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JEAN STAROBINSKI
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JEAN-c[f!CQ.UES ROU5'SEAU A TRANSPARNCIA E O OBS'!'4CUW
19 Seguido de
SETE ENSAIOS SOBRE ROUSSEAU
Traduo: MRIA LCIA MACHADO
--~---CoMPANHIA DAS LETRAS
-
Copyright 1971 by ditions Gallimard Titulo original:
Jean-Jacques Rousseau: l rransparence ec l'obsrack suivi de Sepc
essais sur Rousseau
Capa e guarda: Errore Borrini
sobre Sophie d'Houcecoc em rrajes masculinos visira Jean-Jacques
(gravura de Johannot),
e padro em xilogravura de William Morris
Preparao: Ana Maria Onofr
Reviso: Carmen T. S. Cosra
Cecflia Ramos ndice de nomes e de obras de Rousseau:
Joo Baprisra de Lima
Dados lntemacionsis de Catal11g.e.Ao nA PublicaAo (aP) (Cmara
Brasileira do Livro, sP, Brasil)
Starobiruki, Jean. 192(). Jean-beques Rousseau : a transpartncia
c o obstculo ;
seguido.de sele eru.aios sobre Rouseau 1 Jean Starobinskl; mduAo
Maria LUcia Machado. - SAo Pauto : Companhia du Letras, 1991.
Bibliografia. ISBN: 115-7164-18()..)
9Hl978
1. Rousseau, Jea..n-Jacque.s, 1712-11781 Titulo.
ndices pllta catlogo sislemtico: t. Filosofia francesa 194 2.
Filsofos. franceses 194
Editora Schwarcz Ltda. Rua Tupi, 522
01233 -So Paulo- SP Telefone: {O li) 826-1822
Fax: {011) 826-5523
Advertncia
Prlogo ...
SUMRIO
JEAN-JACQUES ROUSSEAU A transparncia e o obstculo
Captulo 1 .............................. . Discurso sobre as
cincias e as artes, 15- "As aparncias me
condenavam~,18- O tempo dividido e o mito da transparn-cia, 22 -
Saber histrico e viso potica, 25 - O deus Glauco, 26 - Uma teodicia
que inocenta o homem e Deus, 31
9
11
15
Captulo 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 34 Crtica da sociedade, 34 - A inocnCia original, 37- Tr-balho,
reflexo, orgulho, 38 - A sntese pela revoluo, 41 - A sntese pela
educao, 42
Captulo 3 .............. . A solido, 45 - "Fixemos de uma vez
por todas as minhas opinies", 57 - Mas a unidade natural?, 59 - O
conflito interno, ~ - A magia, 69
Captulo 4 ........... . A esttua velada, 75 - Cristo, 78 -
Galatia, 80 - Teoria do desvelamento, 82
45
75
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Captulo 5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . "A nova Helosa", 91- A msica e a transparncia, 98- O
sentimento elegaco, 100 - A.festa, 102 - A igualdade, 107 -
Economia, 114- Divinizao, 121 -A morte de Julie, 123
91
Captulo 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 131 Os mal-entendidos, 131 - O retorno, 135 - "Sem poder
proferir uma nica palavra", 145 - O poder dos sinais, 147 ' - A
comunicao amorosa, 174 - O exibicionismo, 176 -O preceptor, 183
Captulo 7 ...... . Os problemas da autobiografia, 187 - Como se
pode pintar a si mesmo?, 193- Dizer tudo, 195
187
Captulo 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 208 A doena, 208 - A reflexo condenvel, 212 - Os obstculos,
225- O silncio, 231- Inao, 236- As amizades vegetais, 241
Captulo 9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 245 A recluso perptua, 245 - As intenes realizadas, 246 -Os
dois tribunais, 257
Captulo 10 . . . . . . . . . A transparncia do cristal, 260-
Julgamentos, 266-_"Eis-me ento s sobre a terra ... ", 271
SETE ENSAIOS SOBRE ROUSSEAU
260
) Rousseau e a busca das origens . . . . . . . . . . . . . . 277
\>. O discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
287 1- Rousseau e a origem das lnguas. . . . .. . . . . . . . . . .
. . 310
A voz da natureza, 312 - O homem silencioso, 313 - A v palavra,
316 - A linguagem elementar e a linguagem aper-feioada, 318 - A
felicidade a meio caminho, 321 - A eloqncia e os sinais, 325 - A
palavra de Jean-Jacques, 328
fo Rousseau e Buffon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . 330 ~ O afastamento romanesco . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . 341
O escritor romando. Um deslocamento fecundo, 341- Jean-Jacques
Rousseau, o anunciador, 345 - O apelo do romance,
r 346 - A explorao da diferena, 355 - O percurso do romance,
358
(O Devaneio e transmutao . . z Sobre a doena de Rousseau
Notas ....
B.oEografia
lndce de nomes e de obras de Rousseau
361 ) 375
389
415
421
-
ADVERTNCIA
Em relao edio anterior, o tex~o que publicamos aqui apresenta
inmeras alteraes pequenas. No entanto, as modificaes no afetam a
obra em sua estrutura de conjunto.
As citaes agora remetem ao texto da edio crtica das Oeuvres
completes (publicadas sob a direo de Bemard Gagn~bin. e Mareei
Raymond na Bbliotheque de la Pliade; qilatro volumes publicados em
cinco). Se modernizamos a ortografia de Rousseau, geralmente
respeita-mos sua.pontuao. Muitas vezes incorreta em relao norma
atual, ela indica um fraseado de segmentos amplos. Reconhecemos a a
"respirao" prpria a Rousseau.
Os sete estudos reunidos no final deste volume apareceram em
lugares diversos, entre 1962 e 1970. "Jean-Jacques Rousseau e o
perigo da reflexo" no figura aqui: esse ensaio faz parte de L 'oeil
vivant (Gallimard, 1961; segunda edio, 1968); "O intrprete e seu
crculo" pertence a La relation critique (Gallimard, 1970).
Genebra, setembro de 1970
9
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PRLOGO
Este livro no uma biografia, embora respeite, em linhas gerais,
a cronologia das atitudes e das idias de Rousseau. No se trata
tambm de uma exposio sistemtica da filosofia do cidado de Genebra,
ainda que os problemas essenciais dessa filosofia constituam aqui o
objeto de um exame bastante conseqente.
Com ou sem razo, Rousseau no consentiu em separar seu
pensa-mento e sua individualidade, suas teorias e seu destino
pessoal. preciso consider-lo tal como se apresenta, nessa fuso e
nessa confuso da existncia e das idias. Assim, somos levados a
analisar a criao literria de Jean-Jacques como se ela representasse
uma ao imaginria, e seu comportamento, como se ele constitusse uma
fico "ivida.
Aventureiro, sonhador, filsofo, antifilsofo, teorico poltico,
m-sico, perseguido: Jean-Jacques foi tudo isso. Por milis diversa
que seja essa obra, cremos que pode ser percorrida e reconhecida
por um olhar que no recusasse nenhum de seus aspectos: bastante
rira para nos sugerir, ela prpria, os temas e os motivos que nos
permitiro apreend-la ao mesmo tempo na disperso de suas tendncias e
na unidade de suas intenes. Dispensando-lhe ingenuamente nossa
ateno, e sem nos apres-sar demais em condenar ou em absolver,
encontraremos imagens, desejos obsessivos, nostalgias que dominam a
conduta de Jean-Jacques e orientam suas atividades de uma maneira
mais ou menos permanente.
Na medida em que era possvel, limitamos nssa tarefa observao e
descrio das estruturas que pertencem propriamente ao mundo de
Jean-Jacques Rousseau. A uma crtica coercitiva, que impe de fora
seus valores, sua ordem, suas classificaes preestabelecidas,
preferimos uma leitura que se empenha simplesmente em descobrir a
ordem ou a desordem interna dos textos que interroga, os smbolos e
as idias segundo os quais o pensamento do escritor se organiza.
11
-
Este estudo, entretanto, mais que uma "anlise interna". Pois
evidente que no se pode interpretar a obra de Rousseau sem levar em
conta o mundo ao qual ela se ope. pelo conflito com uma sociedade
inaceitvel que a experincia ntima adquire sua funo privilegiada.
Veremos at que o domnio prprio da vida interior delimitado pelo
fracasso de toda relao satisfatria com a realidade externa.
Rousseau deseja a comunicao e a transparncia dos coraes; mas
frustrado em sua expectativa e, escolhendo a via contrria, aceita -
e suscita - o obstculo, que lhe permite recolher-se em sua resignao
passiva e na certeza de sua inocncia.
12
6
JEAN-JACQUES ROUSSEAU A transparncia
e o obstculo
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1
DISCURSO SOBRE AS CINCIAS E AS ARTES
O Discurso sobre as cincias e as artes [Discours sur les
sciences les arts] comea pomposamente por um elogio da cultura.
Nobres frases se desdobram, descrevendo em resumo a histria inte~ra
do pro-gresso das luzes. Mas uma sbita reviravolta nos pe em
presena da discordncia do ser e do parecer: "As cincias, as letras
e as artes ... estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de
ferro com que eles (os homens) so esmagados". 1 Belo efeito de
retrica:. um toque de varinha mgica inverte os valores, e a imagem
brilhante que Rousseau pusera sob os nossos olhos no mais que um
cenrio mentiroso - belo demais para ser verdadeiro:
Como seria doce viver entre ns, se a atitude exterior fosse
sempre a imagem das disposies do corao.2
Cava-se o vazio atrs das superfcies mentirosas. Aqui vo comear
todas as nossas infelicidades. Pois essa fenda, que impede a
"atitude exterior" de corresponder s "disposies do corao", faz o
mal penetrar no mundo. Os benefcios das luzes se encontram
compensados, e quase anulados, pelos inumerveis vcios que decorrem
da mentira da aparncia. Um npeto de eloqncia descrevera a ascenso
triunfal das artes e das cincias; um segundo lance de eloqncia nos
arrasta agora em sentido inverso, e nos mostra toda a extenso da
"corrupo dos costumes". O esprito humano triunfa, mas o homem se
perdeu. O contraste violento, pois o que est em jogo no apenas a
noo abstrata do ser e do parecer, mas o destino dos homens, que se
divide entre a inocncia renegada e a perdio doravar.te certa: o
parecer e o mal so tm:~a e mesma coisa.
15
-
O tema da mentira da aparncia no tem nada de original em 1748.
No teatro, na igreja, nos romances, nos jornais, cada um sua
maneira denuncia falsas aparncias, convenes, hipocrisias, mscaras.
No voca-bulano da polmica e da stira, nenhum termo que retome mais
freqen-temente que desvelar e desmascarar. Tartufo foi lido e
relido. O prfido, o "vil bajulador", o celerado dissimulado
pertencem a todas as comdias e a todas as tragdias. No desfecho de
uma intriga bem conduzida, preciso tra: :'Jres desmascarados.
Rousseau (Jean-Baptiste) permanecer na memria dos homens por ter
escrito:
A mscara cai, permanece o homem E o heri se esvaece. 3
Esse tema est bastante difundido, bastante vulgarizado, bastante
automatizado para que qualquer um possa retom-lo e a acrescentar
algumas variaes, sem grande esforo de pensamento. A anttese
ser-parecer pertence ao lxico comum: a idia tomou-se locuo.
