No Umbral do Mistrio
No Umbral do Mistriopor
Stanislas de Guaita
Traduzido do original Francs:"Au seuil du Mystre"
Stanislas de GuaitaO Marqus Marie Victor Stanislas de Guaita
nasceu em 6 abril de 1861, em Alteville, perto de Nancy, na
Lorraine Francesa, s 5 horas da manh (48o 50 de L.N. e 4o 20 de
L.O.). Era filho de Franois Paul de Guaita e de Marie Amlie de
Guaita. Seu pai provinha de uma antiga famlia de origem germnica,
vinda da Itlia no reino de Carlos Magno. Seus antepassados foram
homens de guerra, religiosos e poetas. Em 1715, o tatarav de
Stanislas de Guaita estabeleceu-se em Frankfurt, casando-se com uma
jovem alem. Durante o imprio napolenico, o av de Guaita alistou-se
no exrcito francs e adquiriu a nacionalidade francesa. O pai do
ocultista fixou-se em Alteville, onde nasceu o Mestre. A famlia de
sua me era de descendncia francesa.Os autores que escreveram sobre
Stanislas de Guaita no chegaram a nos fornecer muitos dados sobre
sua vida inicitica. Aprofundaram-se apenas na doutrina que ele
prprio exps em seus livros; os dados sobre sua vida particular, que
poderiam interessar a todos aqueles que o admiram atravs de sua
obra, referem-se apenas a aspectos exteriores. Apenas sua
correspondncia com Josphin Pladan deixa entrever a natureza oculta
e sria de seus trabalhos iniciticos.
Este trabalho no tem a pretenso de analisar exaustivamente
Stanislas de Guaita como Iniciado; objetiva torn-lo um pouco mais
conhecido a seus discpulos pstumos. impossvel penetrar no interior
de um Iniciado de sua envergadura e revel-lo ao pblico, sem efetuar
uma grande profanao, O homem interior s se deixa revelar prpria
Divindade. Aqueles que vivem no exterior recebem apenas os reflexos
de sua grande luz. Da mesa do Senhor as migalhas caem no cho e so
digeridas por todos aqueles que aspiram a poder, algum dia,
partilhar do celeste gape. Aproveitemos, pois, o que pudermos
dessas migalhas, dos reflexos da Luz Incriada, e procuremos fazer
brotar em ns a divina fonte, o manancial do Conhecimento e da
Liberdade.
No colgio dos jesutas em Nancy, Stanislas de Guaita teve como
companheiro Maurice Barrs, poeta que chegou a ingressar na Academia
Francesa. A poesia foi, pois, a primeira manifestao literria de
Stanislas de Guaita. Escreveu Les Oiseaux de Passage em 1881, com
20 anos de idade, La Muse Noire em 1883, e Rosa Mystica em 1885. Em
1882 desembarcou na capital, juntamente com seu inseparvel
companheiro Maurice Barrs. Nessa poca j se tinha iniciado nos
estudos ocultistas e efetuado seu relacionamento com os esoteristas
parisienses. Barrs procurou logo o mundo das artes, enquanto
Stanislas de Guaita fez apenas um pequeno giro de reconhecimento da
cidade e se concentrou em seus livros. O objetivo de seu
deslocamento para Paris era a Faculdade de Direito; procurava algo
mais elevado, mas ainda no tinha a certeza do que se tratava. Sua
vocao foi decididamente encontrada atravs da leitura dos livros de
Eliphas Levi e da obra O Vcio Supremo de Josphin Pladan, pois
encontrou no Sr um mestre vivo. No resistiu ao impulso de
escrever-lhe, procurando iniciar uma amizade e obter maiores
conhecimentos. Sua carta a Pladan atesta que, aos 21 anos de idade,
em 1882, Guaita j lia com entusiasmo Eliphas Levi, o nosso bom
abade Constant. Confessou-lhe que considerava a Cabala uma Cincia
magnfica, possuidora de "dogmas grandiosos e mitos incomparveis" e
que considerava Eliphas Levi um grande homem. Nessa carta, j
assinava com um aleph, o que demonstra a linhagem cabalstica do
jovem ocultista.
Toda obra realizada pela fora expansiva da Unidade. Guaita
explica que o aleph, a primeira letra do alfabeto hebraico, engloba
os quatro primeiros nmeros na sua unidade. E essa unidade deve
expandir-se para tornar-se fecunda; tudo ser criado pela virtude do
Tetragrama U Y U W : (1)
W - princpio masculino, o enxofre, o elemento fogo;
U - princpio feminino, a Igreja Catlica em seu sentido
verdadeiro, o mercrio, o elemento gua;
Y - fora equilibrante, o Azoto, Elohim, Deus manifestado por sua
vontade eterna, o elemento ar;
U - a autoridade sinttica do Estado, a terra.
Todo aquele que realizar esta sntese chamar-se- V e ser U Y V U
W .
Depois de Guaita ter feito amizade com Pladan, conheceu
sucessivamente Barlet, Papus e Julien Lejay. J eram seus amigos o
Abade Roca (Alta) e Saint-Yves d'Alveydre. Intensificou, a partir
desse momento, suas pesquisas ocultistas e a busca de livros raros
nos sebos das margens do rio Sena. Montou uma invejvel biblioteca
cabalstica, cuidadosamente encadernada e catalogada.
Pladan tinha uma brilhante erudio, mas de pouca profundidade.
Seus conhecimentos fundamentavam-se no que ensinou seu irmo e
mestre dr. Adrien Pladan (que Guaita no chegou a conhecer) e no
companheirismo do sbio cabalista Albert Jounet. Adrien era discpulo
de Lacuria, autor de Harmonias do Ser. Pladan tinha, pois, grande
habilidade para escrever e seu livro Vcio Supremo, escreve Guaita a
Maurce Barrs, apresenta pginas de muita beleza. "Eu, que fiz um
estudo especial de Alta Cabala neste vero, posso julgar a que ponto
Pladan estudou profundamente as Cincias Ocultas. No ria! Leia os
livros de Eliphas Levi e voc ver que no h nada mais belo do que a
Cabala. E eu, que sou relativamente versado em Qumica, no me admiro
ao ver at que ponto os alquimistas eram sbios verdadeiros; com
certeza, a pedra filosofal no um embuste. A cincia mais
contempornea e mais esclarecida tende a confirmar hoje as geniais
hipteses dos magos de 6 mil anos atrs. No maravilhoso? Profetizaram
que tudo vem da luz. Ora, o que diz a cincia? Luz, calor, movimento
(vibrao), magnetismo, eletricidade, pensamento... tudo isso
idntico! E os magos tambm profetizaram a unidade da matria, o que a
cincia acaba de confirmar. Voltemos a Vcio Supremo (e digo isso
tudo para que voc no zombe do carter de Merodack). Bom Deus! Leia
os livros antes de zombar deles! E, afinal de contas, no sou nenhum
imbecil; voc pode admitir que h trs semanas eu tenho feito de uma
inpcia meu livro de cabeceira?" (2)
A impresso que se tem de que Stanislas de Guaita estava
procurando formar um grupo de Homens de Desejo, em torno de si e
talvez de Saint-Yves d'Alveydre. Isso poder explicar sua pacincia
em procurar reconciliar uns com os outros os provveis candidatos ao
adeptado. Esses argumentos dados a Maurice Barrs em relao a Josphin
Pladan tambm foram dados este ltimo em relao a Barrs, a Saint-Yves
d'Alveydre, Roca, Julien Lejay. incrvel como a mente humana frtil e
como as paixes lanam um homem contra o outro! Stanislas de Guaita
encontrou em Papus e em Barlet as duas colunas de seu edifcio
intelectual. O trio tinha em Eliphas Levi, Fabre d'Olivet,
Khunrath, Martinez de Pasqually, Saint-Martin e Jacob Boheme os
guias invisveis que iluminavam a senda por onde deveriam passar, no
somente esses homens de vontade, mas todo aquele rebanho por eles
apascentado.
Apoiavam-se no somente nas obras desses Mestres, como na prpria
Cabala Judaica, fundamento da Alta Magia. "Agora que fiz a sntese
absoluta de minhas idias sobre Cabala", disse Guaita, "estou em
condies de lhe dizer: meu caro amigo (Pladan), estou CERTO.
Hermeticamente falando, estou absolutamente certo de estar na
tradio ortodoxa... estou convencido de que te falo com conhecimento
de causa. Ah! Se pudesse em algumas linhas comunicar-te a claridade
que me inunda... Posso dizer, como Eliphas, que compreendi a
parbola frequentemente repetida nos livros santos: O Reino de
Deus." (l886). A Cabala proclama a unidade do ser, dizia Guaita,
"ela engloba a verdade absoluta sob sua forma definitiva. Outras
correntes iniciticas so formas menos puras emanadas da mesma
fonte... O Zohar ensina a descida progressiva e lenta do Esprito na
matria, at a divinizao radical de Ado-Kadmon, cuja grande alma
coletiva no seno o prprio Jesus-Cristo... Parece-me que a luz se
faz em meu esprito, e que os Arcanos se esclarecem. Quando iremos
conversar seriamente sobre Cabala? Teu Van Helmont dos mais
curiosos; a encontro tesouros; mas o Khunrath-Artepius sobretudo
admirvel." (3)
Stanislas de Guaita passava cinco meses do ano no seu
apartamento trreo da Avenida Trudaine, em Paris, na zona norte da
cidade, onde recebia seus amigos ocultistas e onde mantinha uma
segunda biblioteca. Seu salo, todo decorado de vermelho, abrigava
srias meditaes. As conversas com os amigos, assim como leituras
cabalsticas, eram estimulantes para o esprito. Maurice Barrs, seu
amigo de infncia, dizia que ele era capaz de ficar semanas inteiras
sem sair do apartamento. Muitas vezes cortava esse isolamento
voluntrio pela "caa" aos livros e raramente regressava sem trazer
um exemplar raro.
Os sete meses restantes do ano eram passados no campo, em seu
castelo de Alteville, com sua me, certamente cuidando de sua produo
material. No entanto, jamais descurava-se de seus estudos ocultos e
procurava visitar os doentes nos vilareios vizinhos, exercendo uma
medicina caseira herdada de seu pai. Tinha um quarto da casa
transformado em "laboratrio qumico", para uma atividade que dizia
exercer desde sua tenra juventude. Esse recinto era guardado,
segundo acreditavam seus criados e alguns amigos que freqentavam
sua intimidade, por um fantasma. "O fantasma de Guaita, conta-nos
Paul Adam, costumava aparecer quando estvamos mesa; um dia, um dos
presentes levantou-se e lhe ofereceu uma costela de ovelha; o
fantasma, ofendido, nunca mais apareceu." (4) Os jantares no
castelo de Alteville costumavam prolongar-se noite adentro com
agradveis conversaes. E o fantasma adquiriu, com o tempo, grande
reputao. Muitos afirmavam conhec-lo e diziam que lhe faltava um p,
e que o outro p parecia um pilo de madeira. Essa lenda, por bizarra
que possa parecer, tem o mrito de salientar a atmosfera de mistrio
que imperava na residncia campestre de Guaita. Tinha ele nesse
local outra biblioteca e era, certamente, o local de reunio
alternativo dos Rosa-Cruzes parisienses, sob a liderana de
Stanislas de Guaita, Gro-Mestre vitalcio da Ordem Cabalstica da
Rosa-Cruz. Seu laboratrio qumico proporcionava a transformao dos
elementos, por inmeras combinaes; da mesma forma, ocorria em seu
ser uma transformao espiritual, testemunhada por seus escritos e
pelas conversas sempre estimulantes, que acalentavam os coraes de
todos os seus irmos. Os trabalhos realizados em Alteville, com seus
companheiros mais ntimos, efetuavam-se com muita harmonia, apesar
da oposio de sua me, catlica praticante. Ela no entendia a
independncia religiosa do filho e temia pela sua condenao eterna.
"Confesso a divindade do Cristo-Esprito", escrevia-lhe o filho, "e
professo o cristianismo universal ou Catolicismo... (1890)... Creio
em Deus e na Providncia e no h um dia em que eu no eleve vrias
vezes minha alma em direo da Absoluta Bondade ou meu esprito em
direo da Verdade Absoluta. O que desejas mais?" (1894).
