Sociabilidades violentas: intolerncias, individualismo fbico,
machismo, hedonismo e refugos humanos
Sociabilidades violentas: intolerncias, individualismo fbico,
machismo, hedonismo e refugos humanos
Paulo Baa*
Resumo:Este artigo discute as questes da violncia, do
individualismo, da solido, da perversidade, e como estas ideias, no
mundo contemporneo, produzem prticas polticas e sociais
conflituosas e desestruturadoras das sociabilidades tradicionais
fundadas na tica do trabalho e do Estado clssico liberal ou
social-democrata.
Palavras-chave:Violncia, individualismo, perversidade,
sociabilidade.
Abstract: This article discusses issues of violence,
individualism, solitude, perversity, and how these ideas act on the
contemporary world, producing conflicting political and social
practices, breaking the traditional sociabilities based on the
ethics of work and liberal or social-democratic Classic State.
Key-words:Violence, individualism, perversity, sociability.
Guernica, de Pablo Picasso (1937)
Formular uma teoria geral para a humanidade um projeto
intelectual constituinte da prpria sociologia. Entre nossos
exerccios mais consistentes podemos incluir a ousadia de se
pronunciar sobre o porvir, pensando com a histria (Schorske, 2000),
ouvindo a voz do passado a partir do presente.
Como socilogo, tenho na histria uma fonte inesgotvel de
riquezas, um tesouro poltico, cultural e educacional. E da
experincia concreta da histria, que se podem extrair lies para
enfrentar o futuro envelhecido precocemente do sculo XXI.
De fato, valemo-nos de premissas culturais e ideolgicas para
elaborar quase que uma metateoria sobre o que vir, e normalmente
traamos roteiros de possibilidades presumidas. E nas perspectivas
tericas e polticas dos erros cometidos no passado recente que
observo apreensivo a euforia das anlises prospectivas que apontam,
com garantia e certa petulncia, a formulao de que o sculo XXI
alcanar uma plataforma poltica de compreenso, de civilidade e uma
multidiversidade salutar e includente. Estas anlises tendem a nos
fazer acreditar que os avanos cientficos e tecnolgicos
mundializados sero o fundamento de uma sociabilidade na qual o
respeito s diferenas ser a principal evidncia, produzindo assim um
cenrio social onde as diferenas sero simtricas, ou seja, haver
igualdade na diversidade. Este um sonho acalentado pelo humanismo
desde o sculo XVII.
O futuro, o sculo XXI, consolida-se com muita rapidez, em um
campo minado de mltiplas possibilidades tecnolgicas, cientficas,
polticas e culturais, todas fundamentadas na intolerncia ao outro.
Na crena unicista de que o indivduo o agente central e nico de sua
prpria transformao. E no falo aqui de um indivduo Weberiano, que
coletivo e solidrio.
A tradio das prticas polticas brasileiras, baseadas na clientela
(Faoro, 1979), geradora de disperses e alicera a edificao de um
imaginrio social mistificado, um espetculo bufo, nebuloso e de
enredo indefinido para os atores sociais (Goffman, 1985) que o
vivem nas duas pontas da relao.
Diante de um cotidiano dominado pelo cio, uma nova hierarquia de
valores societais comea a ser produzida; e a violncia a principal
delas. Chegando a tal nvel, que parece estabelecer-se como um novo
centro tico de comportamento; assim j o em vrios territrios das
cidades do Rio de Janeiro e de So Paulo.
Falar sobre o futuro tornou-se um hbito anacrnico, cuja
racionalidade a mdio prazo o medo, diante do poder crescente
dalmpen-elitesobre o Estado e sobre a sociedade e do monoplio
dosespecialistasdo MERCADO financeiro mundializado, que com seus
Phds em Harvard e Yale e suas agncias de anlises de riscos,
pitonisam os indicadores de riscos para cada sociedade e nao, com
critrios duvidosos e especulativos (Silveira, 1998).H um
esgotamento no estoque de ideias criativas e construtivas, tanto do
Estado como da sociedade (Cerqueira Filho, 1982). No momento, vence
e se impe um individualismo narcsico e solitrio, que acarreta a
dissoluo das redes tradicionais de sociabilidade, abrindo
possibilidades polticas e histricas para um rearranjo das redes
sociais e civilidade, hoje coagidas e/ou seduzidas pelas violncias
e corrupes como valores ticos de convivncia cotidiana (Hirschman,
1992).
A crise da segurana pblica reflete a crise da cultura poltica
brasileira, revelando o desespero que se generalizou e se difundiu
na populao, pela falta de esperana, que era produzida pela tica do
trabalho. As pessoas foram dominadas pelo ceticismo das largas
diferenas, consolidadas pelas excluses histricas, e pela ausncia de
perspectivas de melhora para o futuro.
A ideia de trabalho, ao deixar de ser o fundamento da sociedade,
e, portanto, valor tico e eixo de organizao dos desejos, vontades e
esperanas, desaparecem (Habermas, 1987), favorecendo que a
violncia, os ilcitos e as corrupes se transformem em uma via
poltica de ascenso social.
O trabalho, ao deixar de ser o fator tico catalisador da
organizao social, promove um desarranjo nassubjetividades
coletivas. Promove a emergncia em escala crescente da violncia e da
religiosidade fundamentalista como formas de reagrupamento simblico
e concreto de indivduos desesperanados (Alvito, 2001).
O individualismo que configurou a poltica de formao do Estado
moderno tinha nas ideias da posse, da propriedade e do trabalho
seus centros de tenso e organizao. O individualismo clssico
produziu os sentidos, os significados, de duas concepes
tradicionais de Estado: o Estado liberal, que regula a ao entre o
privado e o pblico; e um Estado que, sem romper com a tradio
liberal, aponta para uma socializao simblica da propriedade, atravs
de mecanismos mitigadores para os despossudos e no
proprietrios.
De qualquer forma, seja qual for vereda que se percorra, tem-se
que os princpios da sociabilidade, do contrato de cidadania,
estavam intimamente vinculados prpria formao da ideia do
Estado-nao(Bendix, 1996), e reforaram-se nos pressupostos da
revoluo americana e da revoluo francesa, conferindo legitimidade
propriedade a todo aquele que, de alguma forma, estabelecesse um
lao de pertencimento a um estatuto jurdico e simblico com uma
comunidade poltica, com um Estado.
Portanto, aquilo que a princpio parecia separado e distinto
configura-se como uma equao de variveis interdependentes. O Estado,
ao estabelecer-se centrado no indivduo, no individualismo, na posse
particularizada, engendrou formas polticas de administrar uma
coletividade despossuda, consolidou uma maneira de regular e
controlar conflitos da decorrentes, produzindo uma concepo de
Estado mediador e provedor (Bobbio, 2000). O Estado-nao moderno
assegurou a propriedade material e simblica, manipulando e gerindo
os conflitos atravs de mecanismos pblicos de distribuio de bens de
natureza simblica e material.
