i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS RIO DE JANEIRO 2014
i
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
MUSEU NACIONAL
ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ
SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS
RIO DE JANEIRO
2014
ii
Alline Torres Dias da Cruz
SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS
Volume 1
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção
do título de Doutor em Antropologia Social.
Orientadora: Profa. Doutora Olivia Maria Gomes da Cunha
Rio de Janeiro
2014
iii
Cruz, Alline Torres Dias da.
Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas / Alline
Torres Dias da Cruz. – 2014.
236f.: il.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, 2014.
Orientador: Olivia Maria Gomes da Cunha.
1. Dom. 2. Troca Ritual. 3.Pessoa. 4. Corpo. 5. Família.
6.Imigrantes da República Dominicana – Teses.
I. Cunha, Olivia Maria Gomes da (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social. III. Título.
iv
Alline Torres Dias da Cruz
SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS
MORADAS
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de
Doutor em Antropologia Social.
Aprovada em
Profa. Dra.Olivia Maria Gomes da Cunha (Orientadora)
PPGAS/MN/UFRJ
Prof. Dr.Marcio Goldman
PPGAS/MN/UFRJ
Prof. Dr.Eduardo Batalha Viveiros de Castro
PPGAS/MN/UFRJ
Prof. Dra.Patricia Birman
IFCH/Departamento de Antropologia/UERJ
Profa. Dra.Antonádia Monteiro Borges
ICH/Departamento de Antropologia/UnB
Prof. Dra. Giralda Seyfert (Suplente)
PPGAS/MN/UFRJ
Profa. Dra.Ana Claudia Cruz (Suplente)
ICHF/UFF
v
CRUZ, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Rio de
Janeiro: 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2014.
A tese versa sobre a manutenção ritual cotidiana dos mistérios, espíritos que pertencem
aos panteões do vodu, por imigrantes da República Dominicana, chamados de pessoas
que têm os mistérios, que vivem em Porto Rico. O material etnográfico realça
os mistérios como uma espécie de herança familiar em circulação. Pessoas e mistérios
descrevem as experiências multifacetadas e densas entre eles com categorias como dom,
atender, trabalhar, pagar, corpo e consumo. Deixando-se conduzir pela trama
relacional que essas categorias informam, a tese tem como objetivo inicial demonstrar a
maneira singular como a noção de pessoa é compreendida pelos interlocutores, vivos e
mortos, que tomam parte nesta etnografia. O segundo objetivo é discutir os modos de
atenção ritual enquanto formas de troca que produzem dependência recíproca e trabalho
entre os dominicanos e seus espíritos, a partir da manipulação de substâncias e objetos
cuja importância reside em seus efeitos sensíveis. Tomando as práticas de sensibilização
dos mistérios como técnica ritual fundamental, o terceiro objetivo é discutir como certa
materialidade – artefatos, imagens e substâncias – é interiorizada nas casas, visando-se à
recriação de certas paisagens de lembrança para os mistérios, que assim as habitam;
bem como manipulada nos ambientes domésticos como dispositivos de afastamento de
tantos outros.
Palavras-chave: Dom, Troca Ritual, Pessoa, Corpo, Família, Imigrantes da República
Dominicana
vi
CRUZ, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Rio de
Janeiro: 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2014.
This thesis discusses the daily care of misterios (mysteries); spirits that belong to the
vodou pantheon, by immigrants from the Dominican Republic that live in Puerto Rico
called personas que tienen los misterios (people that have the mysteries). The
ethnographic material reveals these misterios as a kind of family legacy in circulation.
People and misterios describe their multifaceted and dense experiences in between them
with categories such as don (divine gift), atender (to attend), trabajar (to work), pagar
(to pay), cuerpo (the body) and consumo (consumption). The initial objective of the
thesis is to demonstrate the singular manner in which the notion of person is
comprehended by the interlocutors, alive and deceased, that take part in this
ethnography, through the relational plot that these categories inform. The second
objective is to discuss the forms of ritual attention as ways of exchange, which produce
a reciprocal dependence and work in between Dominicans and their spirits through the
manipulation of substances and objects whose importance resides in their sensitive
effects. Taking the misterios awareness practices as a fundamental ritual technique, the
third objective is the discussion of how certain materials- artifacts, images and
substances- are interiorized in houses, achieving a recreation of the misterios scenery
that live in them; and also how these things are manipulated in the domestic ambience
as devices of alienation from so many others.
Keywords: Gift, Ritual Exchange, Person, Body, Family, Dominican Republic
Immigrants
vii
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
1.1 Relações.....................................................................................................................14
1.2 Configurações............................................................................................................20
1.3Trocas.........................................................................................................................22
1.4 Des(Encontros)..........................................................................................................25
1.5 Interpelações..............................................................................................................32
1.6 Trânsitos e travessias.................................................................................................34
1.7 Capturas ou enredada pela própria trama..................................................................39
CAPÍTULO 1 DOM EM CIRCULAÇÃO
1.1 AS PESSOAS E SEUS MISTÉRIOS
1.1.1 A missão e os caminhos de Joana.......................................................................45
1.1.2 A árvore de Gina.................................................................................................47
1.1.3 No meio disso: Rosa e Diogo...............................................................................49
1.2 CONECTANDO ‘PESSOAS’, FAMÍLIA E ESPÍRITOS......................................51
1.3 INCORPORANDO O PARENTESCO...................................................................59
1.3.1 Montar ou subir: percursos do dom no corpo...................................................60
1.3.2 Objeto e Cavalo.....................................................................................................65
1.3.3 Há uma metresa em cima.....................................................................................68
1.3.4 Não governo de si..................................................................................................70
1.3.5 Sonhos e outras formas de incorporação...........................................................73
1.3.6 Vicissitudes do dom: transitando por e incorporando habitus humanos e
animais...........................................................................................................................73
1.3.7 Consumo dos corpos............................................................................................77
CAPÍTULO 2 FLUXOS, DIMENSÕES E TRANSBORDAMENTOS
2.1SOBRE COMO GERAR LUZ, FORÇA E OUTRAS DISPOSIÇÕES
.........................................................................................................................................81
2.2 PRESTAÇÕES RITUAIS: SUAS CONEXÕES, SEUS EFEITOS
2.2.1 Servir e Conectar..................................................................................................85
2.2.2 Servir e Alienar.....................................................................................................89
2.2.3 Dos serviços que geram revolta...........................................................................96
2.2.4 Fazer chegar para trabalhar..............................................................................100
2.2.5 Pagar e adocicar: táticas de um plano ritual...................................................109
2.2.6 Tateando mistérios e divisões............................................................................113
CADERNO DE IMAGENS
CAPÍTULO 3 A CASA E OS ALTARES: INCORPORANDO TEMPOS,
ESPAÇOS, RECRIANDO PAISAGENS MNEMÔNICAS
3.1 ALGUMAS AMBIENTAÇÕES........................................................................... 130
3.2 DIVISÕES INCRUSTADAS NA TERRA
3.2.1 Os guedeses e suas sensações.............................................................................136
3.2.2 Escavar a terra, ver do mirante........................................................................139
3.2.3 Rebeldes da terra, do rio e do monte................................................................141
3.3 HORIZONTES EFÊMEROS: OS SANTOS DE CIMA E SEUS ARTEFATOS
......................................................................................................................................142
3.4AS COORDENADAS DAS SUBSTÂNCIAS E DOS MODOS DE SERVIR
......................................................................................................................................145
viii
3.5 MANIPULANDO SOCIALIDADES..................................................................146
3.6 SINCRONIZAÇÃO E HIERARQUIAS............................................................. 152
CADERNO DE IMAGENS
CAPÍTULO 4 APROPRIAÇÕES E SUBVERSÕES ESPIRITUAIS
4.1 NARRATIVAS VISUAIS ..................................................................................166
4.1.1Uma guedé e suas imagens................................................................................170
4.1.2 Um quadro, dois oguns....................................................................................172
4.2 A FESTA DE SÃO MIGUEL..............................................................................173
4.2.1 Horas Santas.....................................................................................................176
4.2.2 Festejando como morto....................................................................................178
4.2.3 Mistérios, doutores da igreja e antepassados...................................................184
4.2.4 Fogo, chaves e São Pedro.................................................................................186
4.2.5 Das bênçãos em utensílios quebrados................................................................187
4.3 TRANSFORMAÇÕES........................................................................................189
CADERNO DE IMAGENS
CAPÍTULO 5 AS COISAS MÁS NA CASA
5.1 SOBRE ALGUNS ESPAÇOS PRECÁRIOS....................................................196
5.2 BOTÂNICAS: ENTRE MATERIALIDADES E COSMOLOGIAS................203
5.3 UMA SUSPEITA DE BRUXARIA: ATIVANDO ODORES ACRES, AFASTANDO
ESPÍRITOS INVISÍVEIS...........................................................................................205
5.4 TÉCNICAS ESPECTRAIS................................................................................210
5.4.1 Outras receitas para espantar os mortos......................................................215
5.4.2 Joana e seu morto...........................................................................................217
5.4.3 Comprando com São Elias: de pedras a mortos ou de anônimos a afins
..................................................................................................................................218
CADERNO DE IMAGENS
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 226
REFERÊNCIAS....................................................................................................230
ix
A Luiz Carlos Dia da Cruz
(In Memoriam)
x
Agradecimentos
Essa tese é produto de uma série de engajamentos individuais e coletivos.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao CNPq a concessão da bolsa de doutorado
que permitiu a realização do curso de pós-graduação e a condução do trabalho de campo
etnográfico em Porto Rico.
À minha orientadora, Olivia Maria Gomes da Cunha, pela qualidade acadêmica com
que conduziu os cursos que me ambientaram à literatura e aos assuntos relacionados à
antropologia caribenha, e com que orientou a tese. A todos os colegas do Laboratório de
Antropologia e História (LAH/MN) pela partilha de experiências que se desenrolaram
em águas caribenhas.
Aos professores Marcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, Patricia Birman e
Antonádia Borges pela participação na banca.
Ao Instituto de Estudios del Caribe (IEC) da Universidad de Puerto Rico-Recinto Río
Piedras, especialmente a Humberto García Muñiz e Ovidio Torres, pelo apoio
institucional e incentivo ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
A Juan Giusti Cordero pelo imenso apoio acadêmico e pessoal em Porto Rico.
A Dale Tomich pelos ensinamentos valiosos durante o curso que proferiu no
PPGAS/MN em 2009.
À equipe administrativa da Universidad de Puerto Rico-Recinto Río Piedras e do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,
especialmente à Carla Ramos, Alessandra, Fernanda Alves, da Biblioteca Francisca
Keller, e à Adriana de Alcantara, Carla Cardoso, Bernardo Carvalho e Isabelle, da
Secretaria Acadêmica.