No entanto, quando Rousseau encontra o deslumbramento ~ ver-dade
na estrada de Vincetmes, e durante as noites de insnia e,
-
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sentimentos muito mais interessados? No adota ele o tom do saber
abstrato na inteno mais ou menos consciente de compensar e de
dissi-mular certas decepes e certos fracassos muito pessoais? O
prprio Rousseau nos autoriza a fazer essas perguntas. Bem antes que
a psicologia moderna ho\)vesse dirigido nossa ateno para as fontes
afetivas e as subestruturas inconscientes do pensamento, o Rousseau
das Confisses [Les confessions] nos convida a buscar a origem de
suas prprias teorias na experincia emotiva, e o Rousseau dos
Devaneios [Les rveries du promeneur solitaire] chegar a dizer, na
experincia sonhada: "Minha vida inteira quase no passou de um longo
devaneio".9
A discordncia do ser e do parecer revelou-se ento a Rousseau ao
fim de um ato de ateno crtica? Foi uma calma comparao que alertou
seu pensamento? O leitor poderia ficar tentado a duvidar disso.
Sabendo quanto o tema do parecer se tornara moeda orrente no
vocabulrio intelectual da poca, hesitar em admitir que a reflexo de
Rousseau tenha encontrado a seu ponto de partida autntico e seu
impulso original. Se algum dia fosse possvel apreender esse
pensamento em sua fonte e em ,sua origem, no seria preciso remontar
a um nvel psquico mais profundo, em busca de uma emoo primeira, de
uma motivao mais ntima? Ora, a encontraremos o malefcio da
aparncia, no mais a ttulo de lugar-co-mum retrico ou na qualidade
de objeto submetido observao metdica, mas sob a forma da
dramaturgia ntima.
"AS APARNCIAS ME CONDENAVAM"
Releiamos o primeiro livro das Confisses. "Eu me mostrei tal
como fui" 10 (tal como ele acredita ter sido, tal como quer ter
sido). No se preocupa em retraar o histrico de suas idias; deixa-se
invadir pela lembrana afetiva: sua existncia no lhe parece
constituda como uma cadeia de pensamentos, mas como uma cadeia de
sentimentos, um "en-cadeamento de afeies secretas".l 1 Se o tema do
parecer mentiroso no fosse mais que uma superestrutura intelectual,
quase no teria lugar nas Confisses. Ora, o contrrio que
verdadeiro.
Sem dvida, no sem importncia que a conscincia de si date, para
Jean-Jacques, de seu encontro com a "literatura": "Ignoro o que fiz
at cinco ou seis anos: no sei como aprendi a ler; lembro-me apenas
de minhas primeiras leituras e de seu efeito sobre mim: o tempo de
que data, sem interrupo, a conscincia de mim mesmo. Minha me
deixara romances ... ". 12 O encontro de si coincide com o encontro
do imaginrio: eles constituem uma mesma descoberta. Desde a origem,
a conscincia de si est intimamente ligada possibilidade de tomar-se
um outro. ("Eu
18
me tomava a personagem da qual lia a vida." 13) Porm, por mais
perigoso que . Rousseau considere esse mtodo de educao - que
desperta 0 se~ttment~ antes da razo, o conhecimento do imaginrio
antes do das coisas reats -, o parecer a no se impe como uma
influncia malfica ~ iluso sent~mental, despertada pela leitura,
compo11a certamente u~ r~s~o, mas _o nsco, nesse caso particular,
est acompanhado de um privi-legio _preciOso: Jean-Jacques se forma
como um ser diferente. "Essas emooes confusas que eu experimentava
uma aps a outra no alteravam absolutamente a razo que aindii no
tinha; mas elas me formaram uma de uma outra tmpera ... "14 A
singularidade de Jean-Jacques tem sua fonte
n~s fa_ntasmas f~sci~antes su~citados pela iluso romanesca. Est
aqui 0 ~riJ_?eiro da~Q..b_rografico que vem confirmar a declarao do
prembulo: Nao sou feit? como n~n~um daqueles que vi". 15
Jean-Jacct~es deseja e
deplora sua diferena: e Simultaneamente uma infelicidade e um
motivo de or~ulho. Se as comoes fictcias, se a exaltao imaginria
tomaram-no diferente, ele lanar contra elas uma condenao ambgua:
esses romances so um vestgio da me perdida. < ,
Vamos encontrar uma recordao de infncia que des:reve o en-contro
do parecer como uma perturbao brutal. No, ele no comeou por
obs~':ar a discordncia do ser e do parecer: comeou por sofr-la. A
memona remonta a uma experincia original do malefcio da aparncia;
!ean-Jacques retraa-lhe a revelao "traumatizante", qual atribui uma
Importncia decisiva: "Desde esse momento deixei de gozai- de uma
felici?_ade pura". 16 Ne_s~e inst?nte se produz a catstrofe (a
"queda") que d~stro~ a_purez~ da felicidade mfantil. A partir desse
dia, a injustia existe, a mfel~c1da?e e presente ou possvel. Essa
lembra.na tem 0 valor de um arqueupo: e o encontro da acusao
injustificada. Jean-Jacques parece ,-u)pado s~m o ser rea~n:ente.
Parece mentir, enquanto sincero. Aqueles que_ o cashg~~ ag~~
InJ~stame~te, mas falam a linguagem da justia. E, a~UJ, a pun!ao
fiSica nao tera as conseqncias erticas da sova nas nadegas aplicada
pela srta. Lambercier: Jean-Jacques a no descobre seu corpo e seu
prazer; descobre a solido e a separao:
Um dia eu estudava sozinho minha lio no quarto contguo cozinha.
A criada pusera para secar na chapa os pentes da senhorita
Lambercier. Quando voltou para apanh-los, havia um com todo um lado
de dentes quebrado. A quem atribuir a culpa desse estrago? Ningum
alm de mim enttlra no quarto. Interrogam-me; nego ter tocado no
pente. O senhor e a senhor~ ta Lambercier se renem; exortam-me,
pression~m-me, ameaam-me; persisto com obstinao; mas a convico era
forte demais, prevaleceu sobre todos os meus protestos, embora
fosse a primeira vez que me tives-s~m encontrado tanto audcia em
mentir. A coisa foi levada a srio; merecia se-lo. Jt: _maldade, a
mentira, a obstinao pareceram igulmeae dignas de pumao ...
19
-
Faz agora quase cinqenta anos dessa aventura, e no tenho medo de
ser hoje ,..,mido uma segunda vez pelo mesmo fato. Pois bem!
Declaro diante do Cu que eu era inocente ...
No tinha ainda bastante razo para sentir quanto as aparncias me
condenavam, e para me colocar no lugar dos outros. Mantinha-me no
meu lugar, e tudo o que sentia era o rigor de um castigo terrvel
por um crime que no cometera.17 ' .;:;.._
Rousseau est aqui em situao de acusado. (No primeiro Discurso
ele desempenha o papel do acusador, mas a partir do momento em que
encontrar a contradio ele se achar novamente em situao de acusado.)
A experincia cuja descrio acabamos de ler no confronta
ab!".,.'l."'ll.ente a noo de realidade e a noo de apar.ncia: a
oposio perturbau0ra do ser-inocente e do par,ecer-culpado. "Que
desarranjo de idia ' ~ Je desor-dem de sentimentos! Que perturbao
... " 18 Ao mesmo tempo em que se revela confusamente a ruptura
ontolgica do ser e do parecer, eis que o mistrio da injustia se faz
sentir de modo intolervel a essa criana. Ela acaba de aprender que
a ntima certeza da inocncia impotente contra as pr'vas aparentes da
culpa; acaba de aprender que as conscincias so separadas e que
impossvel commiicar a evidncia imediata que se experimenta em si
mesmo. Desde ento, o paraso est perdido: pois o paraso era a
transparncia recproca das conscincias, a comunicao total e
confiante. O prprio mundo muda de aspecto e se obscurece. E os
termos de que Rousseau se serve para descrever as conseqncias do
incidente do pente quebrado assemelham-se estranhamente s palavras
pelas quais o primeiro Discurso pinta o "cortejo de vcios" que
irrompe desde que "no se ousa mais parecer o que se ". Nos dois
textos, Rousseau fala de um desaparecimento da confiana, depois
evoca um vu que se interpe:
Permanecemos ainda em Bossey alguns meses. Ali estivemos como
nos representam o primeiro homem ainda no paraso terrestre, mas
tendo deixado de ,:-~z-lo. Era em aparncia a mesma situao, e, de
fato, toda uma outra maneira de ser. O apego, o respeito, a
intimidade, a confiana no uniam mais os alunos a seus guias; j no
os olhvamos como deuses que liam em nossos coraes: ficvamos menos
envergonhados de agir mal, e mais temerosos de ser acusados;
comevamos a nos esconder, a nos rebelar, a mentir. Todos os vcios
de nossa idade corrompiam nos~;jnocncia e enfeiavam nossas
brincadeiras. At o campo perdeu aos nossos. olhos esse atrativo de
doura e de simplicidade que ch~ga ao corao. l>a;ecia-nos deserto
e sombrio; como que se cobrira de m' vu que nos ocultava-lhe as
belezas. 19
As almas no se encontram mais e tm prazer em ocultar-,~. Tudo
est perturbado, e a criana punida descobre essa incert>- do
conhe-cimento de outrem, de que se lamentar no primeiro Discurso:
"Portanto,
20
jamais se saber bem com quem se trata ... A catstrofe tanto
maior para Jean-Jacques, quanto o separa "precisamente das pessoas
que estim~ e que mais respe_ita".20 A ruptura constitui um pecado
original, mas um pecado tanto mats cruelmente imputado quanto
Jean-Jacques no por ele responsvel.
De fato, preciso observar que, em todo o relato do incidente do
pente, ningum carrega a responsabilidade da intruso inicial do mal
e da
sepa~ao. um concurso infeliz de circunstncias. Um simples
mal-en-tendtdo. Em parte alguma Rousseau diz que os Lambercier so
maus e injustos. Descreve-os, ao contrri, como seres "doces",
"bastante razo-veis" e de uma "justa severidade". Apenas esto
errados;foram enganados pela aparncia d'!_~tia-(seg:undo a sentena
liminar do primeiro Discur-so), e a injustia se produz como pelo
efeito de uma fatalidade impessoal. As "aparncias" esto contra
Rousseau. A "convico era forte demais".
P~rtanto, no h culpado em parte alguma; h apenas uma imputao de
cn~e, um parecer-culpado que surgiu como por acaso e precipitou
auto-ma~tcamente a_ punio. As pessoas so todas inocentes, mas suas
relaes estao corromptdas pelo parecer e pela injustia. . . O
~alefcio. da aparncia, a ruptura entre as conscincias pem
ftm a umdade fehz do mundo infantil. Doravante a unidade dever
ser reconquistada, redescoberta; as pessoas separadas devero
reconciliar-se: a. conscincia expulsa de seu paraso dever
empreender uma longa VIagem antes de retornar felicidade; ser-lhe-
preciso buscar uma outra ventura, totalmente diferente, mas na qual
seu primeiro estado no dei-xar de ser-lhe totalmente restitudo.
A revelao da mentira da aparncia sofrida maneira de um
~erimento. Rousseau descobre o parecer como vtima do parecer. No
mstante em que percebe os limites de sua subjetividade, ela lhe
imposta como subjetividade caluniada. Os outros o desconhecem: o eu
sofre sua aparncia como uma denegao de justia que lhe seria infgida
por aqueles pelos quais queria ser amado.
A _est~tura "fenomenal" do mundo , portanto, posta em questo
apenas Indiretamente. A descoberta do parecer, aqui, no de modo
algum o resultado de uma reflexo sobre a natureza ilusria da
realidade perce?ida. Jean-Jacques no um "sujeito" filosfico que
analisa o espetaculo do mundo exterior, e que o pe em dvida como
uma aparncia formada pela mediao enganadora dos sentidos.