A questo do individualismo do Estado-nao est diretamente ligada
a questo da organizao poltica e, portanto, da organizao das
sociedades, formadas historicamente cada uma de maneira diferente
das outras, com suas peculiaridades e caractersticas prprias.
O contrato de cidadania estava centrado nessa lgica, o
individualismo gerando um Estado que organiza o conflito via
distribuio de bens simblicos e o estmulo mobilidade social e
esperana de um futuro melhor via trabalho e poupana.
Essa estratgia, bem sucedida do sculo XIX ao sculo XX,
fortaleceu uma matriz do indivduo como ator social, portador de um
direito natural a toda forma de posse, tradio poltica liberal
herdada de Locke.
Entretanto, a expresso posse introduz a questo da propriedade e
do conflito da decorrente, das formas de legitimar socialmente, em
cada Estado-nao, a obteno e manuteno da propriedade (Bendix, 1996).
O Estado e as sociedades engendraram as formas polticas de controle
social e legitimao poltica e ideolgica para as excluses e os
despossudos, mantendo a ordem pblica e o esprito de pertencimento a
uma nacionalidade.
O individualismo coletivizou-se atravs do Estado de direito,
mantenedor das formas particularizadas de propriedade material,
simblica e afetiva, sendo ele, o Estado, tanto liberal como
social-democrata, uma materializao de um EU COLETIVO, onde havia
uma subordinao do privado ao pblico. Experincia sociopoltica rara
na trajetria do Estado-nao brasileira, onde o pblico e o privado so
indistintos historicamente e no tempo presente.
Associo ainda a ideia de que o Estado administra o
individualismo coletivizado pela comunidade poltica, fazendo com
que os despossudos sintam-se confortveis dentro de suas esferas de
atuao no trabalho. E, ainda, a ideia de que o despossudo legitima o
exerccio da posse atravs dos mecanismos pblicos eficientes de um
Estado distributivista, que opera a tica do trabalho como
fundamento das esperanas de se ter posse e ser proprietrio.
Para os individualismos clssicos, o Estado o ente fundamental
para solucionar e administrar crises sociais, conflitos, gerir os
ambientes de mudana, de antagonismos. E ainda, enxergar nos
antagonismos a oportunidade criativa de se implantar polticas
afirmativas, um Estado mitigador (Boudon, 1979). Um Estado do
equilbrio instvel, um Estado centrado no desenvolvimento dos bens
materiais e coletivos, capaz de identificar e controlar os efeitos
perversos de uma ordem social capitalista e excludente, ao menos em
tese e na doutrina jurdica.
Como exemplo, o desenvolvimento da indstria do petrleo no Rio de
Janeiro gera poluio e m qualidade de vida nos territrios da Baa de
Guanabara, encarados com naturalidade como um efeito perverso de um
desenvolvimento bom para a humanidade, para o ser humano, e,
particularmente, para o Rio de Janeiro, lgica explicitada nas
anlises de custo-benefcio que os governos e a indstria do petrleo
produzem.Portanto, o Estado, como lgica poltica de interveno,
justifica estas mazelas ao promover aes para mitigar esses efeitos
perversos atravs de uma poltica pblica de controle ambiental e
industrial. O Estado um contraponto administrativo e poltico para
aqueles que tm posse e as utilizam em um contexto de legitimidade
social e jurdica.O Estado que se consolidou ao longo dos sculos
XVIII at o sculo XX materializou um sentimento de responsabilidade
coletiva dos que tm posse, procurando mitigar os efeitos perversos
de uma ordem social contraditria. Estes eram e so os pressupostos
polticos e doutrinrios que orientaram a formao dos diversos
Estados-naes na modernidade (Bobbio, 2000).
A histria do Estado-nao no Brasil parece caminhar na contramo
destes pressupostos. Entender o confronto do Estado de direito no
Brasil com o individualismo narcsico e solitrio passa
necessariamente por conhecer como, nos sculos passados, as elites
brasileiras apostaram na ideia de que seria melhor construir um
Estado gerador de privilgios do que um Estado promotor e defensor
da cidadania clssica (Carvalho, 2001), passa necessariamente por
desvendar a trama de hostilidades e perversidades que foram
cometidas contra a populao pobre, particularmente com os escravos
africanos e seus descendentes, e por entender como o arcasmo foi o
projeto de futuro para as elites em formao no sculo XVIII no Brasil
(Fragoso & Florentino, 1993).
No Brasil, o individualismo patrimonialista consolidou o desejo
e o sentido da posse, arraigado na ideia de controle estatal, marca
da tradio histrica do Estado-nao brasileiro, cuja racionalidade e
normatizao garantem a posse ao indivduo atravs de mecanismos
institucionais de um Estado excludente (Faoro, 1994). A posse est,
hipoteticamente, pela doutrina jurdica, disposio de qualquer ator
social, disponibilidade que se consolida atravs das esperanas
produzidas pela tica do trabalho.A ordem social contempornea, do
sculo XXI, configura um mundo que nos parece no ter espessura, em
movimento quase que incessante, como que se vivssemos dentro do
rodopiar de um tornado, em que uma fora centrfuga nos fragmenta e
nos joga de um lado para o outro, e que provoca nos indivduos, nas
sociedades e nos Estados a sensao de possibilidades inmeras, de
estarem dentro de umCONJUNTO EM DISPERSO, que, entretanto, tem uma
lgica centralizada, apesar das rupturas das representaes sociais,
da dissoluo dos absolutos, da transmutao das redes de pertencimento
e suas reconstrues fragmentadas.
O sutil mecanismo centralizador da disperso configura a
principal estratgia poltica do tempo presente, um experimento em
que a fragmentao e a descontinuidade no representam
descontinuidades e fragmentaes, mas indcios de um projeto unitrio e
de uma lgica nica, comandado por um oligoplio transnacional e
privado que tem no G-8 e G20 suas melhores expresses.
Recorro ao modelo estatstico de Paul Lazarfeld
deintercambialidade de ndices, na lgica algbrica da anlise
fatorial, para pontuar que as descontinuidades funcionam
comoVARIVEIS DE DISTOROe as fragmentaes comoVARIVEIS
SUPRESSORAS(Babbie, 1999).
Portanto, identificar a tenso dessa lgica, como ela constituda,
o desafio para que no nos percamos na ideia de um mundo
fragmentado, multicultural e atomizado, como alguns tericos da
sociologia, da antropologia, da cincia poltica, da histria e da
psicologia contempornea vm afirmando. O cenrio social contemporneo
se inspira nas pinturas abstratas, surrealistas, so como cenas de
um filme, que, embora partidas, tm uma lgica. Esta lgica tem como
estratgia de legitimao poltica oNOVOcomo imperativo, a era da
permanente atualizao, a configurao de espaos e tempos que
volatilizam-se, tempos esses que provocam uma disperso das redes de
sociabilidade e afeto. Uma sucesso coercitiva, quase que natural de
fragmentos e extines, a vida como um jogo de pquer, a vida como uma
entropia, a vida como um bungee jumping, em que se joga para um
abismo o cotidiano de milhes de pessoas, para tentar constru-lo
durante a queda.
