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Vincius Teixeira Pinto
SONS DO SULPerformances e poticas do rap em Porto Alegre
Dissertao de Mestrado apresentadaao Programa de Ps-Graduao
emAntropologia Social da UniversidadeFederal de Santa Catarina
comorequisito parcial para obteno do graude Mestre em Antropologia
Social.
Orientadora: Prof. Dr. Mara EugeniaDomnguez
Florianpolis2015
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AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, preciso manifestar minha profunda gratido atodos
os msicos e demais artistas que tive a sorte conhecer e
entrevistardurante o perodo de pesquisa em Porto Alegre: peo-lhes
licena parafalar sobre suas msicas. Meus guias durante estes meses
foram os MC'sndio e Sandro que dispensaram muito tempo contando um
pouco desuas histrias e respondendo s minhas curiosidades. No
possoesquecer do Rafa, em Esteio, que tambm no poupou gentileza
eateno comigo. Os caminhos pelos quais o texto desta
dissertaoenveredou no so obra do acaso, mas resultado da participao
destesprofessores.
Agradeo ao apoio do Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social
da UFSC, e da CAPES, atravs de uma bolsa demestrado, que
possibilitou a realizao desta pesquisa.
Agradeo orientao da prof. Mara Eugenia Domnguez, aolongo destes
dois anos. Sou grato por sua confiana neste trabalho desdeo dia em
que enviei o primeiro esboo de projeto por e-mail; por suaspalavras
de tranquilidade e alento quando qualquer esforo parecia vo;por sua
leitura atenta a cada linha deste texto; e por seus
ensinamentossobre escrita e antropologia.
Agradeo ainda aos colegas do Ncleo de Estudos Arte, Culturae
Sociedade na Amrica Latina e Caribe o MUSA por cada
tardecompartilhada, trocando relatos de pesquisa e sugestes.
Em Florianpolis tive o prazer de ser aluno de Rafael Jos
deMenezes Bastos quanta sutileza e elegncia -; de Vnia Zikn
Cardosoe Evelyn Schuler Zea, que enriqueceram demais a qualificao
doprojeto desta pesquisa; e de Scott Head e Theophilos Rifiotis.
Soudevedor de tantas contribuies que certamente sero percebidas
naspginas seguintes. Alm dos professores, conheci na cidade, uma
turmaque me far recordar principalmente as discusses durante a
elaboraodo projeto de pesquisa. Agradeo especialmente a Marcello
Malgarin eFabiana Stringini Severo, que tambm vieram de Santa Maria
comigo namesma barca.
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Foram muitos os amigos que de perto ou de longeacompanharam este
perodo passado na Ilha de Santa Catarina. Queroagradecer aos
santa-marienses Julio Souto, Guilherme Passamani,Martn Rimondino,
Iuri Muller, e Sebastin Ferrigno; aos santiguensesPedro Mesquita
Fonseca, Bianca Villanova, Thiago Lima, FernandoFurquim, Francisco
Nunes, Filipe Manzoni, Rodrigo Silva, LeonardoFabrin e Gerson
Oliveira; aos santafesinos Dieisson Pivoto, AndrsPrato e Francesco
Palmeri.
Sou infinitamente grato a meus pais Paulo e Vera e a meu
irmoRodrigo por toda a compreenso e pelo apoio incondicional,
apesar dehaver tanto continente entre Santiago e o mar.
Finalmente, a Magali Canton, minha companheira para asalegrias e
os infortnios. Agradeo pelo amor, pelo bom humor, pelocarinho e
pelo riso. Agradeo tambm por toda a participao nestapesquisa,
sempre que me incentivou, sempre que descobriu todas asfestas e
shows de rap pela cidade, acompanhando-me de uma parte aoutra.
Agradeo pela parceria intelectual, fazendo o exerccio deaprender
sobre hip hop e duelos de rima junto comigo. Sou grato
pelacasualidade, pelo Vamp, por cada surpresa e cada passeio por
estas ruasde Quintana.
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(...)Vo invadir o seu barraco, a polcia!
Vieram pra arregaar, cheios de dio e malcia.Filhos da puta,
comedores de carnia!
J deram minha sentena e eu nem tava na treta.
No so poucos e j vieram muito loucosMatar na crocodilagem - no
vo perder viagem:
Quinze caras l fora, diversos calibres, e eu apenascom uma treze
tiros automtica.
Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu orix,no primeiro barulho, eu
vou atirar.
O homem na estrada, Mano Brown.
***
(...)Senti o calor do ao e o calor do ao arde.
Me levantei - sem alarde, por causa do desaforoe soltei meu
marca touro num medonho buenas-tarde!
(...)Balanceei a situao, - j quase sem munio,todos atirando em
mim. qual ia ser o meu fim:
(...)E dali ganhei o mato, abaixo de tiroteio
e ainda escutava o floreio da cordeona do mulato.E, pra encurtar
o relato, me bandeei pra o outro lado,
cruzei o Uruguai, a nado, que o meu zaino era um capincho;E a
histria desse bochincho faz parte do meu passado!
O bochincho, Jayme Caetano Braun
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RESUMO
Partindo das contribuies de debates originados em torno
daAntropologia da msica, esta etnografia procura apresentar como o
rap ealguns conceitos relativos a ele atualizam-se em diferentes
performancesmusicais. Para tanto, amparou-se em pesquisa de campo,
realizada emPorto Alegre e regio metropolitana, durante a primeira
metade do anode 2014. Os esforos que este texto faz objetivam
reportar asexperincias de dilogo com alguns msicos locais, com o
intuito derecriar as festas, os shows e demais momentos relativos
audio demsicas do gnero em questo. Os eventos escolhidos para as
descriesdetalhadas foram: duelos de rima, rodas de improviso,
shows, gravaesde cds e gravaes de videoclipes. Todos eles foram
abordados comoatos comunicativos nos quais prevalece a funo potica.
A relevnciadeste tipo de proposta se d ao considerar a msica
enquanto uma obraaberta, no sentido dado por Eco, isto , algo que
construdo entre umemissor e, ao mesmo tempo, um receptor. Assim, as
msicas no podemexistir de modo atemporal, mas apenas quando
atualizadas emperformances. Portanto, buscou-se relatar estas
experincias musicaiscom a maior riqueza de detalhes possveis,
considerando o pesquisadortambm um participante destes eventos.
Concomitantemente, discute-seos conceitos elaborados por msicos e
apreciadores do gnero musicalpara classificar tais performances. A
respeito deste ponto, foi percebidauma distino crucial para os
artistas entre msicas improvisadas emsicas memorizadas. Neste
sentido, o texto procura salientar asexpectativas que cada
categoria de eventos proporciona aos performers,abordando as
variedades de linguagens (verbal, musical, visual, etc.) etemas nas
msicas. Alm disso, discute-se com ateno especial o modocomo a
categoria rap gacho usada para definir msicas do hip hopfeitas em
Porto Alegre. Finalmente, esta etnografia procura
oferecercontribuies para analisar as poticas do hip hop, chamando
atenopara sua caracterstica geral enquanto poesia oral, mas,
tambmapontando de que maneira outras sensorialidades alm da
auditiva so fundamentais para construo destas narrativas
musicais.
Palavras-chave: 1. Hip hop 2. Rap 3. Antropologia da msica
4.Performance 5. Oralidade
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RESUMEN
Partiendo de las contribuciones de debates originados en torno a
laAntropologa de la msica, esta etnografa busca presentar como el
rap yalgunos conceptos relativos al mismo se actualizan en
diferentesperformances musicales. Para ello, se ampar en
investigacin decampo, realizada en Porto Alegre y regin
metropolitana, durante laprimera mitad de 2014. Este texto realiza
esfuerzos para relatar lasexperiencias de dilogo con algunos msicos
locales, con la intencin derecrear las fiestas, los shows y dems
momentos relativos a la audicinde msica del gnero en cuestin. Los
eventos escogidos para lasdescripciones detalladas fueron: duelos
de rima, ruedas deimprovisacin, shows, grabaciones de cds y
grabaciones de videoclips.Todos ellos fueron abordados como actos
comunicativos en los cualesprevalece la funcin potica. La
relevancia de este tipo de propuesta seda al considerar la msica
como obra abierta, en el sentido dado porEco, esto es, algo
construdo entre un emisor y, al mismo tiempo, unreceptor. As, las
msicas no pueden existir de modo atemporal, sinonicamente cuando
actualizadas en performances. Por tanto, se buscrelatar estas
experiencias musicales con la mayor riqueza de detallesposibles,
considerando, naturalmente, al investigador como unparticipante de
estos eventos. Al mismo tiempo, se discuten losconceptos elaborados
por msicos o aficionados del gnero musical paraclasificar tales
performances. Respecto a este punto, fue percibida unadistincin
crucial para los artistas entre msicas improvisadas ymsicas
memorizadas. En este sentido, el texto busca resaltar
lasexpectativas que cada categora de eventos proporciona alos
performers, abordando las variedades de lenguajes (verbal,
musical,visual, etc) y temas en las msicas. Adems de eso, se
discute conatencin especial el modo como la categora rap gaucho se
usa paradefinir msicas hip hop hechas en Porto Alegre. Finalmente,
estaetnografa busca ofrecer contribuciones para analizar las
poticas del hiphop, llamando la atencin sobre su caracterstica
general como poesaoral, pero tambin apuntando la manera en que
otras sensorialidades adems de la auditiva son fundamentales para
la construccin de estasnarrativas musicales.
Palabras clave: 1. Hip hop 2. Rap 3.Antropologa de la msica
4.Performance 5. Oralidad
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LISTA DE FIGURAS
Pgina Nao Hip Hop
Gaudria............................................................19Foto
de satlite da Regio Metropolitana de Porto
Alegre.....................39Foto de uma Batalha do
Mercado...........................................................43Mapa
do centro de Porto
Alegre.............................................................60Introduo
a um Flow Diagram de Paul
Edwards.................................88Anlise de Loose Yourself
atravs de Flow Diagram.............................89MC's em duelo
na Batalha do
Mercado................................................106Flyer de
divulgao da festa no Clube
Silncio...................................129MC ndio apresenta a
festa...................................................................130Material
de divulgao da banda
D'Lamotta........................................134Material de
divulgao de Flow
MC....................................................135Capa de ra
ra...................................................................................143Capa
de O preto do bairro
II................................................................148Frame
do videoclipe Velas ao
vento.....................................................153Frame
do videoclipe Resta
1................................................................155Frame
do videoclipe Cartas do meu
passado.......................................158Frame do
videoclipe Cartas do meu
passado.......................................160Frame do
videoclipe Se o tempo
permitir.............................................161
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SUMRIO
INTRODUO....................................................................................17i.
Descobrindo hip hop pela
cidade........................................................28ii.
Rap e hip hop enquanto problemticas
acadmicas...........................32iii. Resumo do que h por
vir..................................................................36
Cap. 1 PEDAOS DE HIP HOP EM PORTO ALEGRE.................39i.
Batalha do
Mercado.............................................................................43ii.
Banca
Clandestina..............................................................................48iii.
