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Stephan Palmi
O TRABALHO CULTURAL DAGLOBALIZAO IORUB1
O Reverendo Samuel Johnson (1846-1901) era iorub? primeira
vista,e diante do macio consenso acadmico segundo o qual The
History of theYorubas from the Earliest Times to the Beginning of
the British Protectorate (1921)representa tanto uma conquista
marcante da historiografia nativa africana colonialquanto a base
indispensvel para todo e qualquer trabalho histrico eantropolgico
acerca dos Iorub (Peel 1989:198), essa questo pode
parecerequivocada, ou mesmo perversa. Pois uma vez que Johnson foi
de fato aclamadoo Tucdedes dos iorub (Smith 1994:168), que sentido
poderia haver em debatersua iorubidade, mais do que questionar a
greguidade do autor da Histriada Guerra do Peloponeso? 2 De toda
forma, para nos atermos a um sentido maisconcreto, qualquer
resposta historicamente significativa a uma questo acercado que
alguns de ns hoje em dia chamaramos a identidade tnica de
Johnsondemandaria uma especificao no apenas de seu objeto, mas
tambm de seupredicado: o que foi ele, e quando?
Pois que isso sabemos: poca de seu nascimento em Serra Leoa em
1846,ou at mesmo em 1897, quando completou o manuscrito do livro no
qual elaboravaum sentido de iorubidade que se tornaria
posteriormente um qualificadorcrtico de identificaes tnicas na
formao do estado-nao nigeriano em1963 , Johnson no era, ele prprio,
um iorub ao menos em nenhum sentido
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78 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
vlido atualmente. Ele s se tornaria iorub no contexto das
resultantes deprocessos os quais ele mesmo ajudara a desencadear, e
nos quais podemos hojeretrospectivamente inseri-lo. Essas formas de
incorporao narrativa em reverso inevitvel tendncia ao realinhamento
retrospectivo do passado, como ArthurDanto (1965) a qualifica no
so, por si mesmas, dignas de nota 3. Decerto,quando nos reportamos
a Samuel Johnson em, digamos, 1854, como uma crianaiorub de oito
anos de idade vivendo em Serra Leoa, estamos simplesmentedispondo
os eventos de sua vida sob uma descrio que provavelmente no lheera
disponvel poca (ou a ningum mais). poca esta em que ficou notriaa
alegao de Sigismund Koelle (1854:5), segundo a qual seus colegas
missionriosda Christian Missionary Society (doravante CMS)
fizeram um uso bastante errneo do nome em referncia a toda anao
[conhecida como Aku em Serra Leoa], supondo que se tratavada mais
poderosa tribo Aku. Mas essa apelao [iorub] est sujeitaa objees
muito maiores do que Aku, e deve ser imediatamenteabandonada, uma
vez que, em primeiro lugar, a-histrica, jamaistendo sido usada por
quem quer que seja em toda a nao Aku, exceo dos missionrios; em
segundo lugar, ela envolve um duplouso do termo, o qual leva a uma
confuso de noes, pois se emuma instncia a palavra tem de ser
entendida como associada a umtodo, em outra ela apenas uma parte; e
em terceiro lugar, sendoo nome incorreto, ela jamais poder ser
recebida pelas diferentestribos como um nome para a sua nao como um
todo.
Mas a Histria provaria que Koelle estava errado. Aps pouco mais
demeio sculo da publicao de seu Polyglotta Africana, os retornados
cristianizadoschamados aku, como Samuel Johnson, no apenas
invalidariam suas segundae terceira objees ao uso do termo iorub
pela elite literria em Lagos ealgumas partes de seu interior. Alm
disso, eles comeariam a projet-lo nopassado: a um tal ponto em que
at mesmo seus ancestrais mticos passaram aser referidos atravs de
uma descrio-iorub. E precisamente a que resideo problema:
referir-se a Samuel Johnson ou Oduduwa, no caso como umprecursor
iorub, em qualquer modo que no o metafrico, encerra-nos deuma tal
maneira no presente que arrisca-se com isso obscurecer justamente
asrealidades histricas que se supe abordar. claro que prescindir de
(ou apenascolocar entre parnteses) extrapolaes regressivas
basicamente inadmissveisde senso comum a partir de dados do sculo
XX pode significar um convitea argumentos do tipo de invenes disso
e daquilo argumentos em ltimainstncia estreis que, ao negarem a
acessibilidade a qualquer realidade histricasob o discurso, no
conduzem a nada alm da prpria reverso do objetivismo
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79PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
que preconizam denunciar, conforme observa Amselle (1993:23). H,
entretanto,um meio termo que, me parece, deve ser defensvel tanto
em bases epistemolgicasquanto metodolgicas. Ele baseia-se no
reconhecimento da historicidademutuamente implicada tanto na vida
social quanto nas linguagens descritivasou analticas, atravs das
quais a representamos. Poucos puderam ilustrar issomelhor que John
Peel, e no esprito (embora no na letra) de suas contribuiesque eu
gostaria agora de voltar a Samuel Johnson e a alguns de seus
colegas-iorub dispersos pelo Atlntico, na esperana de investigar os
limites do discursoe da agncia na fabricao do que talvez seja,
hoje, a rubrica global iorub.
***
Filho de um Saro de educao britnica que pode ou no ter sido
umdescendente do alafin Abiodun (conforme sustentado por Ajayi
1994) , Johnsonpassou seus anos de formao na dcada de 1860 em uma
casa residualmentePietista Alem ligada misso da Sociedade
Missionria Crist em Ibadan,onde, na poca, o termo iorub no poderia
ter tido muito mais sentido paraos sditos do (h muito tempo
devastado) imprio de Oyo que um eptetohau. No detalharemos aqui at
porque Peel j o fez exaustivamente (2000) como Johnson veio a fazer
do imprio Oyo que jamais conhecera oprottipo de uma nao iorub
crist, com base em sua experincia como umcatequista da CMS no
bairro de Aremo em Ibadan e como pastor em NovoOyo. O que digno de
nota, entretanto, que embora, para o bom Rev.Johnson, o termo iorub
possa ter eventualmente vindo a circunscrever umprojeto, e at mesmo
uma vocao, poca de sua morte seus referentes aindaeram mais um
conjunto de potencialidades do que fatos polticos ou
sociolgicosprecedendo a disperso atlntica de nmeros significativos
de constituintes danao iorub sonhada por Johnson:
Em termos de uma agenda pessoal, a Histria pode ser lida comouma
aposta resoluta de um homem que fora involuntariamentearrancado de
suas razes seus pais haviam sido escravizados e setornado cristos
em Serra Leoa, voltando terra iorub em 1858,quando Samuel tinha
onze anos para replantar-se em seu solonativo; um homem que
percebera que sua terra natal necessitavaser re-imaginada e
re-configurada de modo a que pudesse sentir-se verdadeiramente em
casa. A memria de um Oyo de Abiodunque desaparecera tinha de ser
conectada nova e ampliada categoriade iorub introduzida pela CMS,
tanto quanto a cristandade deveriaser de alguma forma integrada em
sua histria (Peel 2000:305).
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80 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
Em todos os sentidos e para todos os propsitos prticos, pode-se
dizer hojeem dia existir uma tal nao no mbito geogrfico que outrora
formava a partesudoeste do protetorado colonial britnico da frica
Ocidental, qual o nomeNigria sugerido originalmente por Lady Lugard
veio se fixarpermanentemente aps a independncia. Contudo, assim
como o nome Nigriano havia sido cunhado at a morte de Johnson em
19014, tambm o termoiorub ainda no designava uma entidade qual ele
pudesse reivindicar umalealdade instrumental at a poca de sua
morte.
O mesmo poderia ser dito de um dos contemporneos de Johnson
cujostraos no registro documental nos permitem reconstruir alguns
detalhes intrigantesna vida de um certo Remigio Herrera, mas cuja
importncia histrica estencapsulada no nome (evidentemente iorub)
Adechina atravs do qual ele lembrado hoje entre os praticantes da
religio afro-cubana conhecida comoRegla de Ocha ou Santera. Quando
o Remigio-Adechina5 morreu de debilidadesenil em 1905, com
oficialmente 98 anos, em sua casa no n 31 da Rua SanCiprin
(posteriormente Fresneda) no Terceiro Distrito da cidade de Regla,
elej havia adquirido a estatura de uma lenda viva, o ltimo babala
africano ativoem Cuba. Atualmente Adechina visto como o fundamento
do culto do If emCuba, e, portanto, como um agente crucial na
globalizao daquilo que os maisde 700 delegados de um bom nmero de
pases presentes no VIII CongressoInternacional de Orixs em Havana
(junho de 2003) endossaram unanimementecomo a religio do sculo XXI.
No entanto, a despeito da africanidade de oRemigio-Adechina, de
suas escarificaes faciais orgulhosamente exibidas emsua nica
fotografia conhecida6, do padro polignico de seu casamento (oubgamo
dependendo do contexto da referncia)7, e de sua reputao como omais
formidvel babala em Cuba no final do sculo XIX, provvel que se
oRemigio-Adechina alguma vez chegou a ouvir a palavra iorub, isso s
tenhaocorrido no fim de sua vida, e apenas em litorais ocidentais
do Atlntico. Emoutras palavras, e de modo semelhante ao caso de
Samuel Johnson, essaiorubidade um artefato de reconhecimento
retrospectivo embora,novamente, assim como em Johnson, um tal
reconhecimento seria impensvel seno fosse pelo impacto da agncia
propriamente dita desses dois homens nosurgimento das formaes
sociais e discursivas junto s quais tendemos, talvezum tanto
ousadamente, a localiz-los hoje.
