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i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS RIO DE JANEIRO 2014
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Oct 08, 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MUSEU NACIONAL

ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ

SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS

RIO DE JANEIRO

2014

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Alline Torres Dias da Cruz

SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS

Volume 1

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Museu

Nacional, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como requisito parcial à obtenção

do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Doutora Olivia Maria Gomes da Cunha

Rio de Janeiro

2014

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Cruz, Alline Torres Dias da.

Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas / Alline

Torres Dias da Cruz. – 2014.

236f.: il.

Tese (Doutorado em Antropologia Social) –

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, 2014.

Orientador: Olivia Maria Gomes da Cunha.

1. Dom. 2. Troca Ritual. 3.Pessoa. 4. Corpo. 5. Família.

6.Imigrantes da República Dominicana – Teses.

I. Cunha, Olivia Maria Gomes da (Orient.). II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social. III. Título.

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Alline Torres Dias da Cruz

SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS

MORADAS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu

Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como requisito parcial à obtenção do título de

Doutor em Antropologia Social.

Aprovada em

Profa. Dra.Olivia Maria Gomes da Cunha (Orientadora)

PPGAS/MN/UFRJ

Prof. Dr.Marcio Goldman

PPGAS/MN/UFRJ

Prof. Dr.Eduardo Batalha Viveiros de Castro

PPGAS/MN/UFRJ

Prof. Dra.Patricia Birman

IFCH/Departamento de Antropologia/UERJ

Profa. Dra.Antonádia Monteiro Borges

ICH/Departamento de Antropologia/UnB

Prof. Dra. Giralda Seyfert (Suplente)

PPGAS/MN/UFRJ

Profa. Dra.Ana Claudia Cruz (Suplente)

ICHF/UFF

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CRUZ, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Rio de

Janeiro: 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio

de Janeiro, 2014.

A tese versa sobre a manutenção ritual cotidiana dos mistérios, espíritos que pertencem

aos panteões do vodu, por imigrantes da República Dominicana, chamados de pessoas

que têm os mistérios, que vivem em Porto Rico. O material etnográfico realça

os mistérios como uma espécie de herança familiar em circulação. Pessoas e mistérios

descrevem as experiências multifacetadas e densas entre eles com categorias como dom,

atender, trabalhar, pagar, corpo e consumo. Deixando-se conduzir pela trama

relacional que essas categorias informam, a tese tem como objetivo inicial demonstrar a

maneira singular como a noção de pessoa é compreendida pelos interlocutores, vivos e

mortos, que tomam parte nesta etnografia. O segundo objetivo é discutir os modos de

atenção ritual enquanto formas de troca que produzem dependência recíproca e trabalho

entre os dominicanos e seus espíritos, a partir da manipulação de substâncias e objetos

cuja importância reside em seus efeitos sensíveis. Tomando as práticas de sensibilização

dos mistérios como técnica ritual fundamental, o terceiro objetivo é discutir como certa

materialidade – artefatos, imagens e substâncias – é interiorizada nas casas, visando-se à

recriação de certas paisagens de lembrança para os mistérios, que assim as habitam;

bem como manipulada nos ambientes domésticos como dispositivos de afastamento de

tantos outros.

Palavras-chave: Dom, Troca Ritual, Pessoa, Corpo, Família, Imigrantes da República

Dominicana

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CRUZ, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Rio de

Janeiro: 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio

de Janeiro, 2014.

This thesis discusses the daily care of misterios (mysteries); spirits that belong to the

vodou pantheon, by immigrants from the Dominican Republic that live in Puerto Rico

called personas que tienen los misterios (people that have the mysteries). The

ethnographic material reveals these misterios as a kind of family legacy in circulation.

People and misterios describe their multifaceted and dense experiences in between them

with categories such as don (divine gift), atender (to attend), trabajar (to work), pagar

(to pay), cuerpo (the body) and consumo (consumption). The initial objective of the

thesis is to demonstrate the singular manner in which the notion of person is

comprehended by the interlocutors, alive and deceased, that take part in this

ethnography, through the relational plot that these categories inform. The second

objective is to discuss the forms of ritual attention as ways of exchange, which produce

a reciprocal dependence and work in between Dominicans and their spirits through the

manipulation of substances and objects whose importance resides in their sensitive

effects. Taking the misterios awareness practices as a fundamental ritual technique, the

third objective is the discussion of how certain materials- artifacts, images and

substances- are interiorized in houses, achieving a recreation of the misterios scenery

that live in them; and also how these things are manipulated in the domestic ambience

as devices of alienation from so many others.

Keywords: Gift, Ritual Exchange, Person, Body, Family, Dominican Republic

Immigrants

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

1.1 Relações.....................................................................................................................14

1.2 Configurações............................................................................................................20

1.3Trocas.........................................................................................................................22

1.4 Des(Encontros)..........................................................................................................25

1.5 Interpelações..............................................................................................................32

1.6 Trânsitos e travessias.................................................................................................34

1.7 Capturas ou enredada pela própria trama..................................................................39

CAPÍTULO 1 DOM EM CIRCULAÇÃO

1.1 AS PESSOAS E SEUS MISTÉRIOS

1.1.1 A missão e os caminhos de Joana.......................................................................45

1.1.2 A árvore de Gina.................................................................................................47

1.1.3 No meio disso: Rosa e Diogo...............................................................................49

1.2 CONECTANDO ‘PESSOAS’, FAMÍLIA E ESPÍRITOS......................................51

1.3 INCORPORANDO O PARENTESCO...................................................................59

1.3.1 Montar ou subir: percursos do dom no corpo...................................................60

1.3.2 Objeto e Cavalo.....................................................................................................65

1.3.3 Há uma metresa em cima.....................................................................................68

1.3.4 Não governo de si..................................................................................................70

1.3.5 Sonhos e outras formas de incorporação...........................................................73

1.3.6 Vicissitudes do dom: transitando por e incorporando habitus humanos e

animais...........................................................................................................................73

1.3.7 Consumo dos corpos............................................................................................77

CAPÍTULO 2 FLUXOS, DIMENSÕES E TRANSBORDAMENTOS

2.1SOBRE COMO GERAR LUZ, FORÇA E OUTRAS DISPOSIÇÕES

.........................................................................................................................................81

2.2 PRESTAÇÕES RITUAIS: SUAS CONEXÕES, SEUS EFEITOS

2.2.1 Servir e Conectar..................................................................................................85

2.2.2 Servir e Alienar.....................................................................................................89

2.2.3 Dos serviços que geram revolta...........................................................................96

2.2.4 Fazer chegar para trabalhar..............................................................................100

2.2.5 Pagar e adocicar: táticas de um plano ritual...................................................109

2.2.6 Tateando mistérios e divisões............................................................................113

CADERNO DE IMAGENS

CAPÍTULO 3 A CASA E OS ALTARES: INCORPORANDO TEMPOS,

ESPAÇOS, RECRIANDO PAISAGENS MNEMÔNICAS

3.1 ALGUMAS AMBIENTAÇÕES........................................................................... 130

3.2 DIVISÕES INCRUSTADAS NA TERRA

3.2.1 Os guedeses e suas sensações.............................................................................136

3.2.2 Escavar a terra, ver do mirante........................................................................139

3.2.3 Rebeldes da terra, do rio e do monte................................................................141

3.3 HORIZONTES EFÊMEROS: OS SANTOS DE CIMA E SEUS ARTEFATOS

......................................................................................................................................142

3.4AS COORDENADAS DAS SUBSTÂNCIAS E DOS MODOS DE SERVIR

......................................................................................................................................145

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3.5 MANIPULANDO SOCIALIDADES..................................................................146

3.6 SINCRONIZAÇÃO E HIERARQUIAS............................................................. 152

CADERNO DE IMAGENS

CAPÍTULO 4 APROPRIAÇÕES E SUBVERSÕES ESPIRITUAIS

4.1 NARRATIVAS VISUAIS ..................................................................................166

4.1.1Uma guedé e suas imagens................................................................................170

4.1.2 Um quadro, dois oguns....................................................................................172

4.2 A FESTA DE SÃO MIGUEL..............................................................................173

4.2.1 Horas Santas.....................................................................................................176

4.2.2 Festejando como morto....................................................................................178

4.2.3 Mistérios, doutores da igreja e antepassados...................................................184

4.2.4 Fogo, chaves e São Pedro.................................................................................186

4.2.5 Das bênçãos em utensílios quebrados................................................................187

4.3 TRANSFORMAÇÕES........................................................................................189

CADERNO DE IMAGENS

CAPÍTULO 5 AS COISAS MÁS NA CASA

5.1 SOBRE ALGUNS ESPAÇOS PRECÁRIOS....................................................196

5.2 BOTÂNICAS: ENTRE MATERIALIDADES E COSMOLOGIAS................203

5.3 UMA SUSPEITA DE BRUXARIA: ATIVANDO ODORES ACRES, AFASTANDO

ESPÍRITOS INVISÍVEIS...........................................................................................205

5.4 TÉCNICAS ESPECTRAIS................................................................................210

5.4.1 Outras receitas para espantar os mortos......................................................215

5.4.2 Joana e seu morto...........................................................................................217

5.4.3 Comprando com São Elias: de pedras a mortos ou de anônimos a afins

..................................................................................................................................218

CADERNO DE IMAGENS

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 226

REFERÊNCIAS....................................................................................................230

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A Luiz Carlos Dia da Cruz

(In Memoriam)

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Agradecimentos

Essa tese é produto de uma série de engajamentos individuais e coletivos.

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,

Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao CNPq a concessão da bolsa de doutorado

que permitiu a realização do curso de pós-graduação e a condução do trabalho de campo

etnográfico em Porto Rico.

À minha orientadora, Olivia Maria Gomes da Cunha, pela qualidade acadêmica com

que conduziu os cursos que me ambientaram à literatura e aos assuntos relacionados à

antropologia caribenha, e com que orientou a tese. A todos os colegas do Laboratório de

Antropologia e História (LAH/MN) pela partilha de experiências que se desenrolaram

em águas caribenhas.

Aos professores Marcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, Patricia Birman e

Antonádia Borges pela participação na banca.

Ao Instituto de Estudios del Caribe (IEC) da Universidad de Puerto Rico-Recinto Río

Piedras, especialmente a Humberto García Muñiz e Ovidio Torres, pelo apoio

institucional e incentivo ao longo do desenvolvimento da pesquisa.

A Juan Giusti Cordero pelo imenso apoio acadêmico e pessoal em Porto Rico.

A Dale Tomich pelos ensinamentos valiosos durante o curso que proferiu no

PPGAS/MN em 2009.

À equipe administrativa da Universidad de Puerto Rico-Recinto Río Piedras e do

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,

especialmente à Carla Ramos, Alessandra, Fernanda Alves, da Biblioteca Francisca

Keller, e à Adriana de Alcantara, Carla Cardoso, Bernardo Carvalho e Isabelle, da

Secretaria Acadêmica.

Durante os anos em que estive no curso de doutorado conheci pessoas que contribuíram

muito nos caminhos que trilhei dentro e fora dele. Sou muito grata a Waldemir Rosa,

Mariana Renou, Marcelo Mello, Rodica Weitzman, Handerson Joseph, Magdalena

Toledo, Carlos Gomes, Alessandro Angelini. Outras pessoas especiais, a quem sou

muito grata são Alain Kaly, Anita Kaly, Aline Camargo Torres, Carla Ramos, Clícea

Miranda, Alea Melo, Henri Sidney, Emmanuelle Kadya Tall, Jehyra Asencio, Jose

Manuel Gonzalez Cruz, Beatriz Martins Moura, Telma Bemerguy, Anderson Lucas,

Rosemeire Sanca, Abel Sanca, Francisco Carlos Antonio da Conceição.

Pela abertura de portas e caminhos, levando-me para dentro de suas casas, que os meus

interlocutores dominicanos e seus mistérios efetuaram para mim, Muchas Gracias!

Pela força daqueles que são também a minha força, amor e gratidão para sempre: à

minha mãe, Marlene Torres da Silva Dias da Cruz, ao meu pai, Luiz Carlos Dias da

Cruz (In memoriam), a Luiz Gustavo Torres Dias da Cruz e Ellaine Torres Dias da

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Cruz, meus irmãos, ao meu tão pequeno e já tão grande filho Guilherme Biagui Torres

Dias da Cruz Kaly, a Gabriel Torres Dias da Cruz Fernandes e Bernardo Torres Dias da

Cruz Fernandes, nossos gêmeos queridos.

Levado ao universo das simbioses, metido até o

pescoço em poços cujas águas eram mantidas em

perpétua espuma pela queda de retalhos de ondas,

rasgadas, laceradas, rompidas na rocha viva e

mordente do dente-de-cão, Esteban maravilhava-se

ao observar como a linguagem, nessas ilhas, tivera

de recorrer à aglutinação, à amálgama verbal e à

metáfora para traduzir a ambiguidade formal de

coisas que participavam de várias essências. (Alejo

Carpentier, O Século das Luzes, p. 191).

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Lista de Imagens

Imagem 1. Altar para os mistérios na casa de Rosa.....................................................122

Imagem 2. Altar para os mistérios na casa de Rosa. Santa Marta A Dominadora e São

Elias, espíritos guedeses...............................................................................................123

Imagem 3. Velas para os santos. .................................................................................124

Imagem 4. Altar para os mistérios de Gina. Serviço de mel com tabaco para tranquilizar

Jean Crimnel (São Sebastião), espírito petro. .............................................................125

Imagem 5. Altar para os mistérios na casa de Joana....................................................126

Imagem 6. Altar para os mistérios de Gina. Lámpara divisional em recipiente circular

de vidro, serviço para a 21 Divisão..............................................................................127

Imagem 7. Altar para os mistérios na casa de Armando. Serviço para Metresili (Virgem

A Dolorosa)..................................................................................................................128

Imagem 8. Figura em papel de Nossa Senhora da Aparecida......................................129

Imagem 9. Altar para os mistérios na casa de Raul. Divisão dos guedeses.................155

Imagem 10. Altar para os mistérios na casa de Raul. Serviços para os guedeses São

Expedito/Guedé Limbó (à esquerda) e Santa Marta A Dominadora

......................................................................................................................................156

Imagem 11. Altar para os mistérios na casa de Armando. Divisão dos guedeses: São

Expedito, São Elias e Santa Marta A Dominadora, santos da terra, e alguns trabalhos e

serviços rituais..............................................................................................................157

Imagem 12. Altar para os mistérios índios na casa de Armando, que escavou a terra sob

o chão e as paredes para ambientar esses espíritos .....................................................158

Imagem 13. Altar para os mistérios índios contíguo aos espíritos guedeses e a outros

mistérios do rio............................................................................................................159

Imagem 14. Boneca que seria transformada ritualmente no mistério Anacaona

(índia)..........................................................................................................................160

Imagem 15. Mistério índio, cercado por alguns artefatos, e contíguo a São João Batista,

um ogun, e a miniaturas de galos ...............................................................................161

Imagem 16. Chapéu em tecido azul confeccionado para São Santiago/Ogun Balendyó, e

vermelho, em palha, para Papa Candelo (Candelo Sedifé)........................................162

Imagem 17. Artefatos de Candelo Sedifé: machete e um tipo de sacola (macuto)

....................................................................................................................................163

Imagem 18. Santas de cima (metresas) a imagem de Gran Toroliza/Jesus da Boa

Esperança, espírito petro do monte.............................................................................164

Imagem 19. Altar para os mistérios com os santos de cima.......................................165

Imagem 20. Quadro de Ogun Balendyó/São Santiago Apóstolo tendo atrás Ogun

Ferraile, cavaleiro com armadura e espada.................................................................191

Imagem 21. Altar para a festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan..........................192

Imagem 22. Serviço ritual para os mistérios................................................................193

Imagem 23 Serviço ritual (feijão e arroz, batata doce e arenque) para Guedé Limbó (São

Expedito) no dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan..................................194

Imagem 24. Objetos de Guedé Limbó: ao fundo, seu macuto (sacola de palha), seu

chapéu feito com esse mesmo material e seu lenço preto............................................195

Imagem 25. Resguardo preso no alto da botânica de Rosa..........................................221

Imagem 26. Resguardo preso no alto do portão principal da casa de Rosa

......................................................................................................................................222

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Imagem 27. Pañuelo vermelho, proteção dos mistérios, amarrado na janela de uma casa

vizinha à de Rosa..........................................................................................................223

Imagem 28. Cruz desenhada com anil, para afastar as coisas más, na entrada de acesso à

casa de Rosa................................................................................................................224

Imagem 29. Tecidos presos ao teto no altar onde Armando trabalha ritualmente

.....................................................................................................................................225

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INTRODUÇÃO

1.1 Relações

– Cada cabeça é um mundo, e os mistérios pegam a que eles querem; – Esses

santos são bem interessados, mesmo se for uma vela, se você prometeu a eles, você tem

que dar, ou seja, são bem interessados...1

Ao ouvir esses comentários, respectivamente de Gina e Joana, em momentos

diferentes do trabalho de campo que conduzi em Porto Rico,2 entre 2010 e 2011

3 tinha a

intenção de escrever uma tese sobre a relação dos dominicanos, dentre eles Gina e

Joana, com os mistérios, espíritos transmitidos a elas pelos seus antepassados

familiares. Entretanto, ainda não era capaz de imaginar o resultado a que chegaria logo

que me dediquei a produzi-la: ao reler as anotações de campo; ao grifar as expressões e

termos que eram recorrentes no convívio com meus interlocutores e ao comentá-los

numa espécie de diálogo sobreposto e paralelo com eles e comigo mesma, durante e

depois da pesquisa; ao relembrar cenas, gestos, vozes e cheiros enquanto eles agiam e

explicavam-me (ou não) o que faziam; ao rever fotografias e ao redescobri-las a partir

de um novo olhar acerca das ‘relações’ entre ‘pessoas’ e mistérios.

Os mistérios são espíritos que devem ser atendidos ritualmente pelos meus

interlocutores dominicanos porque são concebidos como uma herança familiar. Alguns

desses espíritos são servidos também pelos haitianos. Na literatura antropológica sobre

o vodu no Haiti, muita mais extensa e antiga que a produção antropológica sobre a

República Dominicana (DEIVE, 1975; ALEGRÍA-PONS, 1993; DAVIS, 1987;

SÁNCHEZ-CARRETERO, 2005a, 2005b, 2008), tais entidades são chamadas de

mystères/mystè (HERSKOVITS, 1971, p. 78, 80, 89, 99; DEREN, 2004, p. 29;

1 Ao longo desse trabalho farei uso de alguns sinais gráficos para diferenciar os significados, as ênfases, e

os diferentes contextos em que termos e expressões foram utilizados por mim, pelos meus interlocutores,

e os autores citados. Termos e expressões utilizados pelos meus interlocutores aparecerão em itálico.

Aspas duplas identificarão as citações e termos utilizados pela bibliografia. Utilizarei aspas simples

quando for minha intenção enfatizar certos termos. Termos em espanhol ou em crioulo haitiano que não

são pronunciados pelos meus interlocutores serão mantidos sem grifos e acompanhados, quando for

necessário, de tradução entre parênteses. 2 Território colonial espanhol desde o século XV ao lado de outras possessões coloniais espanholas

(Cuba, Filipinas e pequenas ilhas do Pacífico), Porto Rico sofreu intervenção norte-americana e foi

anexado aos EUA em fins do século XIX. Atualmente seu estatuto jurídico é o de Estado Livre Associado

(ELA) ao governo norte-americano. 3 Na primeira viagem, fiquei em Porto Rico por quase três meses, entre fevereiro e abril de 2010. Na

segunda, permaneci por quase seis meses, entre setembro de 2010 e março de 2011. Ainda nesta

Introdução descreverei as condições de produção dos dados etnográficos da tese.

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15

MÉTRAUX, 2007, p. 66), de loa/lwa (espíritos) (MÉTRAUX, 2007, p. 13, 53;

RICHMAN, 2008, p. 22; MCCARTHY BROWN, 2001, p. 5); de senj/sen-yo (santos)

(DEREN, 2004, p. 29; MCCARTHY BROWN, 2001, p. 6) e ainda de anjos

(MCCARTHY BROWN, 2001, p. 111). Além de mistérios, meus interlocutores usam

santos e arcanjos para fazer referência a esses espíritos.

Haiti e República Dominicana não compartilham somente uma mesma ilha no

Caribe, chamada de Hispaniola, mas ‘pessoas’, espíritos, experiências de sujeição

colonial, de trabalho (com os deslocamentos migratórios e imigratórios) e narrativas

históricas sobre o passado escravista. Até fins do século XVII a ilha Hispaniola era

ocupada apenas pela Espanha e, nessa época, foi divida e cedida à França, que criou na

parte ocidental a colônia de Saint Domingue, atual Haiti. Haiti e República Dominicana

só se consolidaram como nações independentes durante o século XIX. O Haiti do

colonialismo francês e a República Dominicana, brevemente do colonialismo espanhol

e em seguida do próprio Haiti. Ocupações militares – às quais se adicionou a dos EUA,

em ambos os países, nas primeiras décadas do século XX –, confrontos armados,

massacres, interdições territoriais, e racismo, que perduram até hoje, caracterizaram as

relações entre as duas nações.

Atualmente, dominicanos que descendem de haitianos não têm direito à

cidadania na República Dominicana por uma decisão da alta corte do judiciário,

efetivada em setembro de 2013. Apreensão de documentos civis e deportação são

algumas das ações violentas a que os descendentes de haitianos, nascidos na República

Dominicana, estão sendo submetidos pelo governo desse país ao longo dos últimos

meses.

A atenção para o que diziam meus interlocutores e a tarefa de percorrer uma

literatura que pudesse iluminar e permitir-me imaginar de novo, não apenas as

experiências das ‘pessoas’ com as quais convivi, mas também as minhas junto a elas,

levaram-me a escrever um trabalho em que, eu espero, são as ‘relações’ que se fazem

presentes. Mas o fato de que essa ideia já se insinuava durante o trabalho de campo não

significa que eu lidei com ela do mesmo modo.

Eu precisei fazer uma opção teórica ao redigir a tese, cujos personagens

principais são os interlocutores dominicanos e seus espíritos chamados de mistérios. E

essa opção tem a ver com uma imposição do que veio se tornar o material etnográfico

da tese. Pois, apesar dessa aparente definição de duas unidades discretas – dominicanos

e mistérios –, quase nada que descrevo concerne a agências independentes.

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Com isso, quero destacar que não se trata simplesmente de pensar essas duas

contrapartes da pesquisa, ‘humanas’ e ‘não-humanas’, como agências independentes

que interagem ou entram em contato indiferentes a qualquer forma de lastro. Imaginar

isso significaria evocar os meus interlocutores dominicanos e os mistérios como seres

mais ou menos autônomos. E tal abordagem, parece-me, seria equivocada face às

narrativas e aos argumentos que me foram explicitados e que apresentarei ao longo dos

capítulos.

Essa tese é sobre homens e mulheres da República Dominicana que vivem em

Porto Rico e atendem e trabalham ritualmente os mistérios porque seus avós, tios e pais

o fizeram (ou ainda o fazem). É dessa perspectiva – e ela não exclui a existência de

outra, como discutirei no primeiro capítulo – que o material etnográfico se afirma.

Diante disso, o que enfatizo é que os modos de atenção e trabalho rituais que serão

descritos reivindicam a existência de outros agenciamentos para explicar a sua

realização atual. Esses agenciamentos são, às vezes, descritos como temporalmente

anteriores, em outros casos não, mas ainda assim se referem a “relações prefiguradas”

(STRATHERN, 2009, p. 332; 1999, p. 39-40) de antepassados familiares com os

mistérios. São relações prefiguradas que tornam possíveis as interações contemporâneas

que descrevo em boa parte da tese. E é a partir dessa espécie de pano de fundo que

proponho que um dos objetivos desse trabalho, o mais geral deles, é problematizar a

transmissão familiar dos mistérios. Assim chamo a atenção do leitor para um processo

de singularização de ‘pessoas’ afeito a esse tipo de transferência de espíritos.

Os caminhos que percorro para problematizar isso têm a ver com algumas

perspectivas teóricas. Uma delas é aquela proposta por Marilyn Strathern, pois o que

chamo de singularização da ‘pessoa’ visto da perspectiva da transmissão familiar dos

espíritos tem a ver justamente com uma tentativa de pensar meus interlocutores

dominicanos como um “lócus plural e compósito de relações [...]”. “A pessoa singular”

[como Marylin Strathern enfatizou para as concepções melanésias], pode ser imaginada

como um microcosmo social.” (STRATHERN, 2009, p. 40-41).

Tento apropriar-me dessa ideia, que Strathern sintetiza como a de uma

“socialidade generalizada” contida na “pessoa” (do ponto de vista de seus interlocutores

da Melanésia), para refletir sobre o material etnográfico, por duas razões: uma delas tem

a ver com a transmissão dos mistérios, a outra com a maneira como meus interlocutores

dominicanos se definiam (ou definiam outros) quando pretendiam informar a ‘relação’

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(ou melhor, ‘as relações’) sobre as quais tento produzir uma compreensão

antropológica.

Dieterlen (1973, p. 9-10, 12) observou no pronunciamento de abertura de um

colóquio internacional sobre a “noção de pessoa” na chamada “África Negra” a

influência do artigo de Marcel Mauss (1938) para as reflexões que viriam problematizar

esse assunto. Tal influência ocorreu, basicamente, em contextos de pesquisa etnográfica

que, para os pesquisadores, não eram associados às culturas ocidentais, como a

Melanésia, com o trabalho de Maurice Leenhardt, e a África Ocidental, com o trabalho

de Marcel Griaule sobre os Dogon.4 Goldman (1996, p. 84, 88) salientou, no entanto,

que a insistência no problema da “pessoa” poderia refletir uma inquietação ocidental.

Para ele, a centralidade de uma reflexão como essa para outras culturas deveria, antes,

ser algo questionado. Ele ainda chama a atenção que o consagrado artigo de Mauss

indica duas direções para as pesquisa antropológicas sobre tal noção, uma linha

evolutiva e outra relativista.

O que tento fazer a partir do material etnográfico da tese é demonstrar certos

modos de conhecer e experienciar os mistérios como alteridades, mas não apenas, uma

vez que esses espíritos não são simplesmente ‘outros’, mas igualmente agências que

geram afetos diversos nas ‘pessoas’, o que cria para elas modos de vida caracterizados

pela instabilidade e a variação.

Para isso tento descrever certas configurações relacionais em dimensões

diferenciadas que se contrastam. É por meio dos contrastes entre essas dimensões, em

que os meus interlocutores dominicanos e os mistérios interagem ou agenciam, que os

primeiros, as ‘pessoas’ se singularizam. Carsten (1995, p. 223-224), por exemplo,

observou também que a noção de pessoa orientou as investigações antropológicas entre

as sociedades da Oceania, mas o investimento sobre as relações de troca e transações

gerou um caminho de análise focado na transitoriedade e na capacidade de

transformação entre “pessoas” e “coisas”. Enquanto que a parte oeste do continente

africano, quando comparada à produção antropológica sobre a Melanésia, parece ter

ficado à sombra de tal perspectiva nas monografias clássicas, que reverberavam

compreensões mais ou menos imutáveis da pessoa. Como será visto é justamente

tentando pensar o material da tese à luz das discussões sobre a circulação de dádivas e a

4 Sobre uma reflexão antropológica que procura pensar a noção de pessoa vinculada ao pensamento

ocidental liberal articulada ao tráfico atlântico de escravos, e às novas formas de conceituar tal noção

atualmente a partir das experiências de transplantes de órgãos e de captura de despojos humanos em

práticas religiosas afro-cubanas cf. Palmié (2006).

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noção de “pessoa melanésia” que chamo a atenção para a alternância e a alteração que

são criadas nas relações entre meus interlocutores, ‘humanos’ e ‘não-humanos’ durante

o trabalho de campo.

Para facilitar o desenvolvimento da argumentação, explicito antes a segunda

razão que pautou minhas escolhas teóricas.

A proposição de uma discussão que considerasse a noção antropológica de

pessoa, mesmo considerando as ressalvas de Goldman, tem a ver com uma observação

que fiz logo no início do trabalho de campo. Eu notei que pessoas que têm os mistérios

era a maneira como meus interlocutores dominicanos se expressavam para sinalizar

aqueles e aquelas que mantinham certos vínculos com esses espíritos. De outro modo,

em suas interações e comentários correntes, eles empregavam termos em espanhol como

la gente e/ou uno (as pessoas e alguém em português). O que quero dizer com isso é

que o termo persona (pessoa) emergia quase sempre com um sentido mais circunscrito.

Tal termo caracterizava uma ligação com aqueles espíritos e informava uma

compreensão sobre a posse dessas entidades, com o emprego do verbo ter. Em sentido

amplo e costumaz, o que eu ouvia eram os termos la gente e uno.

Ao perceber isso, comecei a me questionar que pessoas que têm os mistérios

poderiam ser essas. De fato, com essa indagação, eu pressupus uma separação radical

entre “mim” e “eles”. Neste momento, implicitamente tinha como uma espécie de

premissa antropológica que “[...] tomando por ponto de partida um dos sentidos que a

tradição ocidental tem dado à noção [de pessoa], haveria o risco de encerra-[lá] em uma

problemática de inspiração judaico-cristã que seria talvez completamente estranha aos

modos de pensamento das sociedades da África Negra” (CARTRY, 1973, p. 19); e eu

poderia, ingenuamente, dizer, caribenhas.

No entanto, como ressaltou Trouillot (1992, p. 21),

[...] quando Tylor publicou o primeiro livro geral de antropologia em inglês,

em 1881, Barbados tinha sido ‘britânico’ por dois séculos e meio, Cuba tinha

sido ‘espanhola’ por quase quatro séculos, e o Haiti era um estado

independente por três gerações, após um longo século francês em que foi o

responsável por mais da metade do comércio externo da metrópole’.

Segundo Trouillot, dificilmente haveria, no Caribe, lugares para olhar para os

“primitivos”. Nesse sentido, a própria existência da “região” questionou a dicotomia

Ocidente/não-Ocidente e a categoria de nativo sob as quais a antropologia estabeleceu

suas premissas. O fato de as sociedades caribenhas serem inerentemente coloniais, ele

argumenta, não diz respeito apenas à constatação de que todos os territórios caribenhos

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foram conquistados por um ou outro poder ocidental, nem que são as colônias mais

antigas do Ocidente e que sua colonização foi parte do processo material e simbólico

que propiciou a emergência do Ocidente como o conhecemos. Para Trouillot, as

características sociais e culturais dessas sociedades não podem ser compreendidas ou

descritas sem referência ao colonialismo. Conforme ele, essa inescapável característica

impede a ressurreição do nativo, mesmo quando o colonialismo não é evocado

explicitamente. E considerando-se que a antropologia prefere situações de “pré-contato”

– ou cria situações de “não-contato” – “o Caribe é nada a não ser contato.”

(TROUILLOT, 1992, p. 22).

Diante dessas implicações epistemológicas, o questionamento do estatuto

ontológico da pessoa que têm os mistérios, que discuto no primeiro capítulo, não

significou somente uma inquietação intelectual minha e da literatura sobre as

socialidades caribenhas. Essa era uma inquietação que os meus interlocutores também

manifestaram para mim, como descreverei mais à frente. Alguns deles também se

indagavam sobre os sentidos de se conceber e viver como tais pessoas, e, nesse sentido,

submetiam seus próprios modos de vida à crítica, à reflexão e ao pasmo. Mas, além

disso, tomei a noção antropológica de pessoa como uma ferramenta analítica rentável

porque a transmissão familiar desses espíritos, do ponto de vista dos meus interlocutores

(vivos e mortos), não se separa de um tipo de engajamento que eles chamam de atender

e trabalhar os mistérios.

Nesse sentido, ‘pessoa’ é um termo importante porque os dominicanos que

conheci o mobilizam para aludir ou ressaltar uma confluência de concepções que

recaem sobre certos seres humanos, e não todo e qualquer um. Mas sua importância se

deve ao fato de que, ao mobilizar esse termo, eles sinalizam que ter esses espíritos

implica a realização de uma série de atividades, tarefas, comprometimentos, bem como

inconvenientes e controles. Dentre essas atividades e tarefas, algumas são descritas

como trabalhar.

A análise dos sentidos conferidos à ideia de trabalhar os mistérios, como me foi

enfatizado durante o trabalho de campo, pode aproximar-se do debate que Marilyn

Strathern propôs sobre as relações sociais que estariam encerradas dentro da “pessoa

melanésia” e não fora dela. Procuro argumentar que assumir e trabalhar esses espíritos

significa atualizar uma série de ‘relações’ que os antepassados familiares entretiveram

com os mistérios. São esses vínculos que vêm à tona quando se diz que se é uma pessoa

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que tem esses espíritos. Trata-se, então, de sinalizar para certa configuração relacional

no interior da qual meus interlocutores dominicanos se concebem.

1.2 Configurações

A essa configuração eles atribuem o nome de família. Esse é o universo de

referência e existência no interior do qual a atenção e o trabalho ritual são entretidos e

justificados. 5 O assunto da transmissão familiar dos espíritos, claro, não é novo.

Uma

extensa literatura sobre o que se convencionou chamar de práticas vodu no Haiti

(HERSKOVITS, 1971 [1937]; HURSTON, 2008 [1938]; MÉTRAUX, 2007 [1958];

DEREN, 2004 [1953]; MCCARTHY BROWN, 2001; RICHMAN 2008) sublinhou que

as diferentes gerações com as quais esses antropólogos lidavam serviam (alimentavam)

espíritos que já vinham recebendo atenção ritual de seus antepassados familiares nas

terras em que viviam há anos. E tal investimento etnográfico completará, daqui a pouco,

nada menos que um século.

Mas se o assunto da transmissão familiar dos espíritos não é novo, ele foi quase

sempre tratado como um dado. Não teve apelo de problema em quase todas as

etnografias clássicas e contemporâneas sobre religiões afro-caribenhas e práticas rituais.

Mesmo em uma etnografia como a de Karen Richman, uma das mais recentes e

importantes sobre o vodu no Haiti e na chamada diáspora. Richman propõe uma

discussão sobre a transferência familiar dos espíritos. Essa transferência perpassa todo

um emaranhado de práticas rituais, definição de obrigações entre espíritos herdados,

parentes e manutenção da posse das terras, regulação de estilos de vida, bem como

concepções sobre família e trabalho assalariado no Haiti e no exterior. No entanto, todos

esses aspectos são subsumidos a uma análise sobre manutenção substantiva.

O que quero dizer com isso é que Richman encarou a transmissão dos espíritos

nas famílias haitianas de Léogâne, comuna do sul do país, como um tipo de

transferência de substância. “Substância”, ela diz, “tem a ver com coisas internas e

inseparáveis das pessoas” (RICHMAN, 2008, p. 148). Meu argumento mais geral, como

eu chamei a atenção tendo os argumentos de Strathern (2009) em mente, é demonstrar

5 Esse é um assunto que caracteriza várias coletividades vinculadas como família no Caribe. Kerns (1997,

p.1-2) chama a atenção, em sua etnografia sobre os Black Caribs (Garífunas), em Belize, para os rituais

que pretendem lembrar os parentes lineais mortos, que ficam sob a responsabilidade das mulheres mais

velhas, mãe dos vivos e filhas dos mortos. Ao organizarem os procedimentos rituais, essas mulheres

coletam fundos para realizá-los, e assumem os papéis mais importantes neles, protegem e representam

seus filhos, netos e outros parentes para os ancestrais. Já Besson (2002, p.30) indicou que “o complexo

religioso-mágico afro-jamaicano do obeah-myal, baseado em elaborados rituais mortuários que refletiam

a percepção de um mundo espiritual ativo incluindo parentes ancestrais, reforçou o sistema de

transmissão da terra costumeiro com o padrão de sepultamento baseado na descendência cognática.”

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que essa transmissão tem a ver justamente com “coisas” que não “são internas e

inseparáveis”.

O esforço analítico, então, é chamar a atenção para o que meus interlocutores

dominicanos entendem por trabalhar os mistérios: um modo de vida cujos

desdobramentos são variados e densos. Esses modos de vida dizem respeito a práticas

de transferência que não se restringem ao sangue, entendido enquanto substância

transmitida linearmente dos antepassados a seus descendentes e que garantiria a

reprodução da família e dos espíritos, nem aos serviços, substâncias alimentares

oferecidas aos mistérios para mantê-los.

Tomo a ideia de trabalhar os mistérios (ritualmente) como um conjunto de

‘relações’ – e não apenas de substância – passível de ser transferido àqueles que se

concebem como família. Isso significa que o pano de fundo teórico (e não etnográfico)

que mobilizo recupera uma discussão que como a própria Strathern (2009) e também

Janet Carsten (2011, p.22) indicaram, liga-se às considerações de Roy Wagner sobre os

Daribi. Especificamente quando ele observa que “a troca de coisas destacáveis,

separáveis, se encontra em oposição ao fluxo da substância interna (linear) [...] [tais

coisas] fluem na troca através de relações não unificadas internamente por substância”

(STRATHERN, 2009, p. 310apud WAGNER 1977a, p. 632). Daí resulta uma “pessoa

melanésia”, Strathern aponta, constituída por uma separação entre relações internas e

externas.

As conseqüências que derivam dessas convenções melanésias direcionam o

debate de Strathern (2009, p. 311) para considerações que são distintas daquelas que eu

pretendo apontar. Ela chama a atenção, por exemplo, para o fato de que essa separação

convencional, como indicou Roy Wagner, tem uma equivalência (por causa da

capacidade de “substituição” e “replicação”) na personificação do próprio corpo

melanésio.

O corpo, enquanto um composto de relações, é o resultado das performances que

visam objetificá-lo como uma “pessoa”.6 Como será discutido no primeiro capítulo, eu

tento demonstrar que os meus interlocutores dominicanos incorporam relações que

poderíamos chamar de “internas e externas”, e isso têm uma série de implicações para a

6 Cito uma consideração da autora que me parece esclarecedora quanto à especificidade da reflexão que

ela propõe: “Se focalizássemos, da nossa perspectiva ocidental, a forma substantiva das relações,

poderíamos ser tentados a considerá-la respectivamente como o fluxo de coisas entre pessoas e como o

crescimento de coisas no interior da pessoa. (...). Como alternativa [à perspectiva ocidental] (...) as

relações [a partir do material etnográfico melanésio] podem ser tornadas visíveis através da substituição,

da criação de uma coisa que incorpora essas relações numa outra forma” (STRATHERN, 2009, p. 274).

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maneira como se concebem como pessoas que têm os mistérios. Nesse sentido, seus

agenciamentos não pretendem, como na discussão de Strathern, tornar visíveis ou trazer

à tona (objetificar) relações, para que desse procedimento surjam “pessoas”

(melanésias). O que meus interlocutores dominicanos objetificam aparece mais como

desdobramentos por terem incorporado certas ‘relações’ de seus antepassados com os

mistérios. Um desses desdobramenros em seu cotidiano é o distanciamento que

conhecem de seus corpos: à medida que esses espíritos os ocupam, eles experienciam

formas de alteridade (e afetos variados) entre corpo e pessoa, pessoa e espírito e corpo

e mente.

Os mistérios são associados a uma transferência biológica e a uma transmissão

de trabalho ritual. Trata-se de dois processos que se referem a fluxos diferentes. No

primeiro caso, meus interlocutores falam em sangue, no segundo caso em relações

sociais. Isso me leva a propor que as pessoas incorporam variadas ‘relações’ descritas

como específicas à família. Para elas, esse domínio coletivo não é pensado como

propiciador simplesmente de um fluxo de sangue e outras substâncias. Pela família

também circula a responsabilidade se efetuar trabalho ritual. Chamo a qualidade dupla

desse processo de transferência de ‘incorporação do parentesco’ e a partir dela discuto o

segundo objetivo da tese: as implicações dessa forma de relacionar-se ou de criar

“conexão” (CARSTEN, 2000) para as pessoas que têm os mistérios.

Ao destacar isso não me volto para a questão de como alguém se torna parente,

como Carsten (1995, p. 226, 229), por exemplo, sugeriu ao discutir as práticas de

alimentação, comensalidade e coabitação a partir da transmissão e partilha de

substâncias como o sangue, o arroz e o leite, entre os ilhéus de Langkawi (Malásia).

Em meu material etnográfico o que se evidencia é como os espíritos, por meio de dois

processos de transferência, chegam aos meus interlocutores dominicanos como um dom

familiar: algo natural e que precisa ser retribuído.

Ao chamar a atenção para as implicações dessa forma de conexão ou de

‘relação’, o que faço então é pensar o parentesco da perspectiva do que ele transfere e

do que essa transferência cria para aqueles que a receberam. É desse ponto de vista que

meus interlocutores dominicanos expressam suas compreensões acerca de suas

singulares pessoas.

1.3 Trocas

A consideração de que os mistérios chegam às pessoas como um dom, se, de um

ponto de vista, concerne a dois tipos de transferência familiar, outros pontos de vista

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perpassam essa premissa. Essa transferência é apenas uma das dimensões que conecta

esses seres humanos e espirituais. Isso porque para além de serem transferidos e

circularem por diferentes gerações familiares solicitando as cabeças que escolhem, os

mistérios pedem a atualização de compromissos e obrigações rituais antigos.

Desse modo, se é possível rastrear as ‘relações’ incorporadas de certas pessoas

com os mistérios considerando uma dimensão temporal, em Porto Rico me deparei com

essas conexões em movimento. Elas aconteciam enquanto eu conversava com meus

interlocutores dominicanos e observava suas práticas rituais.

Isso significa que o tempo da minha etnografia está baseado em dados

etnográficos que se referem a ‘tempos’ diferentes. Eu não observei nem conheci como

os antepassados dos meus interlocutores interagiam com seus mistérios. Antes, como os

últimos realizavam isso durante o período em que estive e convivi com eles. O que pude

mapear foi justamente como certas cabeças atualizavam o mundo que havia dentro

delas, como Gina certa vez comentou. Mundos constituídos por antigos agenciamentos

de familiares com seus espíritos (os mais diversos, como será descrito no terceiro

capítulo), que reclamaram e obtiveram continuidade na atenção e no trabalho ritual

entre alguns daqueles com quem convivi.

Fazer essa observação é importante porque de um dom que circula, os mistérios

se materializam não apenas como espíritos protetores e de auxílio.7Eles se tornam

também, quando atualizados, contrapartes de trocas rituais com aqueles que os

receberam e com outros, estranhos à configuração familiar. Essas maneiras dos

mistérios se fazerem presentes na vida das pessoas, de dom transferido a parceiros de

troca, levam-me aassumir outra perspectiva de análise, como será visto no segundo

capítulo. Não apenas tempos diversos, mas dimensões que apontam para a mudança de

posição desses espíritos (e consequentemente das pessoas) nas situações rituais se

tornam eixos a partir dos quais se encaminha esta etnografia.

Por meio das prestações rituais chamadas de serviços e baseadas na concepção

de que os mistérios precisam ser alimentados, cria-se uma dinâmica de atenção e

trabalho ritual em que dependência recíproca e certas formas de ‘contrato’, através da

participação dos clientes, não são pólos contrastantes, mas interconectados. Alternando-

7 As formas de comunicação dos mistérios assumem diversas modalidades. Os mistérios podem se

comunicar através da sensibilidade visual e auditiva das pessoas, ou seja, alguns são capazes de ver e

ouvir esses espíritos; durante o sono e os sonhos; por meio de cartas, e do que se chama de montar ou

subir, quando esses espíritos se incorporam completamente ao corpo humano. Outras formas de

incorporação, que chamo de ‘relativas’, serão descritas ainda nesse primeiro capítulo.

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se nessas dimensões de troca, meus inerlocutores dominicanos e seus espíritos criam

não apenas as condições que tornam possível a circulação do dom às gerações futuras;

ambos também fazem com que sua força recíproca entre em esferas coletivas mais

amplas e que o pagamento, enquanto retribuição por algo que foi disposto a terceiros,

não seja exterior aos modos como a cosmologia e linguagem rituais são acionadas. Nos

termos de Joana, esses santos são bem interessados. Para ela, mesmo a promessa de

uma pequena vela, após ser feita, deveria ser cumprida. A negligência aos santos

poderia assumir repercussões perigosas, às vezes fatais.8

Tomo como referencial de análise as considerações de Gregory (1980) sobre

economias da dádiva e da mercadoria quando procura definir algumas características

que especificariam essas formas de troca. E, especialmente, quando ele sinaliza para a

possibilidade de mudança entre uma forma e outra. 9 Além disso, considero uma

discussão que vem sendo feita em etnografias realizadas no Caribe, especialmente sobre

o vodu entre os haitianos (no país e na diáspora) e as regras del palo em Cuba, cujo foco

de análise é as cosmologias, técnicas e linguagens rituais que assumem formas de

economias rituais (RICHMAN, 2008 apud Larose 1975a, 1975b; MCCARTHY

BROWN, 2001; PALMIÉ, 2002; OCHOA, 2004).

Ao destacar os serviços rituais prestados pelos meus interlocutores dominicanos

aos mistérios procuro discutir o terceiro objetivo da tese: a importância que a ideia de

dar substância assume nos modos em que as pessoas e seus espíritos se fortalecem

mutuamente ‘e’ naqueles em que se criam as condições para que ambos disponham a

outros. Com as prestações rituais as pessoas se singularizam, pois sua potência vital –

os mistérios que circulam pela família – se conecta a um modo de troca em que dádivas

cotidianas, principalmente sob a forma de substâncias alimentares, mantêm as

contrapartes espirituais. Argumento que se a essas prestações rituais se articula o que

8 Sobre a ideia de pagamento e as consequências da quebra de compromissos com os mistérios versará o

segundo capítulo. 9 Strathern (2009) afirma que um dos contrastes que sustenta para estabelecer as condições em que a

análise antropológica se faz inteligível é aquele entre sistemas mercantis e sistemas de troca de dádivas,

derivado do trabalho de Gregory (1980). Ela observa que, como ele indicou, os dois tipos de troca são

encontrados juntos, particularmente no período colonial e pós-colonial a partir do qual o estudo dele se

desenvolveu. Ela observa, no entanto, que à medida que Gregory baseia a troca de dádivas em uma

sociedade fundada no “clã” contrapondo-se à troca mercantil em uma sociedade de “classes”, a sugestão

dele é de que haveria correlação direta entre as formas de intercâmbio e de organização social. Contudo,

ela ressalta que os dois termos constituem um “único par cultural no interior do discurso da economia

política ocidental” e que “Falar sobre dádiva evoca constantemente a possibilidade de que a descrição

pudesse parecer muito diferente se, ao invés disso, estivéssemos falando sobre mercadorias”

(STRATHERN, 2009, p. 47-49).

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meus interlocutores chamam de força da pessoa, outras ‘relações’, que não dizem

respeito à dependência recíproca são também criadas. E, para isso, as substâncias são

igualmente importantes.

Por causa dessa mudança de perspectiva, em que os mistérios se tornam

contrapartes da troca e não apenas dom transferido, a minha referência de análise passa

a ser as práticas rituais de alimentá-los. Nessas situações, as substâncias que os meus

interlocutores dominicanos usam nos serviços geram uma série de efeitos em seus

mistérios. Isso permite que alimentá-los possa ser por mim comentado como um

processo que permite a transferência de certas qualidades e disposições (Strathern,

2009, p. 311; Bateson, 2008, p. 119, 121) aos espíritos. Nesse sentido, pôr um serviço

aos mistérios aos mistérios não permite somente a sua estabilização ou manutenção

como herança familiar.

Também são efeitos que os altares, composições que precisam ser organizadas

por todos aqueles que têm os mistérios, geram sobre esses espíritos. Os altares

permitem aos mistérios coabitar com as pessoas, assunto que discuto no terceiro

capítulo. Para isso, elas precisam interiorizar uma série de artefatos e outras substâncias,

além das alimentares, visando à recriação de uma cosmologia dentro de suas casas. O

encontro dos mistérios com essa materialidade cria sensibilidades nos espíritos e

recuperam suas lembranças de quando eram vivos. Com o foco em outras apropriações

que os mistérios podem fazer dos artefatos através dos altares, o quarto capítulo

descreve os sentidos que imagens geralmente associadas ao cristianismo assumem

quando se considera a perspectiva de alguns mistérios.

Tentando ampliar o universo em que meus interlocutores dominicanos e seus

espíritos interagem, no quinto capítulo descrevo algumas distinções entre os mistérios e

outras entidades chamadas apenas de mortos. Com esse termo podem ser chamados os

espíritos desconhecidos, os mortos familiares ou ainda as chamadas coisas más,

espíritos anônimos que, para meus interlocutores dominicanos, podem ser enviados

como bruxaria.

1.4 (Des)Encontros

– Hum... Brasil! Rosa exclamou, enquanto movimentava seus ombros e seios, ao

me ouvir falar de onde vinha. Conheci Rosa na Plaza del Mercado de Río Piedras, o

maior mercado de vegetais, frutas e carne fresca, dentre outros produtos, localizado em

San Juan, capital de Porto Rico. Era a primeira vez que ia à Plaza. Caminhava pelos

corredores do mercado para comprar alimentos, quando parei diante dos postos em que

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ela estava. Ao lhe perguntar o preço das frutas, em um espanhol que não dominava,

Rosa percebeu que eu era estrangeira. Imediatamente, então, me perguntou de onde eu

vinha. Sua performance diante da minha resposta, pareceu-me, naquele instante,

reforçar uma imagem sobre o Brasil em que as mulheres são vistas por meio de imagens

fortemente sexualizadas.10

O Carnaval, através das mulheres brasileiras (mas também de

certa imagem de festa popular), era para Rosa uma referência de conhecimento sobre o

país, assim como para outros dominicanos e porto-riquenhos que depois conheci.

Diante daquele movimento corporal tentei responder verbalmente ao modo como

ela se comportou. Mas, face ao meu parco espanhol, diferentemente dela, não me fiz

compreender. Rapidamente Rosa fez referência a uma novela brasileira. Ela ficou em

silêncio por alguns segundos, tentando lembrar-se do nome, e então me disse que gostou

de assistir na República Dominicana “Xica da Silva”: – As pessoas de cor como nós

eram muito maltratadas nessa época, Rosa comentou em seguida, referindo-se a ela e a

mim. Ao que adicionou algo como ainda bem que esse tempo acabou.

Segurando as sacolas diante de Rosa, fiquei intrigada com suas considerações. A

vinculação que ela fez entre Brasil e sexualidade feminina, mas também seu

reconhecimento de que nós duas poderíamos ter experienciado uma situação comum de

maltrato no passado. Além disso, a considerei uma pessoa solicita. Logo que cheguei a

Porto Rico, hospedei-me no alojamento da Universidad de Puerto Rico, também no

bairro de Río Piedras. Necessitava de alguns utensílios para preparar as refeições no

quarto que havia alugado e perguntei à Rosa onde poderia comprá-los. Ela percebeu que

seria difícil para eu fazer isso e pediu à Antonieta, sua irmã que estava naquele dia na

Plaza, para levar-me até uma loja de produtos domésticos. Antonieta então me ajudou,

eu lhe agradeci, e da loja retornei ao alojamento.

Apesar de saber desde o Brasil que em Porto Rico existia uma população grande

de imigrantes da República Dominicana, minha viagem à ilha tinha como interesse as

transformações espaciais de um projeto de reabilitação arquitetônica que foi

implementado na cidade de Ponce, ao sul de Porto Rico. Em Ponce, um bairro

conhecido como San Antón passou por intervenções que pretendiam tornar as moradias

e seu entorno símbolos da chamada “herança africana” em Porto Rico, em fins dos anos

10

Sobre uma narrativa etnográfica que relata essa forma de abordagem, em que gênero, sexualidade e

nacionalidade são articulados por interlocutores diante de antropólogas brasileiras no exterior, ver

Ciocarri (2009).

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1990. Pretendia fazer uma etnografia sobre as relações contemporâneas dos moradores

de San Antón com as novas formas urbanísticas e arquitetônicas.

No entanto, encontrei dificuldade em estabelecer contato com um antigo

morador e líder cultural do bairro. Tentei, por diversas vezes, encontrá-lo, mas por

telefone ele postergava um próximo encontro. Quando o procurei pela primeira vez,

através de informações disponibilizadas no próprio site do município de Ponce, ele me

levou até San Antón. Ali me mostrou algumas casas reabilitadas, incluindo a de seus

familiares. Além disso, afirmou que poderia tê-lo como um mediador para contatar os

moradores. O que, contudo, nunca aconteceu.

Enquanto mantinha a expectativa de um novo contato, esperando alguns dias se

passarem para tentar mais uma aproximação do líder cultural de San Antón, retornei à

Plaza para conversar com Rosa. Sentia-me sozinha e gostaria de ter com quem

conversar. Buscava um “diálogo comum” como salientou Althabe (1990, p. 126) para o

tipo de interação que orienta os antropólogos em direção a seus interlocutores. E, ainda

que nessas primeiras semanas nada estivesse muito explícito – eu procurava um rumo –,

chegar sob a condição de pesquisadora me fazia buscar uma escuta sensível à linguagem

e aos termos recorrentes das pessoas; um lugar para olhar mais atentamente a maneira

como elas falavam, seus movimentos e seus próprios olhares sobre o cotidiano.

Ao entrar na Plaza, procurei o corredor em que se encontravam os postos,

quando então a vi. Ali estavam seu tio, Francisco, seu marido, Diogo, além de uma

mulher também dominicana, portadora de deficiência auditiva, chamada de Muda, que

trabalhava para Rosa. Ela demonstrou que se lembrava de mim, e me cumprimentou

com um beijo. Muda fez o mesmo. Comecei a conversar com Rosa e a escolher alguns

alimentos, perguntando-lhe se ela era a dona dos postos de verduras e frutas. Rosa

respondeu-me que sim. Mas, que além dos dois postos, possuía também a botânica, o

que me respondeu direcionando seu olhar para um box em frente de onde estávamos.11

A pergunta foi proposital. Ao me aproximar do corredor, vi imagens de santos,

sabonetes, colares e fiquei curiosa. À minha pergunta, Rosa seguiu comentando que a

botânica era de santería.12

Quando então quis saber se não havia santería no Brasil.

11

Ao conviver com Rosa, tomei conhecimento que ela arrendava os postos e a botânica de porto-

riquenhos que tinham de fato a licença para atuar como comerciantes no mercado. As botânicas são

espaços aparentemente comerciais nos quais são encontrados uma infinidade de artigos “religiosos” e

muitos outros produtos. Uma descrição mais detalhada das botânicas será feita no quinto capítulo. 11

12

Rosa utilizava o termo santería não para definir a cosmologia e as práticas rituais yorubá das reglas de

ocha (conhecido também como Lucumí, em Cuba e chamado de santería em Porto Rico). Ela empregava

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Com pouquíssimo conhecimento sobre as chamadas ‘religiões afro-brasileiras’ e menos

ainda sobre o que me pareciam ‘afro-caribenhas’, me silenciei. Não soube como lhe

responder. Insisti, no entanto, em saber um pouco mais dela. Indaguei-lhe sobre os

produtos exibidos. Alguns, Rosa me disse, vinham da Venezuela e da Colômbia, os

sabonetes e outras mercadorias eram para banhos espirituais.

Ela quis saber o que me levava a Porto Rico. Eu comentei sobre a pesquisa do

doutorado e as dificuldades que enfrentava em relação a San Anton. Rosa me escutava

com atenção. Diante de mim, ela se deslocou um pouco até a bancada da botânica e

ofereceu-me um sabonete (jabón) para a boa sorte, como ela enfatizou ao me entregá-

lo.13

Daquele primeiro encontro com Rosa, mediado pela compra de alimentos, desse

novo encontro com algumas coisas da botânica, mediado agora por Rosa, passei, nesse

mesmo dia, ao encontro com dois de seus familiares e com um ambiente de tensão,

parte do dia a dia em Río Piedras: Francisco, tio de Rosa, havia se dirigido a mim para

se apresentar. Trocávamos algumas palavras enquanto dois jovens se aproximavam da

botânica. Eles perguntaram sobre algum produto, mantiveram-se ali por alguns minutos,

e foram embora sem nada comprar. Rosa então comentou com Diogo que os jovens

queriam roubar. Ocupado principalmente por imigrantes, moradores e trabalhadores da

República Dominicana, e por alguns comerciantes porto-riquenhos em sua área mais

central, o bairro já foi o eixo comercial mais importante da ilha e correspondia a um

município. Río Piedras é socialmente descrito como o local dos dominicanos

indocumentados (ilegais), de los tecatos y tecatas – usuários de drogas que vivem de

pequenos furtos e roubos –, e como ponto de tráfico de drogas e prostituição.

O uso do termo ‘encontro’ aqui não é casual. Baseio-me em um desdobramento

da consideração de Althabe de que são conversas comuns que caracterizam a interação

entre os antropólogos e seus interlocutores. Para ele, o conhecimento produzido pelos

antropólogos, advindo das falas e comentários cotidianos, emerge de encontros

o termo para se referir à presença dos santos, ou seja, dos mistérios e figuras santificadas (embora nem

todas) do catolicismo. 13

Segundo Derby (2003, p. 5-6), numa região ao norte da ilha de Hispaniola, área de comércio e trânsito

de mercadorias contrabandeadas de difícil controle para a administração colonial francesa e espanhola no

século XVIII, dar jabón foi um coloquialismo para a conquista, como se a sujeição estivesse ligada de

modo inextricável à aceitação da prestação e à forma resultante de dívida implícita nas recorrentes

práticas de troca de mercadorias. Dajabón se tornou o nome oficial de uma cidade espanhola em fins do

século XVIII, a fronteira oficial que veio a separar ambos os lados da Hispaniola em duas nações

(posteriormente chamadas de Haiti e República Dominicana) ainda durante o período colonial. Dajabón

se localiza às margens do rio Massacre, assim chamado depois do assassinato de haitianos durante o

regime de Trujillo em 1937.

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concretos em diversas situações de comunicação. De acordo com o autor, fazer trabalho

de campo etnográfico na França, em situações como aquelas de trabalho assalariado, de

territórios residenciais urbanos ou redes de sociabilidade (em mercados ou escolas)

significa atentar para o fato de que o conhecimento antropológico é produzido nestes

momentos de interação.

Seu argumento tem a ver com o que ele chama de “pluralidade de situações

sociais” no país. Ele observa que, para seus interlocutores franceses, a vida doméstica e

profissional apareceriam como instâncias separadas no cotidiano. E em tudo aquilo que

dizia respeito especialmente a suas vidas privadas, a presença do antropólogo seria

geralmente refutada. Para ele, o pesquisador e seus interlocutores tornam-se

“prisioneiros da situação de campo”, e tanto a investigação antropológica quanto seus

resultados imediatos permaneceriam encerrados em um contexto de comunicação

(ALTHABE, 1990, p. 128).

A partir de seu próprio trabalho de campo, Althabe enfatiza que, diferentemente

do que chama de operação fundacional da disciplina, sua investigação não pretendeu

superar a exterioridade que sintetiza a dicotomia clássica da disciplina: “nós” e “eles”.

Não havia configurações coletivas particulares a serem conhecidas desde seu interior.

Implícita às considerações do autor perpassa a crítica a uma abordagem antropológica

que se afirma por causa de certa maneira de conceber o conhecimento da disciplina:

resultado de uma viagem que leva o antropólogo a um mundo singular (e

desconhecido).

Embora seja possível salientar que tal pluralidade de situações sociais não é uma

característica dos interlocutores franceses de Althabe (o que impediria tal pluralidade de

situações em configurações coletivas diferenciadas daquelas de onde vêm os

antropólogos?), a ideia de contexto de comunicação parece-me interessante para

iluminar os encontros que descrevi até aqui. Minha aproximação inicial de Rosa teve

muito da comunicação ordinária para qual Althabe atentou. E, avançando na discussão

que o autor propõe, sugiro que desde que conheci Rosa, diversas foram as situações em

que a “distância” a partir da qual eu me concebia diante dela (e de outros interlocutores

no trabalho de campo) foi re-significada.

Nesse sentido, não apenas meu interesse de pesquisa foi se explicitando a partir

de alguns comentários e observações de Rosa sobre seu próprio cotidiano, mas ela

tentou arrefecer minha condição de estrangeira: o que, para mim, era a armadura

protetora da ‘alteridade’. Como Althabe observou, se a démarche antropológica – alvo

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de crítica desde pelo menos os meados dos anos 1980 com os escritos pós-modernos –

instituiu-se (durante boa parte das histórias da disciplina no século XX) por meio da

construção de uma distância entre antropólogo e seus interlocutores, meu

posicionamento como alguém “exterior às situações de encontro” foi frequentemente

questionado (ALTHABE, 1990, p. 129).14

É claro que Rosa e seus familiares sabiam que eu vinha de outro país. Isso não a

impediu, entretanto, que tentasse estabelecer conexões e associações. Assim, ela

insinuava justamente a possibilidade de algum modo de comunicação (e de

identificação) entre nós duas. Parece-me que esse foi o sentido de sua performance –

um constrangimento para mim e não para ela – ao saber minha nacionalidade. Ela

mobilizou a imagem que tinha sobre o Brasil corporificando gestos e movimentos que

pretendiam criar alguma possibilidade de comunicação. Especialmente porque eu não

falava perfeitamente sua língua.

Interessada em se comunicar, Rosa ainda tentou outra aproximação: falou-me

sobre a novela do Brasil que lhe agradou e me identificou com ela através da

escravização das pessoas de cor retratada no folhetim. Talvez tenha sido a própria

disponibilidade de Rosa em dar sentido para mim que tenha me feito querer voltar à

Plaza para conversar com ela. Neste momento, eu estava à espera de um potencial

interlocutor pouco interessado em firmar um diálogo.

Mas, como salientou Althabe, se desde a sua chegada ao “campo”15

o

antropólogo está implicado – mesmo sem às vezes o saber – em uma rede de aliança e

oposições que o tornam um “ator” do universo coletivo que lhe interessa, não são

apenas diálogos comuns que caracterizam as situações do trabalho de campo.

Isso apareceu nas notas etnográficas que fiz sobre meus encontros iniciais com

Rosa e seus familiares. Mesmo sem ter definido um novo assunto de pesquisa, depois de

alguns dias que a conheci, decidi registrá-los no meu caderno de campo. Foi também

com esses escritos que me dei conta que poderia arriscar-me no universo das botânicas

como campo etnográfico. As anotações eram fragmentos de lembranças acerca de

comentários, palavras e gestos. E sobre elas procurei destacar alguns termos, expressões

14

Sobre uma abordagem que, apesar de considerar a importância dos produtos dos discursos, do

intercâmbio dialógico e da autoridade mútua tanto para a relação com as pessoas com as quais se faz

trabalho de campo quanto para a escrita, propõe uma “dupla localização” da prática etnográfica, com cada

uma delas oferecendo uma perspectiva sobre a outra ver Strathern (1999, p. 1; 6). 15

Como destacou Florence Weber (2009, p.158), em uma crítica ao aspecto genitivo de propriedade que

marca a relação de alguns etnólogos, que se expressam em termos de “o campo ‘de’ tal ou tal etnólogo,

‘meu campo’”, “Essa palavra mágica designa ao mesmo tempo a sociedade ela mesma, o estágio que ali

empreendeu o etnólogo e o desenvolvimento de sua investigação”.

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e situações feitos no ambiente de compra e venda da Plaza. Foram essas anotações que,

posteriormente, transformaram-se em dados e assumiram o papel de corpus da tese,

como observou Olivier de Sardan (1995, p.74). Especialmente quando, com base nelas,

comecei a explicar para pesquisadores porto-riquenhos como havia chegado à pesquisa

com os imigrantes dominicanos.

Mas não eram apenas tentativas de aproximações que essas primeiras anotações

recuperavam para mim. Além de reencontrar Rosa, receber dela um sabonete para a boa

sorte, e conhecer seu tio e marido, no segundo encontro, por exemplo, ocorreram

hesitações e silêncios. Assim como eu não soube lhe responder se havia santería no

Brasil, ela quis saber onde eu fazia tranças no cabelo. Ao ouvir-me que era uma mulher

angolana, que residia no Rio de Janeiro, a face de Rosa se modificou. Ela me pareceu

descontente com o que lhe falei. Segundos depois ela indagou Diogo, seu marido, se ele

gostaria que ela usasse tranças. Ele, sem se opor verbalmente, demonstrou reprovação.

As oposições do jogo social de que fala Althabe começaram a se delinear no que

vieram a ser outros encontros. Ainda durante o segundo, Rosa me fez um convite para

acompanhá-la e a Diogo, que também trabalhava como músico em um grupo de

merengue, em uma apresentação. O casal se ofereceu a ir ao alojamento universitário

para buscar-me. Feliz com a possibilidade de estabelecer um vínculo com eles, os

aguardei ansiosamente aquela noite. Mas eles não apareceram. Após algumas tentativas

de ligação para o celular de Rosa, resolvi então me deitar ainda mais frustrada.

Passaram-se alguns dias e retornei à Plaza. Rosa, então, explicou-me que acabou

por não ir à festa em que seu marido tocaria com o grupo. Eu lhe disse sobre as ligações

para seu celular, ao que ela reagiu afirmando que nem sempre as atendia porque suas

clientes lhe telefonavam tarde. Quando se tratava de casos de hospital, ela me disse,

atendia as ligações, mas por causa de brigas no casamento não dava muita atenção. Ao

escutá-la quis saber por que as clientes a procuravam. Por causa da santería, Rosa me

disse. Pouco tempo depois, chegou à botânica um jovem. Ele indagou Rosa sobre velas,

velas de santería, o rapaz especificou. Rosa lhe perguntou sobre que tipo de vela ele

buscava, e comentou que eram das mais caras, pois seriam diferentes...16

A partir daí já estava muito interessa na botânica e na relação de Rosa com essa

loja. Havia decido lhe perguntar, então, se poderia fazer o trabalho de campo com ela.

