassinar a quase todos os seus
componentes, inclusive seu pai; decifrar o enigma da Esfinge e, consequentemente,
desposar Jocasta, a rainha de Tebas, sua mãe.
Quando a tragédia tem início, Édipo, ainda por orgulho de ser o filho da fortuna, quer
descobrir o assassino de Laio. Nenhum argumento o demove, nem mesmo a acusação de
Tirésias, representante da verdade oracular. O orgulho de Édipo, sua hybris, o levará à
condição de juiz e réu ao mesmo tempo, quando sua cegueira existencial será clareada
através da cegueira física.
131
Segundo Lesky224, a palavra “trágico,” na modernidade, sem dúvida alguma,
desligou-se da forma artística com que a vemos vinculada no classicismo helênico e
converteu-se num adjetivo que serve para designar desatinos fatídicos de caráter bem
definido e, acima de tudo, com uma bem determinada dimensão de profundidade, sobre a
qual se cumpre indagar aqui. Mais ainda, com o adjetivo “trágico” designamos uma maneira
muito definida de ver o mundo, como, por exemplo, a de Soren Kierkegaard, para a qual
“nosso mundo está separado de Deus por um abismo intransponível225.”
Em Esperando Godot interpõem-se, enredam-se e duelam tons do trágico e cômico.
Beckett definiu-a como “uma tragicomédia em dois atos”, na tradução para o inglês.
Classificação contestada na crítica de Ruby Cohn, que cunhou o termo comitragédia para a
peça, já que, em sua concepção, esta não oferecia a mesma estrutura da tragicomédia
tradicional. De fato, a tragicomédia consiste em uma peça em que são combinadas as
qualidades da tragédia e da comédia, em geral sendo um espetáculo principalmente de
caráter trágico, que se encaminha para um final feliz.
Isso não acontece na estrutura circular de Esperando Godot: no desfecho da peça,
Estragon, com as calças caídas até os calcanhares, após nova tentativa de suicídio
frustrada, retoma, junto a seu companheiro de jornada, o mote da espera. Agora, é Vladimir
que diz: “Então, vamos embora226”. Mas permanecem, como estátuas vivas, à espera de
Godot.
Dada a natureza repetitiva em que se estrutura, insinua-se que a encenação não
terminou: quando se fecham as cortinas, nos despedimos dos dois clochards imóveis, numa
atmosfera que sugere que tudo recomeçará novamente. Privados de uma catarse, resta ao
espectador desorientado, o confronto com a patética condição dos personagens que se
estende a si próprio,matizada pelo desalento da espera sempre adiada, que permanece em 224LESKY, Albin. A tragédia grega.São Paulo: Perspectiva S.A, 2003, p. 37. 225BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, p.195. 226Ao final do primeiro ato, Estragon diz a mesma fala e os dois, conforme indica a rubrica em ambas as situações, agem da mesma maneira: “Não se mexem”. (BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução: Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, p.107.)
132
suspensão.
À ampla discussão acerca da presença do trágico e do cômico no teatro Samuel
Beckett,sucede o desencontro de perspectivas de como essas categorias se evidenciam e
interagem no bojo de sua obra. Em nossa perspectiva, como já mencionamos nesse
trabalho, adotaremos posição similar à de Flora Süssekind, para quem a experiência se dá
“menos no assunto do que na forma227”, “realizando-se na própria forma, de uma
dramaturgiaconstruída a partir da tensão material do antigo drama, no confronto de
mecanismos distintos da linguagem, que ocorrem simultaneamente228”.
A oposição proposital torna indistinta a fronteira entre os gêneros, tanto o trágico como o
cômico comparecem em cena, não só por meio dos diálogos, mas também pelo manejo de
certos objetos, pelo gestual dos personagens e sua movimentação no palco, além do
cenário e iluminação229. Tal discernimento não opera apenas no curso de sua estrutura, que
desconstrói a ordem tradicional da tragicomédia clássica, mas na construção de cada
enunciado cujo caráter ambivalente, paradoxal, se impõe de forma intermitente, sendo-nos
quase impossível pinçar situações exclusivamente cômicas ou absolutamente trágicas.
Aqui, os jogos dos personagens encenam o luto, no qual o riso e a melancolia se
enredam indistintamente. As nuances são muitas, nesse encontro inusitado da bufonaria
rabelaisiana com o desalento melancólico de Burton230. E, para intensificar ainda mais a
perplexidade diante dessa disputa de humores, temos ainda uma escrita que abdica dos
excessos e de procedimentos retóricos usuais, primando pela economia, pelo uso
227 SÜSSEKIND, Flora. Beckett e o coro. Folhetim 12. Teatro Pequeno Gesto, 2002, p.121.
228 Idem. 229 Idem. 230 A biografia escrita por James Knowson, “Damned to Fame”, menciona que, já à época da escrita de Murphy, Beckett era leitor de Rabelais. Há, inclusive, alguns jogos de palavras em Murphy, que lembram, em muito, a escrita de Pantagruel. Robert Burton, com sua Anatomia da melancolia, também está entre os escritores lidos por Beckett no período que antecede a escrita de Godot, além de Rosseau, Thomas Mann, Balzac (por quem o autor irlandês não nutria grande simpatia), dentre outros. Beckett também freqüentava os filósofos: seu grande interesse pela filosofia pré-socrática, por Malebranche e pelos Ocasionalistas, tais como Arnould Geulincx, também é revelado pelo biógrafo. KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett. New York: Grove Press, 1996, p.206.
133
concentrado de mínimos recursos, que joga também com as pausas e os silêncios das
cenas, inseridos nas rubricas.
As elaborações de Kierkegaard a respeito da crise da tragédia, nesse sentido, possuem
bastante atualidade,se nós a relacionarmos com a dificuldade que enfrentamos a respeito
de uma classificação de gêneros em Beckett. Kierkegaard231 enfatiza que o subjetivismo
moderno intensifica a deteriorização do sentido de uma ordem objetiva, metafisicamente
estável. “Nossa época”, diz Kierkegaard, “perdeu toda definição substancial da família, do
Estado, da geração; ela é forçada a abandonar inteiramente à sua sorte cada indivíduo, que
se torna, assim, no sentido mais exato da palavra, o seu próprio criador232.”
Dessa forma, o subjetivismo moderno torna a possibilidade do trágico extremamente
problemática, pois, ainda consoante com Kierkegaard, o indivíduo reduzido a si mesmo
resulta ridículo, objeto de riso. E acrescentemos ridículo e absurdo. Se o cômico e o trágico
habitavam diapasões distintos, agora eles passam a disputar um sítio comum. Mais do que
inspirar a sensação da grandeza humana ou da dimensão cósmica ou telúrica à qual
pertence o homem, essa nova percepção do real passa a sublinhar a ausência de sentido
da existência, ao mesmo tempo em que zomba do narcisismo que orienta essa busca.
Destarte, diante da variedade das formas que se confundem e se deformam, somos
conduzidos atomá-las como grotescas, dado que seja difícil uma dissociação dos gêneros,
amalgamados que estão na escrita beckettiana.
Vladimir: Tem razão. (Pausa) Vamos fazer a árvore, ajuda no equilíbrio. Vladimir faz a árvore, tremendo. Vladimir:(parando) Sua vez. Estragon faz a árvore, tremendo. Estragon:Você acha que Deus está vendo? Vladimir: Quem sabe fechando os olhos. Estragon fecha os olhos, tremendo mais forte. Estragon: (parando, a plenos pulmões) Deus tenha piedade de mim! Vladimir:(vexado) E de mim? Estragon:(como antes) De mim! De mim! Piedade! De mim! (BECKETT, 2006, p.154)
231BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.87-88. 232 Idem.
134
Para Jan Kott233,“O grotesco é a antiga tragédia reescrita, em outro tom.” O paradoxo de
Maurice Regnault: "A ausência de tragédia em um mundo trágico dá à luz ao cômico" de
fato parece contemplar a ambiguidade da situação na qual se encontram Vladimir e
Estragon.Esperando Godot não pode ser caracterizada como tragédia, já que, em sua
estrutura, os heróis não obedecem à trajetória do herói trágico tradicional. Não há a clássica
passagem de um estado de eudamonia(glória) para daimonia(desgraça).
De fato, Estragon e Vladimir mencionam que já foram diferentes em outro tempo, “talvez
em 1900”:quando então eram “respeitáveis, isto é, dignos de consideração social. Mas não
há nenhum vestígio que dê indicações de suas identidades nesse suposto passado. Com
efeito, gestos trágicos não cabem mais no desempenho de seus papéis. “De mãos dadas,
pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo.
Agora é tarde demais.Não nos deixariam nem subir.” Não háhybris,(orgulho),visto que os
personagens são vagabundos, distantes de qualquer princípio ético ou moral
correspondente ao conjunto de valores que regem a realidade empírica. Tampouco há
medida ou limite a ser ultrapassado e a catarse é suspensa. Então, qual a falha estrutural, a
harmathía (erro) que faria Estragon e Vladimir pertencentes ao universo do trágico? O delito,
por assim dizer, do herói estaria quase sempre associado à ação. Todavia, o que fazer com
uma peça cujo imperativo é a imobilidade? “O pior erro é ter nascido”, diria Beckett em seu
ensaio sobre Proust, tomando emprestado um fragmento da fala de Segismundo, em A vida
é sonho, de Calderón de La Barca. O mote, recorrente no Barroco espanhol, também
encontraria ressonâncias na filosofia de Shopenhauer, de quem Beckett fora um leitor
contumaz.
O trágico da tragédia grega agasalha o absurdo, mas nela nos é possível reconhecer os
motivos que incorreram na culpa trágica: o filho que desposa a mãe e mata o pai, a mãe que
mata os filhos, o filho que não pode ser enterrado em sua terra de origem, porque guerreou
contra o próprio pai. A tragédia grega está recheada de absurdos, mas a base desses
absurdos encontra-se em ações que parecem ameaçar de destruição os princípios da
233KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo, Cosac Naify, 2003, 128-129.
135
ordem moral de nosso mundo. “No caso do grotesco, contudo, não se trata de ações que,
como tais, estejam isoladas, nem da destruição da ordem moral do universo:
primordialmente a questão é do fracasso da própria ordem física do mundo.” 234
Em um mundo em que os deuses desertaram e não há mais instâncias reguladoras
de um sentido, ogrotesco aparece diante de nós como o lugar, o advento de uma
impossibilidade. Mas esta impossibilidade passa a ser também, talvez, a primeira palavra
responsável para a expressão do impasse. A circunstância desoladora na qual se veem
Estragon e Vladimir resulta em falas e situações paradoxais, cujas perspectivas, jamais
coincidentes, encenam uma humanidade apartada, nunca mais possuidora de uma
apreensão harmoniosa do mundo.
O elemento seminal que caracterizava a tragédia eram as ações elevadas dos
heróis. No entanto, em Esperando Godot, os personagens não cumprem o programa do
herói trágico, a quem era reservado um périplo que culminava com um aprendizado final.
Antes, caminham na esfera do não-saber, agem como fantoches de um destino cego, que
os faz parecidos com personagens de uma farsa. Uma farsa ontológica, na qual o “ser” não
goza de nenhuma grandeza.O tema do jogo de marionete é, para Kayser, outro aspecto
importante do grotesco subjetivo: "a ênfase é colocada sobre a marioneta como a vítima de
uma força desumana, estranha, que governa sobre os homens, transformando-os em
marionetes”.
Segundo Bergson235, incontáveis são as cenas de comédia em que uma personagem
acredita estar falando e agindo livremente, personagem que, por conseguinte, conserva o
essencial da vida, mas que, observada sob outra perspectiva, aparece como simples
joguete nas mãos de outra, que com isso se diverte.
Do fantoche que a criança manobra com um cordão a Géronte e a Argante, manipulados por Scapin, há um espaço fácil de transpor. Tanto por instinto
234 KAISER, Wolfgang. O Grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.160. 235BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.57-58.
136
natural quanto porque todos preferem – em imaginação ao menos – enganar a ser enganados, é do lado dos espertos que o espectador se põe. (BERGSON, 2001, p. 57-52)
No caso de Beckett, contudo, o espectador sente-se o tempo todo como presa dos
cordões: a ele não é dada a sensação de liberdade diante da cena que se apresenta em sua
frente, pois lhe é vedado o riso franco e o alívio da catarse.
Assim, toda a seriedade da vida,que deveria advir de nossa liberdade, encontra-se
subtraída. Os sentimentos que maturamos, as paixões que nutrimos, as ações por nós
deliberadas, assentadas, executadas, enfim o que vem de nós e o que é só nosso e que
confere à vida seu aspecto às vezes dramático e geralmente grave, é colocado em
suspeição pela cena beckettiana. O que torna tudo isso propriamente engraçado? “É preciso
imaginar que a liberdade aparente encobre uma trama de cordões, e que somos, nesse
mundo, como diz o poeta, “...pobres marionetes/cujo fio está nas mãos da
Necessidade.236”Portanto, não há cena real, séria, dramática mesmo, que a fantasia não
possa transformar em cômica evocando apenas essa imagem. Não há brincadeira para a
qual se abra campo mais fecundo, principalmente quando esta imagem é transferida ao
espectador, quando esse é convocado para a construção de sentido da cena.
Mas Beckett parece dar um passo a mais quando se trata da problematização desse
grotesco subjetivo. No universo beckettiano não são os deuses que, do alto do Olimpo,
manipulam os homens como bonecos de barro a partir de seus caprichos. Mesmo o homem,
herdeiro da tradição judaico-cristã,dotado de livre-arbítrio, que supostamente possui a
faculdade de decidir entre o bem e o mal, já perdeu a bússula que lhe permitia se guiar por
esses referenciais.
Vladimir e Estragon comportam-se como autômatos; eles não possuem ética no sentido
lato do termo, pois, grosso modo, a ética pressupõe a existência de um sujeito racional,
livre, responsável, que é capaz de se autodeterminar para a ação.Porém, o que gera
estranhamento na conduta dos dois é justamente o automatismo presente nos gestos de 236BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 57-58.
137
ambos, que parece não respondera nenhuma elaboração prévia ou possuir algum caráter
reflexivo. Tais aspectos também se verificamno par Pozzo-Lucky, como no Ato I:
Pozzo: (...) O que preferem? Que ele dance? Que ele cante? Que ele recite? Que ele pense? Que ele... Estragon: Quem? Pozzo: Quem! Vocês sabem pensar, os dois, ou estou enganado? Vladimir: Ele pensa? Pozzo: Perfeitamente. Em voz alta. Pensava que era uma beleza, antigamente, podia-se passar horas ouvindo. Agora... (Estremece) Enfim, azar. E então, querem que ele pense alguma coisa para nós? Estragon: Preferia que ele dançasse, seria mais divertido. Pozzo: Não necessariamente. Estragon: Você não acha, Didi, que seria mais divertido? Vladimir: Gostaria de ouvi-lo pensando. Estragon: E se ele dançasse e depois pensasse? Se não for pedir demais. (...)Pozzo: Mas com certeza, nada mais fácil. Além do mais, é a ordem natural. (Riso breve)(BECKETT, 2006, p.78-79)
Dançar e pensar se equivalem. As duas ações são executadas de forma mecânica por
Lucky, são números que pertencem a um repertório que desempenham mal, como artistas
amadores que não dominam a técnica, ou desdenham dela, ao executarem seus
números,sem altas doses de entusiasmo e calor. Lucky é um ser humano, mas é também
fera amestrada, tratado bestialmente por Pozzo.Ele chora, dança, pensa, mas age
maquinalmente. Com efeito, ele é um “singular universal”, um substituto da humanidade
quando encarna sua vitalidade subtraída por uma ordem de valores que parasita e extingue
a pulsão de Vida.
Ele encarna o excesso inumano daquele que contém aprisionada em si a animalidade
represada e nos permite intuir, sombriamente, no tom maquinal e sofrido de suas falas e
gestos, a monstruosidade encerrada em seu ser. Lucky exibe todos os traços do
humano.Embora seja humano, contudo, não se assemelha a um ser humano;aparece
claramente como inumano.Sem dúvida que o adjetivo inumano indica um estado de
estranheza para consigo próprio; mas o acento cai na falta de concordância entre o que é
interno e o que é externo.Oscilando entre a fera e o autômato, ele só se torna humano
quando não mais se parece com o homem comum, ao encarnar um personagem que
escapou da colonização simbólica e está ali, diante dos espectadores como um morto-
vivo.Em um mundo sem natureza(somente uma árvore apresenta-se como resquício
138
naquele pedaço de estrada), a animalidade transborda, justamente lá, onde o automatismo
avança sobre o homem.
Na realidade, em consonância com a cultura popular, a função do grotesco é libertar o
homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes
sobre omundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre o seu caráter relativo e
limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério,
incondicional e peremptório. Mas historicamente as ideias de necessidade são sempre
relativas e versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo237, que estão na base do
grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e
intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim
disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. “Daí que uma certa
“carnavalização” da consciência precede e prepara sempre grandes transformações, mesmo
no domínio específico238”.
Sendo assim, otema do teatro de marionetes é outro aspecto importante do grotesco
subjetivo: a ênfase é dada ao boneco como vítima de uma força alienígena, desumana, que
governa sobre os homens, transformando-os em marionetes. Mas no caso de Beckett, os
títeres não são manipulados somente por forças estranhas: são acossados pelas linhas de
força e controle das instituições. Elas (as instituições) desapareceram e junto delas,
carregaram consigo a possibilidade de uma experiência autêntica, que é tateada agora por
esses dois autômatos que são Vladimir e Estragon, através de seus jogos.
Contudo, se por um lado, os caracteres se nos apresentam como subjetividades que
foram massacradas por esses valores que sustentam os princípios de civilização, por outro,
não deixa de pulsar, violentamente, nesses personagens, uma energia vital, aquela força
que foi represada pela manipulação e castração de seus desejos.
Desta forma, o tema do jogo de marionetes possui outra acepção na ficção beckettiana.
Talvez,mais próximaà reflexão proposta por Kleist. Pois, assim como no universo do escritor
237 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais.São Paulo: Hucitec, 2010, p. 43. 238 Idem.
139
irlandês, o mistério acerca da disjunção corpo/espírito, presente em seu ensaioSobre o
teatro de marionetes,é intensificado e oferece fendas de compreensão para o aspecto desse
grotesco subjetivo, que Esperando Godot encena.
Sabe-se que Beckett239 fora muito impressionado com a leitura do ensaio de Heinrich
von Kleist Sobre o teatro de marionetes. Tal admiraçãoevidenciou-se quando, em 1975, ele
ensaiava a peça televisivaGhost Triopara a BBC de Londres.Nessa peça, segundo as
recomendações de Beckett, a figura masculina deveria atuar como se fosse um
fantoche.Knowlson e Pilling240 nos dizem que, durante os ensaios paraGhost Trio, ao tentar
descrevera forma como os movimentos da peça deveriam ser minimamente executados
pelo ator Ronald Pickup, o autor de Godot se reportouao escrito de Kleist, dando especial
atenção a alguns pormenores do texto e alguns aspectos que lhe eram especialmente
caros.
A admiração do jovem narrador sobre a marioneta, cuja afetação torna o personagem
que conta a história "particularmente impressionado" com o relato que ouvira, estendeu-se a
Beckett. Há, portanto, dizem eles, correspondências sugestivas entre os dois autores.Na
verdade,Knowlson e Pilling241vão mais longe e afirmam que o ensaio de Kleist expressa
algumas das aspirações estéticas mais profundas de Beckett.Eles argumentamque a obra
deBeckettindicaque o movimentomaterial, irrestrito, sem as interrupções da autoconsciência,
é potencialmentetranscendente.
Kleist imaginou a marionete como sublime, que transcende não apenas os limites e
imperfeições do corpo humano, mas o peso da autoconsciência, que o homem cultivou ao
longo dos séculos e que impediu que ele atingisse tal graciosidade. Em sua narrativa, a
autoconsciência é vista como uma espécie de afetação que destrói o encanto natural e o
239KNOWLSON, J. Damned to fame: The life of Samuel Beckett. London: Bloomsbury, 1996, p.584-633. 240 BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 100. 241 Knowlson, James. Beckett and Kleist’sEssay ‘On the Marionette Theatre. In: KNOWLSON, James & Pilling, John. Frecoes of the Skull: The Later Prose and Drama of Samuel Beckett.London: John Calder, 1979, p. 277.
140
charme do homem. “O homem é, portanto, uma criatura de forma permanente de equilíbrio.
Ele não tem unidade, harmonia, simetria e graça que caracteriza o boneco.242”
O objetivo de Beckett, em suas peças, era conseguir uma musicalidade do gesto tão
impressionante como a de voz. Seu argumento era “que a precisão e a economia iriam
produzir o máximo de graça.” Foi nesse aspecto que o argumento de Kleist foi usado como
base de seu drama. “Por que não pode o homem viver em estado de graça, dessa graça
que é o próprio da infância? Por que é a inocência proibida ao homem243?”
Lembremos que essa narrativa de Kleist, do século XIX, não se trata de um conto
tradicional, com enredo e personagens, mas de um inusitado diálogo entre o narrador e um
bailarino. Nem personagens nem o lugar possuem nome, apenas suas iniciais são
apresentadas e não sabemos de fato se os eventos narrados são verídicos ou simples
invenção do narrador. No começo, o seu tema parece estar no interesse que as marionetes
despertam no bailarino, que expressa seu fascínio pela graça inefável que os bonecos
trazem em seus movimentos. A controversa opinião apresentada pelo narrador é que aquela
graça sublime dos bonecos não estaria ao alcance dos próprios profissionais do balé, e, por
isso, o boneco era capaz de superar o corpo humano quando o assunto é dança. Ora,
enquanto a marioneta não possuía outra possibilidade senão seguir as leis mecânicas,
movimentando-se sempre de acordo com seu centro de gravidade, o homem é sempre
desviado desse centro pela “afetação”, “por algo que aparece, como o senhor sabe, quando
a alma encontra-se em qualquer outro ponto que não seja o centro da gravidade do
movimento244.”
Há, emSobre o teatro de marionetes,outro episódio relatado pelo narrador, cujo tema já
discutimos aqui: a impossibilidade da repetição exata de um gesto, situação ou sentimento,
de que se dera conta Constantino Constantinus, de Kierkegaard.
242KLEIST, Heirich von. Sobre o teatro de marionetes. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p. 23. 243 BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 97-100. 244 KLEIST, Heinrich von. Sobre o teatro de marionetes. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, p.27.
141
Na narrativa de Kleist tem-se uma história dentro da história. É evocada pelo narrador
como um episódio que lhe causara estranhamento, análogo àquele que experimentava, ao
ouvir a tese de seu interlocutor sobre a marioneta. Trata-se de uma passagem, na qual um
jovem adolescente, cheio de encantos, em seus aproximados 16anos,ainda não se
apercebera, até certo incidente que será relatado, de seu magnetismo e beleza. Ele se
banhava junto ao narrador e suas feições exibiam um encanto maravilhoso. Pois, enquanto
se secavam, o rapaz, de forma impressionante, repete com grande precisão, naturalidade
egraça, um gesto que ambos haviam visto em uma estátua em Paris. Ambos percebem o
feito simultaneamente, mas, quando o rapaz tentarepetir o gesto, não logra êxito. A partir
desse momento, por uma força estranha que nem ele nem o narrador conseguem
compreender, ele passa por um processo de descaracterização, no qual o fracasso de não
conseguir vivenciar novamente a graciosidade daquele gesto fará com que, paulatinamente,
o jovem perca todos os seus encantos, até não lhe restar nenhum resquício de beleza.
É a consciência do atributo que impede o jovem adolescente de repetir novamente
gestos e trejeitos que manifestem a força e autenticidade do primeiro movimento; e isso é
aterrador para aquele personagem. O preço desta transformação é irresgatável: consiste no
sacrifício da inocência e da beleza; a felicidade, a graça, dão lugar ao grotesco, e o passado
irrepetível determina a melancolia. “O comportamento pré-reflexivo cedeu o seu lugar à
reflexividade245”.
As marionetes são o símbolo do encanto que o homem tenta atingir na dança, mas que
lhe é vetado desde que comeu da árvore do conhecimento. Para o homem reconquistar
aquele encanto de que são capazes os bonecos, seria preciso voltar, nos diz o narrador, a
um estado de inocência anterior à reflexão, a algo que foi perdido inexoravelmente, a partir
do momento em que o homem experimentou o fruto da árvore do conhecimento:
Agora, meu caro amigo, disse ele, o senhor está de posse de tudo o que é necessário para me compreender. Vemos que, no mundo orgânico, à medida que a reflexão se torna mais obscura e mais fraca, a graça apresenta-se mais brilhante e magnífica. (...) Desse modo, eu disse um
245 BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 98.
142
pouco distraído, teríamos de comer de novo da árvore do conhecimento, para voltarmos ao estado de inocência? Certamente, respondeu, esse é o último capítulo da história do mundo. (KLEIST, 2013, p.39)
O interesssante da história de Kleist é sua natureza laica: ele propõe, ao final, a
necessidade de se “dar a volta ao mundo”, para ver se encontramos, do outro lado, uma
entrada para o paraíso; a inocência perdida de quando se experimentou o fruto da árvore do
conhecimento.
Discordamos, portanto, de Knowlson e Pilling quanto à experiência transcendente. O
adiamento do ato de pensar, que está em Kleist e aparece em certa medida em Beckett, nos
parece remeter a uma instância pré-reflexiva na qual o pensamento ainda não descansa nos
braços reconciliadores da metafísica. Como o texto aponta, é uma viagem circular, em torno
do planeta terra, que proporcionará a compreensão do enigma.Não será, dessa perspectiva,
uma experiência transcendente que levará a um Céu redentor.
Assim também interpretamos essa descoberta, que insistentemente nos prenunciam os
pares autômatos de Beckett, Vladimir-Estragon, Pozzo-Lucky. Confiná-los nesse “beco sem
saída” não seria uma maneira de sugerir ao homem que ele deve despojar-se de toda a
falsa capa e ornamentação que o pensamento metafísico supõe? A questão é controversa e
não pretendemos respondê-la de forma precipitada aqui.
É evidente, porém, que seus personagens encenam a angústia da separação, da ruptura
entre homem e mundo e compartilham de um sonho melancólico que se sabe impossível,
desde que o homem fundou o seu culto à razão. Isto porque a graça, a beleza só são
compatíveis com o estado de inocência, só são realizáveis através da integração plena do
homem à Physis,natureza da qual o homem se afastou, quando o comportamento pré-
reflexivo cedeu lugar à razão instrumental.
Desse modo, o grotesco subjetivo, evocado por Beckett, encena o preço desta
transformação irresgatável, porém parece insinuar que esse limbo, no qual habitam seus
personagens, pode ser o ensejo para a compreensão de novo lugar e uma nova forma de
estar no mundo.
143
Nesse caso, em nossa leitura, a mimicry ganha lugar de destaque. O fato de encarnarem
sucessivos papéis, de jogarem continuamente a partir da premissa do como se, permite que
o grotesco se instale, tornando possível uma experiência paradoxal, que acena para uma
nova possibilidade de ser.
Na cultura popular246, a máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações,
a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da
coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das
metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a
máscara encarna o princípio do jogo da vida, está baseada em uma peculiar interrelação da
realidade e da imagem, características das formas mais antigas dos ritos e dos espetáculos.
É na máscara,como observa Bakhtin,“que se revela com clareza a essência profunda do
grotesco”.
Segundo o teórico russo,247a máscara, no grotesco romântico, perde quase
completamente seu caráter regenerador e adquire um tom lúgubre. No entanto, mesmo no
grotesco romântico, a máscara conserva traços da sua indestrutível natureza popular e
carnavalesca248. Na vida cotidiana contemporânea, a máscara cria uma atmofera especial,
como se pertencesse a outro mundo. No grotesco romântico alemão, as marionetes
desempenham um papel muito importante. Esse motivo não é alheio, evidentemente, ao
grotesco popular. Assim,o motivo do grotesco da marioneteincorpora também o trágico no
romantismo, sem, contudo, desvencilhar-se completamente de seu caráter regenerador e
fundador249.
246BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de FrançoisRabelais.São Paulo: Hucitec, 2010, p. 35. 247 Ibidem. p. 35. 248Grifo nosso. 249Victor Hugo colocou o problema do grotesco de forma interessante, característica também do romantismo francês. O aspecto essencial do grotesco é a deformidade. A estética do grotesco é em grande parte a estética do disforme. Mas, segundo Bakhtin, Hugo enfraquece o valor autônomo do grotesco, considerando-o como meio de contraste para exaltação do sublime. Na acepção de Bakhtino grotesco e o sublime completam-se mutuamente. No entanto, ele destaca dois aspectos positivos do grotesco, tanto no romantismo alemão quanto no francês: em primeiro lugar, os
144
Os ecos desse Romantismo estarão presentes no grotesco de Beckett: sua predileção
pela noite, a mescla de elementos heterogêneos da realidade, a crítica à ordem e aos
regimes habituais do mundo, a livre excentricidade das imagens e a alternância do riso e da
melancolia revelam algumas afinidades com elementos do grotesco romântico, que, amiúde,
parecem nos apontar para uma característica bem peculiar do mundo contemporâneo: a
crise do sujeito, que se evidencia na crise do personagem. Ou seja, eles não possuem mais
máscaras definidas, sua imagem no espelho será sempre esfumaçada, embaçada,
distorcida na medida em que os traços do grotesco se deixam esboçar.
4.3Rearranjos coraisna modernidade
Mesmo sem ser atriz nem pertencido ao teatro grego - uso uma máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível. É, pois, menos perigoso escolher sozinho ser uma pessoa. Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é. (Clarice Lispector250)
No drama moderno e contemporâneo, a relação de um personagem com o outro se
torna mais rarefeita, mais fluida e instável. Se outrora cada personagem, cada lugar de
românticos procuraram as raízes populares do grotesco; em segundo lugar; não se limitaram a atribuir ao grotesco funções exclusivamente satíricas. “É preciso reconhecer que o Romantismo fez um descobrimento positivo, de considerável importância: o descobrimento do indivíduo subjetivo, profundo, íntimo, complexo e inesgotável. (...) Para convencer-se disso, basta comparar as análises racionalistas e exaustivas dos sentimentos internos feitas pelos clássicos e as imagens da vida íntima em Sterne e os românticos. A força artística e heurística do método grotesco sobressai de forma gritante.” Cf. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 38-39. 250 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 81.
145
palavra constituía o personagem a partir do ato de enunciação, agora sua fala não se dirigirá
mais àquele personagem com o qual divide a cena, mas ao espectador. Ludovic Janvier251,
por exemplo, designa o personagem beckettiano como um “lugar-dizer”, já que, nas peças
do autor irlandês, o personagem, mais que dar respostas e réplicas ao seu congênere,
dirige-se a esse outro,a priori invisível e inexistente, que é o espectador. “Como escreveu
Bernard Dort, é o espectador moderno que se acha “em diálogo”; não mais os
personagens252”. Mesmo os personagens estão cindidos em conflito consigo; em seus
monodiálogos,a cisão é evidente.
Diante disso, fica difícil caracterizar esse texto teatral, no qual longos monólogos,
momentos de coralidade egestos, além do manuseio de objetos cênicos, cenário e
iluminação, não obedecem mais ao regime dramático tradicional. Já houve quem dissesse
que Beckett fora o último moderno e, ao lado de Artaud, inaugurara uma nova era do teatro-
o teatro pós-dramático, no qual não haveria mais a interioridade do drama, em que o palco
seria primordial e o texto não passaria de um “elemento entre os outros253”.