Provavelmente nascido no fim da primeira ou no comeo da
segundadcada do sculo XIX8, o homem que tornou-se conhecido como o
Remigio-Adechina entrou no registro histrico com um jovem escravo
em 1833, quandofoi batizado na igreja paroquial do municpio de
Nueva Paz da Provncia deHavana. O nome que ele recebeu foi Remigio
Lucum, maneira caractersticada poca, quando o primeiro nome de
batismo era modificado com um termoindicando a procedncia
africana9. No sabemos quando ou como Remigio Lucum
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81PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
ganhou sua liberdade, mas certo que por ocasio de sua emancipao
eletomou o sobrenome de seu antigo dono, Don Miguel Antonio
Herrera. Por voltade 1881 ele foi registrado em um censo da cidade
de Regla como o financeiramente confortvel dono de uma casa em San
Ciprin. Temos tambma certido de nascimento de sua filha Josefa
(1864) e de seu filho Teodoro(1866), e a lista de padrinhos de seu
(segundo) casamento catlico em 1891com Francisca Burlet (a me de
seus filhos conhecidos) no deixa dvidas deque, por volta de 1870,
Remigio Herrera um pedreiro autnomo havia setornado um cidado
socialmente bem conectado e modestamente abastado dacidade de
Regla. Em outras palavras, era um membro moderadamente bem-sucedido
no excessivamente digno de nota da burguesia de cor
urbana(Deschamps Chapeaux e Prez de la Riva 1974), que crescera sob
a sombra doEstado colonial e da economia agroindustrial
escravagista, e que se lanara aosmovimentos de independncia de 1868
e 1895, mas que, poca da morte deHerrera, tornava-se cada vez mais
amarga por causa de sua falta de incluso noprojeto nacional
republicano cubano (Helg 1995).
Para os nossos objetivos presentes, porm, h um conjunto de
documentosmais significativo que data do perodo da ocupao americana
em Cuba (1899-1902). Pois nele, o octogenrio Remigio Herrera
aparece como signatrio deuma petio dirigida ao Gabinete do Prefeito
de Havana e ao governo militaramericano arquivada por Jos Cornelio
Delgado e Francisco Roche nointeresse de uma associao chamada
Sociedad de Socorros Mutuos bajo laAdvocacin de Santa Brbara
Perteneciente a la Nacin Lucum, sus Hijos yDescendientes10,
registrada legalmente junto s autoridades coloniais espanholasem
1893, mas que ento via seus direitos quanto a realizar a dana
africanaconhecida como tambor em feriados pblicos injustamente
restringidos pelanova administrao civil de Havana11. Assim como os
outros signatrios dapetio, o Remigio afirmava a sua condio civil
como natural da frica, denacionalidade lucum12, e o estatuto
oficial da associao anexado mostra queele tinha sido seu presidente
honorrio desde pelo menos 1893. Conforme explicaademais o texto da
petio, noutros tempos essa sociedade era um cabildo delucum13, e o
prprio endereo da sede da associao Rua San Nicols, nobairro Jess
Mara em Havana abre espao para especulaes sobre ela ter sidoidntica
ao famoso cabildo lucum Chang Tedn, fundada na Rua Egido nocomeo do
sculo XIX, mas baseada na Rua San Nicols durante seus anos
dedecadncia. Mas sobretudo, atravs da retrospeco etnogrfica, a
lista de nomesdas primeiras pginas do estatuto pode ser vista como
um verdadeiro quem quem da religio afro-cubana no final do sculo
XIX e comeo do XX. Comoo demonstra a meticulosa reconstruo das
genealogias iniciticas da religioafro-cubana elaborada por David
Brown (2003:62-112), ao menos sete dos trintaencarregados do sexo
masculino so identificveis como os lderes babalas de
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82 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
seu tempo14, enquanto pelo menos duas das vinte e trs
encarregadas, BelnGonzlez e Margarita Armenteros, so reverenciadas
hoje em dia como fundadorasde ramificaes importantes de linhagens
iniciticas na Regla de Ocha.
Evidentemente, o termo lucum circunscrevia aspectos
significantes daidentidade pblica de o Remigio-Adechina, e bastante
provvel que tambmcarregasse sentidos pessoais para ele prprio ainda
que precisar o contedopropriamente dito dessas sentidos (pblicos ou
privados) seja uma tarefa espinhosa. certo que lucum aparece nos
registros espanhis como uma designao daorigem local ou regional de
escravos africanos desde pelo menos 1547. O termotambm bem
documentado para Cuba desde o comeo do sculo XVIII, e, deforma
semelhante aos termos brasileiros nag ou quto, ele hoje
geralmentevisto como um indicador da presena iorub e/ou de sua
cultura tanto porestudiosos quanto pelos praticantes das religies
nas quais o culto aos seresconhecidos como orichas/ orixs/ r
proeminente15. Todavia, se o termolucum jamais teve algum referente
unitrio ou ao menos diacronicamente estvelno passado distante, na
poca em que o nome de o Remigio apareceu noestatuto da Sociedad de
Socorros Mutuos bajo la Advocacin de Santa BrbaraPerteneciente a la
Nacin Lucum, sus Hijos y Descendientes, certo que ele
estavapassando por uma rpida e portentosa mudana. Pois que,
deliberadamente ouno, na virada do sculo XX o Remigio-Adechina e
alguns de seus colegasmembros da Associao embarcaram em um projeto
curiosamente similar, aindaque radicalmente diferente, daquele que
o Reverendo Samuel Johnson estiveradesenvolvendo em sua parquia Oyo
mesma poca. Se Johnson, por um lado,ajudara a escrever e assim
criar os fundamentos historiogrficos e hermenuticoscristos sobre os
quais uma futura nao aberta a cada verdadeiro filho deIorub
(Johnson 1921:642) poderia se tornar imaginvel (no sentido de
BenedictAnderson), Adechina e seus colegas, por outro lado,
imaginaram e assim criaramum conjunto de prticas rituais em que
qualquer sentido de pertencimento pordescendncia foi substitudo por
formas de parentesco ritual. Isso gerou o queem breve se tornaria
uma religio de escopo virtualmente universal, aberta aquem quer que
a adivinhao revelasse um filho dos orichas (hijo de
santo)divinamente escholhido. Se no primeiro caso a tarefa do
antroplogo histrico a de reconstruir o que John Peel (1989) chamou
de o trabalho cultural daetnognese iorub, no segundo trata-se de
delinear o que se poderia descreverprovisoriamente como o trabalho
cultural da eclesiognese iorub16.
***
Cabe aqui uma digresso acerca da natureza e significao histrica
dotipo de instituio que o Remigio-Adechina e seus colegas
peticionrios teriamchamado de cabildo de nacin. Modelada segundo as
irmandades laicas e
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83PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
estamentais ibricas do final da Idade Mdia, e mais
especificamente segundoos conselhos (cabildos) de residentes
estrangeiros (gente de nacin) nas cidadescastelhanas, a instituio
dos cabildos de nacin aparentemente originou-se dosesforos das
autoridades municipais de Sevilha para organizar (e assim
controlar)o nmero cada vez maior de africanos e afro-europeus
mendicantes que sealastravam pela cidade desde o final do sculo XV.
Mas o modelo de associaesvoluntrias acreditadas oficialmente,
baseado em percepes de origem comumauto-exprimidas por parte de
estrangeiros ao reino (o sentido original, prEstado-Nao, da palavra
espanhola nacin), rapidamente difundiu-se noambiente urbano do Novo
Mundo, onde, assim como em Havana no incio dosculo XVII, o grande
nmero de negros livres e de escravos extremamentemveis j havia se
tornado um problema administrativo similar17. um tantoimpreciso se
(e em que medida) o modelo sevilhano de cabildo de nacin
foioferecido populao urbana africana de Cuba como uma forma de
associaooficialmente sancionada ou se foi simplesmente sobreposta,
post hoc, a gruposque surgiram de maneira independente. De todo
modo, evidente que enquantocorporaes internamente estratificadas e
grandemente autnomas, capazes decontrolar o recrutamento de seus
membros, os cabildos de nacin exerceramuma influncia poderosa sobre
os padres de socialidade que se desenvolveramentre os africanos,
escravizados ou livres, na Cuba urbana. Por volta da segundametade
do sculo XVIII no mais tardar essa instituio passou a sustentara
formao de padres altamente diferenciados de identificao coletiva.
Emboraos registros acerca da participao dos cabildos de nacin nas
procisses deCorpus Christi em Havana remontem a 1571 (Ortiz 1921),
apenas em 1755que se pode entrever o incio desse processo, quando o
recm-nomeado Bispode Havana, Pedro Augustn Morell de Santa Cruz, ao
notar que os negros dacidade estavam vivendo e morrendo como
animais, por falta de cuidadospastorais, decidiu fazer uma ronda
nas casas de reunio dos cabildos de nacinda cidade cujos membros
ele julgasse engajados em formas escandalosas deidolatria. A
sugesto do Bispo Morell de colocar os cabildos sob os cuidados
dasparquias, cujos padres ele encorajava aprender lnguas africanas
faladas porseus respectivos paroquianos, no foi levada em
considerao. De toda forma,o inventrio sistemtico dos vinte e um
cabildos de nacin proprietrios deimveis existentes na cidade por
ele compilados (Marrero 1971-78, VIII: 158)oferece uma boa impresso
do rol de possibilidades de identificao coletivaexistentes para os
africanos livres ou escravizados em Havana na poca18. Em1821 o
visitante britnico Francis Robert Jameson (1821:21) observou
que
As diferentes naes s quais pertenciam os negros na frica
sodelineadas nas colnias tanto pelo senhor quanto pelo escravo;
oprimeiro as considerando variavelmente caracterizadas quanto s
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84 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
qualidades buscadas, o segundo juntando-se a essas unies com
umverdadeiro esprito nacional [sic] sob permisso de seus
senhores.