A vida social e as identidades opacas foram substitudas em suas
tragdias pelo individualismo fbico de um consumismo ldico e
hedonista.
A ideia e o conceito de cidadania transitam do direito a ter
direitos ao de ter capacidade e oportunidade para consumir com
rapidez osNOVOS, e sociabilidades sempre reinventadas e/ou
transmutadas para serem novas.
Ao iniciar esta reflexo, busquei na ideia do Estado moderno as
noes de indivduo e de individualismo, tendo Max Weber (1982) e
Raymond Boudon (1996) como minhas referncias para analisar as
contradies entre o indivduo e o coletivo, entre o individual e o
social, tendo igualmente o fundamento analtico que a tradio da
filosofia poltica confere ao ser humano e s aes humanas, como sendo
dotadas de uma razo prtica, que procura viver uma sociabilidade
fundada na palavra, na persuaso e no dilogo; portanto,
estabelecedora de contratos de convivncia. Da centrar o olhar na
histria dos contratos de cidadania, valendo-me das teses de Max
Weber (1982) e Louis Dumont (1985) sobre os individualismos, a ao
social e a liturgia dramtica das sociedades (Goffman, 1985). E como
parmetro de comparao, a histria da cidadania no Estado-nao
brasileiro, a partir da leitura dos livrosO arcasmo como projeto,
de Joo Fragoso e Manolo Florentino (1993), eA cidadania no Brasil:
um longo caminho, de Jos Murilo de Carvalho (2001).
No Brasil do sculo XXI as classes dominantes capitalistas e
burguesas, a cada dia, cedem seus lugares a
umalmpen-eliteendinheirada. Esta nova casta de mandatrios foi um
produto inesperado do patrimonialismo estatal, sendo gestado
cuidadosamente pelos privilgios concentracionistas e racistas das
elites tradicionais brasileiras.
Almpen-elite, devagar, ocupa a mquina do Estado por suas
beiradas e estabelece reas de controle territorial e de servios no
dia-a-dia da sociedade. Em certos territrios, ela substituiu na
marra a pequena burguesia comercial e de servios e o prprio Estado,
difundindo com suas prticas ilcitas, violentas, machistas,
corruptas e corruptoras uma incerteza social como clima de
convivncia; arbitrria, coercitiva e geradora de medo e mortes,
produz, com suas prticas, um sentido social anti-civilizador, no
qual as regras do Estado, j anacrnicas historicamente, nada valem e
as relaes interpessoais so atomizadas pelo silncio necessrio
sobrevivncia.
O caminho da humanidade no sculo XXI se assemelha ao percorrido
por Dante Alighieri, tendo Virglio como cicerone, em sua ida ao
inferno.
A histria do tempo presente est engenheirando uma ao humana que
faz um contraponto razo, estruturao e ao regramento, constatao
feita pelo estudo de Denis Rosenfield (1988), ao introduzir
oMALcomo uma categoria tico-poltica. De maneira muito criativa,
Rosenfield inverte a lgica do contrato de cidadania possvel,
centrado na ideia das boas intenes do bem comum, do Estado mediador
e provedor e da mitigao dos efeitos perversos da ordem social
capitalista.
Quero enfatizar que as intolerncias e machismos obedecem a uma
lgica, um processo bem articulado de sociabilidade perversa (Silva,
2004) geradora de pertencimentos e identidades para homens e
mulheres.
A ideia de violncia e masculinidade articula-se em uma correlao
formatadora de redes de relacionamentos, do micro ou macro no tempo
presente.
A violncia, o consumismo hedonista e o individualismo fbico
masculinizado so relaes sociais de poder que estruturam e
fundamentam mltiplos grupos de pertencimento e ao social coletiva,
constituindo-se em uma subjetivao que legitima comportamentos de
indivduos submetidos a esses grupos. Portanto, a violncia e a
masculinidade esto presentes como lugares simblicos e praticas de
sentido estruturante nas relaes sociais no tempo presente.
A violncia, a masculinidade e os individualismos fbicos no so
relaes de poder unilateral. So eventos sociais complexos e plurais,
imersos em mltiplas interaes, com representaes coletivas
interligadas em redes de sociabilidades nos contextos vividos pelos
diversos grupos, em que a violncia e a masculinidade so
representaes polissmicas de organizao social.
Essa reflexo discute a relao entre as violncias, solides,
individualismos fbicos, consumismos hedonistas e as masculinidades
a partir das prticas sociais de indivduos em mltiplos grupos de
pertencimento. Atravs destes eventos, analiso as relaes entre estes
fenmenos sociais e demonstro como funciona esta rede de construo de
intolerncias e assdios mltiplos, com um ponto de vista ancorado na
ideia de Ethos guerreiro de Norbert Elias (1994).
Nesse trabalho, o fenmeno da violncia entendido como uma
expresso de subjetividade negada, passvel de verificao quando os
indivduos compreendem alguns valores como coletivos e indispensveis
para um grupo ser um grupo. A subjetividade negada sempre
estabelecida na interao com outros indivduos portadores de ideias
coletivas. A violncia, por ser construda por uma subjetividade
negada, estabelece uma negao da alteridade do outro (Silva, 2004).
Nesse sentido, a sociabilidade violenta um modo de vida.
A negao existente passa a se constituir em uma identidade
coletiva construtora de mltiplos grupos de indivduos como
comunidades de pertencimento (Anderson, 2008), que compartilham
valores grupais atravs das violncias e solides dos individualismos
fbicos com outros grupos, que se rivalizam rotineiramente. Nos
eventos acima citados nega-se a existncia de outros indivduos e/ou
outros grupos. Negam-se os direitos s existncias diferenciadas. As
identidades so estabelecidas articulando-se atravs das solides e
violncias e de um ethos guerreiro (Elias, 1994) etnocentrado.
As violncias e solides so binmios relacionais complexos que
exigem precises, objetividades e reconhecimentos das subjetividades
de cada um dos mltiplos agrupamentos de indivduos, como se formatam
suas categorizaes, como classificam o que violncia, individualismo
e solido, pois essas categorias so variveis dependentes da aceitao
tanto dos autores como das coletividades grupais nas quais os
indivduos esto inseridos e os eventos contextualizados.
A intencionalidade subjetiva relaciona-se com os valores que
orientam o sentido de conduta do indivduo. A subjetividade
relacionada representao coletiva que h dentro de um contexto. Um
ato de violncia sempre uma mediao desses binmios em ao, assim como
uma interpretao que quem sofreu a ao violenta d ao fato. A
interpretao que quem sofreu a ao realiza em torno da agresso se faz
de acordo com princpios morais construdos dentro do contexto social
em que vive. desta maneira que um mesmo ato pode ser, em um
contexto especfico, violento, mas, em outro, compreendido como uma
relao social que no afete o cotidiano do indivduo (Oliveira,
2008).