16

Nas botânicas eram vendidos os chamados velones, grandes velas que custavam dois dólares

(geralmente as que traziam nomes de santos, espíritos ou plantas) e três dólares (rotuladas com nomes que

indicavam alteração de comportamentos, estados e disposições). Mais informações sobre os valores das

mercadorias serão apresentadas no quinto capítulo.

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Cansada de esperar por um sinal positivo sobre San Antón – já estava em Porto Rico

havia cerca de vinte dias de uma estada que chegaria a quase três meses – queria me

inserir no universo das compras e vendas dos artigos e produtos que eu via como

‘religiosos’.

1.5 Interpelações

– Você tem um namorado?, Rosa me perguntou naquele dia em que fui à Plaza

para lhe contar sobre minhas intenções de pesquisa com ela. Assim como Muda e seu

tio, ela me olhava de modo desconfiado. Abri minha carteira e mostrei uma fotografia

que era de meu companheiro. Enquanto a procurava, os três se entreolharam. E, assim

como ocorreu quando falei da cabeleireira angolana, eles demonstram pouca satisfação

em vê-la. Imediatamente Rosa me interpelou. Quis saber seu eu gostava de homens

negros. Com a mesma velocidade reagi dizendo-lhe que sou negra. Logo depois, em

tom afirmativo – distinto daquela chamada a lhe dar explicações – Rosa me disse que

ele era africano. Confirmei e perguntei-lhe como ela sabia. Mas Rosa se manteve em

silêncio.

Esse foi o mote que ela utilizou para afirmar que em Santo Domingo as pessoas

são da minha cor, da cor dela e do marido... morenos (e não negros, era o que estava

implícito em seu comentário). Diogo, depois que viu a fotografia, afastou-se de nós por

alguns minutos. Ao retornar, quis saber se eu conhecia o palo, instrumento de percussão

tocado em festas rituais na República Dominicana. Como eu não conhecia, ele pediu

que Rosa buscasse dentro da botânica um cd de palo. E afirmou que no Brasil havia sim

esse estilo de música. O cd, que Rosa me emprestou, intitulava-se Santería Cubana.

Produzido em Porto Rico, era formado por doze músicas cujos temas eram alguns

orichas: Babalu Aye; Obatala; Yemalla; Orichaoco; Ochosi; Elegua El Nino de Atocha;

Dada, Oba e Yegua; Inle; Elegua; Ogun; Chango; Ochun.

Depois lhe expliquei o motivo de retornar ali. Ela me indagou: – Como eu não

vou te ajudar, Alline? E concordou que conduzisse a pesquisa. Com isso, finalmente,

iniciei o trabalho de campo. Retirando meu caderno de campo da bolsa (após a

fotografia da carteira, que dentre as várias possibilidades de compreensão que criaram

para ela e seus familiares, situou-me como uma jovem mulher que não estava à procura

de uma contraparte masculina ao visitar com frequência a Plaza), anotei avidamente as

explicações que ouvia sobre velas, incensos e santos.

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À noite, quando fui jantar na casa de Rosa, percebi uma nova tensão. Agora não

em relação ao cotidiano em Río Piedras. Mais uma vez, conversas em que emergiam

noções (e preconceitos) de cor e raça.

No decorrer do dia, em meio à observação participante, Rosa me fez o convite

de acompanhá-los para fazer aquela refeição. E eu aceitei. Durante as primeiras semanas

de meu trabalho, vendendo artigos da botânica (mas também verduras, legumes e frutas)

e realizando o registro etnográfico, almoçava quase sempre nos postos dela na Plaza.

Ela e Muda preparavam a comida em um fogareiro, abaixo de uma bancada. Jantava em

sua casa depois que fechávamos os boxes. Ainda na primeira estada me mudei do

alojamento universitário para a casa de Rosa, onde fiquei por cerca de duas semanas até

regressar ao Brasil.17

A casa dela se localizava nas imediações da Plaza del Mercado, também em Río

Piedras. Era uma residência confortável, com três quartos (um deles suíte), uma ampla

sala conjugada a uma cozinha bem equipada, um banheiro ‘social’ e uma área de

serviço. Àquela época, além de Rosa e Diogo, Antonieta, cerca de dez anos mais velha

– Rosa estava com trinta e três anos –, morava na residência.

Naquela noite, então, Rosa me mostrou em sua filmadora alguns vídeos. Eram

registros feitos pelos familiares em San Francisco de Macorís e Naguá, cidade em que

vivia um de seus tios, também na República Dominicana. As imagens em Macorís

gravavam o desenvolvimento da construção de uma casa, propriedade de seu irmão

caçula e da companheira que viviam em Porto Rico. Porque Rosa me dizia o vínculo de

parentesco de cada uma das pessoas que aparecia na gravação, perguntei quem era a sua

mãe. Ao me mostrá-la, Rosa argumentou que sua mãe era morenita,18

assim como eu,

trigueñita.

Momentos depois, enquanto jantávamos, Antonieta fez um comentário, e eu não

entendi. Mas a mulher da irmã caçula, irritada, a chamou de racista. Antonieta replicou.

Como eu não consegui entender o motivo da conversa e da exasperação da jovem,

perguntei à Rosa o que Antonieta havia dito. Ela me respondeu que sua irmã não

gostava de haitianos. Antonieta reagiu dizendo que os haitianos eram bruxos e pretos.19

17

Ao retornar para a segunda estada do trabalho de campo, me hospedei novamente na casa de Rosa,

onde permaneci por pouco dois meses e meio. Depois, voltei a alugar um quarto no alojamento da

Universidad de Puerto Rico, onde vivi até fim do trabalho de campo. 18

Alguém com pele escura, termo cujo sentido é distinto de quando os dominicanos empregam moreno,

que recupera a ideia de uma pessoa de cor, mas com a pele mais clara. 19

Sobre o chamado “anti-haitianismo” como política nacional (e micropolíticas gestadas cotidianamente)

na República Dominicana a partir de uma abordagem histórica ver Derby (2003).

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Um primo-irmão delas que acabara de chegar de Nova Iorque, ao escutar o comentário

agressivo de Antonieta, tomou a palavra: – E eu também não sou preto? Constrangida,

Antonieta, em tom baixo esboçou uma reconsideração. Segundo ela, alguns haitianos

eram bons.

Nestes iniciais encontros e contatos (ALTHABE, 1990; TROUILLOT, 1992)

com meus interlocutores dominicanos foi se explicitando os significados negativos que

eles atribuíam a noções como negro ou preto. Identificar alguém nestes termos era

definir um homem ou uma mulher como haitiano(a). E, em algumas situações, vi Rosa

e Diogo, por exemplo, atribuindo essa nacionalidade a dominicanos com pele escura

que chegavam à botânica para comprar. A tensão de cor e racial era uma constante

também no cotidiano deles na Plaza. Pois, em diversas abordagens de clientes porto-

riquenhos à procura de alimentos, Diogo era por eles retratado como morenito, o que

significava alguém de pele escura (o que ele possuía), apesar de seu cabelo fino e traços

faciais afilados.

Rosa e seus familiares mobilizavam várias categorias relacionadas à cor da pele,

tais como blanco(a), moreno(a), trigueño(a) e prieto(a), associados a outros atributos

corporais, para se definir em relação aos seus interlocutores, estivessem esses em Porto

Rico ou na República Dominicana. Por várias vezes ela se definia como blanca

conversando comigo – a quem ele via ora como morena ora como trigueña porque a cor

da minha pele é mais escura que a dela, e meu cabelo, apesar de trançado como o das

haitianas, ela me dizia, não era ruim. Durante o trabalho de campo, escutei ela me

dizer, por diversas vezes, que estava blanca, e por isso retornaria mais bonita ao Brasil.

Como a Plaza de Mercado era um ambiente fechado e não a céu aberto, não ficávamos

expostos ao sol. Para Rosa isso, positivamente, garantia o branqueamento da cor da pele

(da dela e, como ela fazia questão de insistir, da minha).

Mas diante de um interlocutor porto-riquenho, cuja cor da pele fosse mais clara

que a sua, a textura e o comprimento do cabelo fossem lisos e longos (sem a adição de

produtos químicos no caso feminino), e cujas características faciais como o formato do

nariz, fosse afilado, Rosa não se definia como blanca. Uma espécie de suspensão

pairava no ar. E então ela não atribuía a si mesma uma tonalidade. Dizia apenas minha

cor.

1.6 Trânsitos e travessias

Se nestes contextos de comunicação passei a ter acesso a possibilidades de uma

escuta, observação e registro sobre Rosa e sua família (e o universo da botânica),

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preciso ressaltar que mais do que diálogo ordinário me conectou àqueles que se

tornaram meus interlocutores. Trânsitos de imagens e objetos (às vezes cessação de

falas) assim como travessias diversas sustentaram os comentários que descrevi. E por

meio disso foram esboçadas, particularmente da parte de Rosa, tentativas de

identificação ou de alguma forma de partilha. Nos termos dela, os dominicanos eram

como eu, ela, o marido, assim como sua mãe. E foi com o racismo que perpassou seu

comentário que Rosa me disse que eu não era exatamente outra para ela.20

Isso foi se

tornando mais explícito quando ela justificava para parentes e conhecidos o porquê da

minha presença na Plaza.

Rosa fazia referência à pesquisa de doutorado. Logo em seguida argumentava

que eu estava só na ilha. Não conhecia bem o lugar tampouco as pessoas. E certa vez

me falou algo como eu tenho uma filha, ela pode precisar de ajuda também no futuro,

nos estudos... Tendo chegado à ilha também sozinha, mas numa condição

completamente distinta da minha, Rosa aludia a essa experiência, uma espécie de

conhecimento de causa sobre a solidão de ser estrangeira, para explicar sua decisão de

colaborar comigo.

Havia mais ou menos dez anos que Rosa emigrou de San Francisco de Macorís,

cidade ao norte da República Dominicana, onde nasceu e viveu. Com pouco mais de

vinte anos, ela entrou ilegalmente para a ilha vizinha de Porto Rico, em uma viagem

clandestina nas chamadas yolas, embarcações de madeira que cruzam o mar do Caribe

em uma travessia extremamente perigosa.21

Aí permanecia desde então, fazendo

frequentes viagens para a sua cidade na República Dominicana.

A possibilidade de tal mobilidade entre as duas ilhas era possível porque Rosa

possuía o direito de residir em território norte-americano. Neste sentido, ela se

diferenciava da maioria de seus familiares e de outros imigrantes dominicanos que

conheci. Geralmente, eles viviam como ilegais em Porto Rico, sem os papéis, como

definiam. Após a saída de Rosa da República Dominicana, seu irmão caçula também

deixou San Francisco de Macorís. Ele também já tinha os papéis, ou seja, sua situação

20

Em algumas situações de compra e venda na botânica, observei Rosa construir uma aproximação em

termos de cor com clientes que possuíam a pele mais escura que a dela, dizendo-lhes que eram iguais.

Mas isso não minimiza as implicações políticas do racismo na República Dominicana. Uma das mais

graves, como salientei no início deste texto, é o impedimento à cidadania dos descendentes de haitianos

que nasceram e vivem há várias décadas na República Dominicana. 21

Não apenas por causa das adversidades vindas do próprio mar, mas da convivência humana nas yolas.

Alguns dos relatos que me foram narrados durante o trabalho de campo chamam a atenção para a

agressão e o abuso sexual de mulheres dominicanas, e o lançamento ao mar daquelas que se tornam um

“problema” para os atravessadores.

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como imigrante estava regularizada, e isso lhe permitiu viajar a Nova Iorque para

trabalhar na construção civil. Ocupação que realizava naquele momento em Porto Rico.

Alguns anos depois de Rosa, outras irmãs (junto com a então namorada do

caçula) e seus tios22

fizeram o mesmo. Todos atravessaram o mar do Caribe em yolas e

se reuniram a ela. Também como Rosa, que deixou sua filha,23

então uma bebê, sob os

cuidados de seu pai, de sua mãe e de seu irmão caçula – até que ele também emigrou e a

menina ficou com os avôs –, os filhos de Antonieta não estavam em Porto Rico.

Antonieta vivia em Porto Rico havia seis anos. Desde o início ela trabalhou

como empregada doméstica em diferentes casas de famílias porto-riquenhas. Não revia

pessoalmente seus três filhos por esse período, pois não tinha os papéis, o que a

impedia, além de tantas outras duras restrições, sair de Porto Rico para rever sua

família. Na mesma situação estava a jovem dominicana, mulher do irmão caçula de

Rosa e Antonieta. Ela embarcou na mesma yola junto com Antonieta (e outros

familiares de Rosa) e trabalhava também como empregada doméstica em residências de

porto-riquenhos. Seus pais e sua irmã se mantiveram em San Francisco de Macorís. E

eles não se viam desde então. Como estratégia visando à legalização em Porto Rico,

quase todos eles, tanto os homens quanto as mulheres, firmaram o que chamam de

casamento para ter os papéis ou matrimônio por contrato. E aguardavam a obtenção do

direito de residir em territórios norte-americanos, como Porto Rico, desde que

contraíram tais casamentos com porto-riquenhos (as).

Do ponto de vista das experiências de Rosa como imigrante (por anos, assim

como tantos outros dominicanos, sem papéis), a sugestão de Althabe de que o

antropólogo e seus interlocutores se tornam “prisioneiros de um contexto de

comunicação” assume outros sentidos, certa radicalidade. Foi justamente porque se

arriscou a atravessar outras águas24

– e não preservar seu espaço doméstico da

interferência perturbadora de estranhos (SCHWARTZ, 2002) –, disposta a refazer sua

vida pessoal e familiar considerando trânsitos, contatos e esfacelando algumas fronteiras

entre um lado e outro do mar do Caribe, que Rosa se manteve presa a uma pluralidade

22

Os tios de Rosa também arrendavam postos de verduras, legumes e frutas na Plaza del Mercado. 23

A menina estava com cerca de treze anos em 2010. 24

Certa vez ouvi Rosa argumentar que, apesar de muitos dominicanos que ela conhecia terem decidido ir

para Nova Iorque, o que ela mesma fez durante uma semana, hospedando-se na casa de tios que residiam

na cidade há anos, ela decidiu regressar a Porto Rico porque conhecia essas águas. Na cidade norte-

americana, ela explicava, iria falar com quem? Sem saber inglês, ela descreveu essa experiência como

marcada não apenas pela solidão, mas também pela indiferença.

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de situações sociais, a contextos não menos múltiplos que os dos interlocutores

franceses do antropólogo.

E o que chamo de radicalidade dessas experiências (para ela e para a sua própria

família) concerne ao fato de que para fazer circular dólar através das remessas, roupas,

produtos de higiene, de limpeza doméstica, alimentados enlatados e presentes, entre

Porto Rico e a República Dominicana, Rosa, Antonieta, o irmão caçula e sua mulher

precisaram se imobilizar na primeira ilha. Nela, tornaram-se sem papéis.

Ainda que raramente eles falassem direta e amplamente comigo sobre esse

assunto, suspeito que não se tratava apenas de recato. Saber o que expor e como fazê-lo

bem como aprender a resguardar-se, uma vez que a ameaça da deportação foi ou ainda

era uma espécie de assombração que rondava o dia a dia da família, implicava conseguir

preservar a própria integridade física de cada um deles, de seus corpos.

Sem que no momento eu mesma fizesse qualquer conexão, eram corpos de

pessoas – e como será visto adiante, uma variedade de agências espirituais capazes de

afetá-los – que também estavam em jogo com o sabonete que Rosa me deu para a boa

sorte. O produto não passou apenas da bancada da botânica para meu quarto no

alojamento universitário. Ele era um dos materiais por meio do qual Rosa e Diogo

experienciavam cotidianamente a vida como pessoas: limpar o corpo para atrair a boa

sorte, como depois eu observei, era uma das técnicas que o casal empregava e

recomendava na botânica porque participava de um mundo cujas ameaças eram não

apenas físicas, mas também espirituais. Essas se difundiam em sua casa, na botânica,

nas ruas e nos bares de Río Piedras. Neles mesmos. Tal produto, para Rosa, não era

apenas um símbolo particular de seu modo de ver o mundo, de representá-lo. Fazer essa

consideração, no entanto, trata-se de uma travessia que eu mesma precisei fazer

enquanto conduzia o trabalho de campo entre eles.

Tentarei descrever, então, alguns dos caminhos que a constituíram.

O universo da botânica despertou a minha atenção etnográfica, mas me parecia,

no mínimo, confuso. Um exemplo: no primeiro dia que convivi ali com Rosa, ela quis

saber se eu faria entrevistas para a investigação do doutorado. Em seguida, começou a

me explicar o que as pessoas iam buscar: boa sorte, abrir os caminhos, e outras

expressões que não consegui entender.

Para mim era difícil imaginar e compreender que por meio de relações

comerciais era possível se obter o que ela chamava de boa sorte. Mas o meu

estranhamento não tinha a ver apenas com o fato de que me deparava com um universo

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no qual sorte e prosperidade pudessem ser alcançadas, em parte, através da compra de

certos objetos, produtos e substâncias. A persistência dessas noções também chamava a

minha atenção no seguinte sentido: por que era importante para as pessoas buscar a boa

sorte e abrir os caminhos?

Comecei a indagar sobre alguns dos produtos e seus usos. Rosa me explicou que

os incensos serviam para a limpeza e proteção na casa e festas de santería... Cada

cavalo que se monta se faz uma festa ao santo protetor padroeiro [al patrón] com rum,

cerveja, vinho, refrigerante, diferentes comidas, doces... quando o ser humano nasce

com os mistérios, que é isso que é santería [precisa passar] por uma benção [santíguo],

um tipo de preparação, um tipo de batizado... depois que você está preparado monta o

ser que te toca: São Miguel, São Elias, Santa Marta; A Madama – uma negra –; Anaisa

a Pie – que é a esposa de São Miguel.

Nessa conversa tomei conhecimento de que ela é uma pessoa que tem os

mistérios. Mas também nela mistérios e santos são categorias intercambiáveis. E santos

é também um termo que em Porto Rico significa orichas. Sua mobilização tornava

possível Rosa falar de outras categorias que, no decorrer das minhas observações, não

tinham a mesma importância no que dizia respeito à atenção ritual em seu altar.25

Observei rapidamente essa composição de artefatos e substâncias na noite em que jantei

em sua casa, descrita mais acima. Ao pedi-la para ir ao banheiro, Rosa me indicou o que

ficava no interior de um dos quartos, no qual dormia sua filha quando ia a Porto Rico.

Foi ao cruzar o quarto vi que Rosa mantinha ali um altar para os mistérios.

Naquela manhã, escutando Rosa (e o que já vinha ouvindo com as visitas à

Plaza) comecei a me colocar um problema: mistérios, santos e orichas seriam

intercambiáveis entre si? Sem sentido, como depois percebi, para meus interlocutores

dominicanos, que com freqüência me diziam: – É o mesmo, o que se modifica é a forma

da pessoa trabalhar.

No entanto, não eram uma classificação e hierarquização entre entidades que eu

buscava. Interessava-me entender quem ou o que eram os mistérios a partir do que

vinha observando e escutando, pois eu simplesmente não sabia como concebê-los,

embora estivesse explícito que, para Rosa, se tratavam de outros já não mais vivos. Mas

25

Obrigação ritual daqueles que se chamam de pessoas que têm os mistérios. Nos altares são arranjados

quadros e figuras em resina de santos diante dos quais se posiciona alguma louça (copos, xícaras, taças)

com certos líquidos e substâncias, velas, objetos pessoais como fotografias das pessoas, dos clientes ou de

outros que os últimos levavam.

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seriam eles humanos mortos, humanos mortos vistos como deuses ou ainda deuses que

nunca teriam sido completamente humanos?26

Convivendo com ela, na botânica e em sua casa, notava que seu altar era

formado por imagens singulares, escutava em suas conversas, particularmente com

clientes dominicanos, referências a certos santos, em geral os mesmos que ela havia

mencionado no meu primeiro dia na botânica (São Miguel, São Elias, Santa Marta A

Dominadora...) e continuavam a sê-lo em boa parte das vendas. Mas não conseguia

dimensionar essas especificidades etnograficamente. Não sob uma forma que eu

considerasse etnograficamente mais válida.

Ainda durante a minha primeira estada, Rosa me avisou um dia que um cavalo

dos mistérios havia chegado à Plaza. Raul estava ali para comprar nas botânicas, e se

dirigiu até a dela. Ela me apresentou a ele dizendo que eu fazia uma investigação de

doutorado sobre os santos, que eu gostaria de ver um mistério montado e o altar de uma

pessoa que monta. Além disso, indagou se eu poderia fotografar seu altar e ele

(montado). O jovem dominicano reagiu: – São Elias não gosta que lhe façam fotos.

Tentando me explicar o motivo da recusa, Rosa me disse: – É que isso são espíritos…

Até então ela não havia mobilizado espíritos para se referir aos mistérios. Ele tomava os

mistérios, em nossas conversas, sempre como santos.

Como já salientei, vinha notando que pessoas que têm os mistérios era a maneira

como meus interlocutores dominicanos chamavam os seres humanos que mantinham

certas ‘relações’ com esses espíritos: atender (com os altares) e trabalhar ritualmente os

mistérios, por exemplo, como o fazia Raul.

Ao começar a me perguntar sobre as pessoas que têm os mistérios como Rosa (e

também Diogo) e Raul, eu pressupus (mais uma vez) uma separação radical entre ‘mim’

e ‘eles’.

1.7 Capturas ou enredada pela própria trama

Após o meu retorno a Porto Rico para dar continuidade à pesquisa, Rosa me

convidou para acompanhá-la até San Francisco de Macorís. Havia quase um mês que

eu estava em Porto Rico, voltando a viver em sua casa com sua família. Rosa precisava

fazer consultas e exames médicos, o que só realizava em seu país. Aproveitaria a

ocasião para levar duas crianças, filhos de seus primos que viviam ilegalmente em Porto

26

É óbvio que formulei tal indagação a partir de distinções que carregava a partir do pouco que conhecia

e ouvia falar sobre candomblé e umbanda no Brasil.

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Rico. Os avôs e outros familiares da República Dominicana não conheciam os meninos.

Eu a ajudaria no deslocamento com uma das crianças e teria a oportunidade de conhecer

seu padrinho. Ela gostaria que eu conversasse com ele, pois além de fazer consultas, era

quem cuidava da sua preparação em relação aos mistérios.

Eu acabei me encontrando, em certo sentido, com o padrinho de Rosa. Contudo

a situação não se desenrolou exatamente como eu esperava. Pois a conversa foi com o

mistério que ele monta. A chegada à República Dominicana, que para mim seria uma

forma de conhecer algumas pessoas, tendeu a deslocar (e a questionar) a minha posição

de antropóloga. Pois se meu objetivo era saber um pouco mais sobre as pessoas que têm

os mistérios, eu passei a experimentar encontros nos quais de algum modo fui sendo

produzida como uma delas através dos processos internos que eu definira como objeto

de estudo (ALTHABE, 1990, p. 129). Diálogos e observações, no entanto, altamente

sensíveis.

Neste sentido, as descrições que se seguirão só podem ser vistas como “caso

etnográfico” no sentido que defende Favret-Saada (1977, p.74-75): não para dar a ilusão

de uma diferença de natureza entre o sujeito que teoriza e o sujeito teorizado, mas para

possibilitar o próprio direito à interpretação da etnógrafa; que, no que lhe toca, por

diversas vezes e maneiras “foi tomada” pelos discursos e práticas de feitiçaria no oeste

da França.27

San Francisco de Macorís, 4 de outubro de 2010.

Acabei de sair da consulta que fiz com o padrinho de Rosa. Ela me levou

bem cedo lá com sua irmã Jose. Nós ficamos esperando, havia 3/4 pessoas

esperando. Um rapaz que é dominicano (+-35), que nasceu em Boston, mas a

família é dominicana, acompanhado de outro homem branco (+-40), entrou

com este para a consulta.

Nós chegamos, sentamos e ficamos esperando. Um senhor mulato (+-55) nos

recebeu, e era ele quem abria o portão para as pessoas. Rosa perguntou por

Nelson, e eu achei que esse fosse o nome do senhor que monta. Depois

percebi que não. Nelson me pareceu ser o nome do rapaz que faz a tradução

do que o ser/mistério/espírito diz para quem está sendo consultado. Rosa,

acompanhada da irmã, perguntou pela esposa do senhor, que não estava.

27

Fazendo o trabalho de campo, a autora se deu conta que sua investigação etnográfica poderia deslocar a

maneira como as práticas de enfeitiçamento eram compreendidas na França. E aqui ela se contrapõe a

uma série de saberes, como os de folcloristas, médicos e jornalistas que procuravam a região do Bocage

por causa da feitiçaria seguindo ideias pejorativas e sensacionalistas. Porque ela considera seriamente que

“[...] na feitiçaria a palavra é a guerra [...] todos são beligerantes, inclusive o etnógrafo, e não há lugar

para um observador não engajado”. (FAVRET-SAADA, 1977, p.27), ao se interessar por esse assunto e

buscar conversar com as pessoas acerca disso, Favret- Saada se inseria numa trama em que uma

complexidade de significados e práticas construía o enfeitiçamento/desenfeitiçamento como um discurso

e uma experiência real. Além de ser vista como alguém que ao procurar falar poderia ser potencialmente

uma enfeitiçada – alguém que tivesse ‘sido tomada’ por um mal – foi concebida às vezes também como

uma “desenfeitiçadora”: porque já sabia muito dado que falava constantemente com feiticeiros e

enfeitiçados, era localizada como alguém que tinha certa “força”.

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Então elas esperaram um pouco, e tiveram que ir, pois Rosa tinha consulta

marcada num hospital de San Francisco de Macorís (privado).

Eu então fiquei sozinha, e o senhor que recebia as pessoas começou a

conversar comigo. Rosa antes de ir falou o que eu queria lá, e eu também lhe

disse algumas coisas. Que eu estava em Porto Rico estudando as botânicas, e

queria agora me aproximar, conviver, com as pessoas que fazem consultas.

Não me lembro o porquê, mas esse senhor me disse que o outro senhor, que

faz consultas, tinha uma botânica em Nova Iorque (ele antes havia dito outra

cidade norte-americana, mas não me lembro o nome). Eu então disse o nome

da botânica de Rosa, e lhe perguntei o nome da botânica do senhor. Ele

acabou que não me disse, conversamos um pouco, mas ele não falou.

Nesse meio tempo os dois rapazes entraram, e haviam chegado dois senhores.

Ah, já havia uma moça lá esperando, branca (+-35), que não parecia

dominicana. Ela não conversava com ninguém. Ah, o senhor que recebe as

pessoas me disse que a casa ficava muito cheia. Que vinha gente da

República Dominicana, dos EUA, do México, da Jamaica, do Haiti, de

diferentes lugares. Que o senhor fazia cura, trabalha com cura, e com coisas

boas. Ele então disse que o procuram tantos os mansos quanto os cimarrones.

Eu não entendi o que ele queria dizer, e lhe perguntei. Ele então me disse que

todo o tipo de gente procurava o senhor, tanto boa quanto má. Esse senhor

me disse também que já viveu em Boston, em diferentes lugares.

Então quando ele saiu do pátio, um dos senhores que estava lá [esperando]

ouviu que sou brasileira, e começou a conversar comigo me perguntando

sobre o Brasil, minha cidade, essas coisas. Ele então falou com o outro

senhor que sou brasileira, e me convidou que eu sentasse mais perto deles. O

que mais conversou comigo é branco (tinha a pele bem avermelhada,

queimada de sol, +-55), o outro era mulato (também com a pela bem

queimada de sol, e um pouco mais novo). Então o senhor branco me

perguntou se eu estava má [mala], no sentido de se esse era o motivo para eu

estar ali. Eu lhe disse que não, que estava ali por outra razão. O mais novo

falou que bem que se via que eu estava bem (se referindo à minha aparência

física), e eu lhe disse que sim, que tenho saúde. Então conversamos um

pouco, eu estava bem, descontraída, até que o rapaz que acompanha as

consultas me chamou. Ah, antes disso, quando os dois rapazes mais novos

entraram lá dentro, eu entendi o senhor que recebe as pessoas dizer que ele (o

senhor que atende) estava com muito trabalho porque, eu entendi assim,

atendia as pessoas e falava/atendia pelo telefone também. Eu entendi ainda

alguma coisa de Uruguai...

Então o rapaz fez sinal para que eu fosse para a consulta. Ele é jovem (+-35),

mulato, e parece dominicano. Eu então esperei alguns segundos na porta, o

senhor estava fumando, na verdade, acendendo um cigarro. Eu então fui até

ele, que segurou minhas mãos as cruzando, e me deu benção (Dios te

bendiga, eu acho). Ele estava usando na cabeça um pañuelo (lenço) lilás, um

chapéu de palha, e óculos escuros. Não me lembro se estava descalço...

Fumava todo o tempo, e fica sentado. Houve um momento em que ele

levantou, acho que para pegar fósforos, algo assim. O rapaz [Nelson] senta ao

lado dele (direito). Do seu lado esquerdo há um altar com uma imagem

(estátua) de São Expedito com uns colares, eu acho. Um quadro de Santiago

Apóstolo e a Virgem da Alta Graça. Próximo à imagem de São Expedito, há

três estátuas pequenas iguais às que Rosa me disse que se chamam São

Francisco e Santa Francisca, e mais uma de um senhor negro, também

sentado, que se parece mais com a de um “preto-velho”. Acho que havia

algumas flores, não me lembro bem, mas vi as caixas em papel de alguns dos

banhos/despojos que se vendem em Porto Rico [nas botânicas]. Do lado

esquerdo do quarto há uma espécie de box, que me parece ser o espaço onde

os banhos/despojos são feitos. Então, quando eu me sentei, o senhor que

estava com a pele bem escura (preta) começou a me falar várias coisas. Ah,

depois que ele nos cumprimenta, ele utiliza a mão, acho que a direita, para

fazer uma espécie de benção na cabeça, com o sinal da cruz, me parece. [...]

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Ele se comporta da seguinte maneira. Parece que se põe a escutar o que

alguém está lhe dizendo do lado esquerdo, porque faz um movimento com o

corpo como se estivesse ouvindo algo. Então diz as coisas, e o rapaz traduz.

Depois de um tempo percebi que ele fala espanhol, mas com alguns sons que

não deixam muito claro o que está dizendo. Depois, eu entendia algumas

palavras e frases que ele dizia.

Então fiquei não assustada, acho que essa não é a melhor palavra, mas

decepcionada. Ele me disse várias coisas que não foram boas. Algumas eu

acho que têm a ver, outras não. [...] falou que via um zombi em mim. Zombi é

um morto (Ele me disse que um dos motivos para eu me preparar para

estudar los misterios era o de evitar que coisas más – zombies são uma delas,

mas ele usou outros termos – se aproximassem de mim) . Não sei se a

sequência foi essa. [...]. Então em um momento me disse que, não me lembro

exatamente, [algo] como dons espirituais. A palavra não foi dom. Não me

lembro, e ele me perguntou se eu queria ser uma santera. Eu disse que não.

Ele então falou que São Miguel Arcanjo me protegia, e que sou filha dele,

Anaissa a Pie, Santa Marta, e Virgem de Pilar. [...]. Eu não me lembro se ele

falou da preparação nesse momento, acho que sim.

Quando ele me perguntou se eu tinha alguma pergunta para lhe fazer, eu

expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre religião, que teve início

numa botânica em San Juan (PR). Acho que antes ela já havia dito que eu

estava em Porto Rico, e que as coisas estavam melhor lá do que onde eu

estava [no Brasil]. Acho que ele já havia dito sim que eu devia ser preparada

para montar os mistérios... Então quando ele me deu a palavra, ele disse que

só têm os mistérios os elegidos pelos elegidos; que todos são elegidos, mas só

apenas esses podem. Ele se apresentou como Prin, um espírito (de uma

pessoa, como nós, o rapaz me explicou) que viveu na África há muito tempo

atrás. Ele disse que as pessoas precisam de uma preparação, precisam

preparar a cabeça para que possam montar, e que eu necessito fazer isso, para

me preparar e pedir permissão aos mistérios para fazer a pesquisa. Ele me

disse que o espírito, ele, Prin, pertence às 7 Potencias Africanas; que ele é o

segundo; o primeiro seria Juan.... e o terceiro Guedé...; não entendi os outros

nomes que aconpanham. Falou que ele é um Guedé, mas um Guedé bom, que

trabalha para o bem das pessoas.

[...] quando eu comecei a dizer o que estava fazendo/queria ali, e então disse

que estudava religião, o rapaz me perguntou que religião. Eu falei os

misterios (com o som aberto), e ele repetiu pronunciando de outra maneira

(como se a palavra fosse menor, incompleta, e com sons mais fechados). Prin

então nesse momento inicial me disse que a preparação é para abrir a cabeça

das pessoas; falou algo de cérebro, que eu não entendi; e se eu estava

interessada em espiritismo. Foi aí que fiz referência aos mistérios. Ao longo

da conversa ele reafirmou que eu não estava preparada, e me fez propostas de

que eu poderia trabalhar com isso [...] lhe disse que não era isso que queria

[...]. Antes havia me dito que se eu me preparasse, ele poderia me explicar

tudo, deixar eu gravar, escrever, fazer fotos das festas de São Miguel e

Anaisa, dos despojos/banhos. Que poderia me passar algumas gravações de

programas que foram feitos com ele. Por vários momentos me falou que as

minhas capacidades – não foi esse o termo – espirituais é uma herança de

família, que vem há várias gerações. Afirmou muito isso, e quando eu falei

sobre a mudança de tema da pesquisa, me explicou que isso aconteceu por

causa dessa minha sensibilidade espiritual (não usou essa expressão mas foi

esse o sentido). Que eu me senti tocada ao ver a botânica, uma energia

posistiva, que na verdade a mudança tem a ver com isso. Seguiu dizendo que

eu precisava de um batizado para estudar a ciência oculta. Eu perguntei se

essa iniciação me permitiria montar, pois não queria isso. Ele me disse que

sim, mas que não precisaria montar, mas teria que fazer, ter, não sei bem, os

7 pontos...

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Mesmo com todas as ressalvas desse mistério sobre as exigências que, segundo

ele, me seriam colocadas para fazer a pesquisa (e a minha recusa em aceitá-las), eu tive

acesso nessa conversa a uma variedade de informações que posteriormente se

transformaram em dados etnográficos. Como Prin se apresentou, dizendo o seu nome e

origem, pude perceber como os mistérios são concebidos: espíritos de pessoas que

viveram como nós há tempos atrás. A partir disso, também mapear certa especificidade

dos mistérios face ao problema que havia colocado sobre a diversidade de agências

(santos e orichas) que eram mencionadas durante as práticas de comércio na botânica

em Porto Rico.

Além disso, uma inflexão relevante se deu. Pela primeira vez eu tinha um

mistério como interlocutor direto. Isso adensava as experiências que vinha tendo no

trabalho de campo. Os espíritos passaram a ser parte atuante da pesquisa. Se nesse dia

em San Francisco de Macorís me senti um pouco frustrada quando me dei conta que não

falaria com a pessoa do padrinho de Rosa, mas sim com o mistério que ele monta, no

decorrer da investigação outras pessoas me diziam que havia uma abertura ou demanda

de alguns mistérios, que queriam falar comigo

Como se nota nas transcrições do meu caderno de campo, é importante destacar

que a própria noção que eu perseguia – como se definia a categoria pessoa que tem os

mistérios – se tornou interna à relação que eu procurava estabelecer com meus

interlocutores. Penso que as considerações de Favret-Saada (2005) em “Ser Afetado”

explicitam um domínio interessante desse processo.

Também interessada em refletir sobre como foram obtidas suas informações de

campo, neste texto Favret-Saada revela que lhe foi necessário adotar um dispositivo

metodológico. Isto lhe permitiu a formulação de certo saber posterior à pesquisa.

Entretanto, não se tratava nem de observação participante, menos ainda de empatia.

Conforme a autora, seus interlocutores só falaram sobre feitiçaria com ela quando

pensaram que tinha sido tomada; quando reações que não estavam sob seu controle

significavam, para eles, que ela havia sido afetada pelas falas e atos rituais. De modo

que ninguém pensava em falar com ela pelo fato de ser etnógrafa.

A minha presença diante de Prin, e por que não pensar frente aos interlocutores

humanos da pesquisa, parece-me que também não era percebida a partir do meu

objetivo profissional e acadêmico. Ainda que para mim isto não fosse imediatamente

explicito, eles me viam (e Prin usou exatamente esse verbo: ele via um zombie em mim)

de determinada maneira. Com isso não quero utilizar um recurso de linguagem, mas dar

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relevo a uma das capacidades sensíveis, atribuída tanto às pessoas quanto aos mistérios,

por meio da qual uma série de interações pode ser estabelecida ou rechaçada. Diante

deles, eu me tornara uma confluência também constituída por espectros, espíritos e

imagens. Uma ‘nova’ pessoa me foi delineada.

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CAPÍTULO 1 DOM EM CIRCULAÇÃO

1.1 AS PESSOAS E SEUS MISTÉRIOS

1.1.1 A missão e os caminhos de Joana

– Eles disseram aos meus pais que eu tinha uma luz muito forte e era preciso

cuidar disso. A essa época Joana era uma criança, estava com cerca de sete anos.

Acompanhada de suas irmãs, ela cantava no coral de uma paróquia na cidade de La

Romana, costa sudeste da República Dominicana. Mas, no interior da igreja, Joana

desmaiava enquanto participava das atividades do coral e das missas católicas. Além

disso, era comum ela se sentir enfraquecida e doente. Um casal de idosos que

frequentava a mesma igreja e vinha observando os desmaios de Joana, decidiu procurar

os pais dela. Falaram com eles, então, nos termos acima. Eles [o casal] trabalhavam a

obra, Joana me disse.

28

Seus pais eram católicos. E Joana escutava o pai, em particular, volta e meia

dizer que só acreditava em Jesus Cristo e na Maria Santíssima (Virgem Maria). Por isso,

durante a infância dela, nas paredes da sua casa viam-se apenas os quadros de ambos.

No entanto, mortos familiares e de antigos amigos estavam sempre próximos do pai de

Joana. E, às vezes, incorporavam-se nele enquanto dormia. Ele assumia as

características físicas e gestuais dessas pessoas falecidas, mas depois não se recordava

de nada. Joana me disse que seu pai também era capaz de tumbar (derrubar) bruxas

invocando orações em La Romana, e era conhecido por isso. Inicialmente, entretanto,

seus pais nada fizeram para tentar conter o enfraquecimento que a acometia.

Joana estava com treze anos quando seus pais convenceram-se de que ela

precisava ser batizada. A tarefa coube ao casal de idosos que os havia aconselhado. O

batizado de Joana durou um ano. Na verdade, vários batizados. Pois ao longo desse

período o casal a levou para percorrer diferentes cidades da República Dominicana.

Conduziram-na a um cemitério, a sete igrejas católicas, ao mar e ao monte (áreas de

mato e bosque). 29

Em cada um desses locais, uma cerimônia específica foi realizada.

28

Expressão utilizada pelos meus interlocutores dominicanos ao se referirem às pessoas que têm os

mistérios, aquelas que atendem ritualmente esses espíritos e realizam consultas espirituais, o que chamam

de trabalhar os mistérios. 29

A espacialidade do monte está ligada, em várias ilhas caribenhas (Haiti, Suriname, Jamaica, Cuba,

República Dominicana, Porto Rico, Guadalupe, Martinica) à presença e ocupação das áreas de mato,

bosque e montanhas pelos chamados cimarrones, escravos africanos e crioulos que não se submetiam ao

poder colonial e fugiam para regiões isoladas e de difícil acesso, e que podiam também entrar em

confronto direto com os exércitos coloniais. Entre os meus interlocutores dominicanos, uma categoria

particular de espíritos, conhecida como los petroses, são concebidos como aqueles que em vida se

estabeleceram no monte, assunto que será discutido no terceiro capítulo. Esses espíritos são definidos por

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Durante doze meses, Joana vestiu apenas roupas brancas. Para Joana, o batizado é

importante porque tranquiliza os espíritos.

Para Joana, seu enfraquecimento e desmaios deviam-se a força dos seres de luz

na sua vida, que a derrubavam (tumbaban) no chão. Os mistérios são a luz a que ela fez

referência nas nossas conversas.

Joana reconhece que trabalha esses espíritos desde que terminaram as

cerimônias de seu batizado. E isso já durava quarenta e um anos, quando a conheci em

2010 em uma botânica em Río Piedras. Após a fase mais crítica da infância, Joana

passou a ser procurada em sua casa por vizinhos e mesmo estranhos. Suas capacidades

divinatórias atraíam outros. Aos treze anos, ela também engravidou de um namorado,

com quem teve seu primeiro filho. Na juventude trabalhou em restaurantes em La

Romana, e, anos mais tarde, quando se casou com um comerciante dominicano com

quem teve duas filhas, passou a ler as cartas, consulta feita aos mistérios por meio de

um jogo de baralho espanhol. Primeiro, para algumas amigas. Depois, para

desconhecidos. A solicitação dos trabalhos,30

especialmente para os relacionamentos

amorosos, começou a aparecer nessas consultas iniciais, e Joana passou também a

prepará-los.

No entanto, assumir a tarefa de trabalhar os mistérios não ocorreu sem

questionamentos. Joana sempre insistia comigo que pôr suas capacidades divinatórias à

disposição de outros não foi uma escolha sua. Os mistérios foram preponderantes nesta

decisão. Ela sabe que tem os mistérios desde o seu nascimento. Os eventos que a

debilitaram na infância eram uma mostra do que ela definiu como a força dos espíritos

sobre si mesma. Assim como a sua capacidade de relatar e prever acontecimentos ou de

gerar outros quando, depois de invocar os santos por causa do que considerava uma

agressão contra si, observava os responsáveis por tais atos prejudicados econômica e

fisicamente.

meus interlocutores dominicanos como tendo comportamentos violentos, intransigentes e rebeldes.

Historicamente foram associados às vitórias dos escravos crioulos e africanos em Saint Domingue (que se

tornou a república do Haiti no início do século XIX) contra o domínio colonial francês. Meus

interlocutores dominicanos não costumam nomear os espíritos dessa categoria individualmente. Usam

com mais frequência o termo petro para fazer referência a esses mistérios. 30

Trabalhos são objetos criados em potes, preparados a partir da manipulação de velas ou de órgãos de

animais que os interlocutores dominicanos fazem para os clientes incorporando os mistérios ou invocando

esses espíritos. Geralmente quando esses compósitos são feitos à base de substâncias como óleos,

especiarias e outros alimentos os dominicanos os chamam de serviço. Esse assunto será tratado no

próximo capítulo.

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Ainda na juventude, durante as consultas que ela fazia com terceiros, Joana

ouvia com frequência um aviso. Diziam-lhe que ela veio ao mundo para trabalhar os

mistérios. Essa era a sua missão. E, em caso de recusa, esses espíritos a levariam. Para

Joana, isso queria dizer que ela morreria e outra pessoa seria colocada em seu lugar. Já

os mistérios reencarnariam novamente em quem fosse substitui-la. Ainda assim, ela me

dizia: – Eu não queria saber disso para nada, para nada!

Com um sorriso um tanto desconfortável em seu rosto, sinal mais de

preocupação que exatamente de satisfação, Joana explicava-me que, quando morresse,

seus filhos ficariam em uma situação complicada: – Eles têm seus mistérios, têm sua

proteção através de mim. Com o seu falecimento, um deles teria que começar a

trabalhar e assumir a atenção ritual que ela vinha dando a esses espíritos há décadas. O

problema, nesse caso não mais para ela, mas para seus descendentes, é que nenhum dos

três gostava disso.

No decorrer das consultas, Anaisa – chamada de metresa pelos dominicanos –

era o espírito feminino que mais se apresentava quando Joana jogava as cartas para os

clientes.31

São Miguel Arcanjo e Santa Marta A Dominadora, outra metresa, também

são seus mistérios protetores; ambos se apresentavam durante as consultas e

intervinham no auxílio e na resolução das suas dificuldades cotidianas: – Eles resolvem,

acomodam as situações para mim. É preciso ser fiel a eles, ser leal. Eu sou uma pessoa

que sigo meu caminho e não me deixo influenciar... eles [esses santos] não fazem nada

de graça, é preciso dar algo em troca.. Eu os atendo e eles me assistem, Joana

argumentou comigo.

1.1.2 A árvore de Gina

– Joana, por exemplo, trabalha isso, e quando a pessoa falece os filhos e filhas

dela, alguns deles, inevitavelmente, vão ter que trabalhar, foi o que Gina comentou

quando soube o motivo de minha presença junto à Joana na botânica, que, então, reagiu:

– É mais comum os netos, mas se não há netos, são os filhos mesmos.

Já havia notado a ida de Gina à botânica em outras ocasiões, ora acompanha de

um casal de crianças (seu filhos), ora de uma senhora que me parecia ser sua mãe. E, às

vezes, de outra mulher que se parecia muito com ela. Quando Gina para lá se dirigia,

31

Metresa é uma corruptela de maîtresse, termo que no vodu realizado no Haiti nomeia um espírito

feminino conhecido como Metresili: uma mulher que se apresenta em um estilo burguês crioulo,

vinculada aos padrões de feminilidade da época colonial e geralmente concebida como acompanhante e

amante de personagens masculinos, especialmente aqueles ligados às forças de guerra. Entre os meus

interlocutores dominicanos, não apenas Metresili, mas outros mistérios femininos são chamados de

metresa.

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estava à procura de alguma mercadoria. Sempre perguntava sobre velas, imagens de

santos e óleos.

Gina trabalha os mistérios há nove anos. Como Joana, ela também relutou em

assumir esses espíritos. Isso ocorreu quando ela já não vivia mais em Miches, sua

cidade na República Dominicana, mas trabalhava como empregada doméstica em Porto

Rico. Era comum que Gina caísse ao chão e perdesse a consciência enquanto realizava

suas tarefas nas casas das patroas. À noite, quando saía para se divertir, bastava ingerir

um pouco de rum ou qualquer outra bebida alcoólica para dar início às consultas na rua

ou dentro dos bares. Os mistérios montavam ela. Para Gina todas essas situações eram

constrangedoras. Entretanto, faziam-se cada vez mais comuns.

Quando passava diante de alguma botânica, ela se detinha em frente. Olhava os

quadros, as imagens de santos. Sentia-se de alguma forma capturada, ao mesmo tempo

em que se perguntava: – Por que eu? Depois da repetição dos desmaios nas casas em

que trabalhava e das consultas cada vez mais frequentes nos espaços públicos, ela

desistiu de sua ocupação como empregada doméstica. Começou, assim, a se dedicar à

consulta espiritual de terceiros. Gina recebe os clientes em um altar organizado dentro

da casa em que mora com seu casal de filhos e o marido, em Río Piedras. Mas já havia

oferecido as consultas na mesma botânica em que conheci Joana e atuado em outras.

Durante aquela conversa na botânica, depois de ter indagado à Joana se ela havia

me dado um número – informação que os mistérios comunicavam à Joana, conhecida

por receber até oito mil dólares nas loterias de Porto Rico e da República Dominicana –

Gina me questionou: – O que você quer saber sobre os mistérios? Isso é como uma

árvore com raízes, ela argumentou, movendo suas mãos em sentido vertical e em

seguida espalhando seus dedos. Gestos que procuravam demonstrar que as raízes e os

galhos se propagavam: os que chegavam (novos nascidos) continuavam a trabalhar.

– Meu avô, minha avó trabalhavam os mistérios, e eu faço parte disso. Isso é

algo que se passa pela família, e os mistérios são quem decidem até quando eu vou

seguir trabalhando. Cada cabeça é um mundo e os mistérios pegam (cogen) as cabeças

que eles querem.

Além de Gina, sua irmã, a outra mulher que a acompanhava algumas vezes na

botânica, realizava consultas também em Río Piedras. Sua família há muito mantinha

relações com esses espíritos. Quando passei a frequentar a casa de Gina e a observar seu

altar, ela comentou que sua mãe trabalhou com São Judas Tadeu. Perguntei-lhe, então,

se isso havia ocorrido quando ela era uma criança: – Naquela época eu ainda não

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estava nesse mundo, Gina me respondeu. Ela me explicou que isso ocorreu no final dos

anos 1950, no início dos 1960, e que ela mesma só nasceu em 1973. Quem lhe detalhou

o modo como sua mãe trabalhava com aquele santo foi São Santiago Apóstolo/Ogun

Balendyó, o mistério protetor de Gina. El patrón, como às vezes ela o chamava.

1.1.3 No meio disso: Rosa e Diogo

Foi salientando que se trata de um dom com o qual se nasce, algo natural, que

Diogo certa vez me contou, sem que eu esperasse, que tem os mistérios, em particular o

espírito de uma mulher chamada Anaisa.32

Mas também um espírito chamado de Barão

do Cemitério.

Diogo era marido de Rosa, minha principal interlocutora durante os primeiros

meses que estive em Porto Rico. Ele me parecia sempre muito desconfiado e reticente

quanto ao assunto da pesquisa de doutorado. Se Rosa permitiu, prontamente, que eu

ficasse com ela na botânica, fazendo-lhe perguntas, anotações e fotografias, enquanto a

ajudava com as vendas, Diogo me via com certa suspeição. Meu interesse por um

assunto que não apenas ele, mas também Rosa e outros dominicanos com quem convivi

demonstravam reserva, gerava nele certo desconforto.

Entretanto, Diogo disse-me que também tinha os mistérios quando estávamos na

botânica de Rosa, na Plaza del Mercado. Logo depois que retornei ao Brasil, em abril de

2010, Rosa viajou para o Alasca. Ela havia se cadastrado, via internet, junto à Trident

Seafoods, uma multinacional pesqueira norte-americana com base no Alasca e no

noroeste do Pacífico. E havia sido recrutada para trabalhar no processamento de salmão

por cerca de três meses. Com isso, a botânica ficou sob a responsabilidade de Diogo.33

Na ausência de Rosa, Anaisa subiu nele. Na ocasião, ele havia entrado na loja

para procurar uma mercadoria a pedido de uma cliente. Por isso, ele me disse, não

gostava de ficar no interior da botânica. Ao sair Diogo começou a rir sem interrupção.

Parentes e conhecidos que estavam próximos dele não compreenderam o que acontecia.

Diogo acreditava que não estava ainda maduro. Por isso, era incapaz de se controlar

quando a metresa se aproximava.

32

O mesmo mistério feminino de Joana. 33

Diogo e o irmão caçula de Rosa se cadastraram também no site da empresa, mas não foram recrutados

como ela. Meses depois, o irmão caçula foi chamado, mas teria que se apresentar em um escritório da

empresa em Washington, nos EUA. Sua condição econômica, no entanto, não lhe permitiu fazer a viagem

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Nessa ocasião, ele me explicou que ter os mistérios é uma coisa de família.

Minha avó tem, meu tio também,34

e eu cresci no meio disso. Minha tinha recebeu da

minha avó, mas ela não ficava bem quando os seres se colocavam [se ponían] e não os

quis, Diogo argumentou comigo.

Diogo e Rosa são de cidades do norte da República Dominicana, da região

conhecida como Cibao, mas se conheceram em Porto Rico. Ele nasceu em Isabela; ela,

como eu pude visitar, é de um bairro rural, antiga região de cultivo de arroz em San

Francisco de Macorís. Enquanto Diogo chamou a minha atenção para o caráter natural e

familiar de seu dom, Rosa pouco falava sobre o aspecto familiar dos seus mistérios.

Enquanto conversávamos certa vez na botânica, perguntei-lhe com quem havia

aprendido sobre tudo aquilo que vendia ali. Rosa argumentou que isso é como uma

coisa que te falava, ninguém te ensinou, Deus e os santos te dão os conhecimentos. Ela

percebeu que possuía esses conhecimentos quando vivia ainda na República

Dominicana e estava com cerca de dezessete anos. Nessa época, Rosa me disse, semi-

desperta [em estado de sonolência], se sonha a coisa [com as situações], vê a coisa [o

que aconteceu ou acontecerá], vê uma pessoa e sabe o que se passou. É um dom que

Deus te dá.

Ela dizia que em sua família não havia outros que tinham esses espíritos,

somente ela. Nossas conversas giravam, basicamente, em torno dos banhos, limpezas e

trabalhos. Era isso o que Rosa recomendava aos clientes, amigos e parentes, cujas

mercadorias eram geralmente adquiridas na botânica. Conversávamos, ainda, sobre as

peculiaridades de alguns mistérios, especialmente São Miguel Arcanjo, seu santo

protetor.

Mas no decorrer de uma conversa com um assíduo cliente porto-riquenho, Rosa

se referiu a um antigo parente seu, adoecido em uma cama havia muitos anos. O

comportamento do homem idoso seria repetido por uma cobra enroscada em uma árvore

no quintal. Isso era o que vinha sendo contado entre os familiares ao longo dos anos.

Ele era um antepassado seu, o cliente lhe falou. Ao que Rosa, apenas acenando com a

cabeça, respondeu que sim. A possibilidade de um vínculo espiritual entre o senhor

adoecido e o animal perpassou tanto o comentário do cliente quanto o gesto positivo de

Rosa.

34

Padrinho de Rosa nos mistérios, que cuidava dela espiritualmente e a quem fui levada para conhecer

quando viajei com Rosa até sua cidade natal, San Francisco de Macorís, na República Dominicana, em

outubro de 2010. Viagem a que fiz referência na Introdução.

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Era provável que ela não fosse a única a ter os mistérios em sua família. Sua

irmã mais velha, que vivia no bairro San Jose, próximo a Río Piedras, possuía, assim

como Rosa, capacidades divinatórias através dos sonhos. Além disso, enquanto

conversávamos no quintal da casa que Rosa construiu para os pais e a filha em San

Francisco de Macorís, suas jovens primas com pouco menos de vinte anos comentaram

que uma delas sempre ia ao chão quando participava das missas da igreja católica local.

Os parentes adultos suspeitavam que ela também tivesse os mistérios.

Devido à convocação para o trabalho com o processamento do salmão na

Trident, Rosa adiou seu batizado em San Francisco de Macorís. As cerimônias seriam

conduzidas por seu padrinho nos mistérios, tio de Diogo. E deveriam ser realizadas em

fins de maio de 2010. Mas no início de junho ela deixaria Río Piedras rumo ao Alasca.

Para Rosa, a comunicação que mantinha com os mistérios, não apenas por meio dos

sonhos, mas também da audição e visão, era um dom com o qual havia nascido. Irritada,

a vi certa vez reclamar com Diogo e a irmã com quem morava sobre uma borícua35

que

estava aprendendo a fazer os trabalhos.

Rosa gastava boa parte de seu tempo na botânica vendendo e ensinando sobre o

uso de produtos, objetos e plantas para retirar as coisas más (sacar las cosas malas).36

Além disso, recomendava a aquisição de imagens de santos e velas para a organização

de altares domésticos como forma de cuidar e estar pendente aos santos; e, ainda,

preparava os trabalhos porque é uma pessoa que têm os mistérios. Para ela, o

aprendizado sobre esses assuntos era contrário (e mal visto) à sua própria experiência,

ao que ela definia como o seu dom.

1.2 CONECTANDO ‘PESSOAS’, FAMÍLIA E ESPÍRITOS

Meus interlocutores, dominicanos e mistérios, definem alguns desses espíritos

como a força da pessoa.37

Isso significa que é por meio de uma série de práticas rituais

que a disposição e a capacidade cotidianas para a realização da vida daqueles que têm

35

Termo do grupo indígena taino que designava a atual ilha de Porto Rico como Borinquén, é utilizado

com o sentido de identidade porto-riquenha. 36

Para os meus interlocutores dominicanos, as coisas más são espíritos invisíveis e anônimos enviados

por meio de bruxaria para causar malefícios aos seres humanos. Mas também se emprega o termo em

referência aos mistérios conhecidos como petroses. Joana e Antonio, por exemplo, assim chamavam os

petroses. 37

As pessoas possuem geralmente um mistério protetor e outros dois que se fazem também presentes em

seu cuidado e auxílio. Esses três espíritos não são obrigatoriamente os mesmos que protegiam os

antepassados familiares. Outros mistérios, no entanto, devem ser atendidos ritualmente e podem montar

essas pessoas. Há, no entanto, uma hierarquia nessa forma de incorporação. Alguns mistérios são

impedidos de passar, ou seja, de montar as pessoas, pelo mistério protetor (ou pelos outros dois

principais). No segundo e quarto capítulos, descrevo algumas situações em que isso ocorreu.

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esses espíritos são ativadas e conservadas. Nesse sentido, manter ritualmente os

mistérios como uma potência para si requer das pessoas engajamentos de ordens

diversas. Um desses engajamentos diz respeito ao fato de que, ao serem recebidos, os

mistérios solicitam retribuição. “Que força faz com que se retribua uma coisa recebida,

e em geral se executem os contratos reais” (MAUSS, 2008, p. 60) é um questionamento

pertinente, também, para aqueles que atendem e trabalham os mistérios.38

O fato de que fluxos de força – de dom espiritual concebido como potência

pessoal – sejam debitados a uma conexão familiar levou-me a procurar entender como

essa ‘relação’ é compreendida. Isso é o que farei nesta seção. Na seguinte, tentarei

demonstrar quais são as implicações de receber um dom espiritual porque se é parte de

uma família e como o dom age e constrange aqueles que o receberam, ou seja, o que

essa transmissão cria contemporaneamente para as ‘pessoas’. Para isso, considero a

sugestão de Marilyn Strathern de que a ideia de “força vital” pode ser compreendida

como uma potência transferível. Assim procuro lançar luz às narrativas de Joana, Gina e

Diogo acerca dos ‘dons’ por eles recebidos.

Em uma reflexão sobre o papel estético de substâncias como a gordura entre os

Etoro do interior da Papua Nova Guiné, Strathern (1999, p.47-48) sublinhou a

importância dos arranjos sociais concernentes ao fluxo da força vital que os homens

faziam circular entre si. Para os Etoro a imagem negativa de uma pessoa que não

dissipa, mas, antes, acumula a vitalidade dos outros, é de caráter estético, liga-se à

forma ampla do corpo. Por consequência, um corpo franzino ao final da vida de um

homem é o esperado. Tal forma indica que as gerações mais antigas conferiram seus

corpos às mais jovens; estes absorveram a força vital daqueles.39

Por isso a força vital não deveria ficar alojada durante muito tempo no corpo, o

importante era que pudesse fluir. Buscando isso, os homens a mantinham em constante

circulação sob a forma de doação de sêmen, de provisão de carne (alimento que induz o

crescimento) e da distribuição de conchas valiosas (riqueza); todos signos de vitalidade.

Deste modo, os homens Etoro eram capazes de rastrear a expansão e o esgotamento da

força vital em sua relação com os outros. Um homem era, na juventude e no início da

38

No entanto, o que me interessa por enquanto não é exatamente a descrição desses modos rituais entre os

dominicanos e seus espíritos herdados, o que farei no segundo capítulo. 39

Conforme Strathern (1999, p.50), os Etoro não interpretam o crescimento e a forma da pessoa como

uma consequência direta da ingestão de comida comum. A autora afirma que foi nesse momento, ao

estabelecer uma imagem de algo preenchido com carne, que se deu conta que introduziu,

deliberadamente, a massa, um sentido de volume e peso, a solidez que os falantes do inglês associam com

a ideia de substância.

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vida adulta, recipiente da força vital de outros homens, até o momento em que se

tornaria doador, conferindo-a aos mais jovens. A força vital era transmitida às crianças

não-nascidas por meio do intercurso sexual, aos meninos através da inseminação ritual,

e a outros nas transações com conchas e carne, cuja doação era tida como equivalente à

transmissão (STRATHERN, 1999, p.49).

Guardadas as diferenças entre o que consiste a força vital para os Etoro e aquilo

que meus interlocutores chamam de força da pessoa – os espíritos recebidos de seus

antepassados – descrevo a circulação dos mistérios como um processo em que ‘pessoas’

são singularizadas. Para isso, é importante um exercício reflexivo em torno do que

consiste esse dom e como ele circula pela família. Para isso, eu não tomo, como

observou Carsten (2000, p. 1), o conteúdo do “parentesco” como garantido. O que faço,

seguindo as considerações dela, é tentar construir uma imagem das implicações e da

experiência vivida dessa forma de relacionar-se.

Chamo de ‘circulação do dom’ a transmissão dos mistérios de antepassados

familiares (vivos ou mortos) a seus descendentes. Aqui a família é compreendida como

uma configuração relacional produzida pela reprodução sexual e desta deriva a

reprodução social. Neste sentido, a compreensão dos meus interlocutores assemelha-se

‘parcialmente’ ao que vem sendo chamado de modelo cultural euro-americano do

parentesco (CARSTEN, 1995, 2000; BAMFORD, 2004). Parcialmente porque o que é

transmitido nessas famílias, ao mesmo tempo em que se assemelha a esse modelo

cultural, o torna mais complexo: trata-se de espíritos que também chegam a filhos e

filhas, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas.

Se a família é vista enquanto uma configuração ramificada de genitores

primários – e recupero aqui a imagem da árvore com raízes evocada por Gina –, o que

passa por ela não se limita a substância biológica. E isso apesar de o sangue ser evocado

como índice substantivo que explica as conexões familiares tanto do ponto de vista de

meus interlocutores dominicanos quanto de seus mistérios. Por ora, darei um exemplo

de como o sangue é mobilizado pelos primeiros. Mais à frente, de como os mistérios

também falam empregando essa noção.

Quando acompanhei Rosa a San Francisco de Macorís, na República

Dominicana, conversei com uma jovem que era conhecida na cidade como alguém que

sabe muito. Um primo de Rosa me levou para conhecê-la por causa das capacidades

divinatórias dessa jovem. Em sua casa, ela explicou-me que existiam pessoas que, como

era seu caso, tinham os mistérios para desenvolver. Outras, como eu mesma, tinham

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para cuidar de si. Quando eu lhe perguntei sobre como ela aprendeu suas capacidades

de adivinhação e comunicação com esses espíritos, ela argumentou que isso não se

aprende: é alguma coisa com que as pessoas nascem e vem da família. Ela ainda

argumentou comigo que herdou dos dois lados, materno e paterno, e assim me explicou:

– É algo que tem a ver com a raça, o sangue, ela me dizia enquanto apontava para as

veias de seu braço.

Chamar a atenção para essa maneira como se explica o recebimento do dom

espiritual é enfatizar apenas um tipo de transferência a que os mistérios se ligam. Como

a jovem de San Francisco de Macorís argumentou comigo – mas também Diogo, Rosa,

Gina e Joana –, essa transferência é localizada como um processo natural.

Mas é importante que eu faça a seguinte consideração: conceber os mistérios

como um dom inato no sentido de que alguém nasceu ou foi escolhido para ter esses

espíritos devido à sua conexão familiar não tem tanto a ver com uma concepção em que

aquilo que é natural se equaliza a algo dado ou espontâneo. Pretendo demonstrar que

meus interlocutores definem esse dom como sendo de ordem natural situando-se em um

ponto de vista muito particular. Essa naturalidade do dom espiritual se explica em

oposição ao que eles chamam de compra de espíritos (ou espíritos comprados).

Essa é uma prática ritual que permitiria a obtenção de mortos e dos mistérios por

meio de certos modos rituais caracterizados pelo contrato. Comprar os espíritos

contrapõe-se a recebê-los naturalmente porque, no primeiro caso, há a intencionalidade

humana de estabelecer relação com essas entidades.40

Assim, quando os meus

interlocutores dominicanos se referem aos mistérios como algo inato, o que pretendem

informar é que não foi uma decisão deles ter esses espíritos. Embora seus antepassados

familiares sejam os doadores do dom, à frente estavam os próprios mistérios (há quem

fale em Deus) na escolha das cabeças humanas que os receberiam.

Essa é uma perspectiva singular sobre o que é visto como o caráter natural

daquilo que foi recebido dos parentes que pertencem a gerações anteriores. Há ainda, no

entanto, espaço para outras compreensões. Para os meus interlocutores, o que está em

jogo não é apenas um processo de transferência de substância que garante a manutenção

40

A descrição de práticas sobre a compra, o pagamento e a coerção de espíritos, enfatizando a alienação,

o trabalho e o contrato, são aspectos comuns às etnografias contemporâneas que discutem cosmologia,

modos rituais e formas de socialidade no Caribe. Dois sistemas rituais vêm sendo, em alguma medida,

contrapostos na literatura. No Haiti, os rituais vodu radá (ligado aos espíritos familiares) e petro (nos

quais seria possível entreter relações de compra de espíritos, ainda que alguns dos espíritos petro também

se definam como herança familiar). Em Cuba, os sistemas religiosos da regla de ocha (culto yorubá) e

das reglas del palo monte (de fundamentos congo). Cf. RICHMAN, 2008; PALMIÉ, 2002; 2006.

Discutirei esses modelos rituais contrastantes no segundo capítulo.

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ritual dos espíritos porque com isso são gerados novos nascidos, novas pessoas. São

também modos diversos de “dispor”, enquanto atos intencionais de “trabalho social”

(STRATHERN, 1999, p. 46), que são transmitidos aqueles que têm espíritos. O que

quero dizer com isso é que tais seres humanos engajam-se em uma série de relações

sociais na medida em que assumem o cuidado e o trabalho ritual. São essas relações que

também passam para aqueles fazem parte dessas particulares famílas.