No restam dvidas: podemos seguramente afirmar que os cabildos
nosquais membros de tais naes congregavam eram, em um sentido
crucial,comunidades intencionais, mais do que entidades criadas por
um atoadministrativo. O esprito nacional a eles atribudo por
Jameson, entretanto,era de um tipo muito diferente do que ele deve
ter imaginado19, pois que emagudo contraste com as ideologias e
prticas polticas que ento transformavamrapidamente o antigo
conceito de natio no seio da mentalidade europia nomomento20, a
terminologia utilizada para e pelos migrantes africanosinvoluntrios
ao Novo Mundo no refletiu e nem o poderia a idiaessencialmente nova
(at mesmo em seu contexto ocidental) de que as naeseram entidades
polticas (ou proto-polticas) de ocorrncia natural:
internamentehomogneas, mantidas coesas pela descendncia comum,
claramente delimitadas,com linguagem, costumes e sentimentos
compartilhados, existentes enquantotantum sui similibus gentes
desde tempos imemoriais, agudamente separadas deoutras entidades
semelhantes s quais seus respectivos constituintes noestendiam ou
melhor, no deviam, em hiptese alguma, estender
nenhumalealdade21.
O caso do lucum cubano no final do sculo XVIII e sculo XIX
certamentedesencoraja qualquer tentativa de identificar a onomstica
do que por faltade termo melhor chamarei de identidades coletivas
proto-iorub no Golfo deBenin com dados do Novo Mundo sobre algo que
talvez fosse melhor descritocomo formaes sociais neo-africanas. De
fato, estamos sim lidando com vinhoafricano em garrafas
castelhanas. Mas a cepa e a safra so uma outra histria.Para comeo
de conversa, a nomenclatura produzida pela proto-etnologia datrata
de escravos, de impulso comercial, estonteante. Em um estudo
sobrequalificadores onomsticos associados a escravos cuja
identidade nacionalprimordial era dada como lucum no registro
documental, Lpez Valds (1998)contou nada menos que 137 variaes
sobre um tema, abrangendo desdeprovveis candidatos a interpretao
post hoc como lucum egb, lucum egguad,lucum iech, lucum if ou lucum
ey , passando por entidades etnologicamenteenigmticas tais como
lucum barib, lucum chant, lucum jaus e lucum kang, at designaes
completamente misteriosas como lucum yogo de ot, lucumcamisa ou
lucum zza. Mas mesmo quando faziam eles prprios uso desses
termos,aparentemente no se podia esperar que os lucum apresentassem
padres denomeao que satisfizessem aos analistas de nossos tempos,
inclinados a cont-los como (proto-) iorub. Um caso reportado pela
primeira vez por DeschampsChapeaux (1971:42) e recentemente
elaborado por Childs (2003:125) acerca deuma disputa por
propriedade entre membros de um cabildo de lucum em 1778-
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85PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
80 figura como um exemplo de forma alguma atpico. Uma das faces
constitua-se por membros nascidos cubanos, que reivindicavam
descendncia lucum eeram liderados por um certo Manuel Blanco que
tentava impedir a venda dacasa do cabildo que um dia seus pais
haviam ajudado a comprar. A essesopunha-se uma faco de lucum
recm-chegados da frica, os quais haviamse tornado membros do
cabildo e agora apoiavam a venda. Contudo, ainda quetodas as partes
envolvidas na disputa estivessem engajadas em formas desocialidade
para as quais o termo lucum havia se tornado uma rubrica,
comoaparece nos tribunais, o cabildo havia sido originalmente
fundado (h muitosanos atrs) pelas naes Lucum, especificamente os
Nanga e os Barbae erecentemente admitia pessoas que se declaravam
chabas e bambaras! Quemeram essas pessoas? E o que poderia ter o
termo lucum a ver com qualquer umadelas? Muito provavelmente jamais
saberemos.
Nem o poderamos, uma vez que a questo em si pode estar indicando
ummal-entendido fundamental no que concerne as realidades das
relaes sociaisde ambos os lados do Atlntico. Esse mal-entendido
emerge de um interfluxodiscursivo antigo e difundido entre concepes
antropolgicas datadas sobreunidades sociais e/ou culturais22,
concepes populares acerca da naturezatribal de padres africanos de
socialidade remontando at o sculo XVIII e reivindicaes das partes
contemporneas interessadas sejam historiadoresneo-revisionistas23,
historiadores da arte determinados a salvar concepesessencialmente
romnticas de pureza tnica h muito tempo associadas a noesestticas
de autenticidade24, ou empresrios religiosos dos nossos dias25.
Situemosa questo cruamente: dado o que sabemos sobre a complexidade
e fluidez dasformas africanas pr-coloniais de associao, por que
desejaramos sobrecarregarnossas tentativas de operacionalizar o
emblema onomstico lucum com noespr-concebidas e claramente
anacrnicas acerca de quem deve ter sido capaz dereivindicar
legitimamente o pertencimento a uma natio lucuminorum por
nsdefinida, a priori, de acordo com critrios de iorubidade os quais
s comearama ganhar aceitao atravs dos esforos da CMS e de saros
cristianizados comoSamuel Johnson? No seria mais frutfero menos
nominalista, mais histrico abordar os cabildos lucum, to
documentados como so em Cuba desde meadosdo sculo XVIII (i.e., bem
antes das primeiras ondas macias de importao deescravos do Golfo de
Benin terem sequer se aproximado da ilha), no como osincipientes
enclaves-iorub em seu papel no Novo Mundo na gerao deformas
culturais manifestamente similares a algumas (no muitas, frise-se)
quea cultura iorub contempornea parece sugerir mas tratar o prprio
termolucum como uma manta onomstica que cobriu, ora esse, ora
aquele contedotnico africano ou cultural26? Que alguns desses
contedos sejam afixados no apenas nos escritos dos etngrafos e
historiadores do sculo XX, mas pelasprprias pessoas envolvidas
seria ento menos o resultado de processos passados,
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86 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
os quais temos poucas chances de reconstruir para alm do ponto
onde nossasfontes baseadas no contato quedam-se em silncio (Amselle
1993), do que deesforos auto-conscientes da parte dos intelectuais
dos nossos tempos de ambosos lados do Atlntico para recuperar,
unificar e racionalizar, teolgica e/oupoliticamente, precisamente
aqueles elementos de padres mais antigos deidentificao, prtica
cultural e conhecimento esotrico que eles pensaram maistratveis em
relao a seus respectivos projetos e s condies locais sob as
quaiseles buscaram realiz-los27.
***
Em quais dessas prticas e projetos atores do Novo Mundo como
Adechinateriam estado envolvidos, e por que as suas resultantes nos
parecem hoje toimpressionantemente iorub? Teriam sido eles os
portadores de uma culturaiorub (soubessem eles disso ou no), cuja
sintomatologia externa nosso fixoolhar diagnstico no deixa escapar
pois que ademais orgulhosamente exibidasob esse mesmo rtulo por
seus herdeiros espirituais, praticantes das hojeincontestavelmente
chamadas religies derivadas-do-iorub? Ou sua agnciateria colocado
em movimento uma sequncia de desenvolvimentos culturais
quedeveramos tratar de estudar em seus respectivos contextos local
e histrico ao invs de os referirmos a solues prontas sugeridas
pelas listas-de-traos-etnolgicos acerca de uma cultura iorub
atemporal derivada da imaginaoantropolgica (e nativa) de nosso
tempo? Aqui instrutivo voltarmos uma vezmais lista de funcionrios
no estatuto da Sociedad de Socorros Mutuos bajo laAdvocacin de
Santa Brbara Perteneciente a la Nacin Lucum, sus Hijos
yDescendientes. Pois como argumentou irrefutavelmente David Brown
(2003:69),a maioria dos membros no era apenas de filhos e
descendentes de lucum emum sentido biolgico, mas pessoas para quem
o termo lucum j tinha passadoa circunscrever uma identidade
religiosa. Tendo sido chamados pelos orixs,interpelados (para usar
talvez inapropriadamente um vocabulrio althusseriano)em posies de
sujeito religiosos criadas atravs de rituais de consagrao
edefinidos por incluso em linhas (ramas) incipientes de descendncia
inicitica,eles j eram produtos e por sua vez, produtores do que,
para usar de certasmetforas hidrulicas de Fredrik Barth (1984),
chamaremos de corrente detradio incipiente carregando formas
culturais de uma religio afro-cubanaemergente avanada no tempo, e
atravs do campo sociolgico de histria doNovo Mundo no sculo XX.
Sob este ngulo, subitamente se entende a lista de dignatrios do
estatutode forma bem diferente. Embora a petio de 1900 tenha sido
exclusivamenteassinada por lucum de idade avanada (nenhum com menos
de sessenta anos),o estatuto revela no apenas que, exceo de
Adechina, todos os outros seis
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87PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
grandes babalas no tinham nascido na frica (eram criollos ou
seja, nascidosna ilha), mas tambm que um deles, Luis Pacheco, havia
sido iniciado pelocriollo Pedro Pablo Prez este um filho de If do
africano de primeira geraoEstban Quiones e portanto j representava
um babala separado da fricapor duas geraes. E talvez ainda mais
surpreendente seja que um dos oficiaisda Associao, Bonifcio Valds
(Obe Wee), era um branco criollo dedescendncia espanhola. Como
demonstrou Brown (2003: 77 ss.), Valds haviasido iniciado no If e
da em diante foi feito um importante vetor doconhecimento
divinatrio afro-cubano no sculo XX por o Carlos Ad B(Ojuani Bok),
hoje lembrado como tendo ajudado o jovem Adechina areconsagrar o
ikin africano, fruto de palmeiras utilizado na divinao if
queengolira antes de atravessar o Atlntico e defecara ao chegar em
Cuba. Deacordo com o esplndido trabalho etno-histrico de Brown
(2003:cap.2) sobre asorigens do culto do If em Cuba, todos os
babalas ativos em Cuba (e, porimplicao, a maior parte do
sacerdotado do If ativo no Novo Mundo hoje)remontam sua descendncia
inicitica a cinco fundamentos fundadores cujoperodo crucial de
atividade ritual compreende-se aproximadamente entre 1880e 190528.