Jean-Jacques descobre que os outros no vo ao encontro de sua
verdade, de sua inocncia, de sua boa-f, e apenas em seguida que o
campo se obscurece e se vela. Antes q~e ~le ~e experimente distante
do mundo, o eu sofreu a experincia de sua dtstancta em relao aos
outros. O malefcio da aparncia o atinge em sua prpria existncia,
antes de alterar a figura do mundo. " no
21
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...
corao do hotpem que est a vida do-espetculo da natureza."21
Quando 0 corao do homem perdeu sua transparncia, o espetculo da
natureza se empana e se turva. A imagem do mundo depende da relao
~ntre as conscincias: sofre-lhe as vicissitudes. O episdio de
Bossey termma pela destruio da transparncia do corao e,
simultaneamente. por um a~eu~ ao brilho da natureza. A
possibilidade quase divina de "ler nos coraoes no e~iste mais, o
campo se vela e a luz do murido se obscurece.
o "vu" desceu entre Rousseau e ele prprio. Ocultou-lhe sua
natureza primeira, sua inocncia. E por certo, ento, Jea~-Jacques se
p~s a fazer 0 mal ("ficvamos menos envergonhadQs de agir maL.
comea-vamos a nos esconder ... "22), mas no responsvel pela entrada
do mal no mundo e, se comea a se esconder, porque em ~rime~o lugar
a verdade se escondeu. Sua histria comeara de maneira diferente. A
infncia fora de inicio confiana e transparncia totais. A memria
ainda pode mergulh-lo novamente nela, e devolv-lo li~pidez de_ um
mu~do mais claro; mas ele no pode fazer com que ela nao tenha sido
perdida e que tudo no esteja obscurecido:
No vemos a alma de outrem, porque ela se esconde, nem a nossa,
porque de modo algum temos espelho intelectual.23
preciso viver na opacidade.24
O TEMPO DIVIDIDO E O MITO DA TRANSPARNCIA
Esse momento de crise - em que desce o "vu" da separao, em que 0
mundo se empana, em que as conscincias se tomam opacas ~mas para as
outras, em que a desconfiana toma para se~p~e- a amiZade impossvel
-, esse momento tem sua data em uma histona: marca_ o comeo de uma
perturbao na felicidade infantil ~e J~an-Jacques. Entao comea uma
nova poca, uma outra era da con~cte~cta. E essa no~~ e~a se define
por uma descoberta essencial: pela pnmeua vez a consciencia tem um
passado. Mas, ao enriquecer-se com essa -~es~oberta: ela d:scobre
tambm uma pobreza, uma falta essencial. Com efeito, a dime~o
tem-poral que se cava atrs do instante presente tomou~~e ~ercephvel
pelo prprio fato de que se esquiva e se recusa. A consciencia se
volta para um mundo anterior, do qual percebe simultaneamente que
ele lhe ~~rtenceu e que est para sempre perdido. No momento em ~~e
a fehc~d~de infantil lhe escapa, ela reconhece o valor infinito
dessa fehc1d~de pro~btda. Ento no resta mais do que construir
poeticamente o mtto da epoca rmda: outrora, a~tes que o vu se
houvesse interposto entre ns e o mundo, havia "deuses que liam em
nossos coraes", e nada alterava a transpa-
22
~------------------------rncia e a evidncia das almas.
Permanecamos com a verdade. Na bio-grafia pessoal assim como na
histria da humanidade, esse tempo est situado mais prximo do
nascimento, na vizinhana da origem. Rousseau foi um dos primeiros
escritores (seria preciso dizer poetas) a retomar 0 mito platnico
do exlio e do retorno para orient-lo em. direo ao estado de
infncia, e no mais a uma ptria celeste.
Quando se trata de evocar o tempo d~ transparncia, o primeiro
Discurso desenvolve imagens singularmente anlogas s que se
encon-tram no relato das Confisses. Como no episdio de Bossey, ele
fala da
presena prxima dos "deuses"; um tempo em que testemunhas divinas
perinanecem entre os homens_.eJem em seus coraes; um mundo em que
as conscincias-humanas se reconhecem por um nico olhar:
uma bela costa, adornada apenas pelas mos da natureza, para a
qual se voltam incessantemente os olhos, e da qual se sente
afastar-se a contragosto. Quando os homens inocentes e virtuosos
amavam ter os deuses como testemunhas de suas aes, moravam juntos
sob as mesmas cabanas; mas logo tomando-se maus, cansaram-se desses
incmodos espectadres ... 25
Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado
nossas paixes a falar uma linguagem afetada, nossos costumes eram
rr,ti, os, mas naturais; e a diferena dos procedimentos anunciava,
ao primeiro olhar, a do carter. A natureza humana, no fundo, no era
melhor; mas os homens encontravam sua segurana na facilidade de se
penetrar reciprocamente. 26
Previamente a toda teoria e a toda hiptese sobre o estado de
natureza, h a intuio (ou a imaginao) de uma poca comparvel ao que
foi a infncia antes da experincia da acusao injustificada. A
humanidade s est ento ocupada em viver tranqilamente sua
felicidade. Um infalvel equilbrio ajusta o ser e o parecer. Os
homens se mostram e so vistos tais como so. As aparncias externas
no so obstculos, mas espelhos fiis em que as conscincias se
encontram e se harmonizam.
A nostalgia se volta para uma "vida anterior". Mas se ela nos
afasta do mundo "contemporneo", no nos faz abandonar o mundo humano
nem a paisagem terrestre; no horizonte da felicidade anterior, h
es.a mesma natureza e essa mesma vegetao que nos cercam hoje; h .
"'ssa floresta que mutilamos, mas da qual restam ainda extenses
intactas por onde posso enveredar ... Sem que seja necessrio
invocar a interveno sobrenatural de um demnio tentador e de uma Eva
tentada, a origem de nossa decadncia explicvel por razes bem
humanas. Porque.o homem perfectvel, no cessou de acrescentar suas
invenes aos dons. da natureza. E desde ento a histria universal,
embaraada pelo peso continuamente crescente de nossos artifcios e
de nosso or-gulho, adquire O andamento de U.llla queda acelerada na
corrupo: abri-mos os olhos com horror para um mundo de mscaras e de
iluses
13
-
) mortais, e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que
ele prprio seja poupado pela doena universal.
O drama da queda no antecede, portanto, a existncia terrestre;
Rousseau transporta o mito religioso para a prpria histria;
divide-a em duas eras: uma, tempo estvel da inocncia, reino
tranq::c ::i pura natureza; a outra, histria em devir, atividade
culpada, nega9iio da na-tureza pelo homem.
Ora, se a queda nossa obra, se um acidente da histria hu,mana,
preciso admitir que o homem no est naturalmente condenao a viver na
desconfiana, na opacidade e nos vcios que as escoltam. Estes so a
obra do homem, ou da sociedade. Ento no h nada a que nos impea de
refazer ou de desfazer a histria, tendo em vista redescobrir a
transparncia perdida. Nenhuma proibio sobrenatural a isso se ope. A
essncia do" homem no est comprometida, mas apenas sua situao
histrica. "Talvez quisesses tu poder retroceder?""27 A pergunta
perma-nece suspensa, mas em todo caso no h espada flamejante que
nos impea o acesso do paraso perdido. Para alguns (em distantes
costas) que dele no saram, talvez ainda seja tempo de "deter-se".28
E mesmo que, por uma fatalidade puramente humana, o mal seja
irreversvel, n.esmo que nos seja preciso admitir que um "povo
vicioso no retoma jamais virtude", a histria nos prope uma tarefa
de resistncia e de recusa. O mnimo que poderamos fazer, se no
podemos "tornar bons aqueles que no o so mais"", "conservar assim
aqueles que tm a felicida.:'.
-
dades. Dando especulao o nome de observao, esperam estar isentos
de qualquer outra prova.
De fato, medida que Rousseau desenvolve sua fico "histrica",
esta perde seu carter de hiptese: uma espcie de confiana e de
em-briaguez vem abolir toda prudncia intelectual: a descrio desse
estado primeiro, muito prximo ainda da animalidade, toma~se a
evocao en-cantada de um "lugar onde viver". Uma nostalgia elegaca
se comove idia dessa vida errante e "s", com seu equilbrio
sensitivo, com sua justa suficincia. Imagem por demais imperiosa,
por demais profunda-mente satisfatria para no corresponder, no
esprito de Rousseau, estrita verdade histrica. Uma certeza ganha
corpo, que de essncia potica, mas que se engana sobre sua natureza:
quer falar a linguagem da histria, e tomar por testemunha a erudio
mais sria. A convico se impe irrefutavelmente: tais foram, sem
contestao, os primrdios da humani-dade, tal foi a primeira
fisionomia do homem. Rousseau conta a si mesmo a histria objetiva
de uma Idade da transparncia para legitimar sua nostalgia. A
certeza de Rousseau a de algum que se lembra; ela
. alcanada no contato, e seus discpulos j no vero nele o autor
de uma "histria hipottica", mas o vidente (Seher, dir Hlderlin) que
detm a memria de um passado muito antigo, de um tempo mais belo. Na
ode ittacabada intitulada Rousseau, Hlderlin escreve:
auch di r, auch dir Erfreuet dieferne Son11e dein Haupt,
Und Strahlen aus der schnem Zeit. Es Haben die Boten dein Herz
gefunden.31
[para ti tambm, para ti tambm O distante sol ilumina tua fronte
com sua alegria, E os raios vindos de uma poca mais bela. Eles, os
mensageiros, encontraram teu corao.]
Hlderlin aqui faz de Rousseau um desses "intrpretes" a quem
concedido .ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de um passado
desaparecido.
O DEUS GLAUCO
Pode-se dizer ainda que a transparncia original desapareceu?
Re-descoberta na memria, no ela ento retomada na transparncia
prpria da memria e, por isso mesmo, salva? Desertou-nos
inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhana? Rousseau hesita
entre duas respostas contraditrias. Em dado momento, o mito bifurca
em duas verses. A
26
r !
primeira afinna que a alma humana degenerou, que se desfigurou,
que sofreu- uma alterao quase total, para jamais reencontrar sua
beleza primeira. A segunda verso, em lugar de uma deformao, evoca
uma espci de encobrimento: a natureza primitiva persiste, mas
oculta, cer-cada de vus superpostos, sepultada sob os artifcios e,
no entanto, sempre intacllL Verso pessimista e verso otimista do
mito da origem. Rousseau sustenta ambas, alternadamente, e pqr
vezes mesmo simultaneamente. Diz-nos que o homem destruiu de modo
irremedivel sua identidade natural, mas proclama tambm que a alma
original, sendo indestrutvel, permanece para sempre idntica a si
mesma ;b as manifestaes externas que a mascaram. .
Rousseau . r~tqma por sua conta o mito platnico da esttua de
Glauco:
Semelhante esttua de Glauco que o tempo, o mar e as tempestades
haviam desfigurado tanto que se parecia menos com um deus do que c
m um animal feroz, a alma humana alterada no seio da sociedade por
mil causas continua-mente renascentes, pela aquisio de uma multido
de conhecimentos e de eiros, pelas mudanas ocorridas na constituio
dos corpos, e p~lo choque contnuo das paixes, por assim dizer mudou
de aparncia a ponto de ser quase irreconhec(velY Mas h aqui um por
assim dizer e um quase que devolvem todas
as esperanas. A imagem da esttua de Glauco, no contexto de
Rousseau, conserva algo de enigmtico. Seu rosto foi corrodo e
mutilado pelo tempo, perdeu para sempre a forma que tinha ao sair
das mos do escultor? Ou ento foi ele recoberto por uma crosta de
sal e de algas, sob a qual a face divina conserva, sem nenhuma
perda de substncia, seu modelo original? Ou, ainda, a fisionomia
original no mais que uma fico destinada a servir de norma ideal
para quem quer interpretar o estado atual da humanidade?