Ponto
Favela......................................................................................54iv.
Na cena musical: situando a
pesquisa................................................58
Cap. 2 DISCUTINDO O RAP A PARTIR DA ETNOGRAFIA
DAMSICA................................................................................................61i.
Msica enquanto ato
comunicativo.....................................................62ii.
Traficando informao: indefinies sobre o
rap...............................66iii. Performances e poticas da
oralidade para o estudo do rap..............72
Cap. 3 SE LIGA,
IMPROVISADO!................................................83i.
Sangue!: O duelo entre G.R. e
Abu.....................................................89ii. Rodas
de
freestyle.............................................................................107
Cap. 4 RAP O SOM: CONSERVANDO CANES...................123i. O
palco: anlise de uma sequncia de
shows....................................125ii. Gravando
cds....................................................................................136iii.
As narrativas de ra ra e O preto do bairro
II.............................142iv. Filmes musicais: uma sequncia
de videoclipes da
bandaRafuagi.................................................................................................152
CONSIDERAES
FINAIS.............................................................163
REFERNCIAS
BIBLIOGRFICAS.............................................171
SITES
CONSULTADOS....................................................................181
REFERNCIAS
DISCOGRFICAS...............................................183
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INTRODUO
H quem diga que nenhum grupo de rap do Rio Grande do Sulconsegue
fazer que suas msicas sejam tocadas no restante do pasdesde Da
Guedes. Essa uma opinio generalizada que cheguei a ouvirmais de uma
vez durante os meses em que estive em Porto Alegre para apesquisa
de campo que originou esta dissertao. De acordo com
estesinterlocutores, a banda foi a ltima de uma gerao que despontou
nocomeo da dcada de 90 e conseguiu levar seus shows e suas
msicaspara uma audincia maior e mais heterognea que aquela restrita
aosapreciadores de rap da regio.
Na poca, o grupo Da Guedes formou-se no bairro Partenon eteve
como integrantes ao longo de sua existncia Baze, Nitro Di, NegroX,
Gibbs, Spaw e DJ Deeley. Em 1999, lanou o cd Cinco Elementos,com a
produo de DJ Hum, um dos precursores do rap no Brasil,tambm
reconhecido pela produo da coletnea Hip Hop: Cultura derua1 de
1988. Da Guedes conseguiu difundir algumas msicas comoMinha cultura
e Isso Brasil. Depois disso, vieram os cds Morro secomas no me
entrego e DG vs. A luz falsa que hipnotiza o bobo, de 2002e 2004,
respectivamente. dessa poca o ilustre refro J tomei soroantiofdico/
dei tchau pros cobras e pros traras/ S ando com meusamigos: Z.N.,
Z.S., Z.L./ pode chegar!/ Chega, respeita, chega erepresenta/ Sente
os back, s, firmeza/ Sente os back, s, firmeza/Chega, respeita,
chega e representa/ Tudo que o rap fez/ Tudo que o rapfaz/ a
diferena.
Entre 1999 e 2005, foram diversas indicaes a premiaesartsticas,
com destaque para o Prmio Aorianos, institudo pelaPrefeitura
Municipal de Porto Alegre2 e o Prmio Hutz, desenvolvidono Rio de
Janeiro pela Central nica de Favela (CUFA)3 e voltado
1 Muitos reconhecem esta obra como o primeiro cd de rap lanado
no pas. Olbum tinha msicas dos grupos Cdigo 13, Mc Jack, Credo e
Thade e DJHum.
2 O Aorianos se divide nas seguintes categorias: teatro e dana,
literatura,msica e artes plsticas.
3 O Hutz distribui premiaes a artistas em dezenas de categorias.
Algumasdelas so: lbum do ano; msica do ano; produtor musical;
gravadora;personalidade do ano; grupo ou artista solo; e tantos
outros. Maisinformaes sobre ele podem ser obtidas atravs de sua
pgina online:http://www.hutuz.com.br/10anos/in.php?id=home
(Acessado em21/02/2015).
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especialmente ao hip hop.A tese defendida por muitos a de que
existe um hiato que j
dura ao menos uma dcada. Um silncio do rap gacho no mesmomomento
em que MC's de Curitiba, Rio de Janeiro, Fortaleza e
Brasliaatravessam o Brasil ao lado dos grupos paulistanos. Essa
narrativaassume contornos picos, descrevendo apogeu e queda do rap
gachopersonificado no grupo Da Guedes; e, recriando os dias de
outrora emcomparao com os dias de hoje. Mas isso no tudo: o rap em
PortoAlegre tratado como uma cena musical perifrica e dependente
deoutros centros musicais. No toa que a frase o objetivo
fortalecera cena outro termo repetido sempre por organizadores de
eventosrelativos ao hip hop.
No entanto, seria equvoco entender que estas afirmaes sobreo Rio
Grande do Sul e Porto Alegre descrevem um tempo de silncio,ausncia,
falta ou vazio. Pelo contrrio. Se por um lado a afirmao deque
ningum consegue sair das fronteiras do estado fala sobre o queseria
e quem seriam os artistas do rap nacional, por outro, cria
umconceito de rap gacho. A alegao de que os artistas locais no
temxito em outras praas informa, ao mesmo tempo, que eles fazem
partede um grupo delimitado e esto em plena atividade.
Mas este senso de existncia de uma coletividade no surgeapenas
em conversas cotidianas. So muitas as msicas em que os MC'sfazem
questo de cantar versos que enfatizem sua gauchidade, como,por
exemplo, Chama criola de Madyer Fraga: Faa tua trilha, insista
navida/ sem mistrio, rima ao jeito gaudrio/ No tendo medo de cara
feia/e jamais eu fujo da peleia. Em outros casos, frases prontas
que serepetem em festas e shows, por exemplo: rap gacho! Rap
gacho!;jornalistas especializados no gnero musical, como o jornal
Rap Sul epessoas que se renem em pginas de Facebook, como a Nao
HipHop Gaudria (Figura 1).
Definir o que afinal o rap gacho talvez no seja a questomais
interessante para os fins propostos para este trabalho.
Estadissertao ser uma narrativa sobre a diversidade de
performancesmusicais que os artistas tm proporcionado consolidao do
gneromusical na cidade. Esta perspectiva inverte a lgica que
pressupe quetodos os msicos da cidade fazem parte do chamado rap
gacho e soportanto representantes dele. Em lugar desta postura
universalizadora, prefervel ponderar obra por obra com o intuito de
entender quaisnarrativas esto sendo construdas nas diferentes
performances e, porconsequncia, quais raps esto sendo criados.
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Afirmar que o rap produzido em Porto Alegre e arredores orap
gacho ou o rap de Porto Alegre indica uma naturalizao da relaoentre
msica e espao geogrfico, ignorando a criatividade culturaldestas
prticas musicais, isto , a capacidade que msicas e tambmoutras
artes tm para construir esta relao entre lugares e
sonoridades(Domnguez, 2009: 17). Como apontado por Wade (2002:
32-3) muitasdestas associaes partem da ideia de que as identidades
sociais so algopreviamente dado e representvel atravs da msica. De
acordo comesta linha de raciocnio, o rap cantado por gachos no
poderia ser outracoisa seno rap gacho.
Embora este no seja o caso da apropriao de gneros
musicaisenquanto tpicos representantes da identidade nacional
(Menezes Bastos,2014; Vianna, 1995), a discusso pode tomar a direo
de debater comoestes msicos e apreciadores do rap criam nas prticas
musicais aassociao entre o gnero musical e o gauchismo, inventando,
nostermos wagnerianos, o rap gacho.
Por rejeio a esta postura que considera a msica um reflexodas
identidades sociais, a preocupao central da pesquisa esteve
sempre
Figura 1: Criao do grupo "Nao Hip Hop Gaudria" na internet
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em dissecar as to diversificadas performances musicais
acompanhadasna cidade com nfase sobre a funo potica destes atos
comunicativos.Em outras palavras, tratando de realar o que h de
belo, engraado,triste ou divertido nestas msicas, o que h de
artstico nestas mensagensafinal (Jakobson, 2010: 118-9).
Para inferir o predomnio da funo potica sobre outrasfunes
comunicativas4, basta atentar para um detalhe. Todo processo
decomunicao arranja mensagens selecionando e
combinandosignificantes, de modo que sejam satisfeitos dois eixos
fundamentais:sinonmia/antonmia e contiguidade. Isto , a seleo de
significantesescolhe equivalentes, semelhantes ou dessemelhantes,
enquanto que acombinao com outros significantes constri sequncias.
O que afuno potica faz projetar o princpio de equivalncia do eixo
deseleo sbre o eixo de combinao. A equivalncia promovida condio de
recurso constitutivo da sequncia (idem: 130).
Desta forma, a sequncia de significantes, fundamental para
aconstruo da mensagem, passa pelo processo de seleo para que
ossignificantes combinem entre si formando novos sentidos.
Pensandoespecificamente no rap, possvel perceber melhor a relevncia
dissotudo, como exemplo, um trecho da msica Mun-R de Sobotage:
Menina Leblon, vermelho batom,Foi vista com o Joe, malhando na
praa,
Sabot Cano, convoca no soma paz dos irmos de toda quebrada
Sabotage, mano AnsioEu vejo diablico: confiro, analiso
Um branco e um preto unido:respostas que calam o ridculo.
Trata-se de uma msica muito conhecida, referncia obrigatriapara
qualquer MC ou DJ. Um poema oral, como este, tem como suaqualidade
principal a escolha de palavras e fonemas que combinam entre
4 Com isso, quero recordar que a funo potica da comunicao uma
entreoutras, a ver: referencial, emotiva, conativa, ftica e
metalingustica. Ummesmo ato comunicativo pode apresentar mais de
uma das funes, noentanto, possvel destacar as que se destacam
encontrando o ponto dacomunicao enfatizado. Poder ser o remetente,
o contexto, o receptor, ocdigo ou o contato entre remetente e
receptor.. No caso da funo potica,o que se destaca no ato
comunicativo a nfase sobre a mensagem(Jakobson, 2010).
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si e o ritmo como recitado. Mesmo o leitor/ouvinte que no
saibaquem so Menina Leblon, Joe, mano Ansio ou ainda desconheaa que
se refere por Sabot Cano ficar impressionado com aquantidade de
rimas rpidas e com o efeito provocado pela sobreposiode um verso a
outro. As palavras Leblon, batom, Joe, somganham destaque em meio s
outras, graas ao mesmo fonema querepetem combinados a outros, que
mesmo diferindo, so pronunciadosem um ritmo homogneo. Portanto, uma
das grandes preocupaes destadissertao est em recusar o pensamento
de que a msica apenasexpressa ou reflete identidades culturais,
sejam elas nacionais, tnicas,de classe ou de gnero. A msica e as
demais artes so muito mais doque isso.
A outra preocupao importante consiste em afastar-se do
queSahlins definiu, de forma bem-humorada, como a nova encarnao
dofuncionalismo na antropologia: a obsesso desenfreada por
definirprticas como hegemnicas ou anti-hegemnicas (2013: 35-8).