O que isso indica, evidentemente, que para pessoas como
BonifcioValds e muito provavelmente para seu iniciador o Carlos Ad
B o termolucum tomara uma significao inteiramente nova. Ainda que a
categoria lucumtenha sido por muito tempo um significante
semanticamente flexvel flutuandopor sobre populaes de variadas
disposies e origens tnicas, o fato quetanto o modo de recrutamento
junto a uma identidade-lucum quanto aracionalizao de coletividades
identificadas com o termo mudara radicalmente.Conforme formulou
vigorosamente George Brandon (1984:89) h um tempoatrs: a diferena
era que agora algum se tornava lucum no pelo nascimento,mas pela
iniciao. Aquilo que um dia designara as fronteiras
historicamenteflutuantes dos produtos dos processos contnuos da
etnognese africana doNovo Mundo (Fardon 1987) tinha agora se
solidificado em um conjunto delinhas de descendncia incitica
precisamente marcadas (ramas), que sorecitadas at hoje (embora no
necessariamente em ordem cronolgica) nasinvocaes (moyuba) dos nomes
dos ascendentes de genealogia religiosa (e nobiolgica) que precedem
(e validam) a maior parte das atividades rituais naRegla de Ocha,
assim como entre os sacerdotes cubanos do If (babalas).
Se o fato de um homem branco como Valds ter ocupado uma
posioquase apical em algumas genealogias capaz de nos surpreender,
isso certamentese deve mais a nossas pr-concepes e inquietaes
acerca de noes como asde raa e autenticidade africana do que com as
preocupaes de pessoas comoo Carlos Ad B e seus contemporneos
nascidos na frica. Pois o ritual deiniciao que eles conceberam no
apenas combinava o simbolismo dorenascimento no seio de um ofcio
sagrado com uma estrutura emergente de
-
88 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
parentesco ritual moldada em parte no apadrinhamento catlico29,
mas, ao faz-lo, obliterava-se a noo de que formas sublunares de
identificao socialpoderiam afetar o estabelecimento de uma relao
entre o ser humano e aentidade divina (seja um orix ou um if) que
originava-se na iniciativa daltima (conforme revelado por
procedimentos divinatrios). No conhecemos osmotivos de o Carlos Ad
B e outros babalas africanos ou negros criollosenvolvidos na
iniciao de Bonifcio Valds no sacerdcio de If, embora sepossa
especular que eles esperavam beneficiar-se de sua posio social de
bem-sucedido comerciante branco. Mas Remigio Herrera-Adechina j
contava comhomens de negcio brancos entre os padrinhos de seu
casamento catlico, e, dequalquer modo, os iniciadores de Bonifcio
Valds no poderiam ter feito outracoisa seno racionalizar suas aes
de acordo com os mandatos do prprio If.Nem o prprio Valds poderia
ter feito diferente. O que quer que tenha significadopessoalmente
para ele adquirir uma identidade lucum (no sentido religioso):
aonvel mais amplo das coisas s quais ele teria se submetido ao
tornar-se umbabala, sua volio era to irrelevante quanto a cor de
sua pele (cf. Palmi2002b).
Mas o caso de Valds encontra-se apenas no incio de uma longa
histriairnica cujas mais recentes resultantes examinarei brevemente
aps uma discussode como a religio (pois penso que agora podemos
usar seguramente essetermo para designar as prticas e formas de
identificao associadas com otermo lucum no comeo do sculo XX) que
Valds e seus colegas criollosbabalas estavam praticando finalmente
tornara-se uma religio-iorub.
***
Apenas alguns meses aps a morte de o Remigio-Adechina, no vero
de1905, o jovem advogado cubano Fernando Ortiz (1881-1969) entregou
ummanuscrito a um editor espanhol que viria eventualmente e
irrevogavelmente a mudar o nome, a natureza e estatuto etnolgico da
prtica oracular, da qualse presume que o Remigio tenha vindo a
depender financeiramente no ltimoano de sua vida. Em Los negros
brujos (1906), que eventualmente tornou-se otexto fundador da
antropologia cubana, Ortiz seguiu o exemplo de seu
predecessorbrasileiro Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), cujo
informante principal Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943) o
havia direcionado para a literaturaemergente acerca da parte
sudoeste da at ento chamada Costa dos Escravosda frica Ocidental,
de modo a que corroborasse a tentativa de Nina de indicaras origens
africanas locais daquilo que observadores brasileiros haviam
descritoanteriormente como manifestaes indiferenciadas de
fetichismo africanosubsistente nas Amricas. Armado com LAnimisme
Fetichiste des Ngres de Bahiade Nina Rodrigues (1900), Vocabulary
of the Yoruba Language de Samuel Crowther
-
89PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
(1848), Grammar and Dictionary of the Yoruba Language do
missionrio batistanorte-americano T.J. Bowen (1858), Etude sur le
langue Nago de Pre Bouche(1880) e The Yoruba-Speaking Peoples of
the Slave Coast of West Africa de A.B.Ellis(1894)30, Ortiz,
raciocinando largamente a partir de similaridades em nomes
dedivindades e outras correspondncias filolgicas (1973:28),
pronuncioucategoricamente o que se tornaria o credo de todos os
etngrafos subseqentesda religio afro-cubana:
Na guerra natural das religies africanas, a religio dos negros
iorubou nag triunfou tanto em Cuba quanto no Brasil, embora
tenhamsido deixadas em estado debilitado pelo inimigo comum de
todaselas, o catolicismo. Esses negros so aqueles que entraram em
Cubacomo lucums.
Muito simples e assim permaneceu at hoje. A litania, tanto
dospronunciamentos dos acadmicos quanto dos praticantes, baseada no
topos deuma correspondncia iorub/ lucum/ nag/ queto , hoje, digna
de um esforobibliogrfico srio. Mais importante que isso,
entretanto, ela ensejou o crescimentode uma formao textual
caracterizada por movimentos retricos rpidos de idae vinda entre
dados etnogrficos pertinentes aos dois lados do Atlntico a umtal
grau que freqentemente no nada claro se o autor est falando de
fatosetnogrficos no Golfo de Benin ou na Baa de Havana, de uma
religio iorubatemporal ou de manifestaes historicamente especficas
de prticas culturaislocais. Quer intencional ou no, o resultado
tende a ser um borro transatlnticode dados inapropriadamente
agregados que, tomados pelo valor declarado,sugerem a relativa
insignificncia do espao e tempo quando se trata de detectarum ethos
iorub distinto na frica ou alhures.
Com isso no pretendo depreciar os srios esforos comparativos
que, deboa f e freqentemente com bons resultados, basearam-se em
tais procedimentosfundamentalmente a-histricos de curto-circuito
entre unidades de anlise doVelho ou do Novo Mundo. Meu prprio campo
de trabalho a antropologia dadispora africana claramente no
existiria sem eles (Apter 1991; Yelvington2001). Mas penso que (
parte o novo revisionismo) podemos empreenderposies historicamente
mais frutferas do que reiterar o que Matory (1999:97)chama de
modelo da memria coletiva sem agente, sobre o qual esforos
deestabelecimento de origens africanas para as formas culturais do
Novo Mundotm sido h muito baseados. Pois, ao invs de traar a
infinitamente repetidaequao lucum=iorub atravs da literatura
acadmica em Cuba, deveramostratar de considerar as questes acerca
de: a) como ela foi estabelecida comoum topos acadmico em primeiro
lugar; e b) como ela finalmente penetrou detal forma entre os
praticantes da religio afro-cubana que, como ocorreu no 8
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90 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
Congresso de Orixs em Havana, em 2003, os babalas cubanos podiam
sentar-se com seus colegas nigerianos, com pais- e mes-de-santo
brasileiros, comdevotos de xang trinidadiano e com
revisionistas-do-iorub norte-americanose concordar quanto ao fato
de que estavam todos praticando essencialmente amesma religio.
A primeira dessas questes est intimamente ligada ao papel que
Martinianodo Bonfim teve literalmente na conduo de duas geraes de
etngrafosbrasileiros, norte-americanos e franceses do nordeste do
Brasil em direo concluso de que o que eles viram nos terreiros de
candombl e com o queele, Seu Martiniano, estava conectado eram
formas culturais iorub preservadasem sua pureza. Pois o que
Fernando Ortiz havia feito em 1906 foi pouco maisdo que transferir,
para pessoas para quem o nome iorub apenas comeava aganhar aceitao,
a idia de Nina Rodrigues de que certas expresses
culturaisafro-brasileiras poderiam ser interpretadas luz de uma
literatura africanistaemergente31. Essa idia, por sua vez, como
primeiro sugeriu Braga (1995) e comoMatory mostrou posteriormente
com algum detalhe (1999, 2001), devia-se a SeuMartiniano: filho de
escravos libertos em So Salvador da Bahia em 1859,Martiniano foi
levado para Lagos por seu pai em 1875 onde ele freqentou aEscola
Presbiteriana Faji, onde aprendeu ingls e iorub, e onde
permaneceuintermitentemente at 188432. Um criollo brasileiro
chegando a Lagos, talvezuma dcada e meia aps o babala ijex Philip
Jos Meffre33: a carreira deMartiniano do Bonfim parece ter sido uma
inverso daquela de Meffre. Enquantoo ex-escravo africano Meffre
retornou do Brasil como um babala praticante etornou-se um
protestante evanglico na terra iorub, Martiniano do Bonfimchegou em
Lagos como um catlico batizado e tornou-se uma babala l. Maisque
isso: enquanto Meffre tornou-se finalmente um dos mais ardentes
missionriosconvertidos da CMS, bem como a principal fonte nativa
para a monografia de1899 do Reverendo James Johnson intitulada
Paganismo Iorub34, Seu Martiniano,por sua vez, logo aps ter
retornado Bahia, tornou-se um dos mais persistentes,prolficos e,
fundamentalmente, um dos mais efetivos informantes na histriada
disciplina antropolgica. No se sabe como nem exatamente quando
eleencontrou o jovem mdico legista Raimundo Nina Rodrigues, mas est
claroque apesar do racismo e das especulaes evolucionistas de Nina,
suas duasmonografias sobre a cultura afro-brasileira (Nina
Rodrigues 1935, 1977) estampama marca do pensamento de Seu
Martiniano. Mais tarde em sua vida, Martinianodo Bonfim, que
gostava de se auto-intitular professor e tradutor de
ingls,afetuosamente recordou sua relao com Nina (e.g., Landes 1994
[1947]:28), e,como contou ao reprter de O Estado da Bahia em 1936,
ele e Nina haviam
at mesmo planejado uma viagem a Lagos, e [Nina] j
havia[contribudo] com 500 contos quando infelizmente morreu.