Neste trabalho, porém, a voltar a ceder à dialética do antigo e do novo – ou da
vanguarda oposta à tradição -, preferimos tentar apreender mais de perto esse trabalho
dereelaboração dos procedimentos cênicos, acreditando que a poética da cena beckettiana
está em contante diálogo com a tradição, recriando-na, de forma crítica e inventiva.
Flora Süssekind254, em artigo recente, chamou atenção para a tendência de rearranjos
corais na produção artística contemporânea. Segundo a ensaísta, “a forma coral promove o
cruzamento de falas, ruídos e gêneros, conectando-se a uma linguagem desestabilizadora
na literatura e nas artes em geral”. No teatro grego, tanto a comédia como a tragédia
possuíam no coro a possibilidade de encenação da multiplicidade de vozes que compunha a
comunidade.
251SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.136. 252 Idem. 253 Idem. 254 SÜSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados: um ensaio de Flora Süssekind. Rio de Janeiro: Jornal O Globo. Prosa e Verso, 21/09/2013.
146
Qual era, porém, o papel do coro dentro da ação trágica? Difícil precisar. Segundo Junito
Brandão255, muitas têm sido as funções atribuídas ao coro: testemunha, confidente,
espectador ideal, conselheiro, associado na dor, juiz, intérprete lírico do poeta, eco da
sabedoria popular, traço-de-união entre público e os atores... Não há dúvida de que “todas
as funções” estão plenamente de acordo com o papel do coro na tragédia, mas todas elas
são generalizantes. Em Ésquilo e Sófocles o coro, atuando como intérprete do público e
participando ativamente da ação, é um verdadeiro ator, como de resto afirma Aristóteles
acerca de Sófocles.
O coro,256na tragédia grega, segundo Aristóteles, “também deveria ser considerado
como um dos atores; fazer parte do todo e participar da ação; não à maneira de Eurípedes,
mas como Sófocles”.Eurípedes é o primeiro a inovar nesse sentido, ao estender a uma
personagem funções que, para outros tragediográfos, eram circunscritas apenas ao coro -
procedimento que desagradou sobremaneira o autor daPoética, mas o torna novamente o
mais moderno entre os antigos, ao ensejar aquilo que chamamos nessa tese de parábase
permanente ou ironia estrutural.
Em Eurípedes, o coro pode ser classificado como um frequente porta-voz do poeta e
intensificador das impressões do momento. Como a estrutura coral tradicional muitas vezes
se divorciava da ação, Eurípedes tratou de criar um personagem que fazia também funções
outrora exclusivamente atribuídas ao coro, amalgamando num só personagem as funções
do coro e do ator. A ama, na Medeia de Eurípedes, por exemplo, funciona, sobretudo, como
um verdadeiro ator-confidente e não raro, como o inconsciente da protagonista.257
O teatro de Beckett, contudo, promove uma reinvenção desse expediente teatral com a
dissolução do coro258. Os personagens de Beckett, como já foi mencionado, não carregam
consigo atributos que lhes dê a qualidade de personagens, ao menos no sentido tradicional 255BRANDÃO, Junito. Teatro grego: origem e evolução. São Paulo: Ars Poética, 1992, p.52. 256Idem. 257 Idem. 258Em capítulo posterior (Capítulo V) falaremos com mais detalhes sobre a dissolução do coro trágico na encenação do luto, a partir da encenação com objetos fraturados que compõem a cena beckettiana.
147
do termo. Reduzido, em Esperando Godot, aos pares de sobreviventes, Estragon-Vladimir,
Pozzo-Lucky, dois trapos de gente, que são a “humanidade inteira”, veremos em suas vozes
a expressão do phatos que simboliza o próprio phatos dos espectadores.
Estragon: Para não ouvir. Vladimir: Temos nossas razões. Estragon: Todas as vozes mortas. Vladimir: Um rumor de asas. Estragon: De folhas. Vladimir: De areia. Estragon: De folhas. Silêncio (BECKETT, 2006, p.120)
O trecho é um longo diálogo, no qual, a despeito de seu caráter eminentemente poético
e musical, vemos encenada a solidão desses dois personagens. Tal como refletem as
teorizações de Schlegel ou Hegel259, o coro pode refletir seja um sujeito dividido em várias
realidades irredutíveis, seja uma realidade exterior ao sujeito, mas por ele percebida como
plural. Essa evolução restitui paradoxalmente ao coro uma importância mítica considerável:
Nietzsche vê nele a possibilidade formal de transmissão de uma narrativa mítica das origens
comunitárias, e, sem nomeá-lo, Artaud o evocará. Portanto, convocar a forma coral nos dias
de hoje é situar historicamente a obra. No caso em questão, o discurso fragmentado dos
personagens, que mais parecem recortes de uma conversação, mostram, poeticamente, a
impossibilidade de uma narrativa plena que traduza uma experiência comum. São
lampejos,que incorporam uma visão trans-histórica da realidade, na qual todos os tempos
estão em diálogo e as lacunas encontram-se intransponíveis, impedindo uma compreensão
global dos eventos. Aqui, os farrapos e resíduos260 se apresentam como o fracasso da
259SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Coro/Coralidade. In:Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.61-62. 260 Benjamin, nas Passagens, fala sobre um método de trabalho que consiste em “montagem literária”. Ele diz: “Não tenho nada a dizer. Somente mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos e os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os.” Na tentativa de escapar do materialismo histórico vulgar, Benjamin apresenta seu método, que se afastará da noção de continuum da história, no qual um tempo homogêneo e vazio funciona como referência, para dar lugar a um tempo saturado de agoras.Articular o passado não significa conhecê-lo como ele foi, mas apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja em momentos de perigo. Onde o historicismo vê uma cadeia de acontecimentos, Benjamin vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína. O diálogo de Vladimir e Estragon encena essa realidade arruinada e sua estrutura fragmentada, com suas elipses e silêncios, encena poeticamente o
148
empresa ocidental, que culminou com a dissolução do sujeito e a impossibilidade de
comunicação:
Vladimir: Falam todas ao mesmo tempo. Estragon: Cada uma consigo própria. Silêncio. Vladimir: Melhor, cochilam. Estragon: Murmuram. Vladimir: Sussuram. Estragon: Sussuram.
Silêncio. (BECKETT, 2006, p.121)
Na tradição clássica cabia ao coro marcar o ritmo da ação e dar corpo às vozes da
coletividade. Em Esperando Godot caberá aos jogos inacabados com as palavras e ao
manuseio de objetos residuais, a marcação do ritmo da peça. As “vozes mortas” evocadas
pelos dois vagabundos são a humanidade que desapareceu, que foi silenciada e agora
encontra-se representada por aquelas figuras errantes que estão ali no palco, como mortos-
vivos, encenando, por meio de seus jogos de conversação, a sua incompreensão diante da
situação em que se encontram:
Vladimir: E falam do quê? Estragon: Da vida que viveram. Vladimir: Não foi o bastante terem vivido. Estragon: Precisam falar. Vladimir: Não lhes basta estarem mortas. Estragon: Não é o bastante. (BECKETT, 2006, p.121)
O grotesco se evidencia assim plasmado na ironia, que permeia a encenação em forma
de jogo permanente, entre o riso e a melancolia. Na comédia grega, a parábase ocorria
quando o coro momentaneamente se desligava do contexto das ações e, sozinho em cena,
transmitia ao público o apelo do dramaturgo como um contraponto crítico das questões
relativas à representação teatral.
Se o interlúdio coral, na antiguidade, articulava a cesura ou bipartição estrutural do
drama cômico em um intervalo, quando, só então, instituía dentro da peça a metalinguagem
como contraponto crítico às ações; na modernidade, o dispositivo, reformulado, irá permear
resultado dessa desintegração.BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. De Irene Aron. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 502.
149
toda a estrutura ficcional e não se prenderá mesmo a um gênero específico261. Em
Esperando Godot, por exemplo, não há uma ação que se desenrola em um momento
especial, em que o plano da realidade é colocado em xeque. Toda a peça se desenvolve
sob a égide do paradoxo irônico e sua capacidade corrosiva, derrisória, desestabilizadora de
um sentido último. A ironia, em Beckett, não é uma questão retórica, mas sim estrutural. Ela
é capaz de manter a ambiguidade e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de
um sentido último, de uma verdade absoluta, comum à apreensão metafísica do mundo.
O sofrimento do homem, o desgosto por uma existência desprovida de significado não
acolhe somente o que poderia haver de sublime nessa condição, pois o sublime pode servir
a um comportamento narcísico, capaz de converter a dor em superioridade. Mas o espelho
do grotesco deforma e disfoca: acolhe registros obscenos e escatológicos, abundantes em
toda produção beckettiana e também presentes em Godot.
A história do inglês no bordel, resgatando uma velha piada francesa sobre a suposta
preferência do macho inglês por sodomia; a ereção vislumbrada por Vladimir, caso
conseguisse se enforcar, que faria brotar mandrágoras. Pozzo que lembra um glutão,
comendo frango e descartando os ossos com desdém. O mau hálito e o chulé da dupla de
clochards... Sem contar as inúmeras alusõesou até mesmo citações explícitas de palavras
de baixo calão no discurso de Lucky; são muitas as ocasiões em que é possível bordejar
uma aproximação de Beckett à tradição de Rabelais.
Aliás, a mistura de erudição e humor, tão presente em Esperando Godot, se evidencia
com bastante frequência: a evocação da filosofia dos pré-socráticos (“Nunca se desce no
mesmo pus), A lua "Pálida de cansaço262" a que se refere Estragon, citação de "To the
Moon", de Percy Bysshe Shelley; além da alusão a Shakespeare, no discurso de Lucky, em
que cita Miranda, personagem de “A Tempestade”; são apenas alguns exemplos dessa
261O uso da parábase, na forma de rearranjo coral, pode se estender aos romances de Beckett, que também fazem uso desse dispositivo no sentido de articular, via ironia, uma permanente desconstrução dos enunciados que se sobrepõem. Aliás, em Beckett, o recurso sucede em um desenvolvimento progressivo na primeira trilogia, que culmina com O Inominável. 262 O poema de Shelley aparece aludido apenas na versão em inglês.
150
mescla de materiais que se dá sem hierarquias.
Como já mencionamos em capítulo anterior, temos aqui um arremedo de Sísifo.
Arocha de Vladimir e Estragon torna-se um adereço de um número de comédia, na qual se
encena a completa dissolução do sujeito. Não há espanto, talvez só o público o sinta com
maior intensidade, pois, se há vestígios de consciência por parte dos personagens, isso não
se dá com força suficiente que os faça abandonar o palco ou aderir a uma solução trágica.
Como já dissemos, Gogo e Didi reencarnam um nova versão de Sísifo em sua espera;
parecido com o de Camus, mas com um novo matiz: não há assombro na repetição
contínua, mas humor, quepermeabiliza, num jogo ininterrupto, o trágico. A formulação de
Camus “é preciso imaginar Sísifo feliz”, que serve de epígrafe à narrativa do escritor
argelino, pode ser comutada, no universo de Beckett, pelos seguintes dizeres: “sim, é
possível (e não preciso, nos dois sentidos do termo) imaginar o gozo de Sísifo”;caso
fôssemos comparar esses personagens esuas jornadas inconclusas. Jocosos, os
personagens jogam seus jogos. A alegria, que permite o gozo transitório, é diferente da
felicidade, sentimento pleno, que visa a um conforto absoluto. Victor Hugo, escritor
romântico, dizia que a melancolia é a felicidade de se ser triste. Talvez o termo mais
aproximado,no caso das criaturas beckettianas, seria a “alegria de ser triste”, dado que,
adespeito da felicidade, a alegria seja instável por excelência e, assim como aquele que
está afetado por ela, esteja condenada aos caprichos do tempo.
De qualquer forma,como já mencionamos, Esperando Godot não pode ser caracterizada
como tragédia, já que em sua estrutura os heróis não obedecem à trajetória do tradicional
herói trágico. Não há a clássica passagem de um estado de eudamonia(glória) para
daimonia(desgraça); em certa altura, Estragon e Vladimir mencionam que já foram
respeitáveis em algum tempo, talvez em 1900, mas não há quase nada que dê indicações
de suas identidades em um suposto passado. Com efeito, gestos trágicos não cabem mais
no desempenho de seus papéis. “De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros
da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam
nem subir.” Não háhybris,(orgulho) visto que os personagens são vagabundos, distantes de
151
qualquer princípio ético ou moral correspondente ao conjunto de valores que regem a
realidade empírica. Tampouco há medida ou limite a ser ultrapassado.
Logo, os personagens não cumprem o programa do herói trágico a quem era reservado
um périplo que culminava com um aprendizado final. Antes, caminham na esfera do não-
saber, agem como fantoches e marionetes de um destino cego, que os faz parecidos com
personagens de uma farsa. Não há mesmo interlocução de deuses ou deus, a realidade
encontra-se fragmentada sem qualquer manifestação de vozes coletivas, passíveis de
serem percebidas em um mundo regido por um princípio de totalidade.
E é dessa forma que Beckett desconstrói a forma cômica e trágica: dissolvendo o coro
que antes abrigava a pluralidade de vozes de uma comunidade; reduzido, agora aos pares
de sobreviventes Estragon-Vladimir, Pozzo-Lucky, que, no deserto em que habitam, são a
“humanidade inteira”. Assumindo o papel do coro, serão esses personagens os porta-vozes
de uma realidade arruinada. Neles, veremos expresso o phatos que simboliza o próprio
phatos dos espectadores. Se o coro era a possibilidade formal de transmissão da voz
coletiva, ele é agora os ecos dessas vozes, que jazem com o fim da experiência
partilhadaem forma de farrapos humanos e, por isso mesmo, não chegam sequer a alcançar
o estatuto de personagem.
Se o interlúdio coral, na antiguidade, articulava a cesura ou bipartição estrutural do
drama cômico em um interlúdio, quando,só então, instituía, dentro da peça, a
metalinguagem como contraponto crítico às ações; na modernidade o dispositivo irá
permear toda a estrutura ficcional e não se prenderá mesmo a um gênero específico. Em
Esperando Godot, por exemplo, não há uma ação que se desenrola e um momento especial
em que o plano da realidade no qual se daria essa peripécia é colocado em xeque. Toda a
peça se desenvolve num permanente jogo dialético, no qual a poética da ironia converte
toda oposição antagônica em oposição parceira. Uma posição só existe porque co-existe
com a outra, que lhe é diametralmente oposta. Não se admite a separação lógica nem a
síntese dialética dos contrários.
A parábase permanentepossibilita o jogo da mimicry, na articulaçãode uma alternância
152
de perspectivasque recusaa adoção primária de um personagem unívoco, que
representasse uma identidade. Sempre processual, jamais substancial, a realidade só pode
ser apreendida em sua dinâmica inacabada a partir da não-adesão a uma máscara
definitiva. Assim, os personagens de Beckett usam máscaras transitórias, sem nunca
afivelarem uma máscara última à face. Eles são e não são; por isso, talvez, não sejam tão
altivos e sofram tantas quedas.
Entretanto, a persistência dos personagens diante de uma realidade catastrófica, ao
mesmo tempo em que ignoram solenemente a gravidade da situação, mostra a
incapacidade de seremniilistas, mesmo em uma situação periclitante. Como observou o
crítico Günter Anders263, o que a obra de Beckett apresenta não é niilismo, mas a
incapacidade do homem em ser niilista mesmo em uma situação de desespero total. De
fato, muito da melancolia transmitida pela peça e empatia produzida nos espectadores pela
dupla vem do fato de ambos, em sua espera, mostrarem que não são capazes de lidar com
essa situação, portanto, que eles não são niilistas. Aliás, é esse “defeito” que os torna
irresistivelmente engraçados, pois nada é mais engraçado, segundo o crítico, “que a total
confiança totalmente injustificada”.
Anders estabelece uma analogia entre Estragon e Vladimir e o arquetípico personagem
do marido traído, que permanece incapaz de reconhecer os fatos que se colocam como
obviedade diante de seus olhos.Éuma espécie de automatismo presente nas condutas de
Estragon e Vladimir que desencadeia o cômico, um automatismo muito próximo da simples
distração. Para convencer-se, basta notar que uma personagem cômica geralmente é
cômica na exata medida que ela se ignora. Como observa Bergson264: “o cômico é
inconsciente. Como se usasse ao contrário o anel de Giges, torna-se invisível para si
ANDERS, Gunter. Being without time: On Beckett’s Play Waiting For Godot. ESSLIN, Martin. (Org.) Samuel Beckett: A Collection Critical Essays. New Jersey: A Spectrum Book, 1965, p.140 -151. 264 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade.São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.138.
153
mesmo ao tornar-se visível para todos.265”
Tal esfacelamento entre as fronteiras dos gêneros é ao mesmo tempo, causa e
consequência da crise do drama266. Todos os elementos que asseguravam o seu status quo
estão agora em xeque. Até mesmo o personagem, antes responsável pela ação, condutor
da identificação e garantia da mimese, que se achava incumbido de funções múltiplas no
drama clássico, torna-se, no teatro de Beckett, obscenamente exposto em sua fragilidade e
ignorância, que revela a fragilidade da própria cena em plasmar o real. Num
mundo desprovido de sentido, em que a realidade se oferece imersa na mais completa
desordem, não há mais demarcações prévias, hierarquias, nem salvação possível, - a não
ser que Godot venha. Enquanto isso, a catarse permanece em suspensão e o drama, sob
suspeição cerrada.
4.4 Menino, mensageiro ou novo deus ex-machina?
Para Ludovic Janvier, o menino de Esperando Godot é “um mensageiro transparente e
dócil de um mundo que o ignora267”.Inocente, é portador de uma mensagem de um senhor
imprevisível, Godot, que age com ele a partir da mesma premissa de justiça aleatória com
que age em relação aos seus suplicantes, Vladimir e Estragon. No ato I, ele diz trabalhar
para o senhor Godot como cuidador de cabras e possuir um irmão, a quem são confiadas as
ovelhas. Dormem em um celeiro.
Vladimir: Ele é bom para você? Menino: É, senhor. Vladimir: Não bate? Menino: Em mim, não, senhor. Vladimir: Bate em quem então? Menino: No meu irmão.
265ANDERS, Gunter. Being without time: On Beckett’s Play Waiting For Godot. ESSLIN, Martin. (Org.) Samuel Beckett: A Collection Critical Essays. New Jersey: A Spectrum Book, 1965, p.140 - 151. 266 SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.111. 267 JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 95.
154
(...) Vladimir: E por que ele não bate em você? Menino: Não sei, senhor. Vladimir: Deve gostar de você. Menino: Não sei, senhor. (BECKETT, 2006, p.102)
Aristóteles268 explicou, quando analisou o gênero trágico, que ação complexa é aquela
em que a mudança da fortuna para o infortúnio é resultado do uso de reconhecimento ou de
peripécia,ou de ambos os meios. A peripécia é, segundo o filósofo grego, uma reviravolta
completa das ações e o reconhecimento seria a passagem de um estágio de ignorância ao
de conhecimento. No caso de Édipo Rei, de Sófocles269, por exemplo, quando o mensageiro
aparece na figura de um ancião, sua função é desvelar de vez o mistério a respeito de
Édipo. Mas a peripécia começa a se desenrolar mesmo antes de sua chegada.“No momento
do reconhecimento, quando Édipo descobre que é ele o assassino de Laio e filho de
Jocasta, há uma reviravolta completa na ação, até chegar à catástrofe final: o suicídio de
Jocasta e a cegueira de Édipo270.” A peripécia, nesta peça de Sófocles, inicia-se durante um
diálogo entre Jocasta e seu ainda não reconhecido filho, quando este começa a se dar conta
de que o homem que havia matado podia ser Laio, o rei de Tebas.
No entanto, é mais adiante, no momento em que o Mensageiro chega para esclarecer
toda a história, que a peripécia se intensifica e acontece o que Aristóteles chama de “a mais
bela forma de todos os reconhecimentos, aquela que se dá justamente com a peripécia;”
forma esta que intensifica os sentimentos de terror e compaixão, sentimentos próprios desta
forma dramática que levarão à catarse.
Édipo: Temo que Febo se mostre verdadeiro. Mensageiro:Temes macular-te com mancha vinda dos que te geraram? Édipo:È isso, venerável, que sem trégua me atormenta.
Mensageiro: Sabes quete torturas sem motivo algum? Édipo:Sem motivo, se sou filho destes genitores? Mensageiro: Pólipo não tem nenhum parentesco contigo. Édipo: Que ouço? Não foi ele quem me gerou? Mensageiro:Nem ele nem este que te fala, nisso somos iguais. Édipo:Ousas igualar meu genitor a um joão-ninguém como tu? Mensageiro:Repito, não deves a vida nem a ele nem a mim.
268ARISTÓTELES.Poética.Ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1998, p.125. 269 BEDIN, Ciliane. Mímesis na ação em Édipo Rei e Esperando Godot. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. 270 Idem.
155
Édipo: Por que, então, me chamava de filho? Mensageiro:Foste um presente, sabe, que ele recebeu de minhas mãos.
(SÓFOCLES, 2004, p.146)
Ao contrário de um ancião, é uma criança que virá trazer o recado de Godot. Em
Esperando Godot, porém, o Menino não revela nada nem promove nenhum
reconhecimento. Há interpretações que lhe atribuem o papel de prenunciar um desígno
sinistro, no qual a vinda de Godot se configuraria na morte, sempre adiada; mas
acreditamos que essa interpretação é apenas mais uma, dentre várias outras possibilidades
de se pensar significações encetadas por essa misteriosa figura.
Seria Godot um personagem divino? Há uma clara divisão entre Deus, que é citado
diversas vezes na peça, e Godot. No segundo ato II, o Menino diz que presume que ele
possua barbas brancas, mas nada disso evidencia que exista alguma característica que lhe
confira uma essência divina:
Vladimir: Como vai seu irmão? Menino: Doente, senhor. Vladimir: Talvez tenha sido ele que veio ontem. Menino: Não sei, senhor. Silêncio. Vladimir: Ele usa barba, o senhor Godot?
Menino: Sim, senhor. Vladimir: Loira ou...(hesita) ou morena? Menino(hesitante): Acho que branca, senhor. Silêncio.
Vladimir: Misericórdia. (BECKETT, 2006, p.102)
As intervenções dos deuses ocorrem, na literatura grega, em vários gêneros literários,
quer numa intervenção deus ex-machina, quer sob a forma mais generalizante da
manifestação direta dos deuses, a teofania. Recorrente nas narrativas homéricas, a teofania
funcionava como possibilidade de salvação do herói, quando o impasse se tornava
insuperável para os limites humanos, sendo o sobrenaturalum aliado indispensável nessas
situações.
O deus ex-machina271, em sentido restrito, ocorre na tragédia, quando a divindade, no
final da peça, se manifesta para resolver o desenlance da ação. Todavia a designação de
“deus ex-machina” é um conceito que,em alguns autores, denota uma acepção mais lata: os 271 ARISTÓTELES.Poética.Ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda: 1998, p.123.
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deusespodem utilizar o recurso sem que seja uma epifania no final da peça (por exemplo,
Artemis, emHipolito), mas um mecanismo que pode também ser utilizado por mortais, como
Medeia, de Eurípedes, e sua espetacular saída no carro de ouro.
É, pois, evidente que também os desenlances devem resultar da própria estrutura do mito, e não do deus ex machina, como acontece em Medeia ou naquela parte da Ilíada em que se trata do regresso das naves. Ao deus ex machina, pelo contrário, não se deve recorrer senão em acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do passado, anteriores aos que se desenrolam em cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou nos futuros, que necessitam ser preditos ou prenunciados – pois que aos deuses atribuímos nós o poder de tudo verem. (ARISTÓTELES, 1988, p.124)
Aristóteles constata três funções essenciais deste artifício. A primeira, mais conhecida e
praticada, consiste no desenlance da ação dramática através de uma intervenção exterior à
intriga. A segunda seria a representação do tempo extracênico, isto é, a ligação da ação
com o passado e o futuro, com os acontecimentos mitológicos que a precederam e se lhe
seguem. Há também uma terceira, obscura e mais misteriosa: acontecimentos que são
proibidos, que são ocultados ao conhecimento humano.
Segundo Aristóteles, a lei da unidade e coerência aplica-se obrigatoriamente à tragédia;
de acordo com sua teoria, deveria ser rejeitada toda a ação interventiva do deus ex-
machina, mas é, por outro lado, tolerada – e até mesmo incentivada – na marcação do
tempo cênico. A crítica de Aristóteles à má utilização do dispositivo dirige-se expressamente
contra Eurípedes.
Aristóteles valorizava o recurso na segunda acepção,como ligação da intriga com a ação
extracênica. Para ele, essa era uma função positiva para o recurso; não um mero remendo
para uma situação que o autor da trama não soube solucionar com os recursos que possuía
em seu universo ficcional.
O menino, que aparece no primeiro e no segundo ato com uma mensagem de Godot
parece encarnar, em princípio, o mensageiro trágico tradicional. No primeiro ato, ele surge
logo após Pozzo e Lucky deixarem a cena. Depois de, mais uma vez, ameaçarem deixar o
palco e se lembrarem de que não podem fazê-lo porque estão “esperando Godot”, Estragon
e Vladimir estão praticando a conversação para “passar o tempo”. É quando surge, da coxia,
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a voz de um Menino:
Voz dos bastidores: Senhor! Estragon pára. Os dois olham em direção da voz. Estragon: Lá vamos nós de novo! Vladimir: Venha cá, meu filho. Entra um menino, assustado. Pára.
Menino: Senhor Albert? (BECKETT, 2006, p.96)
No primeiro ato, quando aparece, Estragon parece querer “dirigir” o Menino, como um
encenador, dizendo a ele o que deve fazer em cena. Enquanto o garoto conversa com
Vladimir, ele parece apontar as marcações no palco: “Venha, estão mandando!” Ele
confunde o Menino e o questiona a respeito do tempo, como se ele estivesse atrasado em
sua entrada para o número. Todo o diálogo gira em torno da questão do tempo, apenas o
Menino parece desconhecer o conteúdo do assunto. Se Vladimir sempre cobrava que
Estragon respondesse às suas deixas, é agora Estragon que desempenha o papel com o
Menino:
Estragon: (...) Por que demorou tanto? Vladimir: Trouxe o recado do senhor Godot? Menino: Trouxe, senhor. Vladimir: Tudo bem, pode falar. Estragon: Por que demorou tanto? O menino olha de um lado para o outro sem saber responder. Vladimir(a Estragon): Não amole o menino. Estragon (a Vladimir): Não me amole você! (Aproximando-se, aomenino)
Sabe que horas são?(BECKETT, 2006, p.96)
O Menino é acossado insistentemente por Estragon. Ele se justifica, diz que não foi por
sua culpa que atrasara, e, cada vez mais oprimido com as questões de Gogo, vai
repondendo-as, a esmo, tomando para si,como resposta, desculpas que são enumeradas
por seu interlocutar, sem, no entanto, deixar transparecer se foram realmente aqueles
fatores que o fizeram atrasar. Estragon parece querer imitar Pozzo, quando este tripudia
com Lucky, já que os dois haviam acabado de deixar o palco.
Vladimir: Você é daqui? Menino: Sim, senhor. Estragon: Que mentirada! (Pega o menino pelo braço, sacode-o) Fale a verdade! Menino(trêmulo): Mas é verdade, senhor. Vladimir: Quer deixar o menino em paz. Qual é o seuproblema? (Estragon larga o menino, recua, leva as mãos aorosto. Vladimir e o menino olham para ele. Estragon descobre o rosto, transtornado)O que há com você?
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Estragon: Sou infeliz. Vladimir: Não brinque! Faz tempo? Estragon: Tinha esquecido. Vladimir: A memória faz das suas. (BECKETT, 2005, p.99)
Só quando Estragon desiste, retornando à sua rotina de lidar com as botas que lhe
apertam os pés,Vladimir consegue retomar o diálogo com o Menino. Vladimir parece mais
disposto afazer o jogo de cena com o garoto. Os dois se despedem depois de um longo
diálogo, não sem que Vladimir tente se assegurar, antes, de que o Menino o tenha visto272.
Aqui retorna o motivo do bispo irlandês Berkeley, tão recorrente na obra do escritor irlandês.
“Ser é ser percebido273” (esse est percepti). Ea pergunta do Menino é idêntica, nos atos I e
II: “O que eu digo ao senhor Godot, senhor274?”
Não poderíamos pensar o menino como deus ex-machina reinventado por Beckett? Para
isso, não nos reportamos à acepção ordinária do termo, a partir da qual uma intervenção
divina ou humana aparece do nada para resolver algum imbróglio, que os elementos
presentes no universo ficcional não foram capazes de solucionar.Esperando Godot não
possui uma intriga, que necessitaria desse expediente para sua resolução. Vamos
então à segunda acepção, aquela considerada válida para o autor da Poética: a marcação
do tempo cênico. Ora, o esquecimento compulsório dos personagens não permite uma
articulação entre tempo e memória. O tempo é circular e a função do Menino é ser um
arauto dessa circularidade, dessa repetição. Em uma situação tradicional, o menino
apareceria como possível regulador da ação,mas,se não o faz, é porque sua função é
justamente a de apontar que a repetição deve continuar e o espetáculo não pode ser
interrompido, mesmo que ele não apresente superação ou síntese para aquela situação de
272 VASCONCELLOS, Cláudia. Figuras Infernais no teatro de Samuel Beckett. Tese de doutorado defendida no curso de Teoria Literária e Literatura Comparada Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2012, p. 24. 273 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. In: O maior filme irlandês. (Film de Beckett) São Paulo: Editora 34, p.36.
274BECKETT. Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.189.
159
espera.
Mas ainda há a terceira acepção de Aristóteles: a de apresentar aquilo que é vedado ao
conhecimento humano. No entanto, o Menino aparece nas duas vezes em que os
personagens ameaçam abandonar o jogo; na primeira quando Estragon, como aponta a
rubrica,à maneira prática, que lhe é peculiar, dirige-se lentamente em direção àcortina, no
intuito de encerrar o espetáculo; na segunda, quando Vladimir, em seu solilóquio, parece se
aproximar de uma constação de que não é válido que continuem ali, naquela espera inútil.
Parece-me, desse modo, que sua presença se manifesta para manter velado o que deve
permanecer oculto, intensificar a tensão da espera,para permitir, assim, que a narrativa
prossigaem sua circularidade.
Mais uma vez, aqui, vemos Beckett subvertendo e reiventado os expedientes do teatro
tradicional. Pois, se Aristóteles exigia que existisse uma marcação temporal, dizendo que o
teatro, mas especificamente a tragédia, era a encenação de ações elevadas, Beckett brinca
com os expedientes: seu mensageiro encarna as funções do deus ex- machina, porém em
um contexto completamente diverso em que as determinações de Aristóteles para o drama
“ideal”estão completamente minadas, subvertidas. Aqui ele aparece não como um
mensageiro que irá revelar algo ou deus ex-machina em coluio com as forças divinas: o
personagem é completamente destituído de divindade, profanado, como, aliás, os demais
expedientes utilizados ao longo da peça, quando reportados à sua função no teatro
tradicional.
Assim, o mecanismo,quefora criticado pelo mais influente teórico da tragédia, Aristóteles,
quando esse insistia no “liame da necessidade e verosimilhança” como vetor essencial do
drama (Poética, p.116),exigindo uma causalidade sem falhas no desenrolar da intriga, é
também presa da sísifica circularidade beckettinana e seu teatro em que nada acontece.
Na primeira aparição do garoto, Estragon, já próximo da cortina,ao se dar conta de sua
presença, diz: “Lá vamos nós de novo!”. No segundo ato, quando o Menino novamente
irrompe a cena, é a vez de Vladimir: “Aí vamos nós de novo, não está me reconhecendo?” O
menino não é responsável pela ação, mas pela continuidade dos jogos, que, no caso em
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questão, substituem a ação e são a força motriz da peça.