No uma empresa leve deslindar o que h de originrio e de
artificial na ~atureza atual do homem, e conhecer bem um estado que
no existe mais, que provavelmente no existir jamais, e sobre o
qual, entretanto, neces-srioter noes justas para bem avaliar nosso
estatfo presente. 33
/ v
Permanecer o que se era; deixar-se alterar pela mudana: tocamos
aqui em categorias que para Rousseau so o equivalente das
categorias teolgicas da perdio e da salvao. Rousseau no cr no
inferno mas, em compensao, acredita que a perda da semelhana uma
infelicidade essencial, enquanto que permanecer semelhante a si
mesmo uma maneira de salvar sua vida, ou ao menos uma promessa de
salvao O tempo histrico, que para Rousseau no exclui a idia do
desenvolvimento orgnico, permanece carregado de culpabilidade; o
movimento da histna
27
-
um obscurecimento, mais responsvel por uma deformao do que por
um progresso qualittivo.Rousseau apreende a mudana como uma
corrupo:3~ no curso do tempo, o homem se desfigura, se deprava. No
apenas sua apa~ncia, mas sua prpria essncia que se toma
irreconhe-c{vel. Essa verso sever (e pot assim dizer calvinista) do
mito da origem, Rousseau a prope em diversos momentos de sua obra.
Descobre-se, na origem dessa idia, uma angstia muito real, avivada
pelo sentimento do irreparvel. Rousseau muitas vezes afirmou que o
mal era sem retomo, que uma vez transpost? um certo limiar fatal, a
alma estava perdida e no tinha outro recurso seno aceitar sua
perda. Um "natural sufocado", nos diz ele, no volta jamais, e
Mperde-se ento ao mesmo tempo o que se destruiu e o que se fez"
.3'
Desafortunados! o que nos tomamos ns? Como deixamos de ser o que
fomos?36
Deformao em que, parece, mais nada subsiste da forma original.
Ele prprio sentiu-se atingido e ameaado:
Os gostos mais vis, a mais baixa molecagem sucederam-se s minhas
am v eis di verses, sem delas me deixar mesmo a menor idia. preciso
que, a despeito da educao mais honesta, eu tivesse uma grande
inclinao a oiegenerar; pois isso se deu muito rapidamente, sem a
menor dificuldade, e jamais Csar to precoce tomou-se to prontamente
Laridon.37 A essa passagem, que segue de perto, o episdio de
Bossey, pode-se acres~entar um texto do final da vida de Rousseau,
testemunho tanto mais significativo quanto data de uma poca em que
este no cessa de afirmar sua permanente fidelidade a si mesmo:
Talvez sem me dar conta eu mesmo tenha mudado mais do que seria
preciso. Que natural resistiria sem se alterar a uma situao
semelhante minha?38
Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa. rois
pre-cisamente, no momento em que tudo muda para ele, no mcirr:ento
em que acredita viver em um sonho, Rousseau se ope com todas as
suas foras angstia da alterao interior, e luta pela salvaguarda de
sua identidade. Alguma coisa mudou;-~as sua alma permaneceu a
mesma. Ele repele para o exterior a responsabilidade da alterao.
Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente, e
que, eles prprios irreco-nhecveis, desfiguram sua imagem e suas
obras. Quanto a ele mesmo, permaneceu o que era. Seus sentimentos
mudaram porque as realidades externas no so mais as mesmas:
Mas a.S coisas mudaram muito de figura ... desde que minhas
infelicidades comearam. Vivi desde ento em uma gerao nova que'ri"se
parecia de modo nenhum com a primeira, c meus prprios sentimentos
pelos outros
28
i
!
sofreram mudana~ que encontrei nos deles. A mesmas pessoas que
vi sucessivamente nessas duas geraes to diferentes assimilaram-se,
por assim dizer, a urna e outra.39
[ ... ] Eu, o mesmo homem que era, o mesmo que sou ainda.
Sob a mscara que os outros impem de fora sua. fisionomia,
Jean-Jacques no deixou de ser Jean-Jacques. No momento em que est
mais sombriamente obsedado pela perseguio, replica contando a si
mesmo a verso otimista do mito da origem: nada foi perdido, o tempo
no alterou o essencial, s corroeu na superfcie, o mal vem de fora
mas permanece fora. O rosto de Glauco permaneceu intacto sob a
espuma que o desfigura. Jean-Jacques aplic~ ento a si mesmo (e s a
ele) uma idia que formulara anteriormente "respeito do homem em
geral, e que opunha noilo da natureza perdida e da natureza oculta,
de uma natureza que se pode mascarar, mas que jamais ser destruda.
Demasiadamente po-derosa e talvez demasiadamente divina para que
possamos transform-la ou suprimi-la, ela elude nossos
empreendimentos profanadores e se re-fugia nas profUndezas, onde
est apenas dissimulada sob invlucros exteriores. Est esquecida, mas
no realmente perdida, e se a, memria nos faz entrev-la no fundo do
passado porque estamos j prximos de libert-la de seus vus e de
redescobri-la presente e viva em ns mesmos.
Os males da alma [ ... ), alteraes externn.s e passageiras de um
ser imortal e simples, apagam-se insensivelmente e deixam-no em
suafonna origilUll que nada poderia mudar.41
Ento Rousseau invoca com confiana uma "natureza que nada
destri", toma-se o poeta da permanncia desvelada. Descobre em si
mesmo a proximidade da transparncia original; e esse Mhomem da
na-tureza" que ele buscara na profundeza das eras, agora
reencontra-lhe os "traos originais" na profundeza do eu. Aquele que
sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a
fisionomia do deus sub-merso, liberta da Mferrugem" que a
mascarava:
De onde o pintor e o apologista da natureza hoje to desfigurada
e to caluniada pode haver tirado seu modelo, se no de seu prprio
corao? Descreveu-a como ele prprio se sentia. Os preconceitos aos
quais no estava subjugado, as paixes factcias de que no era presa
no ofuscavam de modo nenhum aos seus olhos, como aos dos outros,
esses primeiros traos to geralmente esquecidos ou ignorados. Esses
tra,os to novos p~a ns e to verdadeiros, uma vez traados,
encontravam ainda no fundo dos coraes a 0 atestao de sua justeza,
mas jamais se teriam mostrado novamente por si mesmos ~ .!J
historiador da natureza no houvesse comeado por retirar a ferrugem
que os ocultava. S uma vida retirada e solitria, um gosto vivo pelo
devaneio e pela contemplao, o hbito de recolher-se em si e de a
29
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buscar na calma das paixes esses primeiros traos desaparecidos
na multi-do podiam-no fazer redescobri-los. Em uma palavra, era
preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos
mostrar, assim, o homem primitivo ... 42
O conhecimento de si equivale a uma reminiscncia, mas no de
maneira nenhuma por um esforo de memria que Rousseau reencontra
esses "primeiros traos", que pertencem, contudo, a um mundo
anterior. Para descobrir o homem da natureza e para tomar-se seu
historiador, Rousseau no teve de remontar ao comeo dos tempos:
bastou-lhe pintar a si mesmo e reportar-se sua prpria intimidade,
sua prpria natureza, em um movimento a uma s vez passivo e ativo,
buscando-se a si mesmo, abandonando-se ao devaneio. O recurso
interioridade atinge a mesma realidade, decifra as mesmas normas
absolutas que a explorao do passado mais remoto. Assim, o que era
primeiro na ordem dos tempos histricos se redescobre como o que
mais profundo na experincia atual de Jean-Jacques. A distncia
histrica no mais que distncia interior, e _essa distncia logo
transposta, para aquele que sabe abandonar-se pl,enamente ao
sentimento que se desperta nele. Doravante a natureza (como a
presena de Deus para santo Agostinho):3 deixando de ser o que h de
mais longnquo atrs de ns, oferece-se como o que mais central em ns.
Como se v, a norma j no transcendente, imanente ao eu. Basta ser
sincero, ser eu mesmo, e ento o homem da natureza no mais o
distante arqutipo ao qual me refiro, ele coincide com a minha
prpria presena, com a minha prpria existncia. A transparncia antiga
resultava da presena ingnua dos homens soh o olhar dos deuses; a
nova transparncia uma relao tntenor ao eu, uma relaao C(l_sigo
mesmo; realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo, que permite
a Jean-Jacques pintar-se tal como . Uma imagem pode ento surgir,
que equivale (Rousseau nos garante isso) histria autntica da espcie
inteira
. e que ressuscita o passado perdido para revel-lo como o
presente eterno da natureza. Os homens a redescobrem a certeza de
uma semelhana comum. ("Cada homem carrega a forma inteira da humana
condio", dizia Montaigne.) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a
si mesmo, os homens se reconhecero por sua vez. Atrs de suas falsas
verdades, reencontram uma presena esquecida, uma forma que
permanecia intacta sob os vus; ei-los libertos do esquecimento
...
Pode-se ento recobrar a natureza primeira do homem sem ter de
remontar s origens reais, e sem se aventurar nas reconstrues
histricas. Rousseau se explica sobre isso de uma maneira bastante
clara no segundo
~iscurso, onde o vemos renunciar bem facilmente a toda assero
sobre as "verdadeiras origens", para se reservar o direito de
esclarecer, por via de hiptese, a natureza das coisas:
30
0
No se devem tomar as investigaes nas quais se pode entrar sobre
esse assu~t~ po~ ver~des histricas, mas apenas por raciocnios
hipotticos e condJcJonaJs, maJs aptos a esclarecer a natureza das
coisas do que a mostrar a verdadeira origem ... 44
Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da
histria humana? Rousseau hesita. De fato, se no pode dispensar
a
.noo de uma natureza humana essencial, tambm no pode renunciar
idia de um devir histrico, que lhe permita dar uma explicao
plausvel da alterao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas
bem-aventu-radas origens. Rousseau desejaria reservar-se
conjuntamente a possibili-dade de acusar a perverso pela qual_~-
s.ociedade responsvel e conservar o
-
bens materiais. O mal exterior e a paixo pelo exterior: se o
homem se entrega inteiro seduo dos bens externos, ser inteiramente
subme-tido ao imprio do mal. Mas recolher-se em si ser para ele, em
qualquer tempo, o recurso da salvao. Rousseau no se contenta,
portanto, em reprovar a exterioridade, como quase todos os
moralistas haviam feito antes dele: incrimina-a na prpria definio
do mal. Essa condenao no passa da contrapartida de wna justificao
que pretende salvar - de uma vez por todas - a essncia interna do
homem. Repelido para a periferia do ser, rechaado para o mundo da
relao, o mal no ter o mesmo estatuto ontolgico que a "bondade
natural" do homem. O mal vu e velamento, mscara, tem acordo com o
factcio, e no existiria se o homem 1o tivesse a perigosa liberdade
de negar, pelo artifcio, o dado natural. entre as mos do homem, e
no em seu corao, que tudo degenera. Suas mos trabalham, mudam a
natureza, fazem a histria, ordenam o mundo exterior e produzem, com
o tempo, a diferena entre as poca:>, a luta entre os povos, a
desigualdade entre os "particulares".
Em uma mesma pgina (prefcio de Narciso), Rousseau protestar
contra "falsa filosofia" que sustenta que "os homens so por toda
parte os mesmos", mas que os vcios do mundo contemporneo "no
per-tencem tanto ao homem quanto ao homem malgovemado".47 Contradio
significativa. Rousseau, desse modo, afirma ao mesmo ten.1F)- .'l.
per-manncia de uma inocncia essencial e o movimento da hi.;tria,
que alterao, corrupo moral, degenerescncia poltica, e y_ue promove
o estado de conflito e a injustia entre os homens.48
Nas teorias do progresso que sero propostas mais tarde, intervir
uma hiptese bastante anloga, que visar conciliar o postulado da
per-manncia da natureza humana com a idia de uma mudana coletiva.