Durante os anos em que estive no curso de doutorado conheci pessoas que contribuíram
muito nos caminhos que trilhei dentro e fora dele. Sou muito grata a Waldemir Rosa,
Mariana Renou, Marcelo Mello, Rodica Weitzman, Handerson Joseph, Magdalena
Toledo, Carlos Gomes, Alessandro Angelini. Outras pessoas especiais, a quem sou
muito grata são Alain Kaly, Anita Kaly, Aline Camargo Torres, Carla Ramos, Clícea
Miranda, Alea Melo, Henri Sidney, Emmanuelle Kadya Tall, Jehyra Asencio, Jose
Manuel Gonzalez Cruz, Beatriz Martins Moura, Telma Bemerguy, Anderson Lucas,
Rosemeire Sanca, Abel Sanca, Francisco Carlos Antonio da Conceição.
Pela abertura de portas e caminhos, levando-me para dentro de suas casas, que os meus
interlocutores dominicanos e seus mistérios efetuaram para mim, Muchas Gracias!
Pela força daqueles que são também a minha força, amor e gratidão para sempre: à
minha mãe, Marlene Torres da Silva Dias da Cruz, ao meu pai, Luiz Carlos Dias da
Cruz (In memoriam), a Luiz Gustavo Torres Dias da Cruz e Ellaine Torres Dias da
xi
Cruz, meus irmãos, ao meu tão pequeno e já tão grande filho Guilherme Biagui Torres
Dias da Cruz Kaly, a Gabriel Torres Dias da Cruz Fernandes e Bernardo Torres Dias da
Cruz Fernandes, nossos gêmeos queridos.
Levado ao universo das simbioses, metido até o
pescoço em poços cujas águas eram mantidas em
perpétua espuma pela queda de retalhos de ondas,
rasgadas, laceradas, rompidas na rocha viva e
mordente do dente-de-cão, Esteban maravilhava-se
ao observar como a linguagem, nessas ilhas, tivera
de recorrer à aglutinação, à amálgama verbal e à
metáfora para traduzir a ambiguidade formal de
coisas que participavam de várias essências. (Alejo
Carpentier, O Século das Luzes, p. 191).
xii
Lista de Imagens
Imagem 1. Altar para os mistérios na casa de Rosa.....................................................122
Imagem 2. Altar para os mistérios na casa de Rosa. Santa Marta A Dominadora e São
Elias, espíritos guedeses...............................................................................................123
Imagem 3. Velas para os santos. .................................................................................124
Imagem 4. Altar para os mistérios de Gina. Serviço de mel com tabaco para tranquilizar
Jean Crimnel (São Sebastião), espírito petro. .............................................................125
Imagem 5. Altar para os mistérios na casa de Joana....................................................126
Imagem 6. Altar para os mistérios de Gina. Lámpara divisional em recipiente circular
de vidro, serviço para a 21 Divisão..............................................................................127
Imagem 7. Altar para os mistérios na casa de Armando. Serviço para Metresili (Virgem
A Dolorosa)..................................................................................................................128
Imagem 8. Figura em papel de Nossa Senhora da Aparecida......................................129
Imagem 9. Altar para os mistérios na casa de Raul. Divisão dos guedeses.................155
Imagem 10. Altar para os mistérios na casa de Raul. Serviços para os guedeses São
Expedito/Guedé Limbó (à esquerda) e Santa Marta A Dominadora
......................................................................................................................................156
Imagem 11. Altar para os mistérios na casa de Armando. Divisão dos guedeses: São
Expedito, São Elias e Santa Marta A Dominadora, santos da terra, e alguns trabalhos e
serviços rituais..............................................................................................................157
Imagem 12. Altar para os mistérios índios na casa de Armando, que escavou a terra sob
o chão e as paredes para ambientar esses espíritos .....................................................158
Imagem 13. Altar para os mistérios índios contíguo aos espíritos guedeses e a outros
mistérios do rio............................................................................................................159
Imagem 14. Boneca que seria transformada ritualmente no mistério Anacaona
(índia)..........................................................................................................................160
Imagem 15. Mistério índio, cercado por alguns artefatos, e contíguo a São João Batista,
um ogun, e a miniaturas de galos ...............................................................................161
Imagem 16. Chapéu em tecido azul confeccionado para São Santiago/Ogun Balendyó, e
vermelho, em palha, para Papa Candelo (Candelo Sedifé)........................................162
Imagem 17. Artefatos de Candelo Sedifé: machete e um tipo de sacola (macuto)
....................................................................................................................................163
Imagem 18. Santas de cima (metresas) a imagem de Gran Toroliza/Jesus da Boa
Esperança, espírito petro do monte.............................................................................164
Imagem 19. Altar para os mistérios com os santos de cima.......................................165
Imagem 20. Quadro de Ogun Balendyó/São Santiago Apóstolo tendo atrás Ogun
Ferraile, cavaleiro com armadura e espada.................................................................191
Imagem 21. Altar para a festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan..........................192
Imagem 22. Serviço ritual para os mistérios................................................................193
Imagem 23 Serviço ritual (feijão e arroz, batata doce e arenque) para Guedé Limbó (São
Expedito) no dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan..................................194
Imagem 24. Objetos de Guedé Limbó: ao fundo, seu macuto (sacola de palha), seu
chapéu feito com esse mesmo material e seu lenço preto............................................195
Imagem 25. Resguardo preso no alto da botânica de Rosa..........................................221
Imagem 26. Resguardo preso no alto do portão principal da casa de Rosa
......................................................................................................................................222
xiii
Imagem 27. Pañuelo vermelho, proteção dos mistérios, amarrado na janela de uma casa
vizinha à de Rosa..........................................................................................................223
Imagem 28. Cruz desenhada com anil, para afastar as coisas más, na entrada de acesso à
casa de Rosa................................................................................................................224
Imagem 29. Tecidos presos ao teto no altar onde Armando trabalha ritualmente
.....................................................................................................................................225
xiv
INTRODUÇÃO
1.1 Relações
– Cada cabeça é um mundo, e os mistérios pegam a que eles querem; – Esses
santos são bem interessados, mesmo se for uma vela, se você prometeu a eles, você tem
que dar, ou seja, são bem interessados...1
Ao ouvir esses comentários, respectivamente de Gina e Joana, em momentos
diferentes do trabalho de campo que conduzi em Porto Rico,2 entre 2010 e 2011
3 tinha a
intenção de escrever uma tese sobre a relação dos dominicanos, dentre eles Gina e
Joana, com os mistérios, espíritos transmitidos a elas pelos seus antepassados
familiares. Entretanto, ainda não era capaz de imaginar o resultado a que chegaria logo
que me dediquei a produzi-la: ao reler as anotações de campo; ao grifar as expressões e
termos que eram recorrentes no convívio com meus interlocutores e ao comentá-los
numa espécie de diálogo sobreposto e paralelo com eles e comigo mesma, durante e
depois da pesquisa; ao relembrar cenas, gestos, vozes e cheiros enquanto eles agiam e
explicavam-me (ou não) o que faziam; ao rever fotografias e ao redescobri-las a partir
de um novo olhar acerca das ‘relações’ entre ‘pessoas’ e mistérios.
Os mistérios são espíritos que devem ser atendidos ritualmente pelos meus
interlocutores dominicanos porque são concebidos como uma herança familiar. Alguns
desses espíritos são servidos também pelos haitianos. Na literatura antropológica sobre
o vodu no Haiti, muita mais extensa e antiga que a produção antropológica sobre a
República Dominicana (DEIVE, 1975; ALEGRÍA-PONS, 1993; DAVIS, 1987;
SÁNCHEZ-CARRETERO, 2005a, 2005b, 2008), tais entidades são chamadas de
mystères/mystè (HERSKOVITS, 1971, p. 78, 80, 89, 99; DEREN, 2004, p. 29;
1 Ao longo desse trabalho farei uso de alguns sinais gráficos para diferenciar os significados, as ênfases, e
os diferentes contextos em que termos e expressões foram utilizados por mim, pelos meus interlocutores,
e os autores citados. Termos e expressões utilizados pelos meus interlocutores aparecerão em itálico.
Aspas duplas identificarão as citações e termos utilizados pela bibliografia. Utilizarei aspas simples
quando for minha intenção enfatizar certos termos. Termos em espanhol ou em crioulo haitiano que não
são pronunciados pelos meus interlocutores serão mantidos sem grifos e acompanhados, quando for
necessário, de tradução entre parênteses. 2 Território colonial espanhol desde o século XV ao lado de outras possessões coloniais espanholas
(Cuba, Filipinas e pequenas ilhas do Pacífico), Porto Rico sofreu intervenção norte-americana e foi
anexado aos EUA em fins do século XIX. Atualmente seu estatuto jurídico é o de Estado Livre Associado
(ELA) ao governo norte-americano. 3 Na primeira viagem, fiquei em Porto Rico por quase três meses, entre fevereiro e abril de 2010. Na
segunda, permaneci por quase seis meses, entre setembro de 2010 e março de 2011. Ainda nesta
Introdução descreverei as condições de produção dos dados etnográficos da tese.
15
MÉTRAUX, 2007, p. 66), de loa/lwa (espíritos) (MÉTRAUX, 2007, p. 13, 53;
RICHMAN, 2008, p. 22; MCCARTHY BROWN, 2001, p. 5); de senj/sen-yo (santos)
(DEREN, 2004, p. 29; MCCARTHY BROWN, 2001, p. 6) e ainda de anjos
(MCCARTHY BROWN, 2001, p. 111). Além de mistérios, meus interlocutores usam
santos e arcanjos para fazer referência a esses espíritos.
Haiti e República Dominicana não compartilham somente uma mesma ilha no
Caribe, chamada de Hispaniola, mas ‘pessoas’, espíritos, experiências de sujeição
colonial, de trabalho (com os deslocamentos migratórios e imigratórios) e narrativas
históricas sobre o passado escravista. Até fins do século XVII a ilha Hispaniola era
ocupada apenas pela Espanha e, nessa época, foi divida e cedida à França, que criou na
parte ocidental a colônia de Saint Domingue, atual Haiti. Haiti e República Dominicana
só se consolidaram como nações independentes durante o século XIX. O Haiti do
colonialismo francês e a República Dominicana, brevemente do colonialismo espanhol
e em seguida do próprio Haiti. Ocupações militares – às quais se adicionou a dos EUA,
em ambos os países, nas primeiras décadas do século XX –, confrontos armados,
massacres, interdições territoriais, e racismo, que perduram até hoje, caracterizaram as
relações entre as duas nações.