Sugiro que, no caso dos meus interlocutores dominicanos e seus mistérios, não

se trata de conceber a transmissão dos espíritos como um processo que garante a

continuidade de um vínculo unicamente substantivo. Seja esse vínculo entendido como

oriundo da reprodução biológica de indivíduos do “mesmo sangue” (intercurso tido

como natural porque os espíritos não foram comprados, mas vieram da família), seja

esse vínculo proveniente da obrigação ritual de alimentar os espíritos herdados enquanto

uma prática que seria inerente à família.

Possíveis aproximações com algumas leituras recentes sobre parentesco podem

oferecer pistas interessantes para o entendimento de noções como herança e transmissão

de substância. Crítica quanto à permanência de uma abordagem substantiva nos estudos

contemporâneos sobre o parentesco produzidos por Janet Carsten e outros autores,

Bamford (2004) observa que, apesar do aparente conforto que as noções kamea sobre a

transmissão de substâncias corporais do pai e da mãe poderiam ter frente aos princípios

do modelo ocidental, o que conta para a definição das capacidades de reprodução

feminina de uma menina vem de outros fluxos: dos presentes doados pelos afins do

noivo a partir da aliança entre primos-cruzados da segunda geração. Isso não é dizer que

os pais kamea deixam de transmitir substâncias aos seus filhos. Eles o fazem. A

diferença é que não são tais substâncias que permitem a uma menina amadurecer e gerar

sua própria prole, singularizando-se da perspectiva de um gênero. São as dádivas

recebidas da família do noivo, posteriormente dele próprio.

Os argumentos de Bamford orientaram minha releitura do importante trabalho

de Karen Richman na comunidade haitiana de Ti Rivyé, em Léogâne, Haiti. Lá o uso do

termo famni/eritaj celebrava o primeiro proprietário da terra na qual se viveu e cultivou.

Os membros da famni partilhavam os direitos da parcela fundiária e herdavam através

do sangue todos os espíritos antropomórficos servidos por aquele fundador (Richman,

2008, p.117-118). Para Richman (2008, p.157), seria difícil pensar a transmissão dos

espíritos alijada da prática de servi-los ritualmente nas terras familiares. Alimentá-los

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nesses espaços era a atividade constitutiva da eritaj (parcela da terra familiar) do grupo

de descendência.

Richman se ateve à relevância da prática de alimentar os espíritos herdados

(obrigação ritual) como um processo de produção por meio da qual são “criadas pessoas

e relações pessoais”, ainda que, para a autora, tal prática seja capturada por uma lógica

mais ampla: a partilha de alimento entre os próprios haitianos (seres humanos) é o que

se reflete nas interações com seus espíritos. “Alimentar é o símbolo que resume o

processo de produção – criando pessoas e relações pessoais – e não é surpreendente que

a alimentação envolva as relações rituais (RICHMAN, 2008, p. 157)”. 41

Mesmo considerando que alimentar – “servir os espíritos” em Ti Rivyé – é uma

prática em que são criados laços substantivos entre os membros da famni e seus

espíritos herdados e a terra, Richman parece conferir pouca relevância a que tipo de

compreensão sobre si alguém revela quando afirma “eu sirvo meus espíritos”.

Partindo das considerações de Bamford e do material etnográfico sobre os meus

interlocutores dominicanos e seus mistérios, pretendo demonstrar que não é apenas a

oferta de alimentos (substância), em troca do bem-estar da famni ou da restituição de

auxílio junto aos seus membros, que caracteriza a manutenção ritual dos espíritos

herdados. São também formas de socialidade – a isso meus interlocutores chamam de

trabalhar os mistérios – que são transferidas pelos antepassados e garantem a

continuidade dessas entidades no mundo dos vivos.

Além disso, mesmo nas descrições dos meus interlocutores dominicanos em que

estão em jogo práticas substantivas, a elas se articulam noções tão particulares sobre a

pessoa e seu corpo (concebido como algo disponibilizado para o consumo dos mistérios

e instrumentalizado por esses espíritos para o trabalho ritual com os clientes), que seria

difícil pensar aquelas práticas como opostas ao que Richman chama de

“contratualização da substância”.42

Em Ti Ryvié a transmissão dos espíritos pelos antepassados reivindica um

discurso sobre substância entendida como “sangue, alimentação e descendência”.

Mobilizando as considerações de David Schneider, em que substância tem a ver com o

41

De qualquer modo, Richman esteve atenta ao que Carsten (1995, p.223) descreve como um

componente vital no processo de tornar-se uma pessoa e participar dar relações sociais, a prática de dar e

receber alimento, como já salientei na Introdução. O que, em Ti Rivyé, foi descrito como incluindo a

alimentação ritual daquelas entidades face à singularidade do que significa aí ser relacionado a uma

fanmi. 42

Do ponto de vista dos interlocutores dominicanos, dentre as diversas modalidades de incorporação dos

mistérios, algumas geram uma experiência de destacamento entre a pessoa e seu corpo. Esse passa a ser

concebido como lócus de consumo dos espíritos. Discutirei essa questão mais à frente.

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que “é interno e inseparável da pessoa”, Richman constrói em sua etnografia a imagem

de que a reprodução da famni e dos espíritos herdados ao sucumbirem, socialmente e

ritualmente, a mudanças econômicas baseadas em diversas formas de alienação, passam

a depender de relações ou indivíduos intermediários (RICHMAN, 2008, p. 148).

Para Richman, alienar (ritualmente, inclusive) é uma consequência do que foi

gerado pela capitalização das terras da famni por empresas norte-americanas. Ao se

estabelecerem em Léogâne, essas corporações transformaram os camponeses haitianos

em trabalhadores imigrantes e produtores (mantenedores) dos camponeses e da cultura

tradicional.43

Sua crítica à economia ritual transnacional documentada na Flórida e em

Léogâne baseia-se principalmente na indicação do quanto de trabalho, especialmente

daqueles que emigram e tornaram-se mão-de-obra assalariada explorada pela

agroindústria nos EUA, incorpora-se às remessas enviadas aos seus parentes em Ti

Ryvié.

Com tais somas monetárias, em geral transferidas em dólar, os que ficaram no

Haiti procuram aplacar a fúria de seus espíritos, que se sentem esquecidos e

abandonados pela fanmi, especialmente pelos emigrados. Por isso é preciso alimentá-los

nas terras familiares. Para Richman, esse engajamento pretende garantir a mutualidade

entre seres humanos e seus espíritos, mas explicita interações em que os imigrantes nos

EUA aparecem como produtores de riqueza e seus parentes camponeses (e as entidades)

consumidores dela no Haiti. No entanto, reciprocidade não deve ser entendida como

altruísmo, tampouco ações econômicas com motivações economicistas (STRATHERN,

1999, p. 18-19).

Logo, considerar o material etnográfico sobre os meus interlocuotores

dominicanos e seus mistérios revela que são ‘pessoas’ concebidas enquanto ‘parentes’

que parecem incorporar em si mesmas um tipo de transferência especial. E essa não se

resume à substância, como discutiu Richaman. O dom que passa pela família – os

mistérios e as diversas formas de comunicação com eles – circula porque os

antepassados transmitiram não apenas substância (sanguínea e alimentar) a seus

43

Richman (2008, p.148) se refere à instalação da Haytian American Sugar Company e à capitalização

das terras familiares. Conforme ela, ao mesmo tempo em que a terra, elo de ligação entre os membros do

grupo de descendência e seus espíritos herdados, era comercializada, inventavam-se novas tradições

rituais em Ti Rivyé. Ela documenta as mudanças rituais que criaram a figura do intermediário ritual, o

gangan ason, entre os membros de um grupo de descendência e seus espíritos herdados, que passam a

consultá-lo, pois já não se comunicam através do sonho e da possessão com suas entidades; o ritual de

iniciação das mulheres, que pagam ao gangan ason para começar a invocar e servir seus espíritos do

grupo de descendência; e o ritual de retirar os antepassados familiares já falecidos debaixo das águas, e

objetificá-los como espíritos oraculares do grupo de descendência dentro dos altares domésticos.

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descendentes e a seus espíritos. Seus descendentes receberam, também, outros meios de

criar conexões com os espíritos, como venho enfatizando. Meios que não se limitam a

alimentá-los. Sobre isso sabia Gina quando me falou: – Meu avô, minha avó

trabalhavam os mistérios, e eu faço parte disso. Como será visto ao longo deste

capítulo e do segundo, dispor a outros (alienar) e pagar não são aspectos que Gina

experiencia como estranhos, sendo alguém que têm os mistérios, às suas conexões

familiares.

Trabalhar os mistérios propicia um modo de vida particular. Recebê-los

pressupõe engajar-se em várias relações sociais e na criação de diferentes artefatos.

Trabalhar significa que a interação pessoa e seus espíritos herdados não se encerra em

uma relação diádica (ou familiar), mas estende-se a outros, chamados de clientes. Como

salientaram Joana e Gina, esses espíritos pedem e por vezes fazem com que isso seja

inevitável. Com isso, as pessoas são levadas a pôr suas capacidades divinatórias à

disposição de terceiros. Elas lidam com os clientes por meio das consultas. Em troca,

são pagas por isso. Trabalhar quer dizer, ainda, organizar os altares para esses espíritos

no interior dos ambientes domésticos. Desse modo, os mistérios são atendidos

(alimentados), o que, por sua vez, demanda a compra e o acesso a uma infinidade de

substâncias e outros materiais, além da própria atividade de composição dos altares. 44

Além de atender (alimentar com os serviços rituais) os mistérios e trabalhar

(lidar com os clientes com as consultas), frequentemente nos altares domésticos as

pessoas preparam os trabalhos: geralmente objetos compósitos que entram na esfera

coletiva a partir de sua comercialização para os clientes. Tendo como objetivo criar ou

alterar o estado dos indivíduos e/ou das situações em que eles se encontram, os

trabalhos podem ser preparados com os espíritos montados ou não.

Para os meus interlocutores, a comercialização dos trabalhos, as relações de

pagamento com os clientes, a compra e o consumo de substâncias e outros materiais por

seus espíritos não são práticas rituais exteriores aos seus vínculos familiares. Todas elas

lhes chegam com o dom.

Da perspectiva das pessoas (e como discutirei no segundo capítulo, também da

dos mistérios), seria difícil sinalizar, como fez Richman, que relações e indivíduos

intermediários, com os quais elas e seus espíritos herdados interagem, seriam externos à

44

Por meio da criação dos altares são fabricadas para os mistérios temporalidades e espacialidades

específicas. Assim, tenta-se recuperar para os espíritos o que foi a sua existência em vida, como discutirei

no terceiro capítulo.

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cosmologia e à linguagem ritual aqui descrita. O fato de que gerações anteriores de

familiares tenham assumido compromissos com os mistérios, compromissos esses

definidos enquanto uma atividade quase sempre enunciada no tempo infinitivo –

trabalhar –, também cria as condições para que emerjam, potencialmente, novas

pessoas entre seus descendentes.

Se o dom é transmitido naturalmente, recebê-lo tem implícito, assim como um

dia esteve para os antepassados dos antepassados, a continuidade, a produção e o

desdobramento de várias relações (STRATHERN, 2009, 1999; BAMFORD, 2004).

Aí está um filho de um amigo meu. Aí há um filho de um amigo meu. Tu não

pode passar por baixo da mesa meu filho, porque teu, teu papai foi um fiel

filho e amigo dos mistérios. [...]. Tem a mesma cara, tem o mesmo sangue, e

tu tem que… [Belié Belcan fez um som com as mãos] Quando te digam: - Tu

és filho de fulano des tal [...]. Pois já. Dá-me um abraço. Como tu tá

garçon, bem? (Belié Belcan, 28 de setembro de 2010, Santurce.)

Decorria a festa de São Miguel Arcanjo, em que se celebra também o dia de

Belié Belcan, o mistério mais popular entre os dominicanos, quando esse espírito

alertou aos convidados sobre a presença do filho de um amigo seu. O rapaz caminhava

em direção a Belié Belcan, para cumprimentá-lo, enquanto o mistério lhe informava que

deveria assumir os espíritos de seu pai. Nesse momento, Belié Belcan destacou uma

‘relação’ entre ele (espírito) e o pai do rapaz como de amizade. A afinidade entre ambos

– e entre o pai do rapaz e outros mistérios – era em que consistia o vínculo transferido a

esse convidado da festa. Mas além da transferência da afinidade que o pai manteve com

os mistérios, Belié Belcan chamou a atenção para outro tipo de conexão que o rapaz

trazia consigo: ele tinha a mesma cara e o mesmo sangue. Para Belié Belcan, ele era

uma ‘pessoa’ vista a partir também da sua descendência linear: filho de outro filho dos

mistérios, e não somente de um amigo desses espíritos. Sem dizer exatamente como a

afinidade prefigurada (STRATHERN, 1999) e a continuidade sanguínea que

singularizam o rapaz como ‘pessoa’ deveriam ser por ele atualizadas, Belié Belcan lhe

antecipou, no entanto, um porvir.

1.3 INCORPORANDO O PARENTESCO

São momentos desse processo de atualização do dom, em que relações

prefiguradas se efetivam por meio de certos arranjos coletivos em que estão em jogo a

convivência e interação com os mistérios e outros seres humanos (inclusive os clientes),

mas também a confecção de objetos compósitos a serem comercializados e a recriação

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de certos tempos e espaços nos ambientes domésticos das pessoas, que minha etnografia

captura.

Descrever as maneiras diversas como aqueles que se tornaram meus

interlocutores dominicanos e seus mistérios se relacionam em Porto Rico é, também,

trazer à tona (e em alguma medida imaginar) existências múltiplas de muitas outras

‘pessoas’: os mistérios, concebidos como espíritos que tiveram uma existência histórica

(pessoas que viveram como nós, como Gina me explicava), e os antepassados

familiares. Dentre elas, algumas não foram meus interlocutores diretos. Mesmo assim,

de maneira indireta, estão presentes nas interações e narrativas que conheci e relato.

Atualizar o dom, como a partir de agora descreverei, revela o que essa particular

forma de parentesco pode criar – a ‘incorporação da relacionalidade’ – e o que isso

significa para as pessoas.

1.3.1 Montar ou subir: percursos do dom no corpo

No caso de Gina, atender e trabalhar os mistérios são os modos rituais que ela

incorpora há nove anos. Por um lado, é assim que se atualiza o tipo de conexão familiar

da qual ela faz parte.45

Mas dizer que Gina incorpora, em seu cotidiano, relações de

trabalho ritual (e não apenas substância hereditária) porque receber um dom não é tudo.

Ela conhece outros fluxos corporais, que não terminam com a transferência dos espíritos

familiares. Esses fluxos, na verdade, desdobram-se a partir do engajamento dela com

seus mistérios.

Vários mistérios se incorporam à Gina. Montar ou subir são as categorias dos

meus interlocutores que descrevem a modalidade mais explícita da ação dos espíritos

sobre o corpo de uma pessoa que têm os mistérios.46

A modificação do comportamento,

do tom da voz, por vezes da tonalidade da cor da pele e dos olhos, das roupas, dos

objetos, adornos e gostos, e, em alguns casos, a assunção de modos animais, caracteriza

o que vem sendo chamado na literatura antropológica de possessão.

Gina trabalha os mistérios geralmente montada. E ela se refere a essa

modalidade de incorporação como subir porque começa a sentir os mistérios pelos

45

Como discutirei no segundo capítulo, esses modos rituais correspondem igualmente ao fortalecimento

da pessoa. Portanto, vão além de um compromisso que efetivaria apenas relações passadas. É com esse

engajamento que se produz a vitalidade diária de meus interlocutores dominicanos. 46

No entanto, é comum os interlocutores dizerem ele monta os mistérios ou eu subo um mistério; uma

inversão do sujeito da ação, que deixa de ser os espíritos e se torna a própria pessoa, assunto que será

discutido no próximo capítulo.

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pés.47

Os espíritos então percorrem seu corpo: chegando ao estômago, passam pela

garganta em direção à sua cabeça (o que ela me indicou pondo sua mão na nuca). A

percepção que Gina passa a adquirir quando um mistério sobe permite-lhe descrever um

percurso desses espíritos por seus órgãos até que ocupem seu corpo. Para ela, os

mistérios localizam-se no estômago da pessoa, mas somente naqueles que os têm

naturalmente.

Contudo, não se trata apenas de uma sensação interna: – Quando um mistério

sobe, eu sinto um do lado direito, outro do lado esquerdo e um em cima, Gina me disse,

enquanto apontava para as laterais de seu corpo e espalmava as mãos em frente a ele. O

dom que ela incorpora produz, ainda, uma percepção espacial tridimensional. Embora

três mistérios fiquem ao seu redor, um em particular a transforma em cavalo, termo

empregado por esses espíritos para se referir às pessoas a que se incorporam.

As descrições de Gina sobre esse percurso interior dos mistérios aproximam-se

da proposição de Augé (1986, p.164) quando propõe que se imagine “o que é o percurso

dos deuses em direção ao homem”. Para ele, o próprio corpo humano poderia ser o

ponto de partida do vodu (espírito) entre os Fon, e dos ancestrais familiares, que se

localizam no dedão do pé entre os Yorubá.48

De acordo com os primeiros, se o que é

específico à divindade é “entrar na cabeça”,49

seria no rim que o vodu se encontra.

Entre os Fon e Yorubá, unções e sacrifícios são prestados aos órgãos e membros do

corpo por causa da força espiritual neles acolhida.

Para Augé, apesar de uma visão cíclica informar as narrativas míticas e os

discursos sobre a entrada dos ancestrais divinizados do exterior na cabeça dos fiéis, a

ideia de que o vodu e os antepassados yorubá estão nos órgãos permite pensá-los como

“potências e qualidades físicas incorporadas”, geralmente herdadas. Baseando-se nesses

47

Armando, outro interlocutor dominicano que monta os mistérios, que conheci na botânica em que Joana

realizava as consultas, também sente os espíritos inicialmente como um formigamento nos pés. 48

Cartry (1973, p.27), em publicação sobre a noção de pessoa na chamada África Negra, destacou que

vários pesquisadores acentuaram a importância de modelos de tipo biológico nas ideias africanas relativas

à estrutura da pessoa. Em algumas dessas sociedades, a criação humana seria descrita mais em termos de

um modelo biológico do que de uma fabricação artesanal. Para Cartry, isso explicaria as concepções de

que na placenta estariam inscritos alguns princípios espirituais entre os Mandinga, Yorubá, Ewé e

Gourmantché. Verger (1973, p. 62-63), por exemplo, chama a atenção que o orí, termo yorubá para

cabeça e que significa o local corporal onde a inteligência é assentada, ou ainda, o “guardião da alma dos

ancestrais”, retorna para a mesma família quando há um novo nascido. Ou seja, uma das dimensões

espirituais de uma pessoa yorubá, seu orí, também seria recebido por hereditariedade. Segundo o autor,

um culto ao orí, ou seja, a essa parte do corpo, era feito com oferendas, tendo início com o rei de uma

cidade e se estendendo por personalidades e titulados locais. Já a dimensão da pessoa mais conhecida

entre os yorubás, o òrìsa (e, conforme Verger, o vodun para os fons), seria “... ancestrais distantes cuja

lembrança foi mais ou menos perdida na noite do tempo e cujo caráter divino é sobretudo retido por seus

descendentes atuais” (Verger, 1973, p. 69). 49

« Car si les Fon disent que le propre de la divinité est de « monter à la tête » de ses fidèles... »

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cultos, Augé sugere que, para ambos os fiéis, a reflexão e experiência sobre a alteridade

são produzidas fundamentalmente através de seus corpos, dos quais os Fon e Yorubá já

teriam se distanciado à medida que neles hospedam-se outros (AUGÉ, 1986, p.186).

A proposta de Augé de que a reflexão sobre a alteridade seja associada a tal

forma de incorporação espiritual me serve para pensar o que significa subir um mistério

para Gina. Não porque para ela seu corpo é anatomicamente constituído por potências

espirituais no mesmo sentido que entre os fiéis Fon e Yoruba. Embora Gina tenha me

dito certa vez que os mistérios estão no estômago, não tenho mais informações de

outros interlocutores sobre isso. E ela não se estendeu sobre o assunto.

O que saliento é que suas descrições sobre essa forma de incorporar os mistérios

demonstram o distanciamento que ela consegue tomar de seu próprio corpo. Sentir os

mistérios o percorrendo é assumir a perspectiva de quem pode falar de si ao mesmo

tempo em que se sabe que alguma outra coisa (neste caso, espíritos) transita em seu

interior. Se trabalhar esses espíritos é uma maneira ritual de efetivar relações familiares

anteriores, de singularizar-se como ‘pessoa’, o caso de Gina aponta para experiências

diversas que são sentidas internamente em seu corpo. Ela se singulariza porque recebeu

certos fluxos (de sangue e de trabalho ritual), mas também porque através deles

incorpora ainda sensações e percepções outras: ligadas a ação dos mistérios sobre ela e,

como descreverei adiante, às particularidades que cada mistério cristaliza. É lidando

com experiências sobre alteridade e produção de afetos e disposições múltiplas em seu

corpo que Gina se conhece enquanto uma ‘pessoa’.

Escrevendo sobre as reglas del palo, Ochoa (2004, p. 25, 39, 40, 41) destacou

que boa parte de seu aprendizado com sua interlocutora palera foi procurando entender

o que ela encontrava em suas “entranhas” e na sua pele. 50

De acordo com ele, ela estava

atenta aos “eventos” em seu corpo e sobre sua superfície como a ativação de seu

coração, a falta de ar, os arrepios e calafrios cruzando seu pescoço. Sob a insistência

dela, sua expectativa (simbólica) quanto ao que ela lhe narrava deu um salto

epistemológico. Compreender o pensamento dela requereu dele considerar literalmente

o que ela lhe dizia: que os mortos estavam em suas entranhas.

Segundo Ochoa, ela considerava as experiências tais como a falta de sono e

aflições não como “signos” dos mortos em seu corpo, mas como avatares dos próprios

50

Sacerdotisa (palero, o sacerdote) de um sistema religioso afro-cubano chamado de reglas del palo, de

“inspiração” congo, como Ochoa prefere definir, sobre o qual darei mais informações no segundo

capítulo ao discutir as prestações rituais que os meus interlocutores dominicanos oferecem aos mistérios.

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mortos. As descrições dela de tais momentos perturbaram o que para ele era uma

oposição familiar entre corporalidade e significação (corpo e significado, matéria e

conceito). Conforme Ochoa, sua dificuldade em entender a experiência dela foi fundada

em hábitos do pensamento que lhe falavam que a experiência não poderia ser

simultaneamente visceral e intelectual. Ele se baseva em uma compreensão sobre um

modo dualista do ser, que postulava que uma relação entre víscera e intelecto era

mutuamente exclusiva. No entanto, nas explicações dela, víscera e intelecto eram

mutuamente afirmadas sem contradição, Ochoa afirma. Para ele, compreender os

mortos como uma sobreposição de sensação conceitual e visceral é crítica para

compreender a expansão global e a ubiquidade dos mortos no pensamento cubano-

congo.

Eu diria que tal sobreposição não existe apenas para os praticantes das regras del

palo. E, ainda, que a maneira como nós (antropólogos) lidamos com isso indica que

definimos eixos analíticos diferenciados. E não que os nossos interlocutores

desconheçam tais experiências. Ochoa se apropria das descrições de sua interlocutora

para evidenciar que os mortos são sentidos como forças ubíquas e ambíguas no limite

onde razão e sentido corporal eram mutuamente afirmados, anteriores à identificação,

“mais do que indivíduos”. Eu procuro chamar a atenção para os “eventos” que são

produzidos quando os mistérios percorrem o corpo e o ocupam completamente, e para

aqueles em que certas sobreposições não se completam. Com isso, pretendo enfatizar as

categorias que os meus interlocutores mobilizam quando experienciam as incorporações

dos espíritos e como essas categorias permitem que eles se concebam como certas

pessoas.

Uma dessas concepções sobre a pessoa que tem os mistérios tem a ver com a

possibilidade de separação que elas exprimem entre a capacidade de falar de si sabendo

que seu corpo não está completamente integrado a um único eu.51

Essa experiência

sensível revela uma forma de conhecer a alteridade que emerge e se consolida na

medida em que os espíritos são assumidos e passam a entreter relações de trabalho ritual

com aqueles que receberam o dom. Nesse sentido, argumento que esses engajamentos

corporais cotidianos revelam que se particularizar como uma pessoa que têm os

mistérios poderia ser visto como um duplo processo de incorporar e separar/destacar.

Com isso, eu não tomo a incorporação como um processo que somente atualiza laços de

51

Os mistérios produzem esse afastamento, falando da perspectiva de quem monta um corpo.

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afinidade entre seres humanos e espíritos. O que gostaria de propor é que atualizar o

dom é recriar de novo essas relações (e outras) conhecendo experiências de

instabilidade, variação e dissociação, o que, em alguns casos, implica a criação de

marcas de violência pelos mistérios no corpo das próprias pessoas.

Lambek e Strathern (1998, p. 6-7) propuseram uma abordagem que funciona

como um horizonte de análise para as descrições como as de Gina. Na introdução a uma

coletânea sobre as noções de pessoa e corpo na África e na Melanésia, eles se

perguntam como o corpo pode sintetizar e simbolizar noções de pessoa e relações,

conexões e desconexões, dependência e independência, dividualidade e individualidade,

autonomia e hierarquia. Além disso, quais seriam os limites do corpo nesses

empreendimentos.

Seguindo Csordas quando defende a importância de uma abordagem

fenomenológica para a condição da incorporação, Lambek e Strathern (1998, p.14)

reafirmam a crítica de que o corpo não deve ser visto como algo garantido e objetificado

em si mesmo. Para eles, a fenomenologia oferece um status ativo e positivo ao corpo.

No entanto, ambos relutam em referir-se a ele como um “agente da experiência”, como

faz Csordas. Se o corpo tem agência, Lambek e Strathern (1998, p.25).observam, os

agentes são pessoas incorporadas.

Com isso, o que os dois autores enfatizam é que os processos de incorporação e

objetificação ou de incorporação e subjetificação sejam considerados momentos

privilegiados para a compreensão de como aqueles pares conceituais se viabilizam. Da

abordagem fenomenológica de Csordas eles recuperam a noção de pré-objetivo (que é

importante também na discussão de Ochoa). Querem, desse modo, indicar um campo de

experiências antes que se tornem completamente “culturais”. Para Lambek e Strathern

(1998, p.14-15), essa formulação é útil porque fornece uma “gênese” para as práticas

incorporadas, que precisam ser objetificadas para que gestos, por exemplo, transmutem-

se como símbolos de valores.

Recuperar essa discussão de Lambek e Strathern é interessante porque eles

procuram tornar visível certa indeterminação entre o que pode ser incorporado e

objetificado quando são consideradas as etnografias sobre corpo e pessoa na África e na

Melanésia de um ponto de vista comparativo. De acordo com os autores, “o que é pré-

objetivo em um lado pode tornar-se objetificado em outro; o que não é enfatizado em

um pode tornar-se central em outro” (LAMBEK e STRATHERN, p.15).

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Nesta etnografia sobre os meus interlocutores dominicanos e seus mistérios,

incorporação e objetificação podem ser mapeadas não apenas entre pessoas e corpos,

mas também entre corpos e mentes e pessoas e espíritos. Como indicou Lambek (1998,

p. 109), ao defender que corpo e mente não são opostos empíricos ou lógicos, mas sim

incomensuráveis que falham em fazer inteiramente contato, “a mente não é

simplesmente a ausência do corpo, nem o corpo a ausência da mente”.

Como procurei enfatizar com as descrições sobre o percurso dos mistérios no

interior de Gina, subi-los, enquanto uma prática incorporada, sustenta uma junção

interna que permite uma disjunção significativa. Gina percebe o trajeto dos espíritos por

seus órgãos. Com isso, consegue falar da perspectiva de quem se distancia do que se

passa nele. Mas essa separação inicial que ela consegue produzir entre si e seu corpo,

enquanto ele está sendo percorrido pelos mistérios, pode revelar compreensões

significativas sobre o que implica ser alguém que incorpora certas conexões familiares.

Compreensões que, eu proponho, tornam mais densas o que pode significar ser uma

‘pessoa’ múltipla ou que agencia variadas vozes.

É sobre a possibilidade de tais arranjos, caracterizados ora por experiências

descritas em termos de destacamento, ora de confluência, que emergem as noções de

corpo e mente e pessoa e espírito entre meus interlocutores. Não explicitamente

dicotômicas, as narrativas que apresentarei parecem descrever dinâmicas em que cada

um desses pólos se liga e se separa produzindo experiências que remetem à invasão, a

sobreposições relativas e vontades incongruentes, à falta de liberdade e ao exercício de

poder, àquilo que escapa e surge como inesperado.

1.3.2 Objeto e Cavalo

Na ocasião em que Diogo narrou o episódio em que Anaisa subiu nele, ele me

disse: – Os mistérios são espíritos que entram nas pessoas, que tomam conta da mente

das pessoas... as pessoas são objeto. Perguntei-lhe, então, como ele descobriu que tem

esses espíritos: – Eu sinto minha mente, meu corpo, Diogo me respondeu.

Para ele que experiencia interações com seus mistérios em grau e frequência

diferentes de Gina, corpo e mente são sentidos como mais ou menos indistintos. No

entanto, assim como ela, ele também é capaz de se pensar a partir de um afastamento de

seu corpo, que os mistérios transformam em um objeto.

Eu também me encontrava em uma botânica (onde trabalhava Joana e não

Rosa), quando um cliente dominicano, que morava em frente à loja, foi ali à procura de

mercadorias. Ele pretendia afastar os mortos que o rondavam comprando alguns

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produtos. Na conversa sobre a presença dessas entidades espirituais junto aos seres

humanos, Joana lhe explicou que um mistério quando chega, ele se mete no corpo [da

pessoa].

Para Gina, Diogo e Joana, a transposição de suas delimitações corpóreas pelos

mistérios parece assemelhar-se a uma sensação de intrusão. Esses espíritos fazem do

corpo objeto, metem-se nele, percorrem os órgãos. O fato de que essas entidades são

concebidas como próprias a uma configuração relacional entendida como família nem

impossibilita experiências sobre alteridade, tampouco impede algumas formas de

objetificação em que o corpo e/ou a mente são sentidos como destacados de si quando

ocupados por esses espíritos.

Os mistérios tornam-se assim espíritos familiares especiais. Sua internalização

corporal parece ser a base sobre a qual é possível, para meus interlocutores

dominicanos, falar de diferença e separação. No entanto, são múltiplas as vozes capazes

de emergir quando um mistério sobe. E isso provoca junções e disjunções não apenas do

ponto de vista das pessoas sobre corpo e pessoa e corpo e mente, como salientaram

Gina, Diogo e Joana. Também do ponto de vista dos mistérios, incorporação e

objetificação podem assumir novos sentidos. Para essas entidades estão em jogo espírito

e pessoa, ou, mais precisamente, espírito e seu cavalo.

Belié Belcan: Aí Joaquim, o cavalo não sabe nada, quem […] sou eu.

Ouviste? O cavalo, […] a dizer ao cavalo se ele não sabe nada. É verdade.

Cavalo não sabe nada. O cavalo, somente eu […] sei eu. Nada sabe o

cavalo, nada. Se eu não lhe dou a mensagem […]. O cavalo não sabe nada.

Desde que queira dizer com a língua, o que o cavalo somente lhe diga, quem

encontra ela não me encontra tampouco.

Durante aquela festa para São Miguel Arcanjo/Belié Belcán, a que já fiz

referência, um convidado mais idoso fez um comentário sobre a anfitriã, Dina, ou talvez

sobre o que ela sabe. Isso em tom baixo, discretamente, pelo menos aos meus ouvidos e

ao alcance do gravador. No entanto, Belié Belcan imediatamente retrucou.

Categoricamente, esse espírito salientou uma relação assimétrica entre Dina e ele. Para

Belié Belcan, o cavalo não sabe nada. O convidado se equivocava ao supor que a fonte

do saber de Dina reside nela mesma.

A instrumentalidade dela era flagrante. A transmissão das mensagens a outros

(incluindo os clientes) ocorria apenas porque o espírito fornecia-lhe isso. Do ponto de

vista de Belié Belcan sobre o que ocorre com Dina, incorporar os mistérios significava

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simultaneamente objetificá-la de tal maneira que o corpo dela não estava a serviço de

sua própria mente. E a explicação do mistério foi contundente: o que o cavalo quisesse

dizer somente com a sua própria língua não conta com Belié Belcan. Quem encontra

apenas com Dina, não encontra esse espírito.

Mas Belié Belcan não tratou apenas de uma divisão entre o corpo de Dina e a

mente (ou o espírito) que lhe introduzia conhecimento. Da sua perspectiva de mistério

montado, Dina, uma senhora com mais de setenta anos, teve a sua condição alterada.

Ela fora glosada por ele como cavalo. Se, como argumentei inicialmente, um dos

significados dessas práticas incorporadas, do ponto de vista da pessoa, é a possibilidade

de separação entre a capacidade de falar de si sabendo que seu corpo não está

completamente integrado a um único eu, do ponto de vista dos mistérios, falar da

perspectiva de um espírito que monta um corpo é construir outras distinções: sobre os

próprios mistérios e as pessoas que têm esses espíritos. A autoria do que se fala e a

autoridade de quem o faz distinguem e hierarquizam mistério e pessoa (ou, antes,

cavalo). Uma distinção que ocorre simultaneamente à incorporação. 52

Colocar-se à disposição de Belié Belcan, aqui, já seria uma forma de separar-se

de si (alienar, se quisermos) que não é estranha à lógica da transmissão dos mistérios

como algo natural. Como venho enfatizando, o que Richman demonstra em suas

descrições sobre as mudanças rituais em Léogâne como uma tensão entre aquilo que é

entendido como “substância” (algo interno e inseparável) e o que é “contrato”, os meus

interlocutores dominicanos incorporam em si mesmos porque receberam um dom dos

antepassados familiares. Sugiro que para meus interlocutores dominicanos, não se trata

de dois modos rituais que se confrontam, mas de uma maneira singular, híbrida e

instável, de se conceberem enquanto pessoas.

E aqueles que têm esses espíritos concebem essas relações como tendo muito de

desconhecido: – Os mistérios são um mistério, Joana me dizia. Ninguém entende bem

eles, as pessoas sabem o que têm que fazer [referindo-se a como os espíritos devem ser

atendidos], mas, são um mistério, ela enfatizava. Por diversas vezes ela afirmou que se

não trabalhasse os mistérios morreria e os espíritos reencarnariam em outra pessoa.

Sua substituição nesses termos, o que ela dizia ser uma forma de punição dos mistérios,

era tida como certa. Mas Joana também demonstrava incompreensão. Não entendia o

52

Lambek (1998, p.115-116), por exemplo, observou isso ao destacar que a incorporação da persona de

um Marinheiro (espírito francês do período pré-colonial) por um médium de Mayotte habilita esse

espírito a falar sobre “Madagascar” e “os Malagasy” como um “objeto”, da perspectiva de quem havia

sido em vida de certa forma um estrangeiro no que veio a se tornar uma nação.

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porquê de viver dessa forma: ser remunerada com as consultas espirituais e a preparação

dos trabalhos, ter de receber os clientes, bem como ver boa parte de seu cotidiano

organizado pela interlocução com os mistérios.

A experiência de desconhecimento, no entanto, não era apenas de Joana.

Antonio e Maria eram um casal de dominicanos e também moravam em Río Piedras.

Eles eram proprietários de uma firma de extintores e trabalhavam os mistérios, sendo

pagos para isso, embora tenham salientado que não dependem economicamente das

consultas. Em uma visita a casa deles, Antonio argumentou comigo: – É difícil explicar

[a relação com esses espíritos]... Ele mesmo não saberia direito como as coisas

acontecem. Ambos sabem que os mistérios chegam e podem se comunicar com eles

através de seus corpos, mas a incompreensão também fazia parte de tudo isso.

1.3.3 Há uma metresa em cima

Com um baralho de cartas espanholas, um pequeno sino (utilizado para chamar

os mistérios) sobre uma modesta mesa, uma cruz de madeira pendurada na parede e

portando um maço de cigarros – para fumar caso Anaisa se apresentasse durante

alguma consulta –, Joana começava a trabalhar na botânica.

Quando os clientes chegavam à procura de uma consulta, Joana os conduzia até

um espaço reservado, atrás da parede em que se encontravam as prateleiras com as

mercadorias. Era comum que logo após sua entrada no estreito ambiente, fosse ouvido o

som do sino. Às vezes, suavemente, em outros momentos com mais intensidade. Como

eu havia notado que não era para todos os clientes que ela o tocava, perguntei-lhe certa

vez como ela decidia para quem soar tal objeto. São eles [os mistérios] que o agarram e

tocam, Joana me respondeu.

No decorrer das consultas, ela produzia para os clientes o que chamava de

receita: uma lista em que escrevia o que era necessário ser comprado para resolver o

problema que lhes afligiam. Os casos sobre bruxaria eram tão recorrentes quanto os

pedidos para que fossem feitos trabalhos de amor e as perguntas sobre a vida presente e

futura.

Observar sua performance gerou uma inquietação em mim: como Joana sabia o

que deveria receitar para cada cliente? Depois que a indaguei sobre isso, ela me

respondeu: – Não é que eles [os mistérios] sabem o que há na botânica. Santigua-se a

carta em nome dos mistérios e se sai na carta, então se escreve mais ou menos o que a

pessoa necessita pelo que sai na carta, Joana respondeu. E depois observou: – Eu tenho

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que escrever porque quando saio [do espaço da consulta] não me recordo. Você não viu

que quando saio me esqueço?

Joana já teve seu altar para a invocação dos mistérios no interior da botânica,

naquele espaço onde realizava as consultas. Mas o desfez havia certo tempo. Logo que a

conheci questionei-lhe sobre a ausência do altar na loja. Eu já sabia que atender e

trabalhar esses espíritos dependem da organização dos altares. –Eu os tenho [os

mistérios] em cima, ela argumentou. Por isso não precisava do altar na botânica.53

Nas ocasiões em que recebia clientes masculinos, três ou quatro homens que

sempre a procuravam e, às vezes, entravam na botânica praticamente um atrás do outro,

Joana comentava consigo mesma em voz alta: – Há uma metresa hembra em cima que

só me manda homem!54

Anaisa era de quem ela falava.

Montar ou subir não é a única forma de incorporação dos mistérios. Ter os

mistérios em cima ou ter os mistérios em cabeça descreve outra modalidade de

incorporação desses espíritoas às pessoas. As transformações são mais sutis. E a

amplitude dos espíritos no corpo humano parece concentrar-se em um único órgão, a

cabeça, e não difundir-se por todo o corpo, como relatou Gina ao descrever que os

mistérios sobem em sentido vertical, percorrendo seu corpo de baixo para cima.

Aquelas duas expressões descrevem uma percepção de que sobre a pessoa há um

espírito criando uma espécie de sobreposição em seu corpo, um tipo de composição

híbrida. Pessoas e espíritos incorporam-se relativamente. E não absolutamente, como

acontece quando meus interlocutores dominicanos mobilizam o termo montar.

Mas isso não a torna um cavalo dos mistérios. Com um mistério em cabeça uma

pessoa tem a capacidade de conversar, comentar e fazer revelações sem que seus

interlocutores tomem conhecimento de que são os mistérios quem lhes falam. – As

pessoas [os clientes] não se dão conta de que são os mistérios que lhes dizem, foi o que

Joana comentou comigo depois de uma consulta solicitada por um jovem advogado

porto-riquenho que vivia nos EUA. Ele queria se candidatar a governador de Porto

Rico, mas foi aconselhado pelos mistérios a esperar o próximo pleito. Pois, de acordo

com esses espíritos, o momento ainda não era adequado.

Gina também mencionou esse tipo de incorporação enquanto conversávamos

com Joana na botânica. No dia anterior, ela contava-nos que uma mulher foi até a sua

53

Joana mantinha seu altar no quarto dos santos, maneira como os meus interlocutores dominicanos

chamam o cômodo reservado aos mistérios no interior da casa. 54

Certa vez, ao lhe perguntar o que era uma metresa, ela me disse que É uma santa feminina.

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casa para uma consulta. Aceitando fazê-la, Gina começou a dizer à cliente o que essa

desejava saber. Mas eles [os mistérios] não quiseram subir, ela ressaltou.

Ao fim da consulta, Gina se dirigiu ao interior de sua casa, em direção ao altar e

eles já estavam lá. Então Gina argumentou comigo e Joana que, às vezes, os mistérios

chegam ao altar antes que ela vá até lá. Além disso, seria comum que antes de alguém

chegar à sua casa, tais espíritos já o soubessem. Com o fim da consulta, a cliente foi

embora: – Um mistério se subiu e tomou uma garrafa de Brugal (rum dominicano),

Gina comentou conosco. – Às vezes eles não querem subir para certas pessoas. Dão

cento e setenta voltas, mas não sobem, interferiu Joana.

1.3.4 Não governo de si

Quando Gina e Joana observaram que os mistérios não quiseram subir diante da

cliente, elas apontaram para uma dimensão importante desse convívio relativamente

incorporado. Questões relacionadas à vontade e à liberdade, mas também ao

indeterminado e ao que lhes escapa fazem parte da maneira como as ‘pessoas’ se

concebem ao incorporar esse dom. Ao falarem de si dando ênfase a essas experiências,

os meus interlocutores chamam a atenção para modos de vida que, através de seus

corpos, são constantemente problematizados. Eles questionam o poder desses espíritos

herdados sobre eles e os limites que lhes são colocados como pessoa que têm os

mistérios.

Gina me explicava que há espíritos que fazem trabalhos utilizando o sangue, o

coração e a língua de animais como cabrito e vaca, além de objetos como agulha e

prego, bruxaria, ela definiu. Argumentando que ela não faz isso, disse-me que mesmo

assim há momentos em que se vê sem saída: – Alguns mistérios me põem sentada no

altar [montada] e fazem esse tipo de trabalho.55

Lembrei-me, ao ouvi-la, do comentário

que meses antes Diogo fizera sobre sua tia, que não ficava bem quando os seres se

punham. Isso a levou a não querer os mistérios herdados da avó dele, Diogo salientou

na ocasião.

A descrição de que os mistérios se põem tem a ver com a resistência que as

pessoas exprimem em permitir que os espíritos as montem. A intenção delas, entretanto,

parece ser solapada. Gina fala sobre a falta de controle sobre seu corpo, mas também

sobre a irrelevância de sua vontade diante do que foi produzido – um trabalho de

bruxaria – depois que determinado mistério se colocou nela. Em seu caso, a

55

Meus interlocutores geralmente atribuem esses trabalhos aos espíritos petroses.

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incorporação embora completa do ponto de vista da ocupação do corpo de Gina, gerou

uma dissociação total: entre o espírito e a pessoa – Gina era simplesmente o objeto, o

cavalo, mobilizado pelo mistério – e entre as disposições, os desejos, de ambos.

Foi mostrando-me a marca de um corte em seu ombro que ela narrou outra

experiência de dissociação entre seus desejos e os de outro mistério, mas também de si e

de seu próprio corpo. – Isso foi para pagar-lhe, a São Santiago, um serviço que ele fez

para uma mulher dominicana, que não lhe pagou, Gina me dizia. Ogun Balendyó feriu

Gina, seu cavalo, como forma de punição pela falta de um pagamento que não foi

cumprido com esse espírito.

Uma cliente dominicana havia procurado Gina para a realização de um trabalho

espiritual. Após a consulta com Ogun Balendyó montado em Gina, ele lhe deixou no

altar uma advertência escrita. Recomendava que não fosse preparado o trabalho para a

cliente, pois a mulher não realizaria o pagamento por isso. Gina, que decidiu ajudá-la,

fez o trabalho, desconsiderando o aviso do mistério. E a cliente não pagou. Até então a

vontade de Gina foi preponderante

No entanto, quando Ogun Balendyó montou Gina novamente, fez um corte em

seu ombro, do qual escorreu sangue o suficiente para assustar seu marido, que estava no

altar junto com esse mistério. Diante da agressão, o marido de Gina exasperou-se. Aos

gritos, disse ao mistério que ele não iria mais ali. Ogun Balendyó então argumentou que

Gina não sentiu a dor do corte, nem viu o ferimento sangrando. Sua intenção era fazer

com que ela pagasse pelo trabalho, já que a cliente não o fez. Visualizar a cicatriz em

seu corpo seria a lembrança de tal pagamento.

– Quem trabalha isso não se governa, é como uma criança a quem se diz: Sente

aí! Foi nesses termos que Gina me falou sobre as situações, não tão radicais como a

descrita acima, em que sentada em frente à mesa principal de seu altar, dirige-se às

imagens e pergunta ao santo onde veria colocar-lhe, que então lhe diz ali.

Durante a preparação de um trabalho para uma cliente porto-riquenha, percebi,

ao observar Joana, uma diferença em seu comportamento. Sentada diante da mulher, sua

cabeça cambaleava um pouco para trás, como se estivesse tonta. Em seguida ela passava

a mão pela testa e se mantinha de olhos fechados. Ao terminá-lo, Joana liberou uma

interjeição, algo cujo significado me escapa à escrita.

Eu queria entender o que havia acontecido. Joana manipulou um spray, óleos,

velas e objetos pessoais levados até a botânica pela cliente. Além disso, Joana lidou

também com substâncias corporais da mulher, que as retirou de seu próprio corpo

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quando, por alguns minutos, saiu do espaço onde estava Joana e se encaminhou para os

fundos da botânica. Joana tocava o sino em diferentes momentos da preparação do

trabalho. Depois que a cliente foi embora, incitei uma conversa.

Joana falou-me que estava longe enquanto preparava o trabalho para a cliente e

que Santa Marta que estava ali. Essa metresa apareceu porque Joana a invocou para o

trabalho. Mas ela se subiu sem pedir permissão. A senhora… Sem pedir permissão!,

Joana novamente acentuou.

Joana pretendia trabalhar os mistérios (ou pelo menos essa era a sua expectativa)

por meio de uma alguma forma de controle sobre seu corpo. Sentir que um mistério

subiu sem pedir permissão era uma experiência delicada, mas não apenas para ela,56

que

evitava ao máximo demonstrar qualquer sinal de transformação corporal por causa da

proximidade desses espíritos. Como certa vez ela me disse, desde jovem sentia

vergonha disso.

Algumas vezes escutei e observei Joana falar do quão inesperado, quando não

assustador, era sentir que os mistérios subiram ou vê-los em sua forma física se

apresentando a ela. Até que, enquanto conversávamos, ela categoricamente afirmou: –

Quem tem esses mistérios têm que viver quase sozinho. Ela dizia-me que gostaria de

atender os mistérios, mas sem receber as pessoas em casa, fazer os trabalhos... Isso não

lhe agradava: – Eu peço a Deus que retire um prêmio [na loteria] para deixar isso,

porque quem tem os mistérios não tem vida própria, não se governa.

O que Gina e Joana definem como essas experiências de não-governo de si

mesmas pode produzir ainda um corpo marcado fisicamente pela ação dos mistérios.

Para além da visão mais radical de que o corpo é simplesmente inutilizado com a morte

se uma pessoa se recusa a trabalhar esses espíritos – concepção que perpassava sempre

os comentários de Joana –, ele se torna lócus de memória sobre o poder exercido por

tais espíritos. Como a própria Gina me descreveu, o corpo da ‘pessoa’ pode se

tranformar em lugar de memória de uma relação contratual que havia gerado um débito

com esse mistério.

56

Gina contou-me que se ela ingerisse um pouco de rum quando estava na rua era o suficiente para que se

subisse um mistério, depois outro, depois outro... Eles tiravam meu sapato, porque não sobem com a

pessoa de sapato, e eu começava a consultar as pessoas na rua. Seu marido lhe sugeriu que procurassem

alguém para batizá-la. Isso lhe permitiu controlar-se. De acordo com Gina, ter força para montar um

mistério e dizer-lhes que não quer subir, pois os espíritos depois do batizado já não o fazem

inesperadamente. Agora, Gina enfatizou, eles sobem quando eu os chamo. Apesar de certo controle sobre

seu corpo e sobre os mistérios, ela me explicou que, quando está em algum lugar e eles querem subir,

pede-lhes para esperar até que possa o fazer.

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1.3.5 Sonho e outras formas de incorporação

Em uma festa para Papa Candelo, um dominicano que organizou a cerimônia,

chamou São Elias com um recipiente que continha ossos. O rapaz pretendia dar esse

resto moral ao marido de Gina. Mas Gina já havia sido avisada pelos mistérios sobre

essa situação. Ela foi à festa tendo ao redor de sua cintura um lenço (pañuleo) preto e

outro azul. Ela tinha da cintura para cima ela mesma, da cintura para baixo o mistério,

que caminhava, andava por ela, e por meio dela, Gina me explicou ao mencionar os

lenços amarrados ao redor de seu corpo. O mistério que estava com ela também já havia

lhe dito disse-lhe para não deixar seu marido segurar os ossos. Ela mesma deveria

agarrar o recipiente. E ela seguiu essa recomendação. No decorrer da festa, o homem

dominicano pediu para que o marido dela pegasse o recipiente e Gina se propôs a

segurá-lo. Suas mãos ficaram sem movimento e sensibilidade. Dormindo, durante um

sonho, ela chamou os mistérios para que a ajudassem. E viu os sete mistérios ao redor

de sua cama. Candelo acendia o fogo, acalentava a sua mão, ela me disse, pois sentia

frio por todo o seu corpo.

Perguntei-lhe então se o osso era um morto. Gina, acenando a cabeça, fez que

sim. Ela se silenciou. Alguns minutos depois, contou-me que esse mesmo dominicano

que trabalha os mistérios batizou uma jovem também dominicana para que ela pudesse

trabalhar. Certo dia a jovem foi até Gina. Disse-lhe que só conseguia montar quando

colocava um anel. Fiquei olhando para Gina, aguardando seu próximo comentário: –

Isso não é um mistério, mas um morto comprado. Todos são mortos, mas os mistérios

são seres de luz enquanto os mortos gostam da escuridão.

1.3.6 Vicissitudes do dom: transitando por e incorporando habitus humanos e

animais

Concebidos como pessoas que viveram como nós e/ou santos que andaram com

Jesus, os mistérios conservam muito das características sociais, individuais e estéticas

de quando foram vivos. Neste sentido, uma pessoa possui várias outras pessoas. O que

requer saber administrar no cotidiano – e, para alguns dos meus interlocutores, até

mesmo tentar quitar (retirar) – as influências e ações sobre si e sobre os outros dessas

várias pessoas, que parecem ter vivido e pertencido a épocas e lugares distintos e

expressam variadas disposições.

A ideia de que esses espíritos tiveram uma existência em certo tempo e lugar não

é tudo. Aspectos relacionados ao comportamento de animais como cobra, galo, abelha e

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peixe também compõem o comportamento dos mistérios.57

Assim, o ‘dom’ de uma

pessoa pode ser tão múltiplo a ponto de transitar por e incorporar formas humanas e

animais quando certos espíritos montam ou sobem.

Os modos como um mistério interfere sobre as pessoas revelam experiências que

vão desde a produção de novas sensibilidades e capacidades até a possibilidade e

qualidade da interação delas com terceiros. As intervenções e interlocuções dos

mistérios se desdobram socialmente e podem abarcar familiares e clientes, além de

outros seres humanos.

São Santiago/Ogun Balendyó me disse que a irmã de Gina tem Jean Criminel,

Agoue Taroyo e outro espírito, cujo nome eu não consegui compreender durante nossa

conversa. Conhecido como um dos petroses, espíritos que são considerados impetuosos,

agressivos e impacientes, Jean Criminel, Gina me disse, gosta de sangue e sacrifício de

animal. Essa era uma das razões que fazia sua irmã querer passar, termo de Ogun

Balendyó, esse mistério para Gina, que também o atendia em seu altar. No entanto, a

vontade das pessoas de se afastarem desses espíritos parece ser mais difundida entre os

meus interlocutores dominicanos, e também mais antiga.58

Logo depois que me aproximei de Joana, eu contei-lhe que havia viajado para a

República Dominicana com Rosa fazia pouco tempo. Ela me perguntou como a

pesquisa se desenvolveu, tratando de informar-me que lá existe um espírito, um petron

que corta a cabeça das galinhas com a boca e bebe o sangue. Era a primeira vez que

escutava um interlocutor dominicano fazer uma referência direta a essa categoria de

espíritos. Como não havia compreendido inicialmente o que tinha acabado de ouvir,

57

Durante o trabalho de campo, foram feitas referências a esses animais, o que não impede que as

composições entre humanidade e animalidade dos mistérios sejam mais variadas. Herskovits (1971,

p.160) descreve uma cerimônia em que os haitianos servem seus espíritos herdados, e dentre os pétro que

são alimentados com touros há um espírito que recebe o serviço ritual primeiro porque “como o animal

tem chifres”. 58

No mesmo trabalho de Herskovits (1971, p.168-169) que citei anteriormente, ele narrou o seguinte. As

cerimônias que os haitianos prepararam com o objetivo de servir os espíritos pétro seriam utilizadas

também como um meio de “afastá-los” e “contê-los”. Os órgãos dos animais sacrificados foram inseridos

em receptáculos apropriados contendo agulhas sem as brechas e linhas para que esses “espíritos

indesejáveis” tivessem uma “ocupação”. Assim, antes deles chegarem para molestar a família, perderiam

tempo com a tarefa inglória de passar linhas por agulhas sem passagem. A alguns dos espíritos pétro que

foram enterrados fora da terra familiar, no momento da oferta da comida em um buraco cavado por um

sacerdote do vodu que trazia nas mãos uma cruz de madeira (“que faz toda coisa que é diabólica fugir”),

foi dito que a comida dada a eles, espíritos da família, desobrigava as pessoas de qualquer outro

comprometimento. Por isso esses pétro não deveriam retornar para causar problemas aos vivos. Além

disso, esses espíritos deveriam se tranqüilizar nos locais onde foram enterrados de sete a dezessete anos.

Esses espíritos resistiram a contenção ritual e lutaram, montados, com o sacerdote do vodu. “Se o hungan

(sacerdote) não tivesse sido dominador, muito de algo diabólico poderia ter ocorrido naquele momento,

porque ele precisou lutar com três loa (espíritos) fortes”, foi dito a Herskovits.

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indaguei Joana se o que ela me falava era que alguém matava a ave para o espírito beber

seu sangue. Joana esclareceu-me que a pessoa montada mata com a própria boca a ave.

Durante certas cerimônias, cabras e vacas também seriam mortas na República

Dominicana, Joana me explicava, para que um desses espíritos ingerisse o sangue

desses animais. Eu lhe perguntei então se eram apenas algumas pessoas que montavam

esses espíritos. E ela me respondeu que muita gente em Santo Domingo o fazia. Para

ela, esses espíritos... [e rapidamente alterou o substantivo de espíritos para pessoas]

essas pessoas eram como pássaros maus, como animais que se vão para o monte

porque são maus, porque trazem algo de mau.59

Bem depois dessa conversa Joana me falou que quitou um petro que tinha

quando vivia ainda em La Romana. Em sua cidade, ela contou, fez remédios para quitar

os petroses. Voltando a insistir que as pessoas têm os mistérios bons e maus, e que os

petroses são espíritos de gente má, que fazia dano e vivia no monte, Joana narrou em

sequência uma série de disposições que passava a adquirir quando esses espíritos

aproximavam-se dela: ela chocava a cabeça contra a parede; mordia a si mesma; era

capaz de comer gente; se colocava enraivecida rápido; por qualquer motivo era capaz de

pegar um facão do mato (coger un machete) para brigar (pelear) com uma pessoa. Sob

esses estados, era capaz de cortar a cabeça de alguém com tal instrumento-arma. Para

Joana, os petroses são intolerantes. Por isso, a encorajavam a fazer tudo isso,

colocando-a enraivecida e orgulhosa, ela repetia para mim. Depois que Joana quitou as

coisas más, referindo-se aos seus espíritos petroses, ela disse-me, ficou tranquila

demais. Mas, em seguida, argumentou: – Eu prefiro assim. A vida é muito complicada,

há coisas que eu não entendo [como o que me acabara de contar], ela concluiu.

Entretanto, mesmo depois que foi morar em Porto Rico, excessos e

comportamentos diferenciados, dos quais Joana depois não se lembrava, foram relatados

a ela pela sobrinha no apartamento em que moravam.60

Reproduzindo para mim o que a

sobrinha lhe contou ao perceber uma série de transformações quando ambas se

encontravam na residência que compartilhavam, Joana me falava: – Subirão esses

mistérios todos, a 21 Divisão... Foi o que, à época, a sobrinha lhe disse: – Tu falava

como teu papai, como não sei o quê... uma língua esquisita...

59

Em La Romana, Joana realizava cerimônias para os petroses. Para isso, utilizava em certas situações

órgãos de animais. 60

Joana e essa sobrinha deixaram a República Dominicana juntas. Em Porto Rico, elas começaram a

compartilhar um apartamento no município de Carolina, área metropolitana de San Juan, não muito

distante de Río Piedras. Mais informações sobre a imigração de Joana aparecerão no quinto capítulo.

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Um mistério, que se apresentou como Criminel (o espírito petro Jean Criminel) à

sobrinha de Joana, modificou a cor de seus olhos, que se tornaram vermelhitos.61

Jean

Crimnel ameaçou a moça, que havia escondido o uísque para impedir que esse mistério

o bebesse. Se ela não lhe desse a bebida, Criminel lhe disse, iria pregá-la com uma faca

na parede e feri-la. Depois dele, Santa Marta A Dominadora subiu em Joana, que então

passou a se arrastar como uma cobra. Essa chegada e partida dos mistérios no corpo de

Joana ocorreu das oito horas da noite até as quatro da manhã do dia seguinte. E após o

consumo excessivo de uísque (cerca de quatro litros) e de café (cerca de oito garrafas)

sem açúcar, Joana destacou, ela dormiu no chão diante do altar.

– O mau também trabalha sobre nós [pessoas que têm os mistérios]... Você sabe

quando há uma luta em que todo mundo está te puxando para um lado e somente um

para outro? É assim..., Antonio argumentou, descrevendo em termos de uma luta às

ações que as pessoas – como sua mãe, e, possivelmente, ele mesmo – estavam

submetidas porque têm os petroses. Antonio fez esse comentário quando estive na casa

dele e de Maria. Nessa ocasião, havia poucos dias que ele tinha regressado da República

Dominicana. Ele viajou ao seu país para ir a um lugar conhecido como El Monte de

Oración. Nessa colina, quitou um espírito mau de sua mãe, ele me falou, que era um

petron.

Na casa de Gina, eu e ela conversávamos com Luís,62

seu amigo jamaicano,

sobre os mistérios, e o rapaz me explicou que se Gina está com o sangue quente, o

mistério sobe assim também. Dependendo também do estado emocional dela, o espírito

chega mais tranquilo ou aborrecido. Gina então salientou que quando briga com alguém

há um mistério que lhe diz: – Mata, mata, mata. São mistérios que gostam de sangue,

que bebem sangue, que comem vidro, ela me explicou, o que lhe demanda saber se

controlar, ela concluiu.

Gina incorpora ainda outras disposições quando monta um mistério que se

chama Ogun Ferraile, vinculado à imagem de São Jorge. Ela passa a se comportar como

um galo: bate seus braços, espalma seu colo e assovia. Ao descrever os acontecimentos

que ocorrem em seu corpo, Gina contava-me que é como se existisse algo em seu

61

Uma das características desses espíritos é subir extremamente quentes (calientes), o que faz com que os

olhos dos cavalos fiquem vermelhos, o que caracteriza agitação e raiva. Mesmo os mistérios que não

fazem parte da categoria dos petroses podem subir sob essa modalidade espiritual (como petro)

considerada mais forte, agressiva e perigosa. 62

O rapaz vivia em Porto Rico e foi por ela batizado nos mistérios. Quando nos conhecemos, ele me

explicou que ao regressar a Jamaica teria que seguir sua religião como era feita lá. Perguntei-lhe então

como se chamava na Jamaica, e ele falou que se chama obeah e vudú.

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estômago, que chega ao seu peito e depois se prende à sua garganta. Então, ela assovia e

faz uma espécie de canto. Porém, ela observou, isso se dá quando percebe que vai

montar. Durante esse momento, Gina vê um galo vermelho e negro que, conforme ela,

são as cores do pañuelo (lenço) desse mistério. Depois, ele [Ogun Ferraile] chega e

trabalha como uma pessoa, Gina notou.

Diferenciando-se dos comportamentos que foram descritos por Gina ao me

contar sobre o que ela experiencia quando um espírito petro está próximo, ou ainda,

quando monta um mistério como Ogun Ferraile, a metresa conhecida como Metresili

atualiza em Gina formas corporais e gostos ligados a um habitus feminino crioulo

(colonial). Gina havia acabado de tomar banho quando Metresli subiu em sua casa. No

entanto, esse espírito feminino reclamou com o marido de Gina que ela, Metresili,

estava suja, suja. Para que Metresili caminhasse e sentasse no altar, ele precisou

estender uma toalha branca no chão, sobre a qual ela se locomoveu na ponta dos pés.

Pediu em seguida perfume e talco, substâncias que passou pelo corpo e pés, e falou

sussurrando. Depois de se perfumar e usar o talco, duas lágrimas em cada canto do olho

desceram sobre o seu rosto. Indaguei a Gina por que Metresili chorava, se ela havia

sofrido: – Se parece que sim, Gina me respondeu.

1.3.7 Consumo dos corpos

As diversas modalidades de incorporação dos mistérios geram, como venho

tentando demonstrar, objetificações cujos significados para esses espíritos e para as

pessoas não são exatamente os mesmos. Relações assimétricas de poder, de

conhecimento e acerca dos modos de dispor (aos espíritos e aos clientes) são

significativas para os meus interlocutores, especialmente os vivos. É considerando essas

relações múltiplas e densas que Gina, Joana, Diogo e outros interlocutores dominicanos

se concebem como ‘pessoas’ que receberam dos antepassados um dom e se veem diante

da tarefa desafiadora de atualizá-lo em seus corpos.

Mas é importante ainda destacar outro aspecto dessas ‘relações’. Quando se trata

especificamente de montar ou subir, o que parece estar em jogo vai além de uma

compreensão sobre trabalhar como uma relação ritual em que dispor o corpo aos

espíritos é colocar-se a serviço de terceiros, como as narrativas de Joana e Gina com que

iniciei o capítulo revelaram. Para essas elas, há poder, há dissociação e há uma forma de

colocar-se à disposição que problematiza qualquer visão simplista sobre o que significa

viver relacionando-se com outros que são espíritos herdados. Eu argumento, como fiz

ao longo desse capítulo, que dispor o corpo como uma forma de trabalhar os mistérios

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não é exterior ao universo cosmológico que informa o cotidiano dos meus interlocutores

dominicanos. Procurei demonstrar isso salientando os processos de incorporação e

objetificação que criam junção e disjunção entre esses seres humanos e seus espíritos

em diferentes domínios da vida cotidiana.

E ainda há um pouco mais a dizer sobre esses agenciamentos corporais.

Na botânica, Joana dizia-me que para ler as cartas trabalha muito com a mente.

Isso fazia com que ela se sentisse cansada. Seu esgotamento, Joana justificava, devia-se

ao fato de que porque usa muito o cérebro precisa de concentração: – Os mistérios me

dizem quando eu leio as cartas, ela me explicava. Se eu não estiver concentrada o que

vou falar para as pessoas? No entanto, para ela montar um mistério é pesado, um

mistério consome a pessoa.

Embora pôr a mente/o cérebro ou todo o corpo à disposição dos mistérios, de um

lado, e colocar-se a serviço dos clientes, de outro, sejam duas práticas definidas pelos

meus interlocutores dominicanos como trabalhar, Joana vê a segunda forma de

incorporação como mais desgastante. Para ela, essa é uma das implicações da ação dos

espíritos sobre a pessoa, que torna necessário o ritual do batizado: – O batizado é para

não ir ao chão [tumbar]... Porque quando um mistério sobe, ele derruba [tumba] a

pessoa, que fica no chão. Um mistério quita a energia de alguém. Ele [o batizado] lhe

dá força para receber os mistérios.

Foi também enquanto consumo de si que Gina descreveu, certo dia em que eu

estava na sua casa, a sua sensação de esgotamento porque trabalha os mistérios. Ela me

dizia que estava exausta, pois no dia anterior foi a um rio. Nele, realizou um banho em

Luiz, seu amigo jamaicano, que viajaria para Santo Domingo. Gina, então, explicava-

me que em diversas situações, mesmo tendo comido e sentindo-se saciada, depois de

montar um mistério era como se não tivesse ingerido absolutamente nada: – O que eles

[os mistérios] querem é meu sangue. Eles se alimentam através de meu corpo, Gina

afirmou. – Eles consomem muito, reagiu seu marido ao escutá-la. Ele, entretanto,

referia-se agora não ao corpo de Gina. Sua consideração era sobre tudo aquilo que

precisava estar no altar para os mistérios.

Para Gina e Joana, montar ou subir é uma prática ritual afeita a um consumo que

dá substância aos mistérios ao mesmo tempo em que se dissipa algo de humano. O

corpo de Gina, aqui, não seria apenas um meio para se atingir algo: a transmissão de

mensagens a outros por meio de variadas formas de incorporação. Seu corpo teria um

fim em si mesmo para os mistérios. Por meio dele, ocorreria uma transformação

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consubstancial: o que se busca, ou antes, o que os espíritos querem, para ficar com um

termo caro à explicação de Gina, está no próprio corpo da pessoa: sangue humano

(nutrientes).