Muitas
-
91PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
coisas teriam sido reveladas, pois da Nigria (a Costa dos
Escravos)veio o maior nmero de cativos (citado em Braga
1995:45).
Embora, ao que tudo indica, tenha sido um outro retornado
brasileiro,Loureno Cardoso, um comerciante baseado em Lagos, que
introduziu Nina aotrabalho de A.B. Ellis, foi Martiniano do Bonfim
quem lhe traduziu a cartilhaescolar iorub Iwe Kika Ekerin Li Ede
Iorub de A.L. Hethersett (Matory 1999:31),associando de maneira
ainda mais slida a pesquisa sobre o Novo Mundo iorubcom a
literatura emergente da CMS35, e particularmente com as
produesliterrias do chamado renascimento lagosiano. Ao dar
prosseguimento suacarreira de informante profissional36 aps a morte
sbita de Nina em 1906,Martiniano do Bonfim deixou sua marca
intelectual nos trabalhos de etngrafosbrasileiros como Manuel
Querino, Artur Ramos e Edison Carneiro. Ele tambmserviu como um
hbil interlocutor anglfono para os norte-americanos DonaldPierson,
Ruth Landes, E. Franklin Frazier, Lorenzo Turner e Melville
Herskovits,alm de ter impressionado postumamente o socilogo francs
Roger Bastide como uso de sua considervel autoridade para prevenir
a degenerao dos cultosafricanos (Bastide 1978:165), ao instituir o
que, na verdade, eram inovaesbastante radicais. Ademais, provvel
que tenha inspirado os estudos de PierreFatumb Verger acerca dos
elos contnuos entre a Bahia e o Golfo do Benin. Masele tambm
dirigiu a prpria comunidade do candombl baiano em direo a
umentendimento de que as suas crenas e prticas estavam (ou, ao
menos, deviamestar) em conformidade com uma idia de iorubidade que
havia comeado aemergir no Golfo do Benin conformidade esta que de
modo algum devia-se agncia de saros cristianizados ou viajantes
brasileiros como ele. Um casorelevante a bem documentada colaborao
com a prspera comerciante EugeniaAna dos Santos (1869-1938), mais
conhecida como Me Aninha, a fundadorae lder poderosa do terreiro do
Centro Cruz Santa do Ax do Op Afonj (casade candombl),
estrategicamente construdo por ambos como o porta-estandarteda
pureza-iorub na Bahia. Mas, como evidencia o caso amplamente
discutido da criao por Martiniano, em 1930, da obrigao ritual dos
Doze Obs deXang, o conceito de pureza da tradio africana que ele
ajudara a estabelecere atrelar casa de Me Aninha ao proclamar, no
Segundo Congresso Afro-Brasileiro na Bahia (1937), que tinha apenas
despertado uma antiga instituioiorub ento esquecida no Brasil, era
uma fico estratgica37: jamais existira nacorte do alafin de Oyo
nenhuma instituio do tipo, e tentador inferir que elea inventara
por conta prpria para a ocasio do Congresso de 1937. Mas se essefoi
de fato o caso, certo que ele no partiu do zero. Quer suas
inspiraestenham resultado das impresses acerca do esplendor do
passado de Oyo,adquiridas durante sua estadia em Lagos, quer tenham
derivado do seu acesso literatura missionria anglfona produzida
durante o Renascimento de Lagos,
-
92 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
ou a publicaes etnogrficas mais recentes que comeavam a circular
emesferas cada vez mais largas do sacerdotado do candombl
brasileiro na dcadade 1930 (uma literatura que ele prprio tinha
ajudado a moldar), a criao deSeu Martiniano, os Doze Obs de Xang,
parecia estar to sintonizada com oque acadmicos como Edison
Carneiro, Artur Ramos, Ruth Landes e DonaldPierson, etc, j sabiam
ser aspectos essenciais de uma idia, agora literria, deiorubidade,
que eles ratificaram de bom grado algo que o sacerdote e etngrafodo
candombl Deoscoredes Maximiliano dos Santos (citado em Butler
2001:146) ele prprio um iniciado do Op Afonj chamou, em 1962,
derestabelecimento da antiga tradio dos Obs de Xang, que, segundo
ele,conferiu ainda mais prestgio ao Op Afonj e demonstrou a
competncia econhecimento da ialorix Aninha Ob Biyi38.
Embora menos documentado, o caso cubano apresenta um
quadrosemelhante. Tambm l, a emergncia da tradio iorub esteve
eminentementeligada colaborao entre detentores de ttulos
sacerdotais e a figura singulare soberba da etnografia nativa
cubana do sculo XX, Fernando Ortiz: um homemsaudado como o terceiro
descobridor de Cuba (ou seja, aps Colombo e vonHumboldt), e que
foi, ademais, instrumental, levando a Cuba a conexo-iorub
discursiva que Nina Rodrigues e Martiniano do Bonfim desbravaram
noBrasil, e oferecendo-a aos praticantes da religio afro-cubana
como umaestratgia de legitimao. Estes ltimos, por sua vez, como se
sabe, fizeram delabom proveito.
***
At onde sabemos, no houve um verdadeiro equivalente a Martiniano
doBonfim em Cuba39. Mas os sacerdotes da Regla de Ocha Fernando
Guerra eSilvestre Erice, bem como os formidveis ol a (consagrados
tocadores debat) Pablo Roche, Trinidad Torregrosa e Ral Daz so bons
candidatos. Guerraconheceu Ortiz em um estgio muito inicial na
carreira do primeiro(provavelmente por volta de 1909), apenas
alguns anos aps o sucesso instantneode Os Negros Bruxos (1906)
haver estabelecido o jovem Ortiz como odiagnosticador pblico do
novo problema africano da nao, e como influentedefensor de algumas
horrendas medidas para erradicar certas formas de magianegra que
ameaavam retardar o progresso da civilizao cubana (Palmi 2002a).Sob
o impacto de ondas macias de represso policial que o prprio Ortiz
ajudoua desencadear como conseqncia de um alegado caso de sacrifcio
infantilem 1904 (Chavez lvarez 1991; Helg 1995; Palmi 2002a;
Bronfman 2004) porvolta do fim da primeira dcada do sculo XX,
Guerra (ento provavelmente emseus sessenta anos) e seu genro, o
septuagenrio lucum Pap Silvestre Erice,parecem ter decido
confrontar seus perseguidores. A fim de fazer frente s
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93PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
construes pblicas de suas prticas como selvageria africana
reservada, elesabriram as portas da Sociedad Lucum Santa Rita de
Casia y San Lzaro, fundadapor Erice em 190240, a jornalistas,
acadmicos, visitantes estrangeiros e atmesmo ao ento detetive-chefe
do corpo de polcia civil especial de Havana,Rafael Roche Monteagudo
muitos dos quais, tais como a residente americanae prolfica
historiadora amadora Irene Wright (1910:149-50), o
criminologistaIsrael Castellanos (1916) e o prprio Roche Monteagudo
(1925:79-83), publicaramrelatos vvidos 41 (embora largamente
antagnicos). Fernando Ortiz nunca publicouum relato semelhante. De
todo modo, embora continuasse a advogar a erradicaocientfica da
bruxaria africana pelo menos at a segunda edio de Los negrosbrujos
(1916), est claro que por volta de 1911 (no mais tardar) ele
haviaestabelecido relaes com Fernando Guerra e os membros tanto da
SociedadLucum Santa Rita de Casia y San Lzaro quanto da Sociedad de
Socorros Mutuosbajo la Advocacin de Santa Brbara. Seus escritos
pessoais contm uma cartaescrita mo datada daquele ano no qual
Guerra, enquanto um secretrio doltimo, convida Ortiz, um homem da
cincia do bom governo, a tornar-se seupresidente honorrio
ostensivamente o mesmo cargo ocupado por RemigioHerrero-Adechina
apenas dez anos antes42! No sabemos se Ortiz aceitou ahonra, mas
est claro que ele retribuiu. No vero de 1912, pouco antes daexploso
de uma macia violncia racista por ocasio da supresso do
PartidoIndependente de Cor, Ortiz forneceu conselho legal a Guerra
e seus associadossobre como readquirir permisso para utilizar os
tambores bat em seus rituais43.Finalmente, em um folheto publicado
em 1914 repreendendo alegaesjornalsticas de que haviam surpreendido
Erice e Guerra em atividades rituaismoralmente questionveis, Guerra
enfatizou o carter aberto de suas prticas,assegurando ao pblico
leitor que se os jornalistas realmente tivessem estado emseu centro
de reunies no bairro de El Cerro no dia em questo, a sua
presenateria sido notada por duas testemunhas acima de qualquer
suspeita: FernandoOrtiz e um colega da Irlanda, a quem Ortiz tinha
trazido para observar ascerimnias que estavam tendo lugar na
Associao quele dia (Palmi 2002a:215).Como argumentei antes (Palmi
2002a), est claro que Guerra (que nunca secansava de citar os
artigos da nova Constituio cubana garantindo liberdadede religio) e
seus colegas sacerdotes estavam sagazmente articulando umacooptao
da considervel autoridade pblica de Ortiz, a fim de inscrever
ascrenas e prticas rituais de suas Associaes em um projeto mais
amplo auto-consciente de construo da nao cubana moderna. Mas para
nossos propsitospresentes, interessante notar que todos os escritos
de Guerra preservados noarquivo pessoal de Ortiz (ou publicados,
como em Castellanos 1916:99) referem-se a tais crenas e prticas
como a moralidade crist lucum. Isso pode estarrelacionado ao fato
de que as partes cruciais da Constituio cubana de 1901(um documento
notavelmente hbrido) foi modelado segundo a Constituio
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94 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
espanhola de 1876 (adotada em Cuba em 1881) a qual reteve o
catolicismocomo a religio estatal oficial, mas permitiu a prtica
privada de outras fs,contanto que respeitassem a moral crist e a
ordem pblica (Bronfman 2004:23).No pretendo tocar aqui no debate
infinito e extremamente confuso acerca dosincretismo catlico44. Mas
evidente que embora o objeto discursivo posto emcirculao na esfera
pblica cubana por Guerra tenha se tornado uma religiono sentido
legal estipulado por pela Constituio cubana, ela no era ou noera
ainda uma religio iorub.