Apesar de ter nascido com imensa bagagem espiritual, jamais
deixou de consultar a opinio dos antigos ocultistas, atravs de seus
livros. Pois a verdade no se inventa: ela existe h sculos e cabe a
ns encontr-la na literatura, na Natureza e em nosso prprio
interior. A opinio daqueles que dedicaram uma vida inteira busca do
conhecimento no pode ser negligenciada. Da a grande importncia das
leituras. Guaita sabia disso e dialogava diariamente com Eliphas
Levi, Fabre d'Olivet, Tritemo, Paracelso, Saint-Martin e com outros
pais da espiritualidade ocidental, no apenas atravs de seus
escritos, mas tambm atravs da Luz Astral. O ambiente de sua
biblioteca parecia exalar os mais puros pensamentos e l as pessoas
esqueciam-se do tempo. Guaita lia raramente os jornais, mas
concentrava-se nos seus grimrios, pantculos e nos grandes clssicos
do Ocultismo. Vivendo nessa atmosfera a maior parte do tempo,
pairava acima das condies mundanas de sua poca, podendo elevar os
seus pensamentos s mais puras abstraes.
"O que o distanciava desse mundo", escreveu Charles Barlet, "era
a confuso das idias e a aspereza dos debates, que agitavam o sculo
por volta de 1880: ele via sbios pretenderem englobar no ciclo de
suas descobertas todo o infinito do mundo, a cincia revoltar-se
contra a f, o esprito novo lanar-se contra a experincia dos sculos,
o dogma do progresso material predominar sobre o da perfeio
espiritual e moral, o jogo mecnico do nmero regular, o destino das
naes, e a felicidade terrena do indivduo tornar-se o objetivo e o
fim do Estado." (5)
Esse jovem ocultista, que possua o mais vivo desejo de atingir o
Nirvana, e que congregava uma pliade de cabalistas do mais alto
nvel, a partir da penltima dcada do sculo XIX, como Papus, Barlet,
Julien Lejay, Chaboseau, Polty, Marc Haven, Victor Emile Michelet,
Sedir, Pladan, Oswald Wirth e outros, no deixou de fundar uma
sociedade que congregasse os maiores talentos da poca,
vivificadores da Santa Cabala, e que ressuscitasse dos velhos
santurios o simbolismo da Rosa-Cruz. A sociedade teria sido fundada
e tornada pblica pela necessidade de denunciar publicamente o abade
Boullan. Inicialmente este no demonstrou claramente os objetivos de
seu trabalho. Foi assim que Guaita, tendo desconfiado do abade
Boullan, encarregou Oswald Wirth de investigar a verdadeira essncia
de sua doutrina. Verificou que o ex-abade recorria Missa Negra, a
orgias sexuais entre os membros da seita e a pretensas unies
distncia, pela emisso do fluido nervoso das pessoas, podendo
prejudicar a sade de pessoas mais fracas. Boullan era discpulo de
Eugnio Vintras, o feiticeiro desmascarado por Eliphas Levi. Vintras
tinha fundado a seita do Carmelo e considerava-se a encamao do
profeta Elias. Stanislas de Guaita revelou a doutrina do Carmelo e
suas aberraes no Templo de Sat (captulo intitulado "As Modernas
Transformaes do Feiticeiro"), denunciando-a opinio pblica. Os
adeptos Rosa-Cruzes formaram um tribunal com a finalidade de julgar
o Abade Boullan, condenando-o retrao pblica. Boullan, tendo-se
agravado seu desequilbrio psquico, imaginou que Guaita teria lanado
sobre ele um enfeitiamento qualquer. Confiou sua suspeita a algumas
pessoas, inclusive ao jornalista Jules Blois dos jornais Le Figaro
e Gil Blas, que publicou em janeiro de 1893 artigos acusando Guaita
de ter efetuado prticas mgicas contra o Abade Boullan. Esse caso
explica os duelos de Jutes Blois com Guaita e Papus que,
felizmente, no ocasionaram nenhuma gravidade maior.
A Rosa-Cruz tinha como objetivo, alm de recrutar intelectuais
capazes de adaptar a tradio esotrica ao sculo que estava entrando,
explica-nos Stanislas de Guaita, combater a feitiaria em todos os
lugares onde poderia ser praticada. dever de todo Rosa-Cruz
combater os falsos magos, todos aqueles que desonram a fraternidade
universal da Alta e Divina Magia. "Ns os condenamos ao batismo da
luz!", enfatiza Guaita em Templo de Sat, "faltaramos com nosso
dever se deixssemos esse Sats fazerem em paz novas vtimas e
aumentarem a torrente pestilenta de toda abominao mstica." (6)
Stanislas de Guaita procurava conhecer todas as artimanhas do
maligno para combat-lo com toda potncia possvel. No que diz
respeito ao caso Boullan, os adeptos foram atacados por emisses de
fluidos, colocando Nergal no leito e quase matando Caill. Guaita
foi atacado noite, como ele prprio disse, mas soube direcionar o
fluido ao plo de emisso. "Tenho um poder extraordinrio, escreveu
Guaita, e fao o que quero com os fluidos e os espritos atravs dos
procedimentos da Alta e Divina Magia, aos quais iniciar-te-ei, ou,
pelo menos, aos quais poders assistir se desejares." (7)
O acesso aos graus da Rosa-Cruz Cabalstica era efetuado mediante
exame, sendo que para o ltimo grau era necessrio a defesa de uma
tese sobre um tema estabelecido pelo Supremo Conselho. Este era
formado por seis membros conhecidos e por seis ocultos. Os membros
conhecidos eram Guaita, Papus, Barlet, Polti, Pladan e Agur. Com a
demisso de Pladan, foi admitido o abade Roca, pseudnimo Alta (8).
Os Rosa-Cruzes do segundo grau foram recrutados no seio do Grupo
Independente de Estudos Esotricos, cujo presidente era Jacques
Papus. Quando a Ordem adquiriu o nmero suficiente de membros, de
acordo com sua constituio, foi rigorosamente fechada. Ela dirigia
outros grupos de iniciados de graus inferiores, propagando as
doutrinas esotricas no seio da coletividade, atravs da publicao das
teses de doutoramento em Cabala.
Esse procedimento no s permitiu a formao de homens com bom
conhecimento de Cabala, como propagou seus ensinamentos no meio
ocultista. A Cabala prope a sntese da doutrina dos magos, a Alta e
Divina Magia herdada dos caldeus atravs de Abrao, reformulada por
Moiss e Esdras e divinizada pelo prprio Jesus Cristo. a tradio
primordial do Ocidente, que procura desenvolver a positividade do
homem, tornando-o um ser de vontade. A apologia do Misticismo feita
por Oswald Wirth surpreendeu Guaita - como algum poderia colocar o
Misticismo acima da Alta Doutrina dos Magos?
"O Hermetismo uma sntese radical", diz Guaita a Wirth,
"absoluta, precisa como as Matemticas e profunda como as prprias
leis da existncia. uma doutrina ntida, concluda; em uma palavra,
uma Cincia que circunscreve outras, apta a concili-las,
englobando-as em seu seio. - E o Misticismo, o que ? uma doutrina?
um sistema? somente uma hiptese? - No. uma tendncia do Pensamento,
e nada mais; um estado de alma ou de esprito que facilita ou que
entrava - e aqui no o caso - o estudo dos grandes problemas
metafsicos...
"Cada um tem suas preferncias de temperamento, sua idia de
religio, de esttica, de concepo cerebral - e se sois de natureza a
portar as belas fantasias dos msticos aos xtases passivos da
contemplao, aos ferventes vos da orao, cometereis o maior erro em
forar vossas tendncias, doravante desviadas para um objetivo que no
se encontra mais no balano de vosso futuro intelectual. Sonhai,
pois, e orai; vossa colheita ser bela; no tereis por que vos
lastimar.
"Mas, para aquele que forou o tabernculo da Natureza e
conquistou, colocando em risco sua vida e sua razo, a inteligncia
dos Arcanos, nenhum destino parece mais desejvel do que este:
perseguir a descoberta das leis supremas e a dominao das causas
segundas; mergulhar sempre adiante no abismo da Luz de que fala
Henry Kuhnrath; inclinar-se - sempre bebendo e sempre insacivel -
sobre o mar dos conceitos radicais da Absoluta Verdade, mar
universal e de sntese, onde confluem de todos os lados inumerveis
rios de conhecimentos particulares e analticos... Eis o ideal para
aqueles outros. Tal , a seus olhos, a existncia verdadeiramente
desejvel.
"E quando esses Iniciados - considerando-se quase como egrgoras,
pastores de almas errantes, Sacerdotes e Franco-juzes -, quando
esses Iniciados chegam a praticar, passando pela terra, algum bem a
seus semelhantes, isto , a seus irmos menores, acreditai, eles nada
mais tm a desejar e possuem em verdade "a paz profunda do
Rosa-Cruz!" (9)
Dentre os membros do Supremo Conselho, havia um que no aceitava
a liderana de outra pessoa que no fosse ele prprio: Josphin Pladan.
No admitia tornar-se discpulo tendo sido o primeiro mestre de
Stanislas de Guaita. Ademais, suas concepes, impregnadas de
catolicismo romano exagerado, conflitavam com a opinio independente
dos demais Rosa-Cruzes. Suas concepes acerca de Jesus, Maria e de
outros personagens do cristianismo no se diferenciavam das opinies
de um padre catlico. "Creio na imortalidade da Igreja do Cristo" -
explicava-lhe Guaita -, "pois o Cristo realizou hierarquicamente o
Grande Arcano sobre a Terra e divinizou-se pelo seu esprito at no
ventre de sua me. Nasceu de Deus porque era fatalmente destinado a
realizar todo o Divino em si. Mas se a Igreja eterna, o papa no a
Igreja. Somente um conclio ecumnico infalvel e no houve um s
conclio verdadeiramente ecumnico aps a separao da Igreja grega.
Explicar-vos-ei de viva voz por que creio que Jesus Cristo
realmente nasceu Deus, pois creio firmemente, vos declaro, que N.S.
espiritualmente concebido do Esprito-Santo, e tomai minhas palavras
ao p da letra; vedes que sou cristo como vs. Mas para explicar-me
seria necessrio descer a uma profundidade esotrica inefvel (pois a
Luz se fez em mim, no posso colocar tudo isso no papel)." (10)
"Deus ir te conceder uma ou vrias entrevistas, para que possas
ver a Luz integral do Cristianismo esotrico, e isto sem renegar uma
slaba de teu credo, sem eliminar uma das arestas do Dogma Eterno.
Pois ests destinado para o futuro; o cu assim o deseja:
explicarme-ei de viva voz; daqui at l, que minha palavra te
baste... Recebi do Alto a soluo definitiva dos Arcanos segundo a
ordem intelectual e a ordem divina; quando nos virmos,
explicar-te-ei sem reticncias todos os assuntos dos quais Ieshuah
quis que eu recebesse diretamente da Luz. Pois no devo nada a
ningum a esse respeito...(11) Quanto s unes que recebi, -me
impossvel dizer de quem as recebi, validamente recebidas, segundo o
ritual catlico romano e no segundo o ritual ilaco... Sou, pois,
Sacerdote Oculto, como foram em todas as pocas todos os adeptos do
3o. grau e tenho todos os poderes para exercer o culto in secretis,
magicamente e no sacerdotalmente." (12)
Pladan no entendia a significao profunda e oculta dessas
palavras e no admitia que seu ex-discpulo lhe falasse por parbolas.
Denominado por si mesmo "Sr (13) Merodack Pladan", passou a editar
bulas e excomunhes em nome da Rosa-Cruz. Advertido pelo Gro-Mestre,
criou sua prpria sociedade, a Ordem Rosa-Cruz Catlica do Templo e
do Graal, separando-se do Grupo em 1890. StanisIas de Guaita,
procurando esclarecer no meio ocultista que os verdadeiros
Rosa-Cruzes nada tinham a ver com os sales semiprofanos de arte de
Pladan, e com todos os seus atos, publicou em 1893 um manifesto em
nome do Supremo Conselho da Ordem Rosa-Cruz Cabalstica, com um
sumrio paralelo entre as duas sociedades. Assinaram esse documento,
alm de Stanislas de Guaita, Jacques Papus e Charles Barlet.
Declararam Josphin Pladan Rosa-Cruz sismtico e apstata, denunciando
seus atos e sua ordem ao tribunal da opinio pblica.