É essa forma de dar substância aos espíritos transmitidos familiarmente, que

ocorre no corpo da pessoa, que a etnografia de Karen Richman desconsidera. Não são

apenas serviços rituais obrigatórios, mas a própria incorporação definida enquanto

montar (ou subir) que revela a criação de um vínculo substantivo entre os indivíduos e

seus espíritos. Vínculo que, do ponto de vista da pessoa, resulta na extração da

vitalidade de si.

Parece-me que aqui há uma maneira de conceber como é possível dispor o corpo

ou alienar substância a outros (aos espíritos, experienciados como alteridades), sem que

seja necessário evocar a figura do intermediário que chega de fora da configuração

familiar (natural). Em maior ou menor grau saber deixar-se consumir é um dos

imperativos de incorporar aquilo que foram relações entre antepassados e seus próprios

mistérios.

Logo depois que conheci Gina, ela me disse que serão os mistérios que decidirão

até quando ela seguirá trabalhando. Ela poderia atender os clientes até seus setenta,

oitenta anos, mas, alcançando essa idade, não conseguiria mais subir um mistério. Seu

corpo não aguentaria mais fazer isso. O parâmetro dela é um limite físico. Ao me

explicar isso, ela indicava uma visão que articulava noções de geração, duração, mas

também de transformação e consumo dos corpos das pessoas.

Por sua vez, São Santiago/Ogun Balendyó, montado em Gina, ressaltou a

juventude como um marcador importante para aqueles que são seus cavalos. Ele

explicava-me que tinha mais de quinhentos anos e por isso gosta dos cavalos jovens.

Caso contrário, ele ironizou, é um velho em cima de outro velho.

Nessa perspectiva genealógica e geracional parece haver uma compreensão

singular sobre ‘pessoas’, corpos e espíritos. Os corpos das pessoas têm uma duração. E

um processo de vida e morte, marcado pela chegada de novos nascidos, garantiria a

princípio a manutenção dos espíritos das famílias, ou seja, a vitalidade dos mistérios no

tempo. Nesse sentido, a atualização dos espíritos estaria submetida, em parte, à duração

dos corpos enquanto lócus de consumo.

Mas se o corpo de Gina e as coisas postas no altar, entre as quais comida e

bebida, equivalem-se mais ou menos quando estão sob a ação dos mistérios, seria

redutor imaginar que nestas experiências apenas os mistérios são alimentados. Isso seria

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mapear somente um trajeto do que implica receber e assumir o dom. Quando montado

em Gina, seu patrón contou-me que a irmã dela era montada pelos mistérios chamados

de petroses e, por isso, a moça queria quitar esses espíritos, como já descrevi. Então,

esse mistério disse-me que a irmão de Gina não poderia o fazer: – Os petroses são a

força da irmã de Gina, se ela os quitar, seria como não se alimentar.

O foco etnográfico deste capítulo foi principalmente o corpo enquanto um lócus

no qual se experienciam algumas das implicações de uma forma de parentesco em que

espíritos circulam como um dom. Passarei, no segundo capítulo, às descrições sobre os

modos de atenção ritual prestados aos mistérios. As situações etnográficas ocorrem

particularmente nos altares, onde são manipuladas substâncias alimentares, mas também

químicas. Com essas práticas, meus interlocutores dominicanos pretendem afetar – para

controlar, estimular ou suavizar – as disposições cristalizadas de seus espíritos que,

eventualmente, eles mesmos atualizam, como me disseram Joana e Gina e Antonio, ao

falar de sua mãe. Por meio de certa materialidade (substâncias, objetos, dinheiro)

ganham relevo maneiras de produzir reciprocidade e trabalho ritual entre ‘pessoas’ e

mistérios. As prestações rituais que serão então descritas dialogam com as experiências

de criar ligação e destacamento que foram narradas até aqui, cujo alvo de minha

reflexão foi o corpo. Nele, instabilidade e indeterminação tensionam o cotidiano da

atualização das relações entre pessoas e seus espíritos herdados.

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CAPÍTULO 2

FLUXOS, DIMENSÕES E TRANSBORDAMENTOS

“Que será que os anjos pensam de Deus?”

(Alejo Carpentier, O Século das Luzes, p. 233)

2.1 SOBRE COMO GERAR LUZ, FORÇA, E OUTRAS DISPOSIÇÕES

Naquela tarde, um casal de jovens havia entrado na botânica em que Joana

realizava as consultas aos mistérios. Ao olhar para a prateleira em que estavam

agrupadas as velas grandes, o rapaz se voltou para a moça que o acompanhava, sua

irmã, e disse-lhe: – Você tem tua força, mas você os mantém apagados. O jovem

dominicano se referia, eu pressupus ao ouvi-lo, ao fato de que sua irmã seria uma

pessoa que tem os mistérios. Mas, ele chamava a atenção, a moça não fazia uso de um

dos principais objetos que os meus interlocutores dominicanos adquirem nas botânicas

com o intuito de ativar alguma forma de relação com espíritos, particularmente seus

mistérios herdados.

Enquanto realizei o trabalho de campo com Rosa na Plaza del Mercado de Río

Piedras, ajudando-a com as vendas, era notável a recorrência da compra por imigrantes

dominicanos das grandes velas de São Miguel Arcanjo, São Elias, Santa Marta A

Dominadora, Santa Ana, São Expedito, São Santiago Apóstolo e Virgem A Dolorosa.

O próprio altar de Rosa, inicialmente organizado no quarto dos santos e depois

transferido para um local entre a sala de estar e a cozinha, era mantido diariamente com

velas acesas. Ela e Diogo, ao final do dia de trabalho, separavam algumas velas para

levar para casa e acender para os santos. Ele, especialmente, levava quase sempre

plantas além das velas. Em casa, Diogo preparava seus banhos. Com eles buscava

afastar as coisas más ou para atrair boa sorte. Rosa, ao chegar da botânica, sempre

substituía as velas de seu altar que já haviam se apagado. Mas também tinha o hábito de

acendê-las no chão da sala, logo depois da entrada da porta. – Essa casa tem os santos,

Rosa sempre dizia a alguém quando queria enfatizar que vivia em um lugar protegido da

violência urbana de Río Piedras.63

Por sua vez Joana foi taxativa, desde o início de nosso convívio, em explicar o

motivo de semanalmente comprar as velas para os mistérios, às vezes na mesma

botânica em que trabalhava os espíritos. As velas de seu altar deviam estar sempre

63

Caderno de Imagem do Capítulo 2 (Imagens 1, 2 e 3).

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acesas, caso contrário, ela me dizia, me contraria a sorte. Eu não gosto de ver meu altar

às escuras… Se põe uma miséria, Joana me disse, ao que eu argumentei: – Não se vê

bem. – Apagado, ela reagiu, não se vê bem apagado, Joana reafirmou enquanto

separava velas, um banho, uma água espiritual e essência para uma assídua cliente

dominicana da botânica.

Em seguida a cliente fez um comentário sobre a falta de velas em seu próprio

altar. E Joana argumentou com a mulher: – Assim eles [os mistérios] se põem. A isso a

mulher retrucou: com quaisquer vinte, trinta pesos [dólares], eu acendo velas para eles

[os mistérios]. Entretanto, quando ela não tinha dinheiro, eles também precisam

entender, a cliente concluiu.

Em sua casa, Gina explicava-me que é preciso acender as velas aos santos,

porque senão é assim que eles põem alguém, me põem... Apagada, sem luz, era o que

significava seu comentário. Para ela, à medida que se faz isso, as coisas vão

melhorando, se desenvolvendo, progredindo.

Neste dia, logo que chegamos à entrada de seu altar, localizado ao fundo da casa

em que ela vivia em Río Piedras, no último cômodo depois do seu quarto de dormir,

Gina me deixou atrás dela. Parou alguns segundos em frente à porta antes de entrar. A

luz do cômodo estava apagada e as velas do altar também. Ela então me disse que

quando sai deixa as velas apagadas. Quando vai trabalhar as acende, pois chega a

gastar oitenta dólares comprando somente as grandes velas para os santos: – Quando eu

as acendo quer dizer que estou chamando os mistérios, Gina me disse. Com a lâmpada

ainda apagada, puxou uma cadeira, pediu-me para sentar e depois apertou o interruptor.

Em seguida começou a me mostrar alguns serviços que os mistérios lhe pedem, que eles

vão consumindo ali mesmo no altar, ela observou.

Mostrando-me uma xícara de café com rum, que estava ao lado de sobras de cera

vermelha, em frente ao quadro de São Carlos Borromeu (Candelo Sedifé) e Santa

Bárbara Africana, Gina apontou em seguida para a imagem de São Miguel Arcanjo, que

lhe pediu água não havia muito tempo. O mistério, ela observou, bebia a água aos

poucos. Água, também, era a bebida que toda segunda-feira ela colocava para São Elias.

E, retirando do chão a xícara com café que colocou para esse mistério – também

conhecido como o Barão do Cemitério –, pediu-lhe licença ao fazê-lo, mirando o

quadro, e argumentou comigo: – De todos os santos ele é o mais fodão. Gina então

apontou para a altura inicial do café dentro da xícara. Mostrava-me, assim, a marca que

surgiu na cerâmica depois que São Elias começou a consumi-lo.

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Para Gina também é importante que um mistério possa trabalhar rápido. Aliás,

foi por causa disso que ela fez referência a certo quadro de seu altar. O quadro estava

amparado em frente a uma imagem em gesso (uma figura mais popular de São Elias),

mas que o retrata enquanto o profeta sentado em uma carruagem atrelada a cavalos.

Olhando para o quadro, Gina me falou: – Esse é um mistério que trabalha com São

Elias. E completou: – Esse mistério trabalha rápido. Para que ele continuasse a fazê-lo

dessa forma, Gina lhe põe um serviço.

Garantir a rapidez da ação de certos mistérios, entendida como trabalhar, não é

o único objetivo que Gina busca ao manipular substâncias alimentares como serviços

para esses espíritos. Com o mel ela pretende criar certos efeitos sobre as disposições de

Jean Criminel, o espírito petro de sua irmã, que ela também atende em seu altar.

Apontando em direção a um quadro de São Sebastião, Gina me explicava: – Eu o tenho

aí [em uma quina do altar], isso supõe que não haja outros mistérios [imagens

próximas]. Eu lhe ponho mel (uma taça com tabaco e mel) para tranquilizar. Ele gosta

de sangue, sacrifício de animal. Eu tenho que o ter aí, isolado [referindo-se àquela

localização de seu quadro]. Ele gosta de trabalhar com cabeça de bacá, de sangue.64

Joana também põe serviços aos santos. Tanto para os mistérios quanto para

Eleguá, Obatalá e as 7 Potências Africanas. Ela atende os últimos de modo semelhante a

como faz com seus mistérios. Assim, Joana não faz alterações importantes no

tratamento dado àqueles dois orichas a partir do sistema cosmológico e preceitos rituais

da santería ou regla de ocha. Para Eleguá, Joana prepara arroz doce com leite de coco,

às vezes doce de goiaba ou a própria fruta. Já para Obatalá prepara também arroz doce,

mais com um pouco de cascarilla (pó feito da casca do ovo). – As coisas são feitas

pelos seres humanos, mas são para os santos. Eles comem e bebem, Joana me disse,

referindo-se também às velas e aos óleos que utiliza nos trabalhos para os clientes

dedicados aos mistérios, especialmente em objetos rituais conhecidos como lâmpadas

(lámparas).

Para as 7 Potências Africanas, ela prepara uma bandeja com frutas frescas – eles

se alimentam do odor das frutas, Joana afirmou –, e pede-lhes desenvolvimento,

evolução e proteção. No centro da bandeja ela insere uma vela grande e depois de 9

dias leva as frutas a um monte: – Quem trabalha com santería põe no meio a cabeça de

um animal, de um cabrito... Os santeros dizem que antes de Jesus Cristo e no tempo

64

Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 4.

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dele também as pessoas faziam sacrifícios para oferecer a Deus. Mas eu não trabalho

com sangue. Perguntei-lhe, então, se os mistérios não gostam de sangue: – Eu não

trabalho, ela respondeu.

Quando se sentia constrangida pelos comentários de uma amiga dominicana que

freqentava igrejas cristãs (evangélicas) – mas que tem um índio e por isso fumava um

tabaco para esse espírito vez ou outra, inclusive na botânica – sobre os maus trabalhos

(trabajo malo) feitos com os santos, Joana argumentava com essa senhora: – Eu os

atendo, acendo suas velas grandes, suas coisas. Mas trabalho tranquilamente isso.

Faço minhas coisitas, mas eu gosto dos trabalhos doces, trabalhar com coisas doces.

No entanto, Joana sempre dizia que quando alguém lhe faz um dano ou ela quer

algo, crava a espada de São Miguel que possui na mesa de seu altar e oferece uísque a

esse mistério. Com um gesto que indicava um corte em seu pescoço, ela pretendia

sinalizar para mim que seu agressor estaria, depois de tal serviço, morto. Porque ela

mencionou a bebida alcoólica, eu lhe perguntei se havia diferença entre oferecer água

ou uísque aos espíritos. Para ela, pôr uísque aos mistérios é um serviço mais forte. Tal

substância permite que seu pedido se realize mais rápido. Para Joana, essa é a bebida

que se põe para os mistérios mais fortes: São Miguel, São Marcos de León, São

Santiago, Papa Candelo...

Já Rosa não colocava alimentos em frente às imagens de seu altar. Água era o

líquido contido nas taças e copos. Mas ela inseria mercúrio no interior de uma pequena

xícara diante da imagem de São Miguel Arcanjo, seu santo protetor, e às vezes da

imagem de Santa Marta A Dominadora. Em frente a São Miguel Arcanjo, Rosa tinha

amparada uma fotografia de si. Certa vez a vi limpando a louça com um pedaço de

papel. A cor amarronzada da cerâmica levou-me a pensar que se tratava de borra de

café. Quando eu lhe perguntei o que era aquilo, Rosa me disse que era azougue

(mercúrio) e servia para a boa sorte.

Meses depois, Joana me explicou na botânica que o mercúrio é usado para os

trabalhos, para inquietar um homem. Essa substância poderia ainda ser incorporada às

lámparas: recipientes que contêm uma série de óleos (aceites), incluindo o de milho ou

de oliva (considerado de melhor qualidade) em maior quantidade, bem como especiarias

e outras substâncias no interior do qual se colocam pequenos pavios, chamados de

mechitas, que devem ser acesos.65

65

Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 5.

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As lámparas são preparadas pelos meus interlocutores dominicanos como um

serviço ritual aos mistérios. No altar de Gina, uma lámpara divisional de la 21 División

é oferecida a todos os mistérios, preparada com canela, anil estrelato, óleos, malagueta,

cravo, entre outras especiarias. Tal serviço garantia coletivamente a alimentação dos

espíritos mantidos em seu altar ao mesmo tempo em que se esperava que os pedidos e

ações espirituais por ela solicitados fossem realizados. Gina, assim como Rosa, também

amparou uma fotografia de si em seu altar. Mas para isso inseriu sua imagem em uma

ampla bandeja, que, no momento em que a vi, já estava com vários dos alimentos nela

colocados em estado de decomposição. Para Gina, os serviços como as lámparas são

feitos a base de óleos e especiarias porque os mistérios gostam de tudo que nós, porque

foram vivos.66

Às vezes Joana recomendava que seus clientes preparassem as lámparas e

dedicassem tal compósito alimentar e de luz, adicionado com o azougue, aos mistérios

em sua própria casa: – Se põe uma lámpara aos santos e se se deseja apressar-lhes se

põe esse azougue… O santo não se pára, está sempre correndo, os santos se põem

ligeiritos, Joana argumentou. Enquanto a observava na botânica, notei que ela inseria os

chamados óleos nas velas que acendia para os mistérios, uma das formas de preparar um

trabalho para os clientes. E perguntei-lhe um dia o porquê de inserir tal substância às

velas. Joana me explicou que o fazia para que as velas ficassem mais fortes: – Os

mistérios vão puxar (jalar) mais rápido a vela, a vela tem mais força. Mantendo-se

pensativa por alguns segundos, ela concluiu: – Os óleos são um suplemento. Enquanto

os mistérios vão comendo a vela, trabalham.

2.2 PRESTAÇÕES RITUAIS: SUAS CONEXÕES, SEUS EFEITOS

2.2.1 Servir e Conectar

Como essas descrições evidenciam, boa parte da atenção ritual que os meus

interlocutores dominicanos oferecem aos mistérios refere-se a práticas de dar

substâncias aos espíritos herdados. A isso eles chamam de atender os mistérios. As

substâncias, particularmente alimentares, permitem a criação de fluxos de troca

contínuos entre as pessoas e seus mistérios. É sob essa modalidade de atenção ritual,

chamada por eles de pôr serviço, que o dom recebido é retribuído ao longo da duração

da vida de cada interlocutor. Nesse sentido, a água solicitada por São Miguel à Gina ou

o café que ela e Joana colocam para São Elias/Barão do Cemitério todas as segundas-

66

Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 6.

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feiras, dia desse santo, ou ainda o refrigerante avermelhado Country Club, da

preferência de Metresili, sobre o qual Armando pôs uma vela branca porque ela gosta

que seja assim, mediam o processo de produção de relações entre esses vivos e mortos:

– O serviço é como uma força para eles, que se alimentam disso. Tu põe comida e a

comem... os espíritos vêm e se alimentam .67

Dar substância aos mistérios configura-se assim como uma forma de

reciprocidade. É no decorrer da colocação dos serviços que os espíritos se fortalecem. É

atualizando esse compromisso ritual familiar que as pessoas se potencializam. Nessas

trocas, ambos vão adquirindo um fortalecimento mútuo. Seres humanos e espíritos se

tornam indissociáveis no sentido estrito que dependem, cada contraparte a seu modo, de

uma vitalidade que não está exatamente em si.68

A força da ‘pessoa’ liga-se à organização e à atualização desses circuitos rituais.

Foi isso que enfatizou Ogun Balendyó e sugeriu o jovem dominicano à irmã na

botânica. O mistério explicou-me porque a irmã de Gina não poderia passar seus

petroses para a própria Gina: seria como se ela não se alimentasse. O rapaz observou

que sua irmã tem sua força mas a mantém sem ativação.

Tal dependência recíproca é um dos aspectos que Mauss (2008) considerou

como fundamental nas economias da dádiva. Nelas, pessoas e coisas se entrelaçavam de

tal modo que era difícil pensá-las como inseparáveis. E isso a despeito de toda a

circulação a que ambas estavam submetidas. Posteriormente Gregory (1982, p.18-19)

enfatizou essa preocupação de Mauss, destacando que os sistemas de troca de dádivas

estabelecem uma “relação entre os sujeitos” que transacionam. Para Gregory, o objetivo

dos sujeitos é obter o máximo de devedores de dádiva; as relações pessoais que essa

forma de troca cria e não as coisas em si mesmas são o que eles desejam.

Mas o fluxo e as contrapartes pelos quais me interesso nesta etnografia são

outros. Espíritos, que já foram pessoas como nós ou que foram vivos – para usar

expressões recorrentes de Gina – e não exatamente coisas (itens materiais) circulam

entre aqueles definidos como parentes. Esta é uma diferença importante, que me leva a

fazer pelo menos duas considerações gerais ao aproximar esse material etnográfico de

tal discussão conceitual e teórica sobre as trocas de dádiva e de mercadoria.

67

Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 7. 68

Isso, no entanto, como procurei mostrar no primeiro capítulo, não significa que corpo (ou mente) e

pessoa ou pessoa (cavalo) e espírito experimentem uma mesma relação ou ponto de vista, seja em termos

de percepção, saber ou poder.

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A primeira é que diante da distinção que apontei não convém pensar as relações

entre meus interlocutores dominicanos e seus espíritos utilizando uma noção de troca

cujo acontecimento fundador é a sociedade. Isso, no entanto, não impede que eu

experimente o seguinte movimento analítico: mobilize a troca, enquanto uma noção

antropológica que descreve certos arranjos e interações entre coletivos diversos por

meio da circulação de itens variados, para pensar a constituição de pessoas em relação a

seus espíritos herdados contemporaneamente.

Mauss foi perspicaz a isso ao indicar que um dos primeiros grupos de seres com

os quais os homens tiveram que entrar em contato, e que por definição, estavam lá para

contatá-los, eram os espíritos dos mortos e os deuses.

Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do

mundo. Era com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não

trocar. Mas, inversamente, era com eles que era mais fácil e mais seguro

trocar. A destruição sacrificial tem precisamente por objetivo ser uma doação

necessariamente retribuída. (MAUSS, 2008, p. 79).

As trocas que Gina e Joana vêm estabelecendo com os mistérios e que eu tentei

tornar visível no início desse capítulo funcionam como imagens parciais, não idênticas,

mas mesmo assim factíveis sobre como pode ter sido a interação de seus antepassados

familiares com esses espíritos. Gina, Luiz, seu amigo jamaicano, e eu conversávamos

em um final de tarde na casa dela. Enquanto Gina lavava certa quantidade de arroz que

prepararia para o nosso jantar, movimentava suas mãos por entre os grãos e observava a

água turva que escorria. Isso a levou a comentar conosco: – Cada geração trabalha

diferente. Até com isso [água do arroz] se pode trabalhar. Ao propor esse segundo

capítulo, tenho como intenção deflagrar imagens contemporâneas sobre as ‘relações’

pressupostas que constituem as ‘pessoas’, discutidas no primeiro.

A segunda consideração é a seguinte: não se trata de uma diferença de escala

tampouco de uma substituição homóloga. Retira-se a sociedade, incluem-se meus

interlocutores dominicanos; saem os itens materiais, entram os espíritos. Pois os

mistérios figuram excessivamente nessas interações. Eles são o que se transmite adiante

quando certo circuito ritual chega ao fim com a morte de uma pessoa ‘e’ um dos pólos

da troca. Sendo, além de uma das contrapartes rituais, o que também é transmitido, os

mistérios podem ser localizados em três dimensões quando se procura refletir sobre suas

‘relações’ com os seres humanos.

Com essas considerações, tentarei explicitar o que proponho como a tripla

localização desses espíritos. Quero especificar, desse modo, uma dimensão da análise

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que não se reduz apenas à dependência recíproca entre contrapartes humanas e

espirituais.

Uma das dimensões das relações que venho discutindo diz respeito a quando os

mistérios são descritos como um dom transferido pelos meus interlocutores. Aqui

ganham realce as relações prefiguradas: trocas cotidianas de serviços rituais que lhes

foram transmitidas, cujo pressuposto é uma continuidade no tempo, assunto do primeiro

capítulo. O que me leva a pensar esses espíritos como um dom em circulação é o caráter

inalienável e a profundidade temporal que os mistérios assumem, na medida em que

estão associados a uma forma de conexão familiar que precisa se efetivar para gerar a

força da pessoa. Aqui penso nas considerações de Gregory (1982, p.43-44, 47) de que

as relações pessoais são importantes e devem se perpetuar para aqueles que

transacionam dádivas porque são elas mesmas que se fazem presentes nos itens

materiais trocados.69

Do ponto de vista das pessoas e dos mistérios, as trocas rituais que

criam a potência de ambos são aquilo que vai sendo perpetuando, enquanto uma

obrigação ritual, para aqueles que receberão o dom.

Contudo, esses fluxos cotidianos de substância – as trocas de serviços rituais –,

quando atualizados, recriam ‘relações’ diversas. Eles produzem mutualidade entre as

‘pessoas’ e seus espíritos ao longo de um determinado transcurso de anos. Mas tais

fluxos podem ser empregados também como forma de gerar trabalho dos mistérios e das

próprias pessoas.

Nesses contextos de atualiação do dom os mistérios não aparecem como aquilo

que foi recebido. Mas sim enquanto um dos agentes das trocas. Quando se trata das

prestações rituais, esses espíritos se alternam entre duas posições: eles são uma das

contrapartes das relações mútuas com as pessoas, que se fortalecem conforme atendem

ritualmente seus espíritos, oferecendo-lhes os serviços nos altares; mas os mistérios se

69

O que procurei demonstrar no primeiro capítulo usando a ideia de ‘incorporação do parentesco’.

Personificação é a noção mobilizada por Gregory para definir esse processo. Incorporação foi a minha

opção conceitual na medida em que se trata, para pessoas e mistérios, de justificar o dom referindo-se a

relações familiares anteriores. O que é recebido e incorporado durante certo período não é tido como

item material ou artefato que traz em si o labor dos que o criaram; trata-se de mortos que se reconhecem,

falam sobre uma existência também humana e suas relações com os vivos de quem receberam cuidado e

trabalho ritual. Desse modo exprimiram-se Ogun Balendyó com Gina ao lhe revelar como sua mãe

trabalhava com São Judas Tadeu e Belié Belcan com o convidado da festa, cobrando-lhe cuidado ritual.

Mas com essa observação não pretendo essencializar o que vem sendo definido como “coisas” nos

sistemas de troca de dádivas na Melanésia. Bateson (2008, p.106-107) destaca que entre os Iatmul uma

forma de tratamento habitual do wau para com um lau é reunir em uma sequência de nomes ancestrais

maternos importantes, tais como um tipo de palmeira, que é também um peixe e um ancestral do clã. No

caso dessa forma de tratamento, planta, animal e pessoa se conectam de tal forma que, empiricamente, o

que pode ser tomado como ‘coisa’ é posto em suspensão. E apenas um exercício etnográfico poderia

procurar esmiuçar essas ligações.

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tornam ainda os intermediários a quem os meus interlocutores dominicanos recorrem

quando os clientes entram em cena. É ativando-os que as pessoas pretendem satisfazer

os desejos e/ou solucionar os problemas daqueles que as procuram. Sob essas

condições, substâncias também são dadas aos espíritos para que possam trabalhar.

Esses dois aspectos são importantes para a maneira como os meus interlocutores

dominicanos entendem os modos rituais que prestam a esses espíritos. São os contextos

que se referem a esses dois modos rituais – de alguns participar, de outros observar –

que revelam a existência de direções e interações variadas nas prestações rituais.

McCarthy Brown destacou isso ao observar que, para a sua interlocutora haitiana

em Nova Iorque, chamada de Mama Lola, a comida cumpria um papel importante na

maneira como essa sacerdotisa se relacionava com seus espíritos herdados. Essas

entidades eram alimentadas em escala mais ampla uma vez por ano, em suas festas de

aniversário, e, em escala menor, diariamente com libações e pequenas oferendas. E ela

destaca que “sem essa nutrição os espíritos não deveriam, e talvez não poderiam,

trabalhar para Mama Lola” (McCarthy Brown, 2001, p. 44).

Na introdução ao livro, ela também esboça uma abordagem semelhante a que eu

proponho aqui, pois dá ênfase aos fluxos de prestações rituais que permitem o cuidado e

a manutenção dos espíritos de Mama Lola, e, nesse sentido, dela própria, assim como

salientei para meus interlocutores dominicanos no início deste capítulo. McCarthy

Brown destaca ainda a importância de uma “rede de troca de presentes” mais ampla,

criada por meio da condução do trabalho espiritual, da leitura das cartas e dos

tratamentos rituais para outros. Rede na qual ela mesma se inseriu quando começou a

dar presentes aos espíritos e notou que isso modificava o altar de Mama Lola

(MCCARTHY BROWN, 2001, p. 6-7).70

2.2.2 Servir e Alienar

As lámparas que Gina prepara como um serviço ritual para todos os mistérios ,

chamados de 21 Divisão, serviam à Joana como uma forma de direcionar a ação dos

mistérios para seus clientes. Preparando em seu altar doméstico essas composições

substanciais formada por óleos, especiarias e luz dedicadas ao consumo desses espíritos,

Joana pretendia assim fazer com que os mistérios chegassem até seu altar. Nele, esses

espíritos comeriam aquilo que se encontrava dentro das lámparas e trabalhariam:

concretizariam, para os clientes, aquilo que lhes foi solicitado por Joana com a oferta do

70

As prestações rituais também foram mobilizadas por Ochoa (2004, p.107) para descrever a maneira

como as regras do palo se organizam ritualmente.

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serviço ritual. Gina também descreveu em termos de dar substância a maneira que

emprega para manter um mistério conhecido por trabalhar rápido. É colocando-lhe um

serviço que ela consegue reproduzir tal ação espiritual quando dele precisa.

Ainda que transmitidos familiarmente, os mistérios são alimentados também

para satisfazer os desejos de estranhos, alheios à lógica da transmissão do dom. E as

substâncias alimentares não são as únicas manipuladas para tal fim. Visando-se ao

imediatismo na concretização dos desejos e interesses dos clientes, nos serviços que são

colocados aos mistérios são adicionadas substâncias químicas como o mercúrio, por

exemplo. O efeito esperado é produzir estímulos intensificados nos espíritos. Nos

termos de Joana, o santo não pára, está sempre correndo, se põem ligeiritos. O que se

pretende é que os mistérios possam trabalhar e que o façam em ritmo acelerado. Joana

investe também em tal intensificação ao inserir óleos às velas que acende para os

mistérios, destinadas aos clientes: um suplemento para que eles consumam a energia do

calor mais rápido, e assim realizem o que lhes foi pedido.

O que passa a estar em jogo é uma maneira de reproduzir, através dos serviços

rituais, uma força espiritual que é ou será empregada não diretamente para as próprias

pessoas. Tal força deve ser canalizada para os clientes. Se com essas trocas rituais os

mistérios também se fortalecem, já que lhes são oferecidas substâncias que lhes

conferem força, nesses contextos alimentá-los significa mais do que simplesmente criar

reciprocidade.

Pessoas e mistérios se utilizam de um fundamento ritual para produzir algo que

não se limita às ‘relações’ de mutualidade entre ambos. Quero argumentar que com isso

o que surge é algo que sinaliza para transformações: novas disposições são criadas nos

espíritos e novas potências místicas (os serviços ou trabalhos destinados aos clientes)

extravasam os limites dos altares, propagando-se coletivamente e redefinindo os densos

e complexos contornos entre os seres humanos e seus mistérios.

Com isso destaco que o caráter da ‘relação’ entre pessoas e seus espíritos se

modifica. Gerar a disposição para os espíritos trabalharem, nos termos que me foram

descritos, faz com que os meus interlocutores dominicanos e os mistérios manejem

compreensões acerca da troca de mercadoria. Nesse sentido, ao lado das substâncias

alimentares, outras formas materiais (e conceituais) fazem parte das prestações rituais.

Uma delas é o pagamento por algo que foi externalizado aos clientes sem a criação de

uma dependência duradoura e rotineira.

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Desse modo, o que faço é tomar alguns aspectos da proposta de Gregory ao

tentar caracterizar o que definiria a troca de mercadorias: a independência recíproca

entre os envolvidos e a interrupção no tempo daquilo que trocam como itens alienáveis.

É a partir dessa ideia de alienabilidade, talvez, mais propriamente, a partir de uma

compreensão sobre a capacidade de ‘pessoas’ e ‘espíritos’ serem descritos como

propícios a se adequar, em alguns momentos, a essa condição, que proponho uma

reflexão.

A troca de dádiva praticada na PNG hoje não é uma relíquia colonial, mas

uma resposta contemporânea a condições contemporâneas. Sem dúvida, a

troca de dádiva é uma atividade econômica indígena; mas a troca de dádiva

dos dias pré-coloniais (da qual quase nada é conhecido) foi muito diferente

da troca de dádiva atual. A atividade econômica não é uma forma natural de

atividade. É um ato social e seu significado deve ser compreendido com

referência a relações sociais entre pessoas em cenários historicamente

específicos. A essência da economia da PNG hoje é a ambiguidade. Uma

coisa é agora uma dádiva, agora uma commodity, dependendo do contexto

social da transação. Um porco pode ser comprado como uma commodity hoje

de modo que possa ser usado em uma troca de dádiva amanhã. É por causa

dessa ambiguidade que o conceito de dualismo, com seu setor tradicional

claramente definido, deve ser abandonado. A colonização da PNG não

produziu uma transformação de mão única, de ‘bens tradicionais’ a ‘bens

modernos’, mas complicou a situação onde coisas assumem diferentes formas

sociais em diferentes épocas e em diferentes lugares (GREGORY, 1982,

p.115-116).

Essas imagens contrastantes entre dependência recíproca e alienação que

resultam das trocas de dádivas e de mercadorias foram mobilizadas também por Palmié

(2002, p.159-200) em sua discussão sobre a regla de ocha e as reglas del palo. Palmié

se atém, especialmente, às formas de socialidade que os praticantes das reglas del palo

descrevem em suas interações com as contrapartes espirituais. E entrega-se à tarefa de

refletir sobre como as experiências históricas de violência, dominação e transformação

de “pessoas” em “coisas” nas economias transatlânticas da plantação escravista

penetram na linguagem, tecnologia e performance rituais desses cultos afro-cubanos.

Como Gregory salientou na citação acima, Palmié também chama a atenção para as

repercussões que essas experiências da modernidade tiveram especialmente para

aqueles recriaram suas vidas vendo-as submergir em marés coloniais.

Ele destaca que no simbolismo ritual dos praticantes da regla de ocha os orichas

são entidades cuja volição é fundamentalmente independente da agência de sua

contraparte humana. E, embora os deuses possam ser persuadidos a garantir favores

específicos, podem recusar-se a realizá-los, chegando a punir os devotos que não têm

um comportamento divino adequado (PALMIÉ, 2002, p.166).

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Para ele, o simbolismo do parentesco está implícito nas representações sobre os

vínculos estabelecidos através da iniciação na regla de ocha: os orichas, tidos como

pais, veem os devotos como filhos. Desse modo, ele destaca que a troca entre ambos é

frequentemente definida como um processo de alimentação baseado em noções de

reciprocidade generalizada. Os deuses devem ser alimentados e a imagem da

alimentação condensa todo um arranjo de noções sobre a troca como um meio de

conectar os humanos e os orichas em um relacionamento duradouro.

Palmié, então, observa que uma série de operações rituais liga a cabeça do

iniciado com os recipientes que contêm a presença objetificada do oricha em questão.

Uma vez que isso ocorra, as relações não devem ser rompidas por ambas as

contrapartes. Antes, devem ser mantidas pelo que é considerado, idealmente, como uma

cadeia de prestações recíprocas. Isso assume a forma de sacrifícios e de outros tipos de

atenção ritual dos devotos, de um lado, e da influência positiva do oricha, de outro.

Entretanto, Palmié ressalta,

Na prática, o deus se apropria do trabalho ritual do devoto consumindo seus

produtos na forma de sacrifícios e cerimônias. E, de fato, os iniciados às

vezes lamentam-se sobre quão exigentes seus deuses são, que tarefa árdua é

trabalhar com os orichas (PALMIÉ, 2002, p.166).

Um simbolismo ritual completamente diferente caracteriza as relações entre os

praticantes das regras del palo e suas contrapartes místicas. Enquanto na regla de ocha

considera-se que os orichas iniciam as relações com os seus devotos, “reivindicando

suas cabeças”, nos cultos congos praticados por cubanos destaca-se a agência humana.

Ela deflagra a interação com as entidades espirituais, conhecidas como nfumbi.

Embora possam ser herdadas (geralmente quando isso é prescrito em

adivinhação), essas potências espirituais entram em contato ritual com os seres humanos

por meio de um sacerdote (tatá nganga), que cria um objeto chamado de nganga ou

prenda. Esse sacerdote deve ser conquistado para concordar em iniciar alguém nas

regras del palo e deve ser pago por esse trabalho ritual. Isso feito, ele estabelecerá

contato com o espírito de um morto humano e o instalará ritualmente em um

receptáculo, chamado de nganga ou prenda (PALMIÉ, 2002, p.167).

Palmié acentua que a relação mística entre o espírito e sua contraparte humana

se efetiva mais por meio desse objeto complexo, que media o contato entre ambos, do

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que pelos ritos de iniciação, chamados de rayamiento.71

Isso porque a relação entre

ambos é geralmente descrita como um pacto firmado. Desse modo, afasta-se das

imagens de nutrição doméstica, troca recíproca e dependência benéfica veiculadas na

regla de ocha. Para ele, os símbolos do trabalho assalariado e do pagamento, da

dominação e da subordinação, da escravização e da revolta são pervasivos às práticas

rituais das regras del palo.

Se a interação entre o devoto e seu oricha assim como aquela entre tatá nganga e

o espírito de um morto humano descrevem relações de dependência, esse vínculo é

conceituado de modo contrastante. Enquanto os primeiros poderiam ser vistos como

modelados parcialmente sobre concepções naturalizadas de obrigações mútuas entre

prole e pais, o sacerdote do palo seria um empreendedor místico que comanda uma

força de trabalho vinculada pelo contrato ou pela captura (PALMIÉ, 2002, p.167-168).

As ngangas são um objeto compósito. Geralmente construídas com caldeirões,

em seu interior são estocados materiais heterogêneos como galhos, ervas, terra, ossos,

despojos animais e humanos, pós, cinzas e cera de vela, além de chifres, penas e crânios

fazerem parte de tal composição (PALMIÉ, 2002, p.170, 184; PALMIÉ, 2006;

OCHOA, 2004, p.125; ROUTON, 2008).

Citando Lidia Cabrera, Palmié descreve que, no palo monte, o ato deliberado de

apropriação de substâncias conectadas metonimicamente com a individualidade de um

morto humano, tais como a extração de crânios, ossos e seus fragmentos ou apenas terra

do cemitério, é descrito como roubo. Assim, acredita-se que o espírito move-se à

procura de seus restos mortais, que ainda subsistem. No entanto, para que tal captura

seja bem sucedida, é importante atrair o espírito (nem sempre essa entidade mora nas

imediações do cemitério), através de cantos e oferta de bebida alcoólica e outras

substâncias para perto de seus restos mortais. Isso realizado e dispondo-se o espírito a

entreter relações de serviço com sua contraparte humana – o que se confirma com um

oráculo de pólvora –, algumas moedas são depositadas no local em que se extraíram os

materiais que incorporam o espírito, seu pagamento (PALMIÉ, 2002, p.172-173).

A partir desse pagamento, as trocas entre tatá nganga e os espíritos que são

instalados nas ngangas sob seu comando são descritas em termos de um simbolismo

contratual. Além das ofertas de tabaco e aguardente que mantêm o funcionamento

71

Com tais ritos, o iniciado tem o direito de possuir e interagir com uma nganga. Além disso, passa a se

integrar formalmente a uma série de vínculos religiosos.

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adequado da nganga e a sua lealdade ao tatá nganga, esses objetos compósitos são

alimentados geralmente após o fim de certa tarefa específica.

Eles trabalham por comissão, e, enquanto a apropriação de seu labor místico

define uma relação expressa em um idioma de troca, isso pareceria se

conformar muito mais às noções marxistas de relações sociais mediadas pela

transação de commodities do que a uma imagem maussiana de troca de

dádiva (PALMIÉ, 2002, p. 173).

Algumas prestações rituais oferecidas aos mistérios deixam mais permeáveis as

fronteiras entre dependência recíproca e alienação que, pelo menos idealmente,

garantem a integridade da regla de ocha e das reglas del palo como dois sistemas

religiosos autônomos.

Tanto os temas da volição dos deuses e do processo de alimentá-los como meio

de produção de vínculos recíprocos domésticos, mais afeitos a relação entre devoto e

oricha, quanto aqueles que tratam do contrato ou da captura de mortos humanos por

meio de técnicas de manipulação de substâncias para atraí-los ou pagá-los nas regras del

palo, combinam-se e não simplesmente se opõem nesse material que venho

descrevendo.

Quando destaquei que a prática de alimentar os mistérios pode ser vista

enquanto uma técnica ritual que incita o trabalho desses espíritos, percorria essa

consideração o seguinte argumento: se dar substância significa mais que criar conexões

mútuas, produzir as disposições para o trabalho dos mistérios aparece como um dos

efeitos de alimentá-los. Servir, neste caso, significaria também criar a capacidade ou a

vontade neles para alienar. A criação de tais disposições gera uma transformação, pois

transborda a definição das relações entre pessoas e seus mistérios quando vistas da ótica

apenas do fortalecimento recíproco. Outra socialidade passa a ser descrita.

São justamente essas disposições para trabalhar ou servir o tatá nganga que

Palmié realça para os praticantes das regras del palo. Para isso, ele reconhece que

considera como parâmetro de comparação o que significa idealmente para os devotos na

regla de ocha alimentar os orichas (PALMIÉ, 2002, p.171). No palo, os espíritos são

contratados ou capturados para servir sacerdotes (ou seus clientes). E esses geralmente

não possuem um lastro (de parentesco simbólico, como na ocha, ou biológico, como no

caso dos mistérios) com as entidades espirituais.

Palmié enfatiza as tecnologias rituais que pretendem criar nos espíritos dos

mortos a vontade de locomoção, cujo resultado é sua instalação nos caldeirões que se

tornarão as ngangas. A extração de substâncias que fazem parte do corpse ou do

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ambiente fúnebre de indivíduos falecidos, a oferta de bebida e o pagamento com

algumas moedas nas sepulturas engendram e firmam o contrato entre o tatá nganga e

esses espíritos. Roubo, oferta de substância e pagamento aparecem como eventos

críticos que permitem as possibilidades de se firmar esse tipo de relação.

O que “complica a situação das coisas” no material que apresento, para usar uma

expressão de Gregory, é que mesmo tendo esse lastro familiar (natural), os mistérios e

as prestações rituais que lhes fortalecem não parecem indiferentes ao contrato. Embora

esses espíritos não tenham sido capturados, no sentido que acentua Palmié, a oferta de

substância pode funcionar como uma troca alienada e com isso a volição dos mistérios é

transformada, como ele chama a atenção para as regras del palo. Além disso, é

justamente porque o serviço ritual é concebido como algo que se produz para outros (e

não para a potencialização da própria pessoa), que necessita ser retribuído enquanto um

pagamento.

Aqui retomo a história de Gina, em que seu corpo foi tomado como lócus de

produção de memória sobre o poder e uma dívida espiritual. O corte no ombro dela, por

um lado, pagou Ogun Balendyó pelo serviço que o mistério fez para a cliente

dominicana, que não cumpriu seu trato com esse espírito. Por outro lado, Gina

comentou, a sua mutilação não foi o bastante para esse mistério.

Em seguida, Ogun Balendyó propôs à Gina a preparação de outro serviço, que

ela deveria colocar-lhe. Gina se recusou, no entanto, a fazê-lo. Ela me explicou que, no

altar, visualizou todo o serviço ritual indicado por Ogun Balendyó, com tudo, tudo que

eu deveria colocar nele, lembro que ela acentuou. Se lhe colocasse esse serviço não

haveria outro caminho, ela me falou – e o seu olhar era ainda apreensivo –, a mulher

estaria morta.

Por um lado, nessa história vê-se a importância de ser cumprido um acordo

firmado com os espíritos, no sentido de que eles dispuseram a outros algo da força que

lhes pertence. E, neste caso, não foram saldados por isso. O pagamento de Ogun

Balendyó, ainda que sob forma substantiva (o sangue), foi aquilo retirado de Gina. Não

se tratou, aqui, da cobrança (e extração) de uma dádiva simplesmente. Como Palmié

observou a recompensa da nganga também lhe chega ao fim da execução de uma tarefa

específica. Tais objetos trabalham por comissão. Mas através da imagem da prestação

ritual oferecida aos mistérios, é possível rastrear outras transformações acerca da

posição desses espíritos quando entretêm suas trocas. E essas transformações, ainda que

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flertem com a capacidade dos mistérios de se alienarem, têm outros efeitos. Novos

transbordamentos são delineados.

2.2.3 Dos serviços que geram revolta

Em geral, a tríade pessoas, mistérios e clientes descreve relações de

independência recíproca entre os dois últimos. Uma vez atendidos pelas primeiras

invocando os segundos ou ainda pelos próprios espíritos montados em seus cavalos, o

cliente interrompe seu contato com as entidades e as pessoas, ou, pelo menos, essa é a

expectativa. No entanto, esse acordo que une momentaneamente espíritos e outros

indivíduos continuou a repercutir na maneira como Gina e Ogun Balendyó interagiram

na histórica acima.

Por meio da própria ideia de serviço, o que era inicialmente a vontade de Ogun

Balendyó – a sua recusa em trabalhar para a tal cliente – assumiu a forma de uma

relação contratual e temporária. E eu não sei como Gina o convenceu a fazer algo pelo

qual ele, como espírito, já sabia que não receberia. E, diante da dívida gerada, a mesma

imagem foi empregada pelo mistério, que sugeriu uma vingança fatal. Para isso, bastava

Gina alimentá-lo. Servir, neste caso, significaria estimular (alimentar) a revolta para

matar.

Nessa narrativa está presente um dos elementos que torna as práticas das regras

del palo, segundo Palmié (2002, p.176), formas condensadas da violência que perpassou

as socialidades do sistema da plantação escravista nas Américas. Como já chamei a

atenção, a ênfase inicial de Palmié é sobre as relações de contrato e trabalho pago que

caracterizam as práticas rituais entre paleros e mortos humanos. No entanto, dentro do

simbolismo contratual das regras del palo é comum os praticantes alimentarem com

sangue as ngangas, no interior das quais os espíritos se encontram. Tal substância

aumenta a efetividade desses objetos compósitos Os sacerdotes que falham em

alimentá-las adequadamente com gotas de sangue e outras substâncias ou as estimulam

sobremaneira com a oferta do mesmo sangue, criam nesses objetos um gosto acentuado

por isso. Tal desejo incontrolável só será completamente saciado com a devoração de

seus “senhores” (PALMIÉ, 2002, p. 173).72

72

“Há algum tempo elas [as prendas ngangas] já começaram a extrair o sustento diretamente dele

[palero]. Pouco a pouco elas minaram a força dele e, quando a luta se intensificar, começam a levar ele

para baixo, blindando caminhos certos ou pondo-o em risco. Se ele não banquetear elas, elas iram

banquetear ele”, interlorcutora palera de Ochoa ( 2004, p. 131).

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Tornando o sangue o objeto da troca de commodity, alguém se arrisca a ser

vítima dos desejos de um consumidor fundamentalmente alienado porque

literalmente semelhante à coisa: o nfumbi. A desumanização através da

agência das coisas é, assim, a outra face da fantasia de controle total obtido

por meio de representar objetos como extensões de si (PALMIÉ, 2002,

p.173).

Isso leva Palmié a deslocar sua análise para as transformações que seres

humanos e espíritos passam a experimentar nas regras del palo com base em suas

relações de trabalho alienado. Inicialmente os espíritos dos mortos são objetifcados

como “coisas”, combinados no interior da ngangas com uma série de substâncias e

materiais que são parte de si e outras que lhes dão efetividade ritual para o uso do tatá

nganga. Entretanto, por causa da própria manipulação substancial a que são submetidos

pelo sacerdote, os espíritos se tornam potencialmente agentes da revolta.

A instabilidade dessa forma de relação, que tem premente a ameaça de

coisificação – ou desumanização como propõe Palmié – dos próprios sacerdotes (e de

seus clientes que lhe solicitam uma nganga) precisa ser cuidadosamente modulada. Caso

contrário, a predação faz dos vivos (agentes) alimento das ngangas (objetos).

Essa ameaça não é uma característica das relações de contrato das regras del

palo. Para Ogun Balendyó, um mistério herdado, predar a cliente poderia assumir a

forma de um serviço ritual que ele consumiria por causa de sua ira pelo não

cumprimento do contrato. Fazer essa aproximação não significa que tomo os mistérios

como as ngangas, ou seja, como “objetos”, embora altamente complexos e híbridos,

como o próprio Palmié (2002, 2006) enfatiza.

O que pretendo é considerar como esse universo conceitual, em que alienar a

outros pode ser praticado como uma ‘relação’ que traz em si uma chance de

transbordamento, neste caso de retaliação, perpassa diferentes cosmologias sobre as

interações entre seres humanos e espíritos no Caribe, particularmente naquelas

chamadas de afro-caribenhas.

Em Cuba (e na sua diáspora nos EUA) Palmié descreveu o complexo da ngangas

afro-cubanas. Em Porto Rico, com sua presença acentuada de imigrantes da República

Dominicana, vê-se que as linguagens e técnicas rituais entre os meus interlocutores

dominicanos e seus espíritos herdados são modeladas por relações de dom e trabalho:

servir ritualmente informa como práticas caracterizadas pela constituição e manutenção

recíproca de ‘pessoas’ e mistérios podem estar a serviço de estranhos. No entanto, isso

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não se define como uma anomalia para a dependência mútua que é criada entre as

contrapartes da troca ritual transmitida como herança familiar.

O que ocorre parece ser uma alternância sobre quem ou o que é o sujeito e o

objeto nas diversas prestações rituais. Como Palmié salientou, experienciar essa

dinâmica implica conhecer relações de comando e controle, e elas não estão isentas do

risco da revolta. Trata-se, assim, de socialidades que se desenvolveram imbricadas com

os “sistemas históricos de escravidão no Novo Mundo (...) com contradições sociais

crônicas que emergiam do fato de que a desumanização completa do escravo como um

simples fator de produção permanecia uma finalidade inatingível” (PALMIÉ, 2002, p.

176).

Uma narrativa que Joana me ofereceu sobre um acontecimento que experienciou

enquanto vivia na República Dominicana, refaz com outros personagens alguns dos

argumentos que defende Palmié: a fantasia do controle total de objetos que funcionam

como extensões da pessoa apresenta como seu outro lado a desumanização a que se

incorre com isso.

Durante uma madrugada, na cidade de La Romana, Joana sentou-se para fumar

um cigarro e beber café no segundo andar da casa em que vivia com o marido e as

filhas. Era isso o que fazia quando lhe faltava o sono. Como em outras noites, ela

escutou um barulho que vinha da rua, um som que sempre lhe parecia o de uma cadela

com correntes.

Joana já havia contado ao marido sobre os sons que ouvia nas madrugadas. E ele

disse-lhe que se tratava de um bacá, e, por isso, que deixasse isso para lá. Mas naquela

noite, sentada sobre o reservatório de água do terraço, Joana não ouviu apenas aquele

barulho. De longe, viu também um cão andando na rua. O cachorro com as correntes, à

medida que se aproximava, transformou-se em um touro, acompanhado por vários

filhotes de cães atrás. Sem encarar o animal, ela começou a rezar alguns salmos da

bíblia.

Depois disso, Joana me disse, um vizinho suicidou-se. O homem era proprietário

de um negócio, e teria comprado um bacá. Ele teria feito uma tentativa, mal-sucedida,

de matar a esposa e um dos filhos. E, por fim, acabou com a própria vida.

– Muitas pessoas que compram um bacá se suicidam, se matam ou então o bacá

come o próprio dono. O bacá se alimenta de sangue e os donos de fazenda, de tempos

em tempos, têm que lhe dar um animal, uma vaca, um cavalo... Eles gostam de sangue,

o que querem é o sangue, e as pessoas acabam se matando, Joana concluiu. Para ela,

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os bacás são homens que se transformam em animais e animais que se transformam em

[outros] animais. Os dominicanos que têm firma, fazendas e negócios compram isso no

Haiti, mandam fazer no Haiti.

Convivendo com os imigrantes dominicanos é possível serem ouvidas narrativas

sobre os bacás. Seres híbridos criados a partir da manipulação humana de forças

espirituais, pouco escutei sobre como os bacás são produzidos. Em contrapartida, os

relatos sobre sua comercialização e atuação percorrem os relatos daqueles que vivem

em Porto Rico. Nesses relatos sobre a interação entre os seres humanos e esses seres

híbridos (meio-homens, meio-animais), coerção, pagamento e a possibilidade de

predação são completamente pervasivos.

A imagem dos bacás não é completamente estranha às dimensões de troca pelas

quais fluem dádivas e trabalho ritual entre pessoas e seus mistérios. Jean Crimnel, como

Gina salientou, gosta de trabalhar com cabeça de bacá e Gina por isso serve-lhe mel.

Assim Gina procura atingir seu paladar. Ela esperava que essa substância adocicada

atuasse sobre os gostos que o espírito manifesta, considerados perigosos e violentos,

como a manipulação de sangue de animais sacrificados ou das cabeças de bacás. E não

seria equivocado sugerir que, tal como ocorre com os paleros, estimular

demasiadamente Jean Criminel, oferecendo-lhe uma substância pela qual ele já sente

desejo, possa ser o que Gina teme. Possivelmente dar-lhe sangue seria abrir caminho

para algum futuro ato de revolta. Gina faz uso, por sua vez, de práticas de controle. É

buscando constantemente acalmá-lo que ela convive com ele em sua casa e no seu altar.

Ou, antes, em sua vida.

Adocicar (endulzar) os espíritos é uma técnica ritual partilhada pelos próprios

mistérios quando trabalham montados em seus cavalos, como logo descreverei. Em

geral, empregá-la, como Gina o fez, tem o intuito de controlar a rebeldia, seja a dos

espíritos ou dos seres humanos. Foi no contexto da solicitação de um trabalho espiritual

por uma cliente porto-riquenha, no qual se procurou adoçar o marido dela, que pude

observar algumas das técnicas de invocação empregadas para a materialização desses

espíritos. E essas vão além da colocação dos serviços.

Entretanto, se os serviços colocados nos altares fazem com que os mistérios

trabalhem sem que estejam visíveis aos olhos humanos, para que realizem suas tarefas

montados em seus cavalos, antes eles precisam chegar às casas. Por um lado, o

deslocamento dos mistérios ocorre porque as suas práticas de consumo ocorrem

geralmente no interior dos ambientes domésticos. Práticas que permitem a reciprocidade

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entre eles e as pessoas, bem como a produção de disposições para o trabalho dos

espíritos por causa dos efeitos das substâncias que lhes são oferecidas. Mas, por outro

lado, a chegada precisa ser produzida por meio da ativação de outras sensibilidades dos

mistérios.

2.2.4 Fazer chegar para trabalhar

Quando fui conhecer o altar de Armando no município de Canóvanas, fora da

área metropolitana de San Juan, ele aguardava uma cliente porto-riquenha. Ela iria até a

casa dele acompanhada de uma senhora dominicana, amiga de Armando. A porto-

riquenha seria consultada pelos mistérios. Na verdade, ela já vinha passando por essas

consultas havia algum tempo.

Era uma quinta-feira de dezembro muito chuvosa. O dia se via completamente

nublado e úmido. Eu havia chegado à casa de Armando cerca de quarenta minutos antes

delas. Quem me conduziu até lá foi Carlos, um senhor porto-riquenho taxista, amigo de

Rosa. Mas ele se recusou a retornar ao final daquela tarde para me buscar. Isso porque

enquanto fazíamos o percurso, adentrando o município de Canóvanas, ele me descrevia

extremamente apavorado o bairro San Isidro como uma barriada perigosa, em que

ocorreriam muitos assassinatos. Nesse bairro se localizava a residência de Armando e

Renan, seu companheiro porto-riquenho.

Armando havia ido até a entrada de Canóvanas. Lá pediu que o taxista o

acompanhasse de carro. O trajeto até a sua residência e de Renan era labiríntico. As

ruas, completamente sinuosas, de terra. À medida que íamos percorrendo o caminho,

viam-se casas simples enfileiradas, com os muros contíguos formando becos. Por causa

da forte chuva, tornava-se mais difícil fazer o trajeto enlameado e repleto de buracos.

O taxista demonstrava irritação e medo. Rezando, perguntava-me até onde

iríamos. Mas eu não sabia respondê-lo. Era a primeira vez que estava ali. Mais

adentrávamos a San Isidro, mais assustado ele sentia-se. Já na rua em que Armando e

Renan moravam, vimos dois homens adultos negros no portão de uma casa. E Carlos

esbravejou muito, quase retirando as mãos do volante. Ele não conseguia controlar seu

pavor. Em tom alto, dizia-me que gostava de mim, mas que não retornaria ali para levar-

me de volta a Rio Píedras. Carlos insistia em dizer que estávamos em uma barriada.

Quando ele parou o carro, Armando saiu para nos cumprimentar. E chegou a ver e ouvir

os comentários de Carlos.

Depois de desculpar-me com Armando por causa da reação de Carlos, ele me

encaminhou até uma construção, em um nível abaixo de sua casa. A casa se localizava

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em uma pequena encosta e foi feita com madeira. No interior daquela construção ele

organizou seu altar: um espaço criado com pedaços de papelão, folhas de zinco,

estrados de madeira a partir de uma estrutura de concreto. Em seu interior, uma espécie

de antessala, as imagens de santos podiam ser vistas em várias paredes.

Ao entrar, à esquerda havia dois quadros de virgens com um crucifico ao meio.

E, um pouco afastado, um quadro de Santa Clara. Na mesma parede, existiam ainda um

quadro da Virgem A Dolorosa e na parede à direita (pintada de azul e bolas rosas pelo

casal) outro de Anaisa/Santa Ana. Um quadro de São Elias foi pendurado numa pilastra.

Ao lado dessa estrutura, mas em um espaço separado por tábuas de madeiras, Armando

organizou um altar índio. Formado por dois bustos de índios, um feminino e outro

masculino – entre os quais fora colocado um totem –, esse altar se destacava pela

quantidade de terra exposta.

Logo que nos sentamos na antessala, Armando pediu a Renan para preparar uma

defumação (sahumerio). Ele começou a queimar o carvão. Em seguida, Renan acendeu

uma vela branca, que foi colocada no chão. Quando a defumação ficou pronta, Armando

se dirigiu à porta da antessala e ali permaneceu por alguns minutos. Então começou a

espalhar a fumaça pela antessala. Ao terminar, Armando entrou no altar.

Antes, no entanto, por causa daquele dia chuvoso e denso, Armando havia

comentado comigo que alguns mistérios não gostavam de subir nestas condições. Em

dias como aquele, só sobem os mistérios mais fortes, ele pontuou.

Neste intervalo de tempo, o telefone dele tocou. Uma cliente queria lhe

perguntar sobre quantos dias ela deveria manter um trabalho. Armando continuava no

altar. Depois de dar a resposta à mulher, que conversava ao telefone com Renan, nós

escutamos o som forte do sino. Amauri o tocava dentro do altar. Ele também borrifou

algo no ar, provavelmente água florida. Renan, então, comentou comigo que seu

companheiro estava chamando os mistérios.

Quando conheci Armando na botânica em que Joana realizava as consultas, ele

me explicou que os mistérios não chegam imediatamente. Seria necessário um tempo.

Tocar o sino e esperar foi como ele sintetizou. Mais do que isso, no entanto, precisa ser

feito em seu altar para que a chegada desses espíritos seja bem sucedida, ou seja, para

que os mistérios entrem no ambiente doméstico e depois ocupem o corpo de Armando.

Fumar um tabaco, por exemplo, foi o que Renan me disse que Armando faria logo

depois que ouvimos os sons do sino que vinham do altar. Esses atos realizados por

Armando e Renan para invocar os mistérios demonstram que eles precisam ser atraídos.

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Acender uma vela, produzir um chamado sonoro através do toque do sino, fumar um

tabaco, são atos sutis que criam as condições para que os mistérios se movimentem em

direção à casa de Armando.

No entanto, em outra conversa que tive com ele em seu altar, dei-me conta que

tais indicações materiais diziam respeito também a um comprometimento dos mistérios

com seus cavalos. Comprometimento que pode fazer de tal chamado quase uma ordem.

Armando me falava sobre as imagens dos santos e alguns objetos rituais relacionados

aos mistérios. Ao segurar o sino e sacudi-lo com vigor, ele comentou: – Já o espírito

tem que chegar, já sabe que tem que trabalhar. Seu tom de voz era marcadamente

impositivo. Semelhante maneira de falar eu já havia ouvido de Joana na botânica. Eu

tinha lhe perguntado se era possível que os clientes fizessem eles mesmos os trabalhos e

dedicassem aos mistérios: – Não é da mesma maneira, porque eu tenho os mistérios e

como eu os atendo eles têm que me obedecer!

Logo depois desse comentário, Joana me olhou de forma estranha. Parecia ter

percebido o tom autoritário que utilizou, elevando e impondo a sua voz. Geralmente

eram as relações de poder e controle dos mistérios sobre ela que eram acentuadas em

nossas conversas. Não o contrário, como ela acabava de expressar.

Essas considerações de Joana e Armando revelam que, além dos serviços que

geram disposição para o trabalho, esses pequenos ritos de invocação também são

importantes. Eles criam uma espécie de etiqueta disciplinar para o tipo de prestação que

está em jogo aqui. Como Palmié apontou em sua análise sobre as ngangas, pelo menos

nesse momento, o comando (ou a agência) está com os seres humanos.

Minha observação, no entanto, não significa que a interferência dos mistérios se

arrefece no cotidiano dos meus interlocutores dominicanos. O que me parece relevante é

que à medida que a prática de atender esses espíritos engendra outra dinâmica ritual,

algumas obrigações são criadas para os mistérios em termos de uma etiqueta disciplinar.

A partir dos pequenos atos que Armando e Renan realizaram, os mistérios sabem que

têm que chegar para trabalhar ou obedecer porque são atendidos, como Joana me

falou exasperada.

Esses procedimentos fundados em técnicas que manipulam certa materialidade

(chama de vela como sinal luminoso e não apenas como energia consumida pelos

espíritos, água florida borrifada no ar e fumaça de tabaco liberada), como aqueles de de

Armando, pretendem produzir um ambiente sensível propício aos mistérios. – É

preciso ensinar os mistérios porque o mundo hoje é outro. Quando um mistério sobe,

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ele olha ao redor e não reconhece nada, é preciso fazer com que ele se sinta à vontade,

bem, Luiz, amigo jamaicano de Gina, certa vez me explicou.

Neste sentido, se através de certa materialidade substantiva (alimentar) as

‘pessoas’ alcançam alguma autoridade, embora relativa e instável, sobre os mistérios

pondo-os para trabalhar, a manipulação de outras formas materiais criam condições

ambientais que revelam alguns modos de regulação das ‘relações’ em jogo. Como Gina

me explicou, acender as velas significa que ela está chamando os mistérios. Assim ela

os invoca quando vai trabalhar, e, possivelmente, esses espíritos também.

Depois que Armando saiu do altar, ele comentou com Renan sobre um talco que

a cliente porto-riquenha deveria trazer consigo. Consideração que me soou esquisita.

Passaram-se alguns minutos e as duas mulheres entraram na antessala. Traziam, de fato,

um frasco de talco infantil Johnson, duas garrafas médias de rum Bacardi e uma vela de

cera com formas humanas. Armando conferiu esses materiais, e argumentou com a

cliente porto-riquenha que ela só saberia se iria necessitar somente do trabalho ou ainda

de um banho durante a consulta com o mistério.

Armando me chamou para conhecer seu altar. Estávamos ali havia já certo

tempo quando Renan entrou. Ele dizia que a cliente porto-riquenha estava apressada.

Sentamo-nos novamente na antessala e só então Armando começou a fumar um tabaco,

como Renan me disse: – O tabaco é para chamar os mistérios. Eu tenho que fazer

certas coisas para que eles subam sem demorar muito, Armando completou. Para ele,

quando se santigua um tabaco para fumar é importante que isso seja feito até o fim.

Descartar o tabaco seria jogar fora seu aché, sua bendição.

Enquanto ele fumava, sentado em uma cadeira ao lado da minha, sua amiga

dominicana, Luz, que acompanhava a cliente porto-riquenha, me perguntou se não

havia essas coisas no Brasil. Antes, quando as duas chegaram, Armando me apresentou

como uma brasileira que quer conhecer os mistérios. Eu então mencionei o candomblé

como uma religião que se aproximaria da santería (regla de ocha). Luz me perguntou se

os caracoles eram jogados no candomblé. E Armando pediu para que eu olhasse a

pedra colocada pouco depois da entrada da antessala, próxima à porta. Na verdade, três

pedras formando um busto cuja cabeça tinha olhos, nariz e boca feitos com búzios (los

caracoles como Luz mencionou), além de uma espécie de penacho no topo: uma

imagem de Eleguá.

Luz passou da santería aos santeros. Mencionou alguns desses sacerdotes que

trabalharam na botânica em que conheci Joana, e se referiu particularmente a um deles

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que teria enlouquecido. Armando imediatamente reagiu. Ele não sabia o que se passava

com os santeros, que quando trabalham mal ficam loucos. Para Armando, com relação

aos mistérios, as pessoas só ficam loucas se deixam de trabalhar. Eles querem seu

corpo, ele concluiu. E em seguida argumentou: – Se a pessoa morre, eles reencarnam

em uma pessoa da família, que deve seguir trabalhando. Eu então lhe perguntei se os

mistérios eram uma herança. Repetindo o termo que eu empreguei, ele novamente

enfatizou: – Se uma pessoa morre, eles ficam na família.

Foi durante essa conversa que Armando pegou um frasco de uma loção,

conhecida como “Pompeia” (de fragrância dita francesa). Ele passou a substância em

seus braços e em ambos os lados das mãos. Passando a diante o frasco para a cliente

porto-riquenha, pediu-lhe que também usasse a substância e que ficasse tranquila. Ela

demonstrava nervosismo e já havia dito isso a Armando. Ele então pediu à Luz e a

Renan que fizessem o mesmo, e, por fim, a mim. Eu lhe perguntei qual era a finalidade

de usar a loção em nossos corpos: – Tranquilizar o espírito, Armando respondeu.

Em seguida Luz pediu-me que não ficasse nervosa. De fato, eu não estava. E

argumentou que há pessoas que se assustam, porque os mistérios chegam às vezes com

muita força. Por isso, seria comum que Armando chocasse bruscamente sua cabeça na

divisória que separa a antessala em que nos encontrávamos do altar. Comentava-se,

então, que há dias em que o mistério demora para subir e chega muito forte.

Mas foi Luz que quando usou a loção em seus braços e atrás do pescoço, em sua

nuca, sentiu um tremor (temblor). Mais tarde, como pude saber por causa da carona que

ela e sua amiga porto-riquenha deram-me de volta a Rio Píedras, a pedido de Armando

e do espírito que subiu nesse dia, Luz também é um cavalo dos mistérios.