Seria o caminho mais simplista abordar o rap em Porto Alegrecom
uma frmula deste tipo. Evidentemente, isso no significa que
asrelaes com outros gneros musicais e mesmo entre os msicos nosejam
atravessadas por poderes. Deve-se lembrar que no campo da
arteexistem distines e hierarquias de gosto fundadas no somente
emcapital econmico, como tambm em capitais simblicos
(Bourdieu,1996). Com relao a isso, possvel afirmar que o rap no
ocupa comregularidade a maior parte das casas de shows de Porto
Alegre,tampouco est presente em currculos escolares ou acadmicos.
Aquantidade de msicos que conseguem se profissionalizar pequena
etalvez insignificante se comparada com outros gneros musicais.
Eleest longe de ser considerado a msica que representa tipicamente
aidentidade brasileira ou a identidade gacha.
Sem dvidas, estes fatores so constituintes do campo damsica na
cidade de Porto Alegre. O rap pode ser considerado umgnero
perifrico e at mesmo reprimido pelo estado. A Batalha doMercado,
principal evento acompanhado durante a pesquisa de campo,chegou a
ser vtima de constrangedora abordagem policial. Segundorelato da
Revista Bastio no Facebook, Batalha do Mercado () sofreuontem
(28/07) sua primeira interveno policial. Sob a alegao de'estarem
fazendo o trabalho deles', os policiais militares interromperamos
duelos de rima e colocaram todos os presentes junto parede. Aps
ocontratempo, a Batalha continuou5.
5
https://www.facebook.com/revistabastiao/photos/a.537854212919269.1073741828.236406283064065/428438453860846/?type=1&permPage=1
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Sendo assim, msicos e organizadores de eventos musicaisprecisam
se utilizar de estratgias que permitam a ocupao do espaourbano. De
modo geral, so negociaes. comum que aconteam emtroca de espaos em
rdio e televiso tambm. Isso pode aconteceratravs da incorporao de
elementos musicais de outros gneros ouainda atravs de acordos com
partidos polticos. A fundao de umprograma de televiso, na emissora
estatal local, voltado ao hip hop foi,por exemplo, resultado de um
acordo obtido com a campanha polticaque veio a eleger o governador
do estado em 1998 (Maffioletti, 2013:28-9).
A preocupao desmedida em aplicar termos que definam asprticas
enquanto atos de resistncia ou dominao diz pouco sobre asprticas em
si, que deveriam ser o centro da discusso. O rap e tambmoutras
formas artsticas, como a break dance e o grafite, tm aparecidode
tantas maneiras e atravs de tantos msicos, danarinos e
desenhistasem Porto Alegre que seria intil generaliz-lo dentro de
um esquematerico deste tipo.
Em vez disso, o que pertinente para o desenvolvimento
destadissertao problematizar como reverberam as trocas lingusticas
nocampo pesquisado, enfatizando, claro, que identidades e
lnguasnacionais no so compartilhadas universalmente. Estas trocas
articulamrelaes de poder, resistncia, dominao e negociao (Bourdieu,
2008:23-4). Por esta perspectiva, cada campo lingustico exige uma
srie decompetncias comunicativas que autorizam ou censuram os
locutores.
A luz destas consideraes sobre as desigualdades lingusticas,
possvel contextualizar o lugar do rap dentro da cidade de Porto
Alegree as relaes que os msicos do gnero estabelecem com
outrosmsicos, com a fora repressiva do estado, atravs de sua
BrigadaMilitar, com os moradores dos bairros centrais e demais
agentes quepossam contrastar (linguisticamente) com eles.
No seria adequado ignorar a existncia destas
desigualdadespolticas de um gnero discursivo para outro. Pelo
contrrio, deve-seconsiderar que produzem prticas classificveis e
sistemas declassificao de prticas, isto , meios que possam garantir
distines degosto; e que so oriundas do contraste (Bourdieu, 2007:
162). Em outraspalavras, Lvi-Strauss (1980: 49-51) atribuiu a
diversidade de culturas aproximao entre elas que provoca aumento ou
diminuio dasdiferenas a partir do contato. No caso, os diacrticos
que garantem aorganizao das diferenas no so somente musicais. Podem
serlingusticos, visuais, principalmente pelo uso de
determinadas
(Acessado em 26/01/2015)
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vestimentas, etc. possvel aprofundar mais ainda as relaes
desiguais
mediadas pelo acmulo de diferentes capitais. No interior de
cadagnero musical, seguem existindo distines elaboradas a partir
declassificaes objetivas. Decorre da a proposta geral desta
dissertao:abordar o rap em sua pluralidade de performances em uma
cidade comoPorto Alegre.
Esta justificativa encontra suporte em uma onda de
reportagenssobre o rap no Brasil em que o tema a sua transformao
nos anosrecentes6. O principal argumento utilizado foi a existncia
de umaclivagem que garante uma diviso entre os antigos MC's e os
jovensMC's. A maior ressalva a ser feita a este tipo de anlise que
elageneraliza duas geraes em torno de alguns artistas mais
reconhecidos.Por fora da necessidade de separ-los em apenas duas
categorias eestabiliz-los dentro delas, ignora a complexidade de
quase 30 anos derap no pas. Segundo um destes textos, os novos
artistas do rap no estopreocupados com militncia poltica, temtica
nica para os maisantigos.
Assim, o esforo realizado por esta pesquisa foi o de
negardefinies simplistas e monofnicas. Em vez disso, proponho-me
arealizar uma busca pelas diferenas e pelas diferentes narrativas.
Paratanto, a pesquisa de campo precisava primeiramente fazer
umlevantamento sobre os tipos de eventos musicais que existiam
ouaconteceriam na cidade durante o ano de 2014. Naturalmente,
seriaimpossvel que esse levantamento fosse onisciente em funo
dotamanho da cidade, da arbitrariedade resultante das escolhas
dopesquisador, da enorme quantidade de artistas de hip hop e do
carterdialgico que possui este tipo de pesquisa. Por consequncia
disso, spoderia se tornar uma espcie de recorte realizado em
conjunto comalguns interlocutores que estiveram mais prximos a mim
durante esteperodo.
Em todo caso, foi possvel obter uma diversidade
considervelcontando com uma riqueza de produes musicais. Os
artistas que tive asorte de acompanhar durante este perodo possuem
trajetrias variadas etm em comum o gosto pelo gnero musical em
questo. As histrias,biografias, autobiografias, relatos e anedotas
que me foram narradas sode todo tipo. Pude conhecer MC's quarentes,
verdadeiros veteranos
6 O principal exemplo deste debate o texto O rap saiu do gueto
publicadopela Revista poca em abril de 2011. possvel acess-lo
emhttp://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI224532-15220,00-O+RAP+SAIU+DO+GUETO.html
(acessado em 27/01/2015)
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do rap na cidade, e outros que ainda engatinham, participando
doprimeiro duelo de rimas, preparando a gravao da primeira msica
emestdio. A variedade tambm se apresentou em termos estticos:
MC'sque flertam com outros gneros, como o rock, o reggae ou o
samba.
Por conta dessa preocupao terica, na anlise do rap, tive
ocuidado de evitar generalizaes e definies estanques. Isto , em
lugarde classificar artistas no interior de categorias procurei
abordarespecificamente suas performances e os efeitos provocados
por elas. Poroutro lado, interessei-me por compreender quais
categorias soutilizadas por msicos e ouvintes para classificar as
msicas e oseventos musicais. Dito de outro modo: sem desmascar-las
enquantoalguma espcie de ideologia sobre o mundo, mas tomando-as a
srio, emuma proposta que busque perceber atravs de que maneiras
soconstrudas (Viveiros de Castro, 2002)7. No possvel esquecer
queperformances no so expresses de identidades preexistentes,
masprticas generativas e relacionais, ou seja, atos
comunicativosdialgicos. O foco da pesquisa no pode estar no
falseamento dacategoria rap gacho, por exemplo; mas sim nas
performancesacompanhadas em campo e na potica do rap.
Porm, antes de apresentar o modo como a pesquisa foirealizada e
o contedo desta dissertao, farei algumas pontuaes quedevem ser
consideradas em torno do conceito de potica para a leiturado
restante do texto. Inicialmente, possvel afirm-lo como tilenquanto
recusa ao modelo que ope real e ideal e faz do segundo termodesta
relao refm do primeiro. Em outras palavras, um modeloanaltico que
considera que s pode haver uma realidade e muitasformas de
idealiz-la. O grande problema disso a reiterao dehierarquias entre
o conhecimento ocidental, notadamente as cinciasmodernas, e os
chamados conhecimentos nativos. A partir destaseparao entre real e
ideal, caberia ao antroplogo ocupar uma posioprivilegiada para
comparar pontos de vista sobre a mesma realidade. Jo estudo da
prpria realidade ficaria a cargo de qumicos, fsicos,bilogos, entre
outros (Ingold, 2000: 15). Assim se resolve a equao darazo
universal, com cincias voltadas ao estudo da natureza e
outrasvoltadas ao estudo da cultura. O importante manter a separao
entre
7 Levar a srio uma afirmao como 'os pecaris so humanos', nesse
caso,consistiria em mostrar como certos humanos podem lev-la a
srio, emesmo acreditar nela, sem que se mostrem, com isso,
irracionais e,naturalmente, sem que os pecaris se mostrem, por
isso, humanos. Salva-seo mundo: salvam-se os pecaris, salvam-se os
nativos, e salva-se, sobretudo,o antroplogo (Viveiros de Castro,
2002: 134).
-
25
real e imaginado e afirmar a existncia de um nico conhecimento
capazde descrever as coisas como elas realmente so. Nas palavras de
Ingold:
Whereas the biologist claims to study organicnature as it really
is, the anthropologist studiesthe diverse ways in which the
constituents of thenatural world figure in the imagined, or
so-calledcognised worlds of cultural subjects (Ingold,2000:
14).
Afirmar a separao entre real e ideal implica considerarpossvel
que algum conhecimento seja capaz de apartar-se da realidadecom o
fim de perceb-la sem interferncias culturais. Por outro
lado,poderia ser mais enriquecedor aceitar a qualidade fabricvel da
cultura,a criatividade, a improvisao e a experimentao sobre
categorias jexistentes (Conquergood, 1989), alm da generatividade
da realidadepresente nas prticas comunicativas (Bauman, 2010).
Os usos mais banalizados dos termos criatividade, inovaoe inveno
referem a prticas extraordinrias capazes de substituiralgo antigo e
obsoleto por uma novidade; referem ainda ao ineditismo e
originalidade. No entanto, Wagner (2010) faz a seguinte
ressalva:mesmo os cenrios mais comuns e ordinrios so compostos por
umentrelaamento de contextos. Estes contextos so, segundo o autor,
detoda e qualquer espcie e, alm disso, produtos da experincia,
atravsdo ato de relacionar diferentes elementos simblicos (idem:
77-8) Estascaractersticas fazem com que o contexto seja sempre uma
espcie denovidade, ou melhor, que cada rearranjamento de contextos
seja umaexperincia minimamente indita.