O grande mal-entendido, bem à maneira do quiproquó do vaudeville, é que nem o
Menino, nem os personagens sabem o conteúdo da mensagem ou a função exata que
devem desempenhar em cena. O Menino surge apenas para dizer que eles devem
perseverar ali, pois, se Godot não vem hoje, amanhã, certamente, virá. Ou pelo menos é
essa a sua fala.
Se o número é trágico (e isso fica bem evidenciado no fato de que Estragon ficará
encenando sua melancolia, silenciosamente, com a rotina das botas, até o fim do diálogo), é
também cômico em virtude do desencontro e do ritmo impresso às falas, que frauda as
expectativas do espectador tradicional, não promovendo nenhuma descoberta ou
reconhecimento, nessa peça livre de peripécias e revelações.Assim “a mais bela forma de
todos os reconhecimentos, aquela que se dá justamente com a peripécia;” é banida do
universo beckettiano.
Nas duas aparições do Menino (às quais caberiam talvez que chamássemos de
atuações), se evidenciamduas categorias do jogo: alea e mimicry. Alea se manifesta na
disposição de jogar em que se colocam tanto Vladimir(Ato I) quanto Estragon (Ato II), a cada
vez que o Menino aparece em cena. Curiosamente, é justamente quando começam a dar os
primeiros passos para tomarem as rédeas da situação que o garoto aparece, e ambos,
conscientes de que tudo aquilo é uma repetição infinita, resolvem novamente aderir ao
jogo.É aí que se evidencia amimicry,já que ambos se põem a encenar, a jogar, como no
jargão dos atores teatrais, quando lançam as deixas entre si para o prosseguimento da
peça.
A atmosfera de melancolia se refaz. Quanto o menino sai de cena, nos dois atos, a lua
surge no palco. Assim indica a rubrica da primeira aparição: “A luz começa a diminuir
bruscamente. Faz-se noite num instante. A lua nasce, ao fundo, sobe ao céu, imobiliza-se,
banhando o palco de uma claridade prateada.”Os “pequenos homens lânguidos” olhando
para a lua é uma das imagens mais significativas da peça.
Esta configuração abre um padrão de referência visual e poética para a compreensão
161
da tonalidade que Beckett pretende imprimir em sua cena. A concepção visual de sua peça
foi inspirada, segundo o próprio Beckett, por uma pintura de Caspar David Friedrich.
Esta fonte fica mais evidente na transição da atmosfera que ocorre na cena em que duas
sombras, de Estragon e Vladimir, junto à árvore, são mostradas em silhueta, enquanto os
dois observam a lua irromper no céu noturno. Mas pode ser ainda mais determinante.De
acordo com seu biográfo, James Knowlson275, a estudiosa de teatro americana Ruby Cohn,
amiga de Beckett, disse que, em 1975, na ocasião em que estivera em Berlim para os
ensaios de Esperando Godot, ela, juntamente com Beckett, foi ver as pinturas de Caspar
David Friedrich. Era a famosa coleção dos pintores Românticos Alemães.
Nessa ocasião, enquanto estavam olhando para a pintura de Friedrich Mann und Frau
den Mond betrachtend(Homem e Mulher Observando a Lua), de 1824, Beckett a
surpreendeu com um comentário, anunciando de forma inequívoca: "Esta foi a inspiração
paraEsperando Godot, você sabe."
Mann und Frau den Mond betrachtend(Homem e Mulher Observando a Lua)
Caspar David Friedrich. Fonte:https://www.kunstkopie.de/a/caspar_david_friedrich/mann-und-frau-den-mond-be.html
275KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett. New York: Grove Press,
1996, p.342.
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Há uma certa imprecisão a respeito dessa informação, porque Knowlson afirma que,
emoutras vezes, ele chamaraa atenção dos amigos para Zwei Manner betrachten den Mond
(Dois homens que contemplam a Lua), um quadro do mesmo autor, que pertencia a uma
coleção da cidade de Dresden.Nela, dois homens, vestidos com mantos e vistos por trás,
estão olhando para lua cheia emoldurada pelos ramos negros de uma grande árvore, sem
folhas. Embora ele não tinha visto esta telaao vivo, pois não constava nesse acervo visitado
por ele e Cohn,esta pintura era muito bem conhecida por meio de reproduções em livros
sobre Caspar David Friedrich. Em todo caso, a pintura de Berlim é tão semelhante em sua
composição de imagem de Dresden, que o que disse Beckett a Cohn, naquele passeio,
poderia aplicar-se igualmente a qualquer um dos quadros.
Zwei Manner betrachten den Mond (Dois homens que contemplam a Lua) Caspar David Friedrich.
De qualquer forma, essa luz lunar que se espraia sobre os dois clochards,irrompendo
com brusquidão na cena,acentua o tom melancólico e a ambiência soturna da peça. James
Knowlson276nos diz que, em uma das anotações de Beckett, encontrada nos notebooks da
produção alemã,277 lê-se: "A atmosfera da noite é mantida, anexando géis azuis às luzes,
dando, assim, ao conjunto cinza, um efeito incolor frio." Ele ainda escreve: "A peça surge do
escuro, é encenada em profundidade crepusculare termina em luar, desaparecendo depois,
de voltapara a escuridão”.
A anotação de Beckett é, talvez, mais uma evidência de que a chegada do Menino
funciona como um presságio de recomeço, de eterno retorno do mesmo, desse desgastado
repertório que se repete, mas, ao mesmo tempo, impede que o jogo seja extinto.
5.ALIBERDADE DE NADA SER
5.1Clausuras, jogo e liberdade
A montagem de Esperando Godot (Warten auf Godot) dirigida por Beckettno Schiller
Theater de Berlim, em 1975, trouxe, através de algumas anotações em seus notebooks,
informações interessantes no que diz respeito à sua visão da peça.Em relação à atuação,
por exemplo, o escritor irlandêstratou de enfatizar para os atores que eles não poderiam
falar e se mover ao mesmo tempo. Ele insistia que fala e movimento deveriam estar
276KNOWLSON, James. Damned to fame: the life of Samuel Beckett. New York: Grove Press,
1996, p.342.
277Os famosos cadernos de anotação de Beckett, quando ele fora convidado para assumir a direção da peça. Warten auf Godot foi realizada pela primeira vez na Alemanha em setembro de 1953, como parte do Berliner Festwochen, apenas dois anos após a sua estreia em Paris. Entretanto, de todas essas produções, a produção de 1975, de Warten auf Godot, em Berlim, foi um marco, já que foi a primeira vez que Beckett dirigiu um trabalho seu. Detalhadas intenções de Beckett para essa produção estão registradas em dois cadernos vermelhos(Regiebucher), seus cadernos de direção à época, onde estão preservados comentários feitos ao seu assistente de direção, Walter Asmus. Cf.BARRY, Elisabeth. Beckett in Berlin. In: English and Comparative Literary Studies.Fonte: http://www2.warwick.ac.uk/fac/arts/english/people/barrydrliz/berlinlecture, data de consulta: 10/10/2013.
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desarticulados e as intenções poderiam ser enquadradas no discurso, mas não postas em
prática. Nesta disjunção mínima, uma questão fundamental sobre a existência humana se
abre:o quanto somos livres, temos livre-arbítrio? Será que estamos compelidos a agir, a
falar, por alguma autoridade externa ou por algum projeto pré-definido? Ou seríamos
absolutamente livres? Durante anos, a classificação mais frequentemente aplicada ao teatro
de Beckett foide teatro do absurdo, principalmente após o influente livro de Martin Esslin de
1961, sobre o tema.
Na obra278, Esslin enfatiza a ideia de teatro do absurdo, decorrente do pensamento
dos filósofos franceses Jean Paul Sartre e Albert Camus, a partir do qual, em um mundo
sem Deus, a humanidade estaria condenada a uma espécie de liberdade vertiginosa. Para
Esslin, Arrabal, Ionesco, Beckett (dentre outros) dão forma dramática às ideias
existencialistas.A partir dessa filosofia, somos nós queconstruímos o nosso próprio futuro, a
partir do improviso de nossa identidade, começando pela consciência de que a existência é
uma condição em que somos jogados no mundoe não pré-determinação ou essência divina,
uma alma que nos fora concedida por Deus.
Na quarta parte de O Ser e o Nada279, intitulada Ter, fazer e ser, Sartre estuda como
se desdobra e se efetiva nossa liberdade, segundo a estrutura fundamental da ação
humana. O para-si cria um conteúdo através dos atos: em face das possibilidades que se
abrem diante dele, é obrigado a escolher e agir. A ação é assim fundada, para Sartre, no
vazio do para-si e na capacidade de negação. Para agir, porém, o homem deve estabelecer
projetos e essa questão é decidida pelo poder de valoração da consciência. Ela confere
valor às coisas, tornando-as preferíveis umas às outras. Sartre afirma, por isso, que a
consciência reflexiva se identifica com a consciência moral: esta é necessariamente
278ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. 279 SARTRE, Jean- Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.
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implicada pela primeira. Ao refletir sobre o mundo eu imediatamente o julgo e avalio. O valor
é a criação específica do ser para-si: funda-se na liberdade280.
Ao contrário do res cogita de Descastes, o ser para-si sartreano é um vazio, uma falta
que deve ser completada. Por isso, visa, desliza para o em-si. Esse vazio é a liberdade
fundamental do para-si. Tal é o sentido do livro de Sartre O Ser e o Nada: o Ser (em si) e o
Nada (isto é, o para-si, consciência e liberdade). O vazio do para-si, ato de tentar completar-
se, faz com que apareça no mundo do em-si, o possível, o conhecimento, a ação, etc.
Segundo Sartre, o homem quis escapar dessa liberdade, pois ao sentir-se vazio, o
para-si experimenta uma angústia característica: a angústia da escolha, de ser obrigado a
optar por uma entre todas as possibilidades que se abrem diante de si. Mas, para fugir
dessa angústia, criou-se uma estrutura fundamental de comportamento que Sartre chama
de má-fé. A meditação ontológica de Sartre conduz, assim, necessariamente, a uma
mediação de ordem ética. O para-si não possui essência, é pura existência.
Para exemplificar a supremacia da liberdade no terreno da moral, Sartre281 recorrea
um episódio, vivenciado por um de seus alunos. O rapaz, durante a guerra, tivera o irmão
morto e vira seu pai transformar-se num colaboracionista. Sua mãe, diante de tais fatos,
mergulhara na mais profunda angústia. Só lhe restara o outro filho e era essencial que ele
permanecesse junto dela, caso ele quisesse dar ainda algum sentido para a vida da mãe.
Ocorre que o aluno de Sartre pensava em partir para a Inglaterra, juntar-se às Forças
Francesas Livres e combater os nazistas. Como escolher entre os dois caminhos? Sartre
então conclui que não deve haver moral geral: cada um deve inventar a sua. “Ele sabia – diz
280 Para Sartre só a existência de um Deus criador, no sentido de São Tomás de Aquino, por exemplo, justificaria que o homem tivesse uma essência que precede sua existência, isto é, uma natureza humana. Mas o homem é um encontrar-se já no mundo, um surgir espontâneo e contemporâneo ao mundo. Não há natureza humana a priori. Dado, como existência, o homem só adquire uma essência depois de existir, a posteriori, adquirida através de seus atos. Isso o torna, portanto, segundo sua filosofia, totalmente livre: nenhuma natureza original o determina para nada. O homem, diz Sartre na famosa conferência O Existencialismo é um humanismo, é apenas o que ele faz de si próprio. “O objetivo principal da conferência, entretanto, é extrair as consequências morais dessas verdades. Se sou totalmente livre, sou totalmente responsável. Não tenho desculpas para nenhum dos meus atos. Essa responsabilidade é tanto mais grave, porque, ao me escolher, escolho implicitamente todos os homens.” Cf. MACIEL, Luiz Carlos. Sartre: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 123-124. 281SARTRE. Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
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Sartre – a resposta que eu iria lhe dar e eu só tinha uma: você é livre, escolha, quer dizer –
invente.”
Sartre nega que essa moral existencialista desemboque num quietismo: ao contrário,
“se sou apenas minha vida, se o gênio de Proust, por exemplo, se resume apenas aos livros
que escreveu, se sou bom e faço coisas boas, se tudo está em ato e nada em potência, sou
obrigado a agir. O existencialismo é, portanto, uma moral da ação.
Entretanto, sabemos que os personagens de Godot não possuem projetos, negam-se
terminantemente à ação e são destituídos de consciência, já quesofrem um progressivo
apagamento na memória a cada fala enunciada. Claro, não desqualificamos uma filosofia
que foi tão importante para a história do pensamento, tampouco negamos que existam
pontos de contato entre o tédio de Estragon e Vladimir e a náusea dos personagens de
Sartre. Contudo, acreditamos que o enquadramento de Beckett de forma tão exata aos
pressupostos da filosofia existencialista deturpa a maneira com a qual questões essenciais
foram colocadas por sua obra, além de escamotear diversas invenções e subversões que
ela propõe, revolucionárias para o drama no ocidente.
A situação do universo beckettiano prenuncia ou problematiza algo parecido com a
liberdade282, mas um dos grandes mistérios de sua obra é que seus personagens não a
experimentam como aconcebemos ordinariamente. Inércia e imobilidade são duas
condições de suas peças e essa situação amplia nosso conjunto de referências a respeito
282 Duas escritoras brasileiras escreveram algumas linhas sobre a questão que aqui tateamos: Clarice Lispector e Cecília Meireles. A primeira, em Perto do Coração Selvagem, nos diz: Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome. Já Cecília, no Romanceiro da Inconfidência, aduz: ...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda... Nos dois trechos, a liberdade caminha na esfera do não-saber, do não realizado, ainda não vivido, mas percebido como possível e almejado. Não se liga a ação, é potência, devir. Assim também trataremos do tema na acepção beckettiana. A hipótese é a de que Beckett encena poeticamente o desejo de uma possibilidade de existência outra, no qual o conceito de Liberdade ganhará nova acepção. LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência.Rio de Janeiro:Letras e Artes, 1965,p.70. .
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do tema, já que estamos acostumados a relacionar Liberdade e ação. Lembremos ainda,
que, para Hegel283, para que haja uma genuína ação trágica é essencial que o princípio de
liberdade e independência individual, ou ao menos o princípio da autodeterminação, a
vontade de encontrar no eu a livre causa e origem do ato pessoal e de suas consequências,
já tenha sido despertada.É isso que tornaria a existência trágica, mas, como vimos aqui, a
peça não se inscreve apenas no território do trágico, mas encontra-se na fronteira, com
indiscerníveis matizes do cômico, sendo,assim, inevitavelmente, grotesca.
No próximo capítulo, tentaremos auscultar essa não-liberdade, ou a nova acepção do
termo que sua ficcção prenuncia, a partir da análise de alguns de seus personagens e de
seus antecessores, quando o assunto é “Nada a fazer”. A tentativa é perscrutar alguns
aspectos concernentes a esse especial desejo de liberdade; ou a lacuna que mobiliza esse
desejo, como o fio condutor da espera atravessada por jogos de Beckett.
5.2Ginastas do imobilismo
Dioniso Eleutério, o libertador. “Beckett serve-se do epíteto de Dioniso para dar nome
a sua primeira peça teatral,Eleutheria, que tem como tema a incansável luta de um jovem
para se libertar de sua família e de todos os lugares sociais pré-estabelecidos284.” O amor e
o trabalho são negligenciados pelo protagonista. Nessa peça de três atos, o palco é dividido
em dois: à direita, o herói jaz na cama, apático e passivo; à esquerda, sua família e
conhecidos discutem, num frêmito, seu caso.Apesar do interesse de todos pela situação de
Victor Krap, eles jamais o consultam sobre nada. A discussão ocorre à sua revelia e é como
se sua opinião ali não importasse e o assunto debatido não lhe dissesse respeito.Aos
poucos, contudo, a ação vai migrando da esquerda para direita, e finalmente o herói
consegue reunir energia suficiente para libertar-se de seus grilhões e separar-se
283WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna.São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 55. 284RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot. E outras encenações imaginárias. São Paulo: Editora Hucitec, Fapesp, 1999, p. 55.
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completamente daquela ordem de coisas, daquele contexto. A peça, que a princípio fora
encarada como pertencente à tradição realista, filia-se, na verdade, à dramaturgia
inaugurada por Pirandello, em “Seis personagens à procura de um autor”. Aqui, não há
ainda a reinvenção promovida por Esperando Godot, embora, nela, o humor corrosivo não
tenha poupado uma longa série de peças ou tradições cênicas canônicas, que não
escaparam de seu crivo paródico. “Há alusões paródicas a Sófocles, Shakespeare, Molière,
Corneille, Zola, Yeats, Artaud, Jarry. E o simbolismo e o surrealismo, e até mesmo o
admirado Pirandello, não foram poupados de seu olhar crítico285”. São explícitas as
referências cênicas entre Victor e Hamlet, ou Victor e Édipo; um Victor que, “como no tempo
de Molière, se esconde sob a cama”.
Esse desejo de Beckett de se livrar das convenções teatraisé considerado,
contudo,(por parte da crítica), anterior à“Eleuthéria.Um dos primeiros ensaios para
composição de seuspersonagens foi uma paródia de Le Cid, de Corneille, chamada Le
Kid.Apresentada em 1931, quando Beckett era ainda assistente no Trinity College, deParis,
foi encenada por alunos e professores por ocasião de um encontro anual da Modern
Languages Society. Beckett atuou como Don Diègue, e, ao que parece, nessa montagem,
ao compor seu personagem, já começava a esboçar a indumentária e os apetrechos de
seus vaudevilles. Seu Don Diègue tem um guarda-chuva e um relógio, acessórios que irão
retornar em Mercier e Camier e Fim de Partida, respectivamente.
Eleuthéria, longe da dramaturgia parcimoniosa de Godot (a peça tem 17
personagens), já traz em sua dramaturgia algumas novidades.No Ato I, por exemplo, no
quarto do protagonista, a ação se dá em forma de gestos com uma mímica simples, de
movimentos vagos, mas ritmados, de modo a revelar a situação de Victor, sem que o
espectador tenha que olhá-lo diretamente.“Eleuthéria” significa em grego, como substantivo,
285BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.154.
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liberdade, mas num sentido concreto e ativo, liberdade contra uma situação anterior, alforria
de um escravo, sendo também um dos epítetos do deus Dioniso286.
Ambos os significados calham bem com os objetivos de Beckett na peça. Sem dúvida
o que está em jogo é a liberdade diante da necessidade de se providenciar uma síntese,
umacatarse que conferisse um sentidoàquela realidade distorcida e entorpecida em que
estão seus pares (e também os espectadores). Todavia,como Beckett mesmo aponta, essa
seria uma catarse falsa, consistiria em apenas uma ilusão de liberdade numa situação em
que a singularidade é sistematicamente cerceada. Assim, não há reconciliação possível,
Beckett nega-se em promovê-la e a imobilidade de Victor Krap vence, sem que haja para o
espectador uma explicação que lhe proporcione conforto ou consolo. Em termos formais,
não temos ainda a complexidade artística a que assistimos em Esperando Godot, mas a
temática já aparece.É o desejo de liberdade que faz o personagem central recusar-se a
assumir qualquer papel social ou artitístico já conhecidos.
Eleuthéria anuncia um tempo em que se pede liberdade de não ser, ou de ser simplesmente nada. Diante do herói aristótélico, no modelo de Édipo, Victor é um fracasso completo. Não comete “erro fatal”, nem desperta o menor sentimento de terror e piedade nos que o assistem. O máximo de reação que ele provoca no público é de profundairritação e tédio mortal. (RAMOS, 1999, p.56)
Essa situação de ataraxia no universo beckettiano, do “nada a fazer”, é na verdade
anterior a Eleuthéria e já aparece em Murphy, novela que Beckett escreveu em 1938.
Murphy é um personagem que, assim como Victor Krap, nega-se peremptoriamente à ação,
permanecendo a maior parte do tempo em seu quarto. “O sol brilhava, sem alternativa, sob
o nada de novo. Murphy, como se fosse livre, dele se escondia, sentado, num pombal de
West Brompton.287”Com a alusão a Eclesiastes, se inicia o romance do primeiro vagabundo
de Beckett, que demonstra também grande simpatia pela clausura.
286RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot. E outras encenações imaginárias. São Paulo:
Editora Hucitec, Fapesp, 1999, p.55. 287 BECKETT, Samuel. Murphy. Trad. Fábio Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 05.
170
Esperando Godot traz essa reincidênciada expressão “Nada a fazer”, e a insistente
espera injustificada, que beira a perplexidade, dá continuidade, no teatro, à atitude de
imobilismo inaugurada por Victor Krap em Eleuthéria.Como observa Nuno Ramos288, “Se
Estragon e Vladimir parecem, a seu modo, filósofos pré-socráticos discutindo uma estranha
cosmogonia, é porque a espera por Godot os suspendeu e enclausurou ali, apagando a
energia metafórica ou remissiva de seus atos e falas.”O jogo que se dá na espera supõe,
em primeira instância, um intervalo que aguarda o evento significativo, mas em si mesmo o
jogo pode ser o evento em um espaço interditado.Energizando-se, emparedado, ele é capaz
de converter, em sua força centrípeda, a clausura e o sufocamento, tornando-se, ainda que
de forma contida e fragmentada, uma potência positiva de criação. A espera, nesse caso,
torna-se latência, dando ao presente múltiplas temporalidades, ao,artificiosamente, destituí-
lo de importância.
Segundo Ludovic Janvier289, a imobilidade é uma característica comum entre os
personagens de Beckett. Depois de alguma errância, a humanidade prefere prostrar-se em
um quarto escuro. Belacqua, de More pricks than kicks, inaugura essa galeria de
negligentes. Belacqua é "por natureza" indolente, ele parece mesmo personificar a
indolência em si. Seu nome deriva de um florentino preguiçoso e notório, que Dante e
Virgílio veem procrastinar no quarto Canto do Purgatório, da Divina Comédia. Ele está no
sopé da montanha, que os peregrinos se esforçam para subir.O Belacqua de Dante é
imóvel, e, em sua maneira tipicamente contundente, pergunta por que eles deveriam ir para
cima. Ele se contenta em esperar lá fora até que sua salvação chegue, sentado e segurando
seus joelhos, com a cabeça caída.
Também o Belacqua de Beckett compartilha deste “espírito preguiçoso”. No texto
“Dante e a lagosta” será esse mesmo personagem que irá pensar na arbitrariedade do
destino da Lagosta, que é levada a fervura, ainda viva. Narrado em terceira pessoa, com um
288 Cf. RAMOS, Nuno. In: Posfácio Para Murphy. BECKETT, Samuel. Murphy.São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 227. 289 JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 90.
171
dose elevada de humor, o conto fala da perplexidade diante da desconcertante justiça
divina.
Mas éainda possível dizer que cada obra posterior resgata este Belacqua a qualquer
ensejo. “Um texto pequeno dos anos 30, ao se intitular Sedendo et quiescendo, retoma, do
próprio Dante, a célebre fórmula aristotélica do muito preguiçoso e histórico Belacqua,
“sedendo et quiescendo anima effecitur sapiens” (é permanecendo sentado em repouso que
se dá sabedoria à alma)290”.
Todos os expectantes de Beckett são preguiçosos e tomam, de forma literal, as palavras
de Aristóteles para si.“É sentado, nu, na cadeira de balanço”, que Murphy medita sobre “o
nada de novo debaixo do sol.” A errância e a imobilização progressiva, que se segue a ela,
parece ser o percurso natural das criaturas beckettianas. Watt, Mercier e Camier ainda são
andarilhos, embora tentados pela movimentação dos músculos ou ameaçados pela queda.
Em Novelas e Molloy é que o reencontro daquele que partiu se dará, em todos os sentidos
do termo, deitado, tendo finalmente se desapegado da condição humana. “Molloy, Moran,
Malone, Hamm, Winnie... todos caminham para um processo de decomposição que
culminará com o Inominável e o trio de cabeças de Comédia291.”
O narrador de Como é, escrita em francês em 1961, está em posição semelhante, com a
diferença de estar deitado;um Belacqua caído de lado, lembrando também a posição
fetal292.Ademais, toda a galeria de personagens de Beckett evita o trabalho.
Kostas Axelos293, dialogando criticamente com Marx e Heidegger propõe que nos
aventuremos a pensar o jogo do mundo do Nada-Ser na dimensão de superação do
niilismo, indicando o tempo da errância verdadeira como possibilidade inteiramente nova de
existir. Marx - diz Axelos - sustenta que o sistema capitalista impede o trabalhador de sentir
prazer no/do seu trabalho (necessidade) e de vê-lo como jogo (liberdade). Axelos usa o
conceito de jogo, tanto como categoria ontológica quanto como um ideal ético para uma
290JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p. 90 291 Idem. 292BECKETT, Samuel. Como é. Trad. Souza, Ana Helena. São Paulo: Iluminuras, 2002, p.181. 293 AXELOS, Kostas. Introdução ao pensamento do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 26-27.
172
sociedade alienada. Ele argumenta, seguindo Marx, que essa oposição entre o trabalho
(necessidade) e jogar (liberdade) precisa ser abolida e, na esteira de Heidegger, que o jogo
é o significado do Ser que foi esquecido no mundo moderno (oesquecimento do Ser).
Criticando as contas excessivamente deterministas da globalização, por exemplo, Axelos
argumenta que a pergunta sobre o Seré um processo de formação do mundo, que é mais
aberto para a transformação do que os teóricos marxistas clássicos gostam de admitir. O
aspecto relacional de jogo é o que liga a atividade humana com a atividade do mundo, e os
diversos sistemas da vida humana (mágica, mito, religião, poesia, política, filosofia, ciência)
em conjunto e para o mundo.
Assim, o jogo não é de todo apenas uma vocação infantil, para Axelos.Segundo ele, “a
experiência da ausência é talvez a experiência fundamental por vir294”. Essa nova
possibilidade de clareira do Ser-nada, essa possibilidade de um novo ser-mundo aberto
seria possível a partir da compreensão do ser no jogo, que é e não é, não mais obedecendo
aos princípios transcedentes ou ideais, tais como: a verdade, o bem e o belo.
Entretanto, em Beckett, o contato do ser com a linguagem através da clareira, esse
espaço de emancipação e de iluminação, é sempre parcialmente realizado e parece adiar
alguma coisa por vir, algum novo saber, que deve permanecer, como seus personagens, à
espera.Sua escrita evita uma síntese apressada, providenciada pelo vício de uma
apreensão metafísica do mundo.Para isso,não abdica da escuridão, que avança, como
rápidas nuvens em uma tempestade, obliterando de forma intermitente cada enunciado que
queira clarificar algum sentido que ajuste o real ao ficcional:seus jogos deixam em
suspensão tanto a entrada quanto a saída, a fuga e o retorno, o dentro e o fora.
No teatro, a crise da ação assume múltiplas formas a partir do século XIX. Os dramas de
Tchekhov, por exemplo, promoverão uma progressiva descentralização que culminará com
a fragmentação de suas peças. Porém, é no teatro estático de Maeterlink que será
294AXELOS, Kostas. Introdução ao pensamento do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 26-27.
173
concebido um teatro que se quer pura imobilidade295.
Bartleby296, o escriturário, de Herman Melville, é um personagem que possui uma
setença, uma frase, com a qual se esquiva, ao mesmo tempo em que põe em xeque esses
lugares pré-concebidos. O conhecemos através de uma narrativa em primeira pessoade um
advogado. A experiência que se dá, quando o segundo passa a conviver com o primeiro,
afeta o narradorpor toda sua vida. A própria iniciativa do advogado emnarrá-laacusa isso:
pretende compreender o que aconteceu naquele episódio; pretende, principalmente,
entender as atitudes, o modo de ser no mundo, o ethos, daquela inexprimível figura, que é
Bartleby.
O distinto personagem que nos conta a história guia-se por severos padrões de seu
tempo, convencido de que “a melhor maneira de se viver é de se encarar tudo com
tranquilidade”, ou ainda, de que “a forma mais fácil é a melhor”. Cercado de copistas em seu
escritório, o advogado renuncia progressivamente a todo o entorno para prestar atenção à
inaudita conduta do mais peculiar de todos, Bartleby.
Desde que começara seu ofício de copista no escritório, o escriturário se acomodara
junto a uma janela que nada descortinava, respondendo a cada solicitação, a cada ordem,
com a sentença: “Preferiria não”. (I would prefer not to). Isso obceda o narrador da história.
Qual seria o conteúdo enigmático, a charada concernente à simples sentença combinada a
uma atitude de recusa? O século XIX leu a novela e compartilhou do mesmoespanto de seu
narrador diantede Bartleby.
Deleuze, em Crítica e clínica 297, analisa que, ao parar de copiar, isto é, de reproduzir
palavras, o escrivão “cava uma zona de indeterminação”, fazendo com que as palavras já
295Todavia, será o “teatro estático,” de Maeterlinck, que marca uma das manifestações mais radicais no rompimento com a necessidade de uma ação dramática na concepção da cena. Um teatro de pura imobilidade, que substituirá a ação por movimentos de outra natureza: “os movimentos da alma”.Contudo, Beckett parece, nesse sentido, mais próximo de Tchekhov, o poeta da inércia,cujodrama, assim como os do autor irlandês, é uma ode ao tédio e à impossibilidade de fazer sentido, ainda que os personagens nunca se abstenham da tensão que tal situação ocasiona. Além disso, a escrita de ambos é marcada peloelemento cômico. SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo.São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 37. 296 MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 297DELEUZE. Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011, p.94.
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não se distingam, produzindo, assim, “o vazio na linguagem”. Para o filósofo, Melville
inventa uma língua estrangeira no interior da língua, confrontando toda a linguagem com o
silêncio. Deleuze considera a atitude de Bartleby como uma espécie de “potência passiva.”
A repetição assertiva de Bartlebly da frase “Preferiria não” é paradoxal: uma negativa que
desmente a primeira impressão de negatividade, pois é uma opção, um gesto afirmativo.
Como afirma Deleuze em seu texto:
Eu preferiria nada a algo: não uma vontade de nada, mas o crescimento de um nada de vontade. Bartleby ganhou o direito de sobreviver, isto é, de permanecer imóvel e de pé diante de uma parede cega. Pura passividade paciente, como diria Blanchot. Ser enquanto ser, e nada mais. Mas se ele dissesse não (cotejar, sair...), se ele dissesse sim (copiar), seria rapidamente vencido, considerado inútil, não sobreviveria. Só pode sobreviver volteado num suspense que mantém o mundo à distância. (DELEUZE, 2011, p.94)
Bartlebly só pode sobreviver, acrescentaríamos, na terceira margem, ou habitando a
lacuna paraláctica298 da qual nos fala Zizek.Bartlebly, como Estragon e Vladimir, é o homem
sem referências, sem posses, sem propriedades, sem qualidades, sem particularidades.
Elesfogem à regra de uma existência que se fundamenta nos princípios da metafísica,
pautada unicamente no binômio do sim ou não. Antes, são e não são. O século XIX será
atravessado por essa busca do homem sem nome, regicida e parricida, em que o Ulisses
dos tempos modernos não se ajusta a uma realidade falsamente harmônica. É o prenúncio
do homem esmagado e mecanizado das grandes metrópoles, mas de onde se espera,
conforme o próprio Deleuze, que saia “o Homem do futuro ou de um mundo novo” 299.
Slavoj Zizek300, filósofo contemporâneo, afirma que o gesto de Bartleby, ao contrário
de algumas interpretações, não é puramente um gesto de resistência, do dizer Não!ao
universo existente da maquinaria social. Em seu modo político, o “Preferiria não” de Bartleby
não é sequero ponto de partida de uma “negação abstrata”, mas, antes, o gesto formal da
298Zizek chama de lacuna paraláctica a intransponibilidade entre duas sentenças opostas, igualmente válidas. O confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento comum; em que a tensão dialética não é passível nem de mediação, nem de superação em uma síntese. Cf. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 94-95. 299 Idem. 300ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 498.