Isso mudaria bem dramaticamente na dcada de 1930 e, tambm
aqui,Fernando Ortiz desempenhou um papel significativo no processo.
Infelizmente,at hoje carecemos de uma verdadeira biografia
intelectual de Ortiz, mas noh dvidas de que ele reviu completamente
suas avaliaes iniciais acerca doselementos de derivao africana na
cultura cubana nacional: em algum momentoentre 1916 e o comeo da
dcada de 1930 (mais provavelmente enquanto esteveexilado nos EUA
durante a ditadura de Machado (1930-33) Ortiz passou de
umcaador-de-bruxas cientfico, inspirado por uma antropologia
criminallombrosiana, ao mais efetivo defensor pblico da incorporao
de tradiesculturais africanas (e especificamente daquelas de
derivao iorub) no projetode construo de uma cultura nacional cubana
autnoma e autntica (Palmi1998). E, uma vez mais, seus contatos cada
vez mais estreitos com praticantesda religio afro-cubana dessa vez
atravs do cabildo da filha de RemigioHerrera-Adechina, Francisca
(Pepa) Herrera-Echu B (1864-1946) em Regla foram cruciais para essa
transformao. Pois quando, em maio de 1937, Ortizsubiu ao palco da
prestigiosa Instituio Hispanocubana de Cultura para umaconferncia
(Ortiz 1938) precedendo a primeira apresentao-concerto detodos os
tempos, em um cenrio altamente cultural (o esplndido
TeatroCampoamor), dos mesmos tambores que a polcia vinha
confiscando por dcadas,e pelos quais Remigio Hererra-Adechina e
Fernando Guerra lutaram fortementepara poder usar em rituais
privados45 Ortiz havia se tornado um aluno, maisdo que um mero
patrono do formidvel ol a (o consagrado tambor mestre)Pablo Roche
(Okilpka). Foi com a ajuda de Roche e seus colegas mais
jovensTrinidad Torregrosa e Ral Daz (todos trs associados ao grupo
de culto dePepa Herrera) que Ortiz finalmente compilou seu captulo
monogrficoverdadeiramente esplndido sobre a histria, a
organografia, a importncia rituale a sociologia do tambor bat em
Cuba (Ortiz 1952-55, VI: 204-342) e nesseponto, o autor estava
pronto a reconhecer plenamente as suas contribuies.Igualmente
notvel acerca do evento de 1937 foram as palavras com as quaisOrtiz
o abrira:
Estimada audincia: Agg Ile! Agg Ya! Agg Olof! Olrum mbae!Essas
palavras e esses gestos rituais so uma simples invocao dos
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95PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
deuses [sic] iorub, para que os espritos, quando seus
cantossagrados forem reproduzidos aqui, no sejam ofendidos e no
paremde tratar-nos com benevolncia fiel (Ortiz 1938:89).
Lembrando a audincia de que no ltimo desses eventos a
InstituioHispanocubana apresentara as mais avanadas composies
modernistas deGilberto Valds (baseadas em temas afro-cubanos),
Ortiz agora prometia aosouvintes no apenas as mais primitivas
liturgias religiosas dos negros iorub eseus descendentes cubanos,
preservadas como estavam em sua pureza ancestral,mas
simultaneamente enfatizava que os
negros lucum ou iorub, juntamente como os daomeanos, so osmais
civilizados na frica Ocidental; [tm a] mais avanada religio,e cujos
mitos e artes deram origem a idias sobre as suas relaesntimas com
os povos antigos do Mediterrneo: Egito, Creta, Tartesos,Cartago...
(ibid.:91).
Ortiz, ento, havia completamente digerido Frobenius, e parece
que sabiados debates sobre as origens iorub na literatura que vinha
emergindo da Nigriadesde a dcada de 189046. Ele estava tambm
bastante ciente do impacto queexposies de arte africana, e de msica
negra norte-americana, haviam causadona vanguarda europia, e assim
desempenhou ele prprio um importante papelna exaltao do movimento
artstico primitivista conhecido como afrocubanismo(Kutzinski 1993;
Moore 1997). Ademais, h boas chances de que suas refernciasno se
tenham restringido aos trs tocadores de tambor, quatro akpun47 e
vintemembros do coro imitando o padro antfono de canto de um evento
ritual: poiscomo Brown demonstra ser altamente provvel (2003:147),
por volta de 1930vrios babalas (inclusive Eulogio Rodriguez-Tata
Gaitn e Guillermo Castro)estavam no apenas servindo de informantes
para Ortiz, mas parecem ter idobeber gua na [sua] fonte (i.e., na
impressionante biblioteca de literaturaafricana que Ortiz havia
compilado at ento)48. poca em que Pepa, a filhade Adechina, morreu
em 1946, bastante provvel que a significao polticae o potencial
legitimador de designar suas crenas e prticas como umacontinuao
cubana das tradies iorub j tivesse se tornado claro para ela,
eparticularmente para os membros mais jovens de grupo de culto.
Em meados da dcada de 1950, e em uma das primeiras
publicaesimpressas extensas de autoria de um praticante da religio
afro-cubana Manualde Orihat, de Nicols Valentin Angarica finalmente
temos uma reclamaoexplcita no apenas quanto s origens iorub da
Regla de Ocha e do If, masquanto sua iorubidade essencial a qual,
segundo Angarica, necessitava derestaurao. No prefcio, um certo Dr.
Jos Roque de la Nuez (Efn Yom)49
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96 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
repreende explicitamente a etngrafa Lydia Cabrera (cunhada de
Ortiz, cujolivro El Monte havia aparecido apenas alguns anos antes)
por terindiscriminadamente compilado dados de fontes mal
qualificadas, e alm disso,por ter gerado a impresso errnea de uma
linguagem africana unificada,enquanto, segundo Roque, certo que a
frica foi o bero de uma civilizaoFEUDAL, na qual tribos de tipo
feudal existiam, e onde cada tribo tinha umalinguagem tpica prpria,
diferente da linguagem de cada uma das outras tribos...costumes
prprios, e uma religio de acordo com a divindade religiosa
queadoravam... (Angarica 1955:3). Em contraste com acadmicos
profanos comoCabrera, Roque (ibid.:4) continua, Angarica tomou o
mximo cuidado no sentidode retificar tais erros, pois um dicionrio
e uma Bblia traduzidos para a lnguaiorub vieram [recentemente]
parar em suas mos. O prprio Angarica, por suavez, enfatizou que, a
despeito de ter nascido criollo, seus laos ntimos com ossentimentos
dos lucum e arar, somados sua associao ao seu Credo
Religioso,permitiram [a ele] trazer para a luz da civilizao, sem
distores, a verdade daReligio Lucum da terra iorub (ibid.:9).
Contendo um relato sofisticado ealtamente racionalizado
teologicamente acerca de um panteo lucum50,modelado
auto-conscientemente segundo fontes clssicas, os esforos deAngarica
estranhamente assemelham-se queles de telogos-iorub de meadosdo
sculo XX, como Lucas (1948) ou Idowu (1962). E, de fato, a esse
respeito,o Manual de Orihat claramente representa um movimento
astuto de oposiotanto s vilificaes prprias a uma fase anterior de
representaes da religioafro-cubana como selvageria africana, quanto
o primitivismo do movimentoafro-cubanista que emergiu entre
intelectuais e artistas nos anos de 1930(Kutzinski 1993; Moore
1997). Ao faz-lo, Angarica posicionou-seestrategicamente como o
herdeiro daquilo que comeava a ser pensado comouma Tradio Iorub
transatlntica estendida, validada por uma literaturaacadmica e
popular, rapidamente crescentes. Mas, quanto a Angarica, eletambm
encontra-se no comeo de uma tradio essencialmente nova: da qual,por
volta da dcada de 1970, no mximo, emergiria um movimento
globalunificado em torno da devoo de divindades agora vistas
unanimamente comode origem e essncia iorub.