Atualmente, dominicanos que descendem de haitianos não têm direito à
cidadania na República Dominicana por uma decisão da alta corte do judiciário,
efetivada em setembro de 2013. Apreensão de documentos civis e deportação são
algumas das ações violentas a que os descendentes de haitianos, nascidos na República
Dominicana, estão sendo submetidos pelo governo desse país ao longo dos últimos
meses.
A atenção para o que diziam meus interlocutores e a tarefa de percorrer uma
literatura que pudesse iluminar e permitir-me imaginar de novo, não apenas as
experiências das ‘pessoas’ com as quais convivi, mas também as minhas junto a elas,
levaram-me a escrever um trabalho em que, eu espero, são as ‘relações’ que se fazem
presentes. Mas o fato de que essa ideia já se insinuava durante o trabalho de campo não
significa que eu lidei com ela do mesmo modo.
Eu precisei fazer uma opção teórica ao redigir a tese, cujos personagens
principais são os interlocutores dominicanos e seus espíritos chamados de mistérios. E
essa opção tem a ver com uma imposição do que veio se tornar o material etnográfico
da tese. Pois, apesar dessa aparente definição de duas unidades discretas – dominicanos
e mistérios –, quase nada que descrevo concerne a agências independentes.
16
Com isso, quero destacar que não se trata simplesmente de pensar essas duas
contrapartes da pesquisa, ‘humanas’ e ‘não-humanas’, como agências independentes
que interagem ou entram em contato indiferentes a qualquer forma de lastro. Imaginar
isso significaria evocar os meus interlocutores dominicanos e os mistérios como seres
mais ou menos autônomos. E tal abordagem, parece-me, seria equivocada face às
narrativas e aos argumentos que me foram explicitados e que apresentarei ao longo dos
capítulos.
Essa tese é sobre homens e mulheres da República Dominicana que vivem em
Porto Rico e atendem e trabalham ritualmente os mistérios porque seus avós, tios e pais
o fizeram (ou ainda o fazem). É dessa perspectiva – e ela não exclui a existência de
outra, como discutirei no primeiro capítulo – que o material etnográfico se afirma.
Diante disso, o que enfatizo é que os modos de atenção e trabalho rituais que serão
descritos reivindicam a existência de outros agenciamentos para explicar a sua
realização atual. Esses agenciamentos são, às vezes, descritos como temporalmente
anteriores, em outros casos não, mas ainda assim se referem a “relações prefiguradas”
(STRATHERN, 2009, p. 332; 1999, p. 39-40) de antepassados familiares com os
mistérios. São relações prefiguradas que tornam possíveis as interações contemporâneas
que descrevo em boa parte da tese. E é a partir dessa espécie de pano de fundo que
proponho que um dos objetivos desse trabalho, o mais geral deles, é problematizar a
transmissão familiar dos mistérios. Assim chamo a atenção do leitor para um processo
de singularização de ‘pessoas’ afeito a esse tipo de transferência de espíritos.
Os caminhos que percorro para problematizar isso têm a ver com algumas
perspectivas teóricas. Uma delas é aquela proposta por Marilyn Strathern, pois o que
chamo de singularização da ‘pessoa’ visto da perspectiva da transmissão familiar dos
espíritos tem a ver justamente com uma tentativa de pensar meus interlocutores
dominicanos como um “lócus plural e compósito de relações [...]”. “A pessoa singular”
[como Marylin Strathern enfatizou para as concepções melanésias], pode ser imaginada
como um microcosmo social.” (STRATHERN, 2009, p. 40-41).
Tento apropriar-me dessa ideia, que Strathern sintetiza como a de uma
“socialidade generalizada” contida na “pessoa” (do ponto de vista de seus interlocutores
da Melanésia), para refletir sobre o material etnográfico, por duas razões: uma delas tem
a ver com a transmissão dos mistérios, a outra com a maneira como meus interlocutores
dominicanos se definiam (ou definiam outros) quando pretendiam informar a ‘relação’
17
(ou melhor, ‘as relações’) sobre as quais tento produzir uma compreensão
antropológica.
Dieterlen (1973, p. 9-10, 12) observou no pronunciamento de abertura de um
colóquio internacional sobre a “noção de pessoa” na chamada “África Negra” a
influência do artigo de Marcel Mauss (1938) para as reflexões que viriam problematizar
esse assunto. Tal influência ocorreu, basicamente, em contextos de pesquisa etnográfica
que, para os pesquisadores, não eram associados às culturas ocidentais, como a
Melanésia, com o trabalho de Maurice Leenhardt, e a África Ocidental, com o trabalho
de Marcel Griaule sobre os Dogon.4 Goldman (1996, p. 84, 88) salientou, no entanto,
que a insistência no problema da “pessoa” poderia refletir uma inquietação ocidental.
Para ele, a centralidade de uma reflexão como essa para outras culturas deveria, antes,
ser algo questionado. Ele ainda chama a atenção que o consagrado artigo de Mauss
indica duas direções para as pesquisa antropológicas sobre tal noção, uma linha
evolutiva e outra relativista.
O que tento fazer a partir do material etnográfico da tese é demonstrar certos
modos de conhecer e experienciar os mistérios como alteridades, mas não apenas, uma
vez que esses espíritos não são simplesmente ‘outros’, mas igualmente agências que
geram afetos diversos nas ‘pessoas’, o que cria para elas modos de vida caracterizados
pela instabilidade e a variação.
Para isso tento descrever certas configurações relacionais em dimensões
diferenciadas que se contrastam. É por meio dos contrastes entre essas dimensões, em
que os meus interlocutores dominicanos e os mistérios interagem ou agenciam, que os
primeiros, as ‘pessoas’ se singularizam. Carsten (1995, p. 223-224), por exemplo,
observou também que a noção de pessoa orientou as investigações antropológicas entre
as sociedades da Oceania, mas o investimento sobre as relações de troca e transações
gerou um caminho de análise focado na transitoriedade e na capacidade de
transformação entre “pessoas” e “coisas”. Enquanto que a parte oeste do continente
africano, quando comparada à produção antropológica sobre a Melanésia, parece ter
ficado à sombra de tal perspectiva nas monografias clássicas, que reverberavam
compreensões mais ou menos imutáveis da pessoa. Como será visto é justamente
tentando pensar o material da tese à luz das discussões sobre a circulação de dádivas e a
4 Sobre uma reflexão antropológica que procura pensar a noção de pessoa vinculada ao pensamento
ocidental liberal articulada ao tráfico atlântico de escravos, e às novas formas de conceituar tal noção
atualmente a partir das experiências de transplantes de órgãos e de captura de despojos humanos em
práticas religiosas afro-cubanas cf. Palmié (2006).
18
noção de “pessoa melanésia” que chamo a atenção para a alternância e a alteração que
são criadas nas relações entre meus interlocutores, ‘humanos’ e ‘não-humanos’ durante
o trabalho de campo.
Para facilitar o desenvolvimento da argumentação, explicito antes a segunda
razão que pautou minhas escolhas teóricas.
A proposição de uma discussão que considerasse a noção antropológica de
pessoa, mesmo considerando as ressalvas de Goldman, tem a ver com uma observação
que fiz logo no início do trabalho de campo. Eu notei que pessoas que têm os mistérios
era a maneira como meus interlocutores dominicanos se expressavam para sinalizar
aqueles e aquelas que mantinham certos vínculos com esses espíritos. De outro modo,
em suas interações e comentários correntes, eles empregavam termos em espanhol como
la gente e/ou uno (as pessoas e alguém em português). O que quero dizer com isso é
que o termo persona (pessoa) emergia quase sempre com um sentido mais circunscrito.
Tal termo caracterizava uma ligação com aqueles espíritos e informava uma
compreensão sobre a posse dessas entidades, com o emprego do verbo ter. Em sentido
amplo e costumaz, o que eu ouvia eram os termos la gente e uno.
Ao perceber isso, comecei a me questionar que pessoas que têm os mistérios
poderiam ser essas. De fato, com essa indagação, eu pressupus uma separação radical
entre “mim” e “eles”. Neste momento, implicitamente tinha como uma espécie de
premissa antropológica que “[...] tomando por ponto de partida um dos sentidos que a
tradição ocidental tem dado à noção [de pessoa], haveria o risco de encerra-[lá] em uma
problemática de inspiração judaico-cristã que seria talvez completamente estranha aos
modos de pensamento das sociedades da África Negra” (CARTRY, 1973, p. 19); e eu
poderia, ingenuamente, dizer, caribenhas.
No entanto, como ressaltou Trouillot (1992, p. 21),
[...] quando Tylor publicou o primeiro livro geral de antropologia em inglês,
em 1881, Barbados tinha sido ‘britânico’ por dois séculos e meio, Cuba tinha
sido ‘espanhola’ por quase quatro séculos, e o Haiti era um estado
independente por três gerações, após um longo século francês em que foi o
responsável por mais da metade do comércio externo da metrópole’.
Segundo Trouillot, dificilmente haveria, no Caribe, lugares para olhar para os
“primitivos”. Nesse sentido, a própria existência da “região” questionou a dicotomia
Ocidente/não-Ocidente e a categoria de nativo sob as quais a antropologia estabeleceu
suas premissas. O fato de as sociedades caribenhas serem inerentemente coloniais, ele
argumenta, não diz respeito apenas à constatação de que todos os territórios caribenhos
19
foram conquistados por um ou outro poder ocidental, nem que são as colônias mais
antigas do Ocidente e que sua colonização foi parte do processo material e simbólico
que propiciou a emergência do Ocidente como o conhecemos. Para Trouillot, as
características sociais e culturais dessas sociedades não podem ser compreendidas ou
descritas sem referência ao colonialismo. Conforme ele, essa inescapável característica
impede a ressurreição do nativo, mesmo quando o colonialismo não é evocado
explicitamente. E considerando-se que a antropologia prefere situações de “pré-contato”
– ou cria situações de “não-contato” – “o Caribe é nada a não ser contato.”
(TROUILLOT, 1992, p. 22).
Diante dessas implicações epistemológicas, o questionamento do estatuto
ontológico da pessoa que têm os mistérios, que discuto no primeiro capítulo, não
significou somente uma inquietação intelectual minha e da literatura sobre as
socialidades caribenhas. Essa era uma inquietação que os meus interlocutores também
manifestaram para mim, como descreverei mais à frente. Alguns deles também se
indagavam sobre os sentidos de se conceber e viver como tais pessoas, e, nesse sentido,
submetiam seus próprios modos de vida à crítica, à reflexão e ao pasmo. Mas, além
disso, tomei a noção antropológica de pessoa como uma ferramenta analítica rentável
porque a transmissão familiar desses espíritos, do ponto de vista dos meus interlocutores
(vivos e mortos), não se separa de um tipo de engajamento que eles chamam de atender
e trabalhar os mistérios.