Alguns minutos depois de usarmos a loção, Armando pediu a Renan um lenço

preto. Momentos antes, ele havia mencionado a palavra velho, mas nesta ocasião eu não

entendi do que se tratava. Ele voltou a falar então nesses termos. Até que nos informou:

– O velho está por aí, sem saber exatamente onde, mas ali, entre nós. Luz disse a

Armando que sentia uma vibração apenas em um lado do pescoço. Sua sensação

corporal era a de que eles [os mistérios] não conseguem subir, pois ela deveria sentir

isso [a vibração desses espíritos] dos dois lados do pescoço.

Renan então perguntou a Armando se deveria buscar junto com o lenço também

a capa. Depois que Renan retornou com essas duas vestimentas, Armando pediu que

todos ficassem tranquilos. Sua cliente porto-riquenha acabara de dizer-lhe, mais uma

vez, que sentia arrepios.

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Pronunciando o nome de Papa Legba, Armando enunciou uma sequência de

frases em outra língua, que não era o espanhol. E eu não pude compreendê-lo. Então

pediu a Renan a garrafa de rum que a cliente lhe trouxe e bebeu uma quantidade

considerável, de uma única vez, no gargalo. Mais alguns minutos se passaram, quando

Armando movimentou seus ombros, sacudindo-os com vigor e sussurrou algo. E

novamente fez outro pedido a Renan. Agora, uma garrafa de água florida, cujo líquido

Armando borrifou na capa e no lenço.

Novamente voltou a pedir tranquilidade – sua cliente porto-riquenha insistia em

afirmar que estava nervosa –, pois ele não queria retirar ninguém do chão. Luz disse

que sentia a corrente e Renan então comentou que sentia a presença de São Elias ali,

apesar de não ter isso e não montar. Armando reagiu a esses comentários dizendo que

era a corrente que estava passando. Lentamente ele foi se transformando.

Foi depois que borrifou a água florida na capa e no lenço que seu corpo começou

a se movimentar para trás e para frente. Nesse momento, ele pediu a Luz para iniciar

uma oração. Primeiro um pai-nosso, que todos oramos. Ela então emendou uma ave-

maria. Renan, de pé e ao lado de Armando, posicionou sua mão atrás da cabeça de

Armando, para amortecer o choque de seu companheiro na divisória. O que não

adiantou. Sentado, Armando se movia para frente e para trás durante certo tempo. Mas

logo depois que Renan se afastou, Armando bateu a cabeça bruscamente. Seus olhos

arregalaram-se. Vagarosamente arrotos foram liberados. Esse era o som que ouvíamos

pausadamente, devagar... Ao olhar para Armando, víamos pouco a pouco que São Elias/

Barão do Cemitério ali chegava.

Depois de materializar-se, esse mistério, conhecido como o Barão do Cemitério

– o primeiro morto enterrado em um campo santo, como os meus interlocutores

dominicanos o definem –, começou a consultar a cliente porto-riquenha. E montado em

Armando ele fez um trabalho para ela: – Armando está me ajudando a trazer de volta

meu marido, a adocicá-lo, a mulher posteriormente me falou.

Essas técnicas de invocação de São Elias me permitem reforçar uma

consideração que fiz anteriormente, quando afirmei que, ao aproximar a discussão de

Palmié sobre as ngangas dos mistérios não pretendia dizer que esses espíritos são

“objetos” ou “coisas”.

Como venho procurando demonstrar, a questão principal que perpassa esse

capítulo é demonstrar a alternância entre as posições ou condições dos espíritos quanto

a duas dimensões das prestações: aquelas em que eles se fortalecem reciprocamente e

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alienam aos clientes parte daquilo que os constitui. O que me interessa é a variação e

não a fixidez. De modo que o que faço, ao longo dessas descrições especialmente, é

mapear algumas experiências sobre a instabilidade e a dissociação como uma forma de

relação. Por alternância, volto a afirmar, entendo a capacidade dos mistérios se

destacarem da força que lhes constitui, vinculada à atenção ritual prestada por certas

pessoas e baseada nos mais diversos vínculos substantivos (alimentos, bebidas,

lámparas e velas), e apresentarem isso a outros sob aspecto novo. Enquanto um produto

(serviço ou trabalho) destinado a sujeitos que lhes são estranhos, mas que nem por isso

estão fora do circuito ritual no interior do qual os mistérios e as pessoas se mantêm

cotidiamente.

A invocação de Armando reforça que, para os meus interlocutores, os mistérios

não são “coisas” no sentido estrito. 73

Isso porque se, por um lado, parece-me que nela

está mais ou menos explícito que a aproximação da cliente porto-riquenha de Armando

e seus mistérios se baseou em um lógica contratual: não apenas a pressa dela, mas a

própria etiqueta ritual na qual ele mesmo se engajou, definem uma dinâmica de

produção de um tarefa por demanda; por outro lado, mesmo assim chamar os mistérios

foi uma técnica ritual que demandou cuidados especiais.

Esse cuidado não se deveu somente ao fato de que a incorporação da contraparte

fundamental dessa troca poderia não ser bem sucedida. O que frustraria a cliente e

Armando. Ou que sua ida poderia gerar sérios traumas no cavalo. Assim argumentou

comigo Belié Belcan montado certa vez em Armando, quando observou que é

importante tranquilidade no momento do transe. Pois, em seu decorrer, há o risco do

espírito da pessoa não retornar ao seu corpo depois que o mistério o deixa. O que

implicaria a sua morte.

A tranquilidade que Armando e Belié Belcan mencionaram é uma noção

importante porque diz sobre aquele que está na iminência de receber o espírito e o

ambiente que precisa ser criado para que isso se efetive. Odores doces, como o da água

florida e da loção, são utilizados para suavizar a atmosfera que circunda os mistérios e o

corpo que irá recebê-los. No limite, os próprios espíritos.

Esse é um aspecto sensível característico das relações entre as ‘pessoas’ e alguns

de seus espíritos.74

Como discutirei no quarto capítulo, é engajando-se na liberação de

73

E me pergunto se em algum outro contexto etnográfico, é possível de fato falar disso nestes termos. 74

E esteve presente na maneira como Ogun Balendyó elaborou o que chamo de um plano de ação ritual

para mim, ao me prescrever a necessidade de um despojo e banho antes que eu regressasse ao Brasil.

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odores característicos (especialmente acres e fortes) que alguns dos meus interlocutores

dominicanos evitavam a aproximação e contato com os chamados mortos: espíritos

anônimos ou mesmo de parentes que para eles se distinguem dos mistérios que atendem

ritualmente.

Cuidado, também, foi preciso com as vestimentas que o Barão do Cemitério

usaria. Seus trajes receberam um pouco de água florida. Além disso, foi preciso saber

esperar. Pois em um dia de dilúvio como aquele era preciso aguardar o deslocamento do

mistério. Tal desvelo, por exemplo, não se assemelha com as técnicas mobilizadas para

fazer com que o espírito que se encontra dentro da nganga apresente-se nos rituais das

regras del palo.

Vê-se isso nas descrições de Routon (2008, p.632-633) sobre uma cerimônia no

palo mayombé: “– Vamos velho”, era assim, ele diz, que o morto da nganga, construída

com um caldeirão e no interior da qual havia, entre outras coisas, um boneco, foi

chamado. Após a entoação de cantos que tardavam em cumprir o seu papel, um novo

cantor assumiu a liderança e o corpo do mayombero exibiu os primeiros sinais de

possessão (convulsões rápidas, explosões vocais, respiração ofegante e babas). O

ambiente na sala, de um automatismo triste se tornou fervoroso. Um canto evocava que

cães perseguissem um cimarrón que foi para o monte. Com isso, Routon explica,

espera-se provocar o morto, invocar o espírito com mais força, quando uma pessoa não

quer cooperar e luta com os espíritos para que não tomem seu corpo.

De acordo com Routon, a cerimônia, que começou como uma honra aos mortos,

transformou-se, impregnando-se com a imagem violenta de um capataz da plantation e

seus cães atrás de um escravo fugido. “Os espíritos dos escravos fugidos estão sempre

sem ar, eles sempre chegam correndo para escapar do capataz e seus cães”, comentou-se

na cerimônia.

Relutante a emergir de seu lugar escondido no outro mundo, o espírito do

escravo fugido de Arcano tinho sido forçado a participar da festa feita em sua

honra através de um apelo para a imagem aterrorizante de uma caça de um

escravo colonial. Com a face contra o chão, o espírito incorporado se

contorcia com seus braços firmemente pressionados contra a extensão de seu

torso de um modo terrivelmente reminiscente da boca bajo, uma tática

disciplinar que requeria a um escravo deitar-se com a face no chão enquanto

recebia chibatadas. Um dos assistentes rituais então suavemente colocou a

lâmina de um facão do mato sobre os ombros do espírito, estendendo-a para

baixo em um ângulo que cruzava suas costas. O espírito logo se recuperou,

ficou de pé, e começou a dar conselhos para todos os presentes, em uma fala

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misturada consistindo do bozal, o espanhol entrecortado falado pelos

escravos africanos recém-chegados à ilha e a variante cubana do kikongo

(ROUTON, 2008, p.633 grifo do autor).

Assim como os mortos das regras del palo, diz-se que os mistérios são também

de outro mundo, muito embora, como será visto adiante, tal mundo para os mistérios se

encerre no mesmo em que os vivos habitam. Como observou Luiz, (...) o mundo hoje é

outro. Quando um mistério sobe, ele olha ao redor e não reconhece nada (...). Por isso,

Luiz indicou, é importante que os mistérios se sintam bem ao chegar à casa dos cavalos.

Sua consideração indica que fazer chegar um mistério para trabalhar implica lidar com

alteridades que não se identificam tampouco se comportam – pelo menos os espíritos

mais conhecidos vinculados aos meus interlocutores dominicanos com os quais pude ter

contato – como os escravos fugidos, cimarrones das plantações no Novo Mundo.

Essa é uma diferença importante, pois cria uma série de nuances não apenas

sobre quem troca (‘pessoas’ e seus espíritos ou ‘pessoas’, seus espíritos e os clientes) e

o que se troca (serviços que fortalecem mutuamente ou trabalhos espirituais realizados

para terceiros). Chamo atenção para a existência dessas nuances pela seguinte razão:

articulada a essa economia ritual apresenta-se uma cosmologia na qual os mistérios

reconhecem uma ordem espiritual singular em que está implicada também uma noção

de trabalho. O que discutirei a seguir é que se isso quer dizer que esses espíritos têm

suas tarefas – como várias das situações etnográficas já demonstraram –, sua realização

se dá de acordo com um regimento cosmológico que me parece singular. Outros

elementos, além daqueles que descrevem as relações rituais (com seus variados fluxos,

dimensões, posições e transbordamentos) entre contrapartes humanas e espirituais,

fazem-se relevantes nessa cosmologia. Se há trocas de naturezas diversas, há igualmente

hierarquia e colaboração quando se caracteriza o trabalho ritual dos mistérios.

– Os mistérios não foram escravos, foram pessoas livres pelo mundo, os

orichas foram escravos, isso é outro ramo, depois que os escravos morreram... depois

os indígenas, eles, os mistérios, saíram. Os mistérios são espíritos de várias partes do

mundo, Belié Belcan argumentou comigo montado em Armando. Atenta a essa

perspectiva de Belié Belcan, descrevo abaixo uma cena etnográfica em que dois modos

rituais (pagar e adocicar), quando empreendidos pelos mistérios, revelam uma

cosmologia delineada e experienciada como uma divisão, chamada pelas pessoas e

pelos mistérios de A 21 Divisão (no singular mesmo).

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2.2.5 Pagar e adocicar: táticas de um plano ritual

Quando os mistérios trabalham não o fazem isoladamente, mas em colaboração.

Conversando com Gina em seu altar, ela me explicou que São Elias, Santa Marta e

Guedé Limbó são companheiros de trabalho. Quando ela põe um serviço para eles ou

apenas para São Elias, os outros dois lhe ajudam. Gina já havia destacado a

colaboração entre os espíritos quando me mostrou o quadro do mistério que trabalha

com São Elias e rápido.

Quando eu passei a frequentar a sua casa e o seu altar, ela mencionou algumas

vezes que eu retornaria a Porto Rico. No entanto, nunca me explicava exatamente o

motivo. Certo dia, Gina avisou-me que um mistério queria falar comigo. Eu estava

prestes a regressar ao Brasil e insisti que precisava saber do que se tratava. Gina pediu-

me para esperar.

Abriu a cortina da entrada do altar e foi até a mesa. Encostando sua mão direita

com a parte exterior sobre a testa ela tocou o sino, abaixando-se até a altura em que

estavam as imagens dos santos no chão. Como se ouvisse algo, ela aproximou sua

cabeça do quadro de São Santiago Apóstolo, que estava em frente à mesa, com uma

nota de um dólar pendurada no canto direito: – É São Miguel que quer falar com você.

São Miguel é bom... Foi o que ele, São Santiago, me disse. Gina me pediu então que eu

fosse à sua casa ao fim da tarde do dia seguinte, por volta das 18 horas, para uma

consulta.

Quando toquei a campainha ao final da tarde, Gina estava ainda deitada.

Trocamos algumas palavras enquanto ela deixava a sonolência de lado. Aproveitei a

ocasião para entregar-lhe uma imagem impressa em papel de Nossa Senhora da

Aparecida, que ela incorporou ao seu altar, aderindo-a na parte elevada de uma parede.

No dia anterior eu, ela e Luiz conversávamos, enquanto bebíamos café em sua

sala, e inusitadamente Gina me perguntou sobre o patrón do meu país. Expliquei-lhe

que no Brasil havia uma padroeira, dizendo-lhe o nome da santa. Gina então reagiu.

Naquele momento, os mistérios estavam dizendo-lhe que a padroeira era como São

Aparício, faz as coisas aparecerem e trabalha com São Donato. No decorrer da

conversa, olhando para a parede da sala diante de nós, ela argumentou que estava vendo

a santa. Pediu-me então que lhe desse uma imagem da padroeira.75

75

Caderno de Imagens do Capítulo 2. Imagem 8.

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Já desperta, ela iniciou a preparação de uma defumação (sahumerio). Ao pôr

uma pedra de carvão em uma chama do fogão, Gina comentou que sentia frio. Quis

saber se eu também estava com a sensação, ao que lhe respondi que não. Ela então

aproximou suas mãos do fogo para aquecê-las, passando-as depois por seu pescoço e

suas costas. Parecia-lhe que havia um mistério ali que sentia muito frio.

Luiz, seu amigo jamaicano, chegou logo depois. Ele também seria consultado

pelos mistérios. Ela permanecia com a sensação de frio, e argumentou com seu marido

que era São Lazaro quem estava na sala entre nós. Algum tempo depois, ela deu uma

vela branca mediana para mim e outra para Luiz.

Gina se dirigiu até o altar. Quando retornou usava uma capa azul com bordas

brancas, os pés estavam sem sapatos, e tinha nas mãos um jarro divisional, objeto ritual

da 21 Divisão, que sempre contém um líquido. Para chamar os mistérios, ela ingere um

pouco dessa bebida. Caminhando até a entrada da porta, subiu alguns degraus. As

pernas então cambalearam, seu corpo estremeceu, o que a fez se desequilibrar. Já firme,

ela ergueu o jarro, olhando fixamente para o horizonte enquanto sussurrava algumas

frases. Em seguida fez libações em três lugares no chão, diante da porta da sala, para

que os mistérios entrassem em sua casa.76

Ao descer, mancava, andando com

dificuldade.

Direcionando-se a um móvel sobre o qual havia uma grande garrafa de rum,

presente que Luiz tinha levado naquele dia para os mistérios, ela pegou a bebida. Ao ver

isso, seu marido comentou em voz baixa comigo que o rum não era para ele (Ogun

Balendyó), mas para outro mistério.

– Esse garçon está sempre trazendo as coisas para os mistérios... É por isso que

ajudamos ele. Porque é assim. Nós vemos isso e o ajudamos, Ogun Balendyó

comentava ao receber do marido de Gina a garrafa de rum que Luiz havia lhe dado,

enquanto eu me sentava em frente ao mistério, que, ao deparar-se comigo, chamou-me

de madama.

Além da capa, Ogun Balendyó usava no altar um pañuelo na cabeça com um nó

atado para frente, também azul. Ao redor do pescoço, ele havia transpassado mais ou

menos sobrepostos três lenços (pañuelos): vermelho, verde e azul. Nessa consulta, o

mistério se apresentou como espanhol, destacando que na Espanha tem muitos cavalos

dos mistérios que o montam, que montam seu mistério, ele enfatizou. Sua pronúncia do

76

Conforme Gina, além dos pontos com o líquido contido no jarro divisional e rum no chão da porta, é

bom que se queime água florida nas invocações dos mistérios para atrair boa sorte, cheiros bons.

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espanhol acentuava ao final das palavras a letra ‘s’, e Ogun Balendyó empregava ainda

algumas palavras em crioulo haitiano.77

Durante o tempo em que estive com ele, o

mistério fumou tabaco, ingeriu rum, e utilizou uma vela acesa, cuja chama eu encarei

enquanto o espírito se fixou em meus olhos e transmitiu seu saber divinatório para mim.

Ele confirmou que pediu ao cavalo – foi assim que se referiu à Gina em todo

momento – para avisar-me que queria falar comigo. O motivo era um despojo que

deveria ser feito em mim. Como eu frequentei muitos altares, ele argumentou, eu não

poderia voltar ao Brasil sem uma limpeza. Em mim aderiram-se o que os meus

interlocutores dominicanos chamam de coisas más, espíritos de mortos anônimos que

podem perambular pelas ruas, mas também se encontram nos altares, levados pelos

clientes sem que o saibam. De acordo com ele, eu estava muito pesada, sem conseguir

dormir bem. Era necessária, por isso, uma abertura de caminho.

Quando Ogun Balendyó mencionou o preço do despojo, na verdade, ele

pronunciou apenas alguns números, eu não entendi o que isso significava. Perguntei-

lhe o que me dizia: – É isso a que vocês chamam de dinheiro, ele me respondeu. E

depois completou: – Eu tenho que pagar os outros que vão me ajudar (com o meu

despojo e banho), meus irmãos. Momentos antes, o mistério havia dito que possui sete

irmãos. Eu quis saber se ele se referia a irmãos espirituais. Sete irmãos espirituais e em

vida, ele sintetizou.

Logo depois, Ogun Balendyo fez referência ao badi, palavra do crioulo haitiano

que significa altar.78

Novamente não compreendi o que o mistério me dizia.

Conversando com Gina e seu marido mais tarde, entendi que o que ele me informava

era que o pagamento pelo despojo deveria ser colocado, posteriormente, por mim ali

mesmo, no próprio altar.

O mistério foi incisivo comigo. Ele queria saber se eu realmente faria o despojo.

Era patente que havia desconfiança dele em relação a mim. Enquanto questionava-me se

eu realmente faria o que ele tinha acabado de me prescrever, Ogun Balendyó comentou:

– É por isso que o Ogum do Mar fica aborrecido, não gosta dos seres humanos...

77

Gina e seu marido explicaram-me que os mistérios usam com o casal palavras em patuá (é assim que

meus interlocutores dominicanos chamam o crioulo haitiano): tafu (tabaco); tafiá (rum); cofi (café); lajan

(dinheiro), la plas (marido de Gina, que auxiliava os mistérios quando montados nela). Métraux (2007, p.

60) observou que la place era uma abreviação de “comandante geral do lugar”, o mestre das cerimônias

vodu nos templos urbanos no Haiti. 78

Métraux (2007, p.66) também salientou que caye-mystères, bagui, badji ou sobadji eram os nomes para

o santuário no interior dos templos vodu urbanos; geralmente, uma sala que, ao fundo, era ocupada por

um ou mais altares.

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Porque eles não lhe dão o que prometem. Os seres humanos lhe pedem as coisas e

depois que conseguem não lhe pagam.

Extremamente sério, fixando os olhos nos meus, Ogun Balendyó me explicava

que eu faria um despojo no mar e então um banho no rio. Após ouvi-lo, indaguei-lhe se

poderia anotar o que seria preciso para a limpeza. – Você vai fazer? Você vai anotar,

mas vai fazer mesmo?, o mistério insistia. Somente quando lhe dei certeza de que faria o

despojo, Ogun Balendyó começou a ditar-me o que eu deveria comprar e entregar ao

cavalo. E descreveu-me, detalhadamente, seu modo de ação ritual.

O despojo seria feito primeiro no mar. Depois disso iríamos a um rio:79

– Eu

vou com o cavalo no mar. Lá, em cabeça do cavalo [ou seja, ele não estaria montado

em Gina],80

o cavalo vai invocar Yemaya e esse Ogum, que é metade sereia [e como

quisesse lembrar-se da palavra disse pescado, logo se corrigindo]... Esse Ogum que é

metade pescado e metade pessoa. Quando chegássemos ao rio, Ogun Balendyó não

entraria, porque aqui é com outros mistérios, ele destacou: – São Judas Tadeu também é

um Ogun, mas do rio [era quem iria trabalhar nesse lugar]. Aí vão ser invocados La

Caridad del Cobre, para fazer tua abertura de caminho, e os índios Guaicaipuro e... [o

outro nome eu não consegui entender]. Ao repetir-lhe o que deveria ser comprado, o

mistério fez um acréscimo. Lembrou-se que precisava pedir-me para comprar também

maças. As frutas seriam levadas porque há mistérios rebeldes no rio. E ele, Ogun

Balendyó, precisaria adocicá-los (endulzarles).

– Os mistérios estão todos na Terra, no céu estão apenas Papa Bon Dieu, Jesus

Cristo e o Espírito Santo. Deus escolheu eles para ficar com ele no céu. Os mistérios

estão no que vocês, seres humanos, chamam planeta Terra. Eles estão....Sem completar

a frase, o mistério movimentou as mãos como Gina costumava gesticular, indicando que

esses espíritos estão no ar, ao redor.

Por causa dessa conversa, esqueci-me de pagar-lhe a consulta. Já na sala, disse

isso ao marido de Gina, que me pediu para voltar ao altar. Receosa, reagi. Seria melhor

ele perguntar ao mistério se eu poderia entrar e pagá-lo. Ao sair do altar, o marido de

Gina deu-me passagem para entrar.

Ogun Balendyo já se encontrava com o amigo jamaicano de Gina. Ambos

conversavam. Luiz estava sentado à sua frente com um lenço vermelho amarrado à

cabeça (como Ogun Balendyo) e fumava um tabaco. O mistério fazia referência ao

79

Além de mim, uma cliente porto-riquenha de Gina e seu marido passaram pelo despojo e banho. 80

Modalidade de incorporação relativa dos espíritos, como discuti no primeiro capítulo.

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medo que o rapaz sentia, o que lhe impedia de montar os mistérios. O rapaz já havia me

dito que Ogun Ferraile é seu protetor, ele é um soldado dos mais poderosos, Luiz fez

questão de enfatizar.

Eu então os interrompi. Trazia as notas nas mãos. Exasperado, o mistério me

disse para pôr o pagamento em qualquer lugar do altar: – Eu não toco nisso, eu não

ponho a mão nisso, ele esbravejou. Novamente faltou-lhe a palavra dinheiro para as

notas com as quais eu lhe pagava a consulta.

2.2.6 Tateando mistérios e divisões

Que os espíritos trabalham em companhia, tendo a ajuda de outras entidades,

não parece ser uma peculiaridade da maneira como os mistérios se engajam em suas

tarefas visando aos humanos. Ochoa (2004), Espírito-Santo (2009) e o próprio Palmié

(2002) já chamaram a atenção para isso em suas etnografias sobre Cuba.

Em sua etnografia sobre as regras del palo, particularmente aquelas chamadas de

palo briyumba, Ochoa observa que ao lado das prendas ngangas mais poderosas, cujos

caldeirões alcançam altura considerável, geralmente veem-se outras que são suas

“aliadas”, que ajudam as primeiras, fabricadas em recipientes de ferro e cabaças

menores (OCHOA, 2004, p.125).

Recuperando o trabalho de Cabrera, Palmié (2002, p.176) ressaltou a existência

de uma estrutura de comando e submissão nas regras del palo. Sacerdote e espírito eram

apenas alguns dos agentes que tinham lugar para fazer uma nganga funcionar. Na

narrativa que ele recupera em seu livro, uma informante de Cabrera define tudo o que

está no interior da nganga como “animais”, “turmas de escravos” sujeitas, às vezes, à

revolta. Esse agrupamento ajuda o espírito (nfumbi) em seu trabalho. O sacerdote

(ngangulero) comanda o espírito, que é o capataz que dá ordens aos animais e galhos

(“turmas de escravos”) que são sua força escrava.

Já Espírito-Santo (2009, p.101-103) observa que em Cuba há basicamente dois

tipos de entidades na cosmologia espírita. O primeiro tipo é chamado de “cordão

espiritual” e apresenta-se como o grupo mais importante. O segundo se refere aos

espíritos familiares, que podem se inserir no cordão espiritual de um médium, ou

mesmo representar um cordão específico. Para a autora, o cordão espiritual principal é

formado por espíritos cujas características biográficas e físicas misturam-se às

narrativas e imagens de grupos sociais e étnicos historicamente diversos em Cuba.

Freiras, padres franciscanos, índios e indianos, escravos, cimarrones, escravos

emancipados, ciganos, intelectuais e negociantes, europeus dos séculos XVIII e XIX,

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chineses, palestinos, árabes, artistas e dançarinos de cabaré, médicos, devotos católicos,

haitianos, mexicanos e feiticeiros africanos são alguns dos espíritos que constituem o

cordão de alguém. Um cordão espiritual é organizado hierarquicamente, pois à frente

dele há sempre uma entidade chamada de “anjo da guarda”. O espírito que, durante as

sessões de possessão, Espírito-Santo argumenta, possui mais “luz” ou “conhecimento” e

cujo encargo é coordenar e supervisionar os outros espíritos em suas tarefas respectivas.

Espírito-Santo salienta que cada uma dessas entidades conecta-se a um conjunto

de histórias mais amplo, a um grupo de identidade distinto e particular chamado de

“comissão”. Para ela, uma comissão é ontologicamente mais ampla do que

simplesmente um grupo selecionado de espíritos. Isso porque tal agrupamento contém

todos os seres que têm historicamente, através de suas vidas, tornado-se parte dele por

causa de identidade, profissão, filiação religiosa ou causa da morte. “Comissão médica”,

“comissão africana”, “comissão ngangulera” (“comissão palo”), “comissão científica”

são algumas delas.

[...] se uma médium trabalha com o espírito de um índio [...] ela saberá que o

poder e a visão deste espírito residem e dependem, no mínimo parcialmente,

da conexão dele com todos os outros espíritos índios – a comissão índia –

cujo conhecimento e serviço esse espírito deve frequentemente evocar para

ser bem sucedido em sua desejada evolução (ESPÍRITO-SANTO, 2009,

p.103).

Se a partir do detalhamento do despojo e do banho que Ogun Balendyó me

prescreveu é possível afirmar que os mistérios são espíritos que trabalham em

companhia, acredito que algumas especificidades caracterizam esse tipo de associação.

Antes dele (ou talvez justamente porque estava com ele), Gina já havia chamado a

minha atenção para isso. Ela ressaltou que ao pôr um serviço para determinado espíritos

outros que lhe são próximos trabalham junto com o mistério principal. Companheiros

de trabalho foi a expressão que ela usou para definir esse tipo de ação espiritual entre os

mistérios, como narrei no início desse capítulo.

Neste contexto em que eu assumi a posição de uma das contrapartes da troca,

apareceu mais uma vez uma descrição sobre um contrato. Essa foi uma das tônicas de

Ogun Balendyó enquanto conversávamos no altar. E não seria equivocado supor que a

sua preocupação quanto à minha confirmação em fazer a limpeza estava relacionada ao

seu compromisso: ele precisava pagar os outros mistérios que o ajudariam, seus irmãos

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espirituais e em vida. Sua insistência, talvez, era uma repercussão do acontecimento

com aquela cliente dominicana, em que o trato firmado não foi saldado.

Mas ao explicitar uma relação de contrato, Ogun Balendyó traçou outros

delineamentos no interior dos quais os mistérios se associam. Além do pagamento como

uma forma de vínculo entre os próprios mistérios, um universo cosmológico descrito em

termos de uma concepção espacial foi enfatizado. Em teoria, cada espírito singular

realizaria uma tarefa em pelo menos três ambientes: na praia, no rio, e como eu soube

somente no momento do banho, na atmosfera. Isso, segundo Ogun Balendyó, incluiria a

transferência de responsabilidades dentro do plano de ação ritual que me foi traçado.

A primeira especificidade que aponto diz respeito ao estatuto desses espíritos.

Os mistérios parecem ser tão diversos quanto os ambientes geográficos em que podem

ser encontrados ou nos quais vivem. Belié Belcan, por exemplo, revelou-me que os

mistérios foram pessoas livre pelo mundo. Ogun Balendyó, que os mistérios estão no

que nós, seres humanos, chamamos de planeta Terra. Das duas perspectivas, esses

espíritos preservam (e se esforçam para recriá-lo, como será visto ao final do capítulo)

seu cosmopolitismo.

Mas a partir de mais alguns detalhamentos sobre a minha limpeza, pode-se

imaginar que, se pelo menos um espírito europeu (espanhol) de séculos passados e uma

prostituta estiveram presentes no rio, diversos outros trabalharam como mistérios: entre

eles, espíritos híbridos, condensações de potência humana e animal, mas também do que

chamarei de energia vital, na falta de um termo melhor que defina a existência de um

mistério que é um sol, um Barão muito poderoso, segundo Gina. Vamos, então, a alguns

dos detalhes.

Embora invisível para mim, Ogun Balendyó estava em cabeça de Gina, com ela

e entre nós, desde que deixamos a casa dela bem cedo pela manhã. Logo que eu e a

senhora porto-riquenha chegamos, Gina nos disse que chamaria São Santiago antes de

sairmos. Ela se dirigiu ao altar e em poucos minutos ouvimos o sino tocar. Seu marido

foi até o cômodo e então me pediu para entrar. Ao ver-me, Ogun Balendyó se referiu a

mim como pitiso (menina, filha pequena, Gina me explicou, porque para ele nós somos

muito jovens). Sem o lenço na cabeça e a capa, três lenços (vermelho, verde e azul)

estavam sobrepostos ao redor de seu pescoço.

Indagando-me se eu estava bem, o mistério quis saber em seguida se eu estava

com o pago (pagamento). Respondi-lhe que sim, ao que ele reagiu dizendo-me que o

deixasse numa espécie de caldeirão que havia dentro do altar. Mostrando-me um galão

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no qual se via grande quantidade de um líquido e uma vela em cima, o mistério voltou a

esclarecer que se tratava de um despojo na praia e um banho no rio. O marido de Gina,

que estava dentro do altar conosco, então foi lembrado por Ogun Balendyó de levar

tabaco, pois nós vamos também, o mistério lhe disse.

Gina saiu de casa tendo ao redor de sua cintura alguns lenços amarrados. Nos

ombros, ela havia posto um lenço amarelo. Em seu corpo havia ela, Ogun Balendyó e

talvez outros mistérios, que seriam invocados no decorrer daquele dia, cuja cor de cada

lenço indicava.

Na praia, depois do despojo que Gina e seus mistérios realizaram em mim,

lancei alguns centavos de dólar para trás. Assim paguei pelo despojo um mistério que

vive no mar, um ser híbrido (meio-pescado, meio-humano). Gina nos pediu que

saíssemos da faixa de areia sem olhar para trás. Devíamos seguir caminhando em frente.

– Tudo de mal, todas as energias negativas vão ficar aqui, ela mencionou. Yemaya,

Ogun Balendyó me falou na consulta, também seria invocada para mim ali. E Gina

usava na praia um lenço amarelo ao redor da cabeça, que representava essa entidade.

Ainda na praia, lembro que ao me pedir para segurar a camisa da cliente porto-riquenha,

enquanto despojava a mulher, Gina estava com voz rouca, como a de Ogun Balendyó.

Enquanto nos deslocávamos até a região de rio, ela comentou no carro conosco:

– O rio e o mar são onde se há mais força, os dois lugares em que há mais força. Em

meio a pedras e à água do rio, mais mistérios foram invocados e outros subiram em

Gina. Ogun Balendyó preparou meu banho logo depois que Gina fez um resguardo (ela

ainda não estava montada) e pediu que eu o ingerisse. Aparentemente São Judas Tadeu,

um mistério que vive ali, não se apresentou.

Ogun Balendyó adoçou o mistério rebelde do rio utilizando as maças (que

parece ser um híbrido de humano com abelha), invocou outro, também um petro, mas

que é o sol, acendeu velas e pediu-me para manter uma acesa quando chegasse aonde

vivia. Uma das velas foi colocada sobre um desenho que ele fez com cascarilla em

uma ampla e mais elevada pedra, espécie de mirante.

Depois que terminou de atender-me ele deu passagem à Anaisa. Essa metresa

cuidou primeiramente da cliente porto-riquenha de Gina, depois de seu marido. Anaísó,

na verdade, pois logo que subiu em Gina bamboleando a cintura como se estivesse

mantendo relações sexuais, com as mãos nos órgãos genitais, essa metresa anunciou

que estava sob sua forma petro: – Anaisa de Piés chegou! Eu sou Anaisa Petro... Eu sou

velha... As pessoas dizem que eu não subo no rio, que eu só subo no seco, eu subo em

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qualquer lugar onde eu quero... Eu possa nadar no rio..., a metresa nos dizia,

solicitando ao marido de Gina seu lenço amarelo, que ela mesma amarrou à cabeça,

deixando uma das pontas na lateral do ombro, como se fosse uma trança; depois

perfume, que usa nas partes íntimas do corpo de Gina, cerveja e cigarro.

O marido de Gina, depois de procurar em várias sacolas sobre as pedras, não

encontrou o maço. Anaisa percebeu isso. Vagarosamente, ela saiu da frente da cliente

porto-riquenha e organizou com muito zelo, sobre uma pedra, alguns materiais do

despojo que estavam completamente espalhados. Olhou na direção de uma bolsa

plástica e caminhou até onde a sacola estava. Ali dentro encontrou o maço de cigarros.

Seu cuidado em fazer isso era notório.

Preparada (perfumada, ela fumava e bebia sua cerveja quente), Anaisa

conversava conosco enquanto macerava as plantas para o banho da senhora porto-

riquenha, dizendo-nos que já era bem velha. E que a chamam também de Anaisa 7

Voltas: – No tempo em que eu trabalhava em negócio de madama, eu tinha muitos

homens. Indaguei-lhe, ao ouvi-la, que tempo foi esse. Vagamente, Anaisa me

respondeu: – Era um tempo. Ao encarar-me, seu olhar transmitia seriedade, e ela me

questionou: – E o que tu crês, que tu és desse tempo de agora? Teu corpo agora é esse,

mas você vem de outro tempo. Sentada sobre uma pedra próxima à água do rio,

mantendo a cabeça abaixada enquanto trabalhava, Anaisa comentou irritada: – Santa

Marta está aqui, ela vive fodendo atrás de mim. Mas Anaisa não a deixou passar (subir

em Gina).

A partir destes detalhamentos, sugiro que o plano ritual que Ogun Balendyó

traçou parece contar com espíritos cuja força se liga, em parte, a ambientes geográficos

singulares (e há a possibilidade de que tais ambientes se cristalizaram nesses seres post-

mortem ou eles se cristalizaram nesse ambiente durante a vida). Além dos espíritos

híbridos que foram invocados naquele contexto, a própria Santa Marta A Dominadora,

como apontei no primeiro capítulo, é descrita como uma combinação de mulher negra

rústica e cobra.81

É neste sentido que sugiro uma segunda especificidade nessa maneira como os

mistérios trabalham ritualmente: se de um ponto de vista mais geral, os espíritos se

associam em um universo cosmológico que é caracterizado por algumas premissas

81

Essa espécie de simbiose de uma vida em comum, que cria intimidade entre ambientes e aqueles que

foram também humanos, como os mistérios, será evocada com mais vagar no próximo capítulo. Nele

discuto a interiorização dos mistérios na casa das pessoas.

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espaciais, como já salientei, arregimentar a força de seres diferentes parece algo

semelhante a uma estratégia militar. Com isso, adocicar o espírito petro rebelde do rio e

pagar o Ogun do Mar que não gosta dos humanos porque esses não saldam seus

compromissos com ele, poderiam ser vistos como táticas rituais que pretendem reunir e

comandar potências diversas, encontradas em diferentes lugares.

Essa imagem tem a ver com as descrições etnográficas das ações rituais de que

também participei. Mas ela se sustenta ainda nas conversas com os meus interlocutores

dominicanos, que vez ou outra, fizeram referência para mim à 21 Divisão. As pessoas

falam em divisão como uma noção que reúne certos mistérios. Divisão dos oguns,

divisão dos guedeses, divisão dos petroses, divisão dos congos, divisão dos índios, são

as mais comuns. Em geral, há um mistério que lidera cada divisão, e é comum que isso

seja indicado com a expressão ele está à frente da divisão, é o chefe da divisão ou

aquele mistério que vem/está atrás dele. Entre as chamadas metresas, algumas são

identificadas com os mistérios de cada divisão. As mais populares são Anaisa, Santa

Marta a Dominadora e Metresili/Virgem A Dolorosa.

Entre os oguns, Ogun Balendyó está à frente. Quando comentei com Gina sobre

a seriedade com que ele falou comigo naquela primeira consulta, ela reagiu: – Ele é

sério sim, ele não sorri, porque ele é um mistério muito velho, é o mistério mais velho,

muito respeitado pelos outros mistérios, que quando o veem fazem reverência. É por

isso que ele é chamado de El Patrón, porque é muito velho. Ogun Balendyó é

concebido como um guerreiro, que tem atrás de si mais seis mistérios, seus irmãos

espirituais e em vida, como ele mesmo definiu. Os espíritos guedeses são os

responsáveis pelos mortos humanos, e estariam também em um agrupamento de sete

entidades masculinas. Os espíritos petroses geralmente são considerados impetuosos e

violentos, aqueles que trabalham particularmente com sangue e vivem no monte.

Mas se as divisões funcionam como categorias cosmológicas que instituem

algumas demarcações,82

essas se desfazem parcialmente quando os mistérios entram em

ação.

Quando conheci Armando na botânica, ele observou que o nome pelo qual o

conjunto dos mistérios é chamado é 21 Divisão. Isso, ele me explicou, não tem a ver

com o número de santos, antes com a quantidade de grupos de espíritos. São

Miguel/Belié Belcan (alguns falam também em Candelo Sedifé) é considerado

82

O que, como será visto no próximo capítulo, parecem ter como aspectos diacríticos marcos diversos de

temporalidade, espacialidade, origem social/cultural e estatuto dos espíritos

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geralmente o chefe da 21 Divisão. É comum também ouvir os dominicanos dizerem que

ele é o chefe da milícia, uma referência que combina seu caráter belicoso enquanto

espírito (ele é um mistério que luta e derruba os inimigos) e descrições cristãs sobre o

arcanjo São Miguel.

E é articulando-se a espíritos de divisões diferentes que os mistérios trabalham.

Assim, faz sentido que, para além do que tentei explicitar com as descrições acima, no

dia a dia fale-se em termos da ajuda, por exemplo, entre Candelo Sedifé e Anaisa,

Anaisa e São Miguel/Belié Belcan, ou ainda Candelo Sedifé e Belié Belcan.

Enquanto ouvia Armando falar sobre os grupos de mistérios, mencionei a

umbanda – ele havia me perguntado se havia santería no Brasil – por causa da

organização dos espíritos também semelhante a grupos. Expliquei-lhe mais ou mesmo

que havia os espíritos de preto-velhos e caboclos, por exemplo. Os primeiros seriam

pessoas que viveram durante a escravidão; os segundos seriam pessoas misturadas entre

índios e brancos. Ele, Renan e uma amiga dominicana do casal prestavam atenção ao

que eu dizia. Depois de me ouvirem, Armando me disse: – Cada escravo tinha uma

arma, assim se passa com os mistérios. Anaisa trabalha com cerveja, cigarro e

perfume. Candelo Sedifé trabalha com tabaco, bebendo café sem açúcar, ele destacou.

Ele havia me perguntando se eu já tinha conversado com outras pessoas e com

os mistérios. Contei-lhe que quando vi Candelo Sedifé em uma festa para São Miguel/

Belié Belcan, esse mistério pediu óleo (aceite) para fazer uma chama: – Encanta-lhe

trabalhar com o fogo, Armando afirmou, Belié Belcan tem como arma a espada, e

Santa Marta a cobra. Nós [Armando apontou para a amiga dominicana] somos índios,

descendentes de índios, de Enriquillo, de Guaicaipuro, um índio que é muito conhecido

na Venezuela. Essa religião começou com os escravos africanos que estavam na

Hispaniola, [citou então o nome de alguns mistérios, dos quais eu só entendi o do Barão

do Cemitério], isso é vodu, que é praticado no Haiti. Com a fronteira, as pessoas de um

lado se casavam com as outras e iam se mesclando. Começou aí o surgimento das

raças. No Haiti, a religião popular é vodu, que é como se eles fossem para igreja todos

os dias. O que os dominicanos fazem é uma adaptação da religião no Haiti.

A noção de fronteira mobilizada por Armando ou mais precisamente, a sua

compreensão sobre o que permanece e se reproduz a despeito dela – os espíritos

atendidos ritualmente pelos escravos africanos que estavam na Hispaniola, e se

propagaram no que venho a se tornar o Haiti e a República Dominicana – serve-me para

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dar realce a meu argumento sobre o que proponho como uma cosmologia espiritual

quase militar.

À frente da divisão (e de todo conjunto da 21 Divisão) estão alguns homens de

batalha, como Gina certa vez definiu se patrón, ideia que perpassava também os

comentários de outros interlocutores sobre seus mistérios. Mas mesmo essa definição

não impede o suposto de que a ‘zona de combate’ (Palmié, 2002, p. 188) em que cada

um desses seres espirituais se localiza não é (e não foi) a mesma. Os princípios desse

universo conceitual (as divisões) e suas táticas fundadas em meios de controle

(alimentar, adocicando, para acalmar), de trabalho ritual em colaboração, e de

pagamento demonstram o seguinte: tal lógica ritual busca ultrapassar, expandir-se,

capturando o que pode ser conceituado e experimentado em alguma medida como

diferenciado.

Essa imagem é apresentada por Palmié (2002, p. 185 apud Brown 1989, p. 376),

quando recupera uma passagem de David Brown. Nela, um interlocutor diz-lhe que se

concebe como um “sacerdote-guerreiro urbano conquistando território estrangeiro por

meio da incorporação disto no ‘mundo’ encerrado em sua nganga”. A prenda seria

como o mundo, na qual existe alguma coisa de todas as coisas. Dessa maneira, algo de

qualquer lugar aonde o sacerdote vai deve ser inserido na prenda. Segundo o informante

de Brown esse procedimento se explica porque ele é um “(...) guerreiro. Quando um

exército conquista um país, eles deixam um exército de ocupação. Eu vivo em Union

City; se eu vou a Nova Iorque para ‘trabalhar’ eu terei que deixar escoltas ou guardas,

construir um perímetro, uma fortaleza”. Questionado por Brown se há uma “moralidade,

um certo ou errado” em seu trabalho como palero, o informante lhe diz: “Qualquer coisa

que você pague a prenda para fazer, ela fará, isso não é como os santeros”.83

83

Para Palmié (2002, p.185-187), essa imagem poderia representar o desenvolvimento de uma série de

transformações em que a fabricação e manipulação rituais das ngangas assumiram, historicamente, a

forma de um campo marroom (e não apenas condensaram era relações de trabalho servil da plantation

escravista. Conhecido como manigua, essa era a área geográfica conhecida como ‘terra de nenhum

homem’, criada entre o território operacional das tropas espanholas e o espaço precário tomado do antigo

regime colonial pelo exército da “ralé” (Cuba Libre) no decorrer da guerra dos Dez Anos (1868-1978).

Segundo Palmié, as tropas espanholas no curso de uma investida a um campo rebelde negro capturou uma

escultura antropomórfica de madeira, cujo torso tinha uma cavidade preenchida com “remédios” e ao lado

do qual havia um chifre bovino, em cuja abertura foi inserido um espelho. Quando os remédios eram

aplicados na ponta dos chifres junto ao corpo da imagem, o pequeno espelho reproduzia as formas e os

movimentos dos espanhóis perseguindo os insurgentes. Outro uso tático desses objetos [minkisi] em

operações militares que Palmié descreve é uma nganga encerrada em uma pele de cabra. Tal objeto

induzia o transe em uma mulher que vivia em um palenque, um assentamento negro marroom, que, sob

essa condição, indicava aos rebeldes onde as tropas espanholas estavam. Para Palmié, esses são episódios

que descrevem uma guerrilha brutal e interminável em que esses objetos rituais afro-cubanos foram

controlados com a finalidade de reconhecimento militar: dispositivos técnicos ou de guerra para fugir dos

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Naquela primeira consulta que tive com Ogun Balendyó, esse mistério – como

outros vinham fazendo durante meu trabalho de campo – procurou conectar as minhas

próprias conexões. Fazendo parte da tarefa a que me dediquei no primeiro capítulo,

Ogun Balendyó argumentou comigo que eu tenho uma missão com eles (os mistérios).

Por isso, eu deveria trabalhar os mistérios no Brésil, ele me propôs, afrancesando com

dificuldade o nome do país.

Travando uma negociação com ele, expliquei-lhe que estava ali por causa do

doutorado. Não gostaria de trabalhar os espíritos. Depois de tanto insistir e eu recusar,

ele se conformou parcialmente: – Está bem, então tu tens que ter um altar lá, colocar as

coisas... E tu crês que não me tens?, ele desafiou-me, eu falo português lá.

Voltando ao assunto do banho e despojo, ele procurou explicar-me que não

pretendia (com seu plano de ação ritual) praticar o que as pessoas chamam (e temem) de

roubo dos mistérios: – Eu não vou te quitar [os mistérios], porque eu te disse que eu

tenho Yemaya. Os lenços [pañuelos] ficarão com você. E, então, sinalizando para aquilo

que firmaria a nossa futura e momentânea aliança, na medida em que aceitei receber o

seu cuidado ritual, ele comentou: – Se fosse outra pessoa, seria vinte [número que

representa o valor da consulta]. Mas como é para você... Seu cosmopolitismo e ímpeto

de expansão, como mistério que pede atenção e trabalho ritual, quando eu me recordo

dos fragmentos dessa conversa, agora me parecem prementes.

É como um esforço de aprofundar, no próximo capítulo, certas perspectivas

desse universo cosmológico fundado nas divisões que me aproprio não apenas de

narrativas e observações sobre e dos mistérios, mas fundamentalmente de suas imagens,

que se espaçam na casa das pessoas. Ao dar relevo a esse material, procurarei

demonstrar que através de algumas das formas de interiorização desses espíritos nos

ambientes domésticos as divisões são recriadas. Mas é também por meio de tais formas

que os mistérios reivindicam seus modos próprios de lembrança.

ataques espanhóis enviando espíritos ao território inimigo para revelar a inteligência vital. Contudo, ele se

pergunta, para além disso, que tipo de guerra esses matiabos/matiaberos (os que usam tais “objetos”

rituais) estavam envolvidos.

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CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 2)

Imagem 1. Altar para os mistérios na casa de Rosa: da esquerda para a direita, Virgem A

Dolorosa/Metresili, São Santiago Apóstolo, Santa Bárbara, São Miguel Arcanjo/Belié Belcan, Santa

Ana/Anaisa, e Grande Poder de Deus. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 2. Altar para os mistérios na casa de Rosa. Santa Marta A Dominadora e São Elias, espíritos

guedeses, diante de xícara com mercúrio e taça com água. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto:

Alline Torres.

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Imagem 3. Velas para os santos. Casa de Rosa. Río Piedras, San Juan, setembro 2010.

Foto: Alline Torres.

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Imagem 4. Altar para os mistérios de Gina. Serviço de mel com tabaco para tranquilizar Jean Crimnel

(São Sebastião), espírito petro. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

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Imagem 5. Altar para os mistérios na casa de Joana. No recipiente branco sobre a mesa e nos latões no

chão, as lámparas, serviços oferecidos aos santos para que trabalhem. Carolina, dezembro 2010. Foto:

Alline Torres.

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Imagem 6. Altar para os mistérios de Gina. Lámpara divisional em recipiente circular de vidro, serviço

para a 21 Divisão. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

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Imagem 7. Altar para os mistérios na casa de Armando. Serviço para Metresili (Virgem A Dolorosa):

refrigerante Country Club sobre o qual havia sobras de cera derretida, na bancada mais alta. San Isidro,

Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 8. Figura em papel de Nossa Senhora da Aparecida, que Gina incorporou ao seu altar, na parte

elevada, junto aos quadros de São Miguel. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

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CAPÍTULO 3

A CASA E OS ALTARES. INTERIORIZANDO TEMPOS,

ESPAÇOS, RECRIANDO PAISAGENS MNEMÔNICAS

O solo estava coberto por uma espessa capa de excrementos

que aprisionava utensílios líticos e espinhas de peixe

petrificadas. Ti Noel observou que várias botijas de barro

ocupavam o centro e que devido a elas reinava, naquela

úmida penumbra, um aroma acre e pesado. Sobre folhas de

soroca amontoavam-se peles de lagarto. Uma grande rocha

plana e várias pedras redondas e lisas tinham sido utilizadas,

sem dúvida, em recentes trabalhos de maceração. Sobre um

tronco, aplainado a fio de machete em toda a sua longitude,

estava um livro de contabilidade, roubado do caixa da

fazenda, em cujas páginas se alinhavam grossos traços de

carvão. Ti Noel não pôde deixar de pensar nas lojas dos

herbanários do Cabo, com seus grandes pilões, seus

receituários em estantes, seus potes de noz-vômica e de assa-

fétida, seus maços de raiz de malva-branca para curar as

gengivas. Só faltavam alguns escorpiões em álcool, as rosas

em azeite e o viveiro de sanguessugas. (Alejo Carpentier, O

reino deste mundo, p.27-28)

3.1 ALGUMAS AMBIENTAÇÕES

Depois que São Elias/O Barão do Cemitério ocupou o corpo de Armando, esse

mistério amarrou o lenço preto ao redor da cabeça de seu cavalo, lenta e

silenciosamente. Em seguida, Renan o auxiliou a vestir uma capa preta com bordas

brancas e uma grande cruz nessa mesma cor decalcada no centro. Renan deixou a

antessala e dirigiu-se ao interior do altar. Ao sair dele, trouxe uma muleta, que fora

pintada também com a cor preta.

Com muita dificuldade, São Elias se apoiou no bastão. Renan o ajudou a ficar de

pé, e, então, a caminhar. Os pés estavam tortos, virados para a parte interior das pernas,

e os dedos dobrados. Luz, ao perceber que eu prestava atenção nesses membros,

indicou-me com seu olhar que eu ficasse atenta para esses aspectos. O corpo de

Armando parecia ao mesmo tempo frágil e contraído. São Elias e Renan reservaram-se,

por alguns instantes, no interior do altar.

Como discuti no segundo capítulo, os mistérios são concebidos como espíritos

que precisam chegar à casa das pessoas. Nela eles se alimentam e trabalham. Ambas as

atividades geralmente ocorrem com os mistérios assumindo o estado de fumaça (humo),

como Gina certa vez comentou. Pois os mistérios estão no que nós, humanos,

chamamos de planeta Terra, como seu patrón me falou. Por aí: ouvi algumas vezes os

dominicanos dizerem nas botânicas.

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A característica volátil desses espíritos é algo a ser considerado na atenção ritual

prestada pelos meus interlocutores dominicanos, parece-me, não apenas porque ‘ter um

altar’ é sinônimo de cuidado ritual obrigatório, um meio dos mistérios, que estão ao

redor, nutrirem-se (e vitalizarem as pessoas); e, igualmente, uma condição material para

o trabalho espiritual.

Se os altares indicam que a interiorização dos mistérios na casa das pessoas pode

ser vista como uma forma de agenciar a transitoriedade desses espíritos, neste capítulo

quero argumentar que, por meio deles, os mistérios conseguem reivindicar suas próprias

lembranças. Desse modo, um dos desdobramentos mais radicais dos altares é que

através deles os mistérios obtêm a capacidade de se sentir como eram quando vivos.

Nos altares, os mistérios se encontram com objetos e paisagens recriadas

domesticamente. Esses artefatos incitam lembranças nesses espíritos à medida que os

afetam enquanto mortos e podem habilitá-los ainda que efemeramente, por vezes,

inesperadamente, a recuperar contemporaneamente suas antigas experiências em vida.

É buscando viabilizar esse tipo de conjunção entre espíritos e materiais que as ‘pessoas’

manipulam artefatos que se tornam mnemônicos (SHAW, 2002, p.14): condensações de

experiências históricas, modos de agenciamentos, geografias e sensações ambientais

que são significativos do ponto de vista do que foram ou do que são os mistérios.

Esses espíritos ocupam as casas por certo período, assim como o fazem com o

corpo das pessoas. Entram e saem desses dois lócus materiais ao longo do ciclo de vida

de alguém. E é justamente no decorrer desses movimentos que é feito um esforço,

geralmente solicitado pelos próprios espíritos, para fixá-los. Isso garantiria a

estabilização e sedimentação do vínculo recíproco, e, posteriormente, a possibilidade de

sua continuidade geracional.

– O altar é um símbolo de atração... tranquiliza o cavalo, pois os mistérios estão

na casa, ele não pode, o cavalo, trabalhar em outro lugar, São Elias me explicou

durante a minha consulta, realizada com esse mistério depois daquele que foi um

demorado encontro de trabalho com a cliente porto-riquenha na casa de Armando.

Como me indicou São Elias, o altar funciona como um ambiente criado para permitir a

efetivação da tarefa que cabe aos espíritos (e às pessoas). Por meio do altar, elas

sentem-se sensibilizadas pelos espíritos, tranquilas, e por isso permanecem junto dos

mistérios na casa.

Espírito-Santo (2009, p.110), ao longo de sua tese, enfatizou que um elemento

crucial do desenvolvimento da “pessoa espírita” em Cuba é que o mundo espiritual, para

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ser efetivo e ter uma existência produtiva, precisa ser recriado socialmente e

materialmente pelos médiuns. “Desenvolver o morto”, como ela define, solicita que o

médium externalize e potencialize, trazendo sob seu controle, uma rede de espíritos, da

qual ele se torna parte à medida que possibilita que tais entidades possam exercer

influência no mundo.

Do ponto de vista social, a habilitação dos espíritos ocorre num processo de

identificação que implica que outros percebam, testemunhem, confirmem e convençam

futuros espíritas sobre a veracidade de tais entidades durante as chamadas missas

espirituais. Do ponto de vista material, o ato de representar os espíritos através de

imagens e bonecos é um procedimento fundamental para aquela habilitação, o que torna

visível os guias espirituais do médium (ESPÍRITO-SANTO, p. 135).

Para ela, “(...) os espíritos do médium, e assim, sua ‘pessoa’, devem ser

trabalhados em interação social para serem eficazes e consequentes. A agência do

espírito se expande quando é socializada e materializada em contextos sociais

(ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.138).

Assim como São Elias, Espírito-Santo indicou a importância dos processos de

materialização dos mortos para o desenvolvimento do trabalho espiritual. A diferença

entre ambos, eu diria, é que esse mistério chamou a atenção para a necessidade das

pessoas terem próximas de si um símbolo (material) de atração. Enquanto Espírito-

Santo (2009, p.154), apesar de reconhecer que os materiais (plantas, flores, álcool,

velas, tabaco) utilizados nas missas espíritas encorajam os espíritos dos participantes a

se deixarem ver e também funcionam como ferramentas que permitem a concentração e

facilitam a incorporação espiritual, defende um argumento que me parece mais radical

quanto a esses processos de materialização.

[...] os espíritos tornam-se reais, tornam-se presentes, quando são colocados

para trabalhar através do médium; e isso pode somente ser realizado via uma

série de correspondências materiais [...]. Invocar um espírito é, em muitos

sentidos, visualizar e materialmente representar ele, recriá-lo [...]. Um

espírito simplesmente não existe, no contexto de uma missa, como também

no contexto da vida, sem as condições com as quais ele pode efetivamente se

manifestar (ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.155).

Do ponto de vista dos meus interlocutores dominicanos, por exemplo, a

“realidade” e “presença” dos mistérios não passam necessariamente pelos processos de

materialização que pretendem colocar os espíritos para trabalhar através dos seres

humanos. Tais espíritos, enquanto entidades que remetem a relações familiares

anteriores, não são criados, mas assumidos e atualizados no decorrer da vida de alguém.

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Espectros de relações prefiguradas, os mistérios, ainda que estivessem

encerrados apenas sob essa forma, dificilmente teriam sua existência negada. Neste

sentido, como observou Battaglia (1992, p.10) é uma “pessoalidade convergente”, que

traz consigo relações históricas e sequências de comprometimentos de relações

prefiguradas, que são produzidas com os altares para os mistérios. Ao dar saliência à

observação de Espírito-Santo sobre a materialidade enquanto meio de objetificação dos

espíritos que, de outra maneira, não poderiam existir, quero chamar a atenção para um

aspecto que, na cosmologia dos mistérios, é central. Mas não exclusivo a essa

cosmologia, como demonstram as etnografias de McCarthy Brown (2001) e Ochoa

(2004).

Esse aspecto é o seguinte: à medida que os altares geram uma forma de

coabitação entre as pessoas e seus mistérios – fundada, sem dúvida, nos processos de

materialização das entidades como Espírito-Santo discutiu – a tarefa de dedicar-se a

interiorizar domesticamente os mistérios aparece como um ofício singular.

Uma tarefa quase estética na qual são recriadas algumas divisões por meio da

combinação de coordenadas espaciais e variações de gostos, inclusive aqueles

eminentemente ambientais, assuntos que descreverei a seguir.

McCarthy Brown, em sua etnografia sobre o vodu em Nova Iorque, destacou a

importância da produção dessas ambientações para os espíritos por meio dos altares. Ao

descrever um altar para a festa de aniversário do espírito Azaka, ela observou que, a

partir de materiais exíguos, a família de sua interlocutora e ela mesma começaram a

criar a impressão da densa opulência dos altares do vodu: seu “estado de ânimo”, seus

‘humores” (MCCARTHY BROWN, 2001, p. 41).

A ambiência que se torna objeto de atenção dos seres humanos quando se

dedicam ao ofício de construir altares para suas contrapartes espirituais é um assunto

discutido também por Ochoa. Com base em seu trabalho de campo entre paleros e

paleras, ele conceitua a proliferação dos mortos com os quais esses sacerdotes entram

em contato e lidam como um “plano de imanência”. Chamado de kalunga, esses

“mortos do ambiente” seriam como uma “atmosfera” ou “clima”, “zonas de alta e baixa

pressão”, cuja influência saturada seria mais ou menos discernível corporalmente

(OCHOA, 2004, p.50).

Para ele, a inspiração das regras do palo é esse plano de imanência, os mortos do

ambiente. Segundo ele, o palo ensina que o morto toma a forma e exerce suas

influências em objetos exteriores a si, o que sugere que os mortos do ambiente e seus

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poderes de criação e decomposição podem ser encontrados em inúmeras formas

(substâncias, objetos e na sua inexplicável dissipação). O morto do ambiente é sentido

como uma força anônima, vaga e incrustável (OCHOA, 2004, p.51).

Ochoa salienta que os antepassados familiares de sua interlocutora palera (e não

aqueles mortos contidos nas ngangas) que respondiam às suas inquietações (e às dos

clientes dela) eram simultaneamente frágeis. Eles necessitavam de assistência, pois

poderiam desaparecer no vasto anonimato do kalunga. Esses mortos eram condensações

momentâneas dessa atmosfera. Emergiam como silhuetas, repentinamente e

iluminavam-se de uma massa anônima. “Os mortos são ofendidos com facilidade e são

afugentados (...). Eles são facilmente esquecidos”, a palera lhe explicou (OCHOA,

2004, p. 57-58).

Assim como Espírito-Santo, Ochoa observa que esses mortos familiares

tornavam-se materiais sob a forma de fotografias, estatuetas e copos de água que

compõem um altar espírita. Seu “lugar” é um pedaço do chão (pequenos rincões no

interior ou fora da casa). E, talvez, porque essa seria uma maneira de estabelecer uma

relação de contigüidade esses mortos, a terra, e a água, substâncias subsumidas dentro

do kalunga, a atmosfera dos mortos (OCHOA, 2004, p.63, 65)

Ochoa chama a atenção que esses rincões não seriam propriamente altares, na

medida em que se configurariam mais como “lugares de profundo respeito”, ligados a

uma fabricação individual e à intimidade de alguém com seus mortos familiares e não às

regras de iniciação da ocha, que permitem a produção de seus imponentes tronos, e do

palo, que levam à construção das não menos imponentes prendas ngangas.

Ao fazer isso, ele indica a importância do que chama de “pequenas

materialidades” (cinza, terra e trilhas de serragem de cupins na casca das árvores),

formas do morto que são ubíquas na matéria e parecem inconsequentes, tanto para os

pesquisadores quanto para os iniciantes do palo, que não lhe confeririam muito apreço.

Nesse sentido, ele dá visibilidade não apenas aos espíritos, mas igualmente a uma

“atmosfera” ou “clima” que na produção dos altares para os mistérios é aspecto

fundamental. Não porque os mistérios são essas substâncias. E sim porque estar

incrustados a elas é uma forma de recriar à sua existência, enquanto mortos ou de

quando foram vivos. Nesse sentido, tais substâncias e esses espíritos não se separam de

uma multiplicidade de ambiências.

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A partir da minha própria movimentação durante o trabalho de campo, também

entrando e saindo da casa das pessoas, comecei a notar que os altares fazem mais do

que atraí-las (e os mistérios) para tornar possível a realização do trabalho espiritual.

Os altares são constituídos como certas paisagens de memórias espirituais

(SHAW, 2002, p.56) em que terra, monte, rios e cemitérios condensam experiências de

tempos diversas, violentas e conflitantes. Nesse sentido, essas paisagens também tornam

visíveis formas de socialidade que descrevem associações, isolamento, braveza, rebeldia

e indiferença, semelhantes àquelas sobre as quais me debrucei no final do segundo

capítulo.

Os altares de Gina e Armando são paisagens de memórias espirituais nesse

sentido. Tais composições se expandiam à medida que refaziam ambientações:

assumiam certa profundidade, variações de altura, temperatura e uma notória alteração

de qualidades estéticas e de paladares. Nesses agenciamentos materializavam-se, além

de espíritos discretos, também espaços de divisões, hierárquicos mesmo quando

contíguos.

Quando considero as diferentes perspectivas que surgem desses altares para os

mistérios – variadas paisagens de memórias –, torna-se difícil, mas também pouco

produtivo, sugerir que o morto ganha existência através dos objetos pensados como

“[...] instrumentos de sedimentação espiritual [...] meios pelos quais uma presença

espiritual na vida material e social do médium pode ser gerada, consolidada e mantida”.

(ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.160).

Primeiro porque materializar mortos como os mistérios diz respeito a um

processo de composição cuja intenção não é somente a objetificação de entidades

discretas (um ou mais espíritos). O que está em jogo nessa tarefa é igualmente a

possibilidade de trazer à tona a densidade de existências que não se alijam de

incrustações espaciais. Logo, não é apenas o morto, ou antes, os mortos que os meus

interlocutores dominicanos precisam materializar para trabalhar. As pessoas veem-se às

voltas com o imperativo (às vezes insólito) de refazer também os ambientes geográficos

sensíveis que fazem parte das paisagens de memórias dos espíritos.

Segundo, porque materializar os mistérios a partir da atenção a variações de

temperatura, profundidade, textura, odores e maximização de vitalidade (consumo)

espiritual, significa que esses aspectos fazem parte de paisagens de memórias que

recuperam nem sempre e obrigatoriamente espíritos individualizados que deveriam ser

objetificados. Tais aspectos sensíveis são agenciados pelas ‘pessoas’ como certas

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formas diferenciadas de socialidades cristalizadas nos ambientes. Nesse sentido, esses

ambientes funcionam como geografias espectrais não menos importantes que os

próprios espíritos.

3.2 DIVISÕES INCRUSTADAS NA TERRA

3.2.1 Os guedeses e suas sensações

Intrigada com a forma de conceituar o deslocamento espiritual dos mistérios,

cujo resultado final é quase sempre a sua incorporação absoluta, como a parte final da

descrição da chegada de São Elias mostrou, indaguei à Gina o seguinte: se os mistérios

sobem, de onde eles o fazem. – Da terra, do ar, ela me respondeu.

Terra e ar podem ser vistos enquanto duas coordenadas espaciais que delimitam

mais ou menos os níveis intermediários em que os mistérios se localizam: seus mundos

dentro do nosso mundo. Com isso, a montagem dos altares, tarefa da qual os mistérios

também participam e que parece inacabável dada a infinidade de espíritos que uma

pessoa pode montar,84

aparentemente diz respeito à organização de imagens,

substâncias e artefatos segundo o critério da variação de altura. Alto e baixo, assim, são

dois marcadores espaciais que contam nesse tipo de composição.