Essa separao foi, sem dvida nenhuma, muito desencantadora para
Guaita. Viu todos os seus esforos, no sentido de encaminhar Pladan
na Senda, carem por terra. Entre 1882 e 1891, Guaita procurou
acalentar o esprito do amigo e fortificar sua f, ausente em seu
ntimo. A f no a ltima palavra da Alta Magia, mas seu complemento
indispensvel; ela quem realiza o equilbrio do indivduo com a Razo,
pois o dualismo apenas aparente e contribui para a harmonia
universal. "A analogia cientfica nos conduz a afirmar o Princpio da
Casualidade, e esse princpio proclama o Ensoph. Mas a termina o
alcance do Entendimento." Para penetrar alm da Cincia so necessrios
o Amor e a F. "A inteligncia voluntria , entre ns, o princpio
ativo; mas a F passional e passiva. A Grande Obra o casamento do
ativo e do passivo; , como dizia Baslio Valentino, o Fixo do Voltil
e o Voltil do Fixo." (14) "Hegel teria sido grande cabalista se
tivesse entendido que, ao lado da cincia, alimento da compreenso,
existe a F, celeste repasto da sensibilidade transcendente, que
chamamos vulgarmente de o corao humano..." (15) Segundo o esprito
cabalstico, a religio representa um estado de esprito que conhece o
desabrochar da imagem sagrada do Alto, que permite a reconstituio
da iluminao original e a divinizao do homem encarnado.
A falta de f est intimamente associada com a ausncia de
tolerncia, que , em ltima anlise, um desamor em relao a todos os
nossos semelhantes. "Ignoro se o Marqus de Saint-Yves um esprito
falso, mas tenho a certeza de que ele um grande esprito; no deixars
de compartilhar minha opinio quando houveres lido suas MISSES."
(16) E, adiante, no mesmo tom: "Asseguro-te que me difcil ouvir-te
diminuir Eliphas. Tenho uma infinidade de livros de todos os sculos
e li com ateno na Biblioteca Nacional quase todos os mestres;
inclino-me diante de Eliphas como diante do MESTRE DOS MESTRES
(como A. de Vilanova chamou Geber). Ningum, que eu saiba, penetrou
to profundamente no problema, e ningum construiu uma sntese to
esplndida, to imensa e to inabalvel... Diviniza ele os Elohim? No,
ele desvela e adora seu princpio equilibrante... Creio que o julgas
demais apenas com base na leitura de seu Dogma e Ritual da Alta
Magia, a nica obra que tens dele e a nica, por conseguinte, que
pudeste estudar com profundidade." (17)
Em 1886, Stanislas de Guaita escreveu a Pladan dizendo-lhe que
estava preparando para os prximos anos a publicao de uma obra que
deveria denominar-se Os Trs Mundos. Com uma introduo longa,
destinada a familiarizar o esprito do leitor com as matrias
esotricas de maior profundidade discutidas nos tomos seguintes.
Essa introduo foi publicada inicialmente na Revista Contempornea,
dando origem ao seu primeiro livro No Umbral do Mistrio. Nos trs
volumes seguintes abordou uma grande teoria sinttica da luz,
anunciando grandes leis cabalsticas. Sua preocupao era abordar o
problema do mal, as obras oriundas da Luz Astral, solucionar os
grandes problemas iniciticos concernentes Regenerao, Iluminao e
Reintegrao do Homem na Unidade Divina. A chave de tudo est na Luz
Astral. Nesse sentido, concebeu sua obra baseado nas tminas do Tar,
procurando desvender a trplice significao de Nahash, a alma astral
do mundo. O que a Serpente do den? A trplice resposta engloba os
trs setenrios e cada setenrio um livro. A serpente Nahash, que, no
sentido positivo, corresponde s paixes mais ferrenhas que
impulsionam o homem para o mal; no sentido comparativo, representa
a Luz Astral, agente tanto das obras tenebrosas como das obras de
caridade. Seu domnio d a chave tanto da Magia Negra como da Alta
Teurgia; no sentido superlativo, Nahash simboliza o egosmo
primordial, a misteriosa atrao que produz o individualismo,
princpio da diferenciao dos seres e da individualidade, causa da
decadncia de Ado e da encarnao individual.
O Redentor da Humanidade, que possui o Shin hebreu em seu
centro, significa o fogo regenerador, veculo da vida e da
reintegrao; a divindade manifestada por seu verbo, figurando a unio
fecunda do esprito e da alma universais; aquele que vem resgatar o
homem do fundo da criao para permitir sua passagem para um novo
mundo, onde dever cumprir nova fase de evoluo, mas dessa vez em
Deus.
Guaita, melhor do que ningum, desenvolve a teoria da Luz, veculo
do poder mgico, fonte de toda criao. "Correspondendo ao Verbo (Luz
Divina) e ao Pensamento (Luz Intelectual) ela , simultaneamente, no
mundo fenomenal e por uma contradio apenas aparente, o esperma da
matria e a matriz das formas. Dominar a Luz Astral em si e na
Natureza ter descoberto e formulado o incomunicvel Grande Arcano. a
matria-prima que se solve e se coagula para a realizao da Grande
Obra. A potncia mgica reside, pois, no Verbo Humano, que se afirma
e se agiganta atravs da Luz. A f, a cincia, a vontade, so
instrumentos de emancipao do Verbo Humano e de sua reintegrao no
Verbo Divino, promovendo o casamento mstico do homem com a
divindade."
Seus Ensaios de Cincias Malditas deveriam compreender cinco
volumes, a saber:
1o. volume: No Umbral do Mistrio, introduo geral;
2o. volume: O Templo de Sat, interpretao da palavra Nahash em
seu sentido vulgar: o Diabo (Shatan); estudo do diabo e de suas
obras, feitiaria, etc., desenvolvimento do primeiro setenrio;
3o. volume: A Chave da Magia Negra, sentido esotrico da palavra
Nahash: a alma astral do mundo; explicao dos fenmenos pelo Ar (a
iluminao interior); segundo setenrio (lminas 8 a 14);
4o. volume: O Problema do Mal, segundo sentido esotrico de
Nahash: o Mal; abordando o problema da queda humana, o mal
original, e a reintegrao em Deus; terceiro setenrio (lminas 15 a
21);
5o. volume: Concluso, a Apoteose, reintegrao de Ado-Kadmon,
"dissoluo de Sat-Panteu que desaparece na imensido do Absoluto."
(18)
No Umbral do Mistrio foi publicado no ano de 1886, em formato
pequeno, sem os apndices. Para o meio ocultista da poca foi uma
revelao. Todos os Homens de Desejo encontraram a luz que buscavam
na chama viva que era Stanistas de Guaita. Nosso autor foi o
primeiro a surpreender-se com o inusitado sucesso de seu livro.
Discpulo fervoroso de Eliphas Levi e de Fabre d'Olivet, no pensava
ser mais do que um discpulo. No esperava nenhum apostolado, mas a
obra revelou-se por inspirao divina e pelo ardor de seus leitores.
Aceitou com naturalidade, aos vinte e cinco anos, a misso que se
descortinou para ele, preparando-se ainda com mais afinco para o
fiel cumprimento do alto dever que contraiu com o prprio Reparador.
Dedicou toda sua vida a procurar a verdade e a transmitir as
teorias ocultistas dentro de um estilo claro, que logo se tornou
clssico. Numa poca em que todos se ocupavam em alimentar as paixes
da alma e os instintos do corpo, obteve grande reputao em razo de
seu trabalho desinteressado, que no tinha outro objetivo a no ser
conduzir, elevar e iluminar a alma humana.
Sursum Corda! Esse o clamor das almas que aspiram imortalidade.
Essa a divisa dos hierarcas que labutam pela ascenso. o verbo dos
Chamados que sero Eleitos! O tringulo divino flameja por sobre os
cumes. Em direo a ele se eleva a dupla escada de Jac, cujos altos
degraus perdem-se entre as nuvens. Galgam esses degraus sem soobrar
aqueles que, se no passam de homens, possuem os "flancos de baixa
argila consumidos em desejos de Deus" (19). Desaparecidos em meio
ao nevoeiro, aqueles que se encontram abaixo perdem-nos de vista,
enquanto eles, no alto, recebem a iniciao. Em seguida, tornaro a
descer. Porm, como Moiss, a luz, contemplada face a face, ter
deixado seu reflexo sobre eles: ao descerem, descero arcanjos, para
convidar as almas ousadas escalada do cu: Violenti rapiunt illud.
Se o absoluto no pode revelar-se aos filhos dos homens, que os
fortes ascendam at ele para conquist-lo. Quando retomarem aos seus
irmos mais tmidos, a fim de render homenagem Luz (20), estes podero
ver, pela aurola de sua fronte, que, sem deixarem de ser Filhos da
Terra, eles se fizeram naturalizar Filhos do Cu.
(Stanislas de Guaita, No Umbral do Mistrio, p.50).
O Templo de Sat foi publicado em 1891; esse livro aborda as sete
primeiras lminas do Tar, focalizando a histria fsica do ocultismo
inferior e os procedimentos da baixa magia. Examina as obras
caractersticas de Sat, a magia negra, os malefcios, os
enfeitiamentos, descreve o Sabat e a Justia dos homens (processos
clebres de feitiaria e de acusaes injustas a esse respeito). O
diabo, que significa obstculo a vencer, caracteriza a feira, o
egosmo e o erro. O diabo da Idade Mdia lembra-nos a inquisio, os
feiticeiros, a fogueira, os possudos, o anticristo. " necessrio",
escreve Guaita, "saber at que ponto pode projetar-se a nefasta
influncia do Feiticeiro... conscientizar-se exatamente das prticas
familiares aos necromantes, trazer luz do dia as trevas da Magia
Negra, estabelecendo o que lenda e histria, imaginao e realidade,
apreciar de maneira sadia as aes celebradas e a besteira desses
exploradores da credulidade pblica." (21)
No se pode negar a existncia do mal (em sua essncia bem
diferente). Sua manifestao no Universo indubitdvel, tanto quanto o
frio no inverno ou a escurido noite. Mas vem a luz e a sombra se
vai, vem o calor e passa o frio: porque a sombra e o frio no so
dotados seno com uma existncia privativa; pois sendo negaes,
falta-lhes essncia prpria. Assim acontece com o mal, transitrio,
acidental, contingente.
"Dar essncia ao Mal recusar a essncia do bem; sustentar o
princpio do Mal contestar o princpio do Bem; afirmar a existncia
prpria do diabo, como o absoluto do Mal, negar a Deus. Sustentar,
enfim, a coexistncia de dois absolutos contraditrios proferir uma
blasfmia em religio e um absurdo em filosofia. O que revolta a
conscincia, o que ultraja a razo, no tanto a personificao simblica
das influncias nefastas em dolos na maioria das vezes odiosos e
grotescos: a deificao do mal, disfarado em princpio absoluto sob
uma figura mitolgica e, como tal, oposta ao princpio do bem,
igualmente divinizado.
(Stanislas de Guaita, O Templo de Sat. So Paulo, Editora Trs,
1973, 1o. vol., p. 25).
Para esclarecer o sentido figurado, Guaita elaborou A Chave da
Magia Negra. Nahash, a Luz Astral, o agente tanto de obras boas
como de obras ms. Seu domnio fornece a chave da Magia Negra,
permitindo analisar as causas e os efeitos dos ritos e dos fenmenos
descritos em O Templo de Sat. Com essa obra, procurou estabelecer
uma teoria geral para o Hermetismo. A Magia Negra definida como a
manipulao das foras ocultas da Natureza para satisfazer as paixes
humanas; enquanto a Alta e Divina Magia, praticada pelo homem
isento de paixo, a coagulao e projeo do fluido universal, com
conhecimento de causa, visando um fim altrusta, que o
aperfeioamento espiritual do operador.
Este misterioso agente possui inmeras denominaes. , segundo os
Cabalistas, a serpente fludica de Asiah. Os velhos platnicos viam
nela a alma fsica do mundo, que englobava a semente de todos os
seres, e os Gnsticos Valentinos personificavam-na como o Demiurgo,
"o operrio inconsciente dos mundos de baixo". Na opinio dos
Hermetistas, a Quintessncia dos elementos, o Azoto dos sbios. (Ou o
fecundado pelo , ou, ainda, o Fogo secreto, vivo e filosfico.) ,
para os magos, o intermedirio das duas naturezas; o Mediador
conversvel, indiferente ao Bem e ao Mal, que uma vontade firme pode
utilizar para um e para outro fim. o Diabo, se quiserem, isto , a
Fora substancial que os feiticeiros manipulam para seus
malefcios.