175
recusa como tal. A repetição da sentença por Bartleby torna-se, nesse sentido, um
significante-transformado-em-objeto, um significante reduzido a uma mancha inerte que
representa o colapso da ordem simbólica. Se o gesto de Bartleby fosse uma recusa pura e
simples, ele poderia ser reconhecido como rebelde ou revoltado, e com este estigma,
desempenharia um papel social. Mas a articulação da sentença desarticula todo ato de fala,
ao mesmo tempo em que esfumaça sua máscara social, tornando-a um teste de Rorschard
indecifrável, com imagens nada simétricas.
É o que o advogado percebe com terror: todas as suas esperanças de trazer
Bartleby de volta à razão para fixá-lo em um papel social que ele identifique
desmoronam.Suas investidas para domar seu comportamento repousam sobre uma lógica
dos pressupostos, segundo a qual um padrão espera ser obedecido. Assim, o“amigo
benevolente” fracassa, ao passo que Bartleby inventa umalógicacomportamental que é
suficiente para minar os pressupostos da linguagem conhecidos.
A fórmula,I prefer not to, na acepção de Deleuze301, “desconecta” as palavras e as
coisas, as palavras e as ações, mas também os atos e as palavras: ela corta a linguagem de
qualquer referência em conformidade com a vocação absoluta de Bartleby ser um ser sem
referências, sem referência a si mesmo nem a outra coisa. A tensão presente na relação e a
perplexidade gerada nesse confronto de personalidades são diametralmente proporcionais à
estranheza provocada nos leitores. Deleuze propõe a questão? “No caso de Bartleby, será
que a relação com o advogado é igualmente misteriosa e indica por sua vez a possibilidade
de um devir, de um novo homem302?” A estranha presença de Bartleby, sua insistência em
não deixar aquele lugar, poderia desestabilizar as identidades fixas daqueles personagens?
Segundo Zizek, a “liberdade” não é simplesmente o oposto de necessidade causal
determinística: “como sabia Kant, ela significa um modo específico de causalidade, a
autodeterminação do agente. De fato, há um tipo de antinomia kantiana da liberdade. Se um
301DELEUZE. Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 97. 302Idem, p.117.
176
ato é totalmente determinado pelas causas precedentes, é claro que ele não é livre; se,
contudo, depende da pura contingência que corta a cadeia causal completa, ele tampouco é
livre303.”
Como solucionar o paradoxo? A única maneira de resolver essa antinomia é
introduzir um segundo nível de causalidade reflexiva: sou determinado por causas (sejam
motivações, sejam causas naturais, brutas e diretas), e o espaço de liberdade não é uma
lacuna mágica nessa cadeia causal de primeiro nível e sim minha capacidade de
escolher/determinar de modo retroativo quais causas irão me determinar.Nos termos de
Kant, como vimos, sou determinado por causas, mas posso determinar retroativamente
quais causas irão me determinar; nós, sujeitos, somos afetados passivamente por
motivações e objetos patológicos; mas, de maneira reflexiva, nós temos o poder mínimo de
aceitar (ou rejeitar) sermos assim afetados, ou seja, nós determinamos retroativamente as
causas que podem nos determinar ou, ao menos, o modo dessa determinação linear. A
“liberdade”, portanto, é inerentemente retroativa: “em seu aspecto mais elementar, não é
simplesmente um ato livre que, vindo do nada, inicia um novo vínculo causal, mas sim um
ato retroativo no qual vínculo/sequência de necessidadesdeterminará o sujeito304”.
Para Zizek, quando Heidegger enfatiza que o Dasein autêntico decide livremente,
que representa a liberdade autêntica, em contraste com os que apenas seguem o “um”, sua
noção de liberdade envolve a mesma sopreposição paradoxal de escolha/livre decisão e de
assunção de uma necessidade predestinada, que encontramos desde a teologia protestante
até Niestzche e Wagner (a liberdade mais elevada é assumir e decretar livremente o próprio
destino, aquilo que tem que acontecer inexoravelmente: o que de fato é libertado numa
decisão autêntica não é Daseincomo tal, mas, antes, o próprio destino- “o poder do destino
se torna livre”. Em resumo, o que torna livre a minha decisão não é, em primeiro lugar, que
eu mesmo escolha livremente, mas que minha decisão liberte o poder do próprio Destino. O
303ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 274. 304 Idem.
177
amor fati, de que nos fala Nietzsche. Mas para Zizek,“a questão da liberdade, em nível mais
radical, é a questão de como se pode romper esse círculo fechado do destino305.”
Aqui, Zizek sugere a adição de uma torção hegeliana a Spinoza: a liberdade não é
simplesmente “necessidade reconhecida/conhecida”, mas necessidade
reconhecida/assumida, a necessidade constituída/realizada por meio desse
reconhecimento. Portanto, esse excesso do efeito sobre suas causas também significa que
o efeito é, retroativamente, a causa de sua causa; esse circuito temporal é a estrutura
mínima da vida. Segundo sua perspectiva, seria esse o “loop” ético que habita Bartleby. No
nível da realidade, há apenas corpos que interagem, a “vida propriamente dita” surge no
nível minimamente “ideal”, como evento material que constitui a forma de unidade de um
corpo vivo como “mesmo” no mudar incessante de seus componentes imateriais.
Portanto, a conclusão a tirar, segundo Zizek, é que a única maneira de explicar o
surgimento da distinção entre “dentro” e “fora” que constitui um organismo vivo é postular
um tipo de reversão autorreflexiva por meio da qual, falando nos termos de Hegel, “o Um de
um organismo como um Todo “postula” retroativamente, como seu resultado, como aquilo
que ele domina e regula, o conjunto de suas próprias causas.
Essas “conciliações”, promovidas por Zizek, entre Hegel e filósofos que negaram
peremptoriamente suas formulações, talvez sejam contestáveis. Deixaremos por conta e
risco do autor de “A visão em paralaxe”, algumas idiossincrassias em sua tentativa de
reabilitar o materialismo dialético a todo custo, mesmo que a filosofia hegeliana, convertida
em sua teoria daparalaxe, tenha, após essa torção, digamos assim, muito pouco a ver com
o pensamento do autor da Fenomenologia do Espírito. O que nos interessa aqui, e talvez
seja mais apropriado assim, é realçarmos o caráter autorreflexivo da liberdade, esse nível
mínimo de escolha e decisão fundada na subjetividade, que, talvez, em nossa modesta
opinião, dispense todos essas curvas e distorções no pensamento, promovidas por Zizek.
Este gesto vazio de Bartebly não possui teleologia. Aqui, a liberdade cerceada
potencializa o jogo que não possui utilidade; é um fim em si mesmo, que irá tornar possível
305ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 274.
178
uma existência outra. Também os personagens de Beckett optam por esse tipo de liberdade
quando se negam à ação. A angústia surge quando somos compelidos a confrontar a nossa
própria liberdade, mas, por outro lado, o jogo ilude essa vigilância trágica, despistando o
jogador e afastando-o de suas aspirações de grandeza.
No mundo contemporâneo, precisamente quandoparecemos expressar nossos
desejos mais íntimos e autênticos, “o que eu quero” já me foi imposto pela ordem patriarcal
que me diz o que devo desejar, de modo que a primeira condição de minha libertação seria
o rompimento com o círculo vicioso de meu desejo alienado,numa aprendizagem na qual
consiga formular meus desejos de maneira autônoma.“Ou seja, já que as nossas tentativas
de afirmar a liberdade e escapar do destino são elas mesmas instrumentos do destino, o
único modo real de escapar do destino é renunciar a essas tentativas, é aceitar o destino
como inexorável306”. É, por exemplo, o caso do destino de Édipo: o assassinato do pai e o
casamento com a mãe só realizaram-se a partir da própria tentativa de seus pais de evitá-lo.
Foi mesmo a tentativa de evitar o destino que posibilitou que ele se concretizasse.
Mas os desvalidos de Beckett já se libertaram do compromisso de serem falsamente
livres.A culpa, em Estragon e Vladimir, não é subjetiva, pois eles não têm consciência de
qual seria o erro, o delito que cometeram. Eles se debatem na ambiguidade culpado-
inocente no exame da parábola dos dois ladrões, mas é apenas mais um jogo entre os
jogos, para passar o tempo. Não chegam a nenhuma conclusão a respeito disso, e nem
atribuem a si nenhuma responsabilidade direta em relação ao contexto em que se
encontram.
É claro que aqui reside, de modo um tanto enigmático e impreciso, uma nova forma
de estar no mundo. A maneira de pensar, existir e ser desses personagens talvez se
inscreva como umdevir;o homem do futuro de quem falou Deleuze e Axelos;ou a criança
que joga com as pedras e brinca com o tempo, de Heráclito. Não nos absteremos do
assunto. Ele retornará no último capítulo. Por hora, nos deteremos um pouco mais no motivo
da liberdade, em um diálogo de Esperando Godotcom a peça “A vida é sonho”, de Calderón
306ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 274.
179
de La Barca.
5.3O delito de ter nascido: o motivo da liberdade em Calderón e Beckett
Entardecer307. À luz crepuscular, junto a uma única árvore, uma estrada. Nela, Vladimir e
Estragon aguardam, resolutamente, Godot, um personagem cujas origens não sabemos. Há
dois encontros fortuitos com outro par inusitado, Pozzo e Lucky, que, como os dois
primeiros, são opostos complementares e vagam ao léu por aquele espaço, também
tentando driblar, à sua maneira, a total ausência de referências. “Nada acontece, ninguém
vem, ninguém vai, é terrível308”, diz Estragon, a certa altura. Não há nada que possa ser feito
para modificar esse aterrador cenário, a não ser esperar; esperar por Godot.
Hora típica dos melancólicos, que sempre se veem absorvidos pela instabilidade do
tempo em fuga, o crepúsculomantém, com a aurora, essa característica comum de caráter
transitório, sendo o primeiro, no entanto, mais soturno que a segunda, que pode acalentar
alguma esperança, promessa ou realização. Poderíamos até mesmo dizer, sem desejarmos
ser por demais categóricos, que, enquanto a aurora anuncia o futuro desconhecido, mas
promissor, o crepúsculo evoca o passado, um passado que ainda permanece encoberto e
inapreensível, soma de temporalidades pretéritas, que insistem em revisitar o presente,
ansiando por uma significação. Instalada a noite, “com seus sortilégios”, toda a angústia
poderia ser revertida em volúpia, já que, muitas vezes, sua atmosfera é palco para a
animalidade recalcada durante a experiência diurna.
Pozzo: Já anoiteceu? Silêncio. Vladimir e Estragon observam o poente. Estragon: Está amanhecendo, diria. Vladimir: Não é possível. Estragon: E se for a aurora? Vladimir:Quanta bobagem! Daquele lado fica o oeste. Estragon: E o que você entende disso? Pozzo (angustiado): Já caiu a noite? Vladimir: Estou dizendo que está amanhecendo. Pozzo: Por que não me respondem?
307Rubrica da peça.307 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Nayfi, 2006, p.17. 308 Idem.
180
Estragon: Para não dizer qualquer tolice.(BECKETT, 2006, p.175)
Como cantou Baudelaire, “é a noite que alivia/ as almas que uma dor selvagem
suplicia309.” A grande tortura, no entanto, a que se submetem os personagens de Beckett, é
que a eles é furtada a experiência noturna, com a qual, quem sabe, poderiam libertar seus
monstros e fantasmagorias. Condenados ao crepúsculo eterno, são forçados a uma vigília
cuja atmosfera se apresenta rarefeita, tal como no universo onírico, gerando uma sensação
de estranhamento,ao mesmo tempo em que aquela realidade arruinada lhes parece soartão
familiarmente. Isso porque, conquanto a ordem dos eventos pareça difusa, não é ela por
completo desprovida de familiaridade, dada a incômodasensação de identificação coma
rotina, com o hábito, que em sua repetição exaustiva, é o grande protagonista da cena.
Vladimir(garantindo): Está anoitecendo, senhor, estamos chegando à noite. Meu amigo estava tentando me confundir e admito que cheguei a duvidar, por um segundo. Mas não foi à toa que atravessei esta longa jornada e asseguro que ela está quase esgotando seu repertório.
Embora não seja uma característica exclusiva do Barroco, a melancolia é uma
disposição que vez por outra aparece na produção artística desse período. É certo que o
Barroco é mais efusivo, quer ignorar a crise e, na maioria das vezes, quando a encena, o faz
de maneira espetacular. Porém, é curioso quando se atribui exclusivamente à modernidade
essa sensação de impotência do homem diante da morte e de sua inabilidade no mundo. O
homem barroco também padecia desse mal, dessa sensação trágica, de não conseguir
compreender com precisão a lógica divina- e, apesar de crer com mais ênfase na existência
de um Céu redentor após a morte, não lhe abandonava em nenhum instante a angústia por
não apreender, já àquela época, o desconcerto do mundo.
Mesmo nesse período, a despeito da onipotente autoridade dos desígnios sagrados e
suas “tortuosas razões”, o teatro cristão também soube questionar seu Deus. O que
queremos dizer aqui, portanto, é que a melancolia não é uma sensação exclusiva dos
modernos: ela encontra ecos expressivos na arte Barroca e, embora não goze de um
309BAUDELAIRE, Charles. Le crépuscule du soir. In:As Flores do Mal.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985,p. 348 - 349.
181
protagonismo nesse contexto, em virtude de sua força dissidente, não pode, por causa
disso, ser ignorada.
É claro: o conjunto de referências que possuía o homem barroco era bem mais
desenhado, embora suas linhas, não raro, se convertessem em linhas de força que o
sufocavam, tornando-se, às vezes,tão insuportáveis quanto indefinidas, nesse confronto
entre a subjetividade e as prescrições das instituições que denegavam a singularidade. “A
configuração do Barroco é associada à ideia de poder. Em todas as partes, Espanha ou
França, houve esse conluio entre Estado e arte310”.
No entanto, a pressão do poder não inabilitou a criação do Barroco. Através da
confluência e fusão num mesmo incitamento criador da vontade de arte e do impulso lúdico,
o barroco veio a ser, em toda a riqueza e diversidade de suas manifestações, a
concretização do que poderíamos denominar “uma grande e vital vontade estética de
jogo311”.Se a subjetividade do homem barroco é rechaçada, em seu projeto de
exteriorização pelas forças coercitivas do seu tempo, ela não se deixa, contudo, domesticar-
se facilmente. Nesse processo de alta-tensão,“em que a descarga de energia poderia
ocasionar uma autodestruição, ela, contudo,reflui sobre si mesma, e, na tentativa de
encontrar qualquer modo de plenitude, ainda que numa dimensão de interioridade, acelera
sua inteira disponibilidade de imaginação, liberando-se, afinal, em formas criativas
impregnadas de jogo e fantasia312”.Para o artista barroco, o jogo não é simplesmente uma
forma de alhear-se à realidade; ele é, antes, um instrumento de subversão, de rebelião
perante uma realidade que quer sufocar, pela pressão histórica, a sua singularidade.
Nesse sentido, assumindo-se como uma aspiração à liberdade individual frente às forças
objetivas do contexto, o modo de fazer do Barroco lida com um material em convulsãoe
pode ser estimado como um prenúncio da obra de arte aberta, na medida em que esta,
fazendo somar a solução de pesquisa formal aelementos aleatórios e mesmo arbitrários,
310 MARAVALL, José Antonio. La cultura Del Barroco. Barcelona: Ariel, 1985. 311ÁVILA, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.51. 312 Idem.
182
inclina-se de modo especial para a esfera da criação estética.
O artista barroco não olvida sua condição de homem acossado em sua própria
interioridade, frente ao duelo entre a fé e a razão. Sua alma, agoniada pelas coerções do
mundo e pela paixão reprimida dos sentidos, logra em um expressivo manejo do jogo, no
qual converterá a propensão lúdica em instrumento de afirmação criadora e liberdade
subjetiva.
No gran teatro calderonianodel mundo não resta outra alternativa que assumir os papéis
em uma encenação.Esta, embora imbuída de alto grau de fantasia e artíficios, escapará da
correalidade representativa da arte para constituir-se na própria pungência de realidade,
justamente em virtude de seus dispositivos lúdicos. A vida barroca se exprimirá, assim,
simultaneamente, em êxtase festivo e sofrimento existencial, insistindo em formas
eminentemente artísticas, em cuja tessitura o jogo será tanto o móvel das virtualidades
criativas, quanto o veículo libertador de potencialidades sociais reprimidas.
Segundo Walter Benjamin313, é em Calderón que podemos estudar o drama trágico do
Barroco na sua forma mais acabada. A sua aptidão em por em coluio palavra eobjeto –
resulta, entre outros fatores, da precisão com que se harmonizam a dimensão do “luto”
(Trauer) e do “jogo”. “A ideia da própria vida como jogo e, assim, a fortiori, da própria obra
de arte como jogo,também apareceria no Romantismo alemão, embora tenha sido estranha
ao Classicismo.”
As principais linhas temáticas que predominam na literatura barroca – o sentimento
do fluir inexorável do tempo, o pessimismo, o desengano, a vanidade, a solidão, a
teatralidade do mundo, descendem do dilema da alma barroca e procuram sua expressão
num teatro de feitio alegórico, que, mais do que paródia cervantina, salta aos olhos como
exemplo de alegorização do pesadelo barroco, por encenar o absurdo existencial do
indivíduo que habitava aquela época.
No teatro de Calderón, que tinha por objetivo tanto divertir, quanto elevar
313 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: AutênticaEditora, 2011, p.79.
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pela imagem edificante e religiosa, a linguagem haveria de falar concomitantemente à inteligência e aos sentidos do espectador, transmitindo-lhe não só a mensagem cênica, mas predispondo-o para isso através de formas carregadas de impressionismo formal e plástico. O revestimento lúdico do teatro calderoniano,inseparável de sua estrutura, começa então no próprio artifício da personificação dramática de entidades abstratas ou figuras concretas inominadas, para tornar-se mesmo um mecanismo de impactação visual na montagem cenográfica ou de encantamento sensorial num verso que às vezes se aproxima da plasticidade sonora e metafórica de Góngora. (ÁVILA, Afonso, 1971, p.57)
Tanto em A vida é sonho, quando em Esperando Godot, o início da peça se dá no lusco-
fusco do dia. Claro, em Godot, não temos ação, mas o importante a salientar, aqui, é,
justamente, o turno escolhido para o início da ambientação: o crepúsculo, um horário
intermediário, em que o cromatismo difuso da atmosfera anuncia que não é mais dia,
contudo, ainda não é noite. Segismundo vê-se envolto no véu vespertino enquanto agoniza
na prisão. Seu lamento, que abre a peça juntamente com a chegada de Rosaura e Clarim,
tem como primeiro verso umaevocação muito parecida com a litania repetida por Lucky em
seu monólogo:
Segismundo: Ai, mísero de mim, mísero de mim! Ai, infeliz! Descobrir, oh Deus, pretendo, já que me tratas assim que delito cometi fatal contra ti nascendo. Mas eu nasci e compreendo que o crime foi cometido pois o delito maior do homem é ter nascido. (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.36)
Lucky, também, em seu discurso, volta-se para Deus questionando o silêncio, a apatia e
o seu total desprezo diante dos sofrimentos dos mortais.Utilizando-se de uma construção,
na qual os signos se enfileiram aleatoriamente, o assunto lá tratado também clama por um
sentido para um mundo desordenado: “o tênis adiante a barba as labaredas as lágrimas as
pedras tão azuis tão calmas ai de mim...314”Esta realidade, que não mais se deixa apreender
em sua totalidade, é ficcionalizada em uma série de metonímias, que dão notícias de uma
314 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. Cosac Naify: São Paulo, 2006, p.87.
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realidade caótica, de impossível ordenação315. A pergunta fundamental, nos dois casos,
estaria circunscrita à tentativa de compreensão, de qual seria o motivo, o delito, que faria
com que o homem, ao longo de sua existência, padecesse de tantos infortúnios, para ao
final, inevitavelmente, encontrar-se com a morte.
Se Esperando Godotse divide em dois atos, sabemos, entretanto, que Vladimir e
Estragon não se lançam apenas em duas jornadas. Todas as falas insinuam que a
circularidade, que ali vemos, vem ocorrendo ad infinitum, sem que seja possível determinar
seu começo e seu fim. Sim, os maltrapilhos de Beckett estão presos àquela estrada, àquela
árvore, mas acima de tudo é a espera de Godot que torna, paradoxalmente, a jornada
suportável em sua inconclusividade: é a ela que estão amarrados, embora o texto insinue
que até poderiam ir embora, caso desejassem, como acontece no Ato II:
Estragon: Vamos embora. Vladimir: A gente não pode. Estragon: Por quê? Vladimir: Estamos esperando Godot. Estragon: É mesmo. (Vladimir retoma o seu vaivém) Não dá para você ficar parado? Vladimir: Estou com frio. Estragon: Chegamos cedo demais. Vladimir: É sempre ao cair da noite. Estragon: Mas a noite não vem. Vladimir: Vai cair de uma vez só, como ontem. Estragon: E então será noite. Vladimir: E poderemos ir embora. Estragon: E então será dia mais uma vez. (Pausa) O que fazer, o que fazer? (...) Vou embora. (BECKETT, 2006, p.142.)
Todavia, nesse episódio, é de novo um “inutensílio” que os fará perseverar ali. Estragon
se despede, com um categórico “Adeus”, mas Vladimir encontra o chapéu de Lucky. É
nessa passagem que se dá a longa pantomima com os chapéus, já mencionada, que em
muito se assemelha a um jogo dos Irmãos Marx, em “Duck Soup”. Após a pantomima, os
incansáveis heróis de Beckett, a convite de Vladimir, sedispõem a jogar um novo jogo: os
dois representarão Pozzo e Lucky. Enclausurados, encaixotados, a única escolha que
possuem é a liberdade de jogar, pois, se por um lado, estão enlaçados à espera de Godot, a
315No capítulo I, fizemos uma análise mais detalhada do monólogo de Lucky e de sua estrutura metonímica, alegórica em contraposição a uma representação metafórica, totalizadora do real. “O monólogo de Lucky: no reino da ilinx.”
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situação em que se encontram os coloca em plena disponibilidade para suas brincadeiras,
em contraponto à tenebrosa impressão da eterna repetição do mesmo.
Já a trajetória de Segismundo é linear. Eleaprende, ao longo de suas três jornadas, “que
a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são”. Tema caro ao Barroco, a vanidade das coisas do
mundo é apreendida pelo príncipe da Polônia, após suas incursões por um universo
supostamente onírico, no qual seus limites serão testados e sua idoneidade moral posta à
prova.Estragon e Vladimir não contam com esse artifício, que os devolveria, ao final de sua
insólita experiência, a uma realidade ordenada. A imprecisão da atmosfera onírica em que
se encontram, que em muito se assemelha a um sonho ruim, não lhes fornece epifanias que
recobrarão a estabilidade de um mundo em desalinho.Devem aguardar de prontidão Godot
e não podem, em hipótese alguma, interromper a vigília.
Se o Barroco foi tido, contudo, como um instrumento de dominação ideológica, que
antecipa de alguma maneira a sociedade de massas e os aparelhos de controle do Estado,
há, entretanto, no interior de A vida é sonho, jogos através dos quais a ironia lutuosa irá
questionar, zombar e decompor esses mecanismos de coerção e coesão social.
Clarim, por exemplo, criado de Rosaura, em duas ocasiões parece salientar que percebe
a situação de alienação em que vivem seus pares, afirmando, em atitude irônica, saber fazer
o jogo que lhe permite sobreviver em sua época:
Segismundo: Acho que estás contra mim, porque me replicas. Clarim: Diz o príncipe muito bem, e tu fizeste muito mal. 2º Criado: Quem te deu licença para intervir? Clarim: Eu próprio a tomei. Segismundo: Quem és? Clarim: Um intrometido; e nesse ofício sou chefe, sou o maior mequetrefe que terá sido parido! Segismundo: Só tu, nestes novos mundos me agradaste! Clarim: Eu, senhor, sou um grande agradador de todos os Segismundos. (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.59)
Segundo Benjamin316, o drama trágico não alcança a perfeição nos casosem que é mais
canônico, mas naqueles em que as imagens jocosas deixam ouvir o timbre da comédia.
316BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: AutênticaEditora,
2011, p. 131.
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Quando a comédia migra para o drama trágico, a figura do bobo demoníaco, que comparece
também com Iago e Polônio em Shakespeare317, enriquece sobremaneira o drama. É por
essa mescla de gêneros, que, ainda consoante com Benjamin, Calderón e Shakespeare,
conseguiram criar dramas trágicos mais importantes que os do século XVII alemão, que
nunca foram além da tipificação rígida da forma. Cita Novalis: “Pois o drama cômico e o
trágico ganham muito e tornam-se verdadeiramente poéticos apenas quando entram numa
delicada ligação simbólica.318” Esse personagem,cuja origem provém da cultura popular,
encarna a figura cômica do raisonneur, que, em sua reflexão, transforma, a si e seus pares,
em marionetas de um jogo.
Clarim é o intriguista cômico, responsável pelo tom burlesco da peça. Ele percebe a
dinâmica, o modo com o qual se dão as interações sociais em seu tempo. Mais que criado,
é um bufão que sabe que representa um papel sociale que esse papel é, em grande
medida, atribuído pelo olhar de opinião do outro. Clarim sabe-se numa “peça”, “El gran
theatro del mundo”; ele observa e percebe-se observado. Seus apartes cumprem o papel do
coro na comédia ática, buscando uma interrupção cômica em que são expostos os atos
humanos consensualmente considerados racionais e razoáveis em seu aspecto irrisório. É
ridiculamente formidável a forma com que zomba daqueles que o tomaram como o príncipe
Segismundo e o aclamaram como futuro rei:
Soldados: Viva o nosso grande príncipe! Clarim(aparte): Por Deus, parece sério. Será costume neste país prenderem uma pessoa num dia, consagrá-la como príncipe no outro e despachá-la no terceiro outra vez para a prisão? Sim, é, porque estou vendo. Preciso desempenhar meu papel. Soldados: Dá-nos os pés, senhor! Clarim: Não posso, porque preciso deles para mim. Além do que, seria feio um príncipe perneta.(CALDERÓN DE LA BARCA,2009, p.59)
317Como sabemos, Shakespeare e Calderón estão entre os eleitos que irão habitar “o panteão” dos românticos alemães. Sob a influência de ambos, o Sturm and Drang fez emergir o núcleo cômico no drama, provocando com isso a interação entre contrários, que na tradição clássica eram excludentes. Assim, a harmonia e a dissonância, o feio e o belo, o real e o imaginário estarão em conluio, graças a este diálogo.
318Cf. Novalis. Apud: BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.131.
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A ironia de Clarim se impõe como máscara social, que permite que, se comportando
como bobo, distancie-se da realidade em que se encontra, para questioná-la em seus
pressupostos. Ela se dá como uma manifestação de liberdade, pois ultrapassa a ordem de
valores na qual se vê inscrito Clarim e seus contemporâneos. Não raro, a ironia se torna
uma forma eficaz de contestação; Clarim não se leva a sério, sequer leva toda aquela ordem
de coisas a sério. Ele, o tolo, é capaz de perceber o quanto as pessoas são facilmente
manipuláveis:
Todos: Viva! Clarim: Segismundo? Para vocês todos os príncipes à força são Segismundos? Segismundo(aparecendo): Quem chama aqui por Segismundo? Clarim: Pronto. Sou um príncipe gorado. 1º Soldado: Quem é Segismundo? Segismundo: Eu. 2º Soldado: Tolo atrevido! Querias fazer-te passar por Segismundo? Clarim: Eu, Segismundo? Nego isso. Vocês que me segismundaram!(CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.59)
Em duas passagens, Clarim distorce o nome próprio Segismundo, para a relativização
de alguns conceitos e lugares sociais via ironia. No primeiro caso, quando se diz um grande
agradador de “segismundos”, torna o nome um substantivo comum. Desta forma, Clarim
denuncia todos os homens que ocupam espaços de poder e aceitam de bom grado a
bajulação, para manutenção da legitimidade de sua posição elevada. É interessante que
naquele contexto, na qual a rigidez da ordem estamentária era notadamente inflexível e a
possibilidade de ascensão social fosse quase inexistente, que um criado ousasse perceber
tais coisas. O segundo momento é quando torna o nome um verbo. “Vocês é que me
segismundaram”, ou seja: vocês, em sua ânsia de súditos desamparados, que desejam, de
qualquer jeito, se curvarem a um rei,que me tomaram e me “reconheceram” como alguém
de sangue azul. Nessa passagem, vê-se claramente que Clarim põe em xeque os valores
que ratificam o status quo da classe dominante.
Também Estragon e Vladimir sabem-se observados, embora não saibam dizer por
188
quem. Sentem-se expostos, em um “platô”319, como se o palco fosse uma bandeja e eles, os
personagens, uma refeição para os comensais, que no caso em questão são os
espectadores. Mas é precisamente uma interferência em particular que irá revelar
incorporações de materiais e aspectos característicos do coro, que afetam diretamente o
trabalho de formalização da obra de Samuel Beckett. É que em Beckett não sabemos o que
é monólogo ou coral, não há distinção aparente. É como se Téspis, sozinho, tivesse de
representar não o papel de uma individualidade, como o primeiro ator, mas de toda uma
humanidade apartada. Um dos diálogos que evidencia um colocar em xeque da
representação dramática é aquele em que Vladimir e Estragon agem como coro para
comentar a própria atuação:
Vladimir: Tarde maravilhosa. Estragon: Inesquecível. Vladimir: E ainda nem acabou. Estragon: Parece que não. Vladimir: Mal começou. Estragon: É sofrível. Vladimir: Pior que um espetáculo. Estragon: Decirco. Vladimir: No music hall. Estragon: De circo. (BECKETT, 2006, p.69)
Se a função de Godot parece ser a de manter inconscientes os que dependem dele, a
interrupção da espera por um despertar, recolocaria os personagens diante de um mundo
em que as coisas se apresentariam como são, livres do véu da aparência. A eles, nesse
caso, seria apresentado o núcleo mais duro da realidade, que inabilitaria a possibilidade dos
jogos. À vista disso, a atmosfera rarefeita e indefinida é um ambiente que favorece o hábito
da espera. Eles preferem habitar uma espécie de realidade opaca, na qual os conceitos são
abandonados, as palavras se tornam simples instrumentos para os seus jogos, destituídas
de sua significação original, em perpétuo estado de construção e corrosão. Por um breve
instante Vladimir fica plenamente consciente de todo o horror da condição humana. “O ar
está cheio de nossos gritos... Mas o hábito é um grande amortecedor.” Ele olha para
Estragon que está dormindo e reflete: “Alguém também está me olhando, de mim também
319VASCONCELLOS, Claudia. Teatro Inferno: Samuel Beckett. São Paulo, 2012.
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alguém está dizendo, ele está dormindo, ele não sabe de nada, deixa ele dormir... Não
posso mais!” A rotina de esperar Godot representa o hábito que os impede de alcançar a
consciência dolorosa, porém fértil, da plena realidade da existência. (ESSLIN, 1968, p.52)
Segismundo está preso na torre. A prisão do príncipe não é voluntária. É seu pai, o rei,
que o confina em função de um vaticínio que fora proferido na ocasião de seu nascimento.