A consequncia disso o carter de improviso cultural que asprticas
comunicativas assumem. O mesmo valer para os termoscpia, imitao e
repetio, considerando os aspectos citadosacima referentes aos
contextos. Quanto a isso, Ingold e Hallam afirmamque
Copying or imitation, we argue, is not the simple,mechanical
process of replication that it is oftentaken to be, of running off
duplicates from atemplate, but entails a complex and
ongoingalignment of observation of the model with actionin the
world. In this alignment lies the workof improvisation. The formal
resemblancebetween the copy and the model is an
-
26
outcome of this process, not given in advance. Itis a horizon of
attainment, to be judged inretrospect (Hallam & Ingold, 2007:
5).
A repetio do ordinrio , neste sentido, a criao de umacpia sob um
novo arranjo contextual, e, portanto, tambm possui
certasingularidade, ao seu modo. Pensando no hip hop, esta
dissertaoapresentar mais adiante alguns eventos musicais, entre
eles a Batalhado Mercado. A realizao deste encontro, que um
campeonato derimadores, acontece mensalmente ao ltimo sbado de cada
ms. Quasetodas as edies do torneio so realizadas no mesmo local da
cidade,com o mesmo regulamento e os mesmos organizadores. Os
participantesse conhecem de longa data, em sua maioria, bem como
pblico. Essa uma situao em que quase todos sabem a sequncia
dosacontecimentos. Mesmo assim, toda vez que algum da plateia
decidefazer uma piada em um intervalo entre um duelo e outro, sobre
um MC,sobre um verso especfico, ou o que seja, est sujeito ao
riscocomunicativo. Mesmo que essa pessoa do exemplo hipottico
conhea aquase todos os outros presentes e saiba que o duelo est se
encerrando,ainda assim caminha sobre um terreno parcialmente
desconhecido, emfuno dos rearranjamentos, e se arrisca; podendo
soar, aos demais,engraado ou inoportuno.
preciso, portanto, refusar posturas que consideram quecomunicar
o mesmo que transmitir mensagens sem perdas outransformaes de
significados. As agruras do processo comunicativoso originadas
pelos aspectos perceptivos e sensoriais que formam aexperincia.
Aspectos que no podem ser transportados de um paraoutro, mas em vez
disso, elicitados atravs de meios icnicos (Wagner,1991: 37). Wagner
detalha esse processo:
[Pain, pleasure, ecstasy, orgasm, melancholy] areperceptions
locked into one's personal microcosm,never to be directly
communicated. At best (butalso at worst), such subjective
perceptions canonly be elicited in others through iconic means by
bodying them forth in the form of verbal ornonverbal imagery,
substituting a felt-meaning fora feeling, witch becomes an intended
meaning inthe process. But the type of synthetic meaningelicited by
a trope is likewise hermetically sealedwithin the personal
microcosm, in that there cannever be any certaint as to the
individualconstruing of it. It is the perenial uncertaint of
-
27
whether my green is the same as yours, 'or forthat matter, my
Prince Hamlet (Wagner, 1991: 37-8).
O importante salientar que o processo na verdade o deconstruo de
imagens verbais e no-verbais que sero remontadas nasua recepo, de
forma individual. a valorizao da experincia portoda a singularidade
que a envolve, tomando a potica enquanto umaforma pela qual a
percepo interna se projeta a si mesma (images itself)para si e para
outros (Brady, 1991: 33).
H dois planos distintos: as experincias sensoriais e
asdiferentes formas de linguagem. Entre eles est uma espcie
defaculdade mimtica, nos termos de Benjamin, uma habilidade
imitativacapaz de colar um plano ao outro. O carter onomatopeico da
linguagemfaz com que sons e imagens ambos sensveis produzam
semelhanasextrassensveis, sempre originais e inditas (Benjamin,
1994: 110-1).
No que diz respeito a esta pesquisa, as prticas musicais
estarono centro do debate e sero abordadas a partir dos
postuladosconsiderados acima. Isto significa dizer que no sero
tratadas comoreflexo de identidades preexistentes, nem enquanto
idealizaes darealidade e tampouco como cdigos a serem
decodificados. Se, aoprincpio, reportei a existncia de uma
categoria chamada rap gacho,interessa to somente tentar perceber e
narrar como ela aparece e seatualiza nas performances musicais. O
perodo de interlocuo com osmsicos foi exitoso para evidenciar a
existncia de modalidadesdiferentes de rap que sero apresentadas
durante o decorrer do texto. Porhora, antecipo que as descries se
orientam a partir da distino entre orap improvisado e o rap
memorizado. Mesmo que seja possvel contestaro conceito de
improvisao, bem como o de cpia e repetio como fizquesto acima so
categorias criadas por msicos e ouvintes do rap.
Teoricamente, este um dos pontos basilares para estadissertao,
isto , pensar as msicas no como as representaes deuma realidade
anteriormente dada, mas como as prprias criadoras dasrealidades. Ao
mesmo tempo, abordando as maneiras pelas quais soatualizadas em
diferentes performances contextualizadas espacial
etemporalmente.
Voltando ao hip hop, significa dizer tambm que no h frmulaque
garanta o sucesso de um MC perante uma audincia. Toda vez
queestiver sobre um palco repetindo as mesmas msicas que se
acostumou acantar por anos, ou em uma roda de freestyle,
improvisando versos apartir de uma caracterstica fsica engraada de
algum outro rimador,estar invariavelmente diante do risco que
rimar.
-
28
I. DESCOBRINDO HIP HOP PELA CIDADEDizer que, h anos, nenhum
grupo de rap gacho deixa as
fronteiras do estado no significa ausncia. A afirmao impactante
eeficaz ao distinguir duas pocas a partir de um divisor de guas.
Emtodo caso, no quer dizer que haja pouca quantidade, qualidade
evariedade de msicos do gnero.
Pelo contrrio, j que basta uma rpida busca na internet paraobter
informaes sobre festas e shows. ainda muito provvel quequalquer um,
mesmo desavisado sobre estes eventos, esbarreeventualmente com
algum deles, j que costumam ocupar locaispblicos com grande
circulao de pessoas. Alm disso, eles possuemuma periodicidade
irregular, podendo acontecer noite, tarde, durantefins de semana ou
no.
Mesmo antes de iniciar a pesquisa de campo, j tinha algumaideia
sobre isso. Sendo assim, tracei como primeira meta conhecer deforma
exploratria o ritmo destes eventos na parte da cidade que vim
amorar, a regio central e seus arredores. Este processo foi
realizado entreos meses de dezembro de 2013 e janeiro de 2014 e
teve como maiorcontribuio estabelecer os primeiros dilogos com os
msicos quemotivaram a escolha deste tema j que cheguei cidade como
umcompleto desconhecido para eles. Os primeiros contatos
foramrealizados pela internet e foram pouco frutferos. Foi somente
nas visitasaos eventos que conheci os interlocutores que passaram a
fazer parte dapesquisa.
A incurso pela cidade de Porto Alegre se estendeu at o ms
dejulho de 2014 e possibilitou a produo de materiais de pesquisa
dediferentes tipos: registros audiovisuais de performances
musicais; coletade diversos documentos como fotografias,
entrevistas, cds, videoclipesmusicais, materiais de divulgao de
shows, entre outros; e,principalmente, entrevistas informais
registradas atravs de dirios decampo.
A maior parte do tempo decorrido em pesquisa foi dispensado
aparticipaes enquanto plateia de apresentaes musicais. Foram
aomenos oito presenas em Batalhas de rima e mais uma dzia de
showsem diferentes circunstncias (em palcos improvisados na rua, em
praapblica, em clubes noturnos). Esses eventos sempre foram longos,
tendouma durao varivel entre quatro e at mesmo doze horas. Alm
destatarefa, empenhei-me em visitar alguns msicos em seus locais
detrabalho ou moradia, conseguindo momentos mais adequados para
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29
conversas longas e detalhadas. Foi assim que mantive
dilogopermanente com ndio e Sandro, os personagens que mais
participaramda elaborao desta narrativa antropolgica. Adiante, no
primeirocaptulo, os dois sero melhor apresentados. Por fim, a
terceira parte dotrabalho foi a pesquisa de documentos e
performances musicaisdisponveis atravs de gravaes. Essa etapa
exigiu a tarefa literal debusc-los em diferentes partes da cidade,
e, tambm, em endereosonline, acessados via internet.
O mapa de Porto Alegre que aparece no decorrer desta narrativa
fruto de decises pessoais e tambm de um pouco de casualidade.
Fazparte da pessoalidade inevitvel da etnografia, seja nas escolhas
que fiz,preferindo conhecer um determinado evento em vez de outro,
ou, namaior empatia desenvolvida com algum interlocutor especfico
quetenha passado a exercer uma influncia grande sobre os caminhos
que apesquisa tomou.
Tendo atravessado a etapa exploratria que descrevi
acima,estabeleci uma rotina que previa a presena recorrente em trs
pontos dacidade: a Batalha do Mercado, um duelo de MC's de
periodicidademensal, no centro da cidade; e as lojas Banca
Clandestina e PontoFavela. O duelo de rima me permitia acompanhar
este tipo de disputaentre rimadores, alm de me familiarizar com
artistas locais. Por setratar de um evento rotineiro, havia a
garantia de voltar a assisti-la. L,ainda podia conversar com os
msicos e obter seus contatos, tendo achance de ouvir um pouco sobre
suas trajetrias. Por sua vez, as lojasabriam diariamente e eram
garantia de encontro com seus proprietrios os MC's ndio e Sandro,
respectivamente e outros artistas.
No obstante, tanto a Banca Clandestina quanto a Ponto Favela,alm
de venderem roupas e cds, ainda tinham papel fundamental naproduo e
organizao de festas e shows de rap. A participao nesteseventos
poderia ser atravs de um mero apoio com a venda de ingressos,com o
fornecimento de prmios e brindes ao evento, e, at mesmo, coma
produo, escolha do lugar e dos msicos, etc. Assim, a importncia
dendio e Sandro enorme, visto que orientaram de forma geral
osalcances que a pesquisa pde alcanar, apresentando-me o trabalho
deoutros cantores, narrando-me suas trajetrias e introduzindo-me
maioria dos eventos que acompanhei.
De modo geral, nada dessa pessoalidade chegou a alterar
oobjetivo principal descrito na elaborao do projeto desta
pesquisa:
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30
realizar etnografia das performances do rap8 em Porto Alegre
(RS)9.Pelo contrrio, estas parcerias intelectuais foram
indispensveis, afinalmeu conhecimento preliminar sobre o rap na
cidade era muito incipientee no havia nenhuma definio inicial sobre
quais performances seriamobservadas. Portanto, a pesquisa de campo
foi um processo constante dedescobertas musicais.
O maior interesse foi encontrar diversidade no desenvolvimentode
narrativas e talvez a principal contribuio desta dissertao esteja
napossibilidade de compar-las, problematizando suas
contextualizaes.A pesquisa foi conduzida de tal modo que pode ser
enquadrada sob achamada etnografia da msica, visto que se preocupa
com as relaesmusicais que so produzidas entre msicos e audincias em
contextosespecficos (Seeger, 2008).