Nos altares que frequentei, por exemplo, é estabelecida uma separação entre os

santos da terra e de cima. Na terra ou no chão, os meus interlocutores dominicanos

dizem, estão os negros. São Elias/O Barão do Cemitério é conhecido como o chefe da

divisão dos guedeses. Os guedeses são conhecidos como os espíritos responsáveis pelos

mortos, tanto anônimos quanto familiares. E o Barão do Cemitério, como o seu cognato

indica, estaria no cemitério. Geralmente as pessoas o visualizam nesse local como um

homem trigueño (“mulato” cuja pele é escura). E, quando o veem aí, o cumprimentam.

Para os meus interlocutores dominicanos, ele foi o primeiro homem enterrado

em um terreno utilizado como campo-santo.85

Neste sentido, a primeira tumba fúnebre

funciona como lugar de atenção e trabalho ritual para acionar São Elias. Ele mesmo,

durante a minha consulta, enfatizou a sua especificidade em relação aos outros

mistérios, insistindo que seu espírito é de um morto humano anônimo: – Eu me chamo o

Barão do Cemitério, espírito de um morto, tu me entendes [Ele me perguntou

84

Durante nossas conversas, Gina me dizia que há tantos mistérios quantos seres humanos no mundo. Já

Renan comentou que a cada dez anos Armando se tornaria capaz de montar mais mistérios, se torna mais

evoluído, e poderia montar mistérios do Egito. 85

Um palero cubano, interlocutor de Ochoa (2004, p.143), definiu assim esse espaço fúnebre: à noite, ele

é chamado de “campo lemba”, o “campo dos mortos”; “campo santo”, durante o dia; e “campo finda”

quando ele queria se referir ao cemitério de modo geral.

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repetidamente, insistindo sobre tal condição], espírito de um morto, que cuida dos

mortos em acidentes trágicos e…, mortos em acidentes de carro.

Certo anonimato, que tangencia a indiferença (ou a indigência), na medida em

que qualquer morto humano pode ser invocado como o Barão do Cemitério – um corpo

enterrado em uma área que se transformou esse lugar em um campo-santo – caracteriza

seu estatuto em relação a outros mistérios. Alguns desses espíritos, por exemplo, fazem,

embora vagamente, alusão a um tempo – como o fez Anaisa ao dizer-me que trabalhou

em negócio de madama. Outros recuperam pertencimentos nacionais e fragmentos

narrativos sobre seus antigos modos de vida, como Ogun Balendyó Paradoxalmente, foi

o próprio São Elias que chamou a minha atenção para o fato de que todo mistério tem

uma cultura, uma origem e uma história. Muito embora as dele mesmo não tenham sido

evocadas.

– São Elias me pediu uma cobra, mas eu lhe disse que vou comprar uma de

mentira. Eu tenho as crianças aqui... Esse foi o pedido que o mistério fez à Gina.

Assim, ela recriaria para ele a geografia fúnebre em que esse mistério se encontra. Além

disso, Gina ressaltava, quando lhe coloca como serviço ritual uma xícara com café, não

deve lavá-la depois que esse mistério consome a bebida. Gina precisa passar a louça na

terra e tornar a servi-lo: – São Elias gosta da terra, ela justificou. Isso faz com que sua

imagem seja localizada no chão do altar.

Já Raul, um amigo de Rosa que conheci na primeira estada em Porto Rico,

ampliou as dimensões e as próprias percepções de São Elias em seu altar. Ao lado da

estátua do santo – ele mesmo fez questão de chamar a minha atenção quando o visitei –

havia um esquife, sobre a qual colocou uma panela com terra de cemitério.86

Com a voz rouca e praticamente sussurrando, São Elias explicou-me porque usa

talco na pele quando sobe. Ele gosta do frio, e possui a pele fria; por isso usa tal pó (que

foi levado pela cliente porto-riquenha à casa de Armando) no rosto, cujos frascos podem

ser encontrados ao lado de sua imagem nos altares. Com tal substância, esse mistério

mantém sua adequada temperatura enquanto um espírito de um morto humano enterrado

em um cemitério.

Na terra, ou seja, no chão dos altares, os meus interlocutores dominicanos

localizam ainda os mistérios guedeses chamados de Santa Marta A Dominadora e

86

Caderno de Imagem do Capítulo 3. Imagem 9.

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Guedé Limbó, também considerados espíritos negros. Suas imagens sempre são

colocadas ao lado da de São Elias.

Enquanto conduzi o trabalho de campo, nunca escutei ser mencionado o nome

espiritual com que essa metresa se apresenta quando monta seus cavalos. Contudo,

Gina me disse que quando ela sobe, senta-se no chão. Cobras, também artificiais, são

associadas à imagem de Santa Marta nos altares – alguns dominicanos dizem que ela é a

virgem que dominou a serpente –, além de potes de mel, perfume, uma maracá feita de

cabaça e um lenço em tons predominantes de roxo. Foi um tecido dessa cor que Gina

envolveu ao redor da cintura da estátua de Santa Marta, provavelmente a pedido da

metresa.87

Guedé Limbó, que nos altares aparece como a imagem de São Expedito, é um

espírito cujo estado é o de fome permanente. Ele solicita dinheiro dos seres humanos, o

que é colocado em um recipiente nos altares, óculos, sempre de lentes escuras, um

chapéu e seu macuto, sacola de palha no interior do qual guarda esses diversos

pertences, além de um lenço ou echarpe preto.

É possível intuir a diversidade de espíritos que podem ser atendidos pelos meus

interlocutores dominicanos observando somente a maneira como a divisão dos

guedeses, formada por mais espíritos do que esses três que apresentei e conheci, é

organizada: um espírito de um homem morto trigueño, a princípio desconhecido, e

onipresente em qualquer local que tenha se tornado um campo-santo; uma mulher negra

que teria sido capaz de dominar uma cobra e que a esse animal foi vinculada tanto em

forma quanto em conteúdo dada as suas preferências alimentares, como discutirei

adiante; um homem negro faminto que pede, sempre muito irritado, comida e dinheiro

para serem guardados em seu macuto, sua sacola de palha.

Essas imagens e artefatos vinculados a esses três guedeses são arranjados no

chão dos altares por causa de seus gostos, como os meus interlocutores dominicanos

comumente afirmam. No entanto, eles se tornam objetos mnemônicos que produzem

não somente efeitos sobre os espíritos. Eles produzem também relações de contiguidade

entre experiências sobre certos tempos (não necessariamente cronológicas) que remetem

à pobreza e a um relativo isolamento social (o que inclui a possibilidade de indigência)

de homens e mulheres negros em socialidades caribenhas. É como uma espécie de

composição sincrônica que o altar materializa mais do que espíritos. São alguns indícios

87

Caderno de Imagem do Capítulo 3. Imagem 10.

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e marcos de formas de socialidade que foram associados cosmologicamente como

divisões que vêm à tona com essas composições.88

3.2.2 Escavar a terra, ver do mirante: as divisões índias

Quando eu entrei na antessala do altar de Armando desculpando-me pela reação

de Carlos quanto a São Isidro, o bairro em Canóvanas, ele me disse que não havia

problema. Armando viu com naturalidade a reação do taxista e de certo modo a

legitimou: – As pessoas se assustam, mas isso aqui é um campito, ele definiu.

Entretanto, não empregou barriada, a barriada São Isidro, como Carlos repetidamente

me dizia enquanto percorríamos o local.

Como era a primeira vez que eu estava ali, Armando explicou-me que vivia

nesse campito e que ali há gente de vários lugares. Ele, dominicano, Renan, que é

porto-riquenho, e haitianos: – Para os mistérios é bom que eu viva num lugar como

esse. Porque os mistérios gostam de umidade, de terra, de sentir o cheiro da terra,

porque isso os atrai, eles sobem mais rápido. Além disso, esses espíritos gostariam de

ter próximo uma árvore de guando, o que Armando plantou na área íngreme em frente à

sua casa. Atrás dela, ele observou, havia um lago com crocodilo, peixes, caranguejos. E,

Renan destacou, cobras. Por isso, Armando novamente repetiu, é bom para os mistérios

que ele viva ali.

Ele então exemplificou: em um lugar como aquele em que morava a dona da

botânica em que Joana fazia as consultas – Armando também trabalhou ritualmente por

certo período nela – uma urbanização na área metropolitana de San Juan, construída

basicamente com cimento, torna-se difícil ele montar os mistérios: – Para os mistérios

não é bom, Armando reafirmou, quando então direcionou seu olhar para um altar que

estava à nossa frente, bem ao fundo da antessala, e explicou-me que ali o chão era,

inicialmente, coberto com cimento. No entanto, ele precisou desfazê-lo para deixar que

a terra ficasse exposta. Com essa desmontagem uma nova paisagem foi criada para os

mistérios índios.89

Já no altar de Gina foi utilizada não terra e sim farinha de milho sobre a área do

chão em que as imagens de índios se encontravam. Isso, contudo, a pedido de Ogun

Balendyo. Esse mistério avisou-lhe que os espíritos dos índios gostavam de ter aquela

substância perto deles. Uma particularidade do altar na casa de Gina concerne às

imagens dos mistérios índios. São de importantes personagens históricos no confronto e

88

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 11. 89

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 12.

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na oposição à invasão e ocupação espanhola durante o início do século XVI nas ilhas

caribenhas, particularmente naquela que esses europeus chamaram de Hispaniola (parte

do território que se tornou o Haiti no início do século XIX e depois a República

Dominicana), e no que se tornou a Venezuela (especialmente a região centro-norte).

As imagens foram localizadas em um nível acima do chão, em uma espécie de

mirante. Nele, Gina arranjou os quadros da chefe indígena Anacaona, que teria vivido

no que hoje é Léogâne (Haiti), do cacique Guaicaipuro (que habitava a região de Los

Teques, na Venezuela) e de um espírito chamado de Negro Felipe.90

Sobre aquela

pedra, um pouco elevada em relação ao nível do chão, Gina (talvez também a pedido de

Ogun Balendyó) sincronizou tempos e espaços referentes a grupos indígenas e negros

diversos. Pequenos artefatos como uma coruja em miniatura em frente à imagem de um

índio em posição de observação, uma guimba de tabaco, uma xícara de café, outra com

uma espécie de tostado funcionam junto aos quadros como índices não apenas da

presença, mas das próprias lembranças dos mistérios. Aquilo que permaneceu, para eles

(nesse sentido, com eles), no decorrer de séculos e de ações seculares, no interior da

casa de Gina. 91

Armando, por sua vez, preparava-se para começar a atender e trabalhar com o

espírito da índia Anacaona. Quando ele me mostrou seu altar, percebi que havia uma

boneca em um canto das prateleiras em que foram arranjados os quadros e estátuas dos

santos. Fiquei curiosa. No interior do altar, esse era o único artefato sob a forma de uma

boneca.

Depois que sai dali, eu e Renan começamos a conversar na antessala. Perguntei-

lhe então sobre a boneca: – É a índia Anacaona. Armando lhe colocou esse nome

porque como parecia uma indígena, um espírito a benzerá [santiguará] e se pode usar

ela para trabalhar; coloca-lhe sua oferenda e se usa para trabalhar, Renan me

respondeu. E em seguida ele indagou Luz: – Se busca um boneco e se pode colocá-lo

como um espírito?, ele procurava confirmar o que me dissera. – Tem devoção ao

boneco, Luz argumentou. – Há um mistério que se chama assim, e Armando colocou

esse nome na boneca porque ela se parece com Anacaona, Renan reafirmou.92

Um pouco de grãos de milho e apenas moedas foram colocados por Raul diante

de uma estátua de um índio no chão, assim como uma quantidade considerável dessas

90

Os dois últimos são cultuados junto com María Lionza pelos venezuelanos, e são chamados as Três

Potências. 91

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 13. 92

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 14.

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peças cunhadas sobre seus braços, como se ele as segurasse. Além disso, várias

fotografias de homens, mulheres e crianças índias, realizando atividades em aldeias e

rios, foram reunidas em um quadro, posto ao lado da estátua.93

3.2.3 Rebeldes da terra, do rio e do monte

Além de terra, pedras de rios e água fluvial fazem parte da espacialidade dos

mistérios índios. Durante o meu banho e despojo, o marido de Gina jogou os ramos das

flores que foram utilizados no rio. Anaisa ficou extremamente irritada com o ato dele. E

praticamente ordenou que ele retirasse aquilo das águas, pois ela não havia lhe pedido

para fazer isso, o que deixa sujo, emporca o rio: – Eu não gosto de sujeira, da porcaria,

ela esbravejou.

Enquanto o marido de Gina argumentava que não sabia, procurando um galho

para puxar os caules da água, Anaisa resmungava, repetindo que não pediu que ele

fizesse isso, pois suja, e ela não gosta disso. Aborrecida, ela o chamou. Ele ainda

procurava arranjar-se para retirar o que tinha lançado ao rio. Séria, disse-lhe que era a

última vez que ele fazia aquilo. Então, Anaisa me olhou, pois percebeu que eu a

observava: – Os índios não gostam que sujem a água, não se pode fazer isso, ela

reafirmou. Pouco depois, a metresa ensinou a mim e à senhora porto-riquenha a pegar

uma pedra do rio, levá-la para casa, pôr sobre a sua superfície algum pó (que eu não

entendi o nome, talvez, farinha de milho), mel e uma vela branca. Ao ouvi-la indaguei

se isso era para os espíritos guedeses: – Não, é para os índios, isso se chama otá.

Os guedeses são espíritos que também podem ser encontrados nos rios. Foi isso

o que Gina me explicou ainda nesse dia. Quando ela está em tal ambiente vê alguns

guedeses sobre as pedras. Por causa disso, ela associa esses mistérios ao chão, à terra,

no sentido de que os vê a partir desse modo de ancoração. Renan, o companheiro de

Armando, quando me mostrou seu próprio altar, havia preparado um trabalho para

Guedé Limbó como um meio de aplacar uma bruxaria que teria sido feito para o casal:

em um recipiente de barro, Renan inseriu 7 pedras de rio, ele destacou, cobertas por um

pó branco.

Mas estar embaixo nos altares não significa necessariamente localizar-se

próximo ao chão no mesmo sentido que isso é atribuído aos mistérios guedeses, pelo

menos aos três mais populares entre os dominicanos (O Barão do Cemitério, Santa

Marta A Dominadora e Guedé Limbó).

93

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 15.

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Nota-se isso com relação a um espírito que Gina atende, segundo ela, o velho

Lengassu, 94

que no tempo dele era monge da Igreja, cuja imagem está no chão do altar

ao lado de dois petroses, que Gina vê também sobre as pedras dos rios. Para ela,

Lengassu é um dos três mistérios mais fortes. Sua imagem é a de São Cipriano e seu

tempo e papel social recuperam um ambiente completamente distinto daqueles dos

guedeses já descritos.

Ao lado dessa imagem, Gina atende Ti Jean (São João O Conquistador), um

espírito petro – também considerado muito forte por ela – mobilizado para trabalhar em

conquistas amorosas. Outros petroses como São Marcos de Leon, para quem Joana vez

ou outra jalava (fumava) um tabaco na botânica, e Jean Criminel, o terceiro da tríade

mencionada por Gina, também têm suas imagens no chão.

São Marcos de Leon é um petro a quem Joana dedica alguns trabalhos feitos

para os clientes. Conforme ela, ele vive no monte. O espírito petro Gran Toroliza (Jesus

da Boa Esperança) é atendido por Gina na parte elevada de seu altar, ao lado dos

chamados santos de cima. Ele também vive no monte e sua imagem é a de um homem

sentado em uma cadeira construída com estrados de madeira: – Ele é bem bravo, sobe

no monte, em uma casa com palo [madeira, varas] atrás, fora da casa. Íamos até a

escola de seus filhos, quando Gina me disse que estava na casa da irmã quando precisou

ir até o quintal (patio) para que esse espírito montasse. Quando colocaram uma cadeira

para esse mistério se sentar, o móvel se rompeu com o peso do espírito. – Ele é muito

forte, ela salientou.

Além dos guedeses, índios e petroses, pelos menos dois espíritos da divisão dos

oguns têm as imagens também no chão. São João Batista está em um ambiente fluvial,

assim como São Judas Tadeu. São Lázaro, considerado o espírito de um homem

bastante idoso, Santo Antonio de Pádua, que se apresenta como Papa Legba, também

um espírito idoso a quem se pede que abra os caminhos na invocação dos mistérios,

estão no chão no altar de Gina, mas são vinculados à terra.

3.3 HORIZONTES EFÊMEROS: OS SANTOS DE CIMA E SEUS ARTEFATOS

– Esse chapéu azul foi feito especialmente para ele, São Santiago, que me pediu.

A capa e o chapéu se parecem com os do quadro de São Santiago. São Santiago, ele

conheceu Colombo [Cristõvão Colombo], tinha conexão. Ele é muito antigo, vem por

gerações, vivia em Madri, Espanha. Esse vermelho é de Papa Candelo. Eles querem

94

Provavelmente o loa (espírito) Linglessou, a que faz algumas referências Métraux (2007).

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sentir-se vivo, querem se ver como eram antes em cabeça humana, se vestiam assim

antes. Eles viviam assim com essa roupa. 95

O chapéu confeccionado com um brilhante tecido azul para São Santiago

Apóstolo/Ogun Balendyo e o de palha pintado de vermelho para Candelo Sedifé

pendurados na parede do altar de Armando, enquanto objetos mnemônicos, reelaboram

para esses espíritos suas antigas experiências em vida. Foi também no encontro com

outro artefato que Ogun Balendyó alcançou, por alguns instantes, a sensação de ser

novamente vivo: – Agora sim eu me sinto como a pessoa que eu era, esse mistério

reagiu ao ter em suas mãos uma espada, com uma longa lâmina e punho de metal, em

estilo medieval, dada a ele de presente por Luiz, amigo jamaicano de Gina. – Isso é

bonito, o rapaz me falou ao me contar como Ogun Balendyó se sentiu ao receber o

objeto.

Candelo Sedifé, no altar da casa de Gina, também possuía seus objetos de

lembrança. E um deles pode lhe ter servido como uma arma bélica. Trata-se, no entanto,

não de uma espada, mas de um machete, seu facão do mato. Tal ferramenta é associada

pelos dominicanos a uma árvore chamada de caoba.96

Certa vez uma cliente dominicana foi até a botânica em que Joana fazia as

consultas, procurando por um pedaço da madeira de uma árvore conhecida como caoba.

Ela dizia à Joana que se encontrava muito salgada... que tudo que tem que comprar me

dá um trabalho [una brega]. Joana, entretanto, negou-se a cortar com um facão o tronco

da caoba para vender-lhe. Argumentou com a jovem que não se atrevia a fazê-lo. A

cliente, então, ela mesma o fez. E ao separar o pedaço que compraria, fez outro pedido à

Joana: – Me dá um refresco [refrigerante] vermelho desse... pra meu velho... pra meu

velho!

Joana depois me explicou que a Candelo lhe encanta essa árvore, cujo tronco

exala um cheiro semelhante ao de menta. As pessoas acenderiam a caoba para Papa

Candelo, pois a madeira entra em combustão rapidamente, e adicionariam um pouco de

incenso. Além disso, poderiam utilizá-la nos banhos para as coisas más –

provavelmente foi isso que a jovem dominicana fez, pois se dizia salgada (sem sorte) –

e para os trabalhos, nos quais são misturados a madeira da caoba e o incenso com um

pouco de gasolina. Isso faria com que a resina da madeira fosse liberada, o que depois

95

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 16. 96

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 17.

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de certo tempo serviria como um tipo de emplastro a ser colocado sobre os ossos do

corpo daqueles que sofrem com artrite.

Apesar de sua imagem nos altares ser a de São Carlos Borromeu, sua estátua é a

de um senhor negro. Ele fuma cachimbo, carrega consigo um cesto, além de seu facão e

segura o crânio de um animal. Renan foi quem chamou a minha atenção para essa

dissociação entre a imagem do santo e a estátua. Ele explicava-me que embora o quadro

de São Carlos Borromeu (um santo branco) do altar de Armando ser Papa Candelo, esse

mistério era na verdade preto. – Preto não, trigueño, ele se corrigiu. Renan fez então

com que eu olhasse para a estátua e observasse a diferença que me assinalou. Antes

disso, Armando já havia comentado que Candelo Sedifé fala patuá, embora ele mesmo

não saiba a língua: – O espírito fala assim porque ele traz as raízes africanas da época

em que viveu, de suas origens africanas, ele ressalvou.

Ogun Balendyó e Candelo Sedifé são considerados santos de cima pelos meus

interlocutores dominicanos. E suas imagens ficam, geralmente, sobre uma mesma mesa.

Mas quando os altares são organizados sob a forma de uma escada (para Gina essa seria

a maneira correta) ou ainda semelhante a uma pirâmide, Candelo Sedifé é localizado em

um nível abaixo de São Santiago/Ogun Balendyo. Nos altares, acima desse patrón

estaria apenas São Miguel Arcanjo, considerado geralmente o chefe da 21 Divisão. Em

ambos os casos, as metresas, espíritos femininos, estão ao lado desses três santos de

cima. Anaisa a Pié/Santa Ana, como já salientei, viveu como uma prostituta, e é

localizada ao lado de São Miguel. Metresili é tida como a esposa de São Santiago (cuja

união teria ocorrido quando vivos). Para Gina, são os únicos que foram casados mesmo,

em seu tempo. Candelina ou a Virgem da Candelária é posicionada ao lado de Candelo

Sedifé.97

Os espíritos arranjados na parte elevada dos altares em relação ao chão

cristalizam experiências que evocam o fluxo de pessoas e de mercadorias. Além disso,

ambientes mais urbanos. A exceção entre esses santos de cima seria Candelo Sedifé.98

Os gostos das metresas Anaisa e Metresili, que são geralmente tidas como,

respectivamente, mãe e filha em vida, são por produtos que incorporaram estilos de vida

aburguesados, consumidos para um tipo de embelezamento considerado adequadamente

97

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagens 18 e 19. 98

E talvez de Candelina, que às vezes é vista como a Baronesa do Cemitério, mas pouco é dito sobre ela.

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feminino, como o uso de perfumes, talcos99

e jóias. E Anaisa expressa ainda o cultivo

da escrita, leitura e declamação de poesia como hábito de lazer.

São Miguel Arcanjo/Belié Belcan e São Santiago Apóstolo/Ogun Balendyo

também desenvolveram a prática da escrita, e são retratados por Joana como homens

brancos de olhos claros, que se locomovem a cavalo, e portam suas conhecidas e

cultuadas espadas.

3.4 AS COORDENADAS DAS SUBSTÂNCIAS E DOS MODOS DE SERVIR

As substâncias alimentares ocupam um lugar central nas prestações rituais

oferecidas aos mistérios. A qualidade dos alimentos inseridos nos serviços, contudo,

demonstra uma etiqueta ritual quanto ao que dever ser dado aos espíritos e de que

maneira as pessoas devem fazê-lo.

Não somente os artefatos, mas igualmente os alimentos produzem uma série de

efeitos sobre os mistérios. Desse modo, ao serem arranjados nos altares é importante

que se esteja atento a algumas diferenças de paladares e estilos de servir: lidar com

esses sentidos de gosto nos ambientes domésticos é refazer com a comida e certos

artefatos a separação entre os chamados santos de cima e os debaixo.

Para os guedeses, Joana me explicou, prepara-se o que os dominicanos chamam

de moro de arroz con habichuelas negras (combinação de arroz com grãos de feijão

preto) e arenque (um tipo de peixe). Junto a essa refeição, inclui-se um pão circular feito

com farinha de mandioca (casabe) e ovo cozido. Joana ainda destacou que esses

alimentos devem ser servidos no chão do altar e em recipientes específicos: – Eles

gostam de comer na figueira [higuera]. E justificando a preferência por esse tipo de

cabaça, ela continuou: – Eles gostam do chão, da terra, não gostam do luxo. Há

mistérios que gostam do luxo, mas os guedeses não. Eles gostam de comer na figueira

(higuera), que se fume seu tabaco... São Miguel e Anaisa gostam da finura, gostam de

bolo.

Uma vez Gina chamou a minha atenção para o fato de que Santa Marta A

Dominadora gosta de ovo cru (gema e clara), além de café, leite e tabaco. Para Gina,

esse paladar se explica porque se trata do mesmo que o da cobra, animal a que essa

metresa se hibridiza. Joana também salientou que Santa Marta fuma tabaco, aliás, seria

a única das metresas que tem esse hábito. Além de solicitar que seja servida pelas

99

Por razões completamente diferentes do que se passa com São Elias/Barão do Cemitério.

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pessoas com berinjela crua. Nessas refeições para os guedeses, geralmente se acende

uma grande vela (da cor que representa esses espíritos) no centro dos recipientes.

A finura salientada por Joana quanto às preferências alimentares de São Miguel

e Anaisa associa-se não somente a diferenças de qualidade e textura das substâncias que

lhes devem ser oferecidas quando comparadas àquelas dadas aos guedeses. A finura

desses mistérios (e o não gosto pelo luxo de outros) é uma coordenada que se

materializa na mobília do próprio altar: seus alimentos são servidos à mesa. No altar

que Renan organizou para esses santos de cima, em uma prateleira presa à parede de seu

quarto de dormir, a uma distância considerável do chão, uma taça grande com cerveja

estava em frente à imagem de Santa Ana/Anaisa, que solicita também frutas. Em frente

à de São Miguel, havia uma pequena cruz de madeira enrolada em duas fitas (vermelha

e verde) e um prato com balas, doces e pedaços de pão (que não era casabe) em cima.

Balas, doces e bolos são considerados pelas pessoas alimentos vinculados a

certo refinamento social. Alimentos que não pedem muita elaboração no preparo, mais

artesanais, e crus caracterizam a alimentação oferecida aos guedeses. E apesar de vários

mistérios masculinos gostarem de bebida alcoólica, especialmente o rum, como Gina

observou em uma ocasião (e o gim, do gosto do Barão do Cemitério), o café, por

exemplo, é preferido por alguns e se liga a uma percepção de força dos espíritos que o

pedem. Cerveja é a bebida colocada para Anaisa. Já o refrigerante vermelho Country

Club é a bebida da preferência de Metresili, que pede sempre que se acenda uma vela

sobre a garrafa, cujo acúmulo de cera derretida pelo calor se vê nos altares de Gina e

Armando. Outro refrigerante, o Malta India, é oferecido a Santa Marta, que solicita

também uma vela acesa sobre os potes de mel e de malta ao lado de sua imagem.

3.5 MANIPULANDO SOCIALIDADES

Há trabalhos para unir, para separar, para trazer um homem

que saiu de casa, para uma pessoa criar ódio e asno em

relação à outra. Nesses trabalhos se levam muitas classes de

coisas (Joana, 28/10/2010, Río Piedras, San Juan).

Um assunto que vem perpassando esse capítulo (e também parte do segundo) é a

profusão de substâncias e objetos que são introduzidos e combinados nos altares. Como

procurei chamar a atenção, a manipulação de substâncias e objetos indica uma série de

efeitos que são atribuídos a essa materialidade. Ela é capaz de gerar apreço estético e

lembranças, de vitalizar os seres humanos e suas contrapartes espirituais, de recuperar

odores e sensações térmicas, de ativar, intensificar e tranquilizar disposições.

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A compreensão de que os alimentos fortalecem os humanos e os espíritos – e

nesse sentido criam domínios de semelhança e partilha entre vivos e mortos – é um

princípio da atenção e do trabalho ritual cujos desdobramentos são vários: os alimentos

garantem a reprodução, na medida em que vitalizam, porém são capazes de mais. É

possível criar disposições nos espíritos para que se movimentem e trabalhem. Nesse

sentido, as substâncias ativam. Mas é também possível intensificar ações de trabalho

através da manipulação de substâncias químicas como o azouge ou de acalmar com o

açúcar. Nesse sentido, as substâncias alteram.

Um aspecto diacrítico da manipulação de substâncias diz respeito aos gostos (e

como será visto no próximo capítulo, aos odores). McCarthy Brown (2001, p.41-42)

chamou a atenção para isso em suas descrições de um altar vodu para o espírito Azaka.

Alguns espíritos preferem comidas picantes, outros consomem somente aquelas doces.

Alguns ingerem bebidas alcoólicas, o que outros já não fazem. Atenta aos paladares dos

vários espíritos servidos por Mama Lola, sua interlocutora haitiana em Nova Iorque,

McCarthy Brown destaca que certos alimentos têm, nesse sentido, a capacidade de

lembrar.

Ao reunir uma mesa de comidas simples para Azaka, os haitianos em Nova

Iorque procuram evocar uma culinária de uma época mais simples [...]. Em

Nova Iorque, os caules de cana de açúcar e o pão de madioca (cassava)

usados como dispositivos mnemônicos são difíceis de encontrar e caros

(MACCARTHY BROWN, 2001, p.42 grifo da autora).

As substâncias e os objetos oferecidos aos espíritos podem ser pensados como

artefatos mnemônicos como procurei discutir. Muito embora sejam mais os mistérios e

menos os meus interlocutores dominicanos que façam referência a essa materialidade

como meio de lembrança. Os últimos não falam em termos de memória, antes, de sua

tarefa de criar ambientações, sensações e lembranças, para os mistérios. Como salientou

Graeber (1997, p.377), quando se referiu aos rituais famadihana entre os “brancos”

Merina, em Madagascar, os corpos dos mortos eram retirados periodicamente das

sepulturas para serem revestidos em novo tecido como um meio de lembrar os mortos,

mas também foram reduzidos à poeira para que seus nomes fossem esquecidos e

encerrados novamente às sepulturas. Para os “brancos” Merina, a memória dos

ancestrais era vista como uma forma de imposição sobre os vivos, sentida como uma

“forma de violência”. Nesse sentido, eles manipulavam ritualmente os corpos dos

antepassados para fazer com que fosse mais fácil esquecê-los.

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No entanto, gostaria de sugerir que a materialidade dos altares para os mistérios

não se reduz apenas a uma espécie de dispositivo que afeta os espíritos trazendo à tona

as suas lembranças, como mencionou McCarthy Brown. Procurando especificar um

pouco mais a maneira como eu penso os artefatos mnemônicos, gostaria de sugerir que,

através desses modos materiais de lembrar, no limite, das próprias paisagens de

memória espirituais, as ‘pessoas’ engajam-se ativamente (e criativamente) com “coisas”

que cristalizaram conhecimentos sobre formas de viver, de agenciamentos e de produzir

sensibilidades.

A imagem da conversa entre Joana e a cliente dominicana que buscava um

pedaço da caoba (árvore) na botânica, em que a primeira afirmou à jovem que não se

atrevia a cortar o tronco, parece-me reveladora do que podem recriar, para as pessoas,

os fragmentos e porções do que são artefatos mnemônicos para os mistérios. Mesmo

com sua recusa em tomar para si um facão do mato – o que a jovem cliente o fez –,

Joana mobilizou esse artefato e reconstituiu certa paisagem campestre, na qual era

possível ativar certo odor suave (de menta). Força, robustez, certa dose de destemor

aliada ao risco de ferir-se (e virtualmente de agredir), mas também conhecimentos sobre

formas de cura foram associados em um agenciamento aparentemente comercial no

interior de um espaço como a botânica.

A profusão de efeitos a que fiz referência mais acima poderia ser o resultado da

manipulação (ou obliteração) daquilo que se sedimentou como socialidades, de modo

fragmentado, indireto ou oblíquo, mas que mesmo assim informa sobre as relações

coletivas. Proponho que são justamente variações de temperatura, profundidade, textura,

odores, sabores, e maximização de vitalidade (consumo) espiritual que são apropriados

no cotidiano pelos meus interlocutores dominicanos como aspectos materiais e sensíveis

que informam sobre agenciamentos coletivos.

Aquilo que é doce suaviza, acalma. Neste sentido, pode funcionar como “arma”

de controle no sentido de que tem o poder quando, devidamente combinado, para alterar

disposições. – Armando está me ajudando a adocicar meu marido, a cliente porto-

riquenha me falou. – Eu também faço trabalhos de amor, São Elias me informou depois

de recebê-la no altar. – As maças são porque no rio há mistérios rebeldes, e eu preciso

adocicá-los, Ogun Balendyó explicou.

Joana, como mencionei no segundo capítulo, quando era constrangida por

alguém que via com maus olhos o fato de ela trabalhar os mistérios, reagia dizendo que

gosta de fazer trabalhos doces. Com isso, ela não se negava a tentar alterar as

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disposições daqueles que eram os alvos de seus clientes. Apenas fazia isso, geralmente,

engajando-se com substâncias e técnicas mais agradáveis, apropriando-se da maneira

(ou das armas femininas) como trabalha Anaisa. A metresa que estava sempre metida

na botânica junto à Joana.

Aquilo (ou aqueles) que revela um paladar mais adstringente pode significar

capacidade de resiliência, e, assim, ser sinônimo de força. Aos santos mais fortes,

Joana oferece bebida alcoólica como uísque e rum não apenas porque esses espíritos

gostam, mas porque através desse líquido ela incita-os a manifestar essa força

violentamente em cenários rituais masculinos de combate. Simultâneamente a isso,

Joana crava a espada de São Miguel na mesa do altar. Desse modo, a maximização

dessa substância pelos espíritos, para ela, seria extrema. Enquanto produto líquido

resultante da fermentação da cana de açúcar, a bebida alcoólica (uísque, rum, gim)

torna-se uma substância modificada daquilo que os interlocutores concebem como algo

capaz de controlar por meios suaves. Como bebida fermentada, o álcool pode criar

agitação e efervescência nos mistérios, ativados ritualmente para agredir os inimigos de

Joana.

A recusa que Gina e Joana expressavam em manipular sangue nos serviços e

trabalhos relacionados ao petroses tem a ver com o efeito que tinha sobre elas a maneira

como esses espíritos agem. Ameaças de pendurar potenciais inimigos na parede e furá-

los com uma faca (cuchillo), como Jean Criminel explicitou à sobrinha de Joana que se

negou a dar-lhe bebida, ou de agressão levando alguém à morte, como me falou Gina

sobre o petro que lhe diz mata, mata, são imagens momentâneas, fragmentadas, do que

para Gina e Joana em um tempo configuraram-se como ‘relações’.

– Quando o cavalo quer me dá sangue com açúcar, São Elias me disse.

Misturando o que confere vitalidade com aquilo que informa sobre docilidade,

Armando manipulava essas duas substâncias tendo o cuidado para modular

adequadamente a sua relação com esse mistério. Ele decide em que momento oferecer a

substância a São Elias. E não esse mistério – que deixou isso explícito para mim – lhe

pedia como fonte de sua satisfação principal.

O sangue, como substância ritual, é um elemento diacrítico não apenas na

atenção prestada aos mistérios. Como discuti no segundo capítulo, esses espíritos,

quando evidenciam seus aspectos contratuais e de pagamento nas relações com suas

contrapartes humanas, aproximam-se das descrições sobre as práticas religiosas das

regras del palo. No palo, a oferta dessa substância caracteriza a preferência alimentar

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das ngangas, que, como Ochoa (2004, p.130-131) descreve, é necessária para manter a

prenda “úmida”.

Além disso, diariamente, outras substâncias deveriam “esfriar” esses objetos

compósitos nas regras del palo: luz de vela, aguardente e fumaça. “Esquentar” e

“aquecer” as ngangas são procedimentos rituais que, de acordo com Ochoa, criam

efeitos que as ambientam de forma apropriada – sem gerar a revolta pela negligência ou

inadequação de sua alimentação – no interior das casas dos sacerdotes e iniciantes do

palo. Para isso, ele destaca, outras substâncias são manipuladas como terra, por causa

dos odores e temperatura que recria.

As prendas de Isidra eram bem cuidadas e alimentadas. Cobertas com penas

brilhantes, mantidas úmidas com úmidas com aspirações de aguardente e

vinho branco seco. Ela guardava as prendas em um armário, sobre a terra que

tinha trazido de sua cidade. Um grande depósito de cera derretida nos tijolos

demonstrava que ela acendia as velas regularmente. Mantidas úmidas por

suas libações diárias, suas prendas cheiravam como coisas da terra, frias e

úmidas, como o solo que se liga às raízes de plantas, como uma cavidade

úmida nos ossos da terra. O cheiro delas era profundo e direto, denso, úmido

e real (OCHOA, 2004, p.132).

Essa compreensão sobre a interiorização de terra nos altares como uma

substância capaz de gerar uma ambientação caracterizada por um cheiro específico e

uma temperatura úmida percorreu as descrições dos altares de diferentes divisões dos

mistérios. McCarthy Brown (2004, p.36-37) também destacou a importância dessa

substância, quando considerou que os templos vodu nas cidades haitianas mantinham os

adeptos em contato tátil com um chão de terra batido, local em que eram feitas as

libações para os espíritos. Entretanto, a autora vê tal manipulação como a retenção de

um “vínculo simbólico com a terra”, uma espécie de adaptação que restabelece nos

templos urbanos famílias (religiosas) para os migrantes rurais que, deslocados,

perderam suas terras familiares e as redes de convívio e apoio dos parentes.

Mas a partir das descrições que apresentei sobre as divisões enquanto paisagens

de memórias espirituais é interessante perceber o que há de “simbólico” nessa

manutenção do chão sem revestimento nos templos vodu nas cidades haitianas. A terra,

como McCarthy Brown sugeriu, revela um vínculo expressivo dos haitianos com as

propriedades fundiárias. E por isso mesmo, seria também factível pensá-la como uma

substância ou uma parte da paisagem que poderia reverberar mundos também habitados

por espíritos, o que altera tanto o sentido de propriedade quanto do imperativo de ter de

recriar esses mundos ritualmente. O foco deixa de serem as relações mundanas entre as

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pessoas, para que se possam esmiuçar as relações entre pessoas e espíritos transitando e

fixando-se em variados mundos.

As prendas da Casa [de palo mayombé] estavam assentadas em um pedaço de

madeira compensada. A proibição das prendas permanecerem no azulejo ou

cimento foi assim observada. As prendas extraíam força da terra. Sua

verdadeira casa é a solidez secreta do monte e se elas pudessem ter seu

caminho, elas se aninhariam enterradas um pouco na terra sob as raízes de

antigas árvores, ceibas ou jagueys, perdidas na floresta. Sendo isso

impossível em Havana, a maioria das prendas encontra-se em armários em

camas construídas de terra do interior. Qualquer coisa é melhor do que o

azulejo ou cimento, e quando não há outra opção o compensado é a melhor

opção (OCHOA, 2004, p.154).

Outro elemento diacrítico diz respeito ao gosto pelo refinado e rude atribuído a

alguns mistérios. O que, eu sugiro, poderia ser uma maneira singular que os meus

interlocutores dominicanos empregam para mapear a domesticidade e o isolamento (e o

espectro da rebelião) enquanto formas de relacionamento, quando lidam com certos

vestígios materiais das paisagens espirituais. Alguns mistérios, como Santa Marta,

transitam pelo domínio doméstico e por aquele que lhe é exterior. Ela sobe como cobra,

mas, quando se incorpora totalmente, é capaz de cozinhar nas casas. Apesar de ser vista

desgrenhada, Joana certa vez me disse referindo-se à imagem da metresa (ao seu cabelo

volumoso e crespo), Santa Marta é uma mulher fina. Não completamente estranha à

casa enquanto uma forma material que informa um padrão doméstico de convívio, ela é

capaz de se interiorizar nela, embora chegue até aí rastejando, como um animal que vem

de fora. São Elias também flerta com essas imagens de domesticidade e isolamento. Ele

se apresenta vestindo uma capa preta com uma cruz branca, que reinscreve seu estatuto

de morto humano anônimo. Chegando sob tais condições de um cemitério, esse mistério

é aterrado nos altares, solicita maximização de consumo e assim se interioriza na casa e

na família.

Já Gran Toroliza, o espírito petro que vive no monte demanda que seu cavalo

saia do interior dos ambientes domésticos. É fora deles, junto a madeiras e varas (palo)

e cercado pelo mato no quintal, que esse mistério não simplesmente se materializa, mas

também se ambienta. Sentado em uma cadeira atrás da casa, área externa transformada

em seu monte, ele destrói com seu peso a mobília doméstica. Nessa imagem que Gina

me ofereceu, a des-familiarização desse espírito petro com formas materiais domésticas

parece assumir um lugar importante. 100

100

O que não impede, como demonstrei no primeiro capítulo, que mistérios como Grand Toroliza, sejam

uma herança familiar.

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Como discuti no fim do segundo capítulo, a partir das considerações de Palmié,

o monte ou a (manigua) era a região de bosque, às vezes montanhosa, de acesso difícil

em que os escravos fugidos (cimarrones) estabeleciam-se e organizavam os

enfrentamentos contra os poderes coloniais. No entanto, como Palmié chamou a

atenção, apesar de seu isolamento geográfico da sede metropolitana colonial, na

manigua dos fins do século XIX, em Cuba, o que ocorreu foi a transformação de um

assentamento maroon, os chamados palenques (construções erigidas com tábuas de

madeira e galhos), em um campo rebelde entricheirado contra o ataque de tropas

espanholas.

Parece-me que são fragmentos do palenque, vestígios de suas construções

isoladas no meio do mato, que Gina recupera ao delinear a imagem do bravo Gran

Toroliza e seu ambiente. E, talvez, menos do campo maroon de luta contra o domínio

colonial explorada por Palmié. O que não impede que outros espíritos também habitem

o monte.

Mas o monte não é refeito atualmente somente por causa desses espíritos

discretos, bravos e rebeldes, em sua paisagem. Enquanto uma geografia caracterizada

pelo que Palmié chamou de dispositivos técnicos ou armas empregadas pelos escravos

fugidos na manigua – o envio de espíritos ao território inimigo para revelar informações

importantes –, o monte parece ter sido reelaborado atualmente no interior das casas e

botânicas. As ténicas e armas que nele vigoram assumem, com isso, a forma de

bruxaria.

Nas casas e botânicas, os meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos

descrevem a chegada de espíritos enviados por inimigos para causar-lhes danos. Seres

invisíveis que entram sem invocação ritual sob o comando de terceiros: – Estão

atirando-lhe [tirandole], eu ouvia quando alguém queria dizer que era alvo da ação de

espíritos ou pós lançados como bruxaria. Mobilizando um idioma de guerra, Rosa e

Joana manipulavam substâncias cujos efeitos cristalizam alguns modos de fazer

dispersar. São essas técnicas que pretendem afastar espíritos invasores que serão

descritas no próximo capítulo.

3.6 SINCRONIZAÇÃO E HIERARQUIAS

Ao dizer que os altares materializam indícios e traços de formas de socialidade

que foram associados cosmologicamente sob a noção de divisão, procuro indicar que os

mistérios se diferenciam sob o critério de uma oposição mais explícita entre aqueles

santos que são da terra e aqueles santos que são de cima.

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Essas coordenadas espaciais condensam hierarquias (alto/baixo) entrecortadas

por regimentos intermediários, os grupos de mistérios mais ou menos horizontais, que

se espaçam, sem com isso perderem especificidade. A forma da pirâmide a que Gina fez

referência, e que observei em alguns altares, é uma imagem que poderia corresponder

inicialmente a essa composição.

Observar os altares desmonta, em certo sentido, a pirâmide. No entanto, os

enquadramentos espaço-temporais que descrevi revelam uma multiplicidade de

perspectivas sobre o que significa tomar a terra como uma forma de socialidade e

pertencimento. E o mesmo se passa na superfície plana das mesas afastadas do chão.

Sobre as mesas habitam espíritos guerreiros, cujas armas, indumentárias pessoais

e imagens informam que as guerras que eles lutaram em vida provavelmente não foram

as mesmas. Seus tempos e espaços eram outros, assim como aqueles que guedeses,

petroses e índios solicitam que sejam recriados no chão. Cosmologicamente tudo isso

foi sincronizado, e cada um desses tempos e espaços se torna uma perspectiva a ser

considerada para as ações rituais das divisões. É neste sentido que falo de sincronização

ou relações de contigüidades criadas pelos altares.

Ainda assim, é interessante ressaltar que são espíritos masculinos guerreiros que

se apresentam à frente de uma divisão. E se ao lado deles estão as metresas, atrás

legiões de soldados ou auxiliares, com quem esses chefes trabalham, parecem estar

mais ou menos à sua disposição. No chão, os campos de lutas parecem ter sido

diferentes. Os espíritos geralmente são concebidos como índios e negros, dos rios e do

monte. O mesmo se dá com os combates planejados sobre a mesa. McCarthy Brown

(2001, p.37, 45, 61, 68) observa que diferente de Azaka, espírito servido por Mama

Lola, sua interlocutora haitiana em Nova Iorque, Ogou, “identificado”, conforme a

autora, com o santo católico São Santiago (Saint James), é um espírito que torna a

antiga história urbana do vodu mais aparente.

No altar preparado para a festa de aniversário de Azaka (um homem da

montanha), sua comida foi arranjada abaixo da mesa mais ampla, cujos alimentos

seriam oferecidos a outros espíritos. Um chapéu de palha, seu macuto (makout), uma

garrafa de rum com um laço de ervas ao redor, e “uma camisa azul de brim feita

especialmente para ele”, sua interlocutora destacou, foram separados para o momento

da chegada do espírito. Para McCarthy Brown, Azaka aponta para a importância das

“raízes da terra” enquanto Ogou para uma dimensão mais urbana do vodu. Por isso seria

um erro ver o vodu como uma religião agrária que se tornou precária quando se

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deslocou para as cidades. Quando Mama Lola planejou interromper as festas em Nova

Iorque para seus espíritos, e realizá-las a cada três anos no Haiti – o que significaria que

Ogou não teria a sua festa de aniversário – os espíritos lhe disseram: “Não! Faça uma

mesa”.

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CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 3)

Imagem 9. Altar para os mistérios na casa de Raul. Divisão dos guedeses. À direita, São Elias com seu

serviço ritual e alguns artefatos fúnebres – casabe, arenque, ovo cozido e arroz com feijão; esquife e

recipiente com terra de cemitério; ao centro, Santa Marta A Dominadora. Hato Rey, San Juan, abril de

2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 10. Altar para os mistérios na casa de Raul. Serviços para os guedeses São Expedito/Guedé

Limbó (à esquerda) e Santa Marta A Dominadora (à direita): casabe, berinjela, ovos cozidos e arroz com

feijão, alguns dentro de cabaça; mel e Malta India, além das grandes velas e frascos de talco infantil. Ao

fundo, à esquerda, um quadro de São Marcos de Leon, um espírito petro. Hato Rey, San Juan, abril de

2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 11. Altar para os mistérios na casa de Armando. Divisão dos guedeses: São Expedito, São Elias e

Santa Marta A Dominadora, santos da terra, e alguns trabalhos e serviços rituais. San Isidro, Canóvanas,

dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 12. Altar para os mistérios índios na casa de Armando, que escavou a terra sob o chão e as

paredes para ambientar esses espíritos. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 13. Altar para os mistérios índios contíguo aos espíritos guedeses (à direita, serviço ritual para

São Elias: casabe, café e água; e moedas para Guedé Limbó/São Expedito) e a outros mistérios do rio. No

chão, farinha de milho, substância sensível para os espíritos índios. À direta, Eleguá. Ao centro, caldeirão

ritual envolvido pelos pañuelos (lenços). Casa de Gina, Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto:

Alline Torres.

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Imagem 14. Boneca que seria transformada ritualmente no mistério Anacaona (índia). Atrás desse

artefato, a imagem de um mistério índio, ambos próximos ao chão. Casa de Armando. San Isidro,

Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 15. Mistério índio, cercado por alguns artefatos, e contíguo a São João Batista, um ogun, e a

miniaturas de galos (talvez, sinalizando a presença de Ogun Ferraile); ao fundo, Yemaya. Casa de Raul.

Hato Rey, San Juan, abril de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 16. Chapéu em tecido azul confeccionado para São Santiago/Ogun Balendyó, e vermelho, em

palha, para Papa Candelo (Candelo Sedifé). À esquerda, imagem de uma deidade hindu. Altar para os

mistérios na casa de Armando. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 17. Artefatos de Candelo Sedifé: machete e um tipo de sacola (macuto). À frente do machete, o

quadro de São Carlos Borromeu, que representa Candelo nos altares. Casa de Gina. Río Piedras, San

Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

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Imagem 18. Santas de cima (metresas): ao centro, da esquerda para a direita, Virgem A

Dolorosa/Metresili, Santa Ana/Anaisa, e Virgem de Alta Graça; à direita, a imagem de Gran

Toroliza/Jesus da Boa Esperança, espírito petro do monte, sentado em uma cadeira de paus de madeira

tendo à sua frente um copo de vidro e abaixo uma nota de dólar. Altar para os mistérios na casa de Gina.

Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

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Imagem 19. Altar para os mistérios com os santos de cima na casa de Raul. Hato Rey, San Juan, abril de

2010. Foto: Alline Torres.

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CAPÍTULO 4

APROPRIAÇÕES E SUBVERSÕES ESPIRITUAIS

Na segunda manhã, quando Clarke e Wade iam de carro para o

hospital de Nkisa, encontraram um despacho ao lado da

estrada. Era comum que vissem esses sacrifícios na estrada e

não costumavam parar. Mas este chamou-lhes a atenção por

sua extraordinária fartura. Wade parou o carro, e os dois

desceram para ver de perto. Em vez do costumeiro frango

branco, havia dois grandes galos. Os outros objetos eram

habituais: novas e amarelentas frondes de palmeira, cortadas do

topo de árvore, uma tigela de barro com dois pedaços de noz-

de-cola e um pedaço de giz branco. Contudo, os dois homens

só viram esses objetos depois. No que eles puseram o olho

imediatamente, ao chegar perto do despacho, foi no florim

inglês. – Ora essa! – exclamou Wade. – Realmente, isso é

muito estranho. Um sacrifício dos mais extravagantes. Eu me

pergunto qual será o significado de tudo isto. – Talvez seja pela

recuperação do representante do nosso rei – disse Wade em

tom alegre. Depois, algo pareceu lhe ocorrer, e disse

seriamente: – Eu não gosto do aspecto disso. Não me importa

que usem nos despachos seus cauris e manilhas, mas a cabeça

de Jorge V? (Chinua Achebe, A flecha de Deus, p.231-232).

Narrativas visuais

As imagens de santos como aquelas comercializadas nas botânicas em Río

Piedras mediaram grande parte das minhas conversas e interações com os meus

interlocutores dominicanos. Mas não foram somente essas pessoas que fizeram

referência aos quadros e figuras em resina, relacionando essas formas materiais aos

espíritos. Quando montaram ou subiram em seus cavalos, os mistérios também tomaram

essas imagens como objeto de suas narrativas. Nessas apropriações espirituais, que

incluem outros artefatos e linguagem ritual do cristianismo, os mistérios produziram

uma espécie de metanarrativa. Por meio das imagens de santos eles conceberam a si

mesmos.

Além disso, alguns desses espíritos assumem atributos estéticos das imagens

quando estão montados, e ainda oferecem a seus interlocutores um conhecimento que é

também visual, baseado nos elementos iconográficos que compõem as próprias

imagens. Neste sentido, visualizar certos quadros de santos pode ser também um modo

de aprender não apenas sobre a singularidade de um mistério, mas também conhecer

uma dimensão hierárquica que orienta a intervenção desses espíritos junto aos seres

humanos, como aquela que discuti no terceiro capítulo.

Os sentidos múltiplos dessas imagens nos altares parecem implicar que os

próprios mistérios – alguns deles, pelo menos – se reconhecem e se definem por meio

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delas, mas também que podem refletir sobre as formas materiais que lhes permitem

coabitar a casa e a vida das pessoas. Sugiro que talvez essas compreensões não digam

respeito obrigatoriamente à ideia de que alguma outra coisa é imitada ou disfarçada

quando as imagens de santos e artefatos ligados ao cristianismo são por eles

apropriados.

– Você então quer ver os santos? Foi nestes termos que Raul, um cavalo dos

mistérios, indagou-me quando chegamos à sua casa, logo depois de mostrar-me que

estávamos à frente da porta de seu quarto espiritual.101

Contudo, na casa de Raul as

conversas se reduziram ao mínimo. O que lá ocorreu foram basicamente algumas trocas

de palavras. Os motivos para isso não me são completamente explícitos. Mas suponho

que, afora o fato de que a cautela caracteriza todos aqueles que trabalham os mistérios,

o caso de Raul pedia precaução redobrada.

Ele e um amigo também dominicano foram buscar-me na botânica de Rosa, na

Plaza del Mercado, pois quando combinamos a visita Raul não me disse seu endereço.

No carro, ele se lembrou que deveria comprar velas grandes. E alertou ao amigo que

não poderia voltar para casa sem elas. Fomos então a um depósito próximo à Plaza.

Nele Raul comprou duas caixas de velas, brancas e vermelhas. Ao efetuar o pagamento

em dinheiro, a operadora disse-lhe que a nota de cem dólares com a qual ele fez o

pagamento era falsa. Raul então retirou outra. Depois da compra, já no carro

novamente, seu amigo disse-lhe que ele deveria substituir a nota falsa por uma legítima.

Raul argumentou que não tinha como fazê-lo, pois estava ilegal em Porto Rico.

Ao chegarmos, ele gentilmente disse que eu poderia sentir-me em casa e chamou

um senhor mais velho que já se encontrava na residência. Apresentou-me como

pesquisadora brasileira e pediu ao senhor autorização para a minha permanência ali, que

reagiu dizendo que não havia problema. A escassez de conversas, no entanto, foi de

certo modo compensada pelo aspecto visual da casa de Raul. Os santos não estavam

apenas em seu altar, mas em várias locais da sala. Como ele mesmo havia proposto, eu

estava ali para ver os santos, e foi isso o que eu fiz. Ou melhor, era isso que ele esperava

que eu fizesse ao me levar até onde vivia e permitir que fizesse as fotografias do altar.

Visualizar e não falar me pareceu ser a disposição de Raul diante de mim.

Já o meu encontro com Antonio e Maria em Río Piedras ocorreu meses depois

de eu conhecê-lo também na botânica de Rosa, na Plaza del Mercado, durante a minha

101

Como descrevi na Introdução, conheci Raul na botânica de Rosa. Na ocasião, ele foi à loja para fazer

compras rituais.

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primeira estada em Porto Rico. Neste dia nós havíamos conversado um pouco, depois

da apresentação de Rosa. E Antônio, ao saber sobre o meu tema de pesquisa, havia feito

menção a São Miguel Arcanjo.

Mas até que conseguisse ir à casa do casal, fiz várias tentativas de contato pelo

telefone. Em uma tarde falei com Maria, que permitiu a minha ida até eles. O que eu

fiquei sabendo ao chegar lá, no entanto, era que aquele dia estava sendo extremamente

delicado e difícil para o casal: o pai de Antonio havia falecido naquela madrugada.

Maria então confessou que ao falar comigo pelo telefone, quase desistiu que eu fosse à

sua casa. Antônio, no entanto, disse-lhe para deixar-me ir.

Desde a minha chegada naquele fim de tarde ela foi muito simpática. Explicou-

me que o pai de Antônio também tinha esses dons espirituais, tinha seus arcanjos, São

Miguel... Por isso eles precisariam fazer certas coisas por causa de seu falecimento.

Entretanto, Antonio já sabia o que ocorreria com seu pai, Maria me explicava. Ele

estava em Santo Domingo e lá foi avisado pelos seres (mistérios) que precisaria

regressar a Porto Rico por causa do que aconteceria com seu pai.

Enquanto ela narrava-me isso, Antonio, que estava no interior da casa, foi à

varanda onde nós duas estávamos e aproximou-se: – Ah, é você!, ele exclamou ao me

ver, e explicou à Maria que foi ele mesmo quem havia me dado o cartão da firma de

extintores com seus números de telefone à época em que me conheceu na botânica de

Rosa.

Antônio se sentou e Maria descreveu o estado físico do sogro. Quem o visse no

dia anterior nunca pensaria que ele morreria, pois parecia estar bem, aos olhos dos

familiares mesmo, ela salientou. Maria, contudo, insistia em afirmar que o marido já

sabia o que aconteceria. Ele preparou aperitivos para comermos, e nos dirigimos até

uma varanda mais ampla, onde continuamos a conversar. Antônio então me contou

porque estava na República Dominicana nos dias que antecederam o falecimento de seu

pai. Ele viajou para ir a um lugar conhecido como El Monte de Oración. Nessa colina,

quitou um espírito mau de sua mãe, ele falou. Tal espírito era um petro, como descrevi

no segundo capítulo. Antes de dizer-me isso, ele comentou que na festa de São Miguel

do ano anterior quitou um morto da irmã de Rosa, levada por ela à celebração.

Maria então explicou ao marido que o que me levava até eles era o interesse nas

pessoas que têm os mistérios, que trabalham os mistérios, e na religião dos

dominicanos. Eu havia mencionado a última expressão, mas, como está implícito por

toda a tese, as ‘pessoas’ não definem suas ‘relações’ com esses espíritos como

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‘religião’. Um equívoco meu que, no entanto, gerou alguns comentários de Maria sobre

a maneira como é prestada a atenção ritual aos mistérios.

Ela e Antonio criticaram aqueles que colocam comida e bebida alcoólica em

frente às imagens: – No meu altar você sempre vai ver copos com água clara, nem

bebidas, nem cigarros, porque Deus não fuma. E os anjos também não, Maria

enfatizou. E tentando marcar uma diferença em relação ao modo como outros

dominicanos lidavam com as imagens do altar, reiterou: – Eu não uso nada disso em

meu altar porque Deus não necessita disso. Às vezes eles [os mistérios] me pedem uma

comida, mas para que eu compartilhe com alguém. Me pedem coisas, para que faça

coisas… Antônio, ao ouvir as considerações da esposa, comentou que isso (pôr comida

e bebida alcoólica nos altares) não é verdadeiramente espiritual, as pessoas fazem as

festas para beber, para fumar, isso de amarrar um lenço, pegar um tabaco não são

coisas verdadeiramente espirituais. Eu não gosto disso.

No decorrer dessa conversa em que Maria, Antonio e o que eles mencionavam

sobre os seres eram o foco da minha atenção, mais uma vez eu fui enredada nas

experiências e concepções que vinha procurando tornar o material desta etnografia. Ela

estava sentada em frente a mim e de repente começou a falar sobre minha mãe,

posteriormente sobre meu pai, que havia falecido quando eu estava em Porto Rico

durante a primeira viagem. Inicialmente eu reagi ao que ela me dizia, pois não me dei

conta do que se passava, mas Antônio me pediu para que não falasse. Eu deveria apenas

escutá-la.

Por causa da advertência dele, percebi que o tom de voz de Maria se modificou.

Ela agora falava de modo alterado, às vezes mais alto, exasperadamente, quase aos

gritos, e suas falas sofriam pausas. O movimento de seu corpo parecia-me também

diferente. Maria estava agitada, gesticulava a cada frase que pronunciava. Mas sua

transformação não era absoluta. Minutos antes, quando Maria comentava sobre os

altares, ela havia dito que em certas ocasiões encontra alguém na rua, que a

cumprimentava, e, em seguida, indagava-lhe sobre algo que teria falado. Maria me

explicava que isso se dava porque, nessas situações, tinha um mistério em cabeça.

Entretanto, não lembrava o que havia pronunciado a outros sob esta condição: – Eu não

sei de nada, ela insistia.

Eu escutava os comentários e descrições sobre minha vida familiar vindos de

Maria, cujo comportamento se diferenciava da ‘pessoa’ com quem eu mantinha um

diálogo havia pouco tempo. Ali, naquele momento, eu deparava-me com um monólogo.

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Pouco antes dessas mudanças, Antonio comentou em voz baixa: – Eles chegarão. Ao

ouvi-lo não entendi seu comentário. Questionei sobre o que ele havia dito. O casal se

olhou e ficou em silêncio. Quando novamente ele fez tal afirmação, insisti na pergunta,

e Antônio respondeu que os mistérios chegariam, e eu sentiria, pois teria arrepios.

No decorrer de suas falas, Maria novamente se modificou. Depois de dizer-me

coisas sobre meu pai, voltou a referir-se à minha mãe, e parecia a ‘pessoa’ de antes.

Logo depois ela se levantou e foi para o interior da casa. Eu e Antônio ficamos na

varanda. Ele, como no dia em que nos conhecemos, começou a falar sobre São Miguel:

– Lucifer era um arcanjo de Deus que tinha o domínio, que comandava outros

arcanjos, mas que não quis reconhecer a Jesus Cristo como Deus queria. Então se

rebelou contra Deus, e se reuniu com outros arcanjos maus para dominar. São Miguel

Arcanjo foi quem defendeu Deus e venceu Lucifer. E buscando tornar explícito o que ele

entendia por Lucifer, destacou, Satanás.

Nesse momento Maria o chamou. Antonio entrou, deixando-me na varanda. Ele

se demorou por alguns minutos e quando retornou pediu-me para acompanhá-lo.

4.1.1 Uma guedé e suas imagens

Eu me dirigi até os fundos da casa. Nesse local havia um cômodo amplo.

Chegando ali, mantive-me do lado de fora. Antonio entrou. Escutava então uma voz

feminina, mas que soava como a de alguém com idade mais avançada, como uma

senhora, pronunciando algumas vezes Ela, ela... (referindo-se a mim), de maneira

agitada. Quando entrei nesse cômodo, vi ao fundo o altar, organizado sob a forma de

uma pirâmide com as imagens dos santos (como Gina salientou), e Maria sentada.

Porém agora completamente transformada. O quarto estava escuro, as luzes das velas

que estavam no altar iluminavam o ambiente. Antônio estava de pé, ao lado da cadeira

em que se sentava Maria, e ficou assim durante todo o tempo em que fiquei lá dentro,

tendo sobre um dos ombros um pañuelo verde.

Ela vestia uma capa roxa e tinha um pañuelo preto amarrado à cabeça, o que a

caracterizava como um mistério pertencente à divisão dos guedeses. Apesar de não ter

se apresentado, o que geralmente todo mistério faz, suponho que era Santa Marta A

Dominadora. Minha impressão era de que além de mais velha, Maria estava com a pela

mais escura. Antes de sentar-me, eu a cumprimentei aproximando minhas mãos, que ela

cruzou. Durante todo o tempo ela se referia a mim como mujer e madama – essa palavra

era pronunciada como se existisse uma consoante a mais, como mandama –, e minha

vida também foi assunto das considerações desse espírito feminino.

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Em frente ao altar, mas não muito próxima dele, ela disse esbravejando: – Os

seres humanos não crêem mais em Deus, não crêem mais no próprio ser humano... E ao

olhar para as imagens dos santos no altar, continuou: Eles [os seres humanos] têm os

quadros, usam os quadros, mas... Sua insatisfação era patente: os quadros dos santos

estavam sendo usados inadequadamente. Voltando-se a Antônio e girando o corpo em

direção ao altar, disse-lhe que eu falaria com cada um deles, arcanjos como ela. Então,

voltando-se para mim, pontuou: – Porque tu estás buscando a verdade. E novamente

reiterou para Antônio, por isso, eu voltaria ali mais vezes.

Interrompendo o que me dizia, ela destacou: – Ele passa por um momento difícil.

Ambos precisavam conversar. Despedindo-se de mim com o mesmo cumprimento, fez

o sinal da cruz sobre as minhas mãos, na cabeça e na altura do peito. Quando me

levantei da cadeira, ela pediu água a Antônio e ao bebê-la se engasgou um pouco.

Já fora do cômodo, ouvi um barulho muito forte, como se ela tivesse caído no

chão. Depois de um tempo, Maria se dirigiu à varanda acompanhada de Antônio.

Aparentava extremo cansaço e estava aérea. Andando devagar, sentou-se e disse que

queria deitar-se porque sentia sono. Passando sua mão pela testa, olhou para Antônio e

indagou-lhe sobre onde tínhamos parado nossa conversa. Maria retomou o assunto de

minha mãe, e o marido salientou para ela: – Eles sentem também a morte de uma

pessoa, referindo-se ao que a guedé lhe disse sobre o falecimento de seu pai, após eu ter

deixado o altar. Maria então observou: – Foram eles que ajudaram com teu papai...,

referindo-se à morte do sogro. Ela quis saber de Antônio se eu havia feito uma consulta,

e ele explicou que ela quis falar comigo.

Foi depois do meu encontro com a guedé que Antônio me mostrou o altar em

que há pouco nos encontrávamos. As luzes, agora, estavam acesas. Dizendo-me o nome

de cada quadro, ele argumentou: – Para nós [pessoas que têm os mistérios] as imagens

são vivas, eles [os mistérios] estão aqui. E ao pegar um dos quadros do altar, enfatizou:

– Para outra pessoa isso é um pedaço de madeira, mas para nós que cremos isso é vivo.

Tudo bem, isso é um pedaço de madeira, mas para nós é vivo, ele repetia. Olhando para

o quadro de São Elias – o profeta Elias –, Antônio comentou: – Esse venho antes que

Jesus, foi o único que Deus tirou da Terra com uma carruagem. As pessoas fazem mal,

não entendem São Elias.

A partir do encontro com Maria e Antonio, comecei a perceber que seria difícil

pensar a existência das imagens de santos nos altares isolada de uma agência dos

próprios mistérios, ou seja, como artefatos mobilizados unicamente pelas pessoas.

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Engajando-se com os quadros do altar, que, da perspectiva de Antonio, por

exemplo, são vivos, a guedé fez uma crítica à maneira como os seres humanos usam

esses artefatos. Com seu engajamento, ela mesma distanciou-se do que é tido pelas

pessoas como uma forma material de sua presença espiritual. O que não significa que

ela desconsidere que os quadros também sejam os mistérios: olhando para os quadros,

ela dizia a Antônio que eu retornaria à casa e falaria com cada um deles.