Ao contrário de Segismundo, são os personagens de Beckett, em suas falas, que deliberam
que continuarão ali. Não há uma força institucional ou mítica que seja responsável pelo
enclausuramento dos dois. O dualismo, em Beckett, entre eu e não-eu, entre o tempo e a
ausência de tempo, entre a essência e a existência, pertence a uma já longa tradição e, em
particular, guarda afinidades com algumas formas de sensibilidade barroca. Mas aqui a
metáfora é pulverizada: os signos não obedecem mais a uma estruturação direta,
correlativa, representacional. É o espaço da metonímia, da incompletude; da imagem
fraturada, alegórica, no sentido benjaminiano do termo.
A fala inicial de Segismundo, já mencionada aqui, continua no sentido de auscultar o
sentido da palavra liberdade e entender em que medida o homem é livre:
Só queria saber se em algo mais te ofendi para me castigares mais. Não nasceram os demais? Então se os outros nasceram Que privilégio tiveram que eu não tive jamais? Nasce o pássaro dourado, Joia de tanta beleza e é flor de pluma e riqueza (...) Do ninho que deixa com calma: E por que, tendo mais alma, tenho menos liberdade? (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p. 36-37)
Pássaros, fera, peixe, regatos; de todas as coisas e seres da natureza, só a
Segismundo, e, por extensão, aos homens que ele representa em sua litania, é negada a
liberdade. É o refrão de sua fala que acompanha a constatação original de que o “maior
delito é ter nascido”, que repete a sua perplexidade diante dessa questão. Segismundo
reivindica, a partir da valorização de sua consciência, certa superioridade em relação a
190
esses elementos naturais.
Por que eu, tendo mais vida, Tenho menos liberdade? Em chegando a esta paixão, Num vulcão todo transfeito, Quisera arrancar do peito Pedaços do coração; Que lei, justiça ou razão Recusar aos homens sabe Privilégio tão suave, Licença tão essencial Dada por Deus ao cristal, aum peixe, a um bruto e uma ave? (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.60)
A rigor, quase não há sonhos em A vida é sonho. O que há, sobretudo, é uma simulação
de uma experiência onírica. Um estratagema elaborado pelo pai de Segismundo para que
não pairem dúvidas a respeito da maldição do filho, renegado por ele em virtude de
profecias assombrosas, que fizeram com que o rei, temeroso, o trancafiasse em uma prisão
para assim afastar seu reino da ruína, caso um dia seu filho intempestivo viesse a ocupar o
trono.
Também em Godot não há sonhos. Há, sim, a suposição de que Estragon tenha dormido
na noite anterior em uma vala, mas, quando os doisse reencontram ali, tanto no primeiro
quanto no segundo ato, isso já aconteceu. Não sabemos se o sonho de Estragon é factual
ou é somente mero motivo para um diálogo, um número que já estão cansados de
apresentar, e, até mesmo para eles, já se apresenta como entediante a repetição. Ele tenta
contar seu sonho a Vladimir, que não quer escutá-lo.Desde a primeira tentativa, insinua-se
que aquela narrativa já fora dita e redita.
Vladimir: Estava me sentindo só. Estragon: Tive um sonho. Vladimir: Não me conte! Estragon: Sonhei que... Vladimir: Não me conte! Estragon:(gesto indicando o universo) Isso basta para você? (Silêncio) Nada gentil,Didi. Para quem você quer que eu conte meus pesadelos particulares, se não for para você? Vladimir: Que eles continuem particulares. Você sabe muito bem que não suporto isso. (BECKETT, 2006, p.32)
O motivo do sonho aparece como repetição em Esperando Godot. O fato de Vladimir
191
irritar-se com a insistência de Estragon em contá-lo é um indício disso. Estragon, como
aponta a rubrica, chama a atenção do companheiro sobre a necessidade daquela fabulação:
apontando para a amplitude do vazio que os cerca, pergunta: “Isso basta para você?”.
Estragon parece querer mostrar que é mister que façam seus jogos para “matar o tempo”.
Isso os ajudará, sobretudo, na empresa de ignorar aquele espaço que ameaça devorá-los,
caso se entreguem, definitivamente, à dimensão trágica da realidade que paira sobre eles.
Vladimir questiona: “Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora?”
Mas nada o desperta desse estado, que parece um intermezzo entre a vigília e o sono.
Como já dissemos em capítulo anterior, o retorno do Mensageiro de Godot, do Menino, é
apenas mais um artifício para a sua nova adesão aos jogos que se repetem insistentemente.
Já na tragicomédia de Calderón os sonhos são fingidos, e, ainda que sejam o estopim
da principal da trama e do conflito da peça, os únicos sonhos em estado de sono, os únicos
sonhos “reais” estão fora da ação narrada no reino da Polônia320: os da rainha Clorinda,
mulher do rei Basílio e mãe do príncipe Segismundo, que, durante o parto, “entre ideias e
delírios sonhou” que daria à luz um “monstro em forma de homem”; visão que seria
confirmada por uma profecia a respeito de Segismundo. Esse monstro é o monstro da
segunda jornada: sua condição grotesca reside na crueldade com que mata um soldado
sem quaisquer motivos aparentes, apenas para demonstrar poder; na maneira cafajestecom
que corteja Rosaura, ferindo-lhe a honra; na forma desonrosa com a qual se dirige a
Clotaldo, ancião que o criara. É um lugar, na hierarquia social de seu tempo, que lhe confere
a animalidade, a ferocidade deformadora daquele que experimenta o poder sem limites.
Mas, esse lugar é um lugar definido, em uma divisão social fixa e passível de ser
contestada, naquela ordem de coisas,somente pela máscara da bufonaria.
Enquanto o tempo evolui na jornada de Segismundo, em Godot vemos que nada parece
sair do lugar. “O absurdo da morte, a arte concebida como pensum (obrigação desprovida
320 VALLE, Ricardo. Lima, Luís Filipe. Introdução.DE LA BARCA, Calderón. A vida é sonho.São Paulo: Hedra, 2009, p.15.
192
de significado), a vida como um longo exílio321”obedecem a uma estrutura calcada na
repetição que não inspira nenhuma chance de remissão ou superação. Como observou
Ross Chambers322, “a luz característica desse purgatório é o crepúsculo, é a penumbra
cinzenta do crepúsculo interminável do norte da Europa, quando o dia está terminado, mas
ainda não foi substituído pela noite, que continua morrendo lentamente, como a promessa
constante de um cair da noite que retire os personagens dessa zona intermediária.”
O grotesco desse “mundo estranhado” aparece como absurdo, essencialmente trágico,
mas difere-se da tragédia grega, pois apesar de o trágico da tragédia também agasalhar o
absurdo, aqui o trágico apresenta-se em uma dimensão profunda e desnorteada; não há
referências, causas, que lhesfaça compreender a sua condição. O mundo se nos apresenta
como alheado.
Mas de que espécie é esta perspectiva? Em que perspectiva o mundo se coloca como
alheado? O mundo estranhado, segundo Kayser323, “surge ante o olhar do sonhador, quer
no sonho desperto, quer na visão crepuscular da transição”. É esse olhar do sonhador em
vigíliaque destitui o realde sua ordenação ilusória, para mostrar, com uma nova ilusão, que a
vida apresenta-se como um jogo de títeres. A partir desse expediente, a poética da cena
beckettiana mescla o grotesco fantasmático do mundo onírico com o grotesco irônico, sendo
amimicry,comseu amontoado de máscaras, a condição de possibilidade para o jogo cênico
prosseguir.
A presença do riso irônico, do ridículo, émais do que um elemento da cena que serve à
espera deGodot. Aqui a função cognitiva da ironia consiste em denunciar a vocação
totalitária do discurso, legado da tradição metafísica, que não permite nem nunca permitiu
uma síntese aberta, justamente por pressentir seu poder desestabilizador e estranhador. A
forma com que Beckett contém o riso, interrompendo seu curso com cortes que ensejam a
dimensão trágica dos eventos, potencializa o mal-estar e comoção dos espectadores. Esse
321CHAMBERS, Ross. Beckett, homme des situations limites. In:NORES, Dominique. (Org.)Les critiques de notre temps et Beckett. Paris:Éditions Garnier, 1971, p.92-93. 322 Idem. 323KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 160.
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riso grotesco, contudo, não escapa da perplexidade concernente a essa categoria. A
pergunta acerca do riso no grotesco tropeça no mais difícil complexo parcial de todo este
fenômeno. Não é possível oferecer uma resposta unívoca.Todavia, talvez haja ainda outro
aspecto no riso contido do grotesco em Esperando Godot.Elesdeixaram-se levar pelo jogo
de palavras; mas, em seguida, foi como se a linguagem mesma se tornasse viva,
arrastando-os consigo no seu redemoinho.O torvelinho que atrai Estragon e Vladimir, esse
redemoinho cujo olho não deveria despertar nenhum sinal promissor, é a espera
hipnotizadora que os impede de se afastarem dali. Sua estrutura circular e repetitiva propõe
um jogo que em si trazjá algo suspeito: se ele pode ser encetado com júbilo e quase
liberdade, pode, simultaneamente,arrastar consigo o jogador e roubar-lhe a liberdade. Se
Godot chegasse, quem sabe poderiam deixar de lado os passatempos, mas, já que isso não
acontece, os jogos devem se repetir, incessantemente.Entretanto, apesar de todo
desconcerto e horror inspirados por este limbo lusco-fusco, a plasmação do grotesco atua
ao mesmo tempo como uma liberdade secreta. O obscuro foi encarado, o sinistro encenado
e mesmo o silêncio materializado em cena passa a ser uma forma de dizer do trágico.
Em Beckett, fala mais aquilo que é silenciado nas entrelinhas. É o que antecipa a fala de
Rosaura, ironicamente,quando ela diz para Segismundo, após este tê-la ofendido, ao
cortejá-la de forma acintosa:“Agradeço a tua gentileza. Que meu silêncio, mais eloquente
que as palavras, te responda. Quando a razão é vagarosa, fala melhor, senhor, quem mais
cala324.”
É que, se o silêncio é abordado em A vida é sonho de forma explícita, como tema, em
Godot, eletorna-se responsável pela própria estruturação da narrativa. Funciona como
cortes, que tornam trôpego o ritmo da cena, modulando a fala dos personagens e
acentuando a fragmentação do discurso. Nele, as tensões e falhas do humano não
encontram repouso ou síntese em nenhuma esfera transcendente.Em Beckett, a ironia
poética da linguagem obedece a um duplo movimento, incessantemente: consiste em
324DE LA BARCA, Calderón.A vida é sonho.São Paulo: Hedra, 2009, p.64.
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verbalizar o silêncio e, simultaneamente, silenciar a palavra.
A vida é sonho,em contrapartida, é uma tragicomédia tradicional, já que ela é composta
de uma estrutura na qual os conflitos e o conteúdo trágico apresentados em sua peripécia
encontram, no frigir dos ovos, um final feliz: Rosaura e Astolfo se casam e a dama tem
reparada sua honra. Rosaura, que não sabia de sua ascendência nobre, tem a paternidade
reconhecida por Clotaldo, desfazendo o desconforto que poderia haver para Astolfo em
enlaçar-se em matrimônio com uma plebeia (além de criar um mal precedente: a união não
feriria o código hierárquico da época).
São muitos os desenlances afortunados: há, ainda, depois de todos os contratempos, o
restabelecimento de relações cordiais entre pai e filho.Estrela, que iria se casar com Astolfo,
acaba por unir-se em bodas com Segismundo, futuro rei (desfecho mais que feliz para uma
donzela que,ao ser trocada, ocupará, com o novo consorte, uma posição hierárquica
superior, a de rainha). Somente o soldado que se rebelou contra o rei, e, em certa medida,
fora o responsável pela oportunidade de Segismundo em provar ao pai sua mudança de
atitude, terá um desfecho infeliz com sua punição.
Desse modo a moral é rigorosamente ratificada: não há espaço para rebeliões em um
estado cuja ordenação deve ser respeitada de forma estrita. Todo esse desenlace, em seus
mínimos detalhes, cumpre realizar de maneira pronta e acabada a tábua de valores
responsável pelo estabelecimento da ordem no Estado Monárquico. Segismundo é um
nome de origem germânica formado pela uniãode duas palavaras diferentes: sigus, "vitória,
triunfo, êxito", emund, “proteção divina”. É a proteção divina para o triunfo ou “aquele que
protege com a vitória”.
De fato, a farsa de Calderón não deixa de atender aos pressupostos reguladores do
Estado Tridentino. Ao afirmar a importância do governo e do autocontrole, a comédia
também ressalta a necessidade das boas escolhas e da importância da ação particular para
que se chegasse ao bem comum. Há nisso uma exaltação do livre-arbítrio frente ao destino
cego: Segismundo supera o prognóstico nefasto dos sonhos da mãe e dos astros. “O
desfecho feliz converge ainda para as determinações de Trento e a luta da Igreja Romana
195
após as Reformas contra superstições populares e a heresia calvinista e
luterana325.”Estranhamente, a peça de Beckett parece se assemelhar mais ao universo
pictório do Barrocoque a peça de Calderón. Pois, se na peça de Cálderón há uma resolução
para o conflito, que a remete a um conjunto de valores do mundo esclarecido da
Renascença, em Beckett, a inseparabilidade do claro e do escuro, o apagamento do
contorno das máscaras dos personagens e a oposição ao pensamento cartesiano
encontram-se em constante tensão e não são passíveis de uma resolução ou síntese.
Nesse sentido,o estado de suspensão da oposição entre os contrários, presente em sua
obra, o mantém em íntimarelação com algumas diretrizesdo programa estético barroco,
principalmente se fôssemos estabelecer pontos de contato com sua escrita e as artes
plásticas no período.326
O contraponto principal entre a peça de Beckett e Calderón, no que tange à questão da
liberdade, é a vitória do livre-arbítrio, que opera, nos mínimos detalhes, a restituição dos
lugares e valores naquela sociedade. Segismundo, que, ao começo da peça, questionara a
impotência do homem diante do absoluto e do silêncio de Deus, obtém um desempenho
altamente satisfatório, no qual o jogo âgon lhe fornece todas as chances de provar suas
habilidades.
Suas trêsjornadas o transformarão, tornando-o, finalmente, um senhor justo e bom,
capaz de tomar o que é seu por direito. A repetição das jornadas, ao contrário das
repetições em Esperando Godot, levaa uma vitória sobre o phatos, que derrota horóscopos
e sonhos, para celebrar o livre-arbítrio, que triunfa, magistralmente.
325 Cf. prefácio de Luís Felipe Lima e Ricardo Valle. In: DE LA BARCA, Calderón.A vida é sonho. São Paulo: Hedra, 2009. 326Isabel Cavalcanti, em seu livro Eu que não estou aí onde estou: o teatro de Samuel Beckett estabeleceu uma relação entre a pintura de Caravaggio, (em especial, a tela “A Decapitação de São João Batista”) e a obra de Samuel Beckett. Seu estudo mostra que diferentemente da pintura renascentista, a clareza do objeto deixa de ser, no Barroco, um dos propósitos da representação, já não sendo necessário apresentar aos olhos a forma em sua totalidade. Com efeito, o Barroco evita sistematicamente suscitar a impressão de que o quadro tenha sido composto para ser visto e de que possa ser totalmente apreendido pela visão. “Assim, o uso da luz pelos artistas do século XVII tende a diluir a clareza absoluta das formas, confundindo-as com a obscuridade e apenas vagamente sugerindo-as.” CAVALCANTI, Isabel. Eu que não estou aí onde estou: o teatro de Samuel Beckett (o sujeito e a cena entre o traço e o apagamento)Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
196
Decerto foram golpes de sorte que levaram Segismundo à vitória. Alea opera
soturnamente para que Segismundo chegue ao trono: a dúvida do pai diante das profecias é
a primeira e nada usual oportunidade dada ao herói Segismundo pelo progenitor.
(Lembremos da maneira nada condescendente de como Laio reage às profecias do Oráculo
em relação a Édipo.)
E mesmo o ardil elaborado pelo pai de Segismundo, quese assemelha ao dispositivo de
Hamlet para saber se o tio e a mãe eram responsáveis pela morte do pai, são ocasiões que
delineiam oportunidades que favorecem o quase anti-herói de Calderón. Ao organizar uma
peça dentro da peça, cujo enredo dramatizava uma situação similar à possível traição de
que teria sido vítima o rei, Hamlet visava, com esse estratagema, observar seus
espectadores para descobrir se eles eram realmente culpados. É o teatro, amimicry, um
jogo inserido dentro do jogo, que é capaz de fazer com que aspectos
relevantes,concernentes à moral dos personagens sejam revelados. Estragon e Vladimir
também tentam fazer uso do estratagema de Hamlet;aliás, usam e abusam do jogo da
mimicry, mas nesse caso a investida de se comportar como se já se configura como a busca
em si mesma. A recomendação de Hamlet: “ajuste a palavra à ação e a ação à palavra”, não
faz o menor sentido para os dois maltrapilhos, já que o que buscam é justamente a
imobilidade, e mantendo-se ocupados com passatempos que não visam a nenhum
propósito. Segismundo, contudo, tem propósitos mais elevados. Em sua primeira
jornada, Segismundo abusara do poder que lhe é conferido. Caso a peça não tivesse tons
de farsa, o ardil não seria possível.Já em sua segunda jornada, quando é novamente
devolvido ao cárcere e julga que toda a glória que vivera fora apenas um sonho, profere o
famoso monólogo que se encerra com os versos:
Que é a vida? Um frenesi Que é a vida? Uma ilusão, Uma sombra, uma ficção; O maior bem é tristonho, Porque toda a vida é sonho E os sonhos, sonhos são. (CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.75)
A vida é sonho, percebe Segismundo aprisionado. Ele havia experimentado, em seus
197
sonhos simulados, os resultados da liberdade sem limites, o fascínio pelo poder. O suposto
sonho havia sido tão maravilhoso e discrepante da realidade vivida por ele naquela torre,
que o fez capaz de compreender que as ações, paixões e estados humanos são perecíveis,
fenecendo e voltando ao pó, na efemeridade do tempo absoluto. Olha para a vontade
humana e suas paixões com resignação: tudo é sonho, ilusão, farsa:
Sonha o rei que é rei, e segue com esse engano mandando, resolvendo e governando. E os aplausos que recebe, Vazios, no vento escreve; E em cinzas a sua sorte A morte talha de um corte. E há quem queira reinar Vendo que há de despertar No negro sonho da morte?
(CALDERÓN DE LA BARCA, 2009, p.75)
É agora um Segismundo melancólico que toma a cena. Comporta-se como um espectro
que vaga em um sonho, não mais como uma personagem que impõe sua ética de forma
radical, mas como alguém que recua em face de uma realidade na qual não domina os
acontecimentos. Assim, a técnica dramática de Calderón submete o personagem a uma
experiência em que sua sensibilidade será modulada a partir de umestranhamentoque conta
com a imprevisibilidade característica dos sonhos. Sua nova viagemé acompanhada dessa
atitude de reflexão, dessa desfamiliarização: tudo que toca ou vê, todos com quem fala ou
interage, são tomados a partir dessa perspectiva cautelosa diante de um universo
desconhecido e pleno de possibilidades, que ele, como jogador, não domina: toda a
existência se tornou estranha diante da amplitude que ganha seu olhar, quando então é
capaz de contemplar o mundo, os seres e as coisas, em sua instabilidade essencial.
Essa atitude meditativa de quem se toma como espectro o faz enxergar a realidade com
os olhos da morte. Seu sono é o sono da morte327. Sua perspectiva expande-se; é sob o
327“No negro sonho da morte se vê finalmente e de modo definitivo o destino para o qual corre a vida fugaz no mundo temporal: a própria morte e o julgamento do Eterno, e não as imagens fingidas (semelhantes ao sonho dormindo) que são as ações e vontades humanas, como querer governar. Evocam-se tópicas da tradição ciceroniana que postulavam que a morte é sono longo, e o sono, pequena morte. Mas se a vida é sonho, e se os sonhos , sonhos são, o sono da morte corresponde ao verdadeiro despertar, pois desenganam, isto é, descobrem as imagens fingidas pelos sentidos ou pela fantasia, figuras falsas que enganam a verdadeira natureza humana. Morrer seria despertar,
198
paradigma irônico, em sua ambivalência paradoxal,que ele é capaz de conter-se e
reconhecer-se menor diante das ilusões mundanas.Como observa Kierkegaard:
O irônico apartou-se das fileiras de seu próprio tempo e tomou uma posição contra este. Aquilo que deve vir lhe é oculto, jaz atrás dele, às suas costas; mas a realidade a que se opõe como inimigo é aquilo que ele deve destruir; contra ela volta seu olhar devorador. (KIERKEGAARD, 2003, p. 226)
Na terceira jornada, ele olhará tudo com desconfiança e seus mecanismos de
autodefesa estarão afiados.
Para Benjamin, o meio de expressão artística empregado por Calderón aplica técnicas
do enquadramento e da miniaturização, que são intrinsecamente responsáveis por seu
núcleo reflexivo, ao potencial crítico que as peças irão adquirir a partir de seus modos de
fazer. O espaço do sonho é um território profano: é lá que Segismundo terá sua epifania,
sua iluminação. Ainda que seja um simulacro, ou por isso mesmo, o espaço onírico é
responsável por essa reflexão paradoxal entre jogo e aparência:
No drama de Calderón essa forma artística assume plenamente o papel que na arquitetura da época é atribuído à voluta: repete-se até o infinito, e miniaturiza até o imprevisível o círculo que circunscreve. Os dois lados da reflexão são igualmente essenciais: a miniaturização lúdica do real e a introdução de uma infinitude reflexiva do pensamento na finitude fechada de um espaço profano. (BENJAMIN, 2011, p.79)
É em virtude do carácter crítico da obra de arte, e mais precisamente do uso da ironia,
expedienteque encontrará expressiva ressonância na produção moderna do século XX, que
o romantismo alemão irá reabilitar Dante, Boccaccio, Shakespeare e Calderón.O critério dos
românticos de Jena não obedecerá a uma história progressiva e linear, mas à densidade e
ao grau de reflexibilidade contida nas formas das obras. Calderón, que fora traduzido por
August Schlegel, um dos irmãos Schlegel fundadores da revistaAthenaeum, será,nesse
sentido, um dos exemplos resgatados para expressar a concepção de obra de arte desse
movimento.
O espaço fantasmático, dual,do teatro de Calderón providencia um núcleo reflexivo
concernente à sua própria poética. Assim, não é o crítico que pronuncia um juízo sobre a
descobrir o véu de sombras, ficções, sonhos, que envolvia a vida”.Cf. prefácio de Luís Felipe Lima e Ricardo Valle. In: DE LA BARCA, Calderón.A vida é sonho.São Paulo: Hedra, 2009, p. 13.
199
obra, mas a própria obra que evidenciará sua validade, na medida em que acusa ou rejeita
em si o medium da crítica.
Ao afirmar a primazia da inspiração, da paixão e da sensibilidade, o romantismo apagou
as fronteiras entre a arte e a vida: o poema foi uma experiência vital e a vida adquiriu a
intensidade da poesia. Em Calderón, a vida é um bem ilusório porque tem a duração e a
consistência dos sonhos; para os românticos, o que redime, o que redime a vida de sua
horrível monotonia é o fato de ser um sonho. Na visão de Octávio Paz328, “os românticos
fazem do sonho “uma segunda via” e, mais ainda, uma ponte para atingir a verdadeira vida,
a vida do tempo e do princípio.”
O ensaísta mexicano considera que foi um equívoco dos românticos, portanto,a
admiração por Calderón. Segundo ele, a leitura feita pelos jovens de Jena do dramaturgo
espanhol foi mais uma profissão de fé que uma verdadeira leitura. “Nele viram a negação de
Racine, mas não viram que no teatro de Calderón desenvolve-se uma razão não menor,
porém mais rigorosa, que no poeta francês.” Em sua visão, o teatro de Racine é estético e
psicológico, procurando mostrar a complexidade das paixões humanas.Já a obra do
dramaturgo espanholé teológica, preocupando-se ostensivamente com o pecado original e a
liberdade humana. Em sua acepção, a leitura romântica de Calderón confundiu poesia
barroca e neoescolástica com anticlassicismo poético e anti-racionalismo filosófico. (PAZ,
1984, p.85)
Talvez, não tenha observado o crítico mexicano que as principais determinantes
temáticas que predominavam na literatura romântica – o sentimento de fluir inexorável do
tempo, o pessimismo, o desengano, a vanidad, a soledad, o ensueño, a teatralidade do
mundo – descendem do núcleo dilemático da alma barroca e procuram sua expressão ora
numa prosa ou num teatro de feitio alegórico, ora numa poesia que hesita entre a magia da
metáfora e a engenhosidade do conceito.Nesse sentido, ideologia e fantasia, modo de ser e
modo de fazer resultam em noções indissociáveis na fenomenologia da criação literária
328PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.85-86.
200
tanto romântica quanto barroca, numa estrutura combinatória de ampliação semântica e
ludicidade da língua, que não se restringea uma abordagem que se prenda somente
aoassunto abordado. Isso porque todos esses temas, cada qual à sua maneira, convergiram
para um ponto nodal único, que foi a necessidade histórica e anímica de fantasia, de
jogo.Nesse sentido, a teoria da ironia romântica, criada por Friedrich Schelgel,329
representará uma revolução à parte, pois dela decorre a compreensão do mundo como
paradoxo, do mundo como aglomerado de contradições e incoerências. Isso significa a
coexistência do ímpeto criativo com apreciação crítica em uma realidade turbulenta,
aspectos que certamente encontram-se inscritos na tragicomédiaA vida é sonho, apesar de
seu desfecho conciliatório com a ordem vigente.
Beckett, não gozava de um contexto mais satisfatório queCalderón e os românticos. A
impossibilidade de narrar que se evidencia de forma contundente no século XX, da qual
Beckett era consciente, junto à obrigação de se expressar, fará com que o autor de Godot,
mesmo quando expõe a infelicidade de seu tempo, se junte aos seus pares na
contemplação de uma realidade em ruínas. É certo que o conteúdo trágico da espera de
Estragon e Vladimir é mais tenebroso que a prisão de Segismundo, em A vida é sonho.
Embora todos estejam confinados, Estragon e Vladimir estão “amarrados a Godot”, não
conseguem se desenredar desse compromisso, mas é justamente esse travamento no
mecanismo da ação que permite que seus jogos possam se desenvolver livremente.
E, embora o ludismo de Beckett se diferencie notadamente do ludismo barroco, dado o
empobrecimento e o minimalismo que conferiu à sua produção artística, o escritor irlandês
não hesita em se apropriar das “palavras que lhe deram” para levar à cena a bagunça e o
caos de seu tempo. Ludovic Janvier, em seu livro sobre Beckett, fala a respeito de sua
relação com as palavras e a questão da liberdade: “Quando Maurice Merleau-Ponty, a
propósito da liberdade, escreveu: Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e nascer no
329 Friedrich Schlegel não foi o único romântico alemão a criar uma teoria sobre a ironia romântica; Novalis, August Schlegel, Schelling, e ainda outros, procuraram expor suas ideias a respeito. Cf. BENJAMIN, Walter. O conceito de critica de arte no Romantismo alemão. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.
201
mundo, ele indicou o binômio fatalidade-liberdade que é a contradição vivida cegamente na
linguagem330.” Falar é falar segundo o mundo, mas também é falar o mundo, obedecer à
palavra do mundo, e também fazer avançar a palavra do mundo. E quando ele acrescenta:
“O mundo já está organizado, mas também jamais completamente organizado”, é o estatuto
da palavra beckettiana que se encontra aqui indicada. (JANVIER, 1969, p.131)
O uso da alegoria, em Beckett, mostra como um alto coeficiente de indeterminação
provoca claramente significações que tendem à singularidade. Talvez, o que exigem os
textos de Beckett,seja, como assinalou Wolfgang Iser331,“um compromisso determinado do
leitor”. Sua escritura mobiliza a nossa imagem completa do cosmos, não para descansar
sobre os sentidos que nos são dados, mas sim para transmitir a impressão de que o
significado só se revela em sua natureza quando nossa visão de mundo é excedida.
Os textos de Beckett exigem que se coloquem em jogo todas as representações
conhecidas, uma vez que só assim serãocapazes, em comparação com a estrutura de seus
textos, de disponibilizar uma nova disposição de leitura do mundo. Seus signos, fraturados,
abandonam sua significação usual para que se possa experimentara inovação de sua
literatura. Porque, se, a princípio, sua linguagem parece indevassável, ela pode, não
obstante, ensejar sua capacidade de comunicação, na medida em que permitimos que ela
opere uma desestabilização em nossas ideias e em nossos sistemas de referência.
É pelo abalo de nosso sistema de compreensão e percepção, operadopela linguagem
beckettiana, que essa mesma linguagemconsegue atingir sua eficácia a partir de sua própria
falibilidade, pois ela é, em si mesma, a encenação da crise de comunicação entre os
indivíduos na modernidade. Daí a importância decisiva do fragmento. Na apreensão do
mundo alegórica, as imagens, quebradas, são runas que oferecem frestas à intuição e à
liberdade do leitor na construção de sentido do texto. A beleza simbólica é diluída, porque se
330 JANVIER, Ludovic. Beckett. Paris: Éditions du Seuil, 1969, p.131.
331 ISER, Wolfgang. “El proceso de lectura: enfoque fenomenológico”, In: MAYORAL, José A. (org.)Estética de la recepción.Madrid: Arco, 1987, p.146.
202
abdica da razão instrumental divinizada. Extingue-se a falsa aparência de totalidade para
dar vez a uma poética de detritos, que se apresenta na forma de resíduos e ruínas de uma
realidade em decomposição, que clama por significar alguma coisa.
Mesmo que as palavras se considerem impotentes para organizar o que seja, o fato
mesmo de apresentar sua impotência, de encená-la, com a força e a novidade a que
Beckett lhes imprimiu, torna sua dicção de não-organização, uma dicção incontestável,
mediante a maneira com que a forjou.
Surda à liberdade inalienável que faz falar de maneira nova a tradição, a palavra
proferida por sua obra está no mundo, nos possibilita estar no mundo, experimentando a
dinâmica do real com suas fissuras, cesuras e silêncios. É essaliberdade que, segundo
Janvier, dá à palavra beckettiana “sua condição paradoxal de serva e livre332”. Condição que
parece também acometer seus personagens, que, apesar do enclausuramento em que se
encontram, continuam dando curso a seus jogos, enquanto Godot não vem.
6. ENTRE BRINQUEDOS E RUÍNAS: JOGO E LUTO NA CENA BECKETTIANA
Mas quando um poeta moderno diz que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma caixa de brinquedos333?
6.1. Revolvendoentulhos Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain334, de Jean-Pierre Jeunet, Amélie, uma
332JANVIER, Ludovic. Beckett.Paris: Éditions du Seuil, 1969, p.131. 333BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2002, p.102.
203
anônima garçonete, vive em Paris e trabalha em um café.
Sua vida, sem nenhum matiz extraordinário, transforma-se radicalmente no dia em que
encontra, em seu pequeno apartamento, uma antiga caixa de brinquedos.Ela está em casa
assistindoao noticiário sobre a morte da Princesa Diana, quando, casualmente, acaba
descobrindo, em uma portinhola de seu apartamento, uma caixa com brinquedos em
miniaturas e figurinhas, que pertenceram a umgarotinho que vivera ali na década de 60.
Tal descoberta fará com que Amélie seja tomada pelo desejo de encontrar a todo
custo o dono daquela preciosidade, na qual repousam pequenas miniaturas. Amélie segue
obstinada a descobrir qual seria a reação do senhor Dominique Bretodeau ao se deparar
com seus pertences.Residiria ainda algum encanto naqueles objetos infantis que um dia
ganharam vida na imaginação de um menino? Presumivelmente, seria ele, no presente, um
homem de meia-idade.