Potncia inconsciente por si mesma, mas apta a refletir todos os
pensamentos; Potncia impessoal, mas suscetvel de revestir todas as
personalidades; Potncia invasora e dominadora, que entretanto o
adepto pode penetrar, constranger e subjugar - e isso, em uma
medida mais estupefaciente ainda do que imaginaria o popular
supersticioso, no bom tempo dos Lancra e dos Michaelis; , em uma
palavra, A LUZ ASTRAL, ou Mediador Plstico Universal.
(Stanislas de Guaita, La Clef de Ia Magie Noire. Paris, Henri
Durville, 1920, pp. 109-110.)
A Chave da Magia Negra foi editado em 1897, no ano da morte de
Guaita e o Problema do Mal no chegou a ser concludo, sendo
completados, os poucos captulos que o autor chegou a redigir, por
Oswald Wirth e por Marius Lepage. Se Guaita tivesse tido tempo para
concluir este ltimo livro, provavelmente a evoluo de seu pensamento
nos teria presenteado escritos da mais alta profundidade, em razo
do amadurecimento de suas doutrinas. Com O Problema do Mal, os
leitores encontrariam as chaves que conduzem Iluminao Divina, se a
fatalidade no tivesse arrancado o autor do convvio de seus
iniciados. Os amigos de Guaita pensavam, em 1897, que a Providncia
Divina no teria aprovado a concluso da obra, repleta de revelaes
que deveriam permanecer ocultas e restritas a um pequeno nmero de
Homens de Desejo. Somente em 1947, 50 anos aps a morte de Stanislas
de Guaita, foi que Marius Lepage realizou a publicao de O Problema
do Mal. O livro possui, escritos por Stanislas de Guaita, apenas o
primeiro captulo (a lmina 15, o Diabo, Nahash, O Tentador do den,
Ado-Eva e a Serpente), o incio do segundo captulo (a Lmina 16, A
Torre Fulminada, ou A Queda de Ado, Involuo), e o plano do terceiro
captulo (a lmina 17, As Estrelas, ou A Encarnao do Verbo). O plano
do captulo o seguinte:
"Ttulo: A ENCARNAO DO VERBO
I - Princpio da Evoluo.
coletiva, unitria,
II - A vida na matria (trs vidas) individual, coletiva
atmica, individual
Redeno dos indivduos isolados
III - Trs correntes Redeno das essncias coletivas
Redeno dos indivduos por grupos bissexuados.
IV - O salto evolutivo sucede-se queda involutiva.
V - NAHASH, a fora isolante do Egosmo, o desorientou: seu
Oriente o Esprito coletivo vivo, o verbo. Essas potencialidades, na
maioria das vezes latentes, em virtude de afinidades complexas,
tendem a aperfeioar-se pela Evoluo." (22)
O terceiro setenrio, englobando o problema do mal, objetiva
solucionar essa questo, redimindo o homem de seu pecado original,
provocado pela Queda Admica e todas as funestas conseqncias de
materializao crescente, ignorncia e impotncia. Essa serpente
temvel, que enganou Ado-Eva no Paraso, a personificao da Luz
Astral, "o fluido implacvel que governa os instintos, agente do
nascimento e da morte, smbolo sobretudo do egosmo primordial, a
misteriosa atrao em direo a si mesmo, que o prprio princpio da
divisibilidade: esta fora que, solicitando a todo ser o isolamento
da unidade original para fazer-se centro e comprazer-se em seu eu,
ocasionou a decadncia de Ado". Guaita encontrou a a sntese
filosfica e levantou o vu temvel e benfazejo que oculta aos olhos
do vulgo o grande arcano da Magia. Procurou no s desvendar o
problema do mal, mas desejou conhecer sua origem, o estado de Ado
antes da Queda, o significado da Redeno do Cristo Doloroso e o
significado cabalstico do Cristo Glorioso.
Ado Kadmon (Deus manifestado) esposa Eva (a Natureza Essncia),
que refletiu por emanao como sendo a faculdade eficiente. E, para
dqtalhar: os trs princpios masculinos, constitutivos de Ado,
emanaram trs faculdades femininas, constitutivas de Eva. Cada
princpio o esposo simblico da faculdade eficiente que ele refletiu:
O Pai o esposo da Providncia; o Filho o esposo da Vontade e o
Esprito o esposo do Destino. Se generalizarmos, poderemos dizer que
do casamento de Ado-Kadmon com a Eva Celeste, nasceu a substncia
universal, Adamah, animada por um princpio de vida universal
hiperfsica, Nephesh-ha-haiah. Nahash, a Serpente da Gnese, age e se
manifesta em Nephesh-ha-haiah. Foi nesse ponto preciso que a Queda
realizou-se pela materializao da vida e a multiplicao divisional,
geradora de submltiplos ao infinito...
Pois, o Ado decado ou Cristo Doloroso, sntese mstica da Igreja
Militante, geme, aprisionado no Universo Substncia que elabora, aps
ter passado ao ato; o Ado Celeste ou Cristo Glorioso, sntese da
Igreja Triunfante, preenche sempre com sua glria o
Universo-Essncia, que sua obra."
(Stanislas de Guaita, Le Problme du Mal. Paris, Ed. de la
Maisnie, 1975, pp. 7 e 11).
O Destino no permitiu que Stanislas de Guaita conclusse seu
terceiro setenrio, ocasionando sua morte atravs do mesmo mal que
atacou seu pai em 1880: a uremia. Mesmo antes de 1886, Guaita
queixava-se desse mal, cujo reflexo uma dor de cabea terrvel. Mas o
mal foi se acentuando, e em 1897 Guaita chamou em Alteville seu
mais fiel companheiro, Papus, para transmitir-lhe a sucesso na
Ordem Cabalstica da Rosa-Cruz, dizendo-lhe que estava tudo acabado
e que o Destino no lhe permitiria dizer nada mais. "Talvez eu
assista ao nascimento de meu livro (A Chave da Magia Negra), mas
creio que no poderei ir mais longe." Alguns dias mais tarde, Papus
sentiu que um nascimento estava prestes a ocorrer no Invisvel: viu
inmeros sinais misteriosos, enchendo seu corao de tristeza, pois
isso significava a morte do companheiro que tanto estimava. Trs
dias depois Stanislas de Guaita estava morto, vtima de uremia. Seu
esprito, galgando as alturas das regies celestes, foi atuar no
mundo das almas glorificadas, na Comunho dos Iniciados.
No deixou testamento literrio ou filosfico, na opinio de seus
bigrafos e amigos. Muitos acreditaram que seus ltimos desejos no
foram transmitidos aos amigos de Paris. A biblioteca, que valia no
mnimo 38 mil francos, foi vendida por apenas 15 mil francos
Livraria Dorbon; os livros raros, com notas do punho do Adepto,
foram dispersados. A famlia recusou todo tipo de oferta dos amigos
pela biblioteca parisiense. Muitos manuscritos seus foram
queimados, assim como diversos documentos. Sua famlia via na
atividade inicitica do Mestre a causa de sua morte, esquecendo-se
de que o pai fora atingido pelo mesmo mal em 1880.
O mal que ele tanto procurou combater reside na imaginao
corrompida das pessoas, nos coraes endurecidos pelo orgulho e pelo
dio; reside no egosmo e nos falsos valores da humanidade. A morte
fsica apenas distancia o homem da matria, ptria da prova e do
aperfeioamento, para coloc-lo em outro plano de conscincia. um
sofrimento para todos pela saudade, principalmente para aqueles
que, no estando preparados, ainda no se desvincularam dos laos da
encarnao; uma recompensa para o Adepto porque alcanar a liberdade
total, a desvinculao das necessidades fsicas; viver na Luz e pela
Luz, contribuindo para a emancipao de seus semelhantes que ainda
permaneceram para trs na escala evolutiva.
A natureza se renova com o nascimento de um novo Sol em seu
seio.
Todas as almas prosternam-se diante do novo rei que toma assento
no Trono da Glria.
Cumpriu-se um novo ciclo na histria da Regenerao do Gnero
Humano.
Um novo sculo se abre e novos iniciados realizaro igualmente a
sua obra.
E encontraro o caminho um pouco mais facilitado pelo trabalho de
seus antepassados, Filhos da Luz, como foi Stanislas de Guaita.
Sociedade das Cincias AntigasNo Umbral do MistrioEsta obra
resume, de forma brilhante, a evoluo do Hermetismo, desde o ciclo
de Ram e o Reino do Carneiro at os Franco Juzes da Idade Mdia e as
Sociedades que nasceram das cinzas dos Templrios, passando pela
India, Prsia e pela Grcia legendria. A obra distingue claramente o
Hermetismo do Espiritismo e das prticas de feitiaria.Stanislas de
Guaita descreve os grandes Iniciados do Ocidente, mostrando a
retransmisso do sacerdcio mgico e religando-os desde Alberto, o
Grande, at Saint-Yves dAlveidre e Papus, passando por Louis Claude
de Saint-Martin, na Revoluo Francesa, e por Fabre dOlivet.
Constata, por fim, a renovao do Hermetismo da sua poca (1886), da
qual ele prprio um dos principais expoentes.
A primeira edio desta obra veio luz em 1886. Logo esgotou-se,
dando lugar a uma segunda edio, revista e ampliada em 1890. A
reviso definitiva foi efetuada com a edio de 1895, na qual se
baseia a presente traduo.
INTRODUOEst em voga indignar-se simples meno das palavras
Hermetismo ou Cabala. Diante delas trocam-se olhares marcados por
uma ironia benevolente, e sorrisos mordazes acentuam a expresso de
desdm dos perfis. Na verdade, esses escrnios costumeiros s se
propagam em todos os tempos e entre os melhores espritos por fora
de um mal-entendido. A Alta Magia no constitui um compndio de
divagaes mais ou menos espritas, arbitrariamente erigidas em dogma
absoluto. Trata-se de uma sntese geral - hipottica, porm racional -
duplamente respaldada na observao positiva e na induo por analogia.
Atravs da infinita diversidade dos modos transitrios e das formas
efmeras, a Cabala distingue e proclama a Unidade do Ser, remonta
sua causa essencial e encontra a lei de suas harmonias no
antagonismo relativamente equilibrado das foras contrrias. Chamados
ao equilbrio, os poderes naturais jamais o realizam integralmente.
O equilbrio absoluto seria o repouso estril e a verdadeira morte.
Ora, de fato, no se pode negar a Vida, no se pode negar o
movimento. Preponderncia alternada de duas foras aparentemente
hostis e que, tendendo ao equilbrio, oscilam incessantemente de um
lado para outro: esta a causa eficiente do Movimento e da Vida. Ao
e reao! A luta dos contrrios tem a fecundidade de um estreitamento
sexual - o amor tambm um combate.A Magia admite trs mundos ou
esferas de atividade: o Mundo Divino, das causas; o Mundo
Intelectual, dos pensamentos; o Mundo Sensvel, dos fenmenos(23).
Uno em sua essncia, trplice em suas manifestaes, o Ser lgico e as
coisas do alto so anlogas e proporcionais s coisas que esto embaixo
tanto que uma mesma causa gera, em cada um dos trs mundos, uma
pluralidade de efeitos correspondentes e rigorosamente determinveis
por clculos analgicos. Eis, assim, o ponto de partida da Alta
Magia, essa lgebra das idias. Todo axioma, marcado por seu nmero
genrico, representado, cabalisticamente, por uma letra do alfabeto
hebraico, de acordo com esse nmero. Assim, os conceitos
classificam-se na medida em que geram; desenvolvem-se em cadeias
interminveis, na ordem de sua filiao. Causas primeiras com os mais
remotos efeitos, princpios os mais simples e claros com inmeros
resultados deles derivados; que maravilhoso processo desenrolado em
todos os domnios do contingente, remontando at aquele Inefvel que
Herbert Spencer denomina Incognoscvel!
"De omni re scibili et quibusdam aliis..." Cincias conhecidas e
cincias ocultas, a sntese hiertica abarca, de uma s vez, todos os
ramos do saber universal, cuja raiz comum. em virtude de um
princpio idntico que o molusco segrega ncar e o corao humano, amor.