No caso cubano, percebemos os primeiros indcios dessa tradio
emergentequando (provavelmente no final da dcada de 1950) o
autor-praticante PedroArango interpolou cerca de quarenta pginas de
Deuses da frica de PierreVerger (1954) em seu do contrrio pouco
digno de nota Manual de Santera(reimpresso integralmente em
Menendez 1998)51. Particularmente uma vez queo prprio Verger
contava-se entre os que pioneiramente criaram a impresso deuma
continuidade iorub transatlntica, ao apresentar seus dados
impressionantessobre a Bahia lado a lado com seus dados igualmente
destacados concernentesao sudoeste da Nigria e ao Benin: o efeito
espantoso. Aps mais de 160
-
97PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
pginas de explicaes sobre procedimentos rituais, signos de
divinao e seusmitos associados, preces bilnges (em espanhol e
lucum), ou receitas mgicas,o leitor subitamente imerso em uma
narrativa justapondo detalhados dadosetnogrficos pertinentes ao
Brasil e a diferentes localidades no Golfo de Benin,ordenados de
uma tal maneira que torna suas divergncias meras variaeslocais de
um tema transatlntico: os orixs, seus atributos e as formas de
devooque recebem. Embora as estratgias textuais de Arango sejam
ainda um tantodesajeitadas, as impresses que elas criam apontam o
caminho para o futuro, noqual as crenas e prticas associadas com o
termo lucum podem, e devem, serassimiladas a esse espectro
transatlntico de formas culturais relacionadas aosorixs e portanto,
em ltima instncia e essencialmente iorub; algo que hoje pouco mais
que uma idia pr-estabelecida52.
De forma previsvel, e assim como no Brasil, a interface
etnogrfica comeaa registrar esses desenvolvimentos praticamente ao
mesmo tempo. Quando oaluno de Herskovits, William Bascom53, foi
para Cuba nos veres de 1948 e1950, ele no teve dificuldade alguma
para realizar essas assimilaes etnolgicastransatlnticas. No de se
surpreender que ele tenha visto muitas cerimniasnas quais
sacrificavam-se animais aos orixs iorub, tocava-se msica iorub
emtambores africanos, cantava-se cantos com letra e msica iorub e
danarinoseram possudos pelos orixs (Bascom 1951:14). Embora seja
razovel a suaafirmao de que havia duzentos babalas ativos em Havana
na poca, o fatode que ele inclui seu informante Akilapa entre eles
(i.e., o formidvel ol aPablo Roche-Okilapka) tanto revela o seu mal
entendimento da incumbnciareligiosa de Roche quanto ilumina a
conexo que Ortiz havia obviamentearquitetado entre eles. Embora
Bascom sustente que tenha podido provar quea lngua iorub
efetivamente falada, e no apenas recitada em Cuba (:17),mais tarde,
em um outro ensaio (Bascom 1953:164), ele admite: tendo quedepender
de um intrprete para o espanhol, percebi que com meu prpriodomnio
limitado do iorub eu poderia ao menos fazer algumas
perguntaselementares na lngua africana. Embora isso crie dvidas
acerca de se ele teriasido de fato capaz de dizer que muitos
informantes, na verdade, dominavammais o iorub do que eu mesmo,
Bascom (:164) clarifica alguns dos mecanismosatravs dos quais essa
competncia lingstica fora adquirida. Pois
Como parte de seu treinamento nos cultos afro-cubanos, at
mesmoos nefitos adquirem um vocabulrio na linguagem africana o
qualpode ser identificado atravs da comparao com os
dicionriospublicados da frica. Esses vocabulrios so
sistematicamenteaprendidos por meio da instruo transmitida pelos
mais avanadosnos cultos, e so copiados mo naqueles cadernos de
santera,como so chamados os cultos iorub. Cadernos manuscritos de
santera
-
98 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
so vendidos, enquanto os livros mais completos podem ser
compradosdatilografados em lojas especializadas em vender a
parafernliautilizada nos altares e casas de culto (Bascom
1953:163ss, grifosmeus)
possvel que o precursor mimeografado do Manual de Orihat El
Lucumal Alcanze de Todos (provavelmente do fim dos anos de 1940),
de Angarica, maisum manual de santera que uma cartilha de lngua54
tenha figurado entreaqueles livros mais completos que estavam agora
entrando em uma complexadinmica de intertextualidade com os relatos
etnogrficos de performancesparcialmente informadas por eles. E
mais: enquanto, por um lado, etngrafoscomo Bascom estavam agora
registrando formas de conhecimento afro-cubanoque haviam se tornado
em parte livrescas e elaboradas sobre construesessencializadas da
religio iorub derivando de fontes crists nigerianas ou
deetnografias iorub, conforme argumentaram Dianteill e Swearingen
(2003), poroutro lado, os prprios praticantes comearam a reinvestir
nas etnografias cubanasenquanto textos hierogrficos designados a
guiar a prxis ritual e continuarama faz-lo at os dias de hoje55. O
resultado, ao que parece, uma dialtica entretextos e prticas
heterogneos, os quais, durante pelo menos o ltimo meiosculo, seguem
numa espiral constante em direo ao telos de um mundo iorubreligioso
transatlntico como quer que se queira entender esse termo.
***
Os limites de espao no presente artigo no me permitiro traar a
histriacomplicada e altamente irnica que comeou a desdobrar-se a
partir de1959, quando centenas, talvez milhares, de praticantes do
que agora se podepensar como uma religio iorub do Novo Mundo
comearam o xodo da Cubarevolucionria, e com a quase simultnea
iniciao, em 1958, do empresriocultural norte-americano Walter Serge
King-Ob Efuntola Adebalu AdefunmiI na Regla de Ocha, em Matanzas,
Cuba. J lidei com os dois temas anteriormente(Palmi 1991, 1995 e
1996), e eles so hoje bem documentados (por ex., Brandon1993;
Clarke 1997; Brown 2003; Dianteill 2002; Argyriadis e Capone 2004;
eFrigerio 2004). Mas eu gostaria de concluir abordando brevemente
um aspectodessa histria que ainda no recebeu pelo menos at onde eu
sei atenosuficiente: as contribuies dos nigerianos do final do
sculo XX para o trabalhocultural envolvido nos processos
eclesiogenticos a partir dos quais emergiuuma religio, com aspiraes
a ser mundial, centrada no culto aos r/ orisha/oricha/orix.
O mais conhecido protagonista dessa histria, embora de nenhuma
formao nico, o crtico literrio nigeriano Wande Abimbola (1932),
ex-professor e
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99PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
vice-cnsul da Universidade de Ile Ife, poltico, babala e
empresrio cultural um homem a quem Matory chamou um novo Martiniano
(2001:187), e Peelum araba56 en partes fidelibus (1990:341). Muito
provavelmente, a carreira deAbimbola como o prcer de um novo tipo
de mundo iorub transcontinentalcomeou em 196857. Neste ano, ele
organizou (com o patrocnio do governofederal nigeriano!) a concesso
do antigo ttulo oyo de bl (chefe da vila) daBahia ao sacerdote do
candombl e etngrafo Deoscoredes Maximiliano dosSantos (mestre
Didi), um iniciado no terreiro Op Afonj de Me Aninha,fechando,
assim, o crculo entre um Oyo da imaginao de Martiniano doBonfim e
uma Bahia que agora tinha se tornado um distrito dentro de umimprio
que, nas palavras de Matory (1994), j tinha deixado de ser.
Eleprprio um recm-graduado do Programa de Estudos Africanos da
NorthwesternUniversity, e recentemente designado professor de
Estudos Iorub da Universidadede Lagos, Abimbola completou seu
doutorado em literatura e tornou-se umbabala praticante em 1971. No
final de 1975 o encontramos de volta Bahiapara uma viagem de um ms,
financiada pelo Projeto de Pesquisa sobre a Disporada Universidade
de Ife. A viagem de Abimbola foi organizada in lococonjuntamente
com o lingista Olabiyi Babalola Yai (um outro emissrio
daUniversidade de Ife), mestre Didi e Pierre Verger, o infatigvel
francs queperegrinava entre os mundos religiosos da frica e do Novo
Mundo, e que,embora j estivesse h muito estabelecido na Bahia, logo
ocuparia um posto deprofessor visitante em Ife, onde se submeteria
iniciao no culto do If noBenin e se tornaria o primeiro babala
francs iniciado na frica e ativo noNovo Mundo.
Nesse relatrio apresentado no 42 Congresso Internacional
dosAmericanistas, em Paris em 1976, Abimbola conclui que as suas
observaes naBahia forneciam claras evidncias a respeito da forte
ligao e respeito que opovo do Brasil ainda tem pelas divindades
iorub (Abimbola 1979:634).Entretanto, diante de uma perda de
competncia lingstica em iorub, osdevotos baianos no entendem
plenamente o significado lingstico dos textoslitrgicos, uma situao
que dolorosa para muitos dos devotos dos orixs, osquais pagariam
qualquer preo para adquirir a habilidade lingstica necessriapara um
entendimento de seu prprio repertrio [religioso] (:634).