A fábula encantou o mundo, colecionando inúmeros prêmios no ano de 2002, a
despeito daqueles que a taxaram de “apenas uma película para agradar às mulheres” ou
denunciaram certa artificialidade no filme. Contudo, agrada-me, especialmente, que a
jornada em busca de si mesma, a qual se vê impelida Amélie, seja desencadeada a partir de
uma epifania provocada pelo reencontro de um adulto e os pequenos objetos de sua
infância perdida.
Um oceano de distância separa a narrativa fílmica de Jean-Pierre Jeunet da literatura
de Samuel Beckett. Além de pertenceram a campos distintos da linguagem, há de se notar
que a investida do dramaturgo irlandês revoluciona o fazer literário no século XX. Nada,
portanto, de uma fabulação destinada a um final feliz, com direito à transmissibilidade de
uma mensagem de esperança, ou de um desfecho apoteótico.
Beckett, com sua escrita da impotência, em que o ato artístico apresenta-se como a
expressão da impossibilidade de dizer o real, trouxe à cena uma representação do fracasso,
ou uma apresentação de fracassos, melhor dizendo. Sua fidelidade ao fracasso é uma
marca dessa arte do impedimento, que possibilitou ao autor de Godot uma verdadeira
reinvenção da literatura. Uma estética do menos, em que a luta com as “velhas palavras” ou
com “o velho estilo” revela uma profunda desconfiança da linguagem verbal, a dúvida em
relação ao seu poder de captar a realidade, de comunicar, desencadeando uma atitude de
derrisão sistemática na obra do escritor irlandês. A atitude de zombaria em face da
linguagem verbal estende-seà condição humana.
Como agem, em sua maioria, as criaturas beckettianas? Todas se encontram em um
espaço fechado, circunscrito, e, mesmo os pares, parecem experenciar uma profunda
solidão, já que nem a sintonia de perspectivas nem a concordância de ideias se efetiva entre
eles. Aliás,a temática da solidão é uma constante. Estragon e Vladimir, Hamm e Clov,
Winnie e Willie, para só citar alguns, estão juntos, mas em instâncias paralelas, pois o
diálogo não evolui para uma síntese de ideias;ao contrário, desenvolve-se a partir de sua
própria dissonância.
Como escreveu Beckett em seu ensaio sobre Proust335, a incomunicablidade e a
não-coincidência dos afetos humanos são traços inexoráveis da existência, aliás; o homem
não coincide sequer consigo mesmo. Édo autor de Em Busca do Tempo Perdido uma
sentença que resume admiravelmente o contexto do pensamento artístico que vigora na
experiência de tempo de Samuel Beckett. “Um minuto livre da ordem do tempo recriou em
nós, para o podermos sentir, o homem livre da ordem do tempo336” Estas palavras são
encontradas no final do livro: são palavras que supostamente apontam em nossa existência
um ser essencial fora do tempo, que para Proust é o nosso verdadeiro eu e não pode ser
experimentado na libertação da dimensão temporal. “Parece que Beckett, se não
intelectualmente, concorda ao menos afetivamente com essa hipótese, embora haja
diferenças muito importantes entre ele e Proust337.” Segundo Ross Chambers, se, para
335BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 336 PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 1987. 337 CHAMBERS, Ross. Destruction des categories du temps.In:NORES, Dominique. Les critiques de notre temps et Beckett. Paris: Éditions Garnier Frères, 1971, p. 91.
205
Proust, na recordação, a ordem temporal é possível, possibilitada a partir da memória e, o
passado pode ser alcançado com mais perfeição através da criação artística, o recurso não
é possível para Beckett. “Beckett não só estaria livre a partir da dimensão temporal como da
espacial. Para ele, nem a memória nem a arte são uma forma de obter a salvação338.”
A impotência da memória, em face da força de desintegração do tempo, é, por exemplo,
um dos temas de A última gravação de Krapp, ao passo que a arte aparece frequentemente
em sua obra como uma espécie de “assédio moral”, absurdo inevitável, "uma obrigação”,
“pensum339". Nele, a ideia de produzir a arte não é mais a alegre certeza que teve Proust,
mas uma espécie de sonho impossível. Portanto, os temas de Beckett são mais
antiproustianos que proustianos, mas o primeiro impulso em cada caso é o mesmo: o
sentido da vida como a exclusão de alguma essência eterna, e a tentativa de usara arte
como uma forma de escapar do tempo e se juntar à espécie.
O dualismo em Beckett entre eu e não-eu, entre o tempo e a ausência de tempo, entre a
essência e a existência, pertence a uma já longa tradição e guarda, como tentamos mostrar
em capítulo anterior, algumas afinidades com formas de sensibilidade barroca. Talvez, a
frase do ensaio sobre Proust, de Calderón de La Barca, apareça ali mais como um eco
shopenhauriano que uma alusão à poética feérica do autor de A vida é sonho;mas, de toda
forma, a questão é seminal para Beckett: Qual é o delito do homem? Qual a culpa, que faz
com que o homem seja presa de tantos sofrimentos e angústias na existência? Os
personagens não respondem aessas questões, antes, ampliam-nas.
Para Beckett, as leis da memória estão submetidas às leis mais gerais do hábito. O
hábito é um compromisso efetuado entre o indíviduo e seu meio ou entre o indíviduo e suas
próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma zona de conforto, que, ainda que
maçante, funciona como uma espécie de“pára-raios de sua existência”. “O hábito é o lastro
que prende o cão ao seu vômito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito340”.
338 Idem. 339Idem. 340BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
206
De fato, as criaturas beckettianas são teimosas e sua obstinação, muitas vezes,
encontra-se inextricavelmente ligada ao hábito e à compulsão pela repetição. Há sempre
uma persistência injustificada em suas condutas. O tipo de teimosia que os caracteres
beckettianos apresentam é análogo àquele que aparece na filosofia de Shopenhauer,
quando o filosófo disserta sobre a “presunçosa vontade de viver” humana.Essa conduta
obstinada, citada por Beckett, em seujá mencionado ensaio sobre o autor de Em Busca do
Tempo Perdido, também se encontra presente nos jogos infantis, nos quais o ato de repetir
é tão caro às crianças.
No ensaio sobre Proust, além da famosa madelaine, Beckett dá ênfase a outro caso
de memória involuntária na obra do autor,que, em sua opinião, é ainda mais impressionante
que o evocado no clássico episódio dos biscoitinhos molhados no chá de tília. O texto faz
referência ao momento em que o narradorretorna pela segunda vez a Balbec e hospeda-se
no mesmo hotel de sua viagem anterior àquele local.Ele está exausto, sobe para o quarto
para retirar suas botas. Enquanto descalça os sapatos,experimenta, pela primeira vez, a
sensação realda perda de sua avó,falecida no ano anterior.
O episódioda obra de Proust, que chama atenção de Beckett,lhe deixará marcas. A
situação do personagem em relação à morte da avó lembra, em muito, ojogo das botas de
Estragon em Esperando Godot, que, como tentamos mostrar, é sempre jogado em silêncio,
quando o personagem transfere, para a sua lida com o objeto, a angústia que o toma.
Nessas poucas páginas de Proust a que Beckett faz referência, o autor francês procura
exprimir algo inefável: a relação que os vivos mantêm com a memória dos mortos.“Isso
porque oNarrador sabia, racionalmente, da morte da avó. Sabia, mas não o sabia realmente.
Somente naquela hora, naquele hotel, repetindo um gesto com as botas que o remetia à
situação na qual a avó o auxiliara anteriormente, é que percebe, de verdade, a realidade
inexorável, definitiva da morte.341” O fato de que nunca mais verá a avó se revela
341ORICCHIO, Zanin Luiz. Para ler Proust aos olhos de Beckett. O Estado de São Paulo. Caderno 2, em 08/06/2003.
207
subitamente ao narrador. Sua presença é resgatada através da memória, mas ele constata
que jamais será possível vê-la novamente.Essa dialética da morte, jogada entre presença e
ausência, é percebida neste instante mínimo, no momento em que realiza a mais trivial das
ações.
Beckett fica impressionado com a dimensão comquese apresentam esses pequenos
acontecimentos quando desencadeiam-se a partir da memória involuntária.
Nesse sentido, parece mostrar certa concordância com a concepção trágica de Proust em
relação ao ser humano. A redenção pela recuperação da memória é apenas parcial: o único
paraíso verdadeiro é aquele que já perdemos. Portanto,“o Narrador só se dá conta da
importância fundamental da avó em sua vida quando ela já não está mais342”.
Beckett também elogia a maneira como Proust constrói seus personagens, camada a
camada, detalhe sobre detalhe, desinteressado em chegar a qualquer síntese definitiva. Vê,
nesse ponto, um paralelo entre Proust e Dostoievski, que também expõe seus personagens
sem explicá-los. Pode parecer um paradoxo, porque, se Proust explica seus personagens à
exaustão é para que eles apareçam como são - inexplicáveis. "Ele os inexplica343", conclui
Beckett.
Também os personagens/espectros do irlandês Samuel Beckett,com sua progressiva
degradação, se detêm constantemente em pequenos objetos como passatempo. Os
chapéus e guarda-chuvas de Mercier e Camier;o chicote e o vaporizador de Pozzo; a areia e
o chapéu de Lucky; as cenouras e botas de Gogo e Didi, em Godot; o cãozinho de pelúcia e
o lenço de Hamm, em Fim de Partida; as quinquilharias que Winnie carrega em sua bolsa,
em Dias Felizes;as pedrinhas de Molloy; o lápis, ocaderno e o bastão de Malonesão apenas
alguns exemplos da múltipla variedade de inutensílios e despojos que se inscrevem na
produção beckettiana e são constantemente manuseados pelos personagens, enquanto
342ORICCHIO, Zanin Luiz. Para ler Proust aos olhos de Beckett. O Estado de São Paulo. Caderno2, em 08/06/2003. 343BECKETT, Samuel. Proust. Tradução: Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
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“esperam” ou “matam” o tempo que os espreita.
Em Rua de mão única, Walter Benjamin chama-nos a atenção à maneira com a qual
as crianças, ao brincarem, são especialmente atraídas pelos detritos que se originam da
construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro.
“Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta
exatamente para elas, e somente para elas344”. Quando se détem neles, estão menos
empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer, entre os mais
diferentes materiais, suas brincadeiras, criando uma relação nova com o realem um espaço
que lhes pertence. Um mundo em miniatura, que não deixa de estarem fricção com o
grande. É essa especial disposição anímica diante doreal, deque nos fala Benjamin, que
vamos encontrar nos personagens beckettianos. Antes da percepção padronizada do adulto,
a criança experimenta, em seus jogos com objetos inanimados, a sensação de assenhorar-
se de si mesma e da situação, através do ritmo impresso em suas brincadeiras, em seus
ritos solitários. Esse assenhorar-se, contudo, não está ligado a um sentimento de
dominação ou manipulação, mas a uma forma especial de experienciar o tempo e suas
memórias:
A criança age segundo esta pequena sentença de Goethe: “Tudo à perfeição talvez se aplainasse/ Se uma segunda chance nos restasse.” Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorear-se de terríveis experiências primordiais mediante o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e de forma mais intensa, os triunfos e as vitórias. (BENJAMIN, 2011, p.101)
Entretanto, sabemos que nem só de triunfos e vitórias sobrevivem os jogos infantis.
Mesmo na infância, os jogos podem encenar fracassos, perdas e situações hostis que
atormentam a criança. Decerto, a repetição continua a ter um papel decisivo nessa
empreitada. Para a criança, ela é a alma do jogo; nada a torna mais feliz do que “o mais
uma vez”. A obscura compulsão por repetição não é, no jogo infantil, menos poderosa do
344BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras Escolhidas Volume II. São Paulo: Editora e Livraria Brasiliense, 2011, p.18-19.
____________________Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, p.102.
209
que o impulso sexual no amor. Benjamin observou que345·, “não foi por acaso que Freud
acreditou ter descoberto um “além do princípio do prazer” nessa compulsão”. E, de fato,
toda e qualquer experiência profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas,
a tentativa de repetição e retorno; o restabelecimento da situção primeira da qual ela tomou
impulso inicial.
Entregue ao devaneio de seus jogos, a criança habita uma temporalidade própria.
Agamben346, em seu livro Infância e história: destruição da experiência e origem da história,
evocando um dos episódios do romance de Collodi,As aventuras de Pinóquio, nos fala a
respeito desse tipo de apreensão temporal. Após uma noite de viagem na garupa do
burrinho falante, Pinóquio chega feliz, com o despertar da aurora, ao “país dos brinquedos.”
Na descrição desta utópica república infantil, Collodi deixou-nos a imagem de um universo
no qual tudo era jogo.
O País dos Brinquedos, a Brincolândia, não se parecia com nenhum outro lugar: lá
só haviagarotos, que brincavam o tempo todo. Os meninos jogavam bolinhas de gude,
outros bola; atiravam pedrinhas;alguns estavam sobre velocípedes, em cavalinhos de pau;
outros ainda brincando de cabra-cega, de pique; em todas as praças viam-se teatrinhos de
lona... Era uma infinidade de brincadeiras. Agamben diz a respeito desse país da infância:
Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma mudança e uma aceleração do tempo: “Em meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num lampejo”. Como era previsível, a aceleração do tempo não deixa inalterado o calendário. Este – que é essencialmente ritmo, alternância, repetição – imobiliza-se agora no desmensurado dilatar-se de um único dia festivo.(AGAMBEN, 2005, p.82)
Lá, cada semana era composta de seis sextas-feiras e um domingo. As férias de
outono começavam no primeiro dia de janeiro e terminavam no último de dezembro. É
assim, segundo Lucignolo,amigo de Pinóquio, que corre a folhinha na Brincolândia. “Se
devemos acreditar nas palavras de Lucignolo, então o “pandemônio”, a “algazarra” e a
345BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2002, p.102. 346AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2005, p.82.
210
“baderna endiabrada” do país dos brinquedos têm como efeito uma paralisação e destruição
do calendário.347” Brincando, o homem desliga-se do tempo sagrado, convencional e
comum, ligando-se à outra temporalidade. O mundo do jogo, apesar de esquecer-se do
tempo humano, continua, ainda, inextricavelmente, ligado ao tempo. Mesmo que o que
agora pertence ao jogo tenha em outras épocas pertencido à esfera do sagrado, ou à esfera
do prático econômico, isso não exaure a esfera do jogo como possibilidade de perceber o
real em uma temporalidade outra.
Um olhar sobre o mundo dos brinquedos mostra que as crianças, estes belchiores da humanidade, brincam com qualquer velharia que lhes cai nas mãos, e que o jogo conserva assim objetos e comportamentos profanos que não existem mais. Tudo aquilo que é velho, independentemente de sua origem religiosa, econômica, tecnológica ou doméstica, é suscetível de virar brinquedo.(AGAMBEN, 2005, p.87)
Para Agamben, a própria apropriação e transformação em jogo (a própria ilusão,
poderíamos dizer, restituindo à palavra o seu significado etimológico, de in-ludere) podem
ser efetuadas – por exemplo, através da miniaturização – até mesmo no tocante a objetos
que ainda pertencem à esfera do uso: um automóvel, uma pistola, um forno elétrico
transformam-se, de súbito, graças à miniaturização, em brinquedo. Assim, Agambem sugere
que o caráter essencial do brinquedo – o único, se refletirmos bem, que o pode distinguir
dos outros objetos – é algo singular, que pode ser captado apenas na distinção temporal de
“uma vez” e de um “agora não mais”. O brinquedo é aquilo que pertenceu – uma vez, agora
não mais–a outras esferas (sagrada, econômica, etc),e agora, na instância do jogo, capta
uma temporalidade da história no seu puro valor diferencial equalitativo: não em um
monumento, que conserva no tempo seu caráter prático e monumental (o seu teor coisal,
diria Benjamin), objeto de pesquisa arqueológica e erudita; não em um objeto de antiquário,
cujo valor é função de antiguidade quantitativa; não em documento de arquivo, que extrai
seu valor do fato de ser inserido, em uma cronologia, em uma relação de contiguidade e de
legalidade com o evento passado. No que se refere a todos esses objetos, o brinquedo
representa algo mais, algo mais diverso.
347AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2005, p.82.
211
O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos objetos, que ele
consegue extrair por meio de uma manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o
significado do objeto antigo ou do documento é função da sua antiguidade, “ou seja, do seu
presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo,
desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente” – jogando, pois,
tanto com a diacronia quanto com a sincronia –, presentifica e torna tangível a
temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o “uma vez” e o “agora não
mais348”. Dessa forma, o sentido da miniaturização como marca distintiva do brinquedo na
instância do jogo revela-se como cifra da história349.
Se, como quer Agamben, aquilo com que brincam as crianças é a história, e se o
jogo é o relacionamento com os objetos e os comportamentos humanos que capta nestes o
puro caráter histórico-temporal, então não parecerá irrelevante que, em um fragmento de
Heráclito, Aion, o tempo em seu caráter originário, figure como a criança que joga com os
dados, e que a dimensão aberta do jogo seja definida como reino da criança. “Os
etimologistas remetem a palavra aion a uma raiz *ai-w, que significa força vital, e tal - dizem
– seria o significado de aionnas suas mais antigas ocorrências em textos homéricos, antes
de assumir o de medula espinhal e, finalmente, com uma transição não facilmente
explicável, o de duração e de eternidade350”.
Aionestaria em contraponto a um outro vocábulo da língua grega, o termo chrónos,
que indica uma duração objetiva, uma quantidade mensurável e contínua de tempo.
Chronos, o deus do tempo cronológico, não nos deixa esquecer dos prazos de entrega;
Aiôn, a eterna presença (o jogo, a brincadeira) nos faz ter a sensação de que,no curso dos
jogos, é possível paralisar o tempo e viver o “tempo em suspenso”.Há ainda oKairós, o deus
das encruzilhadas (das bifurcações que se abrem para diferentes futuros). É nesse tipo de
temporalidade, do kairós, que podem surgir novas possibilidades, que, como um raio, nos
348AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.82. 349Idem. 350 Ibidem.p.88.
212
prenuncia algo inesperado que pode se apresentar tanto através de uma intuição quantoa
partir de escolhas e decisões. Acreditamos que, na instância do jogo doAion, possa vigorar,
também, o Kairós, como devir. Logo, a energia messiânica, que ficara represada nas
narrativas oficiais, é capaz de renascer nessa instância do jogo e apresentar-se como
potência.
Nesse último capítulo, falaremos desse tipo especial de temporalidade, concernente
aos jogos e brincadeiras. Ainda que de forma breve, tentaremos mostrar outras evidências
de que o motivo da infância aparece também em outras obras de Beckett, além de
Godot;especialmente em Fim de Partida, através do recurso da repetição. Buscaremos,
ainda, sinalizar comoalguns jogos encenama atmosfera de luto e catástrofe do século XX,
apresentando uma experiência temporal muito similiar à experimentada pelas crianças em
seus passatempos.
Talvez um tipo de disposição anímica para com o mundo seja um interessante
caminho para percebermos o caos de nosso tempo. O mesmo Agamben, quando se atém à
questão “o que é ser contemporâneo?”, parece nos dar pistas sobre essa disjunção
temporale esta faculdade de capturar o que foi olvidado pela história oficial. Esse ânimo
remonta à Antiguidade e chega aos nossos dias com o nome de Melancolia.
Para o filósofo italiano, pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporâneo “aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às
suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual351”; entretanto é precisamente por meio
desse deslocamento e desse anacronismo que ele é capaz, mais do que os outros, de
perceber e apreender o seu tempo. Não é uma nostalgia inocente que gostaria de voltar a
uma época em que se sinta em casa, como o personagem de Owen Wilson, de Midnight in
Paris352,quesonha em viver nos anos 20, poistoma o período como uma época dourada,que
se ajusta plenamente à sua personalidade e suas aspirações artísticas.
351AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro. Santa Catarina: Argos, 2009, p. 58. 352Midnight in Paris. Roteiro e direção: Woody Allen. Paris Filmes, 2011.
213
Ao contrário, a galeria de melancólicos beckettianos estabelece uma relação singular
com o próprio tempo; uma relação de adesão e distanciamento, que é,
simultaneamente,uma relação de dissociação e anacronismo e, que, por isso mesmo, os faz
contemporâneos de sua época. “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época,
que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter olhar fixo sobre ela.353”
Agamben, evocando Niestzsche, diz que, para auscultar o contemporâneo, é preciso ser
intempestivo.
Mas os personagens de Beckett estão e não estãono tempo e no espaço, e, de
posse de seus inutensílios, encenam uma especial disposição melancólica, que captura a
atmosfera de deteorização da cultura do ocidente, através dos passatempos mais inúteis.
Nesses jogos desses apostadores fracassados, já de antemão, o horror se nos apresenta a
partir de uma experiência sensorial muito parecida com a da infância, naqueles jogos em
que as fronteiras entre sujeito e objeto se diluem, dando curso, por meio da interação com
os objetos, a um tipo muito peculiar de encenação da subjetividade. Brincadeiras em que o
gesto, o silêncio e a palavra serão aliados no processo de construção poética da cena,
trazendo à tona a atmosfera melancólica de uma humanidade que
pereceu,concomitantemente, ao desenvolvimento desenfreadode seus próprios princípios
civilizatórios.
6.2 Luto e melancolia
Todo gozo é só mania Que é mais doce a melancolia.
Se a sós me sento, ensimesmado, Suspiro e choro, inconsolado,
Em negro bosque ou aposento, Com Fúrias e aborrecimento,
Milhões de misérias então Cuidam do grave coração.
Mas toda a dor vira alegria,
353AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro. Santa Catarina: Argos, 2009, p.59.
Ânimo do homem ensimesmado, que gosta de construir Castelos nos ares, a
melancolia de Burton, no século XVIII,traz à baila as alegrias fantasmais daquele que
gostaria de não ser escravo do tempo. O melancólico sabe que seu gozo é temporário e que
não há possibilidade de cura para suas dores, apenas o alívio provisório, que o levará
novamente à sua mania. “Todo meu gozo é só mania/mais divina é a melancolia./ Curo uma
dor, vem outro Inferno,/Não suporto tormento eterno!/ Desesperado, odeio a vida,/ (...) Mas
354 BURTON, Robert. A anatomia da melancolia: v.I. Demócrito Júnior ao leitor. Trad. Guilherme Gontijo Flores; prefácio Manuel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011, p. 47.
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toda a dor vira alegria,/ Mais maldita é a melancolia355”.
Tomado por esse sentimento, o sujeito melancólico conhece a solidão que a
melancolia implica, mas isso não importa para ele: seu gozo só é possível nessa instância e,
mesmo que seja uma fixação, ele não troca essa vida pela de um Rei e prefere se distrair
com seus brinquedos. O tempo cronológico passa veloz demais para o melancólico; ele
precisa julgá-lo devagar, submetendo a realidade à temporalidade do jogo.“Arrebatado, eu
bem que sei:/ Não terei sorrisos mais ledos/ Que ao me entreter com meus brinquedos/Não
me atrapalhe – eu não consinto-,/ Doce graça que agora sinto/Todo meu gozo é só mania/
mais divina é a Melancolia356.”
O termo vem desde a Antiguidade Clássica. É com ele que Hipócrates procurou
explicar os distúrbios mentais como resultado de um desequilíbrio entre os quatro humores
básicos do corpo: o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra, a que correspondiam os
quatro temperamentos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico. A bile negra se
acumula no baço, cujo nome inglês, spleen, alude ao estado melancólico.
Aristóteles357, em “O homem de gênio e a melancolia”, diz que o desequilíbrio
causado pela bílis negra torna o melancólico propenso a ser “quase no mesmo instante
muito quente e muito frio”. Contudo, é essa mesma condição, a que foi arremessado à sua
revelia, que tornará o melancólico capaz de habitar extremos e o tornará aberto à criação
poética. Ou seja: tornar-se outro, habitando o real a partir da premissa do como se, como no
jogo da mimicry,de que tanto falamos nessatese.
“Por que todo ser de exceção é melancólico358?” A pergunta de Aristóteles, no texto a
ele atribuído, ainda ressoa no mundo contemporâneo.O melancólico é, antes de tudo,
aquele que teria perdido seu laço social e sente necessidade de reiventar-se, no campo da
355BURTON, Robert. A anatomia da melancolia: v.I. Demócrito Júnior ao leitor. Trad. Guilherme Gontijo Flores; prefácio Manuel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011, p. 47. 356 Idem. 357ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. Problema XXX, I. Trad. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p.66. 358Idem.
216
linguagem. Essa perda de lugar pode ocorrer quando o sujeito não se sente capaz de
adaptar-se às exigências de seus pares e à realidade imediata. Ele é, em geral, apátrida e
seu olhar, mesmo na terra natal, é um olhar estrangeiro.
Esse sentimento de desterritorialização, de não-pertencimentofaz nascer no
melancólico uma necessidade expecional de criar um lugar capaz de reinventar um mundo
ordenado no qual sua estranheza diantedo cosmosseja encenada, para que contemple e
reflita acerca de sua excentricidade.“A reflexão clássica sobre a melancolia é indissociável
de uma reflexão sobre a poiesis.” O espaço do jogo, torna-se, assim, um espaço privilegiado
para a encenação do melancólico. “A reflexão atribuída a Aristóteles sobre a melancolia é
menos uma teoria médica do que uma reflexão sobre o talento criador. O melancólico
aristotélico era dotado de um impulso forte, capaz de atirar longe para acertar o alvo359.”
Na Idade Média360, a teoria dos humores será associada à astrologia. A melancolia
foi associada a Saturno, planeta distante de movimentação morosa. Ele surgirá como o
astro que governa o melancólico, astro das contradições, da inteligência e da contemplação,
da apatia e do êxtase, da renúncia e do sacrifício, representantedas experiências de
separação desde o corte com o cordão umbilical até o supremo despojamento do velho. A
disposição daquele que nasceu sob o signo de Saturno é de afastamento e contaminação. A
melancolia é crítica, pois carrega consigo um afastamento irônico diante do mundo, mas é
também arrebatadora, pois subtrai daquele que a sente a percepção do tempo comum. A
experiência do melancólico com o tempo é substituída por uma temporalidade excêntrica,
solitária, destituída de uma percepção total do ambiente e de comincação com o outro. Ela é
atravessada por lacunas e silêncios que geram estranheza.
O Renascimento361 levou a cabo, com um radicalismo nunca atingido pelos Antigos,
359 Cf. KEHL, Maria Rita. Melancolia e criação. In: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 31. 360360BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 151. 361BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 157-158.
217
a reinterpretação da melancolia saturnina no sentido da doutrina do gênio ao destituí-la um
pouco do temor do Saturno medieval, liberando a melancolia sublime, a melencolia illa
heróica da melancolia comum e destruidora. O quadrado mágico que vemos desenhado
num quadro por cima da cabeça da “Melancolia”, de Dürer, é o selo planetário de Júpiter,
cuja influência se opõe às forças obscuras de Saturno362. A gravura de Dürer é emblemática
no registro do que foi esse afeto para a Renascença. Nela, a melancolia é representada
como uma mulher de asas, sentada na clássica posição dos melancólicos, com o rosto
apoiado em uma das mãos. A seu lado, um cão adormecido (o sono, irmão da morte, é um
conhecidocompanheiro da melancolia e da depressão). Em torno da mulher, espalhados de
forma caótica, estão objetos usados na vida doméstica, em vários ofícios e na ciência: uma
balança, uma ampulheta, uma sineta, uma tábua numérica, martelo, serrote e pregos. A
mulher parece alheada aos objetos; ensimesmada, ela não dirige o olhar para a realidade
circundante.
Na Inglaterra do século XVIII, Robert Burton, teólogo e bibliotecário de Oxford, tomou
como ponto de partida sua própria tendência ao isolamento e à autorreflexão para escrever
uma Anatomia da Melancolia. O pseudônimo adotado por Burton, Demócrito Junior, faz
homenagem a Demócrito, o melancólico celebrizado na Antiguidade em uma das
Cartasatribuídas a Hipocrátes, em que o médico descreveu “o comportamento daquele
homem excêntrico, retirado do convívio dos homens, que gostava de dissecar animais e
tinha por princípio não levar nada a sério363.”Riso e melancolia não são ânimos contrários: o
riso de Demócrito indicava sua descrença, seu desapego em relação a tudo que seus
semelhantes valorizavam.
Freud, em sua obra Luto e Melancolia, estabelece uma diferença entre os dois
362Segundo Benjamin, ao lado desse quadro está pendurada a balança, uma alusão ao signo astrológico de Júpiter. Sob a influência jupiteriana, as inspirações nefastas tornam-se benéficas, e Saturno torna-se protetor das mais sublimes pesquisas; a própria astrologia se lhe sumete. Isso permitiu a Dürer conceber o projeto de “exprimir também nos traços fisionômicos do saturnino a concentração espiritual divinatória. Cf. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.158. 363BURTON, Robert. A anatomia da melancolia: V.I. Demócrito Júnior ao leitor. Trad. Guilherme Gontijo Flores; prefácio Manuel Tosta Berlinck. Curitiba: Editora UFPR, 2011, p. 47.
218
estados. Segundo ele, “o luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou
de abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc. Já a melancolia se
caracterizaria por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo
mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e um
rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e
autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição. Se no luto a autoestima
permance quase inalterada, na melancolia ela é perturbada, e é esse aspecto que diferencia
os dois estados de ânimo. Enquanto o enlutado sabe exatamente por qual objeto pranteia, o
melancólico perdeu todas as referências e já não sabe mais precisar o que causa seu
desalento. “No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é o próprio
ego364.”
Na obra freudiana, a retomada da ênfase sobre a questão do narcisismo amadurece
extamente em Luto e melancolia. A falha na constituição do narcisismo primário estabelece
uma distinção entre a “neurose narcísica” da melancolia e o sofrimento que caracteriza o
trabalho de luto. Em seu trabalho psíquico, o enlutado enfraquece o ego ao se tornar
inapetente para quaisquer outros investimentos libidinais, mas, ao mesmo tempo, esse
trabalho pode ser considerado um investimento na ordem de sua saúde psíquica. Mais
complicado é entender o que ocorre com os melancólicos, estes que desconhecem tanto a
natureza do objeto perdido como a origem de sua perda. “O melancólico nos mostra ainda
algo que falta no luto: um rebaixamento extraordinário de sua autoestima, um enorme
empoprecimento do ego365. No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é
364 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 365O trecho que segue é uma instigante provocação de Freud a respeito do fato de a melancolia ser tratadacomo patologia (mesmo que ele mesmo a tenha tomado como tal). O comentário chega a soar como anedota, se pensarmos que, em nossos dias, a depressão se revela como uma espécie de mal-do-século. “Tanto do ponto de vista científico quanto terapêutico seria igualmente infrutífero contradizer o doente que faz tais acusações contra o seu ego. De algum modo ele certamente precisa ter razão e descrever algo que se comporta tal como lhe parece. E de fato, logo teremos que confirmar, sem restrições, algumas de suas afirmações. Ele é realmente tão carente de interesses, tão incapaz para o amor e o trabalho como afirma. Mas isso, como sabemos, é secundário, é a consequência desse trabalho interior, para nós desconhecido e comparável ao luto, que consome seu ego. Em outras de suas autoacusações, ele nos parece ter razão e capta a verdade apenas com mais agudeza do que outros, não melancólicos. Quando, em uma exacerbada autocrítica, ele se descreve
219
o próprio ego366.”