E a mesma lei rege a comunho dos sexos e a gravitao dos sis. Porm,
ressuscitar a Cincia integral uma tarefa que ultrapassa nossas
foras: no esmiuando os resultados por demais indiscutveis e as
teorias j bastante universalizadas, cumpre-nos limitar estes
Ensaios ao exame de fenmenos ainda misteriosos e ao estudo de
problemas especiais que a cincia oficial ignora, despreza ou
desfigura. Tentaremos, sobretudo, nesta srie de opsculos esotricos,
reatar questes perturbadoras, diante das quais o ceticismo moderno
se sobressalta, aos grandes princpios invariavelmente professados
pelos adeptos de todos os tempos. Um dia talvez nos seja dado
sublimar, em um corpo de doutrina coeso, esta alta filosofia dos
mestres.
Aquilo que, aos olhos do leitor, no mais do que uma hiptese -
extravagante, sem dvida - , para ns outros, um dogma incontestvel.
Assim, pedimos desculpas por falarmos com a firme segurana de quem
cr. Baseamo-nos notadamente na Iniciao hermtica e cabalstica.
Contudo, sabemos que nos santurios da ndia, nos tempos da Prsia, da
Hlade e da Etrria, bem como entre os Egpcios e os Hebreus, a mesma
sntese revestiu mltiplas formas e os simbolismos aparentemente
discrepantes, contraditrios, traduzem, para o Eleito, a Verdade
sempre Una, na lngua fundamentalmente invarivel dos Mitos e dos
Emblemas.
Desde o cisma dos gnsticos at o sculo XVIII, a vida dos adeptos
apresenta-se como um constante martrio: venerveis excomungados,
patriarcas do exlio, noivos da potncia e da fogueira, conservaram
na provao a serenidade herica que o Ideal confere aos seus
seguidores fervorosos; viveram sua agonia, pois assumiram o Dever
de transmitir aos herdeiros de sua f proscrita o tesouro da cincia
sagrada; escreveram seus smbolos que hoje deciframos... finda a era
do fanatismo oficial e das supersties populares, mas no a era do
juzo temerrio e da parvoce: se os Iniciados no so queimados, so, de
qualquer forma, objeto de escrnio e de calnias. Mas eles j se
resignaram injria, como seus pais, os mrtires.
Talvez se chegue a suspeitar, algum dia, de que os antigos
hierofantes no eram nem charlates, nem sandeus... - Ento, Cristo,
teus servidores lembrar-se-o de que os Magos se prosternaram diante
de teu bero real. E assim, espargida por toda parte, a Caridade
testemunhar excelsamente que adveio o teu reino: Adveniat regnum
tuum!... Aguardando que soe esta hora de Justia e de Gnose,
entregamos ao escrnio ruidoso da maioria, submetemos ao imperfeito
juzo de alguns, estes ENSAIOS DE CINCIAS MALDITAS.
Stanislas de GuaitaNO UMBRAL DO MISTRIO
Cansado de buscar, em vo, a substncia sob o vu das formas que
ela assume, e de chocar-se incessantemente contra a muralha das
aparncias formais, consciente de um enorme alm, o menos mstico dos
pensadores quis, certo dia, sondar os arcanos do mundo
extrasensvel. Assim, subiu a montanha at o templo do mistrio,
chegando a seu limiar. Ora, as geraes anteriores a ele assediaram o
santurio sem jamais descobrir nele uma nica porta. Renunciando a
esse sol interior que faz florir, nos vitrais, rosceas de luz, no
conservaram nada alm do ofuscamento de sua miragem eterna. Os
solicitadores degraus do templo terminam no granito inspito das
muralhas. No fronto, acham-se gravadas duas palavras que provocam o
calafrio das coisas desconhecidas: "SCIRE NEFAS".Um subterrneo cuja
chave est perdida abre-se em algum ponto do vale. Costuma-se dizer
que, no decorrer dos sculos, alguns raros audaciosos souberam forar
o segredo do subterrneo, onde se cortam inmeras galerias
entrelaadas: l jaz o inexorvel ministro de uma lei incontestvel. O
antigo guardio dos mistrios, a Esfinge simblica, ergue-se sobre o
umbral e prope o enigma oculto: "Treme, Filho da Terra, se tuas mos
no so brancas diante do Senhor! Iod-Heve aconselha apenas aos seus.
Ele prprio conduz o adepto pela mo at o tabernculo de sua glria. O
temerrio profano, porm, afasta-se infalivelmente e encontra a morte
nas trevas do brathro. Que aguardas? Recuar impossvel. Deves
escolher teu caminho pelo labirinto. Cabe-te decifrar ou
morrer..."
Acautelai-vos, para no verdes nesses smbolos temveis vs ameaas.
A alta cincia no poderia ser objeto de uma curiosidade frvola. O
problema sagrado, e sobre ele empalideceram muitas frontes
privilegiadas. Assim, questionar a Esfinge por capricho um
sacrilgio nunca impune, pois uma tal linguagem traz em si o verbo
de sua prpria condenao. vossa pergunta indiscreta, o Desconhecido
formula uma resposta inesperada, to perturbadora, que a obsesso
permanece em vs para sempre. O vu do mistrio incitava vossa
curiosidade? Ai de vs se o levantas! Ele cai imediatamente de
vossas mos trmulas e o desatino se apodera daquilo que julgaste
ver. No sabe quem deseja distinguir o raio divino do reflexo mil
vezes refratado nos densos meios da iluso terrestre. Esse arcano
ser elucidado mais tarde. O que quer que ele seja, os fantasmas da
alucinao assombram o umbral do mistrio, e perguntai ao livro do
doutor Brire de Boismont(24) que passo escorregadio separa a
alucinao da loucura. Como veremos, trata-se de uma porta que no
podemos transpor sem entrarmos em contato com certas foras das
quais nos tornamos senhor ou escravo, governante ou joguete.
Trata-se de poderes que a Mstica Crist simbolizou com a imagem da
serpente que reduz o homem escravido, caso este no a submeta
primeiro, esmagando sua cabea com os ps. Os leitores de Zanoni(25)
- o belo romance de Bulwer Lytton - talvez j tenham descoberto, no
"monstro inominvel" que Glyndon evoca de modo to desastroso, um
mito anlogo ao da Gnese. A "coisa horrvel e velada", o "guardio do
umbral", a alma fludica da terra, o gnio inconsciente do nascimento
e da morte, o agente cego do Eterno Devir: a dupla corrente de luz
mercurial de que logo falaremos. O autor ingls assinala com grande
preciso a reversibilidade da luz astral, de que se tornam vtimas
aqueles que no a souberam dirigir: Glyndon livre para fugir, para
debater-se contra a obsesso, mas a influncia nefasta o acompanha e
o far tropear, de fatalidade em fatalidade, at o dia da catstrofe
suprema, at o dia em que Zanoni, delirando na embriaguez do
sacrifcio voluntrio, condenar-se-, salvando-o.
Penetremos o sentido esotrico dessas alegorias, reservando o
outro para depois. Uma coisa so os males do corao, que
habitualmente sucedem emoes violentas; uma coisa a morte iminente
por congesto cerebral; outra coisa so os perigos de natureza mais
estranha, que mencionaremos oportunamente. A prtica imprudente do
hipnotismo, a fortiori da magia cerimonial, no deixa de inspirar ao
experimentador um insupervel desgosto pela vida. O prprio
Eliphas(26) - adepto que foi, e de ordem superior - confessa que
sentiu, depois do curioso experimento de necromancia que fez em
Londres em 1854, uma profunda e melanclica atrao pela morte, ainda
que sem a tentao ao suicdio. O mesmo no se passa com os ignorantes
que se lanam, de corpo e alma, ao magnetismo, campo cujas leis
desconhecem; ou ao espiritismo, algo que por si s constitui uma
aberrao e uma loucura. "Felizes", proclama o clebre Dupotet,
"aqueles que morrem de uma morte rpida, de uma morte que a Igreja
reprova! Tudo o que h de generoso se mata..."(27)
A histria est repleta de exemplos de fatos como esse. Tendo
anunciado profeticamente o dia de sua morte, Jrme Cardan
suicidou-se (l576) para no desmentir a Astrologia. Schrppfer de
Leipzig, no auge de sua glria como necromante, provocou sua morte
com um tiro na cabea (1774). O esprita Lavater morreu
misteriosamente (1801). Quanto ao sarcstico abade de Montfaucon de
Villars, que tanto ridicularizou o conde de Gabalis(28), talvez nem
se saiba a ltima palavra de seu trgico fim (1673).
Assim, sobre os entusiastas do maravilhoso e os temerrios
amadores de revelaes de alm tmulo, sopra um vento de runa e de
morte. Como seria fcil estender a lista necrolgica! Mas pouco
importa. Inacessveis louca curiosidade, bem como rebeldes s emoes
doentias, somente podem afrontar impunemente as operaes da cincia
aqueles que sabem distinguir um fenmeno de uma prestidigitao e que
encouraam os seus sentidos contra toda e qualquer iluso. Merece o
nome de adepto aquele experimentador que tranqilamente diz a si
mesmo: "Meu corao no h de bater mais depressa: a fora invisvel que
desloca esses mveis com estrpito uma corrente dica submissa minha
vontade. A forma humana que se condensa e se avoluma nos vapores
desses perfumes nada mais do que uma coagulao fludica, reflexo
colorido do sonho de meu crebro, criao aztica do verbo de minha
vontade..." Quem fala assim no corre, claro, nenhum perigo; merece
o nome de adepto.
Todavia, bem poucos podem reivindicar esse ttulo. Tais homens,
se outrora eram raros, hoje ainda mais difcil encontr-los. Pouco
inclinados, alis, a aparies pblicas, vivem e morrem ignorados. para
os mais ruidosos que correm os nscios; aos mais pretenciosos que
cabe a fama. Taumaturgos teatrais, doentes excntricos, a esses que
a celebridade sorri e consagra: era feiticeiro Simo, ao tempo de So
Pedro: no sculo passado, eram Etteilla, o cartomante, e o exttico
Thot; ontem, eram Home, o mdium, e Vintras, o profeta!... Alguns
outros - esses verdadeiros sbios - tambm causam furor, mas graas a
certos traos equvocos ou charlatanescos de seu carter: assim, o
conde de Saint-Germain e o divino Cagliostro; Pierre le Clerc, o
beneditino fatdico, e o espiritualssimo quiromante
Desbarrolles.
Todas as vezes que um charlato despontou cingido por uma aura de
magicidade, com um cetro grotesco na mo, tudo o que tinha de odioso
recaiu sobre verdadeiros adeptos. Na verdade, estes beneficiaram-se
do escrnio, enquanto aqueles se beneficiaram do dinheiro. Essa,
indubitavelmente, foi a causa maior das calnias que tanto sofreram
- sobretudo na Idade Mdia - os discpulos de Hermes, de Zoroastro e
de Salomo: os magos eram acusados das prticas criminosas, obscenas
e blasfematrias que os feiticeiros e feiticeiras realizavam no
sabbat. Todos os delitos desses monstros de ambos os sexos -
violaes, malefcios, envenenamentos, sacrilgios foram imputados a
iniciados superiores, sobre cuja vida privada pairavam as mais
abominveis maledicncias; e sua doutrina reputada como uma trama de
intensa inpcia e de grosseiras injrias contra o Cristo e a Virgem
Maria, tornou-se espantalho das almas piedosas e objeto de escrnio
das pessoas de esprito.
Deve-se confessar, alis, que o simbolismo esotrico dos livros de
Hermetismo e de Cabala no deixou de acentuar o desprestgio das
altas cincias entre os espritos superficiais. Para isso contribua a
viso de conjunto: os complicados sinais de planetas, as letras
hebraicas dos hierogramas, os caracteres rabes dos grimrios, a alta
fantasia aparente dos pantculos e a bizarria mstica das parbolas,
coisas extremamente diablicas no entender dos parvos e ignaros,
primeira vista pueris, no entender dos espritos lgicos, e, de
qualquer forma, excitantes da curiosidade de cada um. Em todos os
tempos, os sbios escreveram e falaram a lngua dos mitos e das
alegorias, mas a obscuridade da forma jamais se fez sentir to densa
e misteriosa como na Idade Mdia, at o sculo passado; a intolerncia
dos inquisidores, a constante ameaa da fogueira e o fantico
desatino da populao diante da simples meno da palavra feiticeiro
justificam suficientemente a precauo dos adeptos. A cincia oculta
assemelha-se a esses saborosos frutos protegidos por cascas
espessas e duras: agrada-nos retirar laboriosamente a casca; a
polpa suculenta do fruto com certeza ressarcir o nosso
sofrimento.