As intencionalidades do indivduo e dos grupos podem variar, de
acordo com o contexto no qual eles se inserem. Dependem da apreenso
coletiva dos indivduos e/ou grupos sobre o que sejam violncia,
individualismo e consumo. Atores aprendem essas ideias e valores de
acordo com as dinmicas dos grupos em que esto inseridos. Conclui-se
que no h violncia e solido no singular, mas h violncias e solides
que precisam considerar os indivduos em suas aes alm do contexto
dos grupos nos quais esto inseridos.
As violncias, os consumismos e as fobias so compreendidos de
maneira ampla, visto que todos esses eventos e atos participam das
negaes de alteridades de outros grupos como sujeitos constituintes
de determinadas e especificas sociabilidades. As violncias, os
consumismos e as fobias so atos violentos e fbicos na medida em que
negam a um ou mais indivduos ou grupos as normas estabelecidas pela
representao coletiva no contexto de um determinado grupo, que so
compartilhadas por todos.
Quando falo em normas, no me refiro s normas legais estatutrias
de uma instituio ou do Estado. Estas normas so as dos contextos
informais dos mltiplos grupos com o qual os indivduos interagem.
Considero nessa reflexo violncias, individualismos fbicos e
consumismos hedonistas e ldico-narcsicos como alteridade
desconsiderada, que no reconhece outros indivduos ou grupos, a no
ser como objetos de consumo descartveis que sero refugados pelos
extermnios e abandonos, como se no fossem sujeitos sociais e
humanos. So objetos de consumo e satisfao de desejos volteis e
imediatos, que negam as interaes sociais, pois os outros so sempre
descartveis ou perigosos.
As violncias, solides, individualismos fbicos e consumismos
hedonistas so construes sociais dos novos em continuada mutao no
tempo presente. No agora. A participao nas interaes dos indivduos
valorada no mbito exclusivo de suas sociabilidades especificas e
autocentradas em si mesmos ou nos grupos a que pertencem. As
sociabilidades so estruturadas a partir de uma finalidade de
agregao que desconsidera os comportamentos e valores dos outros
sociais. Em termos clssicos, as sociabilidades estavam estritamente
ligadas a uma livre participao dos valores sociais (liberdade,
convivncia, reconhecimento) de um ou mais indivduos, sendo
garantida ao mesmo tempo a mesma liberdade de participao de outros
indivduos e/ou grupos. Desta forma, sociabilidade em Simmel (2006)
envolve uma construo, que tem como pressuposto uma ao que leva em
considerao o outro.
A sociabilidade para Simmel uma alteridade. O reconhecimento do
outro um condicionante para a vida social. A sociabilidade das
violncias, solides, individualismos fbicos e consumismos hedonistas
so um no reconhecimento das condutas tanto objetiva como subjetiva
de outros sujeitos como sujeitos, e sim como objetos para serem
usados e refugados. oposta sociabilidade de Simmel. As violncias,
intolerncias e fobias produzem uma forma de relao social
estruturada pela absoluta desconsiderao dos outros, uma relao
social que descarta o convvio social diferenciado.
As violncias, consumismos hedonistas e fobias contemporneas so
relaes sociais que organizam grupos especficos como universais.
As violncias, o consumismo hedonista e fobias aos outros so
novos tipos e arranjos de relaes sociais plurais e polissmicas
(Bauman 2005), onde no possvel falar de uma nica espcie de
violncia, o que faz emergir grupos especficos e locais
intolerantes, fundamentalistas e fbicos, que baseiam seus
compartilhamentos em normas de comportamentos brutais tantos em aes
objetivas como simblicas, que so consideradas normais e definidoras
dos grupos especficos. Ao focar em normas interessam-me os
significados que os grupos sociais especficos compartilham sobre o
que um ato violento, fbico e intolerante. Existem variaes de
comportamentos violentos, narcsicos, fbicos e consumistas
hedonistas conforme os mltiplos grupos constituem-se. Realo a
compreenso j feita por Becker sobre as regras normativas de conduta
dos grupos:
Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos
momentos e em algumas circunstncias, imp-las. Regras sociais
definem situaes e tipos de comportamento a elas apropriados,
especificando algumas aes como certas e proibindo outras como
erradas(Becker, 2008).
A ideia acima indica que esses fenmenos sociolgicos citados
ocorrem em redes, em uma cadeia sequencial, que interliga os
indivduos s normas dos grupos especficos. So percebidas pelos
grupos e/ou indivduos engajados a uma sociabilidade violenta
especifica no como desvio de comportamento, e sim como atos e
eventos de normalidades rotineiras que valorizam e legitimam as
regras grupais. Como as regras no so individuais, esses eventos e
fenmenos das violncias, fobias ao outro, intolerncias e consumismos
hedonistas tornam-se uma interpretao valorativa para os grupos e os
indivduos a eles pertencentes.
As sociabilidades violentas e o Estado so duas faces da mesma
moeda: a organizao de uma sociedade e grupos de pertencimento
pautados nas foras violentas e intolerantes. As sociabilidades
violentas e o Estado nascem da mesma forma de organizao, que
pressupe a fora e as normas como elementos centrais de ordenamento
coletivo e alteridades.
As violncias, solides, consumismos hedonistas e individualismos
fbicos no tempo presente em nossas cidades tm como princpio
estruturador a fora. O uso da fora uma relao social que no pressupe
um esvaziamento do Estado em sua norma jurdica de ter o monoplio
legtimo da violncia. Ao contrrio, a compreenso das sociabilidades
violentas desvenda um novo princpio tico moral que estrutura a
percepo coletiva dos atores sociais envolvidos, para os quais as
violncias e intolerncias no so violncias e intolerncias, mas
mecanismos sociais legtimos de autoproteo via pertencimento a um
determinado grupo. Liga-se a uma privatizao, individuao e
tribalismos urbanos (Giddens 1978) das foras violentas objetivas e
simblicas em detrimento dos princpios normativos governamentais e
institucionais que ligavam violncia ao Estado.De acordo com
Silva:
(...) a transformao da violncia, de meio de obteno de interesse
minimizado pela sua concentrao como monoplio formal do Estado, no
centro de um padro de sociabilidade em formao que no se confronta
com a ordem estatal, mas lhe contguo. Creio que justamente isso que
confere especificidade histrica violncia contempornea nas grandes
cidades.(Silva, 2004)
Nessa conjuntura, no tempo presente, h uma fragmentao do Estado,
que ainda assim bastante atuante - ao mesmo tempo e contexto onde
agem e atuam grupos e/ou indivduos que competem e concorrem com
suas prticas violentas privadas de intolerncias, fundamentalismos,
consumismos hedonistas e descartes humanos ao refugar quem no
considerado igual. Atravs destas prticas, estes grupos expressam um
sentido e significado sua existncia que no podem mais ser dados
pelos princpios de reconhecimento do Estado (Baa 2006). Assim,
deve-se compreender a ascenso das sociabilidades violentas e das
fobias aos outros atravs de uma estrutura que compacta e forma
valores. (Elias, 1994).