A divisão entre luto e melancolia está completamente ausente do livro de Benjamin
sobre Trauerspiel(drama lutuoso),“Origem do drama trágico alemão367”. Nele, ele usa os
termos Trauer e Melancholie como sinônimos, não se rendendo à distinção entre
normalidade e patologia que a psicanálise tornou banal. Benjamin convocaa melancolia no
final da segunda parte do livro a fim de reforçar e enriquecer a sua discussão sobre o tipo
especial de tristeza e luto expressa no drama trágico. Neste, ele emprega a melancolia, a
fim de compreender o luto e não usa qualquer tipo de diferenciação entre eles. Segundo
Ferber368,“a posição adotada porBenjamin é um desafio à distinção excessivamente segura
de Freud, fornecendo uma alternativaentre as duas facetas da divisão freudiana”. Benjamin
não vê a melancolia como uma doença a ser superada ou curada, mas sim como um estado
de espírito ou uma disposição para com o mundo.
Na perspectiva benjaminiana, osentimento é transformado em humor, superando,
assim, a relação libidinal filosoficamente problemáticacom o objeto em Freud, traduzindo o
estado do melancólico como uma atitude em relação ao mundo, ao invés de uma patologia.
Benjamin transforma a abordagem psicanalítica e subjetiva de Freud em uma atitude
filosófica ou humorística.
Raramente, talvez mesmo nunca, a estética especulativa procurou encontrar explicação para o fato de a comicidade mais estrita confinar com o horror. Quem é que nunca viu crianças rirem em situações que colocam adultos de cabelo em pé? O que importa ler no intriguista é aquilo que faz o sádico oscilar entre a infantilidade que ri e a seriedade adulta que se horroriza. (BENJAMIN, 2011, p.130)
Benjamin não vê a melancolia como doença. Ele a considera uma posição diante
darealidade, que, dialeticamente, traz em si o gozo intempestivoconjugadoao como um homem mesquinho, egoísta, desonesto e dependente, que sempre só cuidou de ocultar as fraquezas de seu ser, talvez a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do autoconhecimento e nos perguntamos por que é preciso adoecer para chegar a uma verdade como essa.”FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 55. 366 Idem. 367 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.130. 368 FERBER, Ilit. Melancholy Philosophy: Freud and Benjamin.Revue électronique d’études sur Le monde anglophone. Fonte: erea. revues.org/413. Data da consulta: 12/10/2013.
220
afastamentocrítico. Se a melancolia não se rende plenamente ao narcisismo puro e simples,
é porque ela não leva nada tão a sério; aegolatria é sua antítese, pois, se a útilma é
centralizada no eu, a primeira se sabe à margem; ela não conhece o centro de si mesma e,
talvez, ache mesmo que não haja nada de interessante em fazê-lo.
6.3A melancólica ludoteca beckettiana
(...) Claro que há a bolsa. (...) A bolsa. Será que eu conseguiria enumerar o conteúdo dela? Não. Será que eu conseguiria, se uma boa alma, de passagem, perguntasse, Winnie, e nessa bolsa enorme, o que você guarda? Saberia dar uma resposta exaustiva? (...) Não. (...) Especialmente nas profundezas, quem adivinharia os tesouros. (...) Os consolos. É, há a bolsa. Mas alguma coisa me diz: Não exagere com a bolsa, Winnie, aproveite-a para continuar... tocando, quando estiver sem saída, lógico, mas pense no futuro, Winnie, no dia que as palavras faltarem (...) – e não exagere com a bolsa. (...)
A sombrinha estará aqui amanhã de novo, sobre a terra, me ajudando a passar o dia. (...) Veja o espelho. Pego o espelhinho, quebro na pedra – (...) e estará aqui amanhã de novo, dentro da bolsa, sem um arranhão, me ajudando a passar o dia. Não, não há nada a fazer. (Winnie, em Dias Felizes369, p.44 e 48.)
Coisinhas insignificantes, nadas, que me voltarão mais tarde, vão fazer com que eu enxergue com mais clareza o que se passou, vão-me fazer dizer, ah, se eu tivesse sabido, agora é tarde demais.370
Talvez, outra investida cinematográfica exemplifique melhor o tema de que falamos
369BECKETT, Samuel. Dias Felizes. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 44 e 48. 370BECKETT, Samuel. Malone Morre.Trad. Paulo Leminski.São Paulo: Códex, 2004, p. 125.
221
aqui.Jeux Interdits371, um filme de René Clément, de 1952, por exemplo, é um clássico do
cinema de guerra e um pioneiro em retratar os horrores da carnificina pelaperspectiva das
crianças. A história se passa em junho de 1940.
Com a invasão dos alemães as pessoas fogem de Paris. Dentre os inúmeros
refugiados, estão Paullete, uma menina de cinco anos de idade, seu cão e os pais da
menina. Todos, com exceção de Paullete, são mortos, via aérea, durante a fuga, por um
caça de guerra, diante dos olhos da garotinha. Paullete consegue manter consigo o corpo
do cão morto, mas esse é descartado por uma família que a socorre. Quando seus
socorristas decidem jogar o animal no rio, para livrarem-se do peso extra, Paullete rejeita a
ajuda e parte em busca do cadáver de seu bicho de estimação.
Nesse ínterim, a menina é " adotada" por um filho de uma família de camponeses,
Michel, que se liga a ela profundamente, tornando-se grande parceiro em seus “jogos
proibidos”.Perdida e sem ninguém para cuidar de si, a garota acaba encontrando abrigo
nacasa da famíliade Michel, que vive no interior da França.Lá, ela e Michel, o caçula da
família, estabelecem um estranho vínculo de amizade. O pequeno também fora marcado
pela morte, pois seu irmão recebera um duro ferimento de um cavalo em fuga e não resistiu.
Em face dessa experiência comum, as duas crianças inventam um jogo muito
particular: decidem criar um cemitério, no qual enterram todos os animais mortos que
encontram, começando pelo cachorro de Paulette. A repetição desse ritual fúnebre torna-se
uma obsessão para a menina, que contagia Michel, tomando-o como cúmplice e uma
espécie de colaborador nessa empreitada. Aparentemente, é como se a experiência da
infância, enquanto aquilo que está aberto para uma alegria do jogo do mundo e da inocência
do devir, fosse capturada pela morte.
No entanto, como observa Pierre Fédida, “o luto põe o mundo em movimento372”. A
narrativa fílmica nos mostra que Paulette, ainda que destituída de família, abrigo e cuidados,
371Jeux Interdits. Direção: René Clément. Roteiro: François Boyer. França: Cinemax, 1952, DVD. 372DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.85.
222
foi capaz de encenar sua perda. As duas crianças, com sua vontade de velarem os corpos
mortos, encarnam com vivacidade a possibilidade de não se “mortificarem” somente, ou se
manterem passivas diante do evento. Antes, ao se mostrarem capazes de velar um corpo
morto, revelam uma aptidão para o jogo, que se compraz em encarar e encenar a dor como
mais uma brincadeira entre as outras, que já estão acostumadas. A aptidão para o luto de
Paulette e os cuidados com seu mausoléu são indícios dessa potência que seus jogos
proibidos encerram. Essa disposição melancólica, que toma a menina, faz com que sua
sobrevivência só se torne possível a partir do jogo, no qual ela pode encenar a morte dos
pais e do cão ininterruptamente, repetindo a perda como uma mania, típica dos
melancólicos, que, no entanto, passa a lhe despertar certo gozo.
“O jogo esclarece o luto”, escreve Pierre Fédida373, que lembra a referência freudiana
ao Trauerspiel e evoca o sentimento de uma pessoa diante de sua própria vida como um
esforço malogrado de um trabalho de morte: “Enquanto não se está morto, se finge sempre
morrer374.” Nessa perpectiva, o jogo da criança se transforma aos nossos olhos, se colore
estranhamente, se chumba: “Por ser jogo, a criança tanto morre quanto ri. Talvez, em sua
vida, quando riem, os humanos deixem transparecer de que serão mortos.” O riso é a
dissolução do ego; anverso do comportamento narcísico; é a aceitação da deteriorização do
eu liberando imagens que nos escapam e retornam, como fogos de artício, que se deixam
dominar por instante e se vão de novo, sempre se dispersando na queda.
Didi-Huberman375 nos reporta a seguinte situação para que tenhamos ideia desse
processo: quando uma criança pequena é deixada sozinha, considera diante dela os poucos
objetos que povoam sua solidão – por exemplo: uma boneca, um carretel, um cubo ou
simplesmente o lençol de sua cama-, o que ela vê exatamente, ou melhor, como ela vê? O
que ela faz?
Imagino-a, primeiramente, balançando-se ou batendo suavemente a cabeça contra a parede. Imagino-a ouvindo seu próprio coração batendo contra sua
373Pierre Fédida. L’ absence. Apud: DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,1998, p.85-86. 374 Idem. 375 Idem.
223
têmpora, entre seu olho e sua orelha. Imagino-a vendo a seu redor, ainda muito distante de toda a certeza e de todo o cinismo, ainda muito distante de acreditar no quer que seja. Imagino-a na expectativa: ela vê o estupor da espera, sobre o fundo da ausência materna. Até um momento em que o que ela vê de repente se abrirá, atingido por algo que, no fundo – ou do fundo, isto é, desse mesmo fundo de ausência -, racha a criança ao meio ea olha. Algo, enfim, com que ela irá fazer uma imagem. A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual.Pura moção ou deslocamento imaginário. Mas também objeto concreto – carretel ou boneca, cubo ou lençol da cama – exatamente exposto a seu olhar, exatamente transformado. Um objeto agido, em todo caso, ritmicamente agido. Assim com o carretel: a criança o vê, toma-o nas mãos e, ao tocá-lo, não quer mais vê-lo. Atira-o ao longe: o carretel desaparece atrás da cortina. Quando retorna, puxado pelo fio como peixe surgiria puxado pelo anzol, ela a olha. Abre na criança algo como uma cisão ritmicamente repetida. Torna-se por isso mesmo o necessário instrumento de sua capacidade de existir, entre a ausência e a presa, entre o impulso e a surpresa. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.79).
A cena descrita nos remete instantaneamente ao paradigmático episódio descrito por
Freud em “Além do Princípio e Prazer376” no qual Freud dá à brincadeira uma conotação
relevante. Observando seu netinho de um ano e meio brincar, percebe que a criança se
entretinha de maneira especial com um carretel amarrado a um barbante. Sua brincadeira,
que consistia em jogar um pequeno objeto atrás da poltrona e retomá-lo, possuía estágios
que aguçaram a curiosidade do autor de A Interpretação dos sonhos. Ora, quando ele
arremessava o carretel para detrás do móvel, esse gesto era acompanhado das
exclamações! Quando o trazia de volta, exclamava, “da”! Freud, observando mais
atentamente a cena verificou que na verdade a criança dizia “fort... da, fort...da.” Fort em
alemão significa “foi embora” e “da” significa “ali”.
Ao analisar a brincadeira, Freud concluiu que criança sempre o fazia na ausência da
mãe, quando ela eventualmente saía de casa. Com o carretel e o barbante, seu netinho
encenava uma brincadeira de ir embora e voltar. Era a maneira com a qual a criança, por
meio da repetição, tentava controlar a angústia da ausência da mãe. Didi-Huberman,
reapropriando-se do episódio narrado por Freud, sublinha de novo o quadro geral em que o
problema se coloca: quando o que vemos é suportado por obra de perda, e quanto disto
alguma coisa resta.
376 FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. In: Obras Psicológicas Completas: Edição: Standart Brasileira, 1962.
224
No texto de Freud377, o jogo da criança é apresentado ao leitor sobre um fundo de
essencial crueldade: a guerra mundial, “a guerra terrível que acaba de terminar”, com seu
cortejo de perdas definitivas, de desgraças insistentes e operantes, com a questão colocada
de saída ao conceito de susto (Schreck), com a introdução metapsicológica da “neurose
traumática” cujo enunciado Freud subitamente abandona... para oferecer, sem transição, o
famoso paradigma infantil, que percebemos, com clareza, nada ter de inocente.
O jogo risonho talvez se mostre aqui como além do pavor, mas não deixa de ser lido,
ao mesmo tempo, e em sua exposição mesma, como um repor em jogo o pior. Ora, esse
repor em jogo é apresentado por Freud como constituinte do sujeito enquanto tal. Seja qual
for o ponto escolhido no quadro sutil, na ampla trama interpretativa proposta por Freud, na
qual a renúncia volta a cruzar o júbilo, na qual a passividade reproduzida se torna ato de
controle, na qual a vingança convoca uma estética- é a identidade imaginária da criança,
com efeito, que vemos aqui se instaurar378.
Mas, suportada pela oposição fonemática e significante do Fort-Da (Longe, “ausente” - “Aí, presente”), essa identificação imaginária revela ao mesmo tempo um ato de simbolização primordial que os comentários mais profundos da pequena fábula freudiana – emborasob inflexões diferentes e mesmo divergentes – trazem à luz: estaríamos lidando aqui, por antecipação mesma, com os poderes da fala. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.80).
Winnicott379afirmava que era no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou
o adulto fruem sua liberdade de criação, utilizando assim sua personalidade de “forma
integral”. Segundo ele, a busca do eu (self) está associada àquilo que é geralmente
chamado de criatividade. Ao introduzir o termo objetos transicionais380para designar a área
377DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:
Ed. 34,1998, p. 80. 378 Idem. 379WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade.Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre.
Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1975, p.13. 380Winnicott forjou a teoria dos “objetos transicionais” a partir da observação de que os bebês, assim
que nascem, tendem a usar o punho e os dedos polegares em estimulação da zona erógena oral, para satisfação de instintos dessa zona. Após alguns meses, os bebês de ambos os sexos passam a gostar de brincar com bonecas e a maioria das mães permite aos seus bebês algum objeto especial, esperando que eles se tornem, por assim dizer, apegados a tais objetos.
225
intermediária de experiência, entre o polegar e um ursinho, uma boneca ou brinquedo em
um espaço, que chamou de espaço em potencial381,apontou essa importante característica
do brincar como desenvolvimento dos conceitos dos fenômenos transicionais.
Segundo Winnicott, a característica essencial daquilo que o sujeito deseja comunicar
refere-se ao brincar como uma experiência sempre criativa na continuidade do espaço-
tempo, uma forma básica de viver. O estado de quase alheamento em que se encontra a
criança e o adulto que brinca, aliada à concentração, não permite intrusões. A criança que
brinca habita uma área que não pode ser facilmente abandonada: essa área do brincar não
é a realidade psíquica interna. Está fora do indivíduo, mas não é o mundo externo. A criança
traz para dentro dessa área da brincadeira objetos ou fenômenos oriundos da realidade
externa, usando-os a serviço de alguma amostra da realidade interna pessoal. Sem alucinar,
a criança põe para fora uma amostra do potencial onírico e vive essa amostra num ambiente
escolhido de fragmentos oriundos da realidade externa.
Entretanto, adverte Winnicott: O brincar implica confiança e pertence ao espaço
potencial existente entre (o que era a princípio) bebê efigura materna, com o bebê num
estado de dependência quase absoluta e a função adaptativa da figura materna tida como
certa para o bebê. Winnicott afirma, ainda, que o brincar envolve o corpo, devido à
manipulação de objetos, porque certos tipos de objetos estão associados a certosaspectos
de excitação corporal.
A interrelação entre objetos materiais e personagens é um tema constante na obra
de Beckett. Alguns estudiosos exploram como objetos familiares exercem uma influência
significativa na rotina e percepção cotidiana dos personagens, evocando, na maneira com
que manejam esses objetos durante a encenação, alguns estados de ânimo que não são
381 O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço em potencial existente entre o
indivíduo e o meio ambiente (originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar. Segundo Winnicott, a experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira. Para todo individuo o uso do espaço é determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos primeiros estágios de sua existência.Cf. WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade.Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1975, p. 13.
226
evidenciadas em suas falas.
De acordo com a análise deWashizuka382, por exemplo, menos obviamente que em
Murphy e em Whatt, o primeiro “herói” de Beckett, Belacqua, é uma das "things people for
whom", cujarelação com as coisas revela o estado de seus afetos e sua relação com o
ambiente.Em “Dante e a Lagosta”, primeira narrativa de More Priks than Kicks, o
protagonista desenvolve uma obsessiva relação com um pão no processo de elaboração de
um sanduíche para um almoço. Ele às vezes se comunica com este objeto diariamente pelo
tato e pela visão, tratando de observá-lo com atenção meticulosa.
A lagosta é um outro objeto fundamental na rotina de Belacqua. Durante a aula de
italiano, em que vê como quase impossível a tradução de um trecho de Dante, ele pensa
sobre o terrível destino da lagosta, que é fervida viva antes de ser servida como jantar.
Belacqua é "por natureza" pecaminosamente indolente, atolado na indolência e todas as
suas impressões sobre o mundo - “os miseráveis de fora”, como ele os chama em sua
misantropia - só podem ser percebidas a partir da maneira como ele interage com esses
objetos.Seu nome deriva de um fiorentino notoriamente preguiçosoque Dante e Virgílio
veem procrastinar no quarto canto do Purgatório. No sopé da montanha que os peregrinos
se esforçam para subir, o Belacqua do Dante prosta-se indiferente, e, em sua maneira
tipicamente contundente, pergunta por que eles deveriam ir “para cima”. Ele se contenta em
esperar lá fora até que sua salvação chegue, sentado e segurando seus joelhos, com a
Inaçãopassivae aceitaçãoincondicionalsão instintivosneste homemsubmisso.O que lhe faltaé
a forçade vontadee empenhoe energiadirecionada paranovo movimento383”. O Belacquade
Beckettcompartilha o mesmo"espírito preguiçoso". Em suapropensãopara
evitaroutrossofrendo, eleescolhe se abrigar emsegurança notédio, um estado de inércia que
382WASHIZUKA, Naho.Pity and objects: Samuel Beckett's 'Dante and the Lobster'.In: Journal of Irish Studies, XXIV, p. 75 - 83. 383WASHIZUKA, Naho.Pity and objects: Samuel Beckett's 'Dante and the Lobster'.In: Journal of Irish Studies, XXIV, p. 75-83.
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nãocrianenhumamudança significativanas vistasou noções. Ainda assim, Belacqua não
abandona seus objetos, seu olhar estará sempre voltado para eles.Hamm também acha
inútil estarem ali; porém dá continuidade ao jogo da mimicry:
Hamm: Meu cão está pronto? Clov: Falta uma pata. Hamm: Ele é macio? Clov: Uma espécie de Lulu. Hamm: Vá buscá-lo. Clov: Falta uma pata. Hamm:Vá buscá-lo. Sai Clov. Estamos progredindo. (BECKETT, 2001, p. 90)
A tirania de Paullete, quando ela se concentra na expansão de seu cemitério com
novas carcaças de animais e pressiona Michel para roubar mais cruzes para adorná-lo, é
similar à relação de Hamm e Clov em Fim de Partida, quando o primeiro não cessa de
solicitar que Clov lhe traga pequenos objetos, para auxiliá-lo, juntamente com suas histórias,
no enfrentamento com o tempo que se arrasta morosamente. O espaço circunscrito em que
se encontram os personagens, se, por um lado, nos transmite a ideia de um beco sem
saída, por outro, torna-se, nesse contexto, um espaço viável para manuseio de objetos,
ainda que esses se encontrem depauperados. “Estes lugares priveligiados da infância, dos
quais o adulto se lembra, não são, portanto, os lugares de uma felicidade imaculada; ao
contrário, preenchem a criança de uma certa apreensão, pois são plenos dos mortos do
passado.384”
Fim de Partida foi escrita em francês, e, quando Becketta traduziu para o inglês, fez
questão de chamá-la de um "jogo385". Em Godot, os vagabundos inventam jogos para jogar,
enquanto esperam a vinda de Godot. Em Fim de Partidanão há mais esperança de que
alguém irá chegar; os jogos e os instrumentos para jogá-los estão no fim,rareados ou
384Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.89. 385 Beckett disse sentir que seus títulos sofriam na tradução, em ambas as direções. Fin de Partie pode ser qualquer jogo. Endgame já remete com especificidade ao jogo de xadrez. O xadrez é importante para a peça, mas não é o único jogo sugerido por ela, segundo Beckett. GUSSOW, Mel. Conversations with and about Samuel Beckett. New York: Grove Press, 1996, p.34. Apud: CAVALCANTI, Isabel. Eu que não estou aí onde estou: teatro de Samuel Beckett. Rio de Janeiro, 7Letras, 2006, p.19.
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extintos. No entanto, como observa Ruby Cohn,“o show deve continuar386”.
Hamm: Minha... (bocejos) vez. (Pausa) De jogar. (Segura o lenço aberto à sua frente na ponta dos dedos) Trapo velho! (Tira os óculos, enxuga os olhos, o rosto, limpa os óculos, recoloca-os, dobra o lenço com cuidado e coloca-o com delicadeza no bolso do peito do roupão. Limpa a garganta, junta a ponta dos dedos). (...) Não, tudo é a...(boceja)...bsoluto, (com orgulho) quanto maior o homem, mais pleno. (Pausa. Melancólico) E mais vazio. (...) Chega, está na hora disso acabar (...) E mesmo assim eu hesito em... ter um fim...(Boceja) Meu Deus, que há comigo hoje, devia me deitar. (Apita. Entra Clov imediatamente. Pára ao lado da cadeira) (BECKETT, 2001, p.39)
Em Fim de Partida o palco possui umarealidade particular. Não é uma reprodução
deuma salade classe média, como em uma "comédia sala de visitas", mas um lugar em si
mesmo. Não há trégua: "Vamos parar de jogar!”Clovimplora; “Nunca!”respondeHamm.O
palco éum emblemada noção deprisãoque permeia ojogo, não há saída.A sensação de
enclausuramento torna-se, assim, paulatinamente, mais intensa a cada peça de Beckett.
Além disso, o cenário, em Fim de Partida, é mais sombrio que em Godot. Estragon e
Vladimir estão no meio de uma estrada, num espaço distante, no meio do nada, mas ainda
se vê uma àrvore que irá ganhar algumas folhas na mudança de ato; há a lua; o ambiente
não é fechado. Com Hamm e Clov estamos em umasala escura, com pé direito alto,no qual
duas janelas, só acessíveis por uma escada, estão de frente para a terra eomar, onde o
espectador é levado a imaginar que tudo é cinza e cheira a cadáveres.Só Clov pode se
movimentar, ainda que manco, e olhar para o exterior com sua luneta. Hamm está cego e
preso à cadeira de rodas; Nagg e Nell fenecem em seus latões de lixo. A luz do palco é
cinzenta.
A trama de Fim de Partida, como a de Godot, pode ser mais facilmente resumida que
a ficçãomais tardia de Samuel Beckett, ainda queas relações entre os personagens
sejamambíguas.NaggeNellsãoos pais deHamm;Clov, eventualmente,é chamado deseu
filho. Uma personagem, MãePegg, é algumas vezes evocada, mas nuncaé revelada comoa
mãe deninguém, e,como o resto domundo fora do palco, ela está
presumivelmentemortaquando a peçacomeça.
386COHN, Ruby. Samuel Beckett: the comic gamut. New Jersey: Rutger University Press, 1962,p.226.
229
Hamm e Clov, como Estragon e Vladimir, são pares complementares. Nagg e Nell,
pais de Hamm, vivem em latões de lixo, e vira e mexe irrompem a cena, para incomôdo e
desespero de Hamm, que não os suporta, mas, paradoxalmente, gosta de de tê-los como
plateia de sua interminável história. Hamm, cego, sentado bem ao centro da sala em sua
cadeira, tem ares de soberano sobre os demais. Ele abusa de seu poder: em relação a Clov,
ele se coloca como o pai acolhedor, sadicamente. Nada é mais importante para Hamm do
que ser o centro das atenções, o dono da cena. Ele reivindica esse papel forçosamente, ao
oferecer ou negar biscoitos e frutas confeitadas a Nagg e Nell, em troca de que prestem
atenção às suas narrativas, compareçam à cena ou mesmo a abandonem. O jogo da
mimicry também está presente aqui:
Hamm: O que há de errado com os seus pés? Clov: Meus pés? Hamm: Parecem um regimento de dragões. Clov: Devo ter colocado as botas. Hamm: As sapatilhas machucavam? Pausa. Clov: Vou deixá-lo. Hamm: Não! Clov: Pra que eu sirvo? Hamm: Para me dar as deixas. (Pausa) Avancei bastante a minha história. (Pausa) Está bem avançada a minha história. (Pausa) Pergunte até onde eu cheguei. Clov: Ah, falando nisso, e a sua história? Hamm(muito surpreso): Que história? Clov: Aquela que você conta sempre. Hamm: Ah, você quer dizer o meu romance? Clov: Isso. Pausa. Hamm: (com raiva) Continue, criatura, continue mais um pouco. (BECKETT, 2001, p.115)
As botas, que tanto martirizavam Estragon, também causam dissabores a Clov.
Diante desse quadro, o jogo da mimicry torna-se essencial nesse duelo com a ampulheta. É
o que lhes resta, afinal. Eles precisam jogar, comportarem-secomo se, devem tagarelar e
brincar com os restolhosque ainda subsistem.Já não há mais caramelos, calmantes e
bicicletas, embora Hamm os solicite repetidamente. Aliás, assetenças proferidas, mais que
buscarem alçar um significado, são apenas instrumentos para os jogos. São o falso agôn, o
jogo que não visa à vitória, que está ali apenas para dar curso à peça.Comodestroços em
uma tormenta, o verboserve apenas como paliativo, para sobreviverem ao naufrágio
230
existencial em que se encontram. Alude-se, como em Godot, a Heráclito, mas de forma
derrisória. A realidade é sempre a mesma e não há como perceber as mudanças. O fluxo do
tempo não se dá de forma transformadora e renovadora: ele os devora.
Hamm: O que está acontecendo? Clov: Alguma coisa segue seu curso. Pausa. Hamm: Clov! Clov:(irritado) Que é? Hamm: Não estamos começando a...a...significar alguma coisa? Clov: Significar? Nós, significar! (Riso breve) Ah, essa é boa! (BECKETT, 2002, p.115)
Didi- Huberman387 propõe uma perspectiva diferenciada para o estudo da teoria da
arte: a busca pelo sentido da imagem, procurando romper com a sujeição do visível e do
legível e com a certeza da historiografia da arte. O autor defende o conceito de invisível,
aquilo que não é visível, mas, ao mesmo tempo, é perceptível ao olhar. Para o estudioso
francês, é a ausênciaque dá conteúdo ao objeto, e o invisível não deixa de ser perceptível
ou sensível como a aura.O que se oferece à visão sempre inquieta o olhar: ver é uma
operação subjetiva, “portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho
traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se
detentor388”.
A linguagem alegórica, que se apresenta em forma de fragmentos, mostra que
também as coisas olham o mundo através de sua estrutura alegórica. Essa estrutura pode
ser evidenciada pela retirada de um objeto de seu contexto original; ele, o objeto, se
distancia de sua significação primeira para ganhar nova significação. O cão morto de
Paulette, que depois passa a ser substituído em seu ritual por toda a sorte de cadáver de
bicho encontrado, e o cachorro de pelúcia de Hamm expressam bem essa transição do
símbolo para a alegoria. Nesse novo contexto, as coisas perdem sua inteireza, são objetos
fraturados, que não obedecem à ordem simbólica, porque agora, fendidos, fazem sempre
alusão a uma ausência quando se presentificam.
Hamm: Ele fica de pé?
387DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:
Ed. 34,1998. 388 Idem, p.77.
231
Clov: Não sei. Hamm: Tente. (Entrega o cão a Clov, que o coloca no chão) E então? Clov: Espere. Agachado, tenta colocar o cão em pé sobre três patas, não consegue, desiste, o cão cai de lado.389 Clov: Espere. (...) Hamm:(a mão na cabeça do cão) Está olhando para mim? Clov: Está. Hamm: (orgulhoso) Pedindo para dar uma voltinha? Clov: Se assim lhe parece. Hamm:(ainda orgulhoso) Ou pedindo um osso. (Retira sua mão) Deixe-o aí como está, de pé, implorando por mim.
(BECKETT, 2002, p. 92-93.)
Hamm é obcecado por seu cão, o bicho de pelúcia que Clov parece cuidar para ele e
de que Hamm toma como se fosse um animal de verdade. Tanto Clov quanto o cão
possuem problemas na perna. Nos ensaios de Berlim, em que Beckett foi o diretor de Fim
de Partida, Beckett enfatizou a semelhança entre Clov e o cachorro, fazendo com que o
olhar de Clov para Hamm se assemelhasse com o de um poodle, de cócoras, ao lado da
poltrona. Embora Clov não pudesse colocar-se nessa posição, devido a sua deficiência, ele
possuía, segundo Beckett, outras formas de mobilidade que poderiam transmitir esse tipo de
relação.390
Hamm: Fim de folia391. (Tateando, procura o cão) O cão fugiu. Clov: Não é um cão de verdade, não pode ir embora. Hamm:(tateando): Não está aqui. Clov: Está deitado. Hamm: Me dê aqui. (Clov pega o cão, entrga-o a Hamm. Hamm segura-o nos braços. Pausa. Atira o cão longe) Animal imundo! (Clov começa a recolher os objetos no chão) Que está fazendo? (BECKETT, 2002, p.113)
Segudo Benjamin, uma das figuras emblemáticas392que acumulam no primeiro plano
do quadro “Melancolia I”, de Dürer, é o cão. “Não é por acaso que uma descrição do estado
de espírito do melancólico, feita por Aegidius Albertinus, menciona a raiva.”Reza a tradição
antiga393: o baço domina o organismo do cão. Este é um traço que ele tem em comum com
390. Cf. FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /
Endgame/ Krapp’s Last Tape.Faber and Faber, London, 2000, p.123. 391 Alusão a “A Tempestade”, de Shakespeare; há além desse trecho, outros diálogos com o bardo inglês, como quando Hamm, para referir-se à Nagg e Nell, diz: “Meu reino por um lixeiro” (Ricardo III). 392 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011,p.158-159. 393 Idem.
232
o melancólico. Se este órgão, particularmente delicado, se corrompe, o cão perde a alegria
e fica raivoso. Deste ponto de vista, o cão simboliza o aspecto sombrio da complexão
melancólica. Por outro lado, o faro e a resistência do animal permitiriam construir dele a
imagem do incansável pesquisador e do pensador meditativo. “Pierre Valerianon diz
expressamente, no seu comentário a este hieróglifo, que o melhor cão a farejar e a correr é
aquele que faiem melancholicam prae se ferat(... apresenta face melancólica)394”.
Na gravura de Dürer, a ambivalência deste símbolo é reforçada pelo fato de o animal
estardormindo: se os maus sonhos vêm do baço, os divinatórios são privilégio do
melancólico.
Mas tais sonhos devem ainda ser entendidos como de um sono geomântico no templo da Criação, e não como inspiração sublime ou mesmo divina. Porque toda a sabedoria do melancólico obedece a uma lei das profundezas; a ela chega-se a partir do afundamento, na vida, das coisas criaturais, a voz da revelação é-lhe desconhecida (BENJAMIN, 2011, p.58-59)
Tudo que é de Saturno remete às forças subterrâneas nointerior da Terra, pois é aí
que se conserva a natureza do velho deus das sementeiras. Os olhos postos no chão
caracterizam o saturnino, que perfura a terra com os olhos. Mas no universo beckettiano não
há mais natureza, o cão está morto e eles não podem dormir:
Hamm: A natureza nos esqueceu. Clov: Não existe mais natureza. Hamm: Não existe mais! Que exagero! Clov: Nas redondezas. Hamm: Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos os cabelos, os dentes! A juventude! Os ideais! Clov: Mas você disse que não existe natureza Clov(triste): Nunca ninguém pensou de modo tão tortuoso como nós. Hamm: A gente faz o que pode. Clov: Fazemos mal. Pausa. Hamm: Você se acha o tal,hein? Clov: O próprio. (BECKETT, 2001, p.115)
Para fugir à angústia,Hamm faz de seu relacionamento com Clov um exercício
contínuo de sadismo, no qual se compraz em humilhá-lo, aviltá-lo, para sentir-se um
“soberano”. Nagg e Nell, seus pais, “são seus pobres” ou “súditos” que, no jogo de cena,
são também frequentementehumilhados por Hamm. O homem cego na cadeira de rodas
394 Idem, p.159.
233
não dá o braço a torcer e coloca-se sempre como superior e manipulador daquele universo
ficcional propositalmente mal concebido. Hamm, contudo, teme a partida de Clov, que o
ameaça a todo tempo com tal possibilidade. Clov, por sua vez, jamais consegue livrar-se de
seu algoz, embora sustente durante toda encenação que irá fazê-lo.