"O homem permanece o mesmo, a humanidade progride sempre", dir
Goethe. A validade do pessimismo histrico do segundo Discurso foi
contestada, e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe.
Entretanto, do ponto de vista filosfico, o problema idntico. Tanto
em um como no outro, preciso conciliar a estabilidade da natureza
humana e a mobilidade do desenvolvimento real da histria; preciso
explicar por que o homem (enquanto indivduo) possui o privilgio de
permanecer "o mesmo", ao passo que a humanidade (enquanto
coleti-vidade) est sujeita mudana.
Rousseau, contudo, no tem necessidade da histria a no ser para
lhe pedir a explica.o do mal. a idia do mal que d ao sistema sua
dimenso histrica. O devir o movimento pelo qual a humanidade se
toma culpada. O homem no naturalmente vicioso; tornou-se vi-cioso.
O retomo ao bem coincide, ento, com a revolta contra a histria, e,
em particular, contra a situao histrica atual. Se verdade que o
32
7d---~----'~- ---.
pensamento de Rousseau revolucionrio, preciso acrescentar de
ime-diato que ele o em nome de uma natureza humana eterna, e no em
nome de um progresso histrico. (Ser preciso interpretar a obra de
Rousseau para ver nela um fator decisivo no progresso poltico do
sculo xvm.) Como veremos, seu pensamento social, consciente da
necessidade de afrontar o mundo e "os homens tais como so", visa
sobretudo ins-taurar, ou restaurar, a soberania do imediato, isto ,
o reino de um valor sobre o qual a durao no tem poder.
33
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-
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2
CRTICA DA SOCIEDADE Rousseau situa-se, em seu sculo, entre os
escritores que_ co~te~tam
os valores e as estruturas da sociedade monrquica. Por mais
distmtos :" que tenham sido, a contestao cria entre esses autore~
uma sein:elhana
e lhes d um ar de fraternidade: cada um deles podera. s~r
considera~o, a algum ttulo, como um agente ou um anunciador da
prox1ma Rev~luao. Assim se explica a reconciliao pstuma de Ro~s~eau
e de_Voltatre, sua comum apoteose, sua promoo classe de divmdade
bifronte ou de dade tutelar. A gravura popular os imortalizar lado
a la~o, metamorfo-seados em gnios lampadforos, com UJ_U cande!ab~o
namao, propagando diante deles as luzes, e radiantes de bnlho
lucifenano~
Rousseau quer apreender o princpio do mal. Po~. em causa ~
so-ciedade, a ordem social em seu conjunto. O esforo cnhco, nele,
_n~o se dispersa e no se atribui como tarefa afrontar uma a uma as
mult!plas manifestaes do mal. Ele remonta a uma causa ge~al, qu~ o
dispensa de atacar isoladamente tal abuso particular, tal usurpaao,
tal Impostura. (De resto, ele por demais egocntrico para assumir o
papel de defensor dos oprimidos. Voltaire tem seu caso Calas, e dez
outros semelhantes. Rous-seau est sobrecarregado pelo caso
Rousseau.)
Rousseau faz a histria de seus pensamentos: observou uma
discor-dncia entre os atos e as palavras dos homens; essa difer~na
s_e ex~lica por uma outra diferena, a do ser e do parecer; mas e
preciso amda buscar-lhe a causa. Rousseau assim a formula:
Encontrei-a em nossa ordem social que, em todos os sentidos
contrria natureza que nada destri, tiraniza-a continuamente, e sem
cessar a faz exigir
34
seus direitos. Acompanhei essa contradio em suas conseqncias, e
vi que to-somente ela explicava todos os vcios dos homens e todos
os males da sociedade. 1
Nessa passagem, que resume muito firmemente a substn..:.a dos
dois Discursos, Rousseau define da maneira mais clara o objeto e o
alcance de sua crtica social: a contestao diz respeito sociedade
enquanto esta contrria natureza. Essa sociedade negadora da
natureza (da ordem natural) no suprimiu a natureza. Mantm com ela
um conflito permanente, de onde nascem os males e os vcios de que
sofrem os homens. A crtica de Rousseau esboa, portanto, uma "negao
da negao .. : acusa a civili-zao, cuja caracterstica fundamental
sua negatividade em relao natureza. A cultura . .estabeleida nega a
natureza - essa a afirmao pattica dos dois Discursos e do Emlio. As
"falsas luzes .. da civilizao, longe de iluminar o mundo humano,
velam a transparncia natural, separam os homens uns dos outros,
particularizam os interesses, destroem toda possibilidade de
confiana recproca e substituem a comunicao essencial das almas por
um comrcio factcio e desprovido de sinceridade; assim se
COJ!S'.ltui uma sociedade em que cada um se isola em seu
amor~prprio e
s.-~ protege atrs de uma aparncia mentirosa. Paradoxo singular
que, de um mundo em que a relao econmica entre os homens parece
mais estreita, faz efetivamente um mundo de opacidade, de mentira,
de hipocrisia:
Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laos da sociedade que
soJormados pela estima e pela benevolncia mtuas, e queixo-me de que
as cincias, as artes e todos os outros objetos de comrcio estreitem
os laos da sociedade pelo interesse pessoal. que, com efeito, no se
pode estreitar um desses laos sem que o outro no se afrouxe na
mesma ptoporo. Portanto, nada h nisso de contradio.2
Rousseau confronta aqui, de maneira significativa, dois tipos de
relao, que se opem como a transparncia opacidade. A estima e a
benevolncia constituem um lao pelo qual os homens se renem
imediatamente: nada se interpe entre as conscincias, elas se;
;:,ferecem espontaneamente numa evidncia total. Em compensao, os
laos or-denados pelo interesse pessoal perderam esse carter
imediato. A relao j no se estabelece diretamente de conscincia a
conscincia: ela agora passa por coisas. A perverso que da resulta
provm no apenas do fato de que as coisas se interpem entre as
conscincias, mas tambm do fato de que os homens, deixando de
identificar seu interesse com sua existncia pessoal, identificam-no
doravante com os objetos inter-postos que acreditam indispensveis
sua felicidade. O eu do homem social no se reconhece mais em si
mesmo, mas se busca no exterior, entre as coisas; ;;eus meios se
tomam seu fim. O homem inteiro se
35
-
toma coisa, ou escravo das coisas... A crtica de Rousseau
denuncia essa alienao e prope como tarefa um retomo ao
imediato.
A sociedade civilizada, desenvolvendo sempre mais sua oposio
natureza, obscurece a relao imediata das conscincias: a perda da
transparncia original vai de par com a alienao do homem nas coisas
materiais. A anlise de Rousseau, sobre esse ponto, prefigura as de
Hegel e de Marx; tanto mais se lhes assemelha quanto se apia em uma
descrio do devi r histrico da humanidade. Com efeito, o Discurso
sobre a origem da desigualdade uma histria da civilizao como
progresso da negao do dado natural, progresso ao qual corresponde
uma degradao da ino-cncia criginal. A histria das tcnicas exposta
em estreita ligao com a histria moral da humanidade. Mas, diferena
do esforo filosfico do sculo XIX, e em contraste com as pretenses
positivistas de alguns de seus contemporneos, Rousseau procura
fundar um julgamento moral referente histria, de preferncia a
estabelecer um saber antropolgico. como moralista que ele escreve a
histria da moral. Da o aspecto ambguo de sua demonstrao. As fases
pelas quais o homem passou, o estado a que chegou devem em primeiro
lugar ser estabelecidos como fatos; uma vez estabelecidos, devem
ser aceitos: a humanidade sofreu transformaes inelutveis, com isso
chegou fatalmente :LEe~ estado presente, eis o que est fora de
contestao. Mas a validad~ do fato no nos permite prejulgar do
direito. Os fatos histricos no jt:~-~:licam nada, a histria no tem
legitimidade moral, e Rousseau no hesita em condenar, em nome dos
valores eternos, o mecanismo histrico do qual mostrou a
necessidade, e que estendeu s prprias funes morais.
Tendo retraado a progresso da cultura e tendo-a definido como
negao da natureza, Rousseau ope cultura uma recusa, uma nova negao,
que a conseqncia de um juzo moral e que se vale de um absoluto
tico. A indignao de Rousseau (ele prprio homem "natural") contra a
sociedade (criao histrica) a expresso pattica desse conflito. Ele
toma a palavra para dizer no antinatureza. A situao presente, com
seu luxo e sua misria, ao mesmo tempo historicamente motivada e
moralmente inaceitvel. Rousseau compreende a sociedade de seu
tempo, mas lhe ope uma reprovao escandalizada. O pensamento de
Kousseau no poder, portanto, deter-se a. Pois compreender um mundo
opaco no ainda redescobrir ou restabelecer .a transparncia. Longe
de equivaler para Rousseau a uma adeso intelectual, a compreenso s
estabelece "o fato" para opor-lhe imediatamente "o direito". Ele
protesta contra ,) mtodo de Grotius: sua "maneira de raciocinar de
estabelecer sempre o direito pelo fato'? Rousseau julga e condena,
em nome do direito, os fatos dos quais prova a necessidade
histrica. E como precisa, para realizar o ideal da transparncia, de
um mundo em que o fato coincide
36
com o direito, buscar esse mundo ora aqum da histria - nos
"antigos tempos" em que o progresso corruptor no existe ainda-, ora
alm, em um futuro abstrato em que a desordem atual seria superada
por uma ord~m mais perfeita.
A INOCNCIA ORIGINAL
Antes que as artes e as luzes se tenham propagado, o fato humano
no est suficientemente desenvolvido para opor-se a um direito ainda
no expresso: o homem primitivo "bm" porque no bastante ativo para
fazer o mal. um julgamento trospectivo do moralista que decide
dessa bondade. Quanto ao homem da natureza, vive "ingenuamente" em
um mundo amoral, ou pr-moral. A diferena do bem e do mal no existe
para a sua conscincia limitada. Ento, verdadeiramente no h acordo
entre o fato e o direito: seu conflito ainda no surgiu. No
horizonte limitado do estado de natureza, o hmem vive em um
equilbrio que no o ope ainda ao mundo, nem a ele prprio. Ele no
conhece nem o trabalho (qlle o opor natureza), nem a reflexo (que o
opor a si mesmo e aos seus semelhantes):
Seus desejos no ultrapassam de modo nenhum suas necessidades
fsicas ... Sua imaginao no lhe pinta nada; seu corao no lhe pede
nada. Suas mdicas necessidades se acham to facilmente sob sua mo, e
ele est to longe do grau de conhecimento preciso para desejar
adquirir outras maiores, que no pode ter previdncia, nem
curiosidade ... Sua alma, que nada agita, entrega-se apenas ao
sentimento de sua existncia atual.4
Nessa suficincia perfeita, o homem no tem necessidade de
lrans-formar o mundo para satisfazer suas necessidades. Est a uma
variante "animal" e "sensitiva" do ideal estico de autarquia. O
homem no sai de si mesmo, no sai do instante presente; em uma
palavra, vive no imediato. E se cada sensao nova para ele, essa
descontinuidade aparente somente uma maneira de viver a
continuidade do imediato. Nada se interpe entre seus "desejos
limitados" e seu objeto, a inter-cesso da linguagem pouco
necessria; a sensao se abre diretamente para o mundo, a ponto de o
homem mal saber distinguir-se daquilo que o cerca. O homem
experimenta ento um contato lmpido com as coisas, que ainda no
turvado pelo erro: os sentidos, limitados a si mesmos, no
contaminados pelo juzo e pela reflexo, no sofrem ne-nhuma distoro~
Do mesmo modo que Rousseau confere retrospecti-vamente a qualificao
moral da bondade situao pr-moral, atribui retrospectivamente um
valor de verdade experincia pr-reflexiva, que ele supe
perfeitamente passiva. A esse estado em que se supe que o homem
viva aqum da distino do verdadeiro e do falso, Rousseau
37
I;J
( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( ( (
-
concede o privilgio da posse JI)ediata da verdade. Como declara
o prprio Rousseau, esse bem um estado de infncia, e que uma criana
de hoje poderia ainda viver se no fosse "corrompida" precocemente.