Nesse sentido, ‘pessoa’ é um termo importante porque os dominicanos que
conheci o mobilizam para aludir ou ressaltar uma confluência de concepções que
recaem sobre certos seres humanos, e não todo e qualquer um. Mas sua importância se
deve ao fato de que, ao mobilizar esse termo, eles sinalizam que ter esses espíritos
implica a realização de uma série de atividades, tarefas, comprometimentos, bem como
inconvenientes e controles. Dentre essas atividades e tarefas, algumas são descritas
como trabalhar.
A análise dos sentidos conferidos à ideia de trabalhar os mistérios, como me foi
enfatizado durante o trabalho de campo, pode aproximar-se do debate que Marilyn
Strathern propôs sobre as relações sociais que estariam encerradas dentro da “pessoa
melanésia” e não fora dela. Procuro argumentar que assumir e trabalhar esses espíritos
significa atualizar uma série de ‘relações’ que os antepassados familiares entretiveram
com os mistérios. São esses vínculos que vêm à tona quando se diz que se é uma pessoa
20
que tem esses espíritos. Trata-se, então, de sinalizar para certa configuração relacional
no interior da qual meus interlocutores dominicanos se concebem.
1.2 Configurações
A essa configuração eles atribuem o nome de família. Esse é o universo de
referência e existência no interior do qual a atenção e o trabalho ritual são entretidos e
justificados. 5 O assunto da transmissão familiar dos espíritos, claro, não é novo.
Uma
extensa literatura sobre o que se convencionou chamar de práticas vodu no Haiti
(HERSKOVITS, 1971 [1937]; HURSTON, 2008 [1938]; MÉTRAUX, 2007 [1958];
DEREN, 2004 [1953]; MCCARTHY BROWN, 2001; RICHMAN 2008) sublinhou que
as diferentes gerações com as quais esses antropólogos lidavam serviam (alimentavam)
espíritos que já vinham recebendo atenção ritual de seus antepassados familiares nas
terras em que viviam há anos. E tal investimento etnográfico completará, daqui a pouco,
nada menos que um século.
Mas se o assunto da transmissão familiar dos espíritos não é novo, ele foi quase
sempre tratado como um dado. Não teve apelo de problema em quase todas as
etnografias clássicas e contemporâneas sobre religiões afro-caribenhas e práticas rituais.
Mesmo em uma etnografia como a de Karen Richman, uma das mais recentes e
importantes sobre o vodu no Haiti e na chamada diáspora. Richman propõe uma
discussão sobre a transferência familiar dos espíritos. Essa transferência perpassa todo
um emaranhado de práticas rituais, definição de obrigações entre espíritos herdados,
parentes e manutenção da posse das terras, regulação de estilos de vida, bem como
concepções sobre família e trabalho assalariado no Haiti e no exterior. No entanto, todos
esses aspectos são subsumidos a uma análise sobre manutenção substantiva.
O que quero dizer com isso é que Richman encarou a transmissão dos espíritos
nas famílias haitianas de Léogâne, comuna do sul do país, como um tipo de
transferência de substância. “Substância”, ela diz, “tem a ver com coisas internas e
inseparáveis das pessoas” (RICHMAN, 2008, p. 148). Meu argumento mais geral, como
eu chamei a atenção tendo os argumentos de Strathern (2009) em mente, é demonstrar
5 Esse é um assunto que caracteriza várias coletividades vinculadas como família no Caribe. Kerns (1997,
p.1-2) chama a atenção, em sua etnografia sobre os Black Caribs (Garífunas), em Belize, para os rituais
que pretendem lembrar os parentes lineais mortos, que ficam sob a responsabilidade das mulheres mais
velhas, mãe dos vivos e filhas dos mortos. Ao organizarem os procedimentos rituais, essas mulheres
coletam fundos para realizá-los, e assumem os papéis mais importantes neles, protegem e representam
seus filhos, netos e outros parentes para os ancestrais. Já Besson (2002, p.30) indicou que “o complexo
religioso-mágico afro-jamaicano do obeah-myal, baseado em elaborados rituais mortuários que refletiam
a percepção de um mundo espiritual ativo incluindo parentes ancestrais, reforçou o sistema de
transmissão da terra costumeiro com o padrão de sepultamento baseado na descendência cognática.”
21
que essa transmissão tem a ver justamente com “coisas” que não “são internas e
inseparáveis”.
O esforço analítico, então, é chamar a atenção para o que meus interlocutores
dominicanos entendem por trabalhar os mistérios: um modo de vida cujos
desdobramentos são variados e densos. Esses modos de vida dizem respeito a práticas
de transferência que não se restringem ao sangue, entendido enquanto substância
transmitida linearmente dos antepassados a seus descendentes e que garantiria a
reprodução da família e dos espíritos, nem aos serviços, substâncias alimentares
oferecidas aos mistérios para mantê-los.
Tomo a ideia de trabalhar os mistérios (ritualmente) como um conjunto de
‘relações’ – e não apenas de substância – passível de ser transferido àqueles que se
concebem como família. Isso significa que o pano de fundo teórico (e não etnográfico)
que mobilizo recupera uma discussão que como a própria Strathern (2009) e também
Janet Carsten (2011, p.22) indicaram, liga-se às considerações de Roy Wagner sobre os
Daribi. Especificamente quando ele observa que “a troca de coisas destacáveis,
separáveis, se encontra em oposição ao fluxo da substância interna (linear) [...] [tais
coisas] fluem na troca através de relações não unificadas internamente por substância”
(STRATHERN, 2009, p. 310apud WAGNER 1977a, p. 632). Daí resulta uma “pessoa
melanésia”, Strathern aponta, constituída por uma separação entre relações internas e
externas.
As conseqüências que derivam dessas convenções melanésias direcionam o
debate de Strathern (2009, p. 311) para considerações que são distintas daquelas que eu
pretendo apontar. Ela chama a atenção, por exemplo, para o fato de que essa separação
convencional, como indicou Roy Wagner, tem uma equivalência (por causa da
capacidade de “substituição” e “replicação”) na personificação do próprio corpo
melanésio.
O corpo, enquanto um composto de relações, é o resultado das performances que
visam objetificá-lo como uma “pessoa”.6 Como será discutido no primeiro capítulo, eu
tento demonstrar que os meus interlocutores dominicanos incorporam relações que
poderíamos chamar de “internas e externas”, e isso têm uma série de implicações para a
6 Cito uma consideração da autora que me parece esclarecedora quanto à especificidade da reflexão que
ela propõe: “Se focalizássemos, da nossa perspectiva ocidental, a forma substantiva das relações,
poderíamos ser tentados a considerá-la respectivamente como o fluxo de coisas entre pessoas e como o
crescimento de coisas no interior da pessoa. (...). Como alternativa [à perspectiva ocidental] (...) as
relações [a partir do material etnográfico melanésio] podem ser tornadas visíveis através da substituição,
da criação de uma coisa que incorpora essas relações numa outra forma” (STRATHERN, 2009, p. 274).
22
maneira como se concebem como pessoas que têm os mistérios. Nesse sentido, seus
agenciamentos não pretendem, como na discussão de Strathern, tornar visíveis ou trazer
à tona (objetificar) relações, para que desse procedimento surjam “pessoas”
(melanésias). O que meus interlocutores dominicanos objetificam aparece mais como
desdobramentos por terem incorporado certas ‘relações’ de seus antepassados com os
mistérios. Um desses desdobramenros em seu cotidiano é o distanciamento que
conhecem de seus corpos: à medida que esses espíritos os ocupam, eles experienciam
formas de alteridade (e afetos variados) entre corpo e pessoa, pessoa e espírito e corpo
e mente.
Os mistérios são associados a uma transferência biológica e a uma transmissão
de trabalho ritual. Trata-se de dois processos que se referem a fluxos diferentes. No
primeiro caso, meus interlocutores falam em sangue, no segundo caso em relações
sociais. Isso me leva a propor que as pessoas incorporam variadas ‘relações’ descritas
como específicas à família. Para elas, esse domínio coletivo não é pensado como
propiciador simplesmente de um fluxo de sangue e outras substâncias. Pela família
também circula a responsabilidade se efetuar trabalho ritual. Chamo a qualidade dupla
desse processo de transferência de ‘incorporação do parentesco’ e a partir dela discuto o
segundo objetivo da tese: as implicações dessa forma de relacionar-se ou de criar
“conexão” (CARSTEN, 2000) para as pessoas que têm os mistérios.
Ao destacar isso não me volto para a questão de como alguém se torna parente,
como Carsten (1995, p. 226, 229), por exemplo, sugeriu ao discutir as práticas de
alimentação, comensalidade e coabitação a partir da transmissão e partilha de
substâncias como o sangue, o arroz e o leite, entre os ilhéus de Langkawi (Malásia).
Em meu material etnográfico o que se evidencia é como os espíritos, por meio de dois
processos de transferência, chegam aos meus interlocutores dominicanos como um dom
familiar: algo natural e que precisa ser retribuído.
Ao chamar a atenção para as implicações dessa forma de conexão ou de
‘relação’, o que faço então é pensar o parentesco da perspectiva do que ele transfere e
do que essa transferência cria para aqueles que a receberam. É desse ponto de vista que
meus interlocutores dominicanos expressam suas compreensões acerca de suas
singulares pessoas.
1.3 Trocas
A consideração de que os mistérios chegam às pessoas como um dom, se, de um
ponto de vista, concerne a dois tipos de transferência familiar, outros pontos de vista
23
perpassam essa premissa. Essa transferência é apenas uma das dimensões que conecta
esses seres humanos e espirituais. Isso porque para além de serem transferidos e
circularem por diferentes gerações familiares solicitando as cabeças que escolhem, os
mistérios pedem a atualização de compromissos e obrigações rituais antigos.
Desse modo, se é possível rastrear as ‘relações’ incorporadas de certas pessoas
com os mistérios considerando uma dimensão temporal, em Porto Rico me deparei com
essas conexões em movimento. Elas aconteciam enquanto eu conversava com meus
interlocutores dominicanos e observava suas práticas rituais.
Isso significa que o tempo da minha etnografia está baseado em dados
etnográficos que se referem a ‘tempos’ diferentes. Eu não observei nem conheci como
os antepassados dos meus interlocutores interagiam com seus mistérios. Antes, como os
últimos realizavam isso durante o período em que estive e convivi com eles. O que pude
mapear foi justamente como certas cabeças atualizavam o mundo que havia dentro
delas, como Gina certa vez comentou. Mundos constituídos por antigos agenciamentos
de familiares com seus espíritos (os mais diversos, como será descrito no terceiro
capítulo), que reclamaram e obtiveram continuidade na atenção e no trabalho ritual
entre alguns daqueles com quem convivi.