A efetivao da relao entre msicos e ouvintes serconsiderada
enquanto performances. Entre as implicaes do uso desteconceito,
considero fundamental salientar que ele obriga que a anliseabandone
o significado de uma determinada msica e passe para osignificado
performatizado por ela (Cook, 2008; Finnegan, 2008;Madrid, 2009).
Dissolve-se ainda outro dilema dos estudos sobremsica: o que
priorizar, texto ou msica? A melhor resposta seriaafirmar que os
dois no podem ser separados, e precisam ser tratados damaneira como
se apresentam: indissociveis, enquanto elementosconstituintes da
performance musical (Finnegan: 2008).
As anlises das diferentes performances contidas neste
trabalhoforam elaboradas a partir de descries detalhadas. Nelas,
procureielencar a maioria dos estmulos sensoriais que me foram
provocadosenquanto participante das performances, considerando a
posio deespectador, ouvinte, assistente, que ocupei durante a
pesquisa de campo.
Estes eventos esto divididos no texto em duas categorias queos
MC's usam para diferenciar tipos de canto do rap. Seriam os
versosimprovisados e os versos memorizados. O primeiro tipo,
pressupe queo pblico entenda que o rimador est cantando versos
inditos, enquantoque a segunda alegoria compreende versos que
passaram por algum
8 quela poca, ainda escrevia o termo rap em itlico, como
qualquerpalavra estrangeira lngua portuguesa. Tal escolha implica
uma posio dedistncia e exterioridade. A pesquisa, no entanto,
aproximou-me tanto destegnero musical, antes pouco familiar, que
atualmente o que me causachoque e estranheza ver e escrever sua
grafia em itlico. O mesmo valepara a palavra hip hop.
9 O projeto foi apresentado banca de qualificao no dia
02/12/2013, sob ottulo Cs quer mesmo ser mais rua que nis?: Uma
etnografia sobre asperformances no rap em Porto Alegre (RS).
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31
processo de conservao (gravao, escritura ou memorizao) e sotambm
chamados como msicas.
At seria possvel questionar a pertinncia da separao, vistoque
toda performance original, no sentido que sua contextualizao sempre
indita de alguma maneira. No entanto, a contribuioantropolgica
reside em experimentar o uso das categorias que osmsicos aplicam
para ter clareza sobre as modalidades musicais no rap.
Entre o rap improvisado, acompanhei duelos de rimadores erodas
de freestyle10. Shows e gravao de cds e videoclipes so
tratadosenquanto msicas memorizadas. Normalmente os msicos tm
transitolivre entre essas diferentes modalidades, ainda que a
maioria deles senotabilize ou desenvolva preferncia por apenas uma
delas. Por setratarem de eventos diferentes que, em muitas
oportunidades, acontecemem dias e locais diferentes, h tambm
diferenas quanto ao tipo depblico e msicos que os frequentam.
A relao entre pblico e msicos , por sinal, bastante relativade
acordo com os diferentes tipos de performances. Em shows, h
umademarcao mais clara, com o palco como um divisor. Alm disso,
ovolume do som dos microfones e da msica abafam em boa parte
osoutros sons provocados pela audincia. Os duelos de rimadores, por
suavez, tm uma maior proximidade, visto que os cantores esto
cercadosem uma roda formada pelo pblico. So as reaes sonoras na
maiorparte das vezes que definem vencedor e derrotado, conformando
umaparticipao imprescindvel para o resultado da disputa. J em rodas
deimproviso talvez no haja pertinncia nesta distino, dado que h
umnmero reduzido de participantes, que em geral so todos cantores.
Cadarimador escuta os versos dos outros e espera por uma
oportunidade paracomear a cantar logo em seguida. Por ltimo,
pode-se dizer que aaudio de msicas atravs de cds e videoclipes um
novo tipo deperformance, que tambm altera a relao entre msico e
audincia,provocando um deslocamento espaotemporal entre um e
outro.
grande a quantidade de MC's e tambm de tipos deperformance. No
foi difcil encontr-los ao longo da pesquisa. O textoexplorar as
diferentes contextualizaes descobertas durante esteperodo inserido
em campo, atravs de um trabalho de descriesdetalhadas. Pretende-se
comparar estes tipos de performances para que
10 Em traduo literal: estilo livre. Os msicos tambm usam o nome
roda deimproviso e so os momentos em que dois ou mais MC's brincam
deimprovisar versos. No h uma disputa explcita e o tema das
letrasnormalmente livre, alm disso no h juzes, nem limites de tempo
eparticipantes.
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32
se vislumbre quais sentidos so colocados em jogo. O momento de
umarinha, o momento do show, ou ainda o de uma composio exigem
dosmsicos competncias e qualidades especficas para a satisfao
dasexpectativas que eles carregam.
II. RAP E HIP HOP ENQUANTO PROBLEMTICASACADMICAS
A pertinncia das descries das performances musicais podeser
enfatizada talvez pela pouca ateno dada a esse aspecto
pelaliteratura existente sobre rap e hip hop no Brasil. Tal
literatura abrangevrias pesquisas que comearam a aparecer nos anos
1990 e sededicaram a problemticas diversificadas. Tambm verdade que
elasadvm de reas diferentes da academia: antropologia,
sociologia,educao, comunicao, entre outras. Em poucos casos, o foco
principalesteve nas msicas. A seguir, comento alguns dos textos que
dialogamde formas diversas com esta dissertao.
A coletnea, organizada por Micael Herschmann, Abalando osanos
90: Funk, Hip-Hop, globalizao, violncia e estilo cultural trouxeao
pblico brasileiro um artigo de Tricia Rose que fundamentou umasrie
de estudos sobre o gnero musical. Apresentando a histria
daconstituio do rap nos Estados Unidos, a pesquisadora
norte-americanaargumenta em favor do potencial de engajamento
poltico latente namsica em situaes de pobreza e decadncia urbana
atravs daconverso de tecnologias em prazer e poder (Rose, 1997:
192).
H um certo alinhamento desta perspectiva com as pesquisasem
antropologia urbana que voltavam seus interesses a temas
comoviolncia e pobreza a partir do estudo de festas e bailes, como
no casodo funk (Vianna, 1988; Herschmann, 1997, 2005). A proposta
tericadecorrente destes trabalhos sugere questionar a noo de
consumocultural alienado, ou, em outras palavras, pensar os
participantes destasfestas como sujeitos ativos na construo de
sentidos prprios em vez demeros consumidores passivos. Alm disso,
considera a relao entreestilos de vida e poltica nos processos de
produo e consumosimblico.
Outras pesquisas aportaram outros referenciais tericos para
adiscusso. Joo Batista Felix (2005) props o dilogo entre cultura
epoltica em sua tese de doutorado Hip Hop: Cultura e poltica
nocontexto paulistano. Neste trabalho, o pesquisador apresenta o
quedefine como histria do hip hop nos Estados Unidos e no
Brasil,conceituando-os; a importncia da msica rap para o hip hop;
as posses,
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33
ou ncleos de militncia e organizao do hip hop em So Paulo;
asfestas, bailes e clubes black; e, principalmente, trajetrias
polticas demilitantes, momentos onde houve a participao na
polticainstitucional, alm de discutir o que seria poltica para
estes grupos.
Em Porto Alegre, Cssio Maffioletti (2013) apresentou adissertao
de mestrado Retomando a nossa esquina: O movimentoHip Hop e suas
formas de fazer poltica em Porto Alegre. Seu foco foidirecionado s
atuaes de lideranas polticas do Movimento Hip Hopem determinados
momentos histricos. O pesquisador descreve o quechama de sistema
poltico do hip hop, apresentando a existncia dedistines fundadas em
marcadores como gerao, espao e trajetriasocial. O texto tambm
apresenta instncias de participao polticacomo as posses e fruns,
alm dos processos eleitorais na militncia decampanhas, negociaes
com partidos ou mesmo candidaturas de MC's.
Adjair Alves (2009; 2011) preferiu uma abordagem a partir
decategorias como linguagem, cotidiano e reconhecimento. Sua
pesquisaO Rap uma guerra e eu sou gladiador: um estudo etnogrfico
sobre asprticas sociais dos jovens hoppers e suas representaes
sobreviolncia e criminalidade analisa linguagens sociais que
insistem emdenunciar e acusar o hip hop por apologia criminalidade.
Consideraque nestas situaes a historicidade negada aos jovens MC's.
Seuesforo consiste em contextualiz-los nas posies que ocupam
emdeterminada estrutura social (2009: 13) para ento problematizar
suasconcepes sobre juventude e relaes de solidariedade. Ele
aindaconsidera o inevitvel dissenso lingustico, afinal
As linguagens com as quais cada um trata seumundo, ou como cada
um ritualiza o cotidiano dafavela, so reveladores de
caractersticassignificativas, que nos conduz a
pensar,primeiramente, no ser possvel se falar doshoppers como uma
homogeneidade e, em seguida,afirmar que se trata de realidades
plurais, cadauma delas referenciando a percepo de umcontexto
determinado (Alves, 2011: 34-5).
Rose Satiko Hikiji e Carolina Caff (2009; 2010; 2011; 2013;2014)
foram responsveis por um projeto que combinou o mapeamentode
produes artsticas da Cidade Tiradentes (2009) e a produo edireo de
uma etnografia audiovisual compartilhada. Os filmes L doLeste
(2010) e A arte e a Rua (2011)11 so textos sobre a experincia
de
11 O livro L do Leste (2013) composto por um compilado de treze
cenas,
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34
periferia urbana no maior complexo de conjuntos de
habitaespopulares da Amrica Latina. Os atores so MC's, grafiteiros
e b-boysque falam e pensam suas vidas. Nos documentrios, eles
apresentamseus dilemas, narram histrias e conversam sobre as
transformaes naCidade Tiradentes. Em artigos posteriores, as
pesquisadorasproblematizam estas produes artsticas como meios de
mobilizaopoltica e as relaes entre arte e espao pblico (2014), alm
defazerem a discusso sobre o uso de recursos audiovisuais em
etnografias(2012).
Com outras preocupaes acadmicas, Jaison Hinkel (2013)teve como
proposta abordar as relaes entre apropriao musical dorap, cidade e
reinveno do sujeito. A sua tese de doutorado Msica(s),Sujeito(s) e
Cidade(s)... Dilogos: O rap em Blumenau consideroudados de sua
pesquisa de campo no interior de Santa Catarina parapensar a mediao
do rap na constituio de subjetividades dissonantesem relao ao
discurso homogeneizador teuto-brasileiro.
A mesma cidade de Blumenau ambientou a pesquisa de TatianeScoz
(2011) que at construiu seus problemas de pesquisa partindo
deinquietao semelhante: entender os sentidos da categoria espao
paraos Mc's de uma cidade marcada pelo mito da fundao alem.