Diferenciando-se do que chamou de Deus, dos seres humanos e mobilizando

criticamente os próprios artefatos que possibilitam a sua materialização, o que a guedé

fez foi definir-se (e também os outros mistérios) como arcanjos. Assim, ela revelou seu

próprio ponto de vista: designou alteridades diversas e conferiu um sentindo singular

aos mistérios, ligando-os a uma hierarquia espiritual e a disposições benevolentes, ao

chamá-los de arcanjos. No encontro que descrevi, ela destacou não apenas alteridades

humanas e espirituais, mas também a intenção de qualificar as ações de ambos.

4.1.2 Um quadro, dois oguns

Em outro encontro, agora na casa de Gina, eu fazia fotografias de seu altar, o

que, segundo ela, não foi autorizado pelos mistérios inicialmente, que queriam saber

dela se eu estava escrevendo um livro. Nessa ocasião, ela me dizia que porque Ogun

[Balendyó] foi um homem de guerra, de batalha, ele lhe pediu dois cavalos (artefatos) e

ferraduras para serem colocados perto de seu quadro no altar. Diferentemente dos outros

altares que frequentei, no de Gina o quadro de São Santiago estava no chão. Ao

perceber essa diferença, perguntei-lhe o motivo dessa localização. Ela me respondeu

que Ogun Balendyó lhe pediu para colocá-lo ali. Os cavalos, Gina ainda salientou,

deveriam ser postos um em cada lado do quadro.

Especialmente no caso desse mistério é difícil dissociar a imagem do santo da do

espírito, como, por exemplo, Renan fez com Candelo Sedifé e São Carlos Borromeu.

Como descrevi no terceiro capítulo, Armando visualiza o quadro de São Santiago e

reconhece nessa imagem características estéticas que fazem parte da maneira como ele

vê o mistério. O chapéu confeccionado especialmente para Ogun Balendyó, por

exemplo, parecia o do quadro, Armando chamou a minha atenção. Geralmente, as

pessoas tomam a imagem como ele. E essa apropriação não se restringe à Gina e a

Armando.

Conversando com esse mistério, percebi que a presença de outros desses

espíritos no altar de Gina era sinalizada com o toque de um sino utilizado para chamá-

los. Por três vezes Ogun Balendyó o tocou e o marido de Gina entrou no altar

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perguntando se o mistério se dirigia a ele. Nas três vezes Ogun Balendyó estava se

comunicando com os mistérios que ali se apresentavam. Depois que o marido de Gina

deixou o altar pela última vez, Ogun Balendyó, que nesse momento chamou a si mesmo

de Santiago Balendyó, contou-me que Candelo estava ali, mas ele não o deixaria passar

(ou seja, montar Gina). Ele me pediu então que pegasse um pañuelo vermelho que

estava amarrado ao redor de um caldeiro e o enrolou ao corpo (na cintura) de Gina.

Ele seguiu dizendo-me que Ogun Ferraile, outro mistério, estava sempre atrás

dele. Ogun Balendyó segurava uma caneta, e com ela apontou para seu quadro no altar,

mostrando-me a figura de um homem vestido com uma armadura, montado em um

cavalo, um dos elementos que compõe a paisagem iconográfica da imagem: – Ele é esse

aqui. Ele está sempre atrás de mim por isso eu pego um lenço (pañuelo) vermelho. E

ainda salientou ele – Ogun Ferraile – é São Jorge, apontando, novamente, mas agora

para outro quadro do altar, depois de procurar esse entre tantos outros.102

Considerando essas descrições etnográficas, os quadros e imagens em resina do

santos parecem compor de modo inusitado as maneiras singulares como os mistérios se

concebem. Nessas interações entre esses espíritos e as imagens, vários sentidos

parecem ser produzidos para essas formas materiais. Pelo menos no que diz respeito às

situações que apresentei, tais formas não se resumem simplesmente a representar

espíritos que seriam algo diferente daquilo que está retratado nas imagens. Isso

implicaria a ideia de que essas formas materiais apenas disfarçam por meio das figuras e

cenários alguma outra entidade ou realidade que não estaria contemplada ali. Se isso é

verdade para alguns mistérios, ainda assim, como demonstrou a guedé, é possível tomá-

las de vários pontos de vista. E retratar a si, por exemplo, como arcanjo.

A partir das descrições da festa para São Miguel, em que o espírito Belié Belcan

é celebrado, outras formas de apropriação pelos mistérios de artefatos relacionados ao

cristianismo têm destaque.

4.2 A FESTA DE SÃO MIGUEL

A festa de São Miguel Arcanjo é a mais esperada pelos dominicanos que

atendem os mistérios e por aqueles que se relacionam com o santo por meio das

consultas e devoção. Durante minha primeira estada em Porto Rico, era notório que as

mercadorias de São Miguel estavam entre as mais procuradas na botânica de Rosa. Mas

102

Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagem 20.

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o que vinha se apresentando, no decorrer do trabalho de campo, como a importância

desse santo ia além de qualquer forma de mensuração numérica.

A maneira como Rosa indicava – e ensinava – para alguns clientes como uma

invocação a São Miguel deveria ser feita ao se acender uma vela antes de um despojo

para sacar as coisas más ou de um pedido ao santo, implicava a mobilização de seu

corpo. Tratava-se de uma impostação da voz que transmitia emoção e ao mesmo tempo

firmeza com as palavras.Ao mesmo tempo, os olhos dela brilhavam.

Nos primeiros dias em que comecei a trabalhar com ela na botânica conheci um

amigo de Rosa, Horácio, dominicano de Samaná. Ele trabalhava como cozinheiro em

um restaurante em Puerto Nuevo e vivia em Río Piedras. Nos seus dias de folga, ia até à

Plaza e ajudava Rosa com as vendas. Em uma de nossas conversas na Plaza, Horácio

falou-me que, para ele, São Miguel é um santo vivo e não morto.

O meu retorno a Porto Rico em meados de setembro de 2010 ocorreu por causa

dessa festa, que é realizada no dia 29 de setembro. Nessa ocasião esse santo vivo –

como destacou Horácio cerca de quatro meses antes – monta geralmente o anfitrião da

festa, seu cavalo. Logo que cheguei, Rosa avisou-me que ela e sua família foram

convidados por Antônio e Maria para a celebração.

Quase às vésperas do dia 29, eu soube que Diogo tocaria a conga em uma festa

dedicada a São Miguel dentro de um bar em Río Piedras. Conforme Rosa, em Porto

Rico não existia o palo (dominicano).103

Para Rosa a ausência desse instrumento

musical diferenciava – e desvalorizava – as festas (para os mistérios) realizadas em

Porto Rico. Em San Francisco de Macorís, ela contou, seu pai costumava oferecer uma

festa em homenagem a esse santo, e a celebração se estendia por todo o dia. A fartura de

comida e bebida assim como a presença da música com os homens do lugar tocando

palo eram o que Rosa acentuava. Nesse dia, um domingo à noite, fomos (ela, sua

família e eu) a uma discoteca próxima à casa.

O bar era o local de encontro dos imigrantes dominicanos que trabalhavam com

Rosa na Plaza del Mercado, de seus amigos e vizinhos. Ela costumava frequentar esse

local, e Diogo às vezes se apresentava ali com seu grupo de merengue. Para minha

surpresa, no intervalo da sequência de reggaeton, o DJ avisou ao público,

majoritariamente dominicano, que na quarta-feira próxima, 29, se comemorava o dia de

103

Instrumentos musicais ligados, respectivamente, a estilos musicais afro-cubanos e afro-dominicanos,

que tanto as pessoas quanto os mistérios diferenciam quando tomam como referência as invocações

rituais.

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São Miguel. Por isso, ali seria realizada uma festa e uma bruxa consultaria o público.

Fiquei ainda com a impressão de que a presença de um haitiano na festa, que tocaria

algum instrumento, tinha sido anunciada. De volta ao reggaeton, o DJ depois de certo

tempo passou a tocar uma sequência de músicas que mencionavam os nomes dos

santos/mistérios. Luci, cunhada de Rosa, avisou-me que o que ouvíamos era palo

(música de palo).

Ao som dessas músicas sobre os mistérios, jovens dominicanos acompanhados

de uma moça, também dominicana, começaram a dançar. Os rapazes, seguindo o ritmo

do palo, moviam seus corpos com as costas curvadas. A moça movimentava

rapidamente os ombros, e depois fazia o mesmo movimento que eles. Quando o DJ

anunciou a realização da festa pela segunda vez, não se referiu mais à presença de uma

bruxa na discoteca, mas sim de uma santa que faria as consultas.

No dia seguinte, durante suas atividades na botânica, Rosa avisava aos clientes

que naquela semana seriam realizadas festas para São Miguel em vários lugares em Río

Piedras. Durante os três dias que antecederam àquela data, Rosa e Diogo, ao atenderem

os clientes, avisavam-nos sobre o dia do santo. Na véspera do tão comentado e esperado

dia, Rita, uma dominicana que trabalhava em um posto de verduras e frutas em frente ao

de Rosa, avisou-me que iria a uma festa em San José, bairro próximo a Río Piedras. Um

jovem comerciante porto-riquenho que a ouviu, começou a criticá-la. Para ele, isso era

coisa do diabo, que não existe, que era uma mentira: – A única pessoa que viveu e

ressuscitou foi Jesus Cristo, ele afirmou à Rita. E o rapaz ainda acrescentou que não

acreditava que uma pessoa que fosse até a botânica, comprasse um santo, e depois

acendesse uma vela em casa poderia obter algo por isso. Rita contra-argumentou.

Segunda ela, o rapaz pensava assim porque nunca havia visto... Aludindo ao que

poderia significar ver um mistério. Depois que o jovem comerciante porto-riquenho se

afastou, Rita, que morou em Caracas por mais de dez anos, contou-me que uma vez foi

necessário regressar da capital venezuelana para a República Dominicana logo depois

de ter chegado porque um de seus filhos sofria bruxaria.

Até então eu acreditava que iria à celebração organizada por Antonio e Maria. O

que não aconteceu. Ela teria desistido de fazer a festa devido a problemas de saúde na

família. Antonio fez uma cirurgia espiritual, como ele me disse quando fui à casa dele e

de Maria. Na noite do dia 29, Rosa me levou, junto com sua filha que passava algumas

semanas em Porto Rico, à outra discoteca em Río Piedras. Nela Diogo tocaria com seu

grupo de merengue como parte das homenagens a São Miguel. Mas antes disso, no dia

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28, uma amiga brasileira que conheci na época da minha primeira estada me chamou

para ir a uma festa de São Miguel em Santurce, bairro de San Juan também conhecido

na ilha por causa da acentuada presença de imigrantes da República Dominicana.

4.2.1 Horas Santas

A celebração foi realizada por Dina, uma senhora de setenta e três anos. Ela

vivia em Porto Rico há mais de quarenta anos e fazia consultas, conforme Janaína,

minha amiga brasileira. Na festa do ano anterior, Janaína foi quem confeccionou a

principal roupa para São Miguel.

Quando chegamos a Santurce, por volta de 19:30, os convidados já haviam

ocupado a casa e a varanda de Dina. Ela esperava a nossa chegada – a de Janaína com a

roupa – para que fosse iniciada à comemoração. Janaína lhe avisou que eu iria com ela.

Depois que Dina nos cumprimentou, demonstrou satisfação ao ver a roupa que minha

amiga costurara: uma capa longa em tom verde musgo – assemelhando-se a um manto –

com detalhes em dourado e rosado. Dina então pediu que fôssemos ao cômodo em que

havia um altar para São Miguel. Um imenso altar, cuidadosamente decorado. 104

Ali, um senhor que durante quase toda a festa se posicionou no portal de entrada

do altar, entregou-nos grandes velas vermelhas que traziam a imagem e o nome do

santo. Verde e vermelho eram as cores de vários adereços que ornamentavam o altar; as

cores que são do gosto de São Miguel. O senhor nos encaminhou ao interior do cômodo,

indicou que acendêssemos as velas e pedíssemos o que desejássemos. As velas que

Dina oferecia permaneciam ali depois de acesas pelos que chegavam. Alguns faziam

nesse momento uma oração diante do altar.

Pouco depois Dina iniciou uma curta saudação a São Miguel Arcanjo.

Estávamos numa antessala, com cadeiras e dois instrumentos musicais que me

pareceram os palos encostados numa parede, sinal de que não seriam utilizados.

Sentadas e próximas à Dina, algumas senhoras dominicanas usavam sobre os ombros os

pañuelos (lenços) verdes. Além desse adereço, elas vestiam pelo menos uma peça de

roupa verde e/ou vermelha. Dina usava também um lenço verde, mas não nos ombros e

sim amarrado à sua cabeça, e vestia um conjunto de blusa e calça da mesma cor.

Ao fim da sua saudação, ela e as senhoras começaram a entoar cantos parecidos

com o que chamamos de ladainhas no Brasil (Janaína já havia me alertado que a festa se

iniciava assim). Algumas delas – e outros convidados – tinham em suas mãos um

104

Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagens 21 e 22.

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panfleto religioso, cuja leitura dos trechos produzia uma espécie de liturgia católica.

Além dos panfletos, trechos de um livro também católico, chamado Horas Santas –

nome dado a esse primeiro momento da festa –, iam sendo lidos a pedido de Dina, a

quem também cabia essa tarefa. A essas orações e frases intercalavam-se exclamações

da anfitriã: – Viva Jesus! Viva São Miguel Arcanjo! E Viva Belié Belcan!

Ao ouvirem o último nome, os convidados responderam Dina de forma mais

entusiasmada. Neste momento, uma daquelas senhoras dominicanas transformou a

aclamação em canto, e entoou melodicamente: – Eu sou Belié, Belié, Belié... Belié,

Belié, Belié… Oh Belié! Belié, Belié... Mas as outras canções que se alternavam aos

trechos da leitura do livro criavam, por sua vez, uma situação semelhante à de uma

missa católica.

Entre saudações a São Miguel Arcanjo, Dina entoava canções católicas,

pronunciava os trechos do livro Horas Santas, o que chamou de palavra de Deus, e a

isso aqueles que estavam na antessala respondiam com um Amém. Ela também invocou

os anjos e as almas daquele maní – termo utilizado pelos dominicanos para a festa

oferecida aos mistérios, basicamente com comida e bebida apropriada – assim como os

santos e as virgens. Permitindo-se, assim, improvisar sobre o livro Horas Santas.

Enquanto Dina iniciava a oração do pai-nosso e da ave-maria, um sino começou

a ser tocado com entusiasmo – pelo senhor que se localizava no portal de entrada do

altar – e assim Dina saudou novamente São Miguel, e anunciou que seria realizada a

consagração. Encaminhando-se para o fim da cerimônia, Dina pontuou, por entre

suspiros daqueles que a ouviam ali:

Dina: Senhore, eu, em particular, e aquilo que temos vindo com esta devoção

por 40 anos, lhe dando o agradecimento a todos por estar aqui conosco…

Convidada: Ai!

Convidados: Obrigada.

Dina: Espero que tudo saia com bênçãos deste humilde arcanjo, dê saúde e

abundância, dê… desenvolvimento espiritual e material.

Convidados: Amém.

Dina: E que todo chegue com uma paz…

Convidados: Ai! Que assim seja.

Dina: …mistérios.

Convidados: Amém.

Dina: Que a paz de Deus esteja com vocês.

Convidados: Amém. E com o Espírito Santo.

Dina: E que assim permaneça para sempre.

Sob uma nova entoação que versava sobre desejos de paz, os convidados na

antessala se levantaram das cadeiras a pedido de Dina, que lhes solicitou que

caminhassem. Uma fila ia sendo formada. Uma baixela com vários tipos de grão secos,

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ovos cozidos, farinha e um lápis, na qual se apoiavam três velas acesas, foi retirada de

uma mesa posicionada em frente à imagem de São Miguel no altar, erguida e carregada

por aquele senhor dominicano, o primeiro da fila. Atrás dele, passamos então a

percorrer o interior da casa, fazendo uma espécie de volta. Saímos da casa até a rua e,

depois, entrando novamente por outra porta, retornamos à antessala. Enquanto

levantávamos a pedido de Dina, regalos (presentes que protegem oferecidos em nome

de São Miguel) foram distribuídos aos convidados. Depois disso, aquele senhor salpicou

água florida e um punhado dos grãos sobre os que regressaram à antessala. Assim as

Horas Santas chegavam ao fim.

4.2.2 Festejando como morto

Então a comida foi servida: carne de cabrito acompanhada de um molho bem

apimentado e pedaços de pão, e como sobremesa arroz com coco e suspiro, além de

cerveja e refrigerante. Enquanto as pessoas conversavam e comiam no interior da casa,

no corredor externo, na varanda e na calçada da rua, outros aí permaneceram durante as

chamadas Horas Santas.

No corredor, outro senhor dominicano, com uma cadeira à sua frente, despojava,

conforme me disse um homem idoso que estava na calçada, alguns dos convidados.

Quatro ou cinco pessoas esperavam em fila. Iniciando com um Em nome do Grande

Poder de Deus, ele fazia um movimento com as mãos sobre a cabeça e ao redor do

corpo delas – às vezes o tocando –, e dizia-lhes algumas frases em voz baixa.

Enquanto os observava, outro senhor – que me pareceu porto-riquenho – usando

sobre os ombros dois lenços (verde e vermelho) e tendo amarrado à sua cabeça um

branco, aproximava-se. Borrifando um líquido perfumado nas mãos dos que ali se

encontravam – água florida talvez com um pouco mais de essência –, ele informava que

isso era uma preparação para os trabalhos que teriam início e para a vinda dos mistérios

(Fiquei com a impressão de que neste momento ele disse Em nome de Bon Dieu). Com

o líquido nas mãos, os convidados esfregavam-nas, e passavam o restante pela nuca,

braços e cabeça.

Na antessala Dina conversava com alguns jovens e senhoras dominicanas, e

utilizou também água florida, pondo um pouco nas mãos das pessoas que estavam

próximas a ela. Segundo a anfitriã isso era para afastar as coisas negativas. Uma

senhora, ao esfregar suas mãos e passar o líquido pelo corpo, disse à outra que isso era

como se saísse uma coisa má de dentro dela.

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Ao som das palmas de quem estava na antessala, o nome de Belié Belcan

começou a ser pronunciado pelas senhoras dominicanas. Uma delas não se lembrava

mais do canto, e perguntou às outras se não era possível improvisar. Chacoalhando as

maracás que tinham nas mãos, elas tentavam iniciar o canto do mistério. Alguns

acompanhavam e tocavam os palos que estavam encostados na parede: – Ya tumbó uno,

Belié. Ya tumbó dos. Ya tumbó uno […], ya tumbó dos [Já derrubou um, Belié. Já

derrubou dois].

Sentada e segurando uma maracá desenhada, Dina também começara a cantar: –

Llegó Belié, Belié Belcan… [Chegou Belié, Belié Belcan]. E as pessoas reagiram.

Segundo ela, era preciso chamar São Miguel. Quanto mais se esperasse para fazê-lo,

mais longa seria a festa, pois ele se recusaria a ir embora. Entre o burburinho das

conversas, alguns sons das maracás e dos palos podiam ser ouvidos. A presença de São

Miguel foi então sentida, e uma senhora reagiu dizendo que o momento deveria ser

aproveitado para chamar seu velho.

Dina se levantou, e com os senhores dominicanos que a ajudavam, pediu que se

deixasse a entrada da porta livre. Eles insistiam nisso. Aos poucos as pessoas que

estavam do lado exterior da casa iam entrando e se acomodando nas laterais da

antessala. Sob os cantos vacilantes – por causa do esquecimento de alguns ou do

desconhecimento de outros –, ela pediu aos convidados em alto tom e batendo palmas

vigorosamente: – Caliéntense la mano, bien caliente... para ver si levanta ese viejo

donde esteba. Bien caliente, bien caliente, caliente, caliente, caliente, caliente

[Esquentem a mão, bem quente... para ver se esse velho levanta de onde está]. Alguns

gritaram e agitaram as maracás com entusiasmo. Dina continuava a pedir que as pessoas

aquecesem as mãos. Diante das dificuldades em reproduzir o canto – os palos e as

maracás eram tocados sem criar uma harmonia – um convidado brincou: – Belié foi

passear em outra parte, e todos riram.

Então mais uma tentativa foi feita. Pequenos sinos agora eram badalados.

Inicialmente de modo mais lento. Mas à medida que se escutava Llegó Belié, [...], pá

trabajar. Belié, Belié, Belié Belcan, […]. Ya tumbó uno, Belié, Ya tumbó dos, […], os

toques eram acelerados. Dina novamente pediu que a entrada da porta ficasse aberta, ou

seja, sem pessoas na frente: – Abra um pouquinho a porta. Mantenham-se tranquilitos e

vamos ver se vão chegando os mistérios. Vamos ver se vão chegando os mistérios. Uma

entoação foi feita por uma senhora dominicana, ainda sob os sons dos sinos, que agora

assumiam um ritmo mais rápido, e das maracás: – Oh San Miguel, Belié Belcan [...],

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misericordia baja a la tierra pá trabajar. Oh San Miguel, Belié Belcan, misericordia

baja a la tierra Belié Belcan [Oh São Miguel, Belié Belcan, misercórdia desça à terra

pra trabalhar. Oh São Miguel, Belié Belcan, misercórdia desça à terra pra trabalhar

Belié Belcan].

Dina, que estava no centro da antessala, de frente para o portal de entrada do

altar e cercada pelos convidados, já demonstrava sinais de alteração corporal. Com as

costas cada vez mais abaixadas para frente, seus passos eram cambaleantes. Fazendo

uma espécie de assopros profundos por alguns segundos, Belié Belcan anunciou sua

chegada: – Bendito [...] y El Santísimo Sacramento del altar! Gracia la misericordia!

Gracia a lo Papa Bon Dieu!, ele gritava com a voz aguda.

Depois dessas palavras, as primeiras de Belié Belcan após sua chegada, ele

novamente liberou alguns assopros, e ao fundo podiam ser escutadas ainda algumas

batidas no palo e as maracás. Seguiu-se, então, seu comentário acerca da roupa feita por

Janaína, a quem ele me pediu que chamasse: Oye, oye... [Mais assopros]. Tengo un

vestido nuevo que me trajeron por ahí... ¿Dónde está? Si me trajeron una capa nueva…

¿Y qué pasó? ¡Santísimo! ¡Gracia la Misericordia [sic]! ¿Dónde está? ¿Donde está la

amiga tuya? Que me trajo un... [Ouve, ouve... Tenho uma bata nova que me trouxeram

por aí... Onde está? Se me trouxeram uma capa nova... E o que aconteceu? Santíssimo!

Graças à Misericórdia! Onde está? Onde está a tua amiga? Que me trouxe um...].

Belié Belcan então começou a cumprimentar apenas algumas pessoas que

estavam ao seu redor, chamando os homens de garçon e as mulheres de femme. Ele

demonstrava que já os conhecia e aguardava sua capa nova. Passaram-se alguns minutos

e gritando ele pedia mais uma vez pelo vestido. Só depois de colocar o novo traje

cumprimentaria todos os convidados. Mas, ele ressaltou, o cavalo (Dina), estava com

um problema. E a sua presença ali era para dar a ela conhecimento: – Um vestido [capa]

novo que me trouxeram. Espera que eu vou cumprimentar, e a todos, para depois [...]

porque cavalo tem um problema, que ela [...], e eu estou aqui a dar-lhe conhecimento.

Garçon, como tu tá? Como Deus queira. Quita-me esta e coloque-me a outra… [Com a

voz charmosa] Graças à Misericórdia!

Ao ver o mistério pondo a vestimenta, um senhor fez um comentário que

aborreceu Belié Belcan. Ele teria dito algo relacionado à satisfação que o mistério

demonstrou ao vestir a capa. Belié Belcan reagiu dizendo que apesar de estar longe,

poderia inaugurar (usar pela primeira vez) o que quisesse. E não havia problema algum

nisso. Em seguida pediu respeito. E, indo além, desafiou seu interlocutor, dizendo-lhe

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que como um homem que não cogitava se aproximar do palo (instrumento) poderia

fazer uma gozação com ele.

Belié Belcan: Eu estou longe, mas eu posso usar pela primeira vez

[estrenarme], eu posso usa pela primeira vez [estrenarme] toda a bata e toda

a capa que me dê vontade. E o que aconteceu? Respeita.

Convidado: A capa é sua. [sic]

Belié Belcan: Caralho! Como, como, como… um homem que não pensa nem

ir ao palo está sacándome en cuenta...

Convidado: O que passa é que eu não sei tocar palo.

Uma senhora dominicana falou para o mistério que o tal senhor não sabia tocar palo, e

ele próprio, após a advertência de Belié Belcan, sussurrou que não sabia fazê-lo. Ela o

ajudou a pôr a capa, dizendo-lhe que estava lindo. Após um assopro alto e profundo,

Belié Belcan lhe agradeceu, chamando-a de femme, e justificou o elogio recebido

revelando o que foi a ocupação de Janaína quando chegou a Porto Rico: – É que esta

mulher é costureira, costureira dos artistas… e das coisas para as películas. Graça.

[Mais assopros]. Graça...

Mas seu traje ainda não estava completo. Faltava um tecido vermelho que,

segundo o mistério, estava em algum lugar por ali. Depois de amarrar esse lenço à

cabeça, Belié Belcan pôde começar a cumprimentar os convidados da festa, realizando a

saudação (saludo) que lhe é específica.105

Simultaneamente, explicava aos convidados porque não havia música de palo

(ausência que parece ter dificultado a sua chegada, mas não a impossibilitado).106

Uma

metresa, Santa Marta A Dominadora, poderia montar o cavalo (Dina). Conforme Belié

Belcan havia o risco do cavalo se machucar, o que levou ele a dizer a ela (Dina) que não

houvesse música de A Dominadora na festa: – Agora, garçon, sim. [Após amarrar o

pañuelo vermelho à cabeça, seguido de um assopro profundo]. Graça à Misericórdia. E

Graça ao Papa Bon Dieu. Ouçam o que lhes vou dizer. Dê a volta bem [sic]. Ouviste.

Dê a outra. [Belié Belcan realizando seu cumprimento em uma convidada]. Ouçam o

105 Conforme Belié Belcan, era preciso ensinar o seu saludo: ele oferece a sua mão direita para um

cumprimento, depois a esquerda, e à medida que ambos os braços se cruzam, ele gira (dá uma volta) no

corpo da pessoa para os dois lados, segurando a mão dela. Segundo ele, ao cumprimentar alguém durante

a festa, – Essa volta quer dizer que mistérios te vão proteger no mundo. Onde quer que esteja. Porque o

mundo é redondo, e tu onde quer que esteja, [onde] tu andar.... Ao ver um senhor que se aproximava para

cumprimentá-lo, o mistério disse em tom direto e objetivo, sem dar chance ao senhor de reação: – Ele não

sabe cumprimentar os mistérios. Como está você? Bem! Estou feliz em ver-te. Gracia. Com isso,

recusou-se a cumprimentar o convidado. 106

Durante a celebração, um convidado notou a existência dos instrumentos de percussão na antessala, e

Belié Belcan lhe disse que naquele dia não haveria música de palo. O homem então queria saber se

poderia tocar, e o mistério lhe perguntou se ele sabia. O convidado disse que sabia tocar batá, mas Belié

Belcan explicou-lhe que aqueles instrumentos não eram batás e sim palos.

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que lhes vou a dizer. Vim…, graça, por vir aqui. Eu disse ao cavalo que não queria

música de A Dominadora, e de Santa Marta A Dominadora porque depois [o cavalo]

cai e se fere. Tu me entende? E não estamos para isso. E desde que se lhe dá uma

cerveja se lhe monta A Dominadora. [As pessoas começam a rir]. E isso... há muito

canto... Eu lhes vou dizer, cavalo quer canto, tu sabe, desde que não seja para lançar-

se ao chão. Porque depois a coisa se põe má. Vim, cavalo. As palmas. Um

agradecimento [As pessoas batem palmas a pedido de Belié Belcan]. Graça à

Misericórdia, Graça à Misericórdia.

Ele seguia cumprimentando as pessoas, quando as convidou a dar um trago – de

rum Brugal – com ele. Uma garrafa da bebida passou a circular depois que o próprio

mistério tomou um pouco no gargalo, e alguns convidados fizeram o mesmo. Era

notório que alguns tinham uma relação próxima com esse espírito, a quem ele

manifestava satisfação em ver, dirigia perguntas específicas, desejava saber sobre os

familiares e, às vezes, exigia a aproximação e o cumprimento.107

A um homem, por

exemplo, ele invocou uma palavra de Candelo Sedifé – Las formas son más altas y los

pueblos comen migajas [As formas são mais altas e os povos comem migalhas] – o que

gerou risadas.108

A um jovem, ele pediu vigorosamente que fosse cumprimentá-lo, caso

contrário, subiria na cadeira em que o rapaz sentava para o fazer. Ao se aproximar de

Belié Belcan, o jovem se ajoelhou e disse: – Velho, velho, graça à Misericórdia. Mas o

mistério reagiu: – Levanta-te em nome de Deus… e de nosso Pai Amado. Porque as

formas são mais altas e os povos comem migalhas. Os convidados repetiram a frase

com Belié, que prosseguiu dirigindo-se ao rapaz: – Qualquer coisa que tu queira, tu

podes conseguir porque tu nasceste sem nada de [...].

Durante esses momentos, uma ave-maria foi orada, inclusive por Belié Belcan,

mas também se cantou a música desse mistério, que ele mesmo iniciou. As pessoas

acompanhavam-no, fazendo o coro. Belié Belcan batia palmas tentando criar um ritmo,

e após alguns minutos reclamou: na festa havia homens tão fortes, mas que não sabiam

nem cantar. Contrariado, ele pediu uma cadeira para sentar-se e avisou que não

cumprimentaria mais ninguém. Entre o burburinho das conversas e risadas dos que

107

Mas o contrário também aconteceu. A um homem que Belié Belcan não conhecia, ele disse: – Olá.

Como tu tá garçon? […] Eu não tinha te visto aqui, eu tenho vindo aqui um par de vezes e eu não havia

tinha te visto, agora que estou encarando. 108

Candelo Sedifé chegaria à celebração (montando Dina), aos olhos da maioria pelo menos, em um

momento posterior da festa, depois da partida de Belié Belcan.

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estavam à sua volta, ele insistiu na reclamação até que se surpreendeu ao ver uma

pessoa conhecida.

Belié Belcan: Parece que não sabem nem cantar.

Convidado: Temos que aprender velho [...].

Belié Belcan: Pois então vão aprender [...]. Ai corno! Olha quem está aí

atrás de ti. Olha quem está aí atrás de ti. Machos, machos. Carajo![...] Deus

te abençoe.

Convidada: Amém.

Belié Belcan: Onde está Madalena? Como tá ela?

O canto de Belié Belcan menciona que a sua chegada tem como finalidade

trabalhar e derrubar (tumbar) outros. No entanto, como ele mesmo avisou a alguns

convidados, o dia não era de consultas. A ocasião era para cumprimentar (saludar) e

também para pedir, comer, para pedir saúde, desenvolvimento e paz. Em outro

momento, no entanto, aqueles que quisessem poderiam ir conversar com os mistérios, e

Belié Belcan fez o convite: – Venha ver os mistérios, venha cumprimentá-los, venha

para checar-se [consultar-se]. Que hoje não se trabalha, que hoje se cumprimenta, se

dá bênção para o ano.

Desde o início, Belié Belcan recomendou os convidados que não deixassem a

festa sem levar os regalos (presentes dele): o maní, uma bolsinha com grãos secos

dentre os quais amendoim, castanha, gergelim;109

o pañuelo verde (gravado com o

nome São Miguel Arcanjo) e uma pedra (cada uma com uma cor específica) com uma

oração, que foram colocados juntos nesse mesmo saquinho.

Conforme o mistério, ao abrirem esses pequenos embrulhos, as pessoas

deveriam dizer o próprio nome e que estavam recebendo o pañuelo e a pedra em nome

de Deus para a sorte, alegria e saúde. Belié Belcan explicou ainda a um convidado que

o pañuelo – chamado também de fula – 110

deveria ser levado com alguém em qualquer

situação em que os mistérios estivessem, fosse consulta ou festa. Portar esse objeto seria

uma maneira de os espíritos identificarem as pessoas. As pedras oferecidas (com as

orações), segundo ele, seriam otás: – Ola garçon. Como tá? Anda com seu fula?

Garçon, antes quando [...]. Eu não sei se já chegou aí, essa pedra... Quem tá na

consulta, já os mistérios identificavam a pessoa pelo pañuelo que levavam [...]. Isso se

chama otá. [...]. Esse pañuelo [...], vocês vão consultar-se [com o cavalo], [...], ou vão

consultar-se com alguém, vocês põem seu pañuelo aí ou o tenham na mão.

109

Os mesmos grãos que compunham a baixela colocada no altar, em frente à imagem do santo, que foi

erguida ao final das Horas Santas pelo senhor dominicano. Geralmente esses grãos, chamados de tostados

(torrados), são oferecidos como serviço ritual aos mistérios. 110

Ele pronuncia como fulá, com o acento na última sílaba.

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4.2.3 Mistérios, doutores da igreja e antepassados

A festa prosseguia quando uma senhora dominicana, amiga de Dina, queixou-se

com Belié Belcan. Ela enfrentava dificuldades com alguém de sua família que estava

doente. Ele pediu-lhe que, depois, a senhora procurasse Dina, e lhe falasse sobre certo

texto católico. Com ele, a mulher poderia compreender e aliviar seu sofrimento.

– Quando tu venha diga ao cavalo que te busque uma leitura, que há em um

livro que é um doutor da Igreja, que se chama São João da [...], que [nos] anos dezoito

[século XVIII] escreveu sobre as almas. E não foi até que ela [Dina] fez essa leitura

que ela pôde aceitar a morte do papai dela. É uma, é uma coisa tão grande, tão grande,

não para quem [a tem], para a pessoa que está a sofrer. Mas eu não sei se vocês sabem

que há uma leitura que diz: “[...]”. E essa é a enfermidade que chega a esse [...].

Durante esse aconselhamento, a amiga de Dina demonstrava angústia com o

estado de saúde de seu familiar, cujo corpo não reagiria nem ao frio nem ao calor,

observou Belié Belcan ao escutá-la. Procurando explicar-lhe o que estaria acontecendo

com o corpo de seu parente, ele tentou tranquilizá-la: – Quando o corpo quer não faz

esforço para nada, e isso é uma bênção que o espírito tem. E torna a nascer de novo

Mas o que acontece? Que as pessoas que estão a sofrer [...] são os que o sentem, eles

não sentem nada. Ao fim desse comentário, Belié Belcan lhe pediu então que rezasse.

Logo depois outra convidada se aproximou de Belié Belcan. Ela procurava,

também, auxílio para algum problema. E, pelo comentário de Belié, a dificuldade agora

estava relacionada a questões de propriedade da terra. Por isso, ele recuperou uma

história em que Dina mediou a relação entre antepassados e algumas pessoas que

provavelmente disputavam uma posse fundiária. Conforme Belié Belcan, durante três

dias o cavalo pediu para ser iluminado acerca de tal problema. Quando obteve uma

resposta, quem se comunicou com Dina foram os antepassados, espíritos que

compraram e nasceram na terra em questão.

Os antepassados recomendaram que fossem colocados alimentos (vianda) –

provavelmente no terreno – e que duas pessoas velhas fossem procuradas, pois essas

conheciam e sabiam da história (da terra): – O cavalo pediu três dias, pedindo para que

desse uma luz para essa gente [...]. Inclusive, o pedido, quando lhe responderam, lhe

responderam os antepassados, donos dessa terra. E lhe disseram [à Dina]: “Que tu

crê? Que se tu chega à tua casa e tenha alguma pessoas roubando, tu pega preso”,

assim mesmo lhe disseram. “Perdoa, perdoa, perdoa”, e lhe disseram: “Que ponham

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vianda e que busquem dois velhos que vivem ao nordeste desse sítio, e esses velhos

conheceram os antepassados e têm a história.

Os interessados na disputa pela terra foram aconselhados por Dina a buscar os

dois idosos através da internet. E, à medida que as mensagens foram chegando, Dina as

atirou ao vento. Segundo Belié Belcan, com isso os caminhos começaram a se abrir: –

E cavalo lhe mandou pôr uma página des internet [...]. E disseram que sim, que iam

colocar a… E em três dias começaram a levar a [...] e quando o cavalo lançou a

mensagem ao vento, começaram a abrir-se caminho [sic], e o cavalo iluminou

[alumbró] os antepassados dessa terra. Porque essa terra não é mais que dos

antepassados. E essa riqueza que há aí são dos antepassados dessa terra, dos

compradores, dos que nasceram. E já chegou o momento que eles disseram [os

antepassados]: “Estamos cansados!” [Belié então gritou] Então quando eles estão

cansados [...] caminho para encontrar e estar aí.

Por entre as expressões de Graça à misericórdia e Aleluia, de Belié Belcan e de

alguns convidados que o escutavam, o mistério continuava a comentar a disputa sobre a

terra quando, então, comunicou que ia embora. Ele começaria então a se despedir e se

preparar para deixar sua festa: – Mas isto são dos antepassados. Eles estavam roubando

os antepassados, eles estavam enganando o seu, mas eles entenderam [...] em seu

idioma, em sua língua que isso, isso não era deles. Garçon, ouve garçon. Femme,

femme... Garçon, [...] eu vou. Graça à misericórdia de Dios! E graça ao Papa Bon

Dieu. Muita graça. Muitas bênçãos. Muita saúde. Muito desenvolvimento. Paz e

tranquilidade.

Como aconteceu no decorrer da invocação, algumas pessoas pediram para que o

caminho de entrada da antessala fosse deixado livre. Enquanto isso, Belié Belcan dizia

às pessoas presentes: – Vocês não vão mendigar tanto, vocês peguem a coisa como

venha, que há passado tempo piores – ao que alguns disseram Amém –, piores tempos

têm passado, ele reafirmou, gritando Graça a misericórdia, antes de fazer seu último

comentário naquela noite e entoar seu canto batendo palmas: – E agora meu espírito se

retira da universidade dos espíritos [...]. [E ele bateu o pé forte contra o chão]. Para

levar-me toda sua contrariedade e a depositar diante da vontade divina. Dando três

passos para atrás e [...] todas as suas contrariedades, dando três passos para frente até

vocês e trazendo paz e tranquilidade, e desenvolvimento espiritual e material em nome

de Deus. Graça à misericórdia. Onde? Chegou Belié! [Donde? Llegó Belié], e ele

mesmo começou a cantar.

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Alguns sacudiam as maracás e repetiam as estrofes, o acompanhando. Belié

Belcan saudou mais uma vez Gracia la misericórdia. Uma alteração na respiração foi

percebida e suspiros profundos podiam ser escutados. Algumas pessoas continuavam a

repetir o agradecimento acima, e pouco a pouco o som das palmas desapareceria. Um

burburinho se iniciou, resultado da conversa dos que estavam na antessala. Mas em

seguida ouviu-se um novo chiado.

4.2.4 Fogo, chaves e São Pedro

Sob tímidas batidas no palo, outro mistério, praticamente sem interrupção, havia

montado Dina e anunciava a sua presença: – Bendito y alabado [louvado] sea el

santísimo sacramento del altar. Gracia la misericordia de Dios. Candelo Sedifé. Ele

também deu início ao seu canto, e rapidamente foi acompanhado por uma senhora

dominicana. Depois pelos outros convidados.

Candelo Sedifé: Candelo, Candelo, Candelo Sedifé.

Convidada: Candelo, Candelo, Candelo...

Candelo Sedifé: Agogo, agogo, ag ogo, [...]. Agogo, agogo, Candelo ya

llegó [Candelo já chegou].

Cantando, ele pediu que fosse aberta uma porteira por causa do cavalo – acho

que agora a preocupação era com a respiração de Dina –, e um convidado insistiu para

que as pessoas saíssem da entrada da porta. Notando a ausência de seu pañuelo

vermelho, que ele ainda não tinha recebido, Candelo Sedifé disse que continuaria a

trabalhar e a cumprimentar: – Mas se não há um trapo vermelho, eu vou seguir

trabalhando, vou seguir saudando. Como está vocês?Como está vocês?

Alguns convidados então trataram de providenciar uma bacia de metal –

posicionada em frente ao mistério – na qual foi colocada água florida e um fósforo

aceso. Uma chama foi gerada e Candelo Sedifé mostrou aos convidados que havia fogo

no recipiente, pedindo que aquecessem as mãos: – Aqui há um fogo, olha. Esquentem a

mão e peçam. Candelo, Candelo, Candelo Sedifé. Agogo, agogo, Candelo ya llegó.

Agogo, agogo, Candelo ya llegó. Ave-María! Entoando mais uma vez o seu canto ao

som de algumas batidas secas no palo, Candelo Sedifé tratou de que os convidados da

festa se aproximassem das labaredas. Indo com as mãos abertas na direção do calor que

era liberado, as pessoas as deslizavam depois pelo corpo.

Uma senhora dominicana pediu um tabaco, e Candelo Sedifé perguntou quem

gostaria de dar um trago com ele. Nesse meio-tempo, ele avistou uma femme e a

cumprimentou, indagando se ela estava contente. Invocando com um grito as suas

palavras – como Belié Belcan já havia feito – ao falar com essa convidada, em seguida

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ele deu uma alta gargalhada, Graça à misericórdia e Graça ao Papa Bon Dieu, o que

foi repetido por alguns. E, como tinha ocorrido durante a presença de Belié Belcan na

festa, Candelo também foi requisitado para dar um aconselhamento. Uma senhora, que

viajaria, pediu-lhe ajuda para que fosse bem-sucedida em seu objetivo fora de Porto

Rico. O mistério indicou o que ela deveria fazer. E, se antes da viagem, melhor. Assim

os caminhos se abririam para ela.

Pegue sete frutas e as coloque em sete garrafas, e pegue sete chaves e ponha

na porta da tua casa com um copo de água. Não lhe ponha água. Coloque

uma moeda de cinco centavos e [...]. E todos os dias pela manhã, essa

garrafa tu a ponha que pegue tempo, que pegue o sol e o sereno, e todos os

dias pela manhã tu traga esse banho e sai para rua. Sai para a rua.

Caminha. Caminha mas não volte por aqui. Se tu sai por aqui, não volte por

aqui. Dá a volta [...] com uma chave. Tu pegue uma, duas, três, quatro,

cinco, seis, sete. [sic] a número um, a número dois, a número três, a número

quatro, a número cinco e a número seis, e tu diz a São Pedro tu tens a chave

da igreja, tens [...] dos céus. Empresta-me… pega uma chave, tua, empresta-

me tua força e tua inteligência para me ensinar [...], que eu vou fazer a

vontade de Deus. Se pode o fazer antes de ir seria melhor. E se quiser o

fazer lá, mas [sic]. Se abrem os caminhos, [...]. Sete frutas doces: maça,

vermelha maça, maça verde, sete uvas verdes [...]. Fruta doce, não ácido.

Sua presença, entretanto, não se prolongaria por muito tempo. Quando terminou

de indicar o banho para a convidada, Candelo Sedifé avisou que teria que ir embora.

Outro mistério, Guedé Limbó subiria. Guedé estava mandando que Candelo se fosse

para que também pudesse chegar à festa. Antes, contudo, Candelo Sedifé antecipou os

convidados, enfaticamente, que Guedé estava com muita fome e teria que comer. Era

então preciso deixar tudo preparado para que esse mistério, ao chegar, pudesse se

alimentar e dividir a sua comida com os convidados: – Mas o Guede está mandando

para que eu me vá […] O cavalo, o cavalo… ele cavalo. Eu me vou junto com você

[Fazendo referência a uma convidada que ia embora], vai subir Guedé. Guedé vai

repartir a comida, busquem onde vão comer. Olha femme, busca papel de alumínio

para que levem a comida de Guedé porque ele está me mandando [...]. Porque tem

muita fome e ele tem que comer [Candelo falou gritando]. [...] Eu me vou, eu me vou!

Graça à misericórdia!

4.2.5 Das bênçãos em utensílios quebrados

– Não me sinto bem [...], me deem refleco [refeição]. Foi ao som das risadas de

alguns convidados, quando escutaram o pedido de Guedé logo que chegou à festa, que

pude me dar conta de que esse mistério estava presente entre nós. A respiração de Dina

agora se alterou pouco e suspiros menos intensos foram liberados depois que Candelo

Sedifé foi embora da festa. Porque Guedé se apresentou solicitando alimentação, uma

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senhora dominicana reagir em tom de brincadeira: – Não te cumprimento, mas tu és bem

folgado!

Diferente do que aconteceu nos momentos iniciais da chegada de Belié Belcan e

Candelo Sedifé, a de Guedé foi iniciada com gozações. Mas, entre os comentários de

duas senhoras dominicanas que perceberam que esse mistério já havia chegado por

causa do pedido de comida, uma salva de palmas e gritos de comemoração – com a

participação do próprio Guedé – anunciaram a receptividade dos convidados com a sua

presença. No entanto, ele se mostraria ainda mais exigente. Gritando e irritado, queria

saber onde estava o cozinheiro – que deveria levar-lhe sua comida –, seu cuarto

(dinheiro), seu rum e seu arenque (peixe): – Ouve, ouve… Onde está o cozinheiro? [...]

garçon, [...], trazer minha comida. Corno! Onde está meu cuarto, onde está meu rum?

Onde está meu cuarto? Corno! E isso, [...], arenque, corno. Sua atitude fez com que

algumas pessoas resmungassem, mas outras pareciam achar graça e riam.

Enquanto o que o mistério demandou não chegava, um chapéu de palha lhe foi

dado. Ao usá-lo, Guedé perguntou se estava lindo. As pessoas que o rodeavam

começaram então a gritar, afirmando-lhe que agora sim o mistério estava pronto, ao que

ele deu Graça à misericórdia de Deus. A essa altura, uma ampla bandeja de alumínio na

qual eram encontrados arroz e feijão preto, batata doce cozida e arenque – alimentos do

gosto de Guedé – já havia sido posicionada em frente ao mistério. Ele então iniciou a

partilha dos alimentos. Um jovem dominicano, que brincava dizendo que a maior parte

seria para as pessoas, foi repreendido por Guedé, que lhe pediu para que não colocasse a

mão na comida. Mas, percebendo que o rapaz fazia mais uma gozação, Guedé lhe disse

que emprestaria – na verdade com um sotaque afrancesado – e confiaria o seu macuto

(saco de palha) no qual seu cuarto (dinheiro) é guardado, ao jovem.111

Guedé: Esta é de vocês…

Convidado: E este é de você.

Guedé: Não, não meta mão.

Convidado: Não, nunca velho.

Guedé: Esta é de vocês… Toma, fica tranquilo. Eu vou a pretêr [emprestar]

macuto aqui. E confío que tu me leve macuto para [...] meu cuarto [dinheiro].

Garçon, garçon. Como tu tá? Abre métro [espaço]. Abre métro.

Ao mesmo tempo em que Guedé repartia a sua comida e a oferecia aos

convidados, que preenchiam todo o espaço da antessala ansiosos para receber uma

porção, ele solicitava ajuda porque recebeu um presente. Um convidado lhe deu uma

garrafa de uísque Johnnie Walker (Label). O mistério, após ter avaliado a qualidade da

111

Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagens 23 e 24.

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bebida, informou que ninguém a tomaria com ele. Entretanto, aquele mesmo jovem

dominicano o questionou, quando viu que Guedé oferecia a bebida ao homem que lhe

deu o presente: – E com quem tu tá repartindo? Guedé então justificou: – Porque

garçon me compra isso. Cuerno! Mas garçon o compra. [sic] ele o compra. Assim, o

misterio acabou por pedir um vaso de corte (copo rompido) para brindar com os

convidados: – Todo o que tem um vaso de corte que se alinhe. Que se alinhe. Apesar de

disso, à medida que distribuía a refeição, ele comia e comentava que o estavam pelando

– uma referência à comida que diminuía – e que faltavam ovos na bandeja.

As reclamações de Guedé continuaram ao longo da festa. Ofendido, ele

esbravejou: Corno! Não me colocaram óculos nem me puseram pó [talco], não me

puseram nada. Também como se passou com Belié Belcan e Candelo Sedifé, alguns

convidados deram início à busca dos objetos e substâncias que Guedé pedia. Quando os

óculos (gafas) e o macuto apareceram, o mistério pediu que fossem colocados nele. Mas

ele já vinha avisando que estava cansado e que iria embora. Queria apenas dividir um

pouco mais sua comida com os convidados. A alguns ele pediu que colocassem a

comida em um plato de corte (prato rompido) no interior da casa ou do negócio; a

outros, quando comessem a comida, que pedissem pela proteção dos filhos. A outros

que ainda não tinham se aproximado, ele perguntavam se não iriam comer. E, em tom

de brincadeira, de alguns foi exigido o pagamento pala comida. Janaína não se sentia

muito bem, já era quase meia-noite, e agora eu fui quem precisei ir embora.

4.3 TRANSFORMAÇÕES

Para além do fato da primeira parte da festa que descrevi se desenrolar

principalmente, mas não exclusivamente, como uma missa católica – através da leitura

comandada por Dina de um panfleto litúrgico e do livro Horas Santas –, os modos como

os próprios mistérios se apropriam de artefatos e linguagem ritual que geralmente são

associadas ao cristianismo, mais especialmente ao catolicismo, têm destaque.

A estátua de São Miguel no altar informa a maneira como Belié Belcan se veste

para a sua festa, uma maneira dele celebrar como morto o seu dia, foi o que ele me falou

montado em Armando. A vestimenta da imagem do santo, coberta por um manto em

tom de vermelho e rosado sobre trajes de um soldado em verde e dourado, foi de certo

modo reproduzida na capa confeccionada por Janaína, verde e rosa com detalhes em

dourado. Tanto o modelo da roupa quanto suas cores seriam do gosto de Belié e fazem

parte de seus atributos estéticos.

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E isso não era uma questão menor do ponto de vista de Belié Belcan. Satirizado

por um senhor, convidado da festa, por causa da satisfação que demonstrou ao vestir a

capa, esse espírito lhe cobrou respeito, marcando uma diferença de estatuto com seu

interlocutor humano (Belié disse que vem de longe) ao mesmo tempo em que o desafiou

do ponto de vista da masculinidade. Além disso, o reconhecimento de tais atributos

estéticos renderam-lhe um elogio: ser chamado, por uma senhora dominicana, de lindo.

Além dessa apropriação de características da imagem do santo pelo mistério, a

chegada não apenas de Belié Belcan (mas também de Candelo Sedifé e de Guedé

Limbó) na festa, ocorreu enaltecendo um sacramento católico que caracteriza a

transubstanciação do corpo de Jesus Cristo. Nos momentos em que esses mistérios se

materializam no corpo do cavalo e antes de se apresentarem eles pronunciam,

entusiasmados: – Bendito y Alabado El Santíssimo Sacramento del Altar! ¡Gracia la

misericordia! ¡Gracia a lo Papa Bon Dieu!

Aqui, um ato de sacralidade fundado no altar aparece modificado e ampliado. O

altar e o processo de transformação (material e espiritual) que nele ocorreriam do ponto

de vista do catolicismo, por exemplo, parecem ter sido levados às últimas

consequências quando se considera a festa do ponto de vista dos mistérios. Enaltecendo

uma transformação que, para esses espíritos, é possível através desse artefato, os

mistérios agradecem por ter chegado para celebrar – comer, beber, estrear roupas,

rivalizar, informar, reclamar – com os vivos.

Assim como ocorreu no meu encontro com a guedé, em que seu engajamento

com os quadros de santos permitiu-lhe explicitar uma visão singular sobre Deus, crença,

e arcanjos, Belié Belcan e os outros mistérios da festa parecem falar de uma perspectiva

que subverte as imagens e linguagens do catolicismo (ou mesmo do cristianismo). Tais

espíritos não têm lugar nesses sistemas religiosos, mas apropriando-se das imagens de

santos, dos sacramentos católicos e liturgias eles se apresentam como múltiplos seres

que se concebem e agem como divinos.

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CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 4)

Imagem 20. Da esquerda para a direita, quadro de Ogun Balendyó/São Santiago Apóstolo (segundo)

tendo atrás Ogun Ferraile, cavaleiro com armadura e espada. Botânica do Mercado Municipal de San

Francisco de Macorís, República Dominicana, outubro de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 21. Altar para a festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. À esquerda, quadro de Metresili/

Virgem A Dolorosa, repleto de colares femininos. Ao centro, a grande imagem de São Miguel. Santurce,

San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 22. Serviço ritual para os mistérios: maní (grãos secos torrados iluminados por velas no interior

da bandeja). À direita, o jarro divisional, objeto ritual da 21 Divisão e sobre a mesa mais elevada uma

porção da comida oferecida a Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 23. Serviço ritual (feijão e arroz, batata doce e arenque) para Guedé Limbó (São Expedito) no dia

da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 24. Objetos de Guedé Limbó: ao fundo, seu macuto (sacola de palha), seu chapéu feito com esse

mesmo material e seu lenço preto. Dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. Santurce, San Juan,

28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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CAPÍTULO 5 AS COISAS MÁS NA CASA

Sobre las formas de hacer los rituales hay mucho que decir.

Ya te he dicho que no hay dos casas donde las cosas se hagan

iguales. Si cuando los orichas fueron traídos de África

tuvieron que adaptarse de las selvas de allá a los montes de

aquí, también tendrán que hacer lo mismo ahora que algunos

santeros se los han llevado para el Norte [EUA]. Si la

adaptación de ellos a Cuba fue obligada por la esclavitud, la

adaptación al Norte tendrá que ser más voluntaria, porque los

santeros se fueron porque quisieron. No pasará mucho sin que

veamos a un Changó vestido como un esquimal; y a Yemayá

y a Ochún con botas y abrigos de pieles y hasta con patines

de hielo para poder andar por los lagos y ríos congelados de

allá. Hay cosas que se han perdido en el Norte, como otras

también aquí. Allá ir a la plaza no es posible. No tienen

plazas como las que teníamos en Cuba; solo mucho minimax,

pero no sirven para el ritual de la plaza. Nosotros también

hemos perdido, en parte, porque como existían los lugares

donde hubo plazas, el ritual se hacía de forma simbólica.

Cuando las plazas dejaron de ser plazas y lo que se vendía en

ellas se podía comprar por los puestos de vianda de los

barrios, los iyawós con yubona [sacerdote masculino] iban a

la plaza, al edificio del Mercado Único, saludaban las cuatro

esquinas y regresaban al ilé, a la casa de santo. Ahora que ya

no hay plazas de nuevo en eses lugares, como las había antes,

es decir, que tú podías ir comprar viandas, frutas y algunas

otras cosas, se siguen haciendo las ceremonias de igual

forma” (Santero entrevistado por Robaina, Tomás Fernández.

Hablen Paleros y Santeros, p. 62)

5.1 SOBRE ALGUNS ESPAÇOS PRECÁRIOS

Meus interlocutores dominicanos estabelecem distinções entre os mistérios,

espíritos que foram deificados e são considerados divinos ou seres de luz e aqueles

chamados de mortos. Esses últimos podem ser espíritos de seres humanos

desconhecidos que transitam pelas ruas, de familiares e amigos, ou ainda anônimos, que

são enviados por meio de trabalho de bruxaria para causar danos, chamados também de

coisas más (las cosas malas).112

Rosa e Joana viam todas essas entidades como espíritos cuja aproximação nunca

é bem-vinda. Para Rosa, os espíritos de familiares deveriam ficar no outro mundo. Isso

era o que ela dizia ao ser procurada na botânica por clientes que lamentavam o

falecimento dos seus próximos ou sentiam-se afetados pela presença desses mortos

112

As coisas más podem ser descritas apenas como espíritos invisíveis, o que dá margem a pensá-las

como sendo não exatamente espíritos de mortos humanos, mas uma forma espectral bem mais difusa e

desconhecida.

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humanos. Morto é atraso, Joana argumentava sempre que queria diferenciar-se da

maneira como os paleros trabalham. Elas (mas também Gina) procuravam afastar tais

espíritos com algumas técnicas vinculadas, principalmente, à manipulação de

substâncias de odor acre e amargo, estivessem essas substâncias sob a forma de plantas

ou de produtos químicos.

Como uma espécie de contraponto às relações que as pessoas mantêm com os

mistérios, em que a manutenção ritual é realizada como uma forma de produzir

dependência recíproca e trabalho entre ambos, neste capítulo serão descritas outras

modalidades de apropriação material e interações entre seres humanos e espíritos. Trata-

se de dois casos em que espíritos indesejáveis entram em contato com os seres

humanos: em um deles tais espíritos são chamados de coisas más, no outro quem

emerge é um morto humano familiar. Essas descrições estão em sua maior parte

baseadas nas práticas de compra nas botânicas. Ou fazem alusão aos produtos dessas

lojas.

A radicalidade do caráter invasor e perturbador – algo a que os mistérios não

estão completamente isentos, como procurei demonstrar no primeiro capítulo –

atribuída aos diversos trânsitos e contatos dos chamados mortos com os vivos, é mais ou

menos contida com técnicas que buscam seu afastamento temporário e controle relativo.

O fato de Joana e Rosa procurarem conter a aproximação dessas entidades têm

implícito um aspecto que merece ser explicitado. Enquanto pessoas que têm os

mistérios elas lidam com seus espíritos herdados em um universo conceitual que não se

sustenta apenas pelas relações de reciprocidade e trabalho, de fortalecimento mútuo e de

disposição dessa potência a terceiros. Isso porque as pessoas e os mistérios são

informados por uma cosmologia que não se restringe à 21 Divisão. Esta parece existir

em uma “atmosfera”, para usar um termo de Ochoa, ainda mais densa e complexa, em

que ameaças de agressão mística poderiam vir de muitas direções.

Fazer essa observação é importante porque, durante o trabalho de campo, ao

lado dos mistérios, as coisas más eram mobilizadas em comentários dos meus

interlocutores dentro de suas casas e nas botânicas, sobre situações em Porto Rico e na

República Dominicana, em relação a quem tinha o dom e àqueles que não o tinham.

Diante dessa onipresença, era difícil, entretanto, apreender o que eram ou onde

estavam as coisas más. Elas eram muito menos salientes para mim do que era observar

Joana e suas sutis e controladas mudanças de comportamento porque Anaisa estava

metida na botânica; Gina e sua sobreposição de expressões e informações com Ogun

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Balendyó; Rosa e suas explosões de força que remetiam a São Miguel. Essas

modalidades de incorporação entre pessoas e seus espíritos herdados se tornavam mais

explícitas para mim com o convívio e a atenção a seus estilos de comportamento, modos

de enunciar (e enunciados) e gestos.

Com relação às coisas más, os indícios da presença dessas entidades na casa

apareciam basicamente sob a forma de proteção. Na casa de Rosa, cruzes eram feitas

com anil nos cantos das paredes dos cômodos. Na botânica dela e na casa de Gina

pañuelos com as cores do gosto de São Miguel (vermelho e verde) foram pendurados no

alto da porta junto a pedaços de pães, a cruzes envolvidas em fitas nessas mesmas cores,

e a ferraduras e plantas como resguardos que invocavam a presença protetora daquele e

de outros mistérios. Os pañuelos poderiam ser vistos ainda pendurados no alto dos

portões ou grades na vizinhança em Río Piedras. E, em uma casa ao lado da de Gina, na

vila em que ela morava, uma veve (símbolo ritual) foi desenhada na porta de entrada.113

Além desses resguardos para a casa e os negócios, outros geralmente sob a

forma de pulseiras trançadas pelos próprios mistérios eram colocados ao redor do pulso.

Contudo, mais do que essas proteções, o que se destacou durante todo o trabalho de

campo – e eu fui submetida também a mesma técnica ritual no despojo na praia – foi a

liberação de muitos odores. Manipulando principalmente certas substâncias químicas e

plantas, os meus interlocutores dominicanos procuravam fazer com que o corpo

humano, através da pele, e a casa e os objetos, através de suas superfícies, fossem

expostos a odores incômodos. Assim realizavam a chamada limpeza por causa desses

espíritos indesejados.

Referindo-se a cenários etnográficos diferentes, Shaw (2002) e Palmié (2002)

discutiram como técnicas rituais contemporâneas em Serra Leoa e Cuba condensam

táticas de guerra e escape que vigoraram, nos dois lados do Atlântico, em conexão com

o comércio transatlântico de escravos.

No caso de Serra Leoa, Shaw discutiu como os falantes da língua Temne

recuperaram em seu cotidiano a paisagem de rios e estradas como o domínio de

experiências sobre emboscada, invasão e captura. Nesses ambientes, pessoas foram

transformadas em cativos de chefes locais, posteriormente de comerciantes de

companhias europeias e, depois de uma longa, violenta e incerta travessia, propriedade

de outros senhores além mar.

113

Caderno de Imagens do Capítulo 5. Imagens 25, 26, 27, 28, 29.

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Mesmo durante o dia, o mato e as estradas que se percorrem poderiam ser

espaços ameaçadores. Não pareciam ameaçadores para meu olhar europeu

[...]. Mas a ameaça era invisível: espíritos do mato ‘capturavam’ as pessoas

que entravam em seu domínio sem proteção ritual, fazendo particularmente

crianças desaparecerem na floresta para sempre. Esses espíritos podem

capturar adultos também, deixando suas vítimas loucas e sem orientação,

transformando-as em pessoas perturbadas que vagam pelas estradas e pelo

mato sem sentido de lugar. Naquela época, o perigo das estradas residia nos

espíritos e feiticeiros do mato que viajam à noite por elas, reunindo-se nas

estradas e atacando viajantes humanos sem sorte. Os rios, por sua vez, eram

as moradas de sereias sedutoras e ricas que poderiam fazer um homem rico,

mas ao custo de seu casamento, sanidade, e mesmo de sua própria vida.

(SHAW, 2002, p.49).

Uma consideração de Shaw que me parece interessante diz respeito à

transformação dos seres invisíveis que habitam as paisagens como rios e estradas em

Serra Leoa. Tais espíritos, ela observa, tornaram-se seres geralmente negativos,

“amorais” e “destrutivos”, que se localizam em áreas externas àquelas onde os seres

humanos se estabelecem. Excetuando-se os espíritos do rio ou do mato com os quais

alguns antepassados tiveram relações especiais e duas associações de culto (Poro e

Bondo) – ambos encontrados em lugares sagrados da floresta afastados da vila – apenas

dois tipos de santuários permaneciam e se localizavam com alguma centralidade.114

E

esses santuários, Shaw salienta, não eram espíritos da casa, mas forças que foram

humanas ou tinham sido: um santuário de um antepassado, outro de gêmeos (SHAW,

2002, p. 51- 52).

A percepção desses perigos implicou não somente uma modificação na maneira

como as comunidades falantes de Temne passaram a lidar com os espíritos encontrados

naquelas paisagens. A compreensão sobre as ameaças desses lugares ou que deles

poderiam chegar permitiu ainda que técnicas rituais de proteção (closure) e de confusão

visual (darkness) fossem empregadas.

Com relação às técnicas de prpteção, Shaw notou que os poucos ancestrais que

guardam uma vila são concebidos como “chefes de guerra”, “guerreiros”, que defendem

a comunidade dos espíritos do mato e dos feiticeiros, assim como a defenderam das

incursões humanas no passado. Para que a sombra de uma feiticeira falecida se

mantivesse longe da casa, pequenos machados foram cravados em um pedaço de

madeira em frente à porta. Se a sombra da mulher se aproximasse, foi dito a Shaw, os

ancestrais agarrariam os machados e lutariam com ela para afastá-la (SHAW, 2002,

p.55).

114

Shaw conduziu seu trabalho de campo em diferentes comunidades Temne, entre os anos 1970 e 1990.

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[...] as possibilidades múltiplas de emboscada, captura, e incursão por

espíritos e (mais intermitentemente) ‘pessoas pequenas’ do mato recapitula

padrões de ataque que prevaleceram nos períodos dos comércios atlântico e

legítimo. Os espíritos ubíquos e vizinhos dos início dos séculos XVI e XVII

[...] não foram apenas banidos para o mato séculos depois. Eles também se

tornaram desonestos, transformados – com a exceção dos espíritos

domésticos da vila – de benfeitores que coabitavam em assaltantes

amplamente destrutivos. Em sua metamorfose e exclusão enquanto seres

externos, eles integram a violência dos comércios atlântico e legítimo no

lugar e no espaço, transformando a paisagem em uma paisagem de memória

(SHAW, 2002, p.56).

De acordo com ela, as técnicas de fechamento e confusão visual criam,

respectivamente, um estado de impenetrabilidade e ocultação rituais, na media em que

reelaboram os padrões de defesa que prevaleceram durante o comércio de escravos para

as Américas e dentro da África Ocidental.

Casas protegidas com “encantos” que impediam a penetração de espíritos do

mato e dos feiticeiros, pendurados internamente na porta ou no meio das vigas da

construção, elevando-se do teto, materializavam alguns dos “fechamentos” que Shaw

observou em Serra Leoa. Tratava-se de garrafas “místicas” ou amuletos islâmicos

benzidos em nome de Deus e dos ancestrais. O corpo humano também era submetido a

tais técnicas de fechamento. Amuletos sob a forma de pulseiras com búzios, presos ao

redor do corpo, e islâmicos, também envolvendo o pulso, eram usados especialmente

por crianças contra o ataque de seres invisíveis. Para os adultos, camisetas também

abençoadas feitas com tiras de tecido vermelho e branco cheias desses “encantos” eram

usadas sob as roupas como amuletos de proteção (SHAW, 2002, p.48).

Para Shaw, essas técnicas de fechamento associam-se às “armaduras místicas”

para o corpo, e à construção de fortalezas e paliçadas contra a invasão de guerreiros,

cujas brechas e pontos elevados funcionavam como locais de observação contra o

ataque e saque à procura de escravos (SHAW, p.58-59).