Fazer essa observação é importante porque de um dom que circula, os mistérios
se materializam não apenas como espíritos protetores e de auxílio.7Eles se tornam
também, quando atualizados, contrapartes de trocas rituais com aqueles que os
receberam e com outros, estranhos à configuração familiar. Essas maneiras dos
mistérios se fazerem presentes na vida das pessoas, de dom transferido a parceiros de
troca, levam-me aassumir outra perspectiva de análise, como será visto no segundo
capítulo. Não apenas tempos diversos, mas dimensões que apontam para a mudança de
posição desses espíritos (e consequentemente das pessoas) nas situações rituais se
tornam eixos a partir dos quais se encaminha esta etnografia.
Por meio das prestações rituais chamadas de serviços e baseadas na concepção
de que os mistérios precisam ser alimentados, cria-se uma dinâmica de atenção e
trabalho ritual em que dependência recíproca e certas formas de ‘contrato’, através da
participação dos clientes, não são pólos contrastantes, mas interconectados. Alternando-
7 As formas de comunicação dos mistérios assumem diversas modalidades. Os mistérios podem se
comunicar através da sensibilidade visual e auditiva das pessoas, ou seja, alguns são capazes de ver e
ouvir esses espíritos; durante o sono e os sonhos; por meio de cartas, e do que se chama de montar ou
subir, quando esses espíritos se incorporam completamente ao corpo humano. Outras formas de
incorporação, que chamo de ‘relativas’, serão descritas ainda nesse primeiro capítulo.
24
se nessas dimensões de troca, meus inerlocutores dominicanos e seus espíritos criam
não apenas as condições que tornam possível a circulação do dom às gerações futuras;
ambos também fazem com que sua força recíproca entre em esferas coletivas mais
amplas e que o pagamento, enquanto retribuição por algo que foi disposto a terceiros,
não seja exterior aos modos como a cosmologia e linguagem rituais são acionadas. Nos
termos de Joana, esses santos são bem interessados. Para ela, mesmo a promessa de
uma pequena vela, após ser feita, deveria ser cumprida. A negligência aos santos
poderia assumir repercussões perigosas, às vezes fatais.8
Tomo como referencial de análise as considerações de Gregory (1980) sobre
economias da dádiva e da mercadoria quando procura definir algumas características
que especificariam essas formas de troca. E, especialmente, quando ele sinaliza para a
possibilidade de mudança entre uma forma e outra. 9 Além disso, considero uma
discussão que vem sendo feita em etnografias realizadas no Caribe, especialmente sobre
o vodu entre os haitianos (no país e na diáspora) e as regras del palo em Cuba, cujo foco
de análise é as cosmologias, técnicas e linguagens rituais que assumem formas de
economias rituais (RICHMAN, 2008 apud Larose 1975a, 1975b; MCCARTHY
BROWN, 2001; PALMIÉ, 2002; OCHOA, 2004).
Ao destacar os serviços rituais prestados pelos meus interlocutores dominicanos
aos mistérios procuro discutir o terceiro objetivo da tese: a importância que a ideia de
dar substância assume nos modos em que as pessoas e seus espíritos se fortalecem
mutuamente ‘e’ naqueles em que se criam as condições para que ambos disponham a
outros. Com as prestações rituais as pessoas se singularizam, pois sua potência vital –
os mistérios que circulam pela família – se conecta a um modo de troca em que dádivas
cotidianas, principalmente sob a forma de substâncias alimentares, mantêm as
contrapartes espirituais. Argumento que se a essas prestações rituais se articula o que
8 Sobre a ideia de pagamento e as consequências da quebra de compromissos com os mistérios versará o
segundo capítulo. 9 Strathern (2009) afirma que um dos contrastes que sustenta para estabelecer as condições em que a
análise antropológica se faz inteligível é aquele entre sistemas mercantis e sistemas de troca de dádivas,
derivado do trabalho de Gregory (1980). Ela observa que, como ele indicou, os dois tipos de troca são
encontrados juntos, particularmente no período colonial e pós-colonial a partir do qual o estudo dele se
desenvolveu. Ela observa, no entanto, que à medida que Gregory baseia a troca de dádivas em uma
sociedade fundada no “clã” contrapondo-se à troca mercantil em uma sociedade de “classes”, a sugestão
dele é de que haveria correlação direta entre as formas de intercâmbio e de organização social. Contudo,
ela ressalta que os dois termos constituem um “único par cultural no interior do discurso da economia
política ocidental” e que “Falar sobre dádiva evoca constantemente a possibilidade de que a descrição
pudesse parecer muito diferente se, ao invés disso, estivéssemos falando sobre mercadorias”
(STRATHERN, 2009, p. 47-49).
25
meus interlocutores chamam de força da pessoa, outras ‘relações’, que não dizem
respeito à dependência recíproca são também criadas. E, para isso, as substâncias são
igualmente importantes.
Por causa dessa mudança de perspectiva, em que os mistérios se tornam
contrapartes da troca e não apenas dom transferido, a minha referência de análise passa
a ser as práticas rituais de alimentá-los. Nessas situações, as substâncias que os meus
interlocutores dominicanos usam nos serviços geram uma série de efeitos em seus
mistérios. Isso permite que alimentá-los possa ser por mim comentado como um
processo que permite a transferência de certas qualidades e disposições (Strathern,
2009, p. 311; Bateson, 2008, p. 119, 121) aos espíritos. Nesse sentido, pôr um serviço
aos mistérios aos mistérios não permite somente a sua estabilização ou manutenção
como herança familiar.
Também são efeitos que os altares, composições que precisam ser organizadas
por todos aqueles que têm os mistérios, geram sobre esses espíritos. Os altares
permitem aos mistérios coabitar com as pessoas, assunto que discuto no terceiro
capítulo. Para isso, elas precisam interiorizar uma série de artefatos e outras substâncias,
além das alimentares, visando à recriação de uma cosmologia dentro de suas casas. O
encontro dos mistérios com essa materialidade cria sensibilidades nos espíritos e
recuperam suas lembranças de quando eram vivos. Com o foco em outras apropriações
que os mistérios podem fazer dos artefatos através dos altares, o quarto capítulo
descreve os sentidos que imagens geralmente associadas ao cristianismo assumem
quando se considera a perspectiva de alguns mistérios.
Tentando ampliar o universo em que meus interlocutores dominicanos e seus
espíritos interagem, no quinto capítulo descrevo algumas distinções entre os mistérios e
outras entidades chamadas apenas de mortos. Com esse termo podem ser chamados os
espíritos desconhecidos, os mortos familiares ou ainda as chamadas coisas más,
espíritos anônimos que, para meus interlocutores dominicanos, podem ser enviados
como bruxaria.
1.4 (Des)Encontros
– Hum... Brasil! Rosa exclamou, enquanto movimentava seus ombros e seios, ao
me ouvir falar de onde vinha. Conheci Rosa na Plaza del Mercado de Río Piedras, o
maior mercado de vegetais, frutas e carne fresca, dentre outros produtos, localizado em
San Juan, capital de Porto Rico. Era a primeira vez que ia à Plaza. Caminhava pelos
corredores do mercado para comprar alimentos, quando parei diante dos postos em que
26
ela estava. Ao lhe perguntar o preço das frutas, em um espanhol que não dominava,
Rosa percebeu que eu era estrangeira. Imediatamente, então, me perguntou de onde eu
vinha. Sua performance diante da minha resposta, pareceu-me, naquele instante,
reforçar uma imagem sobre o Brasil em que as mulheres são vistas por meio de imagens
fortemente sexualizadas.10
O Carnaval, através das mulheres brasileiras (mas também de
certa imagem de festa popular), era para Rosa uma referência de conhecimento sobre o
país, assim como para outros dominicanos e porto-riquenhos que depois conheci.
Diante daquele movimento corporal tentei responder verbalmente ao modo como
ela se comportou. Mas, face ao meu parco espanhol, diferentemente dela, não me fiz
compreender. Rapidamente Rosa fez referência a uma novela brasileira. Ela ficou em
silêncio por alguns segundos, tentando lembrar-se do nome, e então me disse que gostou
de assistir na República Dominicana “Xica da Silva”: – As pessoas de cor como nós
eram muito maltratadas nessa época, Rosa comentou em seguida, referindo-se a ela e a
mim. Ao que adicionou algo como ainda bem que esse tempo acabou.
Segurando as sacolas diante de Rosa, fiquei intrigada com suas considerações. A
vinculação que ela fez entre Brasil e sexualidade feminina, mas também seu
reconhecimento de que nós duas poderíamos ter experienciado uma situação comum de
maltrato no passado. Além disso, a considerei uma pessoa solicita. Logo que cheguei a
Porto Rico, hospedei-me no alojamento da Universidad de Puerto Rico, também no
bairro de Río Piedras. Necessitava de alguns utensílios para preparar as refeições no
quarto que havia alugado e perguntei à Rosa onde poderia comprá-los. Ela percebeu que
seria difícil para eu fazer isso e pediu à Antonieta, sua irmã que estava naquele dia na
Plaza, para levar-me até uma loja de produtos domésticos. Antonieta então me ajudou,
eu lhe agradeci, e da loja retornei ao alojamento.
Apesar de saber desde o Brasil que em Porto Rico existia uma população grande
de imigrantes da República Dominicana, minha viagem à ilha tinha como interesse as
transformações espaciais de um projeto de reabilitação arquitetônica que foi
implementado na cidade de Ponce, ao sul de Porto Rico. Em Ponce, um bairro
conhecido como San Antón passou por intervenções que pretendiam tornar as moradias
e seu entorno símbolos da chamada “herança africana” em Porto Rico, em fins dos anos
10
Sobre uma narrativa etnográfica que relata essa forma de abordagem, em que gênero, sexualidade e
nacionalidade são articulados por interlocutores diante de antropólogas brasileiras no exterior, ver
Ciocarri (2009).
27
1990. Pretendia fazer uma etnografia sobre as relações contemporâneas dos moradores
de San Antón com as novas formas urbanísticas e arquitetônicas.
No entanto, encontrei dificuldade em estabelecer contato com um antigo
morador e líder cultural do bairro. Tentei, por diversas vezes, encontrá-lo, mas por
telefone ele postergava um próximo encontro. Quando o procurei pela primeira vez,
através de informações disponibilizadas no próprio site do município de Ponce, ele me
levou até San Antón. Ali me mostrou algumas casas reabilitadas, incluindo a de seus
familiares. Além disso, afirmou que poderia tê-lo como um mediador para contatar os
moradores. O que, contudo, nunca aconteceu.