Entendero que significa ter ou no ter espaos considerando seus
contextos deemprego. A etnografia Blumenau tambm cidade do rap:
Pensando'espao' a partir dos rappers em Blumenau prope uma
cartografia dorap que perceba os usos, apropriaes, diferenciaes e
identificaesdas elaboraes deste conceito por parte dos rappers.
Em A caminhada longa... e o cho t liso: O movimento HipHop em
Florianpolis e Lisboa, Angela Maria de Souza (2009)apresenta uma
etnografia que reflete sobre a produo esttica e arelao com a cidade
de rappers no Brasil e em Portugal. Utilizando apesquisa de campo e
as msicas destes artistas, a antroploga pensa arelevncia da produo
musical na determinao de fluxos destesrappers nas suas cidades;
compara aspectos semelhantes e distintos nosdois pases; e
problematiza as formas de representao da cidade para adefinio de
estilos de rap. Em artigos, a pesquisadora discute osdeslocamentos
do Movimento Hip Hop na cidade considerando fatorescomo tempo e
espao para pensar nas formas de pertencimento (Souza,
tal como uma pea de teatro. Nele consta muitas fotografias de
autoriasvariadas. Ele ainda traz em dvd anexo os dois filmes junto
de extras, comodebates nos lanamentos deles e videoclipes musicais
de artistas locais.Todo este material foi disponibilizado em
http://www.ladoleste.org/(Acessado em 15/10/2014).
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35
2009). Alm disso, apresenta o estilo gospel de hip hop a partir
dereflexo sobre conceitos como performance e potica (Montardo
&Souza, 2011).
Juciane Araldi (2004) apresentou ao Programa de Ps-Graduao em
Msica Formao e prtica musical de DJs: Um estudomulticaso em Porto
Alegre. Este texto traz um estudo sobre as tcnicasutilizados por
DJ's na produo musical. Tambm aborda osprocedimentos de aprendizado
destes msicos. Alm disso, apresentaentrevistas e trajetrias de DJ's
que eventualmente eu cheguei aconhecer em festas ou shows durante
meu trabalho de campo, sendoento mais uma fonte de informaes e
dados a serem aproveitadosnesta pesquisa.
Gustavo Marques de Souza (2013) tambm realizou pesquisasobre os
aspectos musicais do rap em O som que vem das ruas: Culturahip hop
e msica rap no duelo de MC's. Seu trabalho aborda a produopotica e
sonora no rap fazendo uma correlao com a contextualizaosocial. Para
esta etnografia ser relevante a anlise feita pelo autor
sobrebatalhas de MC's e aspectos do freestyle. De maneira pontual,
eledestrincha alguns duelos considerando os usos dos sons vocais,
os textosproduzidos pelos MC's e as reaes do pblico. Ele ainda faz
estemesmo tipo de anlise musical para alguns clssicos do rap com o
fimde extrair caractersticas poticas destas composies vocais. Para
isso,considera diferentes tcnicas de flow.
Em Bohemian Rhapsody: Performance, ritual e relaes degnero no
breaking, Joana Brauer Gonalves (2012) pensa a dana noHip Hop
atravs dos conceitos de performance e gnero. Sua
etnografiarealizada junto a b-boys e b-girls12 aborda os diferentes
momentos deperformance13 da dana. A preocupao da pesquisadora est
na anliseaprofundada dos aspectos comunicativos, considerando o
break umalinguagem em ao do tipo no verbal:
Assim, atravs dos gestos, dos passos, daindumentria, ou seja, da
performance como umtodo do b-boy, que o danarino capaz no s de
12 Estes termos designam os bailarinos de break dance. Esta dana
associadaao hip hop e praticada muitas vezes no espao pblico como
praas,caladas e esquinas. So comuns competies, no formato de
batalhas,entre os danarinos. Assim como as rinhas de MC's h o
componente doduelo e do desafio de responder com danas a uma
provocao dooponente.
13 Os momentos de prtica da dana podem ser em rodas de
freestyle, empalcos ou em batalhas.
-
36
expressar o que est sentindo como de secomunicar com seu
oponente. No s isso, masem um embate de bate-rebate, no qual
umdanarino tem de responder ao que o outro diz,por meio dos gestos,
ambos conseguem alcanarcomplexos profundos e dizer por
atosperformticos o que antes era indizvel porpalavras (Gonalves,
2012: 124).
Na base do muque da onda: Estudo etnogrfico deperformances entre
Rappers da ALVO-Associao Cultural da ZonaNorte de Porto Alegre de
Maria Andra Soares (2007) se detm naanlise da fala e do gestual de
MC's. Sua proposta objetiva interpretar amsica e a dana enquanto
projeto de agenciamento tnico e social apartir do vis da
performance. Esta etnografia apresenta uma srie deanlises crticas
sobre as falas e os usos da voz em diferentes contextos,como por
exemplo entrevistas, momentos de ensaios e shows. H aindaum esboo
das tcnicas corporais e repertrio de gestos durante asperformances
de rappers. As anlises so pontuais e detalhadasdescrevendo a
riqueza comunicativa destas circunstncias.
III. RESUMO DO QUE H POR VIRAs pginas seguintes deste texto
procuram dar conta de debater
as msicas que descobri ao longo da pesquisa de campo, em face
sproblemticas tericas apresentadas anteriormente. Inicialmente,
noCaptulo 1, descrevo um pouco dos lugares mais centrais para
apesquisa: so a Batalha do Mercado e as lojas Banca Clandestina
ePonto Favela. Neste ponto, a proposta apresentar algumas pessoas
queocupam estes espaos e a maneira como elas participam na
produomusical. Para tanto, penso estes locais que conheci como
parte de umacena musical do rap em Porto Alegre.
A validade de pensar a partir destes conceitos est em situar
aspessoas, as lojas, as festas, os shows e os demais eventos em
umcontexto mais geral do hip hop. Alm disso, possibilita apresentar
asformas desiguais pelas quais estas pessoas participam da cena
musical.Por fim, em sua leitura possvel recriar a cidade desta
narrativa, apartir da contextualizao de minha relao com os msicos e
com oseventos assistidos.
O Captulo 2 j introduz discusses mais pertinentes antropologia
da msica e ao uso do conceito de performance para estetipo de
pesquisa. Alm disso, procuro situar o rap enquanto um gnero
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musical, sem a pretenso de defini-lo em um esquema simples de
regras.Pelo contrrio, considerando sua flexibilidade. Ainda assim,
possveldestacar a oralidade como uma de suas caractersticas bsicas.
Nestesentido, ressalto a centralidade deste aspecto, considerando
as propostasde Zumthor e Finnegan para uma abordagem da poesia
oral.
O Captulo 3, por sua vez, traz discusses a respeito do
conceitode rap improvisado, utilizando-se de dois eventos
acompanhados nacidade: a Batalha do Mercado e as rodas de
freestyle. Neste trecho dotexto, as descries detalhadas dos cantos
de improviso almejam trazempara a leitura a maior quantidade
possvel de aspectos perceptveissensorialmente nos momentos de
atualizao nas performances. vlidoressaltar que outros sentidos alm
da audio dos versos soimprescindveis para a participao nestes
eventos.
Ao mesmo tempo em que a proposta do captulo procuraidentificar
caractersticas dos raps improvisados, tambm objetivacompar-los
entre si, abordando os modos como se relacionam asformas musicais
com os contedos musicais. No caso, pensando aBatalha do Mercado
enquanto uma festa que uma troca de ataquesentre rimadores em
frente a um pblico, e o freestyle onde os temas doscantos so outros
e a distino entre cantores e pblico pouco clara.
Por fim, o Captulo 4 tem como mote as descries de msicasdo rap
memorizado, que tem como principal trao a possibilidade de
suaconservao atravs da escrita, da memria ou da gravao. Os
casosanalisados so uma noite com diversos, dois cds de msicos
diferentes euma sequncia de quatro videoclipes de um mesmo grupo
musical. Estasperformances se notabilizam por caractersticas
diferentes entre si, masqualquer uma delas se vale tambm de outros
sentidos alm da audiopara a construo das narrativas musicais.
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Captulo 1PEDAOS DE HIP HOP EM PORTO ALEGRE
A maior parte do esforo exigido por esta etnografia foidestinado
a descrever diferentes performances musicais do rap,buscando
salientar suas peculiaridades formais quando comparadasentre si.
Para isso, era preciso considerar toda classe de detalhes quefazem
parte de suas contextualizaes. Porm, antes de lanar estasdescries,
parece pertinente uma apresentao mais ampliada sobre apesquisa de
campo em Porto Alegre e os interlocutores que apossibilitaram.
Quanto ao mapeamento do rap na cidade, necessrio pontuarque no
haver aqui uma espcie de catlogo musical que elenque todasas rinhas
de MC's, estdios de gravao, festas e shows de rap, mesmoque este
tipo de tarefa pudesse ter algum tipo de validade, ainda quefosse o
da curiosidade. A questo que para o interesse especfico
destapesquisa, isso seria invivel e pouco relevante. Tal
abordagem
Figura 2: Foto de satlite da regio metropolitana de Porto
Alegre
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demandaria outro tipo de uso do tempo e no permitiria a produo
deuma anlise concentrada nas performances que, aqui, devem ser o
focodo trabalho.
Neste caso, a descrio desta cena musical parte do
dilogodesenvolvido com inmeras pessoas a maioria delas MC's durante
operodo de pesquisa de campo. Como ficar claro, este recorte se d
porrazes logsticas e metodolgicas e produz efeitos sobre os
resultados daetnografia. Explorar todos os cantos onde existe a
produo da msicarap, em uma cidade de aproximadamente 3,5 milhes de
habitantes,como o caso da regio metropolitana Porto Alegre,
exigiria maistempo, alm da necessidade de uma equipe composta por
maispesquisadores. Alm disso, entendo que a validade das
pesquisasantropolgicas est no seu aspecto qualitativo. No haveria
muitacontribuio aqui com a reunio de casos e exemplos sem o
devidoacompanhamento terico.
Para tanto, fez-se necessrio restringir o campo de
pesquisa.Definir quais prticas musicais sero problematizadas mais
adiante e porquais razes. Precisamente aqui, a prioridade foi para
a diversidademusical, obtida atravs da participao assdua enquanto
ouvinte naBatalha do Mercado e do aprendizado com os MC's e
lojistas ndio eSandro.
Este captulo que abre a dissertao se prope a descrever acena
musical do rap na cidade a partir destes dilogos e situar
asperformances que sero avaliadas posteriormente. Entendo que
oconceito de cenas musicais vlido a partir do contexto de crtica
spesquisas que cunharam termos como subculturas, culturas
juvenis,tribos ou comunidades para o desenvolvimento terico do
estudo damsica, das cidades ou da juventude (Bennett, 2004:
223-5).Diferentemente destas perspectivas rgidas que se constroem a
partir dasdelimitaes de grupos em categorias como etnicidade, raa,
gnero ouclasse, a proposta das cenas musicais inclui relaes mais
abrangentes edinmicas marcadas por maior complexidade (idem: 225).