Ao pedir que Clov traga o cãozinho de pelúcia, “uma espécie de lulu”, (um lulu da
Pomerânia aparece também em Molloy395), Hamm parece estabelecer com esse objeto uma
relação análoga à que mantém com seus companheiros de confinamento. Quer que o cão
(que parece considerar uma animal de verdade) o contemple em seu patético trono e clame
por sua atenção.Parece reproduzir, em sua brincadeira com o objeto de pelúcia, as relações
que mantém com todos que estão à sua volta. Interessante apontar que, ao abandonar o
cão, Hamm pergunta a Clov sobre Mãe Pegg, personagem emblemática, que parece ser
uma prostituta com queHamm supostamente já tenha se relacionado (há uma interpretação
que aponta Clov como filho de Hamm):
Hamm: Tem luz acesa na casa de Mãe Pegg? Clov: Luz! Como você queria que houvesse luz acesa em algum lugar? Hamm: Então apagou. Clov: Claro que apagou! Se não está acesa, é porque apagou. Hamm: Não, não, quis dizer a Mãe Pegg. Clov: Mas é claro que apagou, o que você tem hoje? Hamm: Sigo meu curso. (Pausa) Foi enterrada? Clov: Enterrada! Quem você queria que a tivesse enterrado? Hamm: Você. Clov: Eu já tenho bastante o que fazer sem ter que enterrar gente.(...). Hamm: Ela era bonita, naquele tempo, como um coração. E carinhosa também, por uns trocados. Clov: Também éramos bonitos...Naquele tempo. É estranho que não se tenha sido bonito... Naquele tempo. Pausa.Hamm: Vá buscar o croque.(BECKETT, 2001, p.93-94)
É curioso notar que, após invocar uma reminiscência de Hamm e Clov, o texto, por
meio da rubrica, aponta uma Pausa para em seguidaretomar o diálogo em que Hamm
solicita a Clovnovo aparato (objeto) para jogar. Mais interessante ainda conjecturar qual
figuração se insinua na inserção de Mãe Pegg na narrativa (ela apagara, morrera). Clov tem
consciência disso, Hamm necessita ser lembrado por Clov sobre tal fato. Quando Clov
pergunta com impaciência o que há com ele, ele diz: “Sigo meu curso”. A impaciência de
Clov revela que Hamm já era conhecedor de tal informação; a insistência de Hamm em
perpetuar, contudo, tal assunto, denota a necessidade de, por meio do diálogo, fazer com
que o jogo da mimicry prossiga.É nesse processo de miniaturização e reduplicação, que
Hamm, como um ator (ham) representa para um público imaginário396. Ele oferece a sua
"história" de uma forma teatral, parando de vez em quando para comentar sobre seu próprio
desempenho, do mesmo modo Nagg, com sua piada do alfaiate. Clov aponta seu telescópio
para o público e comenta ironicamente sobre a fruição delirante dessa plateia. Estamos em
um mundo onde tudo é ilusão e tudo que deveria ser desempenho, ação, é jogo.“Mais que
isso, estamos no teatro, mas um teatro que Shakespeare e Calderón teriam entendido:
theatrum mundi, ou: todo o mundo é um palco397”.
Clov: A coisa está esquentando. (Sobe na escada, dirige a luneta para o exterior, ela escapa-lhe das mãos, cai. Pausa) Fiz de propósito. (Desce, pega a luneta, examina-a, dirige-se para a plateia) Vejo uma multidão delirando de alegria. (Pausa) Isso é que eu chamo de lentes de aumento. (Abaixa a luneta, volta-se para Hamm) E então? A gente não ri?(BECKETT, 2002, p.76)
Não é uma narrativa através da qual se tenta relembrar os fatos e compreendê-los.
Aos personagens de Beckett, sempre falha a memória. Assim, seus relatos não trazem em
seu bojo nenhum sentido, pois, antes de qualquer conclusão, o processo é interrompido
para novamente se apropriarem denovos objetos.
Assim como em Godot,a estrutura de Fim de Partida é circular; nada é acidental398:
tudo é construído por analogia e repetição. A peça é estruturada a partir de um acúmulo de
leitmotivs, que são obssessivamente remoídos a cada cena. As incidências são numerosas:
os anúncios de Clov de que deixará Hamm,as idas e vindas de Clov à despensa;
asdescobertas de um novo item em exaustão:papa, calmantes, rodas de bicicleta e
caramelos, tudo acabou. Hamm e Clov repetem insistentementeque deveriam acabar com
aquilo, mas sempre decidem por continuar, ainda que sofregamente, pois alguma coisa está
396FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/
Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.111. 397 Idem. 398THIBAULT, Rémy. En attendant Godot. Fin de Partie. France: Éditions Nathan, 1991, p.85.
235
em curso. Como bem observa Fletcher, “estes leitmovs possuem papel estrutural, são
pontos de articulação, que as vezes aparecem de forma seriada, numa repetição mecânica,
e em outras, são solapadas de algum conteúdo, como se retornassem danificadas,
diminuídas.”Os gestos são repetitivos e contam com uma organização espacial simétrica:
duas janelas; duas caixas; os pares dos óculos escuros de Hamm, que parecem compor
com as janelas um processo de reduplicação, de miniaturização (como se a peça se
passasse dentro do cérebro de Hamm). Além disso, a coreografia das cenas,nas inúmeras
idas e vindas entre a sala e cozinha de Clov, juntamente com a sua ensaiada maneira de
mover os objetos em cena, como a escada, por exemplo, apontam para uma partitura que
não se esquece em nenhum momento de um certo processo de reiteração.Seja acrescendo
ou de forma recessiva, a repetição está sempre ali.
“Unidades maiores de diálogo e pantomimas tecem a peça, enquanto uma rede de
ecos: há três explorações, acompanhando passeios de Clov com as fezes e luneta, duas
caminhadas, duas cenas em que Hamm pede por seu cachorro, etc399”.
Como em um ensaio, em que as cenas são repetidas e nunca logram êxito, os atores estão
ali, usando o jogo da mimicry para retardar a passagem do tempo, grão após grão e driblar,
com isso, o vazio da existência. É certo que falham: o ódio ea convivência entre Hamm e
Clov torna-se insuportável, a tensão dramática aumenta ao ponto de uma ruptura. Eles
precisar suportar uma ao outro para que o jogo continue e, assim é, porque a peça termina
em suspenso.
Clov, quesempre ameaçara deixar Hamm, parece tão inábil em fazê-lo quanto Hamm
em prescindir dele. Embora não compreenda sua submissão a Hamm, ele vem, segundo o
texto diz, “obedecendo-o a vida inteira”. Hamm, como Pozzo, carece de uma platéia cativa
para sua história, uma narração na qual afirma estar trabalhando há algum tempo. Não está
claro o quanto dela é ficção, nem o quanto se baseia na memória de fatos reais. De fato, a
história por ele narrada parece mostrar a relação dele com os demais. Trata-se de um relato
399FLETCHER, John. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /Endgame/
Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.112.
236
sobre um menino que um dia aparecera por acaso, cujo tema parece ser a maneira com que
conheceu Clov.
O enredo dessa história exaustivamente repetida, como as demais histórias, é dito
de maneira confusa, mal acabada: um dia, na véspera de Natal,aparece um homem,
suplicante, com um menino. Ele pede ajuda a um outro homem, que, pela descrição da
narrativa, parece ser Hamm. Ele, contudo, estava ocupado com os preparativos, com a
decoração de um pinheiro, e lida com impaciência com o forasteiro. Segundo Eugenne
Webb400, pelo contexto, o menino aparece como símbolo da fertilidade e da vitalidade. Ele
fora deixado em sono profundo, por três dias completos antes, recordando o período de
morte e ressureição de Cristo. Mas, para Hamm, não vale a pena que a vida se renove.
Na poética cênica de Fim de Partida o manuseio de certos objetos encena aquilo que
foi silenciado pelo discurso, quando o paradoxo toma a cena e o texto não é mais capaz de
encenar o luto. Traz, portanto, em si, como objeto concreto, aquele poder de alteridade tão
necessário ao processo mesmo da identificação imaginária. Hamm é cego. Porém o contato
táctil com esses objetos residuais juntamente os relatos fazem com que a natureza
manipulável das coisaspossibilite um poder de alteração que manifesta a ausência em um
mundo em ruínas.
No desfecho da peça, Hamm prepara-se para seu último monólogo, seu Fim de
Jogo. ApósClov avistar por algumas vezes um pequeno menino401 na praia,ele também se
compõe com chapéu e valise paradeixarHamm e aquele espaço.Omenino, no entanto, não
aparece emcena,eHamm,cobrindo o rosto como lençodoquadrode abertura,pareceresignado
com amorte: “Hamm: Minha vez. (Pausa) De jogar. (Pausa. Com cansaço) Velho fim de
partida, perdido, acabar de perder.” Clov está ao seu lado, de panamá, paletó, sobretudo
400WEBB, Eugene. The plays of Samuel Beckett. Washington: Library of Congress Cataloging in Publication, 1972, p.79. 401Lembremos que, em Godot, a aparição do menino anuncia a circularidade dos jogos, seu recomeço. Então, talvez, possamos inferir aqui, que, dado que a peça termina com os dois personagens imóveis (assim como em Godot), haverá novamente um recomeço do espetáculo, em que tudo se repetirá, no eterno retorno daqueles personagens e situações, sem que haja um final e, portanto, sem que exista uma catarse.
237
sob o braço, guarda-chuva, mala. Perto da porta, impassível, com os olhos fixos em Hamm,
Clov ficará imóvel até o final.
Hamm: E para terminar? (Pausa) Eu jogo. (Joga o cão. Arranca o apito à sua frente. Pausa. Funga. Baixo) Clov! (Pausa longa) Não? Tudo bem. (Tira seu lenço) Já que é assim que se joga... (desdobra o lenço)...joguemos assim...(desdobra) e não falemos mais nisso...(termina de desdobrar)... não falemos mais. (Segura o lenço esticado à sua frente) Trapo velho! (Pausa) Você... fica. Pausa. Aproxima o lenço de seu rosto. (BECKETT,2001,p.148)
Na verdade, a peça é circular, o lenço que Hamm retira da boca no começo da
encenação é também a abertura de seu monólogo final. Hamm conclui seu solilóquio com
as palavras do início: "Eu jogo" e "o fim é o começo". Essa estrutura apresenta a simetria
sintática do paradoxo e cancela qualquer ideia de progresso. O lenço, nesse momento final,
ganha especial atenção desse ator, que é Hamm, em seu solilóquio. Hamm despe-se de
todos os objetos, mas o trapo velho fica. Ele é agora “a cortina, o pano que cai (stancher,
em inglês sugere também curativo, um pano que funcione como atadura e estanque o
ferimento que persiste, fica” 402”). O trapo velho ganha a plurisignificação da alegoria, na
qual o jogo de palavras torna-se também jogo de imagens. Esse retalho sujo de sangue
também é um resíduo, um objeto fraturado, que, laconicamente, põe em curso o luto de um
mundo pós-guerra, que traz consigo uma ferida que não cicatrizou. O teatro também é,
metonimicamente, representado nesse pedaço de pano: a encenação subsiste, apesar da
qualidade duvidosa do contexto histórico com a qual, invariavelmente, deve dialogar.
Quando a cortina cai, Clov ainda está no palco, supostamente pronto para deixá-lo
definitivamente, mas nada diz que estadecisão será levada a cabo, e que a história da
emancipação fechará o círculo de sua servidãoa Hamm.
Fim de Partida, assim com Esperando Godot, apresenta uma ruptura radical com
técnicas teatrais conhecidas. Seus enredos são parcimoniosos, quase não há intriga: se
Godot não veio, Hamm perde seu fim de jogo; o que parece acontecer ad infinitum.
402ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O Silêncio Possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 91.
238
Ficamos em dúvida se Clov, no fim, abandonará o homem que "era pai para ele".E Hamm?
Cansado de jogar o velho jogo lutuoso, morrerá depois que o pano cai? Ou é o mesmo
ritual, dito e redito, obedecendo à mesma estrutura de repetição, exatamente do mesmo
modo, todas as noites?
Estas questões não podem ser facilmente respondidas. O teatro de Beckett guarda
seus mistérios, os seus pontos de interrogação. Eles existem tanto para o autor, quanto para
nós mesmos. "A palavra-chave em minhas peças”, disse ele uma vez, “é talvez403”.
A suspeita de algo que falta ser visto, ouvido ou revelado e os esquecimentos dos
personagens que não cessam de entrecortar seus jogos e narrativas passam a exigir, no
exercício do olhar do espectador,nesta e nas demais peças de Beckett, uma atenção a uma
nova dimensão,na qual a ausência e o vazio são fundamentais parauma latência, que
contradiz mais uma vez a segurança tautológica do What youseeiswhatyousee,(usando a
expressão de Didi-Huberman). Essa nova maneira de olhar se opõe à segurança de se
achar diante de uma “coisa mesma”, da qual poderíamos refazer em pensamentoa “mesma
coisa404”.
Beckett,no já mencionado ensaio sobre Proust,falara de nossa “presunçosa vontade
de viver”, na esteira de Shopenhauer. Esta incompreensível atitude irracional, que nada tem
a ver com a razão, é o que sustenta as criaturas beckettianas em sua miséria.Seus
personagens são coxos, cegos, paralíticos,que não são metáforas de coisa alguma, mas
seres humanos, que, mesmo mutilados e impotentes, são impulsionados por aquilo que
falta, por um desejo inesgotável que os leva a brincar, a jogar com os restos que dispõem
em um mundo deteriorado.
O jogo do Fort-Da, como afirma Didi-Huberman (1998), em seu próprio ritmo, “era
403FLETCHER, JOHN. A Faber Critical Guide. Samuel Beckett. Waiting for Godot. /
Endgame/Krapp’s Last Tape.London: Faber and Faber, 2000, p.109. 404DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,1998, p.118-119.
239
criador de uma espacialidade originária já dialética: a criança nele vigiavao pasmo aberto, a
espécie de antro do qual a mãe havia se ausentado, e desse lugar o carretel traçava a
impossível geometria. O jogo inventava um lugar para a ausência, precisamente para
permitir que a ausência tivesse lugar”. Mas enquanto é o próprio agir que engendra
espontaneamente o lugar no movimento de ida e volta do carretel, devemos reconhecer no
jogo uma capacidade diferentemente complexa de desvio.(Freud tentava apreender esse
movimento, tateando, através da palavra sublimação.)
Porém, nemem Esperando Godotnem nas demais obras,encontramos sublimação
alguma. Em Beckett seria inadequado falar em redenção de qualquer tipo. A espera de
Godot, como a dos demais personagens, está em suspenso: enquanto aguardamos, jogos
se anunciam, repetições se processam e os vazios se ampliam,
inaugurando,continuamente, a possibilidade de um lugar de resistência e promessa405 para
nossos desejos.
Temos aqui uma percepção análoga a de Rancière, quando este sugere um regime
estético406 das artes como categoria de análise dos produtos da arte, levando-se em conta o
modo de ser sensível próprio de seus objetos e sua temporalidade, que não obedece aos
preceitos de correntes ou periodizações literárias historicistas e redutoras.
Assim, a temática de incomunicabilidade e deserção do mundo não seria suficiente
para tornar Beckett comum a seus contemporâneos.Contudo, a maneira, a forma com a qual
forjou o modo de ser sensível de sua obra instaurou a sua singularidade ao mesmo tempo
em que a agrega a uma tradição à qual pertecem ao mesmo tempo Sófocles, Aristófanes,
Rabelais, Calderón, Shakespeare, Kleist, Melville e Kafka, dentre outros. Quanto à questão
de gêneros, o mesmo acontece: o hibridismo presente em Esperando Godot e Fim de
Partida confere a estas obras um caráter heterôgeneo que lhes permite vasculhar a
complexidade da existência humana, que oscila, sem distinção, entre o patético e o trágico,
405Para Jacques Rancière, a “literatura é resistência e promessa”. Tomamos emprestado o termo,
para falar do jogo em Beckett, no qual a ausência e os vazios produzidos são, em nossa leitura, reduto do desejo. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Ed. 34, 2009.
406 Idem.
240
o sério e o jocoso, em consonância com Dioniso e sua pluralidade de máscaras.
Hamm e os demais personagens de Beckett sãotambém ficcionistas, atores-
dramaturgos, insatisfeitos com o que concebem, masresistentes, via mimicry. São incapazes
de abandonaro território da linguagem: agôn, mesmo enfraquecido, não os
permite.Brincando, ainda que com crueldade e ironia, com a ausência e a perda, o vaivém
contínuo dealeaoferece, ao inventar seu jogo rítmico, um lugar para inquietar -ou perturbar
(ilinx) - a visão; e, portanto, para operar todas as expectativas, todas as previsões, que o
desejo mobiliza em sua falta. Alea, ilinx, mimicry e agôn.Ludo, ledo, gaeteiro,vertiginoso
engano: um jogo, feito para perder, como nossa existência, repleta de vazios, que,
ampliados, vez ou outra, nos movem.
7. CONCLUSÃO
Viver e inventar. Eu tentei. Acho que tentei. Inventar. Não é bem essa palavra. Viver também não é. (...) Enquanto dentro de mim ia e vinha a besta feroz da seriedade, rugindo, rasgando, roendo. Eu fiz isso. E completamente sozinho, bem escondido, fiz o papel de palhaço, sozinho, hora após hora, imóvel, muitas vezes de pé, numa atitude de enfeitiçado, gemendo. Isso, gemendo. Não soube jogar. Eu girava até ficar tonto, batia as mãos, corria, gritava, me via ganhando, me via perdendo, exultando, lamentando. Depois, de repente, eu me atirava em cima dos instrumentos de jogar, se houvesse, para destruí-los, ou sobre um garoto, para transformar sua alegria em uivos de dor, ou fugia, ou corria para me esconder. (...) Eu já era vítima da seriedade. Foi minha grande doença. Nasci sério como tem gente que já nasce sifilítico. E foi com seriedade que tentei deixar de sê-lo, viver, inventar, eu sei o que estou dizendo407.
407BECKETT, Samuel. Malone Morre. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p. 28 - 29.
241
Se me fosse ordenado, em um jogo, que eu imaginasse os personagens de Beckett
como brinquedos, eu, imediatamente, os imaginaria como aqueles grandes bonecos cheios
de ar, que, aqui no Brasil, chamamos de João Bobo.
João Bobo é um objeto de base arrendondada, que por mais que seja inclinado,
tende a permanecer de pé. Há versões infláveis, que às vezesapresentam formas
humanas; às vezes apresentam formas de animais. O brinquedo diverte em demasia as
crianças; em especial, as de pouca idade. O vaivém do boneco costuma fazer com que os
pequenos permaneçam entretidos por um bom tempo e, não raro, são também objetos
estimados pelos pais, que veem nesse jogo hipnótico de repetição e resistência a
possibilidade de algum descanso. Na maioria dos casos, a face desses personagens possui
um sorriso bem desenhado, nada sutil, que torna a patetice da queda, que jamais se conclui,
ainda mais acentuada.
A explicação física para o objeto estar sempre de pé é o baixo centrode gravidade,
perto da base arrendondada. Assim, a forma abaulada e a distribuição da massa fazem com
que elese mantenha de pé, mesmo quando inclinado. O interessante, nesse processo, é que
o centro de gravidade sempre tende a ficar na posição de menor energia possível, que é a
mais próxima ao chão408.
Assim como o brinquedo, os personagens de Beckett, a despeito de todas as quedas
e linhas de força que incidem sobre eles, teimam em retornar. Perseveram em seus jogos e
brincadeiras e parecem ignorara catástrofe que os cerca, em sua eterna repetição. Albert
Camus dizia que era “preciso imaginar Sísifo feliz”. Mas os personagens de Beckett não são
felizes nem infelizes o suficiente; eles lutam para existirem ou apenas para terem essa
sensação... E existir, no caso em questão, só será possível se puderem contar, como
tentamos mostrar, com a possibilidade de jogo.
408ASSIS, André Koch Torres. Arquimedes, o Centro de Gravidade e a Lei da Alavanca. Montreal, Quebec: Apeiron Montreal, 2008, p. 109.
242
Nesse sentido, as categorias do jogo sugeridas por Callois, mimicry, alea,agôn e
ilinx, nos serviram de suporte para espreitar as variadas possibilidades de compreensão de
nosso objeto. Acreditamos, nesse sentido, ter conseguido mostrar quea obra de Beckett,
em especial Esperando Godot,apresenta uma poética crítica e instauradora, que dialoga
com a tradição, reinventando-a.
O mistério que envolve esse salto de fé, a teimosia em persistir, até o apagamento quase
total de seus personagens, que, em geral, são cegos, coxos e de idade avançada, nos
lembra, em muito, aquilo que Shopenhauer chamou de “a presunçosa vontade de viver409.”
Uma pretensão inocente, livre do instinto de autopreservação, que tanto perturbava
Nietzsche, porque incapaz de livrar-se daquilo que o autor de Zaratrusta chamou de má-
consciência.
Entretanto, os heróis de Godot, Estragon e Vladimir, não possuem contrato com tal
ordem de valores. São vaudevillese assim se apresentam: chapéus coco, botas
desgastadas; paletós e calças surradas... É esse o traje para o solene encontro, que nunca
acontece. A estrada de campo é um lugar perdido no espaço e no tempo, e a única árvore,
na qual se vê, misteriosamente, tímidas folhas brotarem no decurso da peça, está ali, como
um fio minúsculo que ainda os une à phisys.
Eles sentem dores e padecem. A natureza corpórea de seus personagens, que traz à
cena a fragilidade, a vulnerabiliade de corpos em decomposição, é, em nossa visão, não
uma negação da vida, mas uma afirmação na negação, que traz em si um extraordinário
sentimento de amor pela humanidade, quando escolhe, justamente, esse estágio da
existência como tema. Um amor especial, amor fati, que não desdenha da dor da existência,
mas, antes, a celebra.
409BLOOM, Harold. O canône ocidental: Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.485.
243
É claro que não prescidem do humor para fazê-lo. A dialética morte-vidatraz à cena a
dialéticavelho-criança, sem nos oferecer uma síntese de tal embate. Só nos sabemos vivos,
quando capazes do confronto com a morte. Mas Beckett nos mostrou que esse confronto
não precisa ser direto, com frases de efeito, aforismos trágicos ou, até mesmo, com a
concretização do suícidio. O chiste e o humor negrosão, no caso, também de natureza
paradoxal e nonsense.A tensão complementar vida-morte se dá com a exposição de corpos
que definham; corpos defeituosos, ou até mesmo mutilados, que pulsam, agonizam, mas
não sucumbem. A carne que definhaainda vibra, e é esse vitalismo, apresentado em seu
estado de impotência, que somos obrigados a enfrentar, quando estamos com Beckett.
Tudo isso, com a mais alta dose de autoironia, que, corrosiva, desintegra e destabiliza
também a linguagem, sem nunca, contudo, dissolvê-la completamente. Um corpo vivo
envelhece, deteriora-se; Beckett canta esse movimento da vida.
Estragon e Vladimir, o par de Esperando Godot, não são os únicos personagens de
Beckett a insinuarem essa atitude de resistência. No caminho que percorremos, tentamos
mostrar que essa não-ação,apresentada pelos personagens,não se reduz à simples
passividade. Buscamos, então, um diálogo com essa tradição da imobilidade. Tanto no
universo beckettiano como no de outros autores, sobre os quais nos detivemos, ainda que
de forma breve, é possível perceber que essa disposição para nada pode ser bastante
vigorosa em sua aparente improdutividade. Isso porque, em Beckett, vemos acontecer uma
outra estratégia, via jogo, em relação às pessoas e às coisas. Seus personagens não
seguem, unicamente, a via recta da razão, de inegável eficácia, mas um tanto redutora; eles
preferemtomar o caminho, mais complexo e tortuoso, daquela racionalidade extática tão
temida por Platão, que é o discurso poético.É nesse saber, que caminha ao lado de um não
saber,que se enseja um novo tipo de liberdade.
Também, de grande importância, em nossa visada, foram os pequenos rituais nos
quais se detêmos personagens beckettianos.Rituais profanados, nos quais os objetos
residuais, quando manuseados, tentam substituir o tempo cronológico pela temporalidade
244
da criança de Heráclito, insinuando-se como uma nova forma de experimentar o real.
Talmanejo, que rompe os limites entre sujeito e objeto, guarda em si lampejos de uma
desaprendizagem que nãoabdica da vitalidade da dor, preferindo celebrá-la, naencenação
do luto e da melancolia, que, em nossa leitura, procuramos nunca dissociar do universo
infantil.
Por isso dissemos que apersistência desses heróis fracassados, verdadeiros
ginastas do imobilismo, em muito se assemelha à impertubável resistência do Boneco João
Bobo. Novos sísifos, que, em sua repetição lúdica e tragicômica, nos mostram um amor à
vida corrente; uma vida sem qualidades, que é, afinal, a única da qual dispomos.
Nessa intersecção entre o ordinário e o extraordinário, a qual só o jogo é capaz de
instaurar, nos vemos em companhia de caracteres exauridos, que, a despeito de todas as
circustâncias, resistem. Entre o chiste e o humor corrosivo, se perfaz uma travessia
incompleta, cuja imobilidade nos faz perscrutar, como espectadores melancólicos,
osimpasses existenciais mais antigos de nossa existência.
Sim, eles são perdedores, mas a insistência nessa ética outra, incômoda e
subversiva, os transforma em seres portadores de uma máscara disjuntiva e
desestabilizadora, capaz de assustar àqueles defensores do status quo e dos valores
cristalizados, que até hoje vigoram em nossa cultura.
Se o dizer sim à vida dessas vozes tão patéticas, ainda agasalha o trágico, o faz,
promovendo o apagamento do personagem tradicional, destituindo sua máscara de
qualquer traço em que prevaleça uma sublimação, e dando vazão ao grotesco de nossa
condição, no que há de mais abjeto, mas, também, regenerador, nesse processo de vida-
morte. Assim, torcemos para que a reflexão dos gêneros, que tentamos esboçar aqui,
também possa contribuir, de alguma maneira, para um maior entendimento da ausência de
fronteiras entre o trágico e o cômico na cena beckettiana.
245
Nossas elaborações sobre o coro em Beckett bem como nossas reflexões sobre a
função do menino na peça são meras especulações. Ainda sim, julgamos relevante partilhar
de nossas dúvidas e elaborar uma proposta de entendimento para esses dispositivos que
fazem parte da composição poética da cena.Se não oferecemos respostas definitivas, é
porque não as temos. No entanto, pensamos ser importante friccionar conceitos e classes,
no sentido de repensar como tais dispositivos, na concepção da cena beckettiana, podem
suscitar novas perguntas a respeito da condição humana e do gênero dramático.
A questão da liberdade nos era a mais cara. Posso dizer que foi ela que mobilizou
todo esse trabalho. Desde Édipo, passando por Calderón, Kleist, Melville, Kafka e,
finalmente, Beckett, tentamos pensar um pouco sobre o enigma do livre-arbítrio em face das
artimanhas do acaso. A proposta era tratar a questão como um interlúdio entre as reflexões
acerca do jogo e da melancolia, que fechariam nossa modesta contribuição para a leitura de
Beckett.
A busca de um sentido para a existência, da verdade;uma breve mirada no jogo das
máscaras que nos desse um leve bafejo de quem somos: foram essas as frestas que
procuramos auscultar com essa discussão. E parece-me que foi possível vislumbrar um
viésdessa liberdade, que, se não é sem limites, pode, ainda assim, estar ensejada nesse
lugar abandonado e na disponibilidade desses corpos fraturados, que se deixam
ficar;quando jogam seus jogos, inaugurando esse espaço de exceção.
Nos últimos capítulos tentamos dar maior profundidade teórica à melancolia. Para
isso, buscamos outra peça de Beckett,Fim de Partida, na qual consideramos reincidente
algumas características de Godot,tanto na retomada de alguns temas, quanto nas
experimentações com a linguagem. Na verdade, ao finaldessetrabalho, podemos afirmar,
sem hesitação, que Beckett possuía um projeto para seus escritos, dada a repetição de
certos temas e situações, que irão acompanhá-loao longo de toda a sua obra.
246
Niestzche, em Assim Falou Zaratrusta410, mencionavaas três metamorfoses do
espírito: “Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se transforma em
camelo, o camelo em leão, e o leão em criança, para acabar”. O camelo deveriadizer sim
aos fardos que a vida lhe impõe; aceitar o pensumda existência, sem, no entanto,
interromper sua jornada rumo ao deserto.
Lá, nessa solidão,ele se tornaria leão, para conquistar sua liberdade e o direito
sagrado de dizer não aos antigos valores e ao dever imposto.O espírito consegue, vence o
dragão, e descobre a ilusão e arbitrariedade do mundo. No entanto, a transformação ainda
estava inconclusa: eleencontra-se inapto para a criação de novos valores.
Epor isso, uma última metamorfose otornou criança, para conquistar algo ainda mais
auspicioso:“É que a criança é inocência e olvido, novo começar, fogo, roda que se move por
si própria, primeiro móvel, afirmação santa411.”
É assim que, para Niestzche, em um primeiro momento da história espiritual do
homem,ele não passa de um camelo, que, como o desgraçado animal, apenas ajoelha-se e
agradece quando lhe dão boa carga. Carrega pelo deserto as culpas por ter nascido. Na sua
humilde corcova, avolumam-se as penas do mundo, sobregarregado por regras morais e
pelas imposições que lhe fazem, quando lhe dizem“Tu deves!” Entretanto, no deserto,
solitário, dá-se a transformação. O camelo vira um leão. Espírito liberto, derrota o dragão e
já pode rugir e responder desafiante: “Eu quero!”. Mas o leão não pode criar novos valores,
ainda que possa lançar fora o fardo que afligia o desafortunado camelo. Então, dá-se a
derradeira transformação – o leão torna-se criança. Sim,porque a criança é esquecimento, é
o novo começo. O apelo por Godot não poderia significar o retorno de Dioniso Zagreu, esse
pequeno deus criança, na encenação desse mundo em ruínas?
410NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Pietro Nassetti.São Paulo: Editora Martin Claret, 1999. 411 Idem.
247
No rastro de Zaratrusta, deixamos, em suspenso, esse diálogo entre o universo de
Beckett e a categoria do jogo, que é, por excelência, um lugar privilegiado da infância. Sei
que não esgotamos o tema, mas, de toda forma, seria pretensão demais tentar fazê-lo.
Ficamos por aqui, e, sim: continuamos a esperar por Godot.
Olhar o mundo com olhos livres, com olhos de criança, que admira o mundo pela
primeira vez. Caminho difícil, que passa por um longo processo de desaprendizagem...
Quem sabe essa espera nos ensine a rir um pouco mais de nossa miséria,trazendo-nos o
amor fatide que precisamos, para que, finalmente, possamos renascer para a novidade do
mundo.
248
8. BIBLIOGRAFIA
PEÇAS E FICÇÃO:
BECKETT. Samuel. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
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