Enquanto mantinha a expectativa de um novo contato, esperando alguns dias se
passarem para tentar mais uma aproximação do líder cultural de San Antón, retornei à
Plaza para conversar com Rosa. Sentia-me sozinha e gostaria de ter com quem
conversar. Buscava um “diálogo comum” como salientou Althabe (1990, p. 126) para o
tipo de interação que orienta os antropólogos em direção a seus interlocutores. E, ainda
que nessas primeiras semanas nada estivesse muito explícito – eu procurava um rumo –,
chegar sob a condição de pesquisadora me fazia buscar uma escuta sensível à linguagem
e aos termos recorrentes das pessoas; um lugar para olhar mais atentamente a maneira
como elas falavam, seus movimentos e seus próprios olhares sobre o cotidiano.
Ao entrar na Plaza, procurei o corredor em que se encontravam os postos,
quando então a vi. Ali estavam seu tio, Francisco, seu marido, Diogo, além de uma
mulher também dominicana, portadora de deficiência auditiva, chamada de Muda, que
trabalhava para Rosa. Ela demonstrou que se lembrava de mim, e me cumprimentou
com um beijo. Muda fez o mesmo. Comecei a conversar com Rosa e a escolher alguns
alimentos, perguntando-lhe se ela era a dona dos postos de verduras e frutas. Rosa
respondeu-me que sim. Mas, que além dos dois postos, possuía também a botânica, o
que me respondeu direcionando seu olhar para um box em frente de onde estávamos.11
A pergunta foi proposital. Ao me aproximar do corredor, vi imagens de santos,
sabonetes, colares e fiquei curiosa. À minha pergunta, Rosa seguiu comentando que a
botânica era de santería.12
Quando então quis saber se não havia santería no Brasil.
11
Ao conviver com Rosa, tomei conhecimento que ela arrendava os postos e a botânica de porto-
riquenhos que tinham de fato a licença para atuar como comerciantes no mercado. As botânicas são
espaços aparentemente comerciais nos quais são encontrados uma infinidade de artigos “religiosos” e
muitos outros produtos. Uma descrição mais detalhada das botânicas será feita no quinto capítulo. 11
12
Rosa utilizava o termo santería não para definir a cosmologia e as práticas rituais yorubá das reglas de
ocha (conhecido também como Lucumí, em Cuba e chamado de santería em Porto Rico). Ela empregava
28
Com pouquíssimo conhecimento sobre as chamadas ‘religiões afro-brasileiras’ e menos
ainda sobre o que me pareciam ‘afro-caribenhas’, me silenciei. Não soube como lhe
responder. Insisti, no entanto, em saber um pouco mais dela. Indaguei-lhe sobre os
produtos exibidos. Alguns, Rosa me disse, vinham da Venezuela e da Colômbia, os
sabonetes e outras mercadorias eram para banhos espirituais.
Ela quis saber o que me levava a Porto Rico. Eu comentei sobre a pesquisa do
doutorado e as dificuldades que enfrentava em relação a San Anton. Rosa me escutava
com atenção. Diante de mim, ela se deslocou um pouco até a bancada da botânica e
ofereceu-me um sabonete (jabón) para a boa sorte, como ela enfatizou ao me entregá-
lo.13
Daquele primeiro encontro com Rosa, mediado pela compra de alimentos, desse
novo encontro com algumas coisas da botânica, mediado agora por Rosa, passei, nesse
mesmo dia, ao encontro com dois de seus familiares e com um ambiente de tensão,
parte do dia a dia em Río Piedras: Francisco, tio de Rosa, havia se dirigido a mim para
se apresentar. Trocávamos algumas palavras enquanto dois jovens se aproximavam da
botânica. Eles perguntaram sobre algum produto, mantiveram-se ali por alguns minutos,
e foram embora sem nada comprar. Rosa então comentou com Diogo que os jovens
queriam roubar. Ocupado principalmente por imigrantes, moradores e trabalhadores da
República Dominicana, e por alguns comerciantes porto-riquenhos em sua área mais
central, o bairro já foi o eixo comercial mais importante da ilha e correspondia a um
município. Río Piedras é socialmente descrito como o local dos dominicanos
indocumentados (ilegais), de los tecatos y tecatas – usuários de drogas que vivem de
pequenos furtos e roubos –, e como ponto de tráfico de drogas e prostituição.
O uso do termo ‘encontro’ aqui não é casual. Baseio-me em um desdobramento
da consideração de Althabe de que são conversas comuns que caracterizam a interação
entre os antropólogos e seus interlocutores. Para ele, o conhecimento produzido pelos
antropólogos, advindo das falas e comentários cotidianos, emerge de encontros
o termo para se referir à presença dos santos, ou seja, dos mistérios e figuras santificadas (embora nem
todas) do catolicismo. 13
Segundo Derby (2003, p. 5-6), numa região ao norte da ilha de Hispaniola, área de comércio e trânsito
de mercadorias contrabandeadas de difícil controle para a administração colonial francesa e espanhola no
século XVIII, dar jabón foi um coloquialismo para a conquista, como se a sujeição estivesse ligada de
modo inextricável à aceitação da prestação e à forma resultante de dívida implícita nas recorrentes
práticas de troca de mercadorias. Dajabón se tornou o nome oficial de uma cidade espanhola em fins do
século XVIII, a fronteira oficial que veio a separar ambos os lados da Hispaniola em duas nações
(posteriormente chamadas de Haiti e República Dominicana) ainda durante o período colonial. Dajabón
se localiza às margens do rio Massacre, assim chamado depois do assassinato de haitianos durante o
regime de Trujillo em 1937.
29
concretos em diversas situações de comunicação. De acordo com o autor, fazer trabalho
de campo etnográfico na França, em situações como aquelas de trabalho assalariado, de
territórios residenciais urbanos ou redes de sociabilidade (em mercados ou escolas)
significa atentar para o fato de que o conhecimento antropológico é produzido nestes
momentos de interação.
Seu argumento tem a ver com o que ele chama de “pluralidade de situações
sociais” no país. Ele observa que, para seus interlocutores franceses, a vida doméstica e
profissional apareceriam como instâncias separadas no cotidiano. E em tudo aquilo que
dizia respeito especialmente a suas vidas privadas, a presença do antropólogo seria
geralmente refutada. Para ele, o pesquisador e seus interlocutores tornam-se
“prisioneiros da situação de campo”, e tanto a investigação antropológica quanto seus
resultados imediatos permaneceriam encerrados em um contexto de comunicação
(ALTHABE, 1990, p. 128).
A partir de seu próprio trabalho de campo, Althabe enfatiza que, diferentemente
do que chama de operação fundacional da disciplina, sua investigação não pretendeu
superar a exterioridade que sintetiza a dicotomia clássica da disciplina: “nós” e “eles”.
Não havia configurações coletivas particulares a serem conhecidas desde seu interior.
Implícita às considerações do autor perpassa a crítica a uma abordagem antropológica
que se afirma por causa de certa maneira de conceber o conhecimento da disciplina:
resultado de uma viagem que leva o antropólogo a um mundo singular (e
desconhecido).
Embora seja possível salientar que tal pluralidade de situações sociais não é uma
característica dos interlocutores franceses de Althabe (o que impediria tal pluralidade de
situações em configurações coletivas diferenciadas daquelas de onde vêm os
antropólogos?), a ideia de contexto de comunicação parece-me interessante para
iluminar os encontros que descrevi até aqui. Minha aproximação inicial de Rosa teve
muito da comunicação ordinária para qual Althabe atentou. E, avançando na discussão
que o autor propõe, sugiro que desde que conheci Rosa, diversas foram as situações em
que a “distância” a partir da qual eu me concebia diante dela (e de outros interlocutores
no trabalho de campo) foi re-significada.
Nesse sentido, não apenas meu interesse de pesquisa foi se explicitando a partir
de alguns comentários e observações de Rosa sobre seu próprio cotidiano, mas ela
tentou arrefecer minha condição de estrangeira: o que, para mim, era a armadura
protetora da ‘alteridade’. Como Althabe observou, se a démarche antropológica – alvo
30
de crítica desde pelo menos os meados dos anos 1980 com os escritos pós-modernos –
instituiu-se (durante boa parte das histórias da disciplina no século XX) por meio da
construção de uma distância entre antropólogo e seus interlocutores, meu
posicionamento como alguém “exterior às situações de encontro” foi frequentemente
questionado (ALTHABE, 1990, p. 129).14
É claro que Rosa e seus familiares sabiam que eu vinha de outro país. Isso não a
impediu, entretanto, que tentasse estabelecer conexões e associações. Assim, ela
insinuava justamente a possibilidade de algum modo de comunicação (e de
identificação) entre nós duas. Parece-me que esse foi o sentido de sua performance –
um constrangimento para mim e não para ela – ao saber minha nacionalidade. Ela
mobilizou a imagem que tinha sobre o Brasil corporificando gestos e movimentos que
pretendiam criar alguma possibilidade de comunicação. Especialmente porque eu não
falava perfeitamente sua língua.
Interessada em se comunicar, Rosa ainda tentou outra aproximação: falou-me
sobre a novela do Brasil que lhe agradou e me identificou com ela através da
escravização das pessoas de cor retratada no folhetim. Talvez tenha sido a própria
disponibilidade de Rosa em dar sentido para mim que tenha me feito querer voltar à
Plaza para conversar com ela. Neste momento, eu estava à espera de um potencial
interlocutor pouco interessado em firmar um diálogo.
Mas, como salientou Althabe, se desde a sua chegada ao “campo”15
o
antropólogo está implicado – mesmo sem às vezes o saber – em uma rede de aliança e
oposições que o tornam um “ator” do universo coletivo que lhe interessa, não são
apenas diálogos comuns que caracterizam as situações do trabalho de campo.
Isso apareceu nas notas etnográficas que fiz sobre meus encontros iniciais com
Rosa e seus familiares. Mesmo sem ter definido um novo assunto de pesquisa, depois de
alguns dias que a conheci, decidi registrá-los no meu caderno de campo. Foi também
com esses escritos que me dei conta que poderia arriscar-me no universo das botânicas
como campo etnográfico. As anotações eram fragmentos de lembranças acerca de
comentários, palavras e gestos. E sobre elas procurei destacar alguns termos, expressões
14
Sobre uma abordagem que, apesar de considerar a importância dos produtos dos discursos, do
intercâmbio dialógico e da autoridade mútua tanto para a relação com as pessoas com as quais se faz
trabalho de campo quanto para a escrita, propõe uma “dupla localização” da prática etnográfica, com cada
uma delas oferecendo uma perspectiva sobre a outra ver Strathern (1999, p. 1; 6). 15
Como destacou Florence Weber (2009, p.158), em uma crítica ao aspecto genitivo de propriedade que
marca a relação de alguns etnólogos, que se expressam em termos de “o campo ‘de’ tal ou tal etnólogo,
‘meu campo’”, “Essa palavra mágica designa ao mesmo tempo a sociedade ela mesma, o estágio que ali
empreendeu o etnólogo e o desenvolvimento de sua investigação”.