Foi a alquimia vilipendiada muito cruelmente e a transmutao dos
metais ridicularizada vontade? No se trata, aqui, de fazer apologia
ou, mesmo, uma exposio da arte espagrica. Exultamos, porm, ao
transcrever, para a confuso dos parvos difamadores, a recente
apreciao daquele que , talvez, o maior qumico da Frana
contempornea, Berthelot, em suas Origens da Alquimia: "Reconheci no
somente a filiao das idias que os (os alquimistas) levaram a
almejar a transmutao dos metais, como tambm a teoria, a filosofia
da natureza que lhes servira de fundamento, teoria essa fundada na
hiptese da unidade da matria E, NA REALIDADE, TO PLAUSVEL QUANTO AS
TEORIAS MODERNAS QUE HOJE GOZAM DO MAIOR PRESTGIO... Ora, que
estranha circunstncia! As opinies a que os sbios tendem a voltar
suas atenes, sobre a constituio da matria, no deixam de ser anlogas
s profundas vises dos primeiros alquimistas"(29).
V-se com isso como nosso ilustre contemporneo revela as
filosofias hermticas. Sua admirao talvez fosse bem maior se,
plenamente iniciado no espagirismo esotrico, penetrasse o triplo
sentido dessas locues especiais que seu gnio s pde adivinhar de
modo imperfeito(30).
Mas a alquimia apenas uma parte mnima da cincia, ensinada nos
santurios da antiguidade. No revoltante pensar que, ainda hoje, os
espritos lcidos ainda no aprenderam a distinguir entre as orgias
sanguinolentas do sabbat legendrio, os monstruosos priapismos da
magia negra e os faustos dessa cincia tradicional dos iniciados do
Oriente, sntese gigantesca e esplndida que traduz em imagens
grandiosas augustas verdades apenas vislumbradas pelos pensadores
de todos os tempos, e luminosas hipteses, deduzidas por analogia,
que hoje a cincia, mais esclarecida e mais racional, tende a
confirmar.
Qual Valmiki da Europa cantar as civilizaes tirnicas do mundo
primitivo, os grandes ciclos intelectuais testemunhados pela Alta
Magia? E, para celebrar dignamente esta me de todas as filosofias,
quem nos dir a epopia de sua glria resplandecente sobre as naes
antigas, e o recente drama do martrio de seus adeptos, perseguidos
pela Igreja e alvejados pelas calnias do mundo inteiro?... Assim se
apresenta para ns a alta Cincia atravs da humanidade, maldita e
desprezada desde a traio dos gnsticos dissidentes; confundida, na
imaginao aterrorizada das massas, com a imunda feitiaria;
desacreditada pelos falsos sbios cujos sonhos fteis ela solapa,
desatinando a escolstica em delrio; crivada, enfim, de antemas de
um presunoso sacerdcio, desprovido de sua iniciao primitiva!... De
tal forma se nos apresenta esta cincia ao longo de pelo menos
quinze sculos de histria, que, mergulhando fundo no passado,
hesitamos em reconhec-la, resplandecente e sagrada nos santurios do
mundo antigo e, mais tarde, conferindo um puro esplendor ao
cristianismo oculto dos primeiros Papas.
No que a antigidade no tivesse seus feiticeiros - e, sobretudo,
feiticeiras. A magia envenenadora conquistou, com as megeras da
Tesslia e da Clquida, uma lgubre celebridade. Visitantes noturnas
de tumbas, vestais impuras de lugares desertos, elas misturavam, na
seiva narctico-acre dos meimendros negros e das cicutas, o leite
custico do titmalo e faziam digerir extratos de acnito licoctone e
de mandrgora com inominveis venenos e humores obscenos. Depois,
seus encantamentos saturavam essas misturas com um lquido que se
tomava tanto mais mortfero quanto mais dolorosamente o seu dio, por
muito tempo contido, o tivesse elaborado e projetado em uma clera
mais venenosa e tcita. As cozinhas de Candia (to horrendas que, sua
vista, a lua se velava, conforme se diz, com uma nuvem sangrenta)
tiveram a honra de provocar o desgosto lrico de Horcio, cujos
detalhes no preciso descrever aqui, presentes que esto na memria de
todos os aficionados do poeta.
No menos clebre a lenda que Homero poetizou, a saber, a dos
companheiros de Ulisses, enfeitiados, que se tornaram porcos
submissos varinha de Circe. Todos beberam da poo e sofreram a
metamorfose; isso implica um duplo smbolo: o da derrota a que so
predestinadas as naturezas passivas no combate da vida e o da
servido a que nos reduzem as paixes fsicas no equilibradas por uma
iniciativa sempre desperta (paixo, pois, exprime um estado
passivo). Todos beberam, dissemos. Ulisses, porm, recusa molhar os
lbios na taa encantada e no tom calmo, prprio da fora consciente de
si mesma, com o gldio em punho, num gesto de ameaa, ordena maga que
quebra o sortilgio fludico. O prncipe, aqui, representa o Adepto, o
mestre dos fluidos, pois que, hbil em desmontar a armadilha, sabe
imprimir s ordens que d o verbo autoritrio de sua vontade. Nele,
Circe reconhece o homem mais forte que todos os encantamentos e,
com a cabea baixa, obedece.
Mais sanguinria e mais perversa, Media tambm deve aos poetas o
lamentvel privilgio de sua ilustrao; muitos cantaram sua vida
errante. Media envenena seus prximos, queima e massacra seus
filhos. Refugiada em Atenas, perto do rei Egeu, que a torna me, ela
d largas aos seus instintos de depravao feroz e de inveja,
confiante na impunidade, at o dia em que seus crimes suscitam a
indignao de toda a cidade. Plida apupada e apedrejada pelo povo, a
infeliz v-se forada a fugir, com os olhos incendiados por um dio
implacvel, apertando no peito o nico filho que poupara, qual um
fruto duplamente sagrado pelo adultrio e pela vingana.
Pouco importa que a histria dessas duas irms de malefcio seja
real ou legendria. As individualidades fabulosas so tipos de sntese
moral em que se encarna o gnio mdio de uma raa ou de uma casta. A
estirpe execrvel das sagas da Hlade fez desabrochar Media em uma
suprema expanso de vigor. Sim, as abominaes a que se refere o povo
com referncia a empusas e vampiros foram literalmente realizadas
pelas feiticeiras do mundo antigo, criaturas a quem a clera pblica
conferiu, alis, os nomes de estrige e de lmia.
Entretanto, deixemos esses horrores. Se na Idade Mdia monstros
desse tipo foram confundidos, aqui e acol, com os verdadeiros
iniciados, que estes - repito - necessariamente suspeitos de
heresia, excomungados ipso facto, encurralados como cervos, viam-se
obrigados a ocultar nas trevas o mistrio de sua dolorosa existncia.
Desde ento, a calnia vigorou. Mas tal coisa, graas a Deus, no era
possvel ao tempo em que a teurgia enchia os templos de maravilhas e
em que o mago, calmo e benfazejo em seu ilimitado poder, reinava,
inviolvel como um soberano, venerado como um Deus...
Meditai sobre o livro magistral de Saint-Yves d'Alveydre - A
Misso dos Judeus(31). Religioso perscrutador das necrpoles do
passado, perquirindo at os mnimos detalhes das raas e das religies
orientais, o eminente ocultista estabeleceu, com base nas provas
mais irrefutveis, uma verdade que Fabre d'Olivet(32) e,
posteriormente, Eliphas Levi(33) j haviam entrevisto de forma
lapidar, ou seja, o fato de a Gnese ser uma cosmogonia
transcendente em que os mais profundos arcanos da santa Cabala so
revelados simblica e hieroglificamente. Mas a Cabala primitiva
filha do Hermetismo egpcio, cujos mitos primordiais foram hauridos
pela grande fonte hindu. Saint-Yves no se detm, portanto, em Moiss.
Como um navegador, explora o rio dos tempos passados. Desfraldando
todas as velas, sobre o curso dos sculos at a origem do ciclo de
Ram.
Eis aqui o imenso imprio arbitral do Carneiro. Seu governo
"sinrquico", cuja organizao ternria conforma-se s leis da cincia e
da harmonia, faz florescer sobre a Terra, durante dois mil anos, a
idade de ouro celebrada por Ovdio. Dos trs conselhos encarregados
da gesto dos negcios, os dois primeiros compem-se, respectivamente,
de hierofantes admitidos na iniciao suprema, e de adeptos laicos.
Ram conquistou um tero do mundo apenas com vistas a pacificao. Uma
vez atingido esse objetivo, renuncia ao gldio, coroa e ao
estandarte do Carneiro, em uma palavra, renuncia aos poderes
executivo e militar, deixando-os nas mos do primeiro prncipe
indiano. Assim, colocando a tiara do Soberano Pontfice universal,
arvora a auriflama do Cordeiro - hierglifo do sacerdcio. Este
realizador da mais vasta sntese que a mente humana pde conceber,
este soberano do mais gigantesco imprio civilizado que Csar ousou
cobiar em sonho, troca a coroa imperial pelo cetro do mago dos
magos e pela divindade terrestre; pode-se dizer, pois, que esses
hierofantes exerciam, ento, a divindade sobre o microcosmo.
Durante mais de trinta sculos, at o cisma de Irschu, a grande
obra de Ram prospera em ordem e em paz. Queremos transcrever, aqui,
a enumerao das metrpoles religiosas do Imprio, de acordo com
Saint-Yves.
"Os santurios mais clebres deste antigo culto lmico foram, entre
os indianos, os de Lanka, Ayodhia, Guzah, Methra e Dewarkash; no
Ir, os de Vahr, Balk, Bamiyan; no Tibete, os do monte Boutala e de
Lassa; na Tatarah, os de Astrakan, Gangawas e Baharein; na Caldia,
os de Ninweh, Han e Houn; na Sria e na Arbia, os de Askala,
Balbeck, Mambyce, Salem, Rama, Meca e Sanah; no Egito, os de Tebas,
Mnfis e Amon; na Etipia, os de Rapta e de Meroe; na Trcia, os de
Hemus, Balkan e Concayon ou Goy-Hayoun; na Grcia, os de Parnasso e
de Delfos; na Etrria, o de Bolsena; em Osk-tan, antiga Ocitnia, o
de Nimes; entre os iberos da Espanha, irmos dos hebreus e dos
iberos do Cucaso, os de Huesca e Gades; entre os golacks
(gauleses), os de Bibracte, Perigueux, Chartres, etc..."
Esse excerto pode dar uma idia do que foi o imprio de Ram.
Entretanto, no nos propomos a um ensaio de histria. Os curiosos que
buscarem no livro de Saint-Yves o quadro completo desta "sinarquia
arbitral" sero inteiramente informados da sua organizao, suas leis
e seu destino, desde sua origem at o seu apogeu, de sua decadncia
at o seu desmembramento: o cisma de Irschu, o positivista, que
pretende cindir a idia de Deus e que, excluindo o princpio ativo e
paternal, faz subir seu incenso na direo do princpio produtor
passivo; a tirania da Babilnia e de Nnive e a falsa interpretao do
dualismo de Zoroastro; as distncias faranicas; a China de Fo-hi; a
emigrao dos hebreus dirigida por Moiss, etc...
Seriam necessrios diversos volumes para acompanhar at nossos
dias a transmisso do sacerdcio mgico - se o fizssemos sem
interrupo. Sem pretender ao menos esboar uma viso global, ns nos
restringiremos a alguns aspectos caractersticos.
Na medida em que avanamos na histria, vemos deslocar-se a
hierarquia universal. Observamos que a unidade primitiva
paulatinamente rompida por uma multiplicidade de cismas, que sobre
as runas dos grandes colgios de magos - esses centros oficiais, de
alta iniciao psquica e mental, que outrora espargiam luz e calor
por sobre o mundo pacificado - surgem adeptos individuais. O
ensinamento geral das universidades ocultas sucedido por escolas
particulares de mestres independentes. Constituem exceo, no
entanto, alguns santurios clebres, tais como Delfos, Mnfis,
Preneste, Elusis, entre outros. O inevitvel desmoronamento destes
santurios foi retardado por muito tempo, mas o nvel do ensino,
materializado, decaiu pouco a pouco.
Dilacerada pela queda do Supremo Pontificado universal, a
centralizao hierrquica no mais opunha ao transbordamento das paixes
a sua barreira tutelar: os sacerdotes tornaram-se homens novamente.