A masculinidade nesse contexto analtico est inserida em mltiplos
contextos que reproduzem sua condio normativa de existncia
(Bourdieu 2011). um conceito que tem uma homologia entre estrutura
cognitiva e estrutura objetiva.
A masculinidade um processo de interao inserido no conceito
gnero. Por gnero, entendo um processo de produo social de diferena
onde estrutura-se uma percepo oposta entre duas categorias:
masculino e feminino, que formam um binmio complementar, onde o
masculino se impe. Nos dizeres de Almeida:
Se masculinidade e feminilidade so, ao nvel da gramtica dos
smbolos, conceitualizadas como simtricas e complementares, na arena
do poder so discursadas como assimtricas.(Almeida, 1996)
O ethos do macho homogeneza o mundo social como masculino atravs
das prticas violentas, perversas e sutis (Almeida 1996). No se
limita violncia fsica contra as mulheres, uma violncia simblica
totalizadora, violncia simblica coercitiva quando os mesmos
princpios de viso e de diviso do mundo, esquemas de pensamento,
estrutura cognitiva imposta pelos dominantes aos dominados, que no
tm outra forma de reagirem s suas prticas sociais, a no ser pelo
referencial do mundo social criado pelos dominantes. Mesmo quando
mulheres rompem barreiras no trabalho e na poltica, tm suas
condutas estigmatizadas a um ethos que as aciona como femininas
como categoria acusatria.
O masculino insere os atores sociais em um espao social inerente
de desigualdades (Oliveira 2008). As formas como os atores
interagem na sociedade so percebidas como expectativas coletivas
ajustadas s estruturas concretas em que homens e mulheres esto
inseridos.
A dominao do masculino operada pela reedificao de um masculino
universal (Bourdieu 2011). Embora haja variaes nas formas de
dominao, sempre se reatualizam prticas sociais desiguais entre os
gneros. A lgica da dominao masculina atualiza-se frente s inovaes e
contextos variados das novas identidades libertrias da mulher.A
masculinidade como processo social, pode ser apreendida por
variados mtodos, pois existem mltiplas masculinidades de acordo com
as sociabilidades inseridas em diferentes contextos (Bauman 2005).
A masculinidade implica no poder e privilgio que o indivduo tem nas
hierarquias e fragmentaes do social e do Estado.
No contexto especfico das sociabilidades violentas, solides,
consumismos hedonistas e individualismos fbicos a masculinidade
forma um paradigma (Anderson 2008) em que os integrantes se
reconhecem uns nos outros e, articulando-se atravs das violncias,
conseguem estabelecer normas e comportamentos que tendem a uni-los
e, concomitantemente, se diferenciar dos outros e de seus estilos
de vida.
A masculinidade o liame normativo constitutivo de identidades
(Elias, 1994). Uma masculinidade diferente da que separa o mundo em
masculino e feminino, pois se articula atravs de um ethos guerreiro
que impe a violncia como formadora de uma identidade masculina para
homens e mulheres.
O racional do ser humano, nos envelhecidos tempos presentes do
sculo XXI, uma racionalidade falaciosa, na medida em que pem em
confronto os valores gerados pelos pensamentos liberal e socialista
clssicos, e as formas contemporneas de violncia poltica, pessoal e
simblica (Bourdieu 2009). A desregulamentao das sociedades em
escala mundial engendra formas excludentes e totalitrias de vida
social, de um cotidiano em que os indivduos tornam-se solitrios e
narcsicos, a partir da utilizao macia do desenvolvimento
cientfico-tecnolgico e da precarizao e inconstncia das relaes
humanas (Giddens 1978). Cria-se um cenrio de arianismo
tcnico-cientfico, de violncias e barbries.
Professor Paulo Baa
Chamo a ateno para o fato de que as formas totalitrias no so as
tradicionais do totalitarismo do Estado, so privatizadas e
individualizadas, ou pela prepotncia do mercado ou pela barbrie da
violncia diria. um totalitarismo centrado no individual narcsico e
solitrio, vontade absolutizada do indivduo sobre ele mesmo e sobre
os demais. Ou seja, a soberania absoluta e plena de umEU SOLITRIO.
(Baa 2006).
Nessa reflexo, ao introduzir o conceito de violncia como um
projeto individualizado do mal, de uma vontade maligna, tem-se a
perversidade como uma categoria tico-poltica, portanto, um conceito
capaz de produzir realidades sociais factveis. Tendo a perversidade
como categoria sociolgica analtica, tomo igualmente os conceitos de
solido, consumismos hedonistas, intolerncias e individualismo
narcsico fbico como ideias que foram recusadas pela maioria dos
analistas sociais. Somente a psicanlise cuidou deles, e os
analistas sociais, ao recusarem aideiada existncia de uma pulso
maligna, influenciaram de forma decisiva as mais diferentes
vertentes do pensamento cientfico na rea de cincias humanas, pois
estabeleceram um silncio sobre as perversidades e a maldades.
Na medida em que as ideias acima foram excludas das preocupaes
analticas, trabalharam-se os conceitos de ordem social e vontade,
sendo que aideiada vontade individual, aideiada vontade de
progresso, a fonte constitutiva central de uma sociedade racional e
administradora das aes humanas voltadas para o bem, que tem na tica
do trabalho seu fundamento (Durkheim, 2001). A perversidade, a
maldade, o eu narcsico fbico e o eu auto-realizvel eram analisados
como acidentes, acasos, acontecimentos aleatrios no pertencentes a
um projeto coletivo, de sociedade (Durkheim, 1984).
Ao refletir sobre essas ideias, percebe-se uma configurao social
assentada no desregramento como uma proposta, como uma meta a
alcanar. O desregramento provoca desregulamentao, promovendo
fragmentao e atomizao (Elias, 1994). A desregulamentao como projeto
final de uma ao especfica dos indivduos narcsicos fbicos e
fundamentalistas, antitica e tudo pode por se absolutista. A partir
de seu absolutismo individual hedonista, tende a controlar os
mecanismos de Estado, que, contemporaneamente, se desregulamenta
como projeto poltico coletivo, mantendo, entretanto sua essncia
coercitiva, policial.
Com base na leitura de Rosenfield (1988) e Silva (2004), deduzo
que a anlise dos eventos contemporneos sobre as violncias, fobias
refugadoras dos outros e consumismos volteis de descartveis
humanos, por essa tica, constituem-se em aes polticas e sociais
determinadas, que para ns ainda representam um projeto nebuloso e
indefinido, mas que, no entanto, comeam a apontar indcios muito
precisos de que a questo das violncias, intolerncias,
fundamentalismos, refugamentos em massa de populaes eindivduospodem
indicar aes efetivadas tendo como meta a destruio sistemtica das
redes tradicionais de sociabilidade, sem que se caia em contradio
lgica. Para a particularidade brasileira, pode-se afirmar, a partir
da leitura do texto de Joo Fragoso e Manolo Florentino (1993), que
estes estabeleceram as bases em que se pode profetizar, de forma
afirmativa, que o arcasmo deu certo, constituindo-se hoje, como o
foi no passado, um projeto de contemporaneidade.