31
e situações feitos no ambiente de compra e venda da Plaza. Foram essas anotações que,
posteriormente, transformaram-se em dados e assumiram o papel de corpus da tese,
como observou Olivier de Sardan (1995, p.74). Especialmente quando, com base nelas,
comecei a explicar para pesquisadores porto-riquenhos como havia chegado à pesquisa
com os imigrantes dominicanos.
Mas não eram apenas tentativas de aproximações que essas primeiras anotações
recuperavam para mim. Além de reencontrar Rosa, receber dela um sabonete para a boa
sorte, e conhecer seu tio e marido, no segundo encontro, por exemplo, ocorreram
hesitações e silêncios. Assim como eu não soube lhe responder se havia santería no
Brasil, ela quis saber onde eu fazia tranças no cabelo. Ao ouvir-me que era uma mulher
angolana, que residia no Rio de Janeiro, a face de Rosa se modificou. Ela me pareceu
descontente com o que lhe falei. Segundos depois ela indagou Diogo, seu marido, se ele
gostaria que ela usasse tranças. Ele, sem se opor verbalmente, demonstrou reprovação.
As oposições do jogo social de que fala Althabe começaram a se delinear no que
vieram a ser outros encontros. Ainda durante o segundo, Rosa me fez um convite para
acompanhá-la e a Diogo, que também trabalhava como músico em um grupo de
merengue, em uma apresentação. O casal se ofereceu a ir ao alojamento universitário
para buscar-me. Feliz com a possibilidade de estabelecer um vínculo com eles, os
aguardei ansiosamente aquela noite. Mas eles não apareceram. Após algumas tentativas
de ligação para o celular de Rosa, resolvi então me deitar ainda mais frustrada.
Passaram-se alguns dias e retornei à Plaza. Rosa, então, explicou-me que acabou
por não ir à festa em que seu marido tocaria com o grupo. Eu lhe disse sobre as ligações
para seu celular, ao que ela reagiu afirmando que nem sempre as atendia porque suas
clientes lhe telefonavam tarde. Quando se tratava de casos de hospital, ela me disse,
atendia as ligações, mas por causa de brigas no casamento não dava muita atenção. Ao
escutá-la quis saber por que as clientes a procuravam. Por causa da santería, Rosa me
disse. Pouco tempo depois, chegou à botânica um jovem. Ele indagou Rosa sobre velas,
velas de santería, o rapaz especificou. Rosa lhe perguntou sobre que tipo de vela ele
buscava, e comentou que eram das mais caras, pois seriam diferentes...16
A partir daí já estava muito interessa na botânica e na relação de Rosa com essa
loja. Havia decido lhe perguntar, então, se poderia fazer o trabalho de campo com ela.
16
Nas botânicas eram vendidos os chamados velones, grandes velas que custavam dois dólares
(geralmente as que traziam nomes de santos, espíritos ou plantas) e três dólares (rotuladas com nomes que
indicavam alteração de comportamentos, estados e disposições). Mais informações sobre os valores das
mercadorias serão apresentadas no quinto capítulo.
32
Cansada de esperar por um sinal positivo sobre San Antón – já estava em Porto Rico
havia cerca de vinte dias de uma estada que chegaria a quase três meses – queria me
inserir no universo das compras e vendas dos artigos e produtos que eu via como
‘religiosos’.
1.5 Interpelações
– Você tem um namorado?, Rosa me perguntou naquele dia em que fui à Plaza
para lhe contar sobre minhas intenções de pesquisa com ela. Assim como Muda e seu
tio, ela me olhava de modo desconfiado. Abri minha carteira e mostrei uma fotografia
que era de meu companheiro. Enquanto a procurava, os três se entreolharam. E, assim
como ocorreu quando falei da cabeleireira angolana, eles demonstram pouca satisfação
em vê-la. Imediatamente Rosa me interpelou. Quis saber seu eu gostava de homens
negros. Com a mesma velocidade reagi dizendo-lhe que sou negra. Logo depois, em
tom afirmativo – distinto daquela chamada a lhe dar explicações – Rosa me disse que
ele era africano. Confirmei e perguntei-lhe como ela sabia. Mas Rosa se manteve em
silêncio.
Esse foi o mote que ela utilizou para afirmar que em Santo Domingo as pessoas
são da minha cor, da cor dela e do marido... morenos (e não negros, era o que estava
implícito em seu comentário). Diogo, depois que viu a fotografia, afastou-se de nós por
alguns minutos. Ao retornar, quis saber se eu conhecia o palo, instrumento de percussão
tocado em festas rituais na República Dominicana. Como eu não conhecia, ele pediu
que Rosa buscasse dentro da botânica um cd de palo. E afirmou que no Brasil havia sim
esse estilo de música. O cd, que Rosa me emprestou, intitulava-se Santería Cubana.
Produzido em Porto Rico, era formado por doze músicas cujos temas eram alguns
orichas: Babalu Aye; Obatala; Yemalla; Orichaoco; Ochosi; Elegua El Nino de Atocha;
Dada, Oba e Yegua; Inle; Elegua; Ogun; Chango; Ochun.
Depois lhe expliquei o motivo de retornar ali. Ela me indagou: – Como eu não
vou te ajudar, Alline? E concordou que conduzisse a pesquisa. Com isso, finalmente,
iniciei o trabalho de campo. Retirando meu caderno de campo da bolsa (após a
fotografia da carteira, que dentre as várias possibilidades de compreensão que criaram
para ela e seus familiares, situou-me como uma jovem mulher que não estava à procura
de uma contraparte masculina ao visitar com frequência a Plaza), anotei avidamente as
explicações que ouvia sobre velas, incensos e santos.
33
À noite, quando fui jantar na casa de Rosa, percebi uma nova tensão. Agora não
em relação ao cotidiano em Río Piedras. Mais uma vez, conversas em que emergiam
noções (e preconceitos) de cor e raça.
No decorrer do dia, em meio à observação participante, Rosa me fez o convite
de acompanhá-los para fazer aquela refeição. E eu aceitei. Durante as primeiras semanas
de meu trabalho, vendendo artigos da botânica (mas também verduras, legumes e frutas)
e realizando o registro etnográfico, almoçava quase sempre nos postos dela na Plaza.
Ela e Muda preparavam a comida em um fogareiro, abaixo de uma bancada. Jantava em
sua casa depois que fechávamos os boxes. Ainda na primeira estada me mudei do
alojamento universitário para a casa de Rosa, onde fiquei por cerca de duas semanas até
regressar ao Brasil.17
A casa dela se localizava nas imediações da Plaza del Mercado, também em Río
Piedras. Era uma residência confortável, com três quartos (um deles suíte), uma ampla
sala conjugada a uma cozinha bem equipada, um banheiro ‘social’ e uma área de
serviço. Àquela época, além de Rosa e Diogo, Antonieta, cerca de dez anos mais velha
– Rosa estava com trinta e três anos –, morava na residência.
Naquela noite, então, Rosa me mostrou em sua filmadora alguns vídeos. Eram
registros feitos pelos familiares em San Francisco de Macorís e Naguá, cidade em que
vivia um de seus tios, também na República Dominicana. As imagens em Macorís
gravavam o desenvolvimento da construção de uma casa, propriedade de seu irmão
caçula e da companheira que viviam em Porto Rico. Porque Rosa me dizia o vínculo de
parentesco de cada uma das pessoas que aparecia na gravação, perguntei quem era a sua
mãe. Ao me mostrá-la, Rosa argumentou que sua mãe era morenita,18
assim como eu,
trigueñita.
Momentos depois, enquanto jantávamos, Antonieta fez um comentário, e eu não
entendi. Mas a mulher da irmã caçula, irritada, a chamou de racista. Antonieta replicou.
Como eu não consegui entender o motivo da conversa e da exasperação da jovem,
perguntei à Rosa o que Antonieta havia dito. Ela me respondeu que sua irmã não
gostava de haitianos. Antonieta reagiu dizendo que os haitianos eram bruxos e pretos.19
17
Ao retornar para a segunda estada do trabalho de campo, me hospedei novamente na casa de Rosa,
onde permaneci por pouco dois meses e meio. Depois, voltei a alugar um quarto no alojamento da
Universidad de Puerto Rico, onde vivi até fim do trabalho de campo. 18
Alguém com pele escura, termo cujo sentido é distinto de quando os dominicanos empregam moreno,
que recupera a ideia de uma pessoa de cor, mas com a pele mais clara. 19
Sobre o chamado “anti-haitianismo” como política nacional (e micropolíticas gestadas cotidianamente)
na República Dominicana a partir de uma abordagem histórica ver Derby (2003).
34
Um primo-irmão delas que acabara de chegar de Nova Iorque, ao escutar o comentário
agressivo de Antonieta, tomou a palavra: – E eu também não sou preto? Constrangida,
Antonieta, em tom baixo esboçou uma reconsideração. Segundo ela, alguns haitianos
eram bons.
Nestes iniciais encontros e contatos (ALTHABE, 1990; TROUILLOT, 1992)
com meus interlocutores dominicanos foi se explicitando os significados negativos que
eles atribuíam a noções como negro ou preto. Identificar alguém nestes termos era
definir um homem ou uma mulher como haitiano(a). E, em algumas situações, vi Rosa
e Diogo, por exemplo, atribuindo essa nacionalidade a dominicanos com pele escura
que chegavam à botânica para comprar. A tensão de cor e racial era uma constante
também no cotidiano deles na Plaza. Pois, em diversas abordagens de clientes porto-
riquenhos à procura de alimentos, Diogo era por eles retratado como morenito, o que
significava alguém de pele escura (o que ele possuía), apesar de seu cabelo fino e traços
faciais afilados.
Rosa e seus familiares mobilizavam várias categorias relacionadas à cor da pele,
tais como blanco(a), moreno(a), trigueño(a) e prieto(a), associados a outros atributos
corporais, para se definir em relação aos seus interlocutores, estivessem esses em Porto
Rico ou na República Dominicana. Por várias vezes ela se definia como blanca
conversando comigo – a quem ele via ora como morena ora como trigueña porque a cor
da minha pele é mais escura que a dela, e meu cabelo, apesar de trançado como o das
haitianas, ela me dizia, não era ruim. Durante o trabalho de campo, escutei ela me
dizer, por diversas vezes, que estava blanca, e por isso retornaria mais bonita ao Brasil.
Como a Plaza de Mercado era um ambiente fechado e não a céu aberto, não ficávamos
expostos ao sol. Para Rosa isso, positivamente, garantia o branqueamento da cor da pele
(da dela e, como ela fazia questão de insistir, da minha).