Emlio est "inteiro em seu ser atual, mas gozando de uma plenitude
de vida que parece querer estender-se fora dele... Seus sentidos
ainda puros esto isentos de iluses".'
A maneira pela qual Rousseau fala da "verdade dos sentidos" (ho
diferente do que prope a filosofia de Condillac, para quem o erro s
comea. a partir do momento em que julgamos os dados sensveis:
No h erro, nem obscuridade, nem confuso naquilo que se passa em
ns, assim como na relao que disso fazemos com o exterior... Se o
erro
sobrevm, apenas na medida em que julgamos.6 A sensao sempre tem
razo, mas no sabe que tem razo.7
TRABALH~ REFLEX~ORGULHO
Mas, do mesmo modo que a criana, ao crescer, abandona o mundo da
sensao para entrar no "mundo moral", depois no mundo social, o
homem primitivo perde o paraso da pura sensibilidade, de uma
maneira progressiva e irreversvel. Nesse processo, Rousseau atribui
um papel capital luta contra os obstculos naturais. As modificaes
psicolgicas s ocorrero aps a utilizao das ferramentas.
Cronologicamente, so o trabalho e o fazer instrumental que precedem
o desenvolvimento do juzo e da reflexo.
Tal foi a condio do homem nascente; tal foi a vida de um animal
limitado, de inicio, s puras sensaes, e pouco se beneficiando dos
dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em arrancar-lhe
alguma coisa; mas logo se apresentaram dificuldades; foi preciso
aprender a venc-las ... As armas naturais que so os galhos de
rvores, e as pedras logo se encontraram sob sua mo. Ele aprendeu a
superar os obstculos da natureza, a combater, se necessrio, os
outros animais, a disputar sua subsistncia com os prprios homens,
ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte.
8
Novos obstculos obrigaro os homens a arranjar novas ferramentas,
menos "naturais" que os galhos e as pedras: assim, aumenta a
distncia entre a natureza e o homem, distncia criada pelo artifcio
a que este recorre para melhor dominar seu meio:
Anos estreis, invernos longos e rudes, veres ardentes que
consomem tudo exigiram deles uma nova indstria. Ao longo do mar e
dos rios eles inven-taram a linha e o anzol, e tomam-se pescadores
e ictifagos. Nas florestas fabricaram arcos e flechas ... 9
38
Dessa luta que ope ativamente o homem ao mundo resultar sua
evoluo psicolgica. A faculdade de comparar o tornr.r capaz de urna
reflexo rudimentar: ele saber perceber diferenas entre as coisas se
saber diferente dos animais, se ver em sua superioridade, e j s~rge
um vcio: o orgulho.
Essa utilizao reiterada dos diferentes seres para si mesmo, e de
uns pelos outro_s, deve naturalme~te ter engendrado no esprito do
homem as per-cepoes de certas relaoes. Essas relaes ... nele
produziram enfim alguma espcie de reflexo. _
As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento
aUf'>rntaram sua superioridade sobre os outros animais,
fazendo-o conhec-la ... Foi assim que o prim!li.r.o olhar que-ete
dirigiu a si mesmo nele produziu o primeiro movimento de
orgulho.IO
Rousseau encadeia desse modo toda uma sene de "momentos" que se
condicionam uns aos outros, e que o homem percorre em razo de sua
perfectibilidade. Ao obstculo natural se ope o trabiilho; este
'provoca o nascimento da reflexo, que produz "o primeiro
movimento de orgulho". .
Com a reflexo, termina o homem da natureza e comea "o homem do
homem". A queda nada mais que a intruso do orgulho; o equilbrio do
ser sensitivo est rompido; o homem perde o benefcio da coincidncia
inocente e espontnea consigo mesmo. Se a natureza "nos destinou a
ser srx:, quase ouso assegurar que o estado de reflexo um estado
contra a natureza, e que o homem que medita um animal
depra:vado".ll Ento vai comea_r a diviso ativa entre o eu e o
outro; o amor-prprio vem perverter o Inocente amor de si, os vcios
nascem, a sociedade se constitui. ~ enquanto a razo se aperfeioa, a
propriedade e a desigualdade se mtroduzem entre os homens, o meu e
o teu se separam sempre mais. A ruptura entre ser e parecer passa a
marcar o triunfo do "factcio" a distncia cada vez maior que nos
afasta no apenas da natureza exteri~r, mas de nossa natureza
interior.
Cada um comeou a olhar os outros e a querer ele prprio ser
olhado. 12 ~oi preciso, para sua vantagem, mostrar-se diversc Jo
que se era com
efeito. Sel(ee parecer tornaram-se duas coisas inteiraruente
diferentes e dessa distino saram o fausto imponente, a astcia
enganadora, e todos os vcios que so o seu cortejo. 13
O homem :::e aliena em sua aparncia, Rousseau apresenh
;:>parecer ao mesmo tempo como a conseqncia e como a causa das
transfor-maes econmicas. De fato, Rousseau liga profundamente o
problema ~ora~ e o. problema econmico. O homem social, cuja
existncia j nao e autonoma mas relativa, inventa sem cessar novos
desejos q11e
39
- no pode satisfazer por si mesmo. Precisa de riquezas e do
prestgio: quer possuir objetos e dominar conscincias. S acredita
ser ele mesmo quando os outros o "consideram" e o respeitam por sua
{_o~;tuna e sua aparncia Categoria, abstrata, de onde todas as
espcies de males con-cretos pv~~ro decorrer, o parecer explica a
uma s vez a diviso interna do homem civilizado, sua servido, e o
carter ilimitado de suas ne-cessidades. o estado mais afastado da
felicidade que o homem pri-mitivo experimentava ao abandonar-se ao
imediato. J para o homem do parecer, h apenas meios, e ele prprio
encontra-se reduzido a ser somente um meio. Nenhum de seus desejos
pode ser saciado imedia-tamente; deve passar pelo imaginrio e pelo
factcio; a opinio dos outros, o trabalho dos outros lhe so
indispensveis. Como os homens no procuram inais satisfazer suas
"verdadeiras necessidades", mas aque-las que sua vaidade criou,
estaro constantemente fora de ;;i , ,
-
( ( ( ( ( ( ( c I
( ' (
( ( '
( c ( ( (
( (
hiptese do contrato se situa no comeo da vida social, sada do
estado de natureza. No se trata a de destruir uma sociedade
imperfeita para estabelecer a liberdade igualitria. Rousse~u evita,
assim, o pro-blema prtico da passagem de uma sociedade ntecedente
sociedade perfeitamente justa. (Ele encarar mais seriamente esse
problema quando se tratar de dar conselhos aos poloneses.) De um s
golpe, sem passar por etapas intermedirias, ele nos faz ter acesso
deciso que funda o reino da vontade geral e da lei racional. Essa
deciso tem um carter inaugural, mas no revolucionrio. Embora
coloque nitidamente o pro-blema do legislador, Rousseau no situa
sua hiptese jurdica em uma fase determinada da histria concreta da
humanidade: no determina o gnero de ao que poder tomar possvel sua
realizao. O pacto social no se cumpre na linha de evoluo descrita
pelo segundo Discurso, mas em uma outra dimenso, puramente
normativa e situada fora do tempo histrico. Parte-se do comeo
legtimo, ex nihilo, sem se colocar a questo das condies da realizao
do ideal poltico. A histria assim recomeada tem incio racionalmente
pela alienao da vontade de todos
-nas mos de todos, em vez de pela afirmao possessiva: "isto
meu". Essa sociedade escaparia assim, de imediato, adversidade
histrica que, por um encadeamento necessrio e fatal, condenou a
humanidade real a decair e a corromper-se irreversivelmente. Ela
constitui o modelo ideal em nome do qual se toma possvel emitir
julgamento contra a sociedade corrompida.20
A SNTESE PELA EDUCAO
A interpretao de Engels une o Contrato ao segundo Discurso,
passando pela idia da revoluo (a "negao da negao"). Kant e mais
recentemente Cassirer tambm consideram o pensamento terico de
Rous-seau como um todo coerente. Nele encontram a mesma dialtica, o
mesmo ritmo temrio do pensamento. No entanto, para chegar
reconciliao dos termos opostos, eles no passam pela idia de
revoluo, mas atribuem uma importncia decisiva educao. O momento
final o mesmo: a reconciliao da natureza e da cultura em uma
sociedade que redescobre a natureza e supera as injustias da
civilizao. As duas interpretaes diferem essencialmente sobre o que
constitui a transio entre o segundo Discurso e o Contrato. No tendo
Rousseau explicitado essa transio, o exegeta deve constru-la, com a
ajuda dos indcios que pode encontrar, e dos quais nenhum decisivo.
Uma certa arbitrariedade inevitvel, j que preciso pensar o
pensamento de Rousseau para alm daquilo que ele afirmou. Engels
escolhe passar pelas duas ou trs ltimas pginas do
o' 42
segundo Discurso, em que Rousseau evoca o retorno da igualdade e
a ren;;Jta dos escravos. Kant e Cassirer escolhem intercalar o
Emlio e as teorias pedaggicas de Rousseau, para estabelecer o elo
necessrio entre as anlises do segundo Discurso e a construo
positiva do Contrato. Revoluo ou educao: esse o ponto capital sobre
o qual se opem essa leitura "marxista" e essa leitura "idealista"
de Rousseau, uma vez estabelecido o seu acordo sobre a necessidade
de uma interpretao global de seu pensamento terico.
Kant um dos primeiros a afirmar que o pensamento de Rousseau
segue um plano racional: aqueles que o acusam de contradizer-se no
o compreendem. Rousseau, segundo Kant,21 no apenas denunciou o
con-flito da cultura e da natureza, mas procurou-lhe a -duo.
Rousseau esforou-se emp~nsar as condies de Um progreS!tv da cultura
"que permitisse humanidade desenvolver suas disposies (Anlagen)
enquan-to espcie moral (sittliche Gattung ) sem desobedecer sua
determinao (zu ihrer Bestimmung gehorig), de modo a superar o
conflito que a ope a si mesma enquanto espcie natural (natrliche
Gattung)". Reencontra-mos a natureza no momento em que a arte e a
cultura atingem seu mais alto grau de perfeio: "A arte consumada
torna-se novamente natureza". O que Kant chama de arte a instituio
jurdica, a ordem livre e racional a que o homem decide conformar
sua existncia. A funo suprema da educao e do direito, ambos
fundados na liberdade humana, permitir que a natureza desabroche na
cultura. A partir desse momento (acrescen-tar Cassirer),22 os
homens redescobrem o imediato de que gozavam anteriormente em sua
existncia natural. 23 O que descobrem agora, porm, j no apenas o
imediato primitivo da sensao ou do sentimento, mas o imediato da
vontade autnoma e da conscincia racional. 0
Alis, desde o final do primeiro Discurso, Rousseau deixava
entre-ver a possibilidade de uma reconciJiao: se os homens, e
sobretudo os pr:;,t.;pes, o quisessem, a separao poderia ser
superada, uma verdadeira comunidade poderia restabelecer-se ... O
mal no reside essencialmente no saber e na arte (ou na tcnica), mas
na desintegrao da unidade social. Constata-se, nas circunstncias
atuais, que as artes e as cincias favorecem essa desintegrao e
aceleram-na. Entretanto, nada impede que sirvam a fins melhores.