Com efeito, do ponto de vista da meta das desregulamentaes, tem
que se ter a eliminao no somente de uma sociedade determinada, mas
de tudo aquilo que entendamos e imaginvamos at aqui por formas
humanas de sociabilidade j que, na perspectiva dos meios de ao
poltica, estar-se-ia em presena de formas regradas e sistemticas de
extermnios e violncias mltiplas, sendo elas polticas, humanas,
afetivas e simblicas. Assim, as solidariedades volatilizam-se e
estabelecem-se subordinaes pela fora das armas e do medo
generalizado.
Ao tomar-se a perversidade, a maldade, do eu narcsico, fbico e
auto-realizvel como conceitos tico-polticos, e, portanto
sociolgicos, temos que ter como contrapartida uma enunciao da
natureza humana como um conjunto de proposies suscetveis de serem
transformadas por formas violentas, sendo que estas violncias podem
ser concretas ou subjetivas, podem ser materiais ou simblicas.
Essas formas violentas se traduzem numa ao poltica de valorizao do
sucesso a qualquer custo e dos seres humanos auto-realizveis, auto
centrados, solitrios bem sucedidos (RIBEIRO, 1993a), e em um no
poltico que essencialmente poltico e projeto de poder de poucos
para subordinar muitos, em que os mecanismos tradicionais so
substitudos por mecanismos simblicos que materializam os medos e
valorizam a violncias, os consumismos hedonistas e o extermnio dos
outros sociais como mecanismo de ascenso social. Formando-se
grupamentos minoritrios endinheirados e empoderados, ou seja,
formando-se umalmpen-eliteno poder cotidiano do tempo presente,
esteja ela no Estado ou no mundo da vida dos privados na sociedade
como uma totalidade fragmentada.
Almpen-eliteno tem nenhum interesse no futuro, pois seus
passados so de humilhao, fome e desesperana. S quem pensa no
passado quem quer construir uma civilizao para o futuro, e, para
almpen-elite, o passado s traz lembranas amorais e perversas; e,
portanto, um sentimento de tristeza e morte. Quem pensa com a
histria (SCHORSKE, 2000) quem tem um projeto de futuro, que produz
valores transcendentes sua poca, que acredita estar vivendo um
processo de construo permanente de uma nao e de uma sociedade de
solidarismos acolhedores. Este no o caso dalmpen-eliteno Brasil do
tempo presente, que quer viver o agora, sem passados e sem
futuros.
A perversidade, como uma categoria, um conceito que, provido de
razo prtica, d conta de uma dimenso essencial do agir humano, das
violncias, das solides, dos fobismos individualistas, das
intolerncias e das refugaes e extermnios dos outros, que passa a
produzir estruturaes sociais e dar forma de organizao precria e
eventual a mltiplos e diversificados agrupamentos para as populaes
metropolitanas nas metrpoles brasileiras do tempo presente.
Enfim, utilizar a perversidade como uma categoria sociolgica
analtica transforma o tempo presente do sculo XXI em algo factvel
de anlise para as recentes perplexidades e medos coletivos. Ao
tomar a perversidade como um conceito prtico, uma categoria
tico-poltica, produz-se uma visibilidade assustadora (Whyte
2005).
Almpen-elitese realiza no agora, pois acredita que suas vidas
nada valem; e, apesar de endinheirados e prestigiados, no passam de
cadveres baratos.
Ao ter a perversidade como um conceito poltico, como uma
categoria sociolgica analtica, este conceito permite a mediao da
percepo que transforma o Estado mediador e provedor em um Estado
policial, e exceo como projeto poltico.
Os mltiplos cenrios sociais contemporneos engenheiram mecanismos
de matana simblica do pblico, do coletivo, promovendo a emergncia
de umalmpen-elitepela violncia e peladelinquncia, e fortalecendo
uma perspectiva de individualismo auto-centrado e auto-realizvel,
solitrio (RIBEIRO, 1993b). Os despossudos contemporneos enfrentam
no s as concentraes cada vez maiores das posses como enfrentam
igualmente, de maneira contundente, a ao de um Estado policial e
tecnolgico (MISSE, 1999). E ainda enfrentam, em seu cotidiano, as
gangues e redes criminosas, que mantm as excluses e exterminam as
esperanas que a tica do trabalho produzia, mesmo que de forma
precria e com alto nvel de explorao do trabalhador.
Nesta reflexo, tendo a afirmar minha convico de que a cada dia
torna-se mais difcil obter um grupo de pertencimento. Mesmo que
este grupo seja a sua prpria famlia; a formao do menor micro-grupo
social, que um casal ou uma dupla, cada dia mais difcil.
Se quisermos outrosdestinos, diferente daqueles que Dante
descreveu em sua trajetria cruzando o inferno, devemos nos
confrontar j, e de forma contundente, com as variadas formas de
individualismo fundamentalista fbico, com os consumismos hedonistas
e com as sociabilidades violentas em suas dinmicas objetivas,
simblicas e afetivas. E quando falo em individualismo, no estou
usando o conceito generoso de Max Weber, que v no indivduo um ser
coletivo, um ator social, capaz de traar e enfrentar o seu destino,
de construir uma civilizao. Falo de um individualismo egocentrado,
narcsico e solitrio, falo do indivduo que Lair Ribeiro (1993a,
1993b) to bem descreve e compreende. O indivduo que se realiza em
sua prpria individualidade solitria e original. Que acredita ser o
responsvel, ele prprio, pelos sucessos e mazelas dos tempos
contemporneos (Ribeiro, 1993a).
Torna-se efetivamente necessrio valorizar com a publicizao e
anlises as conquistas civilizatrias, afetivo-poltcas de bem estar e
bem querer mais significativas dos sculos passados.
A meu ver essa tarefa e ser uma misso intelectual, analtica e
existencial ampliada, radicalmente ampliada em todos os campos das
atividades humanas e das mltiplas redes de sociabilidades. um
desafio sociolgico de compreenso. Tenho certeza que, por estratgia
de sobrevivncia, homens e mulheres tero que ser rigorosamente
semelhantes e solidrios nestes tempos presentes de intolerncias, de
iniquidades e mltiplos fundamentalismos isolacionistas.
O sculo XXI tornou inexorvel o fim de uma tica social, baseada
no trabalho. Esta tica, que orientou a organizao social de mltiplas
sociedades, particularmente a sociedade capitalista ocidental
(Weber, 1982), na qual o Brasil se inscreve, produziu conflitos
sociais, lutas de classe e esperanas, alimentou sonhos de
transformaes sociais igualitrias, sonhos de mobilidade social e
circulao territorial. Com o fim desta tica, o trabalho deixa de ser
base de organizao da sociedade, transformando o cio em mercadoria
simblica e hipervalorizada; insuflando os desejos mais profundos e
primitivos de uma multido de desesperanados, a participar como
consumidores hedonistas e ldicos de um mundo que os exclui e no
lhes confere identidade social. O conceito de cidadania transmutado
para o de consumidor.