A pior das rotinas - a da inteligncia - elegeu os templos como
domiclio e o esprito passa a ser substitudo pela letra. Os
pontfices logo perderam at mesmo a chave tradicional dos hierglifos
sagrados, para realizar-se, assim, em todo o mundo conhecido, a
profecia de Thoth, o Trismegisto: "Egito, Egito! De tuas religies
restaro apenas vagos relatos em que a posteridade no mais
acreditar, palavras gravadas sobre a pedra, relatando tua
piedade... O Divino retornar ao cu, a humanidade, abandonada,
perecer por inteiro, e o Egito ser deserto e vazio de homens e de
deuses!... Ela, que outrora fora a terra santa, amada pelos deuses
por sua devoo a eles, ser a perverso dos santos, a escola da
impiedade, o modelo de todas as violncias. E ento, cheio de
desgosto pela matria, o homem no mais ter pelo mundo qualquer
admirao ou amor(34)"...
Esta ser, verdadeiramente, a palavra vibrante do legendrio
personagem que passa, sob o nome de Hermes Thoth, por trplice
fundador da religio, da filosofia e da cincia egpcias? A crtica
moderna inclina-se a contestar a autenticidade do Poimandres
(Poemander), de Asclpio e da Kor Kosmu (Minerva mundi), bem como de
outros fragmentos hermticos. Com efeito, no h erro quanto pessoa?
Sabe-se que os hierofantes conferiam a si prprios, juntamente com a
tiara, o nome de Hermes e o sobrenome de Trismegisto.
Posteriormente, tais dogmas, prximos da doutrina crist, parecem
denunciar a autoria de um neoplatnico... Portanto, preciso ter
cuidado! Se o cristianismo apenas um modo novo da antiga ortodoxia
universal, essas semelhanas justificam-se de outra forma que no
pelo plgio. Alis, dificilmente poderamos ver nos filsofos
alexandrinos os autores desta Tbua de Esmeralda, de um contedo
inicitico magistral. Acreditamos, assim, na antiguidade dos
fragmentos de Hermes. [A forma, sem dvida, pode ter sofrido alterao
ou ter sido rejuvenescida pela pena dos tradutores e dos copistas,
mas o essencial data de poca mais remota e no variou](35).
Trata-se, ento, de um hierofante da poca urea que, mergulhando nos
confins da posteridade, prediz desventuras para a terra dos faras,
como Jeremias para a cidade santa dos Hebreus. Lamentamos ter de
mutilar esta grandiosa pgina. Entretanto, todos podero l-la no
Asclpios.
Jamais uma predio se realizou de modo to estranho. Tanto isso
verdade, que, segundo "homens srios" deste sculo, os antigos
egpcios adoravam a esfinge e outros animais fantsticos cujas
figuras podemos encontrar sobre os restos de seus monumentos. Dia
vir, sem dvida, conforme supe Eliphas, em que algum ocidentalista
definir o objeto de nosso culto: um deus trplice, composto de um
velho, um supliciado e um pombo. Ah! Antes os iconoclastas do que
os imbecis! Quebremos todas as imagens simblicas, se que se
degeneraro em dolos! De qualquer forma, os pensadores podiam contar
com essa materializao do culto: prescrevendo a transmisso dos altos
mistrios apenas com bom conhecimento de causa e mediante
ensinamento oral, a lei mgica expunha seus adeptos negligentes
possibilidade de perder a inteligncia dos mitos sagrados. " a pura
justia", talvez respondesse, a essa censura, um hierofante dos
velhos tempos. "Antes a cincia perecer, um dia, do que cair em mos
indignas!..."
Se verdade que os santurios ortodoxos desmoronaram aps uma
agonia de grande durao, algumas sociedades de adeptos laicos
perpetuaram-se, ao menos, at os nossos dias. No vemos aqui,
necessariamente, a franco-maonaria, cuja origem dita adonhiramita e
salomnica, no fez seno homens ludibriados conscientes e encantados
por assim serem. Trata-se, na realidade, de raros colgios - aquela
associao dos Mahatmas, por exemplo, que nos assinala um Louis
Dramard em sua brochura intitulada A Cincia e a Doutrina
Esotrica(36). Apaixonados por um ascetismo pantesta, talvez errneo,
mas notveis por sua sntese csmica e sua cincia espantosa de
realizao, os Mahatmas sucedem-se, diz ele, desde tempos imemoriais,
sobre os altiplanos do Himalaia. l que vivem no retiro e
mergulhados nos estudos. A Sociedade Teosfica, muito prspera nas
ndias Inglesas e em todo o imprio britnico, estendendo diversas
ramificaes at Paris, reivindica esses mestres orientais,
inspiradores diretos da interessante revista (O Teosofista) que foi
fundada em Madras sob os seus auspcios.
Mas retomemos ao mundo antigo. Quando Moiss, sacerdote de Osris,
deixou o Egito levando consigo a multido bastante miscigenada, que
guiou pelo deserto at Cana, a decadncia sacerdotal, que mal se
notava em Mizraim, acentuou-se entre os outros povos em que a
usurpao cismtica dissolvera a autoridade arbitral. A gangrena moral
invadiu sobretudo o pas de Assur, tiranizado, desde o advento de
Ninus (2200 a.C.), por uma seqncia ininterrupta de dspotas
conquistadores.
Alguns sculos antes, trs homens haviam despontado: entre os
indianos, Chrisna (3150); na Prsia, Zoroastro (3200); na China,
Fo-Hi (2950). Cabia-lhes derrubar o sanguinolento nemrodismo e
reconstituir parcialmente a antiga teocracia do Carneiro. No nos
interessa aqui descrever a obra de regenerao social levada a efeito
no Oriente por esses trs benfeitores da humanidade. O leitor
sequioso de detalhes poder recorrer ao livro de Saint-Yves, autor
de cuja eminente cronologia fizemos uso e a quem exprimimos nosso
reconhecimento. Observamos apenas, do ponto de vista hermtico, a
aparente reforma que Zoroastro, rei da Prsia, introduziu na
teologia esotrica. Aqueles que se ocupam das religies orientais
conhecem o significado hieroglfico das quatro letras do divino
tetragrama. Smbolo no do Ser absoluto que o homem no pode definir,
mas, antes, da idia que tem dele(37), o vocbulo Iod-heve ou Jehovah
(U Y U W ), que os cabalistas pronunciam letra por letra: iod, he,
vau, he, analisa-se da seguinte maneira:
W Iod: o esprito masculino; princpio criador ativo; Deus em si
mesmo; o Bem. Corresponde ao signo do falo, ao cetro do tar, e
coluna Iakin do templo de Salomo. (Em alquimia o enxofre ? ).
U He: a substncia passiva; princpio produtor feminino; a alma
universal plstica; a psque viva, a potencialidade do Mal;
representados pelos cteis, pela taa de libaes do tar, e pela coluna
Boaz. (Em alquimia, o mercrio ).
Y Vaf ou Vau: a unio fecunda dos dois princpios; a copulao
divina; o eterno devir; representados pelo lingham, pelo caduceu e
pela espada do tar. (Em alquimia, o Azoto dos Sbios \ ).
U H: a fecundidade da natureza no mundo sensvel; realizaes
ltimas do pensamento encarnado nas formas; os ouros do tar. (Em
alquimia, o sal). Esta ltima letra associa idia de Deus a do
universo, como finalidade: tambm o tetragrama Ieve (Iod-heve), alis
to admirvel, , neste sentido, de uma envergadura menos precisa que
o tetragrama } LO} (Agla), cuja quarta letra, exprimindo a sntese
absoluta do Ser, afirma vigorosamente a unidade em Deus.
Pois bem, para a compreenso do vulgo, Zoroastro reduziu os
termos a dois: o ativo e o passivo, o bem e o mal. Suprimindo,
pois, pelo menos aparentemente, o princpio equilibrante, pareceu
criar o imprio do demnio. Os iniciados, sem dvida, sabiam como
proceder. Assim, denominavam Mithras-Mithra o terceiro princpio,
que mantm o equilbrio harmnico entre Ormuzd e Ahriman. Todavia, a
partir do momento em que Zoroastro, talvez sem saber, pareceu
sancionar a crena no Binrio impuro, smbolo de um eterno
antagonismo, o reino de Sat foi estabelecido na imaginao do vulgo,
e o inferno maniquesta que aterrorizou toda a Idade Mdia no tem
outra origem seno esta.
Entretanto, longe de querer cindir Deus, reagindo contra Irschu
que, no Ser, divinizara a mulher, Zoroastro masculinizou o segundo
princpio. Nada de passivo, com efeito pode ser concebido nos
atributos do Ser essencialmente ativo e criador. Do mesmo modo, aos
olhos dos Padres da Igreja - e pelo mesmo motivo - a segunda pessoa
em Deus o filho, e no a me, que a existncia do filho supe como
condio. Como se v, foi inteiramente sem razo que se suspeitou de
Zoroastro como preconizador de um dualismo anrquico. Todavia, aos
olhos dos profanos, o mal j estava feito, e o ensinamento errneo do
segundo Zoroastro em nada atenuou as suas conseqncias.
Quanto a Fo-Hi, veremos como os seus Trigramas correspondem ao
pantculo macrocsmico de Salomo (a estrela de seis pontas, formada
por dois tringulos entrelaados com base paralela - representativos
dos mistrios do equilbrio universal).
Mas, depois deste longo parnteses, voltemos ao fundador dos
Bene-Israel.
Imbudo dos princpios da ortodoxia drica e confirmado nesta
doutrina pelo hierofante rabe Jethro, seu sogro, Moiss modelou o
governo de seu povo pelo antigo modelo sinrquico. O conselho de
Deus, ou dos sacerdotes de Israel, foi escolhido na tribo, a partir
de ento sacerdotal, de Levi. E foi da assemblia dos iniciados
laicos, ou conselho dos Deuses, que surgiram mais tarde nabis e
profetas, para lembrar aos soberanos e pontfices o seu dever
esquecido.
Contudo, o epopta-legislador eclipsou, em toda a sua vida, os
membros dos conselhos por ele mesmo criados. Notvel taumaturgo - at
o advento do Cristo, Israel jamais conheceu outro igual - Moiss
ilustrou a sua carreira com uma multiplicidade de prodgios, que
testemunham seu imprio absoluto sobre as foras fludicas e
misteriosas. O prprio rei dos magos, Salomo, no realizou obras que
se comparem s suas. Porm, nos livros mosaicos (Gnese, xodo, Nmeros,
Deuteronmio) que vemos o mais fascinante e imortal de todos os seus
milagres. Diante do Pentateuco, trplice obra-prima de poesia,
cincia e sabedoria, os livros de Salomo parecem-nos plidos. Nada no
Antigo Testamento consegue atingir a altura da revelao mosaica, com
exceo das pginas de hermetismo pico assinaladas pelo nome de
Ezequiel. Monumentos sublimes, sem dvida, de poesia oriental, o
Eclesiastes e o Cntico dos Cnticos(38) - passionais em suma, embora
de carter bastante diverso - parecem menos profundos e de inspirao
menos luminosa.
Em Israel, como em outros lugares, o sentido esotrico das
alegorias primitivas perdeu-se pouco a pouco, e os grandes
sacerdotes deixaram de compreender o prprio simbolismo do culto,
quando Jesus Cristo veio vivificar, reanimar o eterno dogma - que
dormia sob o vu j vetusto da revelao mosaica -, dando-lhe uma
roupagem nova, mais coerente com a alma mstica do mundo
rejuvenescido. Achamos prudente no falar aqui dessa misso divina,
pois onde a f comea talvez seja conveniente que a cincia pare, a
fim de evitar tristes mal-entendidos. Assim, evitemos falar nos
Evangelhos; no momento, no penetremos o seu simbolismo, e sempre
que, no decorrer deste rpido esboo, nos for necessrio falar de
crenas religiosas, declaremos de uma vez por todas que, nem um
pouco competentes em matria de f, temos em mira os homens e os
fatos apenas do ponto de vista da inteligncia e da razo humanas, e
sem jamais pretender dogmatizar.
Decorridos cerca de cem anos desde a morte do Cristo, os seus
ensinamentos se foram disseminando gradativamente. O sangue de seus
mrtires - pela paz futura - j havia, ento, batizado as trs partes
do mundo conhecido, quando os gentis, confundidos pelo progresso da
f crist, decidiram opor Messias a Messias e investir altar contra
altar. A caducidade dos velhos cultos necessitava imperiosamente de
uma nova revelao. Simo, o taumaturgo, lutara em vo pela deificao de
Helena, sua concubina, e de sua prpria pessoa. Surgiu apenas um
homem que parecia suficientemente grande para ser colocado ao lado
de Jesus de Nazar... Iniciado nos mistrios de todos os templos do
mundo, Apolnio de Tiana semeara prodgios por onde passara, e foi de
acordo com as memrias de Damis, o Assrio, um de seus fiis, que
Filostrato (193) escreveu, em grego, o evangelho do mago(39).