Deixar dedefinir grupos como subculturas rejeita que eles sejam
pensados comodesviantes em relao a uma suposta cultura
estandardizada dasociedade (Bennett & Peterson, 2004: 3). Alm
disso, interessante paradesnaturalizar a relao entre determinados
grupos socais e gnerosmusicais, como se as msicas fossem simples
expresso de suasidentidades.
A utilizao do conceito de cena musical enquanto
categoriaanaltica se volta para o contexto de produo, reproduo,
audio ouconsumo da msica. Aproveitando as propostas de Howard
Becker em
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41
Art Worlds, deve-se considerar a criao artstica como um
processosocial, econmico, coletivo, colaborativo e no um simples
fruto dagenialidade individual. necessrio andar em direo a
umesmiuamento da obra de arte incluindo os aspectos
consideradospropriamente extratextuais (Becker, 1982).
Nesse tipo de investigao, nada pode ser ignorado ouconsiderado
irrelevante na obra de arte. O trabalho artstico visto comouma
atividade coletiva como as relaes do mundo do trabalho. Sendoassim,
uma das etapas da pesquisa conhecer e identificar quem so aspessoas
e que tarefas elas desempenham nos mundos da arte, ou, no casodesta
pesquisa, na cena musical (1982: 11-3).
No hip hop, significa dizer que a msica no fruto apenas
dotrabalho de MC's e DJ's, aqueles que so considerados os artistas
destetipo de msica. A construo das performances envolve outras
pessoasque contribuem de vrias maneiras. Um duelo de rimas, por
exemplo,tem como centro os dois rimadores que se enfrentam em uma
disputa.No entanto, para que ela acontea, preciso que outras
pessoasparticipem como assistncia, alm de, pelo menos, um juiz
comomediador do evento.
Sem dvidas, h pontos interessantes a serem abordadosreferentes s
configuraes do contexto que pesquisei. No caso, chama aateno como a
maioria destas pessoas so, ou eventualmente foram,MC's. Os
participantes da cena musical possuem como caractersticauma espcie
de versatilidade. Uma mesma pessoa adquire com o passardo tempo
experincia no desempenho de vrias tarefas. comumtambm que os
produtores, promotores e divulgadores de festas sejampor vezes os
prprios msicos.
As pessoas que aparecem na cena possuem diferentes
trajetriaspessoais em funo das oportunidades e escolhas que
fizeram. Porconsequncia, suas participaes e contribuies cena
musical sodiferentes. possvel pensar esta cena como um campo
simblico, e,portanto, entender que h, nela, uma srie de diferenas e
hierarquiasentre os atores (Bourdieu, 1989: 162)
Em decorrncia disso, preciso perguntar-se sobre quem so
aspessoas inseridas no campo, o que foi que elas j fizeram e o que
elasesto autorizadas para fazer. Pensando na cena musical, ainda,
deve-selembrar que h diferentes espaos que so ocupados por
pessoasdiferentes. Por exemplo, as expectativas que existem sobre
um show aovivo, uma gravao e uma disputa de improviso so
diferentes, bemcomo as diversas competncias que as pessoas podem
ter para participardestes momentos.
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Nesse sentido, h outro pressuposto que no pode ser ignorado:as
convenes. A distribuio de conhecimento entre os membros de umgrupo
social permite o aprendizado de padres e regularidades para
aleitura de uma obra de arte (Becker, 1982: 41). Os ouvintes de
umamsica reconhecem sons e criam expectativas sobre eles a partir
deexperincias prvias. Se pensarmos assim a audincia de uma batalha
derimas, veremos que ela precisa encontrar sentido no que est
sendorimado pelos MC's que duelam. Do mesmo modo, os msicos
precisamfazer uma leitura do que ou no pertinente na batalha. Eles
precisamentender que tipo de argumento ser aplaudido ou que tipo de
entonaocausar empolgao. Nesse ato comunicativo, todos os
envolvidos,(MC's e ouvintes) fazem avaliaes a partir de suas
experinciaspassadas. Essas experincias consideram quem so as
pessoas que estoali, qual o carisma dos rimadores que batalharam e
o que eles disseramdurante o duelo, por exemplo.
Nas performances que o trabalho elenca audies de shows aovivo,
gravaes de udio e vdeo, rodas de improvisao e duelos derima uma
srie incontvel de critrios para avaliao de cantores eDJ's
considerada. Esses critrios no so elencados um a um porningum. Os
juzos so feitos a todo momento e de forma espontneapelas pessoas
que participam da cena musical. Em cada tipo deperformance h,
naturalmente, competncias diferentes que devem sercontempladas.
Esta sorte de detalhes faz com que hajam distinesconsiderveis na
cena musical, com relao a tipologias desenvolvidaspara explicar as
msicas. Assim, plausvel que algumas performancessejam bem-sucedidas
em determinado contexto, mas no tenham amesma eficcia em outros. Do
mesmo modo, alguns MC'sdesenvolvero mais afinidade com modalidades
diferentes de canto.
Com esta descrio da cena musical do hip hop, possvelsituar ao
longo do texto as relaes entre os diferentes tipos de rap emPorto
Alegre. Alm disso, aproximar-se destas performances, fazer
partedestes eventos, identificar quem so as pessoas que participam
destasprticas musicais e tentar comparar as linguagens que esto
sendoutilizadas em cada tipo de performance.
Com relao a esta questo das diferentes linguagens que
soempregadas durante os atos comunicativos que so as performances,
importante notar a relevncia que ganha o aspecto visual. As roupas
soparte essencial do rap, de tal forma que as lojas de msica
voltadas aeste gnero costumam vender tambm peas como bons,
calas,camisetas e outros acessrios.
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Saliento este aspecto justamente porque foram nestes lugares
decomrcio musical que fui levado a conhecer a maioria das festas e
showsque acompanhei durante a pesquisa. As lojas Banca Clandestina
e PontoFavela tinham grande importncia no gerenciamento de alguns
doseventos e tambm na distribuio de msicas pela cidade. Mesmo
assim,suas histrias divergiam relativamente, chegando tambm a
teremformas de participao diferentes na cena musical.
J o principal evento que acompanhei, tendo conhecido
muitosmsicos, foi a Batalha do Mercado, uma rinha de rimadores.
Esta festase estabeleceu de tal maneira na cidade que chegava at
mesmo aorganizar outras festas que no fossem necessariamente duelos
entreMC's. Estes eventos eram muitas vezes shows e feiras
comapresentaes ao longo do dia. A seguir, apresento detalhadamente
estasdiferentes etapas da pesquisa, abordando a interlocuo
desenvolvidacom os msicos, naquilo que constituiu a maior parte do
tempodispensado ao trabalho de campo.
I. BATALHA DO MERCADO
As regras so simples: dois MC's se enfrentam em uma batalhade
rimas que pode durar at trs rounds. Antes de tudo, eles decidem
emuma disputa de par ou mpar quem comea e quem termina o
duelo.Ento, o primeiro MC tem 40 segundos para improvisar, depois
vem aresposta do outro MC, tambm em 40 segundos. Faz-se um
pequeno
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intervalo em que o apresentador da batalha pergunta ao pblico
quem o vencedor do round. Ele pede barulho para o primeiro MC e
depoispede barulho para o segundo. Se h dvida sobre quem recebeu
maisbarulho, ele pergunta outra vez. No raramente, ele precisa
perguntartrs ou quatro vezes para definir o vencedor.
Aps o apresentador anotar em um caderno o resultado doprimeiro
round, tem incio o prximo. A ordem se inverte e quemfinalizou o
round recm-disputado inicia o seguinte. Novamente so 40segundos
para cada MC. Ao fim das rimas, o apresentador volta a pedirao
pblico que faa barulho para quem acredita que se saiu melhordurante
este ltimo enfrentamento. Caso o mesmo MC venha a venceroutra vez,
est encerrado o duelo. Do contrrio, fora-se o terceiro,isto , um
round de desempate. Quem inicia as rimas aquele queencerrou o round
anterior. So dados mais 40 segundos para cada. Otempo se encerra e
o apresentador volta a perguntar ao pblico ovencedor do ltimo round
e por consequncia do duelo.
Sem um palco ou algo semelhante, os MC's trocam versos emfrente
ao apresentador. Os demais se aglutinam formando um crculo emtorno
deles. O pblico no assiste de forma polida e silenciosa,
pelocontrrio. Entre uma rima e outra, se manifesta com risos ou
expressesde surpresa e empolgao. Os risos podem ser tmidos e
discretos ouento espalhafatosos. Podem ser provocados quando algum
MC malsucedido no flow14 ou quando ridicularizado pelos versos de
outro.Interjeies tambm so frequentes, sendo a principal delas uoou!
emvrias intensidades, desde a manifestao isolada e discreta por
parte dealguns at gritos eufricos da maioria. Isso depende da
qualidade dosversos.
Em razo da grande quantidade de pessoas no local, nemsempre
possvel assistir e escutar com clareza o que est sendo dito.
preciso ter pacincia e procurar um bom posicionamento em meio
atanta gente. Quanto mais perto dos rimadores, mais fcil se
tornaentender os versos e ver seus movimentos corporais e expresses
faciais.
A participao eufrica encorajada pela organizao daBatalha do
Mercado. corriqueiro que o apresentador diga que opblico est
silencioso e que ele no consegue escut-lo. Ele fala hojevocs esto
com preguia, hein! ou frases semelhantes. Estesmomentos acontecem
principalmente quando feita a escolha dovencedor, e se espera a
participao de todos para esta definio.
14 No rap, o flow o encaixe de versos em um ritmo especfico. um
fatorpreponderante para a qualidade de um MC. Durante o Captulo
III, detalhomelhor o uso deste conceito entre os MC's.
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Aps o fim de cada round, o pblico costuma gritarreiteradamente
Sangue! Sangue!. Normalmente o apresentador ouqualquer pessoa em
meio ao pblico comea o grito que repetido emunssono pelos demais.
Nestes entreatos, muitos fazem comentrios oupiadas relativas ao
desempenho dos MC's. So momentos oportunospara uma conversa rpida
antes que o apresentador pea barulho para ovencedor e os duelos
recomecem.
Estes enfrentamentos fazem parte de uma espcie de torneio.Antes
do comeo de cada Batalha do Mercado, Aretha, a organizadorado
evento, faz as inscries dos MC's que pretendem participar. Onmero
de concorrentes varivel de acordo com a quantidade deinscritos,
mas, de costume, so oito candidatos. Os rimadores sodistribudos
aleatoriamente em duelos eliminatrios. A cada rodada, onmero de
candidatos diminui de forma exponencial at que restemapenas dois
que disputaro o ltimo duelo, a grande final da Batalha.
Durante os duelos, os MC's precisam fazer seus versos acapella,
isto , sem o acompanhamento de instrumentos musicais.Tambm incomum
o uso de sons para marcao de um ritmo musical,incluindo o beatbox,
tcnica que imita baterias atravs do uso de soprosbucais combinados
com as mos. Pode haver ou no a utilizao demicrofones. Isto depende
diretamente da disponibilidade destesaparelhos.