Como conseqncia, forma-se um modo de produo ilcito e paralelo
que atenta contra a cidadania precria e o Estado de direito
anacrnico, atuando com todos os itens de uma pauta industrial, de
servios e financeira. Cria-se assim a possibilidade de ganhar
capital, endinheirar, tornar-se o dono do pedao, constituir-se em
uma pequena casta de mandatrios absolutistas, enfim, tornar-se um
membro dalmpen-elite, atravs de um lucrativo comrcio informal e
ilegal de todos os tipos de mercadorias roubadas, falsificadas e de
drogas, que se capilariza em nossos territrios, estando ao alcance
de todos via telefone celular ou internet.
Nosso dilema que hoje almpen-eliteest associada a uma rede
mundializada dominada pelonarcopoder(Silveira, 1998), controla
territrios e aglomerados populacionais que no possuem slidos
vnculos de solidariedade social e coeso afetiva cultural. E o
Estado real, anacrnico, se relaciona com estes territrios sociais
atravs da coero policial ou do clientelismo, transformando o ilcito
emmercadoria polticamonopolizada pelo Estado (Misse, 1999), e,
portanto passvel de comrcio e intercmbio com almpen-elite, com a
casta paralela de mandatrios locais e regionais.
O fim da tica do trabalho produz um cenrio cinzento no presente
e obscuro para o futuro, pois as regras do mercado so as regras do
capital, e este, a cada dia que passa, cada vez mais gerado por
gangues e redes criminosas hierarquizadas em escala
mundial.Retrocedemos Idade Mdia, em que o poder das armas e da
coero legitima as aes, tradio ibrica que orientou e formatou a
subjetividade coletiva das elites brasileiras no passado (Faoro,
1979). No presente, as elites brasileiras parecem-me possuir os
mesmos parmetros de subjetividade coletiva de seus antepassados,
pois ao longo de quatro sculos foram insensveis ao crescente
desequilbrio social produzido no Brasil (Faoro, 1994). Nossos
territrios nas principais metrpoles como Rio de Janeiro, So Paulo,
Minas Gerais, Bahia, Braslia, tm comandos paralelos, mais presentes
e coercitivos que o do Estado anacrnico de fato. Quem conhece o Rio
de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais, Bahia e Braslia sabe quem que
manda (Paes, 2008).
Hoje, no Brasil, chegamos a um nvel em que as dimenses das
diferenas so de difcil soluo, pois se consolidaram as excluses
clssicas e racistas, gerando-se novos tipos de mal estar que se
generalizam, indicando uma incapacidade estrutural para solues;
existe falta de coragem cvica e civilizatria para enfrentar as
conseqncias de uma excluso e refugamento humano em escala
exponencial.
Neste cenrio, o que resta ao Estado cada vez mais
desregulamentado transformar-se em uma vasta mquina policial
mantenedora da ordem pblica. Este talvez seja o produto mais visvel
da recente desregulamentao do Estado e das sociedades em nvel
mundial. E mesmo assim esta vasta estrutura bem equipada e bem
orada obsoleta e cooptada pela dinmica social imposta
pelonarcopoder, pelaslmpen-elitese pelas corrupes. A
desregulamentao do Estado acarreta de imediato uma desregulamentao
das redes de sociabilidade micro da sociedade, que dilui os
fundamentos ticos clssicos, tendo como decorrncia uma ditadura da
produo gerada por um sistema paralelo e ilcito de fazeres, que,
entretanto, apesar de paralelo e ilcito, converge para o mercado
financeiro formal de maneira mundializada e especulativa.
Neste cenrio, velhos perdem qualquer proteo ou respeito, e as
crianas so seduzidas pelos ganhos produzidos pela delinquncia e por
um sistema de produo de capital cujos valores se assentam na
violncia e na barbrie (Becker 2008). E cada um de ns busca proteo
em redutos de solido e individualidade. Estabelecemos, como nos
castelos medievais, fossos de proteo contra os outros. Somos
estimulados a uma no alteridade, a ver no outro indivduo e em
outros grupos ameaas reais e/ou imaginadas, e que portanto devem
ser evitadas.
Tambm, no contexto do tempo presente, as tragdias das grandes
diferenas sociais e a hiperfragmentao da sociedade em mltiplos
grupos de identidade fazem com que, embora circulemos por vrios
deles com performances diferenciadas, passemos a exercer um
individualismo fbico que tem no outro um objeto de consumo
descartvel. Assim produzimos com nosso narcisismo coletivo um
refugo em massa de milhares de seres humanos. Contudo, creio que j
existem contrapontos micro e atomizados a desenvolver
sociabilidades no hedonistas e no fbicas.
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sociologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara.WHYTE, W. F.
2005.Sociedade de Esquina.Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ____*Nota
biogrfica:Paulo Baa, graduado em Cincias Sociais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1976), mestre em Cincia Poltica pela
Universidade Federal Fluminense (2001) e doutor em Cincias Sociais
pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2006).
Atualmente professor do Departamento de Sociologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, coordenador do Ncleo de Sociologia do
Poder e Assuntos Estratgicos, pesquisador associado snior do
Laboratrio Cidade e Poder da UFF, do Laboratrio de Estudos de Gnero
do IFCS/UFRJ e do Ncleo de Incluso Social (NIS) - UFRJ. Tem
experincia nas reas de Sociologia e Cincia Poltica, com nfase em
sociologia poltica, atuando principalmente nos seguintes temas:
pensamento social brasileiro, estudos estratgicos, teoria poltica,
cultura poltica, pensamento social, defesa nacional, segurana
pblica, desigualdades sociais, cidadania, violncia, direitos
humanos, eleies, estudos urbanos, sistemas de
informao/contra-informao/inteligncia e boato.(CV Lattes).
**Artigo publicado originalmente:BAA, Paulo.Sociabilidades
Violentas - Intolerncias, individualismo fbico, machismo, hedonismo
e refugos humanos. RBSE - Revista Brasileia de Sociologia da Emoo
(online), da UFPB, vol. 12, p. 269-301, 2013.
***Guernica, de Pablo Picasso, - a trgica e clssica obra, nasceu
das impresses causadas no artista pela viso de fotos retratando as
consequncias do intenso bombardeio sofrido pela cidade de Guernica,
anteriormente capital basca, durante a Guerra Civil Espanhola, em
26 de abril de 1937.O painel, produzido em 1937, exposto em um
pavilho da Exposio Internacional de Paris, no espao reservado
Repblica Espanhola. um smbolo doloroso do terror que pode ser
produzido pelas guerras e a violncia.