Felizmente,prossegue Abimbola,
Desde o comeo da dcada de 1960, o prprio governo brasileirodeu
ao menos uma prova de interesse no problema. Assim, o
primeironigeriano fora enviado Bahia em 1960 para ensinar a lngua
iorub:E.L. Laebikan, j falecido, renomado especialista em
linguagemiorub antes mesmo de ter deixado a Nigria. Mas Laebikan
eragrandemente ignorante dos modos dos orixs, e na Nigria ele
se
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100 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
via como um cristo. Portanto, logo que chegou ao Brasil no
podiaentender as pessoas a quem devia ensinar a lngua iorub. Mas
logotratou de ajustar-se e aprender mais sobre os orixs, j que
seucorpus de alunos era composto primordialmente de babalorixs
eialorixs. Durante a minha visita ao Brasil, os baianos
lembraramternamente de Laebikan e cantaram algumas das canes que
lhehaviam ensinado (Abimbola 1979:643ss)
Podemos nos perguntar se esses alunos de Laebikan no teriam
cantadohinos da CMS para Abimbola! Ainda que possamos presumir que
Abimbola osteria reconhecido, claro que os espritos do Bispo Samuel
Crowther, de JamesJohnson e talvez at mesmo de Philip Meffre tenham
eventualmente rondado asala de aula de E.L. Laebikan na Bahia. Pois
a questo acerca do que constituium iorub de verdade est,
evidentemente, intimamente associada aos debatesmissionrios de
meados do sculo XIX sobre a traduo da Bblia para o que,na verdade,
estava para se tornar um idioma sinttico (amplamente compostode
vocabulrio egba, estruturado por uma gramtica oyo, atravessado
porislamicismos, e assim por diante), o qual alastrou-se apenas
gradualmente eintermitentemente atravs do sudoeste da Nigria,
seguindo os caminhos dadisseminao das bblias, hinos e cartilhas
escolares da CMS (Peel 2000:283-88et passim). Realmente, qualquer
que fosse a sua expertise lingstica, Lasebikantambm parece ter
passado pelo mesmo ordlio transatlntico, embora ao inverso,que
transformou Philip Meffre de um babala brasileiro nascido africano
em umcristo iorub. Mas graas aos seus esforos, os critrios que o
Bispo CharlesPhilips usou, em 1890, para definir iorubidade a
saber: (1) linguagem comum;(2) tradio de uma origem comum, Ile-Ife
como bero da raa (citado em Peel2000:286) estavam agora sendo
vigorosamente inseridos nos discursos do NovoMundo por sucessores
de Lasebikan, j desencumbidos do lastro intelectualcristo que
tornara a sua tarefa na Bahia to rdua, mas que ironicamente
foraparte integrante da formao inicial da idia de uma nao iorub no
sculoXIX no Golfo de Benin.
O prximo embaixador da nao iorub transcontinental parece ter
sidoYai, que desta vez financiado pela Universidade de Ife parece
ter agradadotanto a seus anfitries baianos que estes enviaram um
pedido atravs daEmbaixada Nigeriana em Braslia para que Yai pudesse
ficar mais tempo(Abimbola 1979:635). No inverno de 1975,
entretanto, o prprio Abimbola levouo assunto a um nvel mais alto de
racionalizao. Consideremos aqui a suaabordagem do irritante tema do
sincretismo:
Um devoto africano dos orixs a princpio surpreendido
pelosincretismo das divindades iorub com os santos catlicos.
Enquanto
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101PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
um verdadeiro africano interessado na promoo das
autnticastradies africanas, uma pessoa pode perguntar-se se o
sincretismo algo a ser de fato encorajado (Abimbola 1979:636).
Ainda assim segundo Abimbola em uma passagem que
inesperadamenteressoa com as estratgias pastorais do Segundo
Conclio do Vaticano, comendadasem relao s formas sincretsticas
latino-americanas de religiosidade popular(embora, claro, de um
ponto de vista muito diferente!) tal sincretismo noobscurece a
verdadeira mensagem dos orixs ao povo brasileiro, pois dada
aatmosfera catlica geral na qual todo mundo tem que operar no
Brasil, trata-se mais de uma tendncia exterior do que interior
(ibid.). Alm disso,tradicionalistas africanos respeitam a f de
outros como igualmente autnticas,e como uma experincia de que eles
prprios tambm podem participar (ibid.).
poca de seus pronunciamentos no Congresso Internacional
dosAmericanistas, Abimbola, claro, pode no ter estado plenamente
ciente daemergncia, durante os anos de 1960, do que ficou conhecido
como movimentoReversionista-Iorub nos EUA. Defendendo no apenas uma
agendaradicalmente anti-sincretstica (Shaw & Stewart 1994;
Palmi 1995), masadotando uma ideologia reflexiva das concepes
distintivamente norte-americanas de uma coincidncia necessria entre
africanidade e negritude(conforme localmente concebidas), as formas
de identidade-iorub propagadaspela comunidade teocrtica de Ob
Ofuntola Oyotunji em Oyotunji, Carolinado Sul, ou pelo
Arquiministrio Teolgico Iorub no Brooklyn no
subscreviamimediatamente situao que Abimbola enfrentava no Brasil.
Como refletiuvinte anos mais tarde, quando ensinando na
Universidade de Boston,
Algumas pessoas sentem que no querem ver nenhum homem
branconessa religio. Mas ns continuamos lembrando-lhes de que,
paracomear, homens brancos j esto nela atravs de Cuba ou doBrasil,
lugares de onde a religio veio para c [i.e., para os EUA]em
primeiro lugar! (Abimbola 1997:29).
Pois, como ele j havia apontado em 1976,
o ponto importante aqui que, no Brasil, os orixs cessaram de
seruma propriedade apenas das pessoas negras. Tanto brancos
quantomulatos tambm participam da devoo aos orixs, e h na
verdadealgumas pessoas entre as classes de elite cuja sinceridade
da devooaos orixs no pode ser questionada. As divindades dos
Iorubconhecidas como orixs se tornaram, graas trata de escravos,uma
religio mundial, oferecendo um novo modo de vida a muitas
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102 Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(1): 77-113, 2007
pessoas negras e brancas nas duas Amricas e no Caribe
(Abimbola1979:636, minha nfase).
E assim foi. Em uma inverso altamente original das
interpretaesprovidencialistas da escravido, comuns tanto a cristos
negros na Amrica doNorte desde o sculo XVI (de Phyllis Wheatley a
Alexander Crummell) quantoaos saros cristos do sculo XIX (como
Crowther e Johnson)58, agora ela tornava-se o meio histrico, no
para o surgimento de uma igreja crist negra diaspricacujos membros
finalmente trariam a luz do evangelho aos seus obscurecidosirmos
africanos, mas para a disseminao transcontinental de uma
ReligioTradicional Africana, cujos arautos tinham de ser enviados
alhures, de modoque pudessem carregar sua mensagem de paz e
conciliao racial atravs doglobo. Aprendemos com o If, diria
Abimbola (1997:29) a um acadmicoamericano, Ivor Miller, vinte anos
mais tarde,
Que a cidade de Il Ife a terra natal do Homem. Cr-se que elaseja
o lugar onde todos os homens, brancos e negros, foram originadose
de onde se dispersaram para outras partes do mundo. Quandouma
pessoa vem para Il Ife, qualquer que seja a sua cor
ounacionalidade, dizemos Bem-vindo de volta, bem-vindo sua
terra.
Seguindo a interpretao de Abimbola, podemos dizer que quando
ele,Mestre Didi e a santera porto-riquenha Marta Vega
encontraram-se em NovaIorque em 1981, onde pela primeira vez
eclodiu a idia de produzir uma sriede Congressos Internacionais de
Cultura e Tradio dos Orixs, sob o patronatode Oni de If, eles
estavam apenas avanando sob a forma escrita uma
narrativaprovidencial, em elaborao desde o comeo do mundo ou, mais
objetivamente,desde pelo menos o comeo dos esforos da CMS no Golfo
de Benin em meadosdo sculo XIX.
Muito mudou desde 1981. E o que mudou lana uma luz
profundamentediferente sobre eventos que podem ter transpirado nos
quartos dos fundos deuma bodega de Havana de propriedade do prspero
comerciante criollo brancoBonifcio Valds, onde o Carlos Ad B e seus
desconhecidos colegas babalasafricanos ou criollos consagraram seu
primeiro branco filho de If e pai dosegredo (pois isso o que
significa o termo babala em iorub-padrocontemporneo). A julgar pelo
modo como as coisas esto hoje aps oitoCongressos Internacionais de
Cultura e Tradio dos Orixs desde 1981 , adeciso de o Carlos Ad B
foi plenamente corroborada. Soubesse ele ou no,o prprio If o havia
guiado por caminhos que, atravs de um realinhamentoretrospectivo
adequado, hoje nos aparecem como os primeiros passos vacilantesem
direo globalizao de uma entidade que nos dias de hoje podemos
-
103PALMI: O trabalho cultural da globalizao Iorub
chamar de uma religio iorub que transcendeu tanto os limites
deafricanidade quanto os de raa. Mas ser mesmo? Certamente, a
questo mais complicada do que a forma pela qual Ministro da Cultura
de Cuba, AbelPrieto, a apresentou na oitava edio desse Congresso,
no vero de 2003 asaber, que caberia a todos os terceiromundistas
arregimentarem-se em tornodo chamado dos orixs, fornecendo, como de
fato ocorreu, um saudvel antdotoao veneno cultural emanando de
Hollywood59. Mas, uma vez que o prprioEstado socialista cubano
alinhou-se com os prognsticos do If, facilitando aaquisio de uma
propriedade em uma parte nobre do centro de Havana por
umconglomerado de babalas antenados com a internet e bem
conectadosglobalmente, habilmente auto-designados como a Associao
Cultural Iorubde Cuba, bem, quem sou eu para dizer alguma coisa? A
questo final, portanto,pode ser a seguinte: teria sido Samuel um
iorub no mesmo sentido projetadohoje em dia por Wande Abimbola, o
Yoruba Theological Archministry ou pelaAsociacin Cultural Yoruba de
Cuba? No posso responder a isso. Mas suspeitoque a resposta tenha
de ser sim e no.
Traduo: Ana Paula Lima Rodgers
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Notas
1 Este artigo foi inicialmente publicado em Toyin Falola (ed.)
Christianity and Social Change in Africa:Essays in Honor of J.D.Y.
Peel. Durham, NC: Carolina Academic Press, 2005. O artigo
estreproduzido aqui em traduo com a permisso da editora. Gostaria
de agradecer a assistncia deJoo Felipe Gonalves na confecco da
verso portuguesa deste artigo. (N.T.)
2 Ironicamente, a resposta provavelmente deveria ser afirmativa
para ambos os casos, j que noapenas a prpria noo de Grcia
fundamentalmente uma construo do sculo XIX (Herzfeld1982), mas as
prprias origens atenienses de Tucdedes so minadas por suas conexes
e interesse