"Spiritus flat ubi vult..." Sobre o engenhoso repositrio de sbias
alegorias, narradas artisticamente, no melhor estilo, o esprito
vivificador no emitiu seu sopro. A multido, pois, no se dirigia ao
mago Apolnio. E, dois sculos mais tarde (363), vtima de uma
tentativa anloga de restaurao teocrtica, pde o imperador Juliano,
em seu ltimo suspiro, erguer ao cu suas mos debilitadas, cheias de
um sangue inutilmente derramado, e, adepto e sbio, clamar, antes
com lassido do que com ressentimento: "Venceste, Galileu!..."
Porm, antes de tratar dos iniciados de nossa era, acossados
pelas maldies mais ou menos efetivas do Cristianismo triunfante,
consagremos algumas linhas Grcia antiga. Os limites do presente
ensaio no comportam uma anlise da imensa epopia mstica cujas
poticas lendas foram celebradas por Homero, squilo, Hesodo. Assim,
ns nos restringiremos a saudar, em um personagem cuja existncia tem
sido posta em dvida pelo mundo moderno, o grande iniciador das raas
helnicas.
Contemporneo de Moiss, educado juntamente com ele em um santurio
de Tebas, Orfeu retornou ainda jovem Hlade, onde nascera. Enquanto
Moiss e os seus pisavam as areias ridas da sia, Orfeu,
sacerdote-orculo do grande Zeus, revia, sob o olhar severo de
Iod-Heve, o arquiplago azul e a pennsula natal, verdejante de
murtas e oliveiras. sua cara ptria, assolada pela desordem, trazia
ele a Cincia absoluta, haurida nas prprias fontes da Sabedoria - a
eterna Cincia do Ser inefvel, designado por Osris, Zeus ou
Iod-Heve.
Quando desembarcou, modulando na lira de sete cordas sua alma
expansiva e sonora de apstolo e de rapsodo, a terra predestinada
estremeceu toda, atenta aos seus acentos. Orfeu pregou o evangelho
do Belo e converteu os povos pelo prestgio da lira santa. Assim,
edificou-se uma restaurao teocrtica. A partir desse dia, o Gnio
grego, revelado a si mesmo, concebeu o harmonioso Ideal que o
consagra imortal entre todos.
A harmonia civilizadora. Assim, Virglio, um iniciado, mostra-nos
o aedo em xtase, fazendo chorar os animais selvagens, dceis diante
do magnetismo de sua voz, fazendo fremir de amor os carvalhos, que
se vergam para ouvi-lo: Mulcentem tigres et agentem carmine
quercus.
A harmonia criadora. Assim, a Tebas de Anfio, constituda ao som
da lira, de um simbolismo anlogo. Todos esses mitos no so
destitudos de profundidade. Marcam esplendorosamente o carter
esttico que a magia assumiu na Grcia.
A doutrina de Pitgoras irm daquela de Orfeu, assim como as
matemticas pacientes so irms da msica inspirada; analisam seus
acordes e denominam as suas vibraes. No Egito, Pitgoras aprende a
Cincia j decadente dos magos. Recebe, na Judia, das mos dos nabis
Ezequiel e Daniel, uma iniciao parcimoniosamente sincera(40). Cabe
ao seu gnio preencher, atravs da intuio, essas lacunas. De qualquer
forma, seu Tetractys e sua Trade correspondem, rigorosamente, ao
Tetragrama e ao Ternrio cabalsticos.
Quanto ao esoterismo de Plato, devolvido mais tarde e sutilizado
pelos teurgos de Alexandria, fundir-se-, nas mos dos Gnsticos, com
o cristianismo oculto, imediatamente derivado da doutrina essnia.
As obras de So Clemente de Alexandria, de Orgenes, de So Denis, o
Areopagita, e do bispo Sinsio testemunham irrefutavelmente este
intercmbio dogmtico. Parece que, inconscientemente, os herdeiros do
mundo antigo trataram, de potncia a potncia, com os fundadores do
novo mundo para firmar, de comum acordo, um compromisso filosfico.
Em So Joo, reencontramos a tradio secreta, mas, integral, dos
velhos mestres de Israel, a tal ponto que o Apocalipse forma,
juntamente com o Zohar, o Sepher Ietzirah(41) e algumas pginas de
Ezequiel, o mais puro corpo doutrinrio e clavicular da Cabala
propriamente dita.
Alm disso, Porfrio e Jmblico, por mais pagos que se proclamem,
pregam o Cristianismo sem o saber, ao lanarem os retalhos de um vu
mstico envelhecido sobre estes mesmos grandes princpios que o
simbolismo cristo acaba de revestir, de modo to magnfico, com novas
alegorias, mais de acordo com o gnio da era nascente.
Lastimavelmente, porm, a Igreja no soube reservar para si mesma,
por muito tempo, a chave do inestimvel tesouro, confiado guarda de
seus altos prelados. Tal chave garantia a unidade hierrquica nas
mos do Soberano Pontfice (da em diante, indispensvel como
revelador); penhor de ortodoxia infalvel nas mos dos Prncipes do
sacerdcio (mesmo para, a partir da, controlar tudo, luz da sntese
fundamental), tal chave - que a do Bem e do Mal - s poderia abrir,
para o vulgo, o reino das trevas. A razo transcendente do dogma
acha-se muito acima do nvel intelectual das massas, sendo que as
mais graves heresias so verdades mal compreendidas.
Alguns iniciados na Gnose, invejando a autoridade hierrquica,
resolveram fazer com que ela perdesse o tesouro da tradio oculta. A
malcia desses homens empenhou-se, subrepticiamente, no sentido de
levantar todos os vus. Chegou um dia em que, revelado em suas mais
secretas frmulas, o dogma esotrico foi posto merc da estupidez das
multides. A luz ofuscante cegou os olhos fracos. Diante da suprema
sabedoria, os ignorantes julgaram-se feridos em sua parvoce e se
escandalizaram. A Igreja, ento, teve que anatematizar a inscrio
sublime do templo, a razo positiva e a razo real do dogma: esta
Gnose santa dos adeptos que, temerariamente traduzida para a
linguagem das massas, tornara-se, para a imbecilidade delas, o
objeto do maior escndalo - uma mentira!
Ah! tinha toda razo o bispo Sinsio quando escreveu: "O povo
sempre escarnecer das verdades simples. Ele necessita de
impostores... Um esprito amigo da sabedoria e contemplador da
verdade sem vus forado a disfar-la para obter a aceitao das
massas... A verdade torna-se funesta aos olhos frgeis demais para
sustentar o seu esplendor. Se as leis cannicas autorizarem a
reserva das apreciaes e a alegoria das palavras, aceitarei a
dignidade episcopal que me oferecem, mas sob a condio de me ser
lcito filosofar em casa e contar, l fora, parbolas reticentes. O
que pode haver em comum, na verdade, entre a multido vil e a
sabedoria sublime? A verdade deve permanecer oculta. s massas s se
deve dar um ensinamento proporcional sua limitada
inteligncia(42)..."
Eis o que os anarquistas e tribunos jamais compreendero.
Embora o esoterismo sacerdotal tenha sido condenado sob o nome
de Magia, os papas, segundo se diz, conservaram misteriosamente as
suas chaves, at Leo III. Bons espritos lograram sustentar a
autenticidade do Enchiridion, compilao cabalstica publicada sob o
nome deste pontfice. Quanto ao Grimrio de Honrio, ocorre algo bem
diferente: consta, segundo uma engenhosa pesquisa de Eliphas Levi,
que esse ritual blasfematrio seria a obra ignominiosamente
maquiavlica do antigo Cadalous.
Montan, Mans, Valentin, Marcos, Ario, todos os heresiarcas dos
primeiros tempos apresentam-se, em maior ou menor grau, como
feiticeiros. Entretanto - com exceo dos tesofos de Alexandria - foi
somente Apuleio (114-190), platnico como eles, que fez jus, nessa
poca, ao ttulo de adepto. Seu Asno de Ouro, em que o burlesco roa o
sublime, dissimula, atravs de engenhosos emblemas, as mais altas
verdades da cincia, e a fbula de Psique, contida nessa sua obra,
nada deixa dever aos mais belos mitos de squilo ou de Homero. Tudo
leva a crer, alis, que Apulenio se ateve a parafrasear com gosto
uma alegoria de origem egpcia. Oriundo de Mandaura, na frica,
Apulenio romano apenas por direito de conquista e anexao. Este fato
sugere-nos que Roma, to frtil em abominveis necromantes, no deu
origem a nenhum verdadeiro discpulo de Hermes. No cabe objetar com
o nome de Ovdio, pois suas Metamorfoses, to graciosas a todos os
gostos, testemunham um esoterismo bastante errneo, para no dizer
ingnuo. Virgilio - este, um iniciado - cioso, antes de tudo, de
legar Itlia uma obra-prima do gnero pico, s nas entrelinhas, e de
modo eventual, evidencia o brilho de sua sabedoria.
No caso da Repblica e do Imprio de Roma, o carter perpetuamente
anrquico e nemrodiano que acusaram em todas as circunstncias
refuta, por si s, a hiptese de uma iniciao a nvel de governo. O
nico rei genuinamente "mago" de quem se podem orgulhar os filhos da
Loba foi Numa Pomplio (714-671), um Nazareno dos tempos da
Etrria(43) que as naes circunvizinhas impuseram Roma nascente. Mais
tarde, Juliano, o filsofo (360-363), figura tambm como adepto nos
faustos do Imprio. No entanto, nascido em Constantinopla,
proclamado Csar pelos Gauleses de Lutcia (360), ele tambm, por seu
turno, muito menos romano. Assim, dois so os soberanos iniciados da
cidade eterna: em seus primrdios, um rei, Numa Pomplio; j em seu
declnio, Juliano, o Sbio, um imperador. Entre os dois, a guerra
civil, a extorso e o arbtrio.
Esses gauleses que Roma chamou de brbaros so povos
verdadeiramente mais livres e civilizados. Seus druidas, herdeiros
diretos dos hierofantes ocitneos da teocracia do Carneiro,
perpetuam-lhe a tradio e transmitem uns aos outros, regularmente, o
depsito da cincia sagrada. Alguns preceitos de seu ritual so
interpretados, com efeito, em um sentido antropomrfico, errneo, mas
a inteligncia do dogma, ao que parece, conservou-se integralmente
nas mos dos sacerdotes, distanciados, contudo, dos grandes centros
de civilizao e ortodoxia. No obstante, na Glia, como em outros
lugares, a feitiaria recruta suas vestais sacrlegas. A feitiaria de
todos os tempos, e de todos os pases.
Sob os primeiros reis da Frana, pululam encantadores e bruxas. S
se fala de necromantes que oferecem a hospitalidade de seu corpo ao
diabo, de clrigos que exorcizam o diabo, de verdugos que queimam ou
enforcam necromantes. especialmente em honra dos feiticeiros que
Carlos Magno institui, sob o nome de Santa Vema (772), essa terrvel
sociedade secreta que, sancionada novamente pelo rei Roberto
(1404), aterrorizar mais de trinta geraes(44). Primeiramente na
Vesteflia, mais tarde em toda a Europa Central, os tribunais de
franco-juzes no tardam a multiplicar-se. Os mandados de priso se
pronunciam em cavernas inacessveis onde, por caminhos tortuosos, o
acusado conduzido de olhos vendados e com a cabea desnuda. No h
sentena intermediria entre a morte e a absolvio, com ou sem
reprimenda... Tanto camponeses como senhores temem encontrar,
alguma manh, a ordem de comparecimento afixada sua porta com um
golpe de punhal! E ai de quem no obedecer a citao dos franco-juzes!
Mesmo sendo cardeal, prncipe de sangue ou imperador da Alemanha,
ningum escaparia ao decreto de morte pronunciado revelia, e seria
apanhado cedo ou tarde. O que se segue mostrar a vingana oculta
vinculada aos passos do contumaz - sempre paciente, pois garantida:
"O duque Frederico de Brunswick, que foi imper