A Batalha do Mercado acontece desde 2012, normalmente noltimo
sbado de cada ms. marcada sempre ao lado do Largo GlnioPeres e em
frente ao Terminal Parob, tendo o Mercado Pblico de PortoAlegre
como a principal referncia. Nas imediaes ainda estPrefeitura, alm
de outros prdios pblicos. Em direo ao outro lado,ficam locais de
grande circulao de pedestres durante o dia, em razode importantes
centros comerciais como o Cameldromo e os shoppingspopulares. A
realizao do evento ao ar livre, independente decondies climticas
como frio e chuva. Nos dias chuvosos, os duelosso levados para
baixo de alguma marquise que proporcione abrigo dagua.
Eventualmente, pode haver alguma edio comemorativa daBatalha em
festas ou outros tipos de eventos ao ar livre.
O horrio marcado costumeiramente s 22 horas, mas osduelos
somente tm incio aproximadamente uma hora depois destehorrio.
Durante esse tempo os participantes, sejam eles MC's ou
apenasassistentes da Batalha, chegam ao local. Alm disso, so feitas
asinscries dos cantores que devem duelar e a organizao das
disputas.A durao total do evento flexvel j que depende da
quantidade decompetidores, sem contar que, no raramente, acontecem
competies
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adjacentes como rinhas de break dance ou ento de beatbox sob
asmesmas regras dos duelos de rima. Estes outros tipos de batalha
podemser marcados com antecedncia ou no. Mais do que tudo, isso
dependeda existncia destes outros artistas no momento destes
eventos. Comotambm acontecem alguns intervalos, a Batalha do
Mercado nuncaencerra antes da meia-noite.
Nesse perodo que avana atravs da noite, estes jovens negrose
brancos, homens e mulheres, aproveitam para escutar
msica,conversar, tomar alguma bebida, namorar e, claro, assistir s
rinhas.Antes do incio da Batalha, h sempre grupos conversando e
fazendorodas de freestyle, que so tambm jogos de improvisao de
versos, emum formato diferente das Batalhas.
Isso costuma acontecer nos momentos anteriores e posteriores
Batalha. A maioria dos jovens toma bebidas em garrafas
plsticas,normalmente vinho ou misturas como cachaa e refrigerante.
Elescostumam trazer as bebidas de suas casas ou de mercados, j que
nesteshorrios relativamente caro conseguir comprar algo para beber
nasimediaes do Mercado Pblico.
No h dvidas de que a Batalha do Mercado tambm ummomento de
encontro e que as rinhas de rima no so nico atrativo.Entretanto,
algumas vezes estes outros momentos que fazem parte destafesta
podem provocar algum desconforto aos MC's que cantam ou aopblico
que tenta escutar os versos. Como o contingente de pessoas grande,
nem todos conseguem ficar perto o bastante para ouvir osrimadores.
Muitos que vo Batalha ficam no seu entorno, aproveitandoo momento
com amigos. Disso decorre um barulho que por vezes chegaa
atrapalhar durante os duelos. O apresentador e o pblico precisam
comfrequncia pedir silncio e respeito aos MC's que batalham.
Nas noites de Batalha do Mercado, ela , sem dvidas, aprincipal
responsvel pelo fluxo de pessoas na regio. Ainda que oCentro
Histrico tenha um movimento muito grande de pessoas duranteo dia,
pela parte da noite praticamente deserto e a grande maioria
daspessoas que chegam ao Largo Glnio Peres esto a caminho da
Batalha.Mesmo que haja muitas bancas que sirvam comidas e lanches,
apenasduas permanecem abertas at a madrugada. Alm disso, algumas
vezescirculam por ali vendedores ambulantes de cerveja (e quento
nos diasfrios), espetinhos e cachorro quente. Ainda no Largo, h um
restaurantede preos altos que por volta da meia-noite fecha as
portas. Nosarredores, h uma grande quantidade de casas noturnas
onde o funk aprincipal msica. Estas boates so chamadas
pejorativamente de
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inferninhos por parte de alguns meios de comunicao15 e tambm
depolticos16. Alm disso, so permanentes os conflitos entre
estesestabelecimentos e autoridades como a Secretaria Municipal
daProduo, Indstria e Comrcio (SMIC) e a Brigada Militar.
Acriminalidade frequentemente alegada como motivo para
fechamentodestas casas noturnas17. De todo modo, o principal motivo
alegado paraa realizao da Batalha em frente ao Mercado Pblico a
maiorfacilidade de mobilidade para chegar ou para ir embora. Alm de
existiruma estao de nibus justamente atrs do local onde ocorre o
evento, a
15 O jornal Dirio Gacho noticia dia 17/02/2014 que em dois
meses, quatropessoas j foram assassinadas nos inferninhos do Centro
de Porto
Alegrehttp://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/02/em-dois-meses-quatro-pessoas-ja-foram-assassinadas-nos-inferninhos-do-centro-de-porto-alegre-4421836.html
(Acessado em 23/09/2014) A publicao afirma:Ainda no se passaram
dois meses em 2014 e quatro pessoas j foramassassinadas na regio
dos inferninhos, no Centro. O problema s cresceunos ltimos 20 anos.
Se de um lado as boates so oficialmente regulares nopapel, de
outro, autoridades de segurana denunciam o descontrole da
rea.Moradores e familiares das vtimas, por enquanto, s esperam
umasoluo. A reportagem ainda narra o ltimo episdio de fim trgico
eprossegue Se perguntar a quem mora nas proximidades da Rua
MarechalFloriano Peixoto (entre a Avenida Salgado Filho e a Rua
General Vitorino)qual o problema dos inferninhos, a lista longa.
Vai desde o barulho, quej forou muitos a abandonarem a regio,
passando pela sujeira, presenaconstante do trfico e tiroteios. A
soluo unssona: fech-los.No dia 01/07/2014, a notcia Morte na sada
de inferninho reacende oproblema da insegurana no Centro de Porto
Alegrehttp://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/07/morte-na-saida-de-inferninho-reacende-o-problema-da-inseguranca-no-centro-de-porto-alegre-4540157.html
(Acessado em 23/09/2014). O texto diz queReabertos por liminares
judiciais desde maro, a regio dos inferninhos noCentro voltou da
ser palco de um crime violento na madrugada de ontem.De acordo com
a Brigada Militar, o adolescente () reagiu a tiros a umaabordagem
na Rua General Vitorino e foi morto com dois disparos dadospor um
PM..O jornal insiste em ligao com as casas noturnas e afirma: Desde
ofechamento de quatro inferninhos na Rua Marechal Floriano Peixoto
pelaSmic () iniciou-se uma queda de brao judicial entre a
prefeitura e osproprietrios dos estabelecimentos. () Conforme
levantamento do DirioGacho, desde o comeo do ano passado, 11
pessoas j foram assassinadasno Centro, em crimes relacionados aos
inferninhos. Para finalizar faz umlevantamento dos casos de
homicdios no Centro.Nesta breve nota do dia 02/09/2014, o mesmo
Dirio Gacho publica amanchete Quatro so presos armados prximos aos
inferninhos no Centro
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poucos metros h, ainda, uma estao do Trensurb, a linha frrea
queliga alguns dos municpios da regio metropolitana a Porto Alegre.
Defato, pouqussimos participantes dos duelos moram nos bairros
centrais.Quase todos eles vm de outros bairros e mesmo
municpios.
II. BANCA CLANDESTINACriada no decorrer do ano de 2013, a Banca
Clandestina se
localiza na parte ocidental do Centro Histrico de Porto Alegre,
estandoa aproximadamente 800 metros de distncia da orla do rio
Guaba emdireo ao oeste. Este ponto da cidade no lembra em nada as
ruasmovimentadas e aglutinadas de gente da parte comercial do
centro. Lno h sequer o fluxo intenso de carros e nibus. As ruas que
descem emdireo ao rio so compostas por casas e edifcios
residenciais. Hpouqussimos estabelecimentos comerciais, sendo que a
maioria delesso minimercados, restaurantes e padarias.
O espao fsico da Banca Clandestina uma casa com cincopeas. O MC
ndio, ou Dioin Jpa, como tambm conhecido, foi oprincipal
idealizador e trabalhador deste projeto que ele mesmo definiu
de Porto
Alegrehttp://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/09/quatro-sao-presos-armados-proximo-aos-inferninhos-no-centro-de-porto-alegre-4589016.html
(Acessado em 23/09/2014).
16 Neste caso, a assessoria de imprensa de um vereador noticia
acomemorao do fechamento de inferninho no
Centrohttp://www2.camarapoa.rs.gov.br/default.php?reg=16457&p_secao=246&di=2012-02-13
(Acessado em 23/09/2014). Anota afirma que Esse, no entanto, no o
nico problema nessa regio. Arua Jernimo Coelho uma verdadeira
concentrao de inferninhos. Nonmero 363, de acordo com o alvar do
local, deveria funcionar umbar/caf/loja de bebidas. Porm funcionava
como casa noturna, com onome de Casaro Vipclass. Alm do desacordo,
no havia alvar do corpode bombeiros, licena ambiental e carta de
habitao.Traz ainda no corpo do texto a declarao do vereador:
'Aquilo l era umazoeira, ningum dormia mais, o local no tinha
acstica, alm das brigas ebadernas que aconteciam na rua'.
17 Este outro jornal, um pouco menos sensacionalista, traz a
sugesto daBrigada Militar: Audincia pblica sugere antecipao do
fechamento decasas noturnas no centro de Porto Alegre: Medida
defendida pela BrigadaMilitar tem como fim diminuio da
criminalidade na
regiohttp://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2013/07/audiencia-publica-sugere-antecipacao-do-fechamento-de-casas-noturnas-no-centro-de-porto-alegre-4205675.html
(Acessado em 23/09/2014).
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como a primeira rap shop do Brasil. Uma loja totalmente voltada
aohip hop e qualquer tipo de produto que possa ter relao com o
gneromusical. Ali se comercializam vestimentas e acessrios de
marcasdirecionadas ao pblico do rap, cds de rap e beats18 prontas
para agravao. A loja ainda conta com estdios musical e de tatuagem
e, almdisso, faz trabalhos de organizao e promoo de shows de
rap.
Alm do MC ndio, trabalham l mais trs pessoas incumbidasde
tarefas mais especficas: um tatuador, um produtor musical e
umprodutor cultural. Estes trs realizam suas atribuies de
formaespecializada. O produtor musical, conhecido por Drow, produz
as beatsa serem vendidas por diferentes valores (as mais baratas
custam emtorno de cem reais) ou ento se rene com os MC's
interessados nagravao de um cd. Drow concluiu recentemente um
cursoprofissionalizante em produo musical. Alm dele, h o Long
querealiza contatos e agenda da Banca Clandestina e de artistas
quetrabalham ou que venham a trabalhar com a loja.
Durante o perodo da pesquisa, a loja ainda buscava seconsolidar
e passava por altos e baixos. O MC ndio no tinha nenhumaexperincia
semelhante a esta quando decidiu iniciar o projeto. Naverdade, ele
havia chegado h pouco tempo ao Rio Grande do Sul vindodo Rio de
Janeiro. Na capital fluminense, ele se torn