Com relação às técnicas de confusão visual, Shaw destaca os “encantos” e as

práticas de segredo ritual e verbal que a associação de culto Poro (masculina) elabora

para controlar os estados de “ocultação” ritual do corpo humano. Essa associação

responsável por treinar os guerreiros, bem como organizar e regular a guerra e a paz em

Serra Leoa contemporaneamente, conseguia, através de seus “encantos”, habilitar os

adeptos Poro a cruzarem estados em que a distinção entre “esse mundo” e o “mundo dos

espíritos” entrava em colapso. Aos adeptos eram conferidas capacidades tais como não

ser ferido quando agredidos por armas, habilidade que demonstravam em performances

públicas cortando-se a si mesmos com facas.

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De modo semelhante a Shaw, Palmié, como venho chamando a atenção desde o

final do segundo capítulo, argumentou no sentido de que as técnicas rituais empregadas

nas regras del palo, especialmente aquelas que se utilizam das ngangas como um meio

de observar e adquirir informação através de espíritos enviados à casa de inimigos

rituais, poderiam ser concebidas como “armas de guerra”.

Shaw (2002, p.67) enfatizou que as transformações criadas com o comércio

escravo estão registradas em uma modificação da paisagem, na qual se deslocaram a

proximidade e intimidade dos espíritos do mato junto aos Temne. Mas essas

transformações estão também incorporadas na permanência de técnicas rituais que se

desenvolveram junto com essa forma de troca vivida como emboscada, invasão e

apreensão. Já Palmié assumiu que as táticas rituais empregadas na manigua (ou no

monte) recriam no trabalho ritual conduzido por paleros um universo conceitual em que

a cura de malefícios é alcançada através da agressão mística. De acordo com ele,

naquele contexto, obter o controle da própria subjetividade poderia significar privar

outros disso (PALMIÉ, 2002, p.177).

Eu retomo as discussões desses autores observando que elas não se replicam

diante das especificidades cronológicas e contextuais que caracterizaram, em cada lado

do Atlântico, a emergência de socialidades marcadas pela experiência de subordinação,

trabalho forçado e comercialização de africanos. Ao trazer a contribuição desses

autores, pretendo chamar a atenção para o que ambos apontam como formas de vida

forjadas pela instabilidade e violência no interior de “espaços precários” de existência

(SHAW, 2002, p.65; PALMIÉ, 2002, p.181-189).

São espaços precários que, parece-me, rondam os meus interlocutores

dominicanos e porto-riquenhos também hoje. Ao redor deles, no interior de suas casas e

na entrada dos negócios como as botânicas, eles descrevem ameaças que remetem às

táticas de guerra do monte baseadas em agressões místicas como o envio de espíritos.

Por se configurarem como práticas de ataque, essas agressões requerem também

resguardos de proteção que não são completamente estranhos às técnicas de fechamento

da casa e do corpo mobilizadas pelas comunidades Temne. É chamando a atenção para

esses aspectos que eu sugiro que as casas e os corpos, com e apesar dos mistérios, são

domínios da existência também precários.

Domínios sobre os quais parecem atuar também certas formas de

“improvisação” sobre atos rituais (mais ou menos) estáveis, como sugeriu Das (2010)

para os tipos de visões e sonhos nos quais indianos lhe diziam ter se tornado o alvo

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específico do comando e do desejo de espíritos ou deuses que lhes escolheram

comunicar. Embora tais seres não tivessem nenhuma relação já codificada que, para

aqueles indianos, justificasse esse contato. Uma dessas “improvisações” rituais, comum

entre meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos que frequentam as botânicas e

que faz da casa um espaço instável de existência, remete ao envio da agressão mística.

Para isso, emprega-se uma técnica sobre a qual se comenta mais abertamente nas

botânicas: a invocação de espíritos intranquilos via orações à luz de vela, o que

direcionaria tais entidades instáveis para a casa daqueles que deveriam ser perturbados

do ponto de vista físico e emocional. As velas que dão luz aos mistérios poderiam

também deslocar espíritos que criam instabilidade.

Foi nesse sentido que propus, no final do terceiro capítulo, que o próprio monte

se tornou uma paisagem espectral. Ela assombra contemporaneamente meus

interlocutores dominicanos e porto-riquenhos sem que para isso seja importante a

objetifcação de espíritos individualizados. Essa paisagem do confronto místico não

mapeia, para os meus interlocutores, necessariamente pertencimentos nacionais, fatos

históricos registrados documentalmente ou personagens discretos e bem caracterizados,

como tentei indicar aos analisar os vestígios de Gran Toroliza no monte, que Gina

recuperou para si mesma e para mim ao narrar como ocorre a incorporação desse

mistério petro.

Pessoas como Joana, Rosa e Gina sabem que espíritos impetuosos e rebeldes

vivem nelas no monte (e nelas). Mas outras, como os clientes porto-riquenhos e

dominicanos que as procuram por causa dos sintomas da agressão mística em seus

corpos, não sabem disso obrigatoriamente e de antemão. E tampouco elas e seus clientes

fazem referência a qualquer espírito (ou petro) do monte.

Ainda assim Joana, Gina, Rosa, e seus clientes (ou familiares) lidam, em suas

casas e em seus corpos, com algumas técnicas de propagação de malefícios e de defesa

contra inimigos que estão fundados no envio do ataque. São essas técnicas rituais

específicas e as categorias que descrevem tais formas de agressão espiritual que se

fazem atuais no cotidiano dos meus interlocutores. Trata-se de viver em zonas

específicas de combate tais como havia salientado Palmié. É justamente enquanto uma

forma de socialidade que é sentida como algo da ordem da dispersão, da incerteza e da

dificuldade de definição e discernimento de espíritos reconhecíveis e individualizados

que a paisagem do monte subsiste, tornando-se ela mesma espectral.

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De acordo com Rosa, por exemplo, as substâncias que ela manipulava ou

ensinava os clientes a fazê-lo são para vencer e dominar dentro de casa, afastando

ameaças espirituais através dos odores que amônia e aguarrás possuem. Joana, por sua

vez, durante certo tempo utilizou enxofre e pólvora, em combinação com plantas ditas

amargas, para espantar um morto humano que lhe foi muito íntimo, com que ela

conviveu por anos dentro da casa. O que está em jogo nessas técnicas rituais, eu

proponho, é o manejo de certas formas de dispersão que vigoram em conflitos. Tal

manejo de substâncias químicas são as armas de Rosa nessas novas guerras místicas.

Seus inimigos, como Shaw destacou, são entidades espirituais que não necessariamente

se equivalem: mortos familiares, mortos desconhecidos que perambulam pelas ruas, e as

coisas más. No entanto, para ela todas essas entidades deveriam ser afastadas ou

espantadas para o outro mundo, aquele da obliteração. O arsenal ritual contra essas

diferentes entidades espirituais Rosa encontrava em sua botânica.

5.2 BOTÂNICAS: ENTRE MATERIALIDADE E COSMOLOGIAS

O universo material das botânicas na Plaza del Mercado de Río Piedras, em

especial a de Rosa, era constituído por uma variedade de artigos religiosos como

imagens de santos e velas, objetos como colares e orações, produtos químicos e plantas.

Um primeiro olhar em direção à loja, que de modo mais imediato poderia ser visto

como simplesmente comercial, sinaliza a existência de uma série de incensos, velas de

variados tamanhos, sprays, frascos com líquidos coloridos – chamados de águas

espirituais e de óleos (aceites) –, banhos e despojos, sabonetes, especiarias (canela,

tipos diferentes de pimenta, mostarda, anis-estrelado, noz moscada), além de raízes e

plantas. Essas, no entanto, eram as mercadorias visíveis aos clientes.115

No interior da botânica, longe dos olhares mais interessados e curiosos, Rosa

guardava os produtos químicos como água de amônia, benzina, creolina e aguarrás,

cujos rótulos dos frascos indicavam tratar-se de produtos venenosos.116

Rosa explicou-

115

Como destacou Polk (2004, p. 22, 29, 31) em sua pesquisa etnográfica nas botânicas de Los Angeles,

particularmente na parte sul da Califórnia, dependendo dos sistemas religiosos e terapêuticos de cada

estabelecimento, revelavam-se os modos como os itens sacramentais eram utilizados, assim como as

maneiras pelas quais os altares, santuários e outros ambientes sacralizados eram construídos. 116

Long (2001, p.99), em seu estudo sobre o processo de mercantilização de “encantos” tradicionais e a

emergência de mercadorias espirituais fabricadas e comercializadas por empresas nos EUA que

expandiram a negociação de seus produtos nos anos 1920, chama a atenção para o caráter trivial de

muitos dos artefatos utilizados ainda nas primeiras décadas do século passado. Baseando-se nos dados,

entre outras fontes, coletados pela antropóloga e romancista Zora Neale Hurston durante o fim dos anos

1920 e o início de 1930 junto aos trabalhadores espirituais na cidade de New Orleans, Long (2001, p.55)

indica que vários dos ingredientes “mágicos” eram conservantes básicos e produtos de limpeza,

especialmente de uso doméstico (amônia, enxofre, assa-fétida, anil, detergentes). Nos relatos recuperados

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me que cada uma dessas substâncias possui um cheiro e uma função: a benzina era

utilizada para vencer as coisas más, o demônio... para vencer e dominar na casa; a água

de amônia para sacar o demônio e os mortos maus (misturada a líquidos preparados

como banho); a aguarrás para vencer e limpar a casa; a creolina também para limpar a

casa. Também fora do alcance da visão, encontravam-se os pós, chamados de azufre

(enxofre) e precipitado rojo, e, sem menos cuidado, tabletes de anil, com o qual são

feitas cruzes nas paredes dos ambientes domésticos e no corpo após os banhos.117

As atividades de Rosa na botânica não se limitavam às vendas. Ali, ela

preparava também alguns trabalhos espirituais, como mencionei no primeiro capítulo.

Os de amor eram os mais comuns (mas não os únicos), e, geralmente, eram solicitados

por mulheres dominicanas e porto-riquenhas, jovens e adultas, o que não excluía a ida

de alguns clientes masculinos (que procuravam Joana também com freqüência)

solicitando especificamente isso.118

Para alguns desses trabalhos, os clientes compravam as mercadorias

recomendadas por Rosa, que as manipulava às vezes no interior da botânica. Alguns

clientes voltavam para comunicá-la que os trabalhos foram bem sucedidos, outros para

requerer dela a continuidade caso o efeito esperado não houvesse se concretizado. Entre

os clientes, havia aqueles que eram desconhecidos, que estavam ali pela primeira vez, e

outros que eram parentes ou vizinhos de Rosa, e a procuravam com certa regularidade.

Além dos trabalhos de amor, boa parte do cotidiano de Rosa na botânica

caracterizava-se por aconselhar e recomendar alguns clientes sobre a compra de certas

mercadorias para sacar as coisas más.

Porque ouvia a expressão com tanta frequência, perguntei-lhe o que eram as

coisas más. Rosa disse-me que eram a má sorte, a raiva, tudo isso… os maus espíritos.

Além das coisas más, existiam também os espíritos de boa sorte, espíritos que são

bons, porque os espíritos são maus e bons. Quis saber então se os espíritos maus

por Long em Spiritual Merchants, substâncias com odores fortes como, por exemplo, enxofre, amônia e

assa-fétida eram “encantos” de proteção. Já nos anos 1940, essas substâncias químicas e produtos básicos

de limpeza assumiram, segundo Long (2001, p.57), a forma de lavados de banho (para o corpo) e de piso

(para as casas). Tais lavados poderiam atrair indivíduos e influências desejáveis e manter pessoas

indesejáveis e maus espíritos afastados. Embora em alguns dos relatos reproduzidos por Long substâncias

como a amônia possam servir tanto para proteger como para a preparação de um “trabalho mau” (bad

work) (Long, 2001, p.59), a primeira forma de uso se associa às descrições que Rosa me ofereceu mais

acima. A autora ressalta que “encanto” é um termo europeu, cujo emprego é raro nos “sistemas de crença

de origem africana”. Long (2001, p. xvi) afirma que faz uso dessa noção como uma designação genérica

para os muitos nomes pelos quais tais artefatos são chamados. 117

O anil é um produto químico utilizado durante a lavagem de roupas para deixá-las brancas. 118

Rosa ensinava alguns trabalhos aos clientes que deveriam ser preparados com excrementos de animais.

Tais trabalhos eram considerados mais fortes.

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poderiam ser chamados por seus nomes, como ocorre com os mistérios, se possuíam e

se apresentavam com características semelhantes às de pessoas. Rosa respondeu-me que

os maus espíritos são invisíveis... [os] que não necessitam porta aberta para entrar, são

como que invisíveis...

Para Rosa os espíritos têm a capacidade de intervir de diversos modos na vida

dos seres humanos. Suas ações podem ser sentidas em domínios como o espaço

doméstico e o corpo. Mas a presença dos espíritos maus seria percebida a partir de

indicadores específicos: – Quando alguém não dorme, sente calafrio, tudo se sai mal, se

desespera… há pessoas que querem tirar a vida, há pessoas que se enfermam… um

exemplo, se todo está se saindo bem e tudo se modifica [te cambia para trás], tudo te

sai mal, isso significa que há um espírito mau, Rosa me disse.

Durante as relações de compra e venda das plantas, notava que alguns clientes,

especialmente os imigrantes dominicanos detentores de certos códigos, cheiravam as

plantas, referindo-se à preparação de banhos doces e banhos amargos. Depois de certo

tempo, atentei que as plantas estavam organizadas na botânica de Rosa em dois grupos,

conforme seu odor e gosto. As perfumadas e adocicadas eram reunidas de um lado, as

acres, de outro. Perguntei à Rosa que plantas eram usadas para os chamados banhos

amargos e ela me deu alguns exemplos: quita maldição para retirar (sacar) a

maldição; anamú, para todo o mal, altamisa, rompe zaraguey; além de água de amônia

– ela completou – para sacar os mortos, espantar os mortos.

5.3 UMA SUSPEITA DE BRUXARIA: ATIVANDO ODORES ACRES, AFASTANDO

ESPÍRITOS MAUS

Em uma tarde na botânica a vi separando algumas plantas (albhaca, paçote,

altamisa, flor de libertad), um frasco de Espanta Diablo (banho e despojo espiritual),

duas velas brancas pequenas, duas velas grandes, de São Miguel (vermelha) e São

Santiago Apóstolo (lilás).

Após certo tempo, Luci, sua cunhada, chegou à Plaza del Mercado e Rosa

contou-lhe que Julio, seu primo, estava com problema; e que ela já estava com algumas

velas (branca, de São Miguel e de São Santiago). Ambas demonstraram preocupação.

Pouco depois, Rosa me chamou para acompanhá-la até a sua casa. Lá começamos a

conversar na cozinha. Ela pegou uma garrafa de rum – que havia comprado na Plaza

antes de sairmos – e de água florida. Ao abrir essa última garrafa, um pouco do líquido

respingou em seus olhos, e ela reagiu dizendo-me que quando isso acontece é porque o

santo quer mais.

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Em seguida, ela me chamou até o quarto dos santos, onde mantinha um altar

para os mistérios, e disse-me que gostaria de me mostrar o que faria. Pôs água florida

em uma taça, a maior e central, que ficava na parte superior do altar. Em seguida,

molhou as mãos com a mesma água florida e borrifou um pouco sobre os santos. Ao

observá-la, perguntei-lhe por que o fazia, mas ela não me ofereceu resposta.

Voltamos à cozinha, e ela pôs as plantas que havia trazido em um recipiente com

água e depois as levou para ferver. Começou então a fazer um remédio contra gripe que

seria armazenado em garrafas a pedido de um parente que estava com a filha doente e

de um amigo. Enquanto isso Rosa falava ao telefone com familiares na República

Dominicana sobre os problemas do seu primo Julio. O banho que estava sendo

preparado seria para ele.

Ao telefone, ela informava que Julio e outro primo têm espíritos na casa e que

os espíritos querem matá-los. Na conversa, ela fazia referência a um lugar em Santo

Domingo (nome da capital do país, mas que os dominicanos empregam de forma

genérica para qualquer cidade e local da República Dominicana) no qual bruxas faziam

trabalhos (e Julio poderia ter sido alvo delas) e a uma mulher haitiana.

Depois que Rosa encerrou a chamada telefônica, eu aproveitei a situação em que

nos encontrávamos e quis saber com quem ela havia aprendido a preparar o remédio e

os banhos. Ela sabia preparar as garrafas porque observava sua mãe, mas começou a

fazê-las sozinha; já os banhos, ela aprendera sem observar ninguém, pois sua mãe, ela

me disse, não gosta dessas coisas. Para Rosa, um saber como o que detinha ocorre

quando as pessoas nascem com esses dons.

Por causa do que conversávamos, interessei-me em entender desde quando ela

tinha o altar dos mistérios. Evitando se prolongar, ela respondeu sucintamente que

começou a organizá-lo desde que arrendou a botânica.119

Rosa silenciou-se. Após

alguns segundos comentou que, quando era mais jovem, já tinha santos, sob a forma de

pequenos quadros, em San Francisco de Macorís, sua cidade na República Dominicana.

Disse-me isso e novamente calou-se. Percebi que ela não queria conversar sobre o que

tinha acabado de associar: a obtenção da botânica e o início da organização do altar.120

Eu a ajudava a cortar as plantas para a preparação das garrafas, quando o

telefone de Rosa voltou a tocar. Alguém estava na Plaza e queria conversar com ela.

119

De uma senhora porto-riquenha que, algumas vezes, vi indo à Plaza para receber o valor do

arrendamento. 120

Durante a viagem que fiz com Rosa até San Francisco de Macorís, soube que ele fez uma festa para

São Miguel no ano anterior, em 2009, na casa de seu padrinho nos mistérios, tio de Diogo.

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Nós então regressamos até lá. Alguns minutos depois chegaram Pablo, também seu

primo, com a companheira.

Eles já haviam estado ali outras vezes. Em uma dessas idas, o casal havia

passado um bom tempo no interior da botânica conversando com Rosa. A moça estava

enfrentando alguma dificuldade onde trabalhava. Depois de ouvi-los, Rosa indicou que

comprassem, entre outras coisas, água florida, tabletes de cânfora, algumas plantas

como arruda, águas espirituais, benzina, incenso e uma vela grande de São Miguel. E

explicou-lhes: primeiro, a moça deveria limpar seu corpo com um banho e depois

acender a vela em nome do santo. Simultaneamente, deveria espalhar pela casa, com a

mão direita, um produto que me pareceu uma espécie de açúcar, cujo rótulo indicava 7

Potências Africanas. Além disso, Rosa recomendou à moça a limpeza de objetos como

a mesa do local em que trabalha com a benzina.

Agora, o retorno à botânica também tinha a ver com assuntos espirituais. Pablo

era o outro primo a quem Rosa se referiu no telefonema que recebeu da República

Dominicana.

Ao fim da tarde, depois que fechamos a botânica, regressamos à sua casa. Já

havia anoitecido quando Rosa pediu à sua irmã que a ajudasse com o banho de Julio.

Sua irmã, no entanto, argumentou que não era boa para orar em voz alta, que fazia isso

para si e não para os outros; saiu da casa e só retornou depois que o primo Julio, com a

família, já tinha ido embora.

Rosa então começou a preparar uma defumação (sahumerio), queimando

incensos para fazer uma limpeza com a fumaça. Amarrou ao redor de sua cabeça um

pañuelo lilás, e passou a fumaça (humo) pelo próprio corpo: entre as suas pernas e,

depois, envolta do corpo, girando-o para a direita e então para a esquerda. Espalhou a

fumaça pela cozinha, pelo corpo da filha do primo (que não queria), pelo meu corpo –

dizendo que me queria limpa –, e pelo corpo da companheira de Julio. Nós repetíamos o

mesmo sentido dos movimentos de Rosa. Enquanto isso, Julio se encontrava no

banheiro da casa.

Rosa acendeu a vela de São Miguel na entrada da porta da sala e a de São

Santiago levou para o quarto dos santos, colocando-a no altar. Ela acendeu as velas

brancas pequenas no banheiro onde o primo estava, e passou a fumaça pelo corpo dele.

Rosa então pediu que a companheira do primo levasse o banho, feito com as plantas

fervidas em água e misturado ao despojo Espanta Diablo, até o banheiro. Nesse

momento, aconselhou a mulher a ficar junto com eles para aprender como isso era feito.

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Ao sair, Rosa disse que o primo realmente não estava bem. Ela sabia disso em

função de uma indicação material: a pulseira (com imagens de santos) que ela usava em

seu braço explodiu (plotar) enquanto ela realizava o banho nele.

Enquanto Julio se vestia, Rosa perguntou à companheira dele se na casa em que

viviam havia uma cruz, um crucifixo, e apontou para uma imagem (busto) chamada de

Grande Poder de Deus, localizada em sua sala. Recomendou, após comentar que o casal

não tinha nada em casa, que eles comprassem aqueles objetos e pendurassem na porta e

parede – assim como ela o fez – e que a mulher também fizesse a defumação no

apartamento em que vivia com Julio e a filha. Antes que eles se fossem, Rosa deu um

pouco de incenso para a companheira do primo, além de cascarilla (pó feito com casca

de ovo) e um frasco que, pela embalagem, poderia conter água de amônia ou benzina.

Além disso, quis saber se ela havia aprendido a preparar a defumação.

Quando Julio saiu do banheiro, Rosa quis saber como ele se sentia: se aliviado e

se sua pele ardia (picaba). Ele sentia ardência na pele. Sua companheira comentou que

era por causa da amônia. Rosa, no entanto, replicou. Segundo ela a sensação de ardência

de Julio não era devido à amônia, pois no banho não haveria essa substância.121

Sentados na sala, Rosa continuou a fazer algumas perguntas a Julio. Queria

saber se ele estava dormindo bem durante a noite e se vinha tendo sonhos. Rosa, Julio e

sua companheira acabaram afirmando que vinham sonhando com algumas pessoas, que

incluíam mortos da família. Rosa indagou se o primo gostaria de voltar para Santo

Domingo, que atualmente há voos mais baratos para o país e, se ele desejasse, poderia

ficar em sua casa naquela noite ou dormir ali até se sentir melhor.

Eles conversaram um pouco mais, e o casal foi embora com a filha. A irmã de

Rosa retornou à casa e logo depois chegou um vizinho dominicano. Conforme a irmã de

Rosa, quando o telefone tocou bem cedo, naquela manhã, por causa de uma ligação de

Santo Domingo, ela se assustou, pois era sinal de que algo grave acontecia. Os três

iniciaram uma conversa relacionada ao que estava acontecendo com Julio. O vizinho

contava alguns casos sobre bruxaria em Santo Domingo e em Porto Rico. Rosa

argumentou que o trabalho feito para o primo era uma bruxaria, e ela e o vizinho

suspeitaram de uma mulher da República Dominicana. Eles desconfiavam da pessoa

com quem Julio era casado e tinha filhos. Acreditavam que ela desejava que ele

regrasse.

121

Em geral, as soluções vendidas como banhos e despojos têm em sua fórmula alguma quantidade de

amônia informada no rótulo.

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Tanto Rosa como o vizinho argumentavam que o retorno do primo deveria

acontecer por causa da outra família que ficou na República Dominicana. Segundo

Rosa, o próprio primo lhe disse, enquanto conversavam após o banho, que não queria

mais ficar em Porto Rico. Mas a atual companheira não concordava com a sua decisão.

O vizinho então cogitou se Julio pretendia ir para Nova Iorque ou Canadá. Rosa

argumentou que ele desejava regressar para Santo Domingo mesmo. Para ela, a

bruxaria que foi feita já apresentava seu resultado: o trabalho fez com que Julio não

gostasse mais da companheira (também dominicana) com quem vivia em Porto Rico, e,

tendo percebido isso, ele desejava partir.

Para o vizinho, pessoas como Julio poderiam ficar loucas. Rosa então comentou

que o primo vinha escutando em sua casa uma voz que lhe dizia se mata, se mata. Tudo

o que ela havia preparado naquela noite pretendia interromper a influência de espíritos,

enviados da República Dominicana, sobre Julio. Para Rosa, Julio era uma pessoa que

sofria de depressão – o próprio primo teria dito isso a ela –, assim como um tio dela

chamado Humberto.122

Seu vizinho ainda mencionou outros casos de bruxaria, e a

impressão que tive era de que longe de ser uma exceção, essa noção era mobilizada

regularmente no cotidiano de Rosa e sua família.

No dia seguinte, Rosa recebeu na Plaza outra ligação, provavelmente de seu

país. Nessa ocasião, avisou por telefone que Julio está com uma coisa forte atrás.

Enquanto ela trabalhava na botânica, a companheira de Julio chegou. Depois de

conversarem um pouco, a mulher comprou algumas plantas, dentre elas um vaso com

arruda para pôr na casa, uma vela grande dessa planta, além de outras. Julio teria que

tomar outro banho naquela noite. E ele assim o fez.

Ao cair da noite ele chegou. Rosa, novamente, começou pela defumação da casa

e dos corpos das pessoas. Depois do banho – que vinha sendo realizado durante esses

dois dias com o primo chorando, Rosa havia comentado –, mais uma vez ela quis saber

se ele se sentia melhor, insistindo na pergunta. Ele disse-lhe que sentia uma dor muito

forte na cabeça, que lhe impedia de dormir; diante disso ela voltou a oferecer sua casa

para ele ficar naquela noite. Em seguida começou a ler orações de um livro vendido na

botânica, particularmente a de Santa Clara, e quando acabou preparou um resguardo

122

Em uma conversa que tive com Humberto ele disse-me que enquanto trabalhava em Nova Iorque

sofreu depressão e tinha a sensação de que havia malogrado naquela cidade. Seu retorno a Porto Rico

parece que demandou algum tipo de intervenção de Rosa como no caso de Julio.

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com três dentes de alho amarrados em uma linha branca para o primo prender em seu

pulso, e um pedaço para ele guardar na carteira.

Na manhã seguinte, enquanto nós duas estávamos na botânica, eu conversei com

Rosa acerca do que ela vinha fazendo com Julio. Ela me explicou que isso é como um

medicamento. Se eu estivesse enferma, ela me interrogou, oferecendo em seguida a

resposta, Tu buscas o medicamento... Se tu tens uma dor de cabeça, o que vais tomar.

No caso de Julio, o que ela lhe preparou foi um banho para sacar as coisas más.

Contudo, além do banho, Julio também precisou ser untado.

Ele teria que voltar à casa de Rosa para tomar o terceiro e último banho, mas não

foi até lá como vinha fazendo. À noite, enquanto o esperava, a família se reuniu, e

novos comentários surgiram a respeito do primo. Eles acreditavam agora que poderiam

ter sido os próprios parentes de Julio na República Dominicana que fizeram um

trabalho de bruxaria para que ele regressasse.

Só vi novamente Julio depois de alguns dias, durante um sábado. Ele foi até à

Plaza para ajudar Rosa com as vendas das verduras e frutas, e passou todo esse dia entre

nós. Quando retornei a Porto Rico pela segunda vez para dar continuidade ao trabalho

de campo, Julio não vivia mais na ilha. Havia viajado para Nova Iorque, onde passou a

residir. Sua companheira e filha permaneciam em Río Piedras.

5.4 TÉCNICAS ESPECTRAIS

Quando chamei a atenção no início deste capítulo que as descrições sobre as

interações entre as coisas más e os seres humanos funcionam como uma espécie de

contraponto às relações das pessoas com os seus mistérios, essa observação se baseou

em algumas maneiras como os meus interlocutores dominicanos exprimem a

aproximação daqueles espíritos indesejados. Tais modos de exprimir percorreram as

descrições acima.

Os mistérios se apresentam (dizem seu nome) para aqueles que têm esses

espíritos. E, a partir do momento em que são invocados, os móveis que se encontram na

direção da passagem da porta da casa devem ser retirados, como sinalizei no segundo e

quarto capítulos. Retirando-se os obstáculos que estão em seu caminho, os mistérios

adentram. Quando perguntei à Rosa o que eram as coisas más e ela me respondeu que

eram espíritos invisíveis que não precisam de porta aberta para entrar, sua resposta

procurava indicar o fato de que os mistérios têm o seu ingresso permitido nos ambientes

domésticos por aqueles que são pessoas. E isso inclui dar passagem a eles abrindo

também as portas. Em muitas situações, como descrevi ao longo da tese, eles são

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211

invocados para a condução e realização das tarefas espirituais. Eles estão na casa, nos

altares. Ao mesmo tempo por aí, trabalhando em diferentes cabeças (humanas). Desse

modo, precisam chegar.

Por sua vez, as coisas más são concebidas pelo seu caráter completamente

invasor e desconhecido. Esses espíritos maus, como também são chamados, não são

passíveis de ser identificados. Nesse sentido, estão alheios a um enquadramento como

aquele dos mistérios que passam pela família, que se fazem reconhecer e são

reconhecíveis por uma pessoa por causa das relações prefiguradas dos antepassados

com eles.

Outro contraponto que merece ser enfatizado não diz respeito ao estatuto dessas

entidades, mas sim ao modo como elas interferem na vida dos seres humanos. Esses

espíritos agem sobre o corpo dos vivos, produzindo sensações de calafrio, dores de

cabeça, insônia e são capazes de materializar-se fora do domínio corporal: suas vozes

são ouvidas, objetos explodem (plotar) – o que me parece uma forma de experienciar

esse tipo de conflito com base em indicações sonoras – 123

quando estão sob a sua ação.

No entanto, quando se fala do corpo, o que eu ouvi comumente é que ele ou ela tinha

um morto atrás: – Julio está com uma coisa forte atrás, foi como Rosa comunicou aos

familiares na República Dominicana a situação do primo. Nas costas dos vivos,

sobrepondo-se como uma espécie de sombra (algumas pessoas são capazes de visualizar

isso), que as coisas más se alojam.

Essa forma de incorporação é diferente, como discuti no primeiro capítulo, do

percurso interno que Gina sente antes que os mistérios a tornem seu cavalo. Além disso,

nesse momento, outros mistérios se fazem presentes no ambiente, nas laterais de seu

corpo. E mesmo quando não se trata de montar ou subir, o que as pessoas dizem estar

em jogo nas modalidades relativas de incorporação é a cabeça, que aparece como a

parte do corpo humano a que os mistérios se juntam.

Ainda no que concerne ao corpo, atrás dos vivos, as coisas más (ou mortos de

uma maneira geral) conseguem circular em ampla medida: entre casas e locais de

trabalho, pelas botânicas e pelos altares, levados por aqueles que buscam se consultar

com os mistérios, por exemplo. Como uma espécie de condutor, o corpo dos seres

123

Durante o período em que trabalhei com Rosa na botânica e em seus postos de venda de verduras e

frutas na Plaza del Mercado, percebi que o barulho acentuado decorrente da queda das caixas das

mercadorias gerava nela e em Diogo certo incômodo e insatisfação. Logo que tal fato ocorria, eles

direcionavam seus olhares rapidamente para mim. Depois de um tempo percebi que a atitude deles

indicava que espíritos indesejáveis, além de nós, poderiam estar presentes ali, derrubando

intencionalmente as suas mercadorias no chão através de mim.

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212

humanos, que pode atrair esses mortos espontaneamente, é concebido não apenas como

portador dessas ameaças, mas também como meio de sua propagação.

Armando, por exemplo, mantinha em seu altar um vaso ao redor do qual havia

várias fitas coloridas, cada uma com a cor referente à divisão dos mistérios. – Uma

pessoa que vem [ao altar] com um espírito mau, Armando me explicou, poderia beber da

água contida no vaso ou colocá-la sobre a cabeça. Esse símbolo, ele me disse referindo-

se ao jarro cujas fitas o circundavam, são os 21 espíritos (21 División). Outro símbolo

dos mistérios em seu altar era os tecidos coloridos suspensos ao teto e centralizados,

uma proteção do altar, significam os 7 mistérios [principais], às vezes vêm espíritos

maus, vêm com uma pessoa ou sozinhos... os panos ao meio, os protegem Deus e os

mistérios, Armando concluiu. Além disso, Armando possuía pendurado ao teto do altar

um resguardo: uma cruz enrolada em fitas suspensas (vermelha e verde, as cores de São

Miguel), um embrulho e patas de algum animal.

Mas se esses espíritos maus podem difundir-se pelos ambientes de convívio

humano agarrando-se aos vivos, é o entendimento de que se trata de um combate que

ganhe realce nas considerações de Rosa. Como ela me explicou, as substâncias

químicas como a benzina e a aguarrás são manipuladas para que os seres humanos

vençam as coisas más, para que consigam dominar na casa. Do ponto de vista de Rosa,

o que se passa em seu ambiente doméstico é uma guerra mística com seres invisíveis. E

esse confronto não se limitava à sua casa, mas a de tantos outros a quem ela

recomendava na botânica os mesmos produtos e usos para afastar as coisas más.

Produtos e usos que, como Long (2001) demonstrou, eram completamente difundidos

entre os trabalhadores espirituais negros nas primeiras décadas do século XX nas

antigas áreas de plantações escravistas do sul dos EUA.

É essa imagem do conflito propagado no interior da casa, travado com seres

desconhecidos que ali teriam chegado por causa de técnicas rituais que procuraram

controlá-los e direcioná-los para gerar o infortúnio (físico e emocional, como no caso de

Julio), que meus interlocutores sentem materializar-se no seu dia-a-dia.

Como Shaw salientou em sua discussão sobre os Temne, essas experiências

descrevem uma forma de instabilidade radical na medida em que é pervasiva aos

espaços de convívio cotidiano. No caso dos meus interlocutores dominicanos, um

espaço familiar íntimo e visivelmente coabitado por seres humanos e os mistérios. Mas

a instabilidade também é radical porque as coisas más, a partir de sua aproximação dos

seres humanos, retiram destes o próprio controle subjetivo, como Palmié indicou. A

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213

invisibilidade da agressão, da fonte do dano, da potência mística que invade e toma o

controle de si, dos desejos, do sono, da casa e incita ações como o suicídio, é vivida

como uma paisagem espectral.

Trata-se, parece-me, da compreensão de que a vulnerabilidade humana é

máxima diante da possibilidade de que diferentes modalidades de dano podem ser

experienciadas indiscriminadamente uma vez que sejam lançadas de qualquer parte.

Rosa cogitou, primeiro, um lugar onde mulheres haitianas fariam bruxaria em Santo

Domingo. Depois a esposa de Julio que permaneceu em San Francisco de Macoris, na

República Dominicana, enquanto ele imigrou para Porto Rico. Por fim, os parentes dele

que também permaneceram no país.

Diante do que afligia e perturbava Julio tanto física e emocionalmente, bem

como da dúvida quanto a quem deveriam ser imputados tais malefícios, o que Rosa e

seus familiares conseguiram mais ou menos articular como conhecimento significativo

é que a situação do primo dizia respeito a um trabalho de bruxaria. O que pode ter

sido, um dia, uma forma ritual de ataque como meio de cura (Palmié, 2002) para os

interlocutores se trata atualmente de uma forma de fazer dano.

Alguns trabalhos contemporâneos sobre modalidades de bruxaria na África têm

salientado que a mercantilização de espíritos humanos como trabalhadores forçados em

outros domínios do cosmo para o enriquecimento ilícito e dos próprios seres humanos

através do roubo de sua vitalidade orgânica, especialmente do sangue, comercializado

com vistas ao lucro e bem-estar de bruxos, seria um comentário crítico às

transformações globais seculares e contemporâneas no continente: ao deslocamento

forçado, à precariedade das formas de trabalho urbano assalariado, especialmente o

migrante, ao imperativo da venda e do consumo massivo de produtos de alta tecnologia

e de bens menos duráveis a partir de uma lógica máxima de obtenção do lucro, à

expansão concentrada e elitista de infra-estrutura e serviços urbanos (COMAROFF &

COMAROFF, 1999; GESCHIERE, 2006; SHAW, 1997; WEISS, 1999).124

124

Esses trabalhos enfatizam lastros históricos diferentes, especialmente o de Shaw, que defende uma

abordagem de longa duração baseada no comércio atlântico de escravos, e não nas mudanças globais mais

ou menos recentes em comparação a amplitude que a primeira forma de troca assumiu.

Metodologicamente o de Weiss também se diferencia. Ainda que ele discuta a captura de seres humanos

para a extração de sangue humano, de acordo com os rumores e as narrativas entre membros Haya de

comunidades rurais na Tanzânia, Weiss afirma que isso não é atribuído exatamente a espíritos ou

feiticeiros do mato, mas sim a “pessoas gananciosas” que vivem nas cidades e enriquecem através do

comércio de tal substância corporal. Para Weiss (1999, p.174), as compreensões acerca da transformação

do sangue em mercadoria que gerava o enriquecimento de outros estariam predicadas na maneira como

essa substância era conceituada entre os membros Haya. Nesse sentido, tais entendimentos não

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214

Muito embora narrativas semelhantes de escravização de entidades espirituais

perpassem o cotidiano dos interlocutores dominicanos que conheci – e a imagem do

bacá, que apresentei no segundo capítulo demonstra isso – a bruxaria como “uma

ubíqua e inevitável parte da experiência vivida” (SHAW, 1999, p.867) entre os

dominicanos e porto-riquenhos assume menos a imagem de canibalismo, vampirismo e

trabalho forçado. O que parece ter maior relevância é uma compreensão sobre perigos

que estão dispersos, difusos, que são lançados no ar (e no chão, como os pós, outra

forma de bruxaria sobre a qual me foram dados comentários). Nesse sentido, tais

técnicas rituais são espectrais não simplesmente porque assustam, mas também porque

estão amplamente propagadas.

Defender-se dela implica em limpar a casa e os corpos. Enquanto morei com

Rosa e sua família, nos dedicávamos a essa tarefa com certa rotina. Já Diogo preparava

seus banhos com certa dose de amônia, especialmente quando sentia que sua vida não

se desenrolava como ele gostaria. E, no decorrer de uma sequência crítica de eventos,

em que tecatos entraram na garagem da casa e roubaram sua caixa de ferramentas e

instrumentos de reparo do automóvel, comigo dentro dela mas sem que eu escutasse

qualquer barulho, e, posteriormente, seu carro de passeio foi roubado, seus banhos

amargos procuravam afastar o que ela via como impedimento à sua sorte.

Neste contexto tenso para Diogo, particularmente, eu já vinha frequentando

vários altares. Ele não aprovava isso e acabei sendo vista como alguém que poderia

estar levando junto comigo, para a casa deles, a má sorte sobre a qual meses antes Rosa

me falara: [...] se todo está se saindo bem e tudo se modifica [te cambia para trás], tudo

te sai mal, isso significa que há um espírito mau.

Limpando a casa, Rosa procurava evitar e expulsar essas entidades.

Especialmente no caso de Julio, seu primo, no qual ela se engajou porque é uma pessoa

que têm os mistérios, o corpo dele foi submetido aos lavados de banho e a certas

plantas. Exalando um forte odor acre, essa composição líquida extrairia dele, mais

precisamente detrás dele, a influência negativa dos espíritos maus. A materialidade

particular de plantas como a altamisa e o paçote e do Espanta Diablo (cuja fórmula

indica alguma quantidade de amônia) caracteriza-se por um cheiro acre que age sobre a

assumiriam a mesma forma em relação a outras narrativas sobre o mesmo assunto na África Oriental, nem

descreveria simplesmente bruxaria.

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215

sensibilidade dos vivos e dos mortos.125

Afeta, nesse sentido, o que está difuso, muito

próximo à pele e às superfícies, mas é invisível.

O princípio ativo da técnica de limpeza do corpo de Julio fundamenta-se no

pressuposto de que ele e as coisas más partilham uma experiência sensível vinculada ao

olfato. Isso, apesar de seus distintos estatutos. Afetar-se aparece assim como um

movimento perene entre vivos e espíritos, que tende a remeter mais ao que é comum

entre ambos do que àquilo que os separa. Mas afastar ou espantar pelo odor, parece-

me, poderia significar que se está lidando com uma dimensão sensível produzida pelas

táticas que descrevem a vida precária das paliçadas e trincheiras: cenários repletos de

adaptações como aquelas dos montes caribenhos e de alhures, conforme o santero

entrevistado por Robaina indicou.

5.4.1 Outras receitas para espantar os mortos

Duas mulheres entraram na botânica onde Joana podia ser encontrada todos os

dias. Uma era mais velha, a outra mais jovem. Eram mãe e filha que a procuravam,

como depois soube. Joana já estava sentada no espaço reservado em que sempre

realizava as consultas, atrás do balcão. Quando a mulher mais jovem se dirigiu até

Joana, ela tocou o sino. As duas permaneceram ali. Muito tempo depois, a mulher saiu

com um papel em suas mãos. Uma longa lista que continha muitos itens escritos.

A jovem mulher se dirigiu à dona da botânica, uma senhora também

dominicana, que ao ler a lista, reagiu: – Você está bem má! Em seguida, separou arruda

e alecrim, Espanta Muerto (uma água espiritual que ela mesma traz da República

Dominicana), água florida, Quita Maldición (um álcool) e creolina, informando

novamente à jovem cliente que traz a última substância da República Dominicana

porque a que se vende em Porto Rico não é como a de seu país. A dona da botânica

ainda separou um banho Rompe Brujo, uma vela grande com esse mesmo nome e um

spray Corta Fluído.

Dirigindo-se aos fundos da botânica, ela pegou ainda um saco no qual guardava

mata guangá, e pediu que a cliente o segurasse. Um cheiro ruim se propagou pelo

ambiente. Imediatamente, a dona da botânica voltou a afirmar que a jovem estava bem

má. E explicou-lhe: o cheiro putrefato que sentíamos era porque a moça tinha algo em

cima. Quando ela mesma foi até os fundos da botânica e pegou a sacola com a mata

guanguá, nenhuma de nós sentiu tal odor.

125

Uma “materialidade partilhada de vivos e mortos”, como observou Ochoa, em que “os mortos são

contíguos e imediatos aos vivos” (OCHOA, 2004, p.18).

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216

Enquanto a jovem segurava a sacola com a mata guanguá, passou a mão duas

vezes por seus braços, como se sentisse arrepios. A dona da botânica argumentou,

então, que após o banho com a mata guanguá, a jovem sacará o que tem em cima. Toda

a compra custou mais ou menos sessenta dólares, se não um pouco mais. Passou-se

certo tempo, e a mãe da jovem saiu junto com Joana do espaço da consulta. Sua

consulta tinha chegado ao fim. Feliz, a senhora porto-riquenha disse que sempre tinha

amor perto dela, e que não tinha algo mal como a filha. Mas também lhe foi indicado

um banho, provavelmente para manter a boa sorte.

Enquanto a dona da botânica separava as mercadorias para essa senhora, ela

voltou a fazer outro comentário, agora, sobre o que se passava com a sua filha: – Estão

lhe lançando para matar (Están tirándole para matar).

Antes de ambas irem embora, a jovem perguntou à Joana o que deveria fazer

com tudo aquilo que comprara. Joana pediu para ela, primeiro, limpar a casa e depois

tomar o banho. A dona da botânica interferiu. Disse-lhe que depois deveria tomar um

banho doce, pois já teria sacado... Joana lhe disse, por fim, para usar o spray na casa e

então acender a vela.

Mãe e filha já tinham ido embora, quando Joana disse-nos que a jovem foi ali

havia algum tempo. Depois disso, teria ido a um santero, mas não gostou. Como havia

gostado da primeira consulta com Joana, decidiu retornar. Joana argumentou que há

quem jogue as cartas e ao saber que foi feita bruxaria para o cliente, o desespera,

dizendo-lhe: – Olha, tem um morto atrás de você, te fizeram bruxaria. Eu prefiro

orientar a pessoa e não desesperá-la. Se o cliente deseja saber quem está agindo dessa

maneira, Joana não lhe conta. Se uma pessoa vai morrer, Joana não pode lhe informar;

deveria lhe pedir para procurar um médico porque está enferma; se há traição, pedir

cuidado, mas não falar ao cliente isso diretamente, completou a dona da botânica.

Para Joana, uma pessoa pode atrair um morto para perto de si apenas andando na

rua ou se tornar alvo de uma bruxaria se pisar em algum pó colocado na calçada para

outros. Em Porto Rico, ela observou, seria ainda pior, pois não se tinha o costume de

rezar pelos mortos, sobretudo, realizando missas: – Os mortos precisam de claridade e

orações, ela concluiu. A dona da botânica então comentou: – Os mortos gostam de

coisas boas, carros, mulheres bonitas [e rondariam aqueles que têm automóveis para

não andar a pé assim como uma bela mulher]. Os mortos são ambulantes, a dona da

botânica sintetizou. E, então, comentou: – Há mortos que não querem sair de casa.

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217

Ao ouvir esses comentários, Joana começou a me contar o que aconteceu com o

seu marido depois que ele faleceu. Ou melhor, com o espírito dele, depois que se

suicidou.

5.4.2 Joana e seu morto

No primeiro dia após o suicídio de seu marido, na cidade de La Romana, Joana

decidiu realizar uma missa em sua casa. Antigamente, ela me disse, as chamadas Horas

Santas eram realizadas por nove dias, mas atualmente não era assim que ocorria.

Somente quando se completaram nove dias do falecimento do marido que Joana

realizou uma Hora Santa em casa. Para isso ela convidou muitas pessoas. Era um dia

chuvoso e foi preciso instalar uma lona para evitar que os convidados se molhassem.

Uma forte ventania retirou, no entanto, essa proteção. E as pessoas buscaram abrigar-se

nos lugares cobertos da casa. Joana nunca havia visto um vento como aquele. Para ela,

foi o espírito de seu marido que retirou a lona que protegia os convidados da chuva.

Ele permanecia na casa em que Joana seguiu vivendo com as filhas depois da

morte dele. Por causa disso, Joana precisou fazer muitos remédios para sacar o espírito

da casa, assim como tomar vários banhos, com alhos e folhas. Um desses remédios foi

utilizando o que, na República Dominicana, é chamado de velón 7 Mechas, no interior

da qual podem ser encontrados enxofre (azufre) e pólvora (fula).126

Depois de comprar

essas velas grandes, Joana aumentou a quantidade de enxofre – uma coisa que espanta

morto, certa vez ela me disse – e pólvora. Ela adicionava mais dessas substâncias às

velas para que o espírito fosse embora, para quitar da casa.

Durante esse período, objetos e mobiliário se rompiam no interior de sua casa, e,

em algumas situações, faltou pouco para ela se ferir gravemente. Joana também sonhava

com seu marido em La Romana. Em um desses sonhos, ele estava no chão e ambos

brigavam; ela tentava agredi-lo com força, mas não conseguia. Depois de fazer vários

remédios – acender as grandes velas 7 Mechas repletas de enxofre e pólvora e tomar

126

Segundo Ochoa (2004, p.94), fula, no palo Kikongo atual (língua ritual utilizada nas regras del palo)

significa pólvora, que é importante no ofício religioso. Ele explica que fula não tem nenhuma etimologia

no espanhol. Ochoa explica que a pólvora é “quente” não apenas em termos de temperatura quando é

acesa, mas também porque se proíbe sua venda e posse em Cuba, e, por isso, adquire-se pólvora pelo

roubo. Rodolfo, interlocutor de Ochoa, usava fula para pólvora e para referir-se ao dólar americano.

Joana, enquanto vivia em La Romana, trabalhava ritualmente com alguns espíritos petroses, e comentou

algumas vezes comigo que usava pólvora para afastar as coisas más da casa de clientes, em função de seu

som explosivo. A concepção de que essas entidades também são mais quentes (calientes) perpassa o

emprego da pólvora na invocação ritual dos petroses.

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banhos amargos –, ela teria alcançado seu objetivo: quitar o espírito de seu marido da

casa.

Nove meses tinham se passado desde que ele faleceu e Joana imigrou para Porto

Rico no início dos anos 2000. Nesta ilha caribenha, no entanto, teve novamente outro

sonho com o espírito do marido. Nele, seu marido dizia-lhe que ela queria sacar ele da

casa, mas quem a sacou da casa foi ele. Sua imigração para Porto Rico, desse modo,

assumia outros sentidos que não apenas a necessidade de manter a si nessa ilha e as

filhas em La Romana, trabalhando os mistérios sem os papéis, expressão utilizado pelos

imigrantes dominicanos para referirem à condição de ilegais.

Mas esse comunicado, durante o sonho em Porto Rico, não foi tudo. Joana

residia havia um ano nessa ilha, quando o espírito de seu marido descobriu onde ela

estava. Com ele atrás dela, Joana não conseguia se relacionar com ninguém. Para além

de tudo o que implicava ter um morto atrás – sinônimo de atraso, como ela sempre

insistia –, Joana se deparava com mais um problema: ter de se tornar legalizada após a

entrada clandestina em Porto Rico.

A estratégia de muitos homens e mulheres dominicanos que pretendem se

estabelecer em Porto Rico é contrair o chamado casamento por negócio. Essa é a

maneira como procuram obter o direito de residir na ilha, um território norte americano.

Joana também se enveredou nesse caminho, e por duas vezes, pois no primeiro

casamento por negócio seu esposo porto-riquenho faleceu. Quando a conheci em

outubro de 2010, ela já havia se casado novamente com outro senhor porto-riquenho,

com quem chegou de fato a dividir uma residência. Isso, no entanto, só foi possível

porque Joana mobilizou um dos mistérios que atende: São Elias/ Barão do Cemitério.

5.4.3 Comprando com São Elias: de pedras a mortos ou de anônimo a afim

Depois que o espírito do marido descobriu Joana em Porto Rico, ela decidiu

comprar um morto para São Elias. Como descrevi no terceiro capítulo, São Elias/Barão

do Cemitério é responsável, junto a outros guedeses, pelos mortos humanos. Herdado e

atendido por dominicanos e haitianos, São Elias é também conhecido entre os porto-

riquenhos que frequentam as botânicas ou passam por consultas espirituais diretamente

com esse espírito.

Joana foi até um cemitério e procurou a sepultura de São Elias.127

Escolheu

então uma pedra ao redor e comunicou ao santo: – Comprei-lhe um morto. Pagou a São

127

Segundo os meus interlocutores dominicanos, essa sepultura é a do primeiro homem enterrado em um

campo santo, como discuti no terceiro capítulo.

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Elias, pela pedra, 7 chavitos (centavos de dólar) que foram deixados na sepultura. Ao

chegar em sua casa, iniciou então o preparo da pedra.

Confeccionou um boneco com um tecido de uma roupa que fora do marido.

Antes, Joana havia telefonado para uma de suas filhas em La Romana e pediu-lhe que

enviasse uma camisa do pai, pois gostaria de guardá-la como lembrança. Usou o tecido

para fazer uma roupa e inseriu a pedra no interior da vestimenta.

Durante vinte e um dias Joana passou suas noites dormindo com a pedra em sua

cama. Ao mesmo tempo acendia uma grande vela que, quando se apagava, ela

substituía por outra maior. Sua intenção era que o espírito do marido fosse se elevando,

se afastando. Após aqueles dias, Joana regressou à sepultura do Baron do Cemitério, e

informou-lhe que estava pagando pelo morto, agora o espírito de seu marido: uma

pedra vestida com um boneco e tecidos de roupa que lhe pertenceram, artefato com o

qual ela voltou a conviver por algumas semanas em sua casa. Ao retornar ao cemitério,

Joana deixou um morto específico na sepultura de São Elias e pagou-lhe, dessa vez, 21

chavitos.

As diferentes técnicas de manipulação da materialidade empregadas por Joana

para interromper a interferência do marido falecido em sua vida demonstram, assim

como no caso de Rosa e seu primo, o emprego de uma técnica ritual baseada na

dispersão via a ativação de uma sensibilidade olfativa dos espíritos indesejáveis.

Procurando, ainda enquanto morava em La Romana, sacar o espírito do marido da casa

espantando-o com as velas carregadas de enxofre, pólvora e os banhos, em Porto Rico

Joana viu-se diante da necessidade de fazer uso de uma nova técnica de afastamento.

Agora, um procedimento ritual em que um espécie de contrato foi firmado com o

mistério Barão do Cemitério.

A transformação ritual da pedra, um objeto mais ou menos indistinto retirado do

cemitério, uma espacialidade fúnebre densamente significada para os meus

interlocutores dominicanos por causa dos espíritos guedeses, como descrevi no terceiro

capítulo, mas também dos próprios mortos genéricos, como salientaram Palmié (2002) e

Ochoa (2004) ao descreverem as regras del palo, desenrolou-se durante uma dupla

relação mercantil com São Elias/Barão do Cemitério.

Para transformar tal objeto indeterminado em um afim que lhe foi muito

próximo, primeiro Joana se apropriou da pedra e precisou anunciar ao mistério que

habita aquele ambiente que se tratava de uma compra. Tornando o Barão do Cemitério

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o dono da pedra (talvez reconhecendo isso) com o pagamento monetário dos 7 centavos

de dólar deixados em sua sepultura, Joana pode obter um morto comprado.

É com essa expressão que os interlocutores dominicanos salientavam durante o

trabalho de campo como é possível que os seres humanos possam ter espíritos sem

recebê-los como um dom (herança familiar). A pedra foi encarada por Joana como uma

força espiritual latente que, ao ser capturada através do pagamento a um mistério

considerado divino (deificado), não seria colocada à disposição dela, como ocorre nas

apropriações que os sacerdotes das regras del palo fazem de pedras de cemitérios e

substâncias desse ambiente. Como Joana enunciou ao retirar a pedra da sepultura, ela

comprava um morto para São Elias e não para si própria.

A ênfase sobre a maneira como se dá a apropriação da materialidade por meio da

qual seres humanos e espíritos interagem – e os sentidos que envolvem essas

apropriações – foi um aspecto mobilizado por Joana, Rosa e Gina para se diferenciarem

dos paleros e aqueles que fazem trabalhos maus (bruxaria). Para elas, os paleros

trabalham com morto, ou seja, possuem espíritos que seriam mortos comprados e os

colocam à sua própria disposição (e não sob o controle de seres de luz, divinizados e

herdados, como o Barão do Cemitério). Utilizando mortos, ou seja, realizando

apropriações mais ou menos semelhantes à de Joana, os seres humanos poderiam ainda

enviar esses espíritos, colocados ritualmente sob seu controle por meio da compra, para

prejudicar outros. Essa é uma das formas de compreender o que significa bruxaria.

Com a pedra sob a sua posse, Joana empreendeu ainda outras transformações.

Ela paramentou a pedra com um boneco e roupa feitos do tecido que pertenceu ao

marido em vida e vinculou o espírito a ela novamente, levando a pedra já vestida para

dormir junto de si no interior de um espaço doméstico caracterizado pela intimidade de

casal. Depois de esperar certo período, Joana concluiu que sua apropriação e recriação

material já teriam o efeito desejado. Com as roupas do marido e muito próxima dela,

aquele morto comprado se tornou o espírito de um afim. Na posse do que se tornou seu

afim espiritual, Joana então se dirigiu novamente à sepultura de São Elias. E lá pagou

novamente a esse mistério, agora para que mantivesse sob a sua guarda um novo morto,

o espírito de seu marido, artefato passível, então, de outras apropriações materiais e

relações mercantis depois de inserido na espacialidade fúnebre que habita o Barão.

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CADERNO DE IMAGEM (CAPÍTULO 5)

Imagem 25. Resguardo preso no alto da botânica de Rosa, sob a proteção dos mistérios. Plaza del

Mercado, Río Piedras, março de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 26. Resguardo preso no alto do portão principal da casa de Rosa, invocando a proteção dos

mistérios. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.

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223

Imagem 27. Ao fundo, pañuelo vermelho, proteção dos mistérios, amarrado na janela de uma casa vizinha

à de Rosa. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 28. Cruz desenhada com anil, para afastar as coisas más, na entrada de acesso à casa de Rosa.

Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 29. Tecidos presos ao teto no altar onde Armando trabalha ritualmente: uma proteção que invoca

os mistérios contras espíritos maus. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Terminar o último capítulo da tese com descrições sobre as pessoas, outros seres

humanos, e os mistérios a partir de uma série de interações e intervenções sobre um

universo cosmológico que não se reduz à 21 Divisão, permite-me fazer uma observação

que, acredito, perpassou todos os capítulos. Trata-se de salientar que a troca e o contato

com as entidades espirituais, independente de como essas sejam definidas, são tidos

como extensivos. Troca e contato aparecem como os pressupostos cosmológicos que

informam o cotidiano. E o que me parece ser o problema dos meus interlocutores

dominicanos e também dos próprios mistérios é como ambos administram isso. Ou, de

outro modo, como regulam as trocas e os contatos em que se fazem presentes seres

humanos, particularmente aqueles concebidos como pessoas, e uma miríade de

espíritos, dentre os quais esses seres de luz são alguns.

Ter partido da discussão sobre a noção antropológica de pessoa e a circulação de

dádivas me permitiu chamar a atenção para planos distintos em que essas trocas e

contatos podem ser experienciados. Com isso, quero observar que ao longo da tese seria

possível imaginar, a cada capítulo, perspectivas diferentes a partir das quais poderiam

ser observadas e conhecidas as densas e múltiplas relações que tentei descrever. Os

mistérios ocupam posições variadas em relação às pessoas, mas também quando são

consideradas as divisões e a ordem espiritual mais abrangente que essas entidades

chamam de 21 División; no interior da casa, coabitando esses espaços domésticos com

as primeiras, mas também no que nós, seres humanos, chamamos de planeta Terra. Do

mesmo modo, seria difícil pensar esse tipo de multiplicidade para a qual chamo a

atenção sem que houvesse deslocamentos no posicionamento das pessoas com as quais

eles interagem.

Procurei descrever, então, no primeiro capítulo, que engajamentos poderiam ser

mapeados a partir da premissa de que os mistérios são recebidos como um dom

transmitido por antepassados familiares. Para além da discussão sobre o que significava

tal dom, ou seja, que tipos de transferências poderiam ser mapeadas, procurei chamar a

atenção para as implicações disso para aqueles que se concebem como parte daquela

configuração relacional, que se definem como pessoas que têm os mistérios por causa

de suas famílias. Singulariza-ser por causa dessa forma de conexão implica, eu espero

ter conseguido demonstrar, experienciar um conhecimento sobre a alteridade com base

no próprio corpo e afetos variados. Mas quero sugerir que ao incorporar essa forma de

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parentesco há aí uma espécie de modelagem imperfeita. Pois se as pessoas e os

mistérios se reconhecem e agem partir da ideia de força (vital), isso não implica uma

reprodução acabada. Não há amálgamas do ponto de vista da incorporação dessa forma

de ‘relacionalidade’ mesmo quando se trata de montar ou subir. Os encaixes não são

exatos: há sobras (os mistérios transformam as pessoas em cavalos e falam da

perspectiva de quem tem conhecimento e autoridade sobre elas); há excesso (alguns

mistérios manifestam disposições que ultrapassam os desejos das pessoas, e atuam

desconsiderando isso); há quebras e interrupções (ter um mistério em cabeça é

reconhecer uma sobreposição, e não uma internalização no corpo, cuja cabeça é

ocupada pelo espírito); além disso, há extração de energia, pois os mistérios consomem

o sangue humano; e ainda há peso.

A partir dessas considerações, sinalizo que incorporar os mistérios, sob suas

diversas modalidades, cria uma variação entre posições – talvez fosse mais apropriado

falar em formas como se exprimem a agência e o que (ou quem) é produzido (é

objetificado): destacamento, instrumentalidade, experiências sobre poder e controle,

variação e transformação de sensibilidades e consumo de si eram reconhecidos

pelosmeus interlocutores dominicanos como sendo gerados durante os modos variados

de incorporação.

Eu procurei descrever também em termos de variação os agenciamentos que

pessoas e mistérios estabelecem no contexto das prestações rituais ao longo do segundo

capítulo. Talvez, aqui, na medida em que apontei para como contemporaneamente o

dom transferido se atualiza, os modos rituais de produção de reciprocidade e trabalho

tenham aparecido mais explicitamente como dinâmicas que descrevem fortalecimento

mútuo e alienação. E, eu espero, sem que com isso a cosmologia da 21 Divisão

assumisse a forma de uma ordem espiritual corrompida. Contrato e pagamento ritual

demonstram que algo (talvez, parte)128

da força recíproca que liga as pessoas e seus

espíritos foi colocada à disposição de outros, alheios a essas conexões. Essa também é

uma maneira de os meus interlocutores dominicanos se singularizarem como pessoas. E

é por meio das prestações rituais que eles conseguem criar formas de controle relativo

sobre seus espíritos, geralmente descritos como entidades que se impõem e intervêm

diretamente em suas vidas.

128

Definir isso literalmente me parece um desafio.

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Mas nos contextos das prestações rituais, essa espécie de modulação que torna

possível as pessoas interferirem sobre os mistérios depende da manipulação dos

serviços: substâncias alimentares e químicas entram nas composições que pretendem

fortalecer os espíritos herdados. Por sua vez através dessas formas de transferência

outras variações são produzidas: os serviços rituais nutrem e geram capacidade de

trabalho dos mistérios; intensificam e suavizam suas disposições cristalizadas como

espíritos. As relações prefiguradas, nesse sentido, são também refeitas por meio dessas

modulações, que tangenciam sempre a instabilidade e o inesperado.

Se as contrapartes humanas e espirituais atuam sob esses fundamentos, parece-

me interessante salientar que, como em outras cosmologias, linguagens e técnicas rituais

descritas no Caribe, particularmente os casos do vodu entre os haitianos e das regras del

palo em Cuba, há um universo conceitual e de experiência comum para aqueles que

vivem nesses mundos. Neles, como eu procurei discutir também no segundo capítulo,

em alguma medida alienar a outros pode ser vivido como uma relação que traz em

consigo uma chance de transbordamento, neste caso de retaliação que beira práticas de

predação. Parece-me que aqui há uma maneira singular de conhecer e lidar com a

instabilidade como uma forma de socialidade que se efetiva através dos modos de

atenção e trabalho ritual.

Acredito que no terceiro capítulo as modulações (ou, se quisermos, a variação e

amplitude) da atenção ritual alcançaram a sua forma mais concreta. E disso emerge

certa visão sobre a cosmologia 21 Divisão que só me foi possível mapear justamente

tentando descrever as perspectivas singulares que cada grupo de mistérios toma no

processo de interiorização na casa das pessoas. Tal variação e amplitude têm a ver com

os tipos de engajamento que essas mantêm com os mistérios. E quanto mais se entretêm

relações de atenção e trabalho com esses espíritos, mais os ambientes múltiplos dos

quais eles fazem parte são recriados nos altares.

Por causa dessas formas de materialização e ambientação dos mistérios, há uma

inflexão nesse capítulo, que se desdobra no capítulo seguinte. Pois simultâneo ao

engajamento com modos rituais que permitem a produção de reciprocidade e trabalho,

as pessoas que têm os mistérios dedicam-se a refazer antigos espaços de existência,

sejam aqueles referentes ao tempo em que os mistérios foram vivos, sejam aqueles que

recuperam seus lugares de existência como mortos. É dessa maneira que esses espíritos

se mantêm ao longo das gerações, e é assim que eles reclamam suas próprias

lembranças. Desse modo, enquanto as pessoas nos altares falam em trabalhar, nesses

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ambientes os mistérios se tornam capazes de lembrar. Parece-me que aqui há outra

alternância de pontos de vista, que remete a um trato com os espíritos que não é da

ordem da junção ou disjunção corporal, do fortalecimento ou da separação

(destacamento) que gera pagamento, mas sim de uma espécie de remediação: ainda que

mortos, para os mistérios é possível estabelecer também relações de intimidade com as

pessoas. Elas manipulam artefatos e substâncias nos altares que permitem aos mistérios

sentir e lembrar novamente; recuperar o paladar de acordo com seus gostos, mas

também cheiros, temperatura, percepções de altura e profundidade.

No quarto capítulo, as perspectivas desses espíritos, descritas anteriormente,

ganham novas dimensões à medida que, através das imagens dos santos, alguns

mistérios exprimem como se concebem. Produzindo uma espécie de metanarrativa ao se

apropriarem de imagens e de outros artefatos que geralmente são associados ao

catolicismo (e em alguma medida ao cristianismo), os mistérios parecem levar às

últimas conseqüências sacramentos, saberes e liturgias que lhes recusam a existência

enquanto mortos que fazem parte materialmente do mundo dos vivos. Festejando sob

essa condição, os mistérios não apenas dão graças a consagrações católicas e invocam

alguns de seus personagens religiosos. Eles se assumem também enquanto seres

divinos. Sob a perspectiva deles todos esses aspectos parecem assumir novos sentidos.

O último capítulo, a que fiz referência no início dessas considerações finais,

talvez seja o que melhor demonstre como se regulam as trocas e os contatos

generalizados entre vivos e vários mortos. Tomando ele como um contraponto dos

anteriores, há aí um comentário sobre os três primeiros. Isso porque se trata de práticas

rituais que informam sobre como são produzidas interrupções em contextos não apenas

instáveis, mas também precários. Os agenciamentos que descrevi sobre as técnicas que

visam a afastar ou espantar as coisas más do corpo e da casa informam sobre como

bloquear a entrada, impedir a passagem, o que é permitido fluir e aquilo que não é

permitido.

O caráter invasor desses espíritos invisíveis de algum modo comenta também as

relações prefiguradas que são atualizadas por causa de uma imposição dos mistérios;

relações que pesam, geram excessos, extraem sangue, criam ímpetos. E, que, por isso,

podem ser quitadas. Além disso, embora as situações etnográficas nesse capítulo não

versassem exatamente sobre ‘relações’ com os espíritos como um dom, a técnica ritual

que pretendia afastar um morto familiar comenta algumas das formas como a essas

podem se incorporar o expediente diversamente empregado do contrato.

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