Mary Del Priore uma das historiadoras de maior sucesso entre o
grande pblico.Por sua escrita leve e, em muitos casos, direta, ela
atrai as pessoas com muita facilidade para os temas sobre os quais
ela discorre em sua extensa bibliografia. Na anlise de seus textos,
o que fica evidente que a preocupao dessa autora no se pauta em um
discurso extremamente terico e academicista, mas sim voltado ao
dilogo direto com o leitor, independentemente de ele estar
familiarizado com o tema ou no. Ao percorrer as pginas dos livros
dela, o indivduo poder perceber um forte discurso feminista por
parte da autora, especialmente em obras como Histria das Mulheres
no Brasil (vencedor dos prmios Jabuti e Casa Grande & Senzala)
e Histrias ntimas, publicados em 1997 e 2011, respectivamente. O
sexo, por sua vez, outro assunto bastante recorrente nos escritos
de Priore, sendo este um dos pontos que torna a sua produo, ao
mesmo tempo em que polmica, tambm desafiadora e deliciosa.
Para entender do que trata o discurso feminista da autora,
preciso ter em mente algumas questes. A ideia de que o feminismo o
oposto do machismo extremamente recorrente, apesar das inmeras
tentativas de feministas ao redor do mundo de explicar porque ela
equivocada. O machismo o pensamento de que a mulher, por ser
mulher, inferior ao homem, e deve, portanto, se submeter a ele, no
podendo ter acesso aos mesmos direitos e lugares sociais. O
feminismo, por sua vez, um movimento poltico que surge na luta pela
igualdade de direitos para homens e mulherese vem tentando
reformular radicalmente as relaes de gnero, baseando-se sempre no
princpio da igualdade.Ser homem ou ser mulher so lugares sociais
construdos, no naturais; portanto, no h coisas para homens e coisas
para mulheres.
Tendo em vista, ento, que o feminismo no o oposto do machismo,
no faz parte da lgica feminista repudiar os homens a priori,
exclu-los ou limitar seus direitos. Como consequncia dessa
interpretao errada sobre o feminismo, vemos muitas vezes uma outra
constatao equivocada, que a de que somente os homens so machistas.
Essa afirmao demasiadamente simplista e desconsidera o fato de que
o machismo tambm construo social e histrica; uma lgica que vem
sendo assimilada h muitos sculos, e que tem se naturalizado como a
nica lgica possvel para reger a sociedade ocidental moderna.
A religio, em especial o cristianismo, muito tem a ver com a
disseminao da lgica machista: desde o surgimento do cristianismo,
tem-se acentuado a ideia da mulher como subserviente ao homem. Os
textos sagrados fazem repetidas referncias ao papel social da
mulher como aquela que cuida dos filhos e, principalmente, aquela
que serve ao marido. A prpria histria de Ado e Eva, em que Eva
surge a partir de Ado, demonstra a mentalidade de que a mulher
depende do homem, e este lhe indispensvel. No de se espantar,
portanto, que uma sociedade majoritariamente crist como a nossa
reproduza esses discursos sexistas oriundos da religio.
Nota-se, ento, que a cultura machista no fruto de indivduos
machistas, mas de uma sociedade machista que vem reafirmando seus
discursos seja no mbito da religio, seja no mbito profissional ou
pessoal, como se pode notar no fato de a mulher no receber o mesmo
salrio que o homem, em diversos cargos; e tambm nas questes
relacionadas violncia domstica contra a mulher. Sendo assim, tanto
um homem quanto uma mulher podem ser machistas da mesma forma que
ambos podem (e devem) repensar essa lgica e ultrapassar as relaes
sexistas que tm minado a liberdade da mulher. O fato que sim,
muitos homens so machistas, pois o discurso machista enaltece seu
papel social, mas muitas mulheres tambm o so, muitas vezes sem
perceber. Desde o momento em que uma mulher tem como meta de vida
casar e ter filhos simplesmente porque uma normativa
pr-estabelecida impe isso e dita que este o lugar que ela deve
ocupar, at o momento em que ela chama de vagabunda a mulher que
veste roupas curtas ou fala de sexo abertamente, essa mulher est
sendo machista.
O machismo, enquanto lgica patriarcal que violenta a mulher
fsica e psicologicamente, a diminuindo e a submetendo vontade de um
homem, ditando o que ela pode ou no fazer, como ela pode ou no
falar, do que ela deve ou no gostar, como ela pode ou no ser,
precisa ser combatido com todas as foras. Porm, preciso ultrapassar
a tentao de culpabilizar indivduos por uma questo social. claro
que, enquanto homens virem as mulheres como meros objetos sua
disposio, e as mulheres se aliarem ao discurso opressor, essa ser
uma tarefa difcil. Mas, mais do que isso, extinguir as diferenas de
gnero que oprimem, especialmente, as mulheres, no depende somente
de apontar dedos para esse ou aquele indivduo que age de acordo com
a normativa machista. por isso que este um assunto to delicado,
polmico e facilmente mal compreendido: para falar de machismo
precisamos enxerg-lo como fato social, estando ele imerso em nossas
instituies e relaes sociais; a prpria Famlia, que tanto prezamos,
em nossa sociedade se baseia prioritariamente no papel do
homem.
Para livrar a sociedade do machismo e garantir que a mulher
tenha direito de ser o que quiser e fazer o que bem entender pois
dona de si, do seu corpo e de sua vida , preciso perceber quais os
discursos que as prprias mulheres tm reproduzido sem se darem conta
de que esto reafirmando uma lgica que diz que elas no valem tanto
quanto os homens. Entretanto, no se pode perder de vista que
discursos so construes histricas, e o machismo, sendo uma questo
social, s ser resolvido uma vez que sejam construdas novas
possibilidades de discursos acerca dos modos de nos relacionarmos
com ns mesmos e com os outros, de tal maneira que possa haver um
debate que possibilite ultrapassar as dificuldades que encontramos
hoje. Afinal, o objetivo do feminismo este: que a mulher possa ser
quem ela quiser me, filha, casada, puta, patricinha, porra-louca
Enfim, ela deve poder se livrar das amarras sociais e ser aquilo
que, autonomamente, enquanto sujeito de sua prpria histria, ela
escolher.
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Mary Del Priore, doutora em Histria Social pela USP, lanou uma
nova biografia sobre a princesa Dona Isabel e seu marido, Conde
DEu, intitulada O Castelo de Papel. Agora, ela publica pela Editora
Planeta mais um livro, chamado Histrias e Conversas de Mulher, no
qual descreve os avanos femininos desde o sculo XVIII, passando
pelo hipcrita sculo XIX, at chegar na sociedade atual. Em recente
entrevista BBC Brasil, para a srie 100 Mulheres Vozes de Meio
Mundo, ela discute conceitos como o machismo, e como as mulheres de
hoje, muitas vezes, so as prprias responsveis pela propagao dessa
concepo arcaica. No obstante, ela aponta as transformaes no padro
comportamental feminino nas ltimas dcadas do sculo XX, alm de
muitos detalhes ligados sua prpria vida profissional e pessoal