Desse modo, o propsito de Rousseau no banir irreme-diavelmente as
artes e as cincias, mas restaurar a fatalidade social, recorrendo
ao imperativo da virtude, a nica capaz ck criar a coeso
necessria:
[ ... ] apenas ento que se ver o que podem a virtude, a cincia e
a autoridade animadas de uma nobre emulao e traba/h..; .do de
acordo com a felicidade do gnero humano. Mas enquanto o poder
estiver sozinho de -um lado, as luzes e a sabedori:~ sozinhas de um
u'utro, os sbios raramente
43
-
pensaro grandes coisas, os prncipes mais raramente as faro
belas, e os povos continuaro a ser vis, corrompidos e
infelizes.Z4
O que Rousseau deplora que o poder poltico e a cultura visem a
fins discordantes. Pois ele est pronto a absolver a cultura, com a
condio de que se torne parte integrante de uma totalidade
harmoniosa, e no incite mais os homens a buscar vantagens e
prazeres .separados. Portanto, ele no sonha de modo ne~um com a
extino da cincia; ao contrrio, aconselha conserv-la, mas suprimindo
o conflito.."!'-''~ ope atualmente "o poder" e "as luzes" ...
Rousseau apela aos Pli.ij
-
( (
jetividade, como impelido para a interioridade pela prpria
urgncia das questes que colocou em termos histricos e sociais. A
poca no est pronta para resolver esses problemas, e Jean-Jacques no
est de-sejoso de abandonar a si mesmo e de sair para o mundo da ao.
Se h alguma coisa a fazer, a tarefa no diz respeito ao mundo
exterior, mas ao eu.
Aps haver colocado os problemas na dimenso histrica, Rousseau
acaba por viv-los na dimenso da existncia individual. Essa obra que
comea como uma filosofia da histria termina em "experincia"
exis-tencial. Ela anuncia ao mesmo tempo Hegel e seu opositor
Kierkegaard. Duas vertentes do pensamento moderno: a marcha da razo
na histria, o trgico de uma busca da salvao individual.
O autor do segundo Discurso interroga-se: o que vou fazer de
minha vida? Parece-lhe que no se espera dele uma nova obra literria
em que resolveria as antteses que to violentamente confrontou. O
que se exige, pensa ele, que sua existncia se tome um exemplo, que
seus princpios se- tomem visveis em sua prpria vida. A ele' cabe em
primeiro lugar
-mostrar o que a natureza e essa unidade primitiva que a
civilizao ' compromete. A deciso diz respeito e engaja, a partir
da, a ele to-somente,
e no a coletividade humana de que to brilhantemente analisou a
evoluo. Nesse ponto, pode-se perguntar se toda a teoria histrica de
Rous-
.seau no uma construo destinada a justificar uma escolha
pessoal. Trata-se, para ele, de viver segundo seus princpios? Bem
ao contrrio, no forjou ele princpios e explicaes histricas com o
fim nico de desculpar e de legitimar sua estranha vida, sua
timidez, sua inpcia, seu humor desigual, essa Threse to rude com
quem viveu? O conflito que Jean-Jacques denuncia na histria tem
tambm todos os aspectos de um conflito pessoal. preciso constatar a
ambigidade, e no procurar li-vrar-se dela pela comodidade da
interpretao.
Rousseau est s. As personagens que encontra esto todas
masca-radas. "Todos colocam seu ser no parecer." 2 Medita
solitariamente sobre o destino coletivo dos homens. Contudo, sua
meditao no desinte-ressada, pois que lhe permitir pr na conta da
histria e da sociedade as faltas de sua vida pessoal. Ele
demonstrar que tem razo de ser s e singular. Sua preocupao
consistir menos em provar a verdade de seu sistema que a
legitimidade de sua atitude. Pouco a pouco, a apologia pessoal
substituir o pensamento especulativo ...
No momento em que culpa os vcios da-sociedade, ele no tem ningum
a seu lado e no qu-er ter nenhum aliado. Toma-se mais solitrio
~ medida que levanta um protesto mais geral. (Outros diro: ele
se quer
46
-.._---------------~----=.li:---==== r> '
solitrio, o que o obriga a levantar o mais geral dos protestos.)
Sua crtica, que atribui a culpa a um mal radical, no quer ter nada
em comum com a crtica que os "filsofos" dirigem, por seu lado,
contra as instituies abusivas. Pois a crtica dos filsofos ainda ,
aos olhos de Rousseau, uma expresso do mal social. Longe de ser sua
inimiga, o seu produto mais elaborado e mais envenenado; trabalha
ativamente pelo pior. No s os
. "filsofos" no constituem exceo vaidade e corrupo universais,
cacio tiram proveito desse mundo mau que tende sua prpria
destrui-o. Sua influncia no faz mais que agravar a separao das
conscincias e a fragmentao da unidade cvca. (Mais tarde, Rousseau
retomar a mesma idia sob uma forma paranica. Imaginar uma liga
perseguidora em que entraria~_a_o mesmo tempo os filsofos e os
poderes pblicos: os enciclopedistas e Choiseul so, portanto,
cmplices no mal. Ao invs de combater-se, ajudam-se mutuamente.)
Os filsofos fazem ainda parte do mundo que criticam. Rousseau
poder acus-los simultaneamente de estarem interessados na
conserva-o das instituies viciosas e de serem os destruidores dos
laos sociais verdadeiros. Parasitas de uma sociedade que se
des:'v,rega, 'lanam o ridculo sobre as noes que deveriam unir os
homens no interior de uma ordem mais justa ... Eles sorriem
desdenhosamente a essas velhas palavras de ptria e de religio." 3
Mas isso, neles, no passa de um "furor de distinguir-se", um meio
de sucesso social em uma sociedade o!e deixou, ela mesma, de ser
uma ptria, e que zomba de sua prpria rehgio. Nos sales, onde
triunfam a aparncia e a opinio, pode-se dizer tudo, mas no se cr em
nada do que se diz: os protestos dos filsofos fazem parte da
tagarelice social, discursos inautnticos sobre um mundo
inautntico.
Para no ser o pior desses discur.sadores, Rousseau se separa e
procura ser exceo. Se sua recusa havia visado arbitrariedade das
instituies, injustia do poder absoluto, ao absurdo de certos usos e
abusos, nada ainda o afastava decisivamente dos enciclopedistas,
nada fazia de sua solido o complemento necessrio de seu pensamento:
ele teria sido solitrio apenas por humor, por doena, por
narcisismo, e sua solido, simples detalhe biogrfico, s nos teria
interessado moderadamente. Entre a solido de Rousseau e seu
pensamento, nenhum lao profundo teria intervido.
Mas a revolta de Rousseau, dirigida contra a prpria essncia da
so,:
- A veemncia e o absoluto de sua crtica arrastam Rousseau solido.
(Outros diro: querendo estar s, ele alega como desculpa o "':-1
radical que perverte a vida em comum.) Se deseja ser levado a srio.
v1u precisar ser muito mais que um escritor de oposio: ele se v
obrig
-
retomada de si, os atos singulares pelos quais Rous!?eau retoma
posse de sua liberdade so destinados a fazer ver Jean-Jacques (ao
mesmo tempo que fazem ver a verdade que ele escolheu). Assim, a opo
pela solido no se consuma inteiramente: por seu exibicionismo,
Rousseau permanece preso armadilha da sociedade. Ele prprio o sabe,
sofre por isso e no cessa de punir-se por isso. Mas para fornecer a
seu pensamento terico a prova da existncia vivida, ele no pode
dispensar testemunhas: sua maneira de viver dever ser publicada
como o foram de incio suas idias. Sua reforma pessoal, pela qual
pretende libertar-se da servido da opinio, s alcanar completamente
seu objetivo com a condio de comover a opinio: "Minha resoluo
provocou rumor ... ".7 E seus inimigos diro que construiu seu
sistema apenas para valorizar a singularidade de sua pessoa.
Admitamos essa dupla perspectiva: Rousseau conforma sua vida s
exigncias de seu pensamento terico; mas, inversamente, adapta seu
sistema s exigncias de sua "sensibilidade", isto , sua necessidade
de satisfaes afetivas. Na"atitude singular" que adota h um
movimento de orgulho e um comportamento destinado a atrair os
olhares; quanto a isso a crtica no deixou de atorment-lo. Mas
Rousseau o primeiro a reconhec-lo; a mais severa critica, e a mais
irnica, vem do prprio
Rousseau. por ele mesmo que aprendemos a desconfiar dele. O que
aparece como um herico sacrifcio exigncia da virtude apenas ,
algumas vezes, um sofisma do corao: a acusao se encontra no prprio
texto das Confisses. 8 Rousseau o primeiro a levantar a acusao da
m-f. verdade que ele incrimina apenas sua razo, com a qual deixa de
ser solidrio. Ao empregar os argumentos da "fria razo",
aconteceu-lhe defender causas cujo objetivo ltimo no era servir uma
verdade racional, mas satisfazer um interesse vital bastante
obscuro ou uma "libido" pato-lgica.
No discurso apaixonado de Rousseau, em seus antemas racionais
contra a reflexo, percebe-se uma embriaguez que altera o r~to
exerccio da razo, mas deve-se a reconhecer tambm o desejo de fazer
penetrar as zonas obscuras da experincia vivida na luz de uma razo
realmente soberana. A confuso, em Rousseau, do pathos e do logos
pode receber uma dupla interpretao: ali onde parece que o pathos
vem perverter o lagos, preciso ver tambm o esforo Uamais
completamente coroado de xito) de uma conscincia que quer
desprender-se de seu pathos para ter acesso serenidade do logos -
"na calma das paixes" .9 O prprio movimento pelo qual Rousseau se
desprende da paixo ainda um sobressalto da paixo: ele por demais
constantemente atormentado pelo sentimento da perturbao interior
para no ter o desejo de alcanar
50
a clareza racional. Mas a raz"o que ele reivindica no a razo dos
argumentadores, fonte de certeza intelectual: deseja esclarecer
suas idias somente para melhor encontrar a justifi-.cao de sua
existncia. Uma vida cuja singularidade permanecesse i~justificvel
est condenada desrazo absoluta: insignificncia. O que importa
escapar a esse contra-senso; em compensao, Jean-Jacques desdenha de
estabelecer-se na razo comum, tal como os outros a preconizam. Pois
no quer sa-crificar sua solido, mas salv-la, e verdade racional -
ao mesmo tempo ntima, universal e desconhecida dos outros homens -
que atribui o poder santificador. 10
No se sublinhou suficientemente, no relato da "reforma pessoal",
a cu1iosa mistura de orgulho e de ironia. Ele afirma altivamente a
grandeza de seu empreendimento, e dele j debocha como de um logro.
um ato inaudito de coragem, e um acesso de febre e de "tolo
orgulho". Rous-seau autoriza assim uma dupla interpretao de sua
"reforma". Num sentido, o desafio solitrio que ele. lana sociedade
pode ser interpretado como a ideologia de um tmido e de um doente
que espera tirar o melhor partido possvel de sua inadaptao, a ponto
de fazer dela seu mais alto ttulo de glria. No pode viver entre os
outros? Pois bem, que seu afastamento e seu ar embaraado tenham ao
menos a significao de uma converso apaixonada virtude! J que ele se
sente pouco vontade nos sales, que atraia ento a ateno batendo a
porta! "V;vestes muito na opinio dos outros" ,1 1 lhe escrever
Mirabeau. Mas em um outro sentido tratou-se de transformar uma
carreira de escritor num destino herico; destacar a vida fora da
aventura literria, ajustar severamente a conduta real ao ideal de
virtude que de incio se impusera por seu atrati' ; livresco,
e~ enfim, fortalecido por essa verdade conquistada pela
existncia, mani-fes~ar um pensamento escrito cujo tema paradoxal
ser a recusa da literatura ... A obra que eu empreendia s podia
executar-se em um reco-lhimento absoluto." 12 Pela primeira vez, o
problema da superao "exis-tencial" da literatura se coloca fora das
direes oferecidas pela espiritualidade religiosa tradicional: a
renncia s vaidades do mundo a converso a "um outro mundo moral" 13
no encaminham Rousseau p;ra a Igreja, mas para a Floresta e para a
vida errante. ~ Mas, enquanto aqueles que se refugiam na Igreja
podem manter o silncio (pois a Igreja fala ento em seu nome, para
justificar seu silncio, pela boca dos santos e dos doutores),
Rousseau, que s tem justificao nele mesmo, jamais poder penetrar no
silncio. Jamais ter terminado de retomar a palavra, pois jamais
ter. terminado de explicar o verdadeiro se1 ;,.v de sua solido. Ele
sabe, com efeito, que ela pode tambm ser
51
-
o
interpretada como a solido do mau e do orgulhoso. "S o mau est
s", 14 declara Diderot. Rousseau, que se sentiu atingido, lhe
responder pelo resto de sua vida, pois o equvoco no lhe e
tolervel.
A luta no teria sido to trgica para Rousseau se para ele se
tratasse apenas de singularizar-se e de manifestar sua diferena.
Ele no deve somente (vestido de armnio) desempenhar o papel do
outro, mas, diante de urna sociedade m, manifestar o que
radicalmente diferente do mal, isto , fazer aparecer aos olhos dos
homens o bem que eles ignoram. A tenso trgica, em Rousseau, no
resulta apenas da prpria separao e ruptura, mas da necessidade de
fazer coincidir a todo momento sua solido com o bem e a verd-ade
essenciais, tais como os reconhece em seu foro ntimo, mas tais
tambm que possam ser reconhecveis por todos. No estamos ento
simplesmente em presena da reivindicao irracional de uma conscincia
que se pretendesse afirmar opondo-se; a subjetividade de Rous. ::au
exige privilgios, no apenas para ser plenamente reconhe-cida pelos
outros (o que j muito quando se um filho de arteso genebrino
perdido entre os marechais da Frana e os arrematantes de impostos),
no para impor ao mundo o espetculo de uma singularidade irredutvel,
mas para se fazer aceitar como a intrprete legtima de urna verdade
que os outros deixaram cair no esquechnento. Rousseau quer dar sua
palavra solitria o sentido de um desafio negador e de uma profecia.
Ao opor-se aos outros, Rousseau no busca unicamente impor seu eu
singular, mas faz o esforo herico de coincidir com os valores
universais: liberdade, virtude, verdade, natureza.
Rousseau se estabelece na solido a fim de poder hia.r
legitima-mente em nome do universal. Abandona a grande cidade,
rompe com seus "pretensos amigos". Busca ele refgio no "mistrio" ou
na ''pro-fundidade espiritual" da existncia subjetiva? De maneira
nenhuma: no se deve atribuir a Rousseau um romantismo que ele no
faz mais que prefigurar muito remotamente. A intuio subjetiva, se
no tem de modo nenhum o carter intelectual que tinha em Descartes e
em Malebranche, a ele se assemelha, entretanto, pelo fato de que
pretende desembocar no universal, e de que esse universal, alm
disso, no essencialmente irracional ou supra-racional. Recolher-se
em si mesmo com certeza aproximar-se de uma maior clareza racional
e de uma evidncia ime-diatamente sensvel, por oposio ao
contra-senso que reina na socie-dade. As incertezas de Rousseau
sobre o valor da razo se esclarecem se se pe~cebe que a razo no lhe
parece perigosa salvo na medida em y_ue ela pretende apreender a
verdade de uma maneira no imediata, isto , por meio de argumentos
sucessivos, ppr uma seq,ncia ou uma "cadeia" de raciocnios. Quando
Rousseau condena a razo, incrimina sobretudo a razo discursiva.
Volta a ser racionalista logo que pode
52
remeter-se a uma razo intuitiva, capaz de iluminao imediata. A
es-colha essencial no se d entre a razo e o sentimento, mas entre 0
caminho mediato e o acesso imediato. Rousseau opta pelo imediato e
no pelo irracional. A certeza imediata pode pertencer
alternadamente ao sentimento, sensao ou razo. Com a condio de que o
imediato seja salvaguardado, Rousseau no estabelece primazia entre
os "ime-diatos sensveis" e os "imediatos racionais". 15 Ao
contrrio, razo e sentimento revelam-se desde ento perfeitamente
conciliveis. Rousseau acusa apenas a razo raciocinante o que Kant
chamar de entendimento), que inspira "os insensatos juzos dos
homens". 16 Essa razo instrumental aprisiona os homens na
subjetivid_ade turva da opinio e da iluso. Rous-seau denunciar'~~-u
absurdo;-em comparao a uma razo mais profunda, as falsas clarezas
do raciocnio comum so um contra-senso.
Por um paradoxo que nele no se deixou de reprovar, Rousseau se
faz um estrangeiro para protestar contra o reino da alienao, que
toma os homens estranhos uns aos outros. A deciso pela qual abraa a
causa da verdade ausente o leva a reivindicar o destino do exilado
e o movimento pelo qual ele se toma o defensor da
transparncia.perdid~ (ou ignorada) tambm o movimento pelo qual se
toma um errante. Exilado, errante, mas em relao ao mundo da
alienao, e para en-vergonh-lo. Na realidade, ele pretende ter
"fixado" suas -idias, ter "estabilizado seu interior pelo resto de
sua vida". Estabeleceu sua morada na verdade, e por isso que se vai
tomar um sem-morada um homem que foge de asilo em asilo, de retiro
em retiro, na periferia de uma sociedade que velou a natureza
original do homem e falseou toda co-municao entre as conscincias.
Porque sonha com "transparncia total e com comunicao imediata,
precisa cortar todos os laos que o po-deriam prender a um mundo
turvo, onde passam sombras inquietantes, faces mascaradas, olhares
opacos.
O vu que descera sobre a natureza, a opacidade que invadira a
paisagem de Bossey desaparecero quando Rousseau houver conquistado
a solido. A felicidade perdida lhe ser devolvida. Parcialmente,
verd~de, pois, se redescobre o brilho da paisagem e da natureza, s
custas de unia ruptura mais decisiva com seus semelhantes. Com a
condio de se manter margem da sociedade, a solido de Rousseau um
retomo transprncia:
Os vapores do amor-prprio e o tumulto do mundo embaciavam aos
seus olhos o frescor dos bosques e perturbavam a paz do retiro. Por
mais que fugisse para o fundo das florestas, uma multido importuna
me seguia por toda parte e velava para mim toda a natureza. Foi
to-somente depois de me ter desprendido das paixes sociais e de seu
triste cortejo que a redescobri com todos os seus encantos. 11
53
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( ( ( ( (;) ( ( c ( ( ( ( ( ( c c c (
Uma vez esquecida a sociedade, uma vez banida toda lembrana e
toda preocupao com a opinio dos outros, a paisagem reconqu~sta aos
olhos de Jean-Jacques o carter de um stio original e primeiro. E a
que est o encanto redescoberto, o encantamento verdadeiro. Rousseau
pode ento redescobrir a natureza de maneira imediata, sem que
nenhum objeto estranho se interponha - nenhum trao intempestivo do
trabalho humano, nenhum estigma de histria ou de civilizao:
Eu ia ento num passo mais tranqilo procurar algum lugar selvagem
na floresta, algum lugar deserto onde nada que mostrasse a mo do
homem anunciasse a servido e a dominao, algum refgio onde eu
pudesse acreditar ter penetrado em primeiro lugar e onde nenhum
terceiro importuno viesse interpor-se entre a natureza e eu. 18
E nessa natureza que voltou a ser imediatamente sensvel, salva
da maldio da opacidade, Rousseau vai revest-ir o papel proftico;
ele anuncia a verdade oculta:
Mergulhado na floresta, ali buscava, ali encontrava a imagem dos
primeiros tempos dos quais traava orgulhosamente a histria; pilhava
as pequenas mentiras dos homens, ousava desnudar sua natureza,
seguir o progresso do tempo e das coisas que a desfiguraram ...
19
Mas para algum que quer reencontrar puramente a natureza,
Rous-seau tem demasiado prazer em proclamar que se afastou dos vos
prazeres do mundo. Como j sublinhamos, o esquecimento no completo e
o desapego no total. Se no lamenta o mundo, dele se lembra para o
condenar. No momento em que penetra na floresta e em que se refugia
nas verdades fundamentais, no perde de vista o universo factcio que
recusa, as "pequenas mentiras" que despreza. No goza do imediato
seno proferindo o antema sobre o mundo dos instrumentos e das
relaes mediatas. Ento no se afastou a ponto de esquecer o erro dos
outros, e se as "paixes sociais" j no o possuem, ele no deixou de
ser o antagonista da sociedade corrompida. Por mais paradoxal que
isso parea, no mais profundo de seu isolamento ele permanece ligado
sociedade pela revolta e pela paixo anti-social: a agressividade um
vnculo.
A nica maneira, para Jean-Jacques, de conjurar a opacidade
amea-adora ele prprio tornar-se a transparncia, viv-la,
peqpanecendo visvel e oferecido aos olhos dos outros, esses
prisioneiros da opacidade. Apenas ento o ato pelo qual se anuncia
uma verdade universal e o ato pelo ,qual o eu se mostra tornam-se
um s e "rilesmo desvelamento. A verda\1e, para se manifestar,
precisa ser vivida por uma "testemunha". (Kierkegaard escrever:
"Relacionar-se existencialmente com o ideal jamais -se v, pois essa
espcie de existncia a da testemunha da
54
---------------ms.-~,~~~~WrODRW'~"m=z~~U~ .. -=
........................ T"Eflllli,
verdade".) 20 Ora, a testemunha vive uma dupla relao: sua relao
com a verdade e aquela que a une sociedade diante da qual
testemunha. Jamais ter terminado de prestar suas contas. De onde
tira ela o direito de erigir-se em testemunha? E se a sociedade a
mentira, por que conservar esses duvidosos vnculos?
Ele dever provar, ento, que realmente aquele qutc possui 0
direito de lanar semelhante desafio.21 Precisa conquistar a certeza
de uma relao essencial com a verdade, isto , confundir a existncia
pessoal com a prpria essncia da verdade, produzir uma palavra em
que o eu se afirmaria apenas par desaparecer numa transparncia
im-pessoal, atravs da qual valores eternos se manifestariam:
liberdade, virtude ... Ao que _a_experincia-subjetiva tem de
precrio e de conjetura!, Rousseau no se pode acomodar. Empenha-se
em erigi-la em absoluto, pois apenas sob a guarda do absoluto que
pode superar sua inquietao e seu medo de ser culpado. Para chegar a
isso, as palavras virtuosas, as rupturas purificadoras, as recusas
dolorosas no so ainda suficientes no basta ter vendido seu relgio,
ter abandonado a espada e a roup~ branca fina, ter fugido das
grandes cidades. Ainda preciso dr. outras provas, aceitar outros
sacrifcios, resistir provao das desgraas, das pe!'seguies, das
"tempestades" mais terrveis. A "testemunha da ver-d
-
razo, liberdade, natureza ... Supondo-se que uma sociedade possa
edificar-se na transparncia, supondo-se que todos os espritos
consintam em abrir-se uns para os outros e que abd