Mas diante de um interlocutor porto-riquenho, cuja cor da pele fosse mais clara
que a sua, a textura e o comprimento do cabelo fossem lisos e longos (sem a adição de
produtos químicos no caso feminino), e cujas características faciais como o formato do
nariz, fosse afilado, Rosa não se definia como blanca. Uma espécie de suspensão
pairava no ar. E então ela não atribuía a si mesma uma tonalidade. Dizia apenas minha
cor.
1.6 Trânsitos e travessias
Se nestes contextos de comunicação passei a ter acesso a possibilidades de uma
escuta, observação e registro sobre Rosa e sua família (e o universo da botânica),
35
preciso ressaltar que mais do que diálogo ordinário me conectou àqueles que se
tornaram meus interlocutores. Trânsitos de imagens e objetos (às vezes cessação de
falas) assim como travessias diversas sustentaram os comentários que descrevi. E por
meio disso foram esboçadas, particularmente da parte de Rosa, tentativas de
identificação ou de alguma forma de partilha. Nos termos dela, os dominicanos eram
como eu, ela, o marido, assim como sua mãe. E foi com o racismo que perpassou seu
comentário que Rosa me disse que eu não era exatamente outra para ela.20
Isso foi se
tornando mais explícito quando ela justificava para parentes e conhecidos o porquê da
minha presença na Plaza.
Rosa fazia referência à pesquisa de doutorado. Logo em seguida argumentava
que eu estava só na ilha. Não conhecia bem o lugar tampouco as pessoas. E certa vez
me falou algo como eu tenho uma filha, ela pode precisar de ajuda também no futuro,
nos estudos... Tendo chegado à ilha também sozinha, mas numa condição
completamente distinta da minha, Rosa aludia a essa experiência, uma espécie de
conhecimento de causa sobre a solidão de ser estrangeira, para explicar sua decisão de
colaborar comigo.
Havia mais ou menos dez anos que Rosa emigrou de San Francisco de Macorís,
cidade ao norte da República Dominicana, onde nasceu e viveu. Com pouco mais de
vinte anos, ela entrou ilegalmente para a ilha vizinha de Porto Rico, em uma viagem
clandestina nas chamadas yolas, embarcações de madeira que cruzam o mar do Caribe
em uma travessia extremamente perigosa.21
Aí permanecia desde então, fazendo
frequentes viagens para a sua cidade na República Dominicana.
A possibilidade de tal mobilidade entre as duas ilhas era possível porque Rosa
possuía o direito de residir em território norte-americano. Neste sentido, ela se
diferenciava da maioria de seus familiares e de outros imigrantes dominicanos que
conheci. Geralmente, eles viviam como ilegais em Porto Rico, sem os papéis, como
definiam. Após a saída de Rosa da República Dominicana, seu irmão caçula também
deixou San Francisco de Macorís. Ele também já tinha os papéis, ou seja, sua situação
20
Em algumas situações de compra e venda na botânica, observei Rosa construir uma aproximação em
termos de cor com clientes que possuíam a pele mais escura que a dela, dizendo-lhes que eram iguais.
Mas isso não minimiza as implicações políticas do racismo na República Dominicana. Uma das mais
graves, como salientei no início deste texto, é o impedimento à cidadania dos descendentes de haitianos
que nasceram e vivem há várias décadas na República Dominicana. 21
Não apenas por causa das adversidades vindas do próprio mar, mas da convivência humana nas yolas.
Alguns dos relatos que me foram narrados durante o trabalho de campo chamam a atenção para a
agressão e o abuso sexual de mulheres dominicanas, e o lançamento ao mar daquelas que se tornam um
“problema” para os atravessadores.
36
como imigrante estava regularizada, e isso lhe permitiu viajar a Nova Iorque para
trabalhar na construção civil. Ocupação que realizava naquele momento em Porto Rico.
Alguns anos depois de Rosa, outras irmãs (junto com a então namorada do
caçula) e seus tios22
fizeram o mesmo. Todos atravessaram o mar do Caribe em yolas e
se reuniram a ela. Também como Rosa, que deixou sua filha,23
então uma bebê, sob os
cuidados de seu pai, de sua mãe e de seu irmão caçula – até que ele também emigrou e a
menina ficou com os avôs –, os filhos de Antonieta não estavam em Porto Rico.
Antonieta vivia em Porto Rico havia seis anos. Desde o início ela trabalhou
como empregada doméstica em diferentes casas de famílias porto-riquenhas. Não revia
pessoalmente seus três filhos por esse período, pois não tinha os papéis, o que a
impedia, além de tantas outras duras restrições, sair de Porto Rico para rever sua
família. Na mesma situação estava a jovem dominicana, mulher do irmão caçula de
Rosa e Antonieta. Ela embarcou na mesma yola junto com Antonieta (e outros
familiares de Rosa) e trabalhava também como empregada doméstica em residências de
porto-riquenhos. Seus pais e sua irmã se mantiveram em San Francisco de Macorís. E
eles não se viam desde então. Como estratégia visando à legalização em Porto Rico,
quase todos eles, tanto os homens quanto as mulheres, firmaram o que chamam de
casamento para ter os papéis ou matrimônio por contrato. E aguardavam a obtenção do
direito de residir em territórios norte-americanos, como Porto Rico, desde que
contraíram tais casamentos com porto-riquenhos (as).
Do ponto de vista das experiências de Rosa como imigrante (por anos, assim
como tantos outros dominicanos, sem papéis), a sugestão de Althabe de que o
antropólogo e seus interlocutores se tornam “prisioneiros de um contexto de
comunicação” assume outros sentidos, certa radicalidade. Foi justamente porque se
arriscou a atravessar outras águas24
– e não preservar seu espaço doméstico da
interferência perturbadora de estranhos (SCHWARTZ, 2002) –, disposta a refazer sua
vida pessoal e familiar considerando trânsitos, contatos e esfacelando algumas fronteiras
entre um lado e outro do mar do Caribe, que Rosa se manteve presa a uma pluralidade
22
Os tios de Rosa também arrendavam postos de verduras, legumes e frutas na Plaza del Mercado. 23
A menina estava com cerca de treze anos em 2010. 24
Certa vez ouvi Rosa argumentar que, apesar de muitos dominicanos que ela conhecia terem decidido ir
para Nova Iorque, o que ela mesma fez durante uma semana, hospedando-se na casa de tios que residiam
na cidade há anos, ela decidiu regressar a Porto Rico porque conhecia essas águas. Na cidade norte-
americana, ela explicava, iria falar com quem? Sem saber inglês, ela descreveu essa experiência como
marcada não apenas pela solidão, mas também pela indiferença.
37
de situações sociais, a contextos não menos múltiplos que os dos interlocutores
franceses do antropólogo.
E o que chamo de radicalidade dessas experiências (para ela e para a sua própria
família) concerne ao fato de que para fazer circular dólar através das remessas, roupas,
produtos de higiene, de limpeza doméstica, alimentados enlatados e presentes, entre
Porto Rico e a República Dominicana, Rosa, Antonieta, o irmão caçula e sua mulher
precisaram se imobilizar na primeira ilha. Nela, tornaram-se sem papéis.
Ainda que raramente eles falassem direta e amplamente comigo sobre esse
assunto, suspeito que não se tratava apenas de recato. Saber o que expor e como fazê-lo
bem como aprender a resguardar-se, uma vez que a ameaça da deportação foi ou ainda
era uma espécie de assombração que rondava o dia a dia da família, implicava conseguir
preservar a própria integridade física de cada um deles, de seus corpos.
Sem que no momento eu mesma fizesse qualquer conexão, eram corpos de
pessoas – e como será visto adiante, uma variedade de agências espirituais capazes de
afetá-los – que também estavam em jogo com o sabonete que Rosa me deu para a boa
sorte. O produto não passou apenas da bancada da botânica para meu quarto no
alojamento universitário. Ele era um dos materiais por meio do qual Rosa e Diogo
experienciavam cotidianamente a vida como pessoas: limpar o corpo para atrair a boa
sorte, como depois eu observei, era uma das técnicas que o casal empregava e
recomendava na botânica porque participava de um mundo cujas ameaças eram não
apenas físicas, mas também espirituais. Essas se difundiam em sua casa, na botânica,
nas ruas e nos bares de Río Piedras. Neles mesmos. Tal produto, para Rosa, não era
apenas um símbolo particular de seu modo de ver o mundo, de representá-lo. Fazer essa
consideração, no entanto, trata-se de uma travessia que eu mesma precisei fazer
enquanto conduzia o trabalho de campo entre eles.
Tentarei descrever, então, alguns dos caminhos que a constituíram.
O universo da botânica despertou a minha atenção etnográfica, mas me parecia,
no mínimo, confuso. Um exemplo: no primeiro dia que convivi ali com Rosa, ela quis
saber se eu faria entrevistas para a investigação do doutorado. Em seguida, começou a
me explicar o que as pessoas iam buscar: boa sorte, abrir os caminhos, e outras
expressões que não consegui entender.
Para mim era difícil imaginar e compreender que por meio de relações
comerciais era possível se obter o que ela chamava de boa sorte. Mas o meu
estranhamento não tinha a ver apenas com o fato de que me deparava com um universo
38
no qual sorte e prosperidade pudessem ser alcançadas, em parte, através da compra de
certos objetos, produtos e substâncias. A persistência dessas noções também chamava a
minha atenção no seguinte sentido: por que era importante para as pessoas buscar a boa
sorte e abrir os caminhos?
Comecei a indagar sobre alguns dos produtos e seus usos. Rosa me explicou que
os incensos serviam para a limpeza e proteção na casa e festas de santería... Cada
cavalo que se monta se faz uma festa ao santo protetor padroeiro [al patrón] com rum,
cerveja, vinho, refrigerante, diferentes comidas, doces... quando o ser humano nasce
com os mistérios, que é isso que é santería [precisa passar] por uma benção [santíguo],
um tipo de preparação, um tipo de batizado... depois que você está preparado monta o
ser que te toca: São Miguel, São Elias, Santa Marta; A Madama – uma negra –; Anaisa
a Pie – que é a esposa de São Miguel.
Nessa conversa tomei conhecimento de que ela é uma pessoa que tem os
mistérios. Mas também nela mistérios e santos são categorias intercambiáveis. E santos
é também um termo que em Porto Rico significa orichas. Sua mobilização tornava
possível Rosa falar de outras categorias que, no decorrer das minhas observações, não
tinham a mesma importância no que dizia respeito à atenção ritual em seu altar.25
Observei rapidamente essa composição de artefatos e substâncias na noite em que jantei
em sua casa, descrita mais acima. Ao pedi-la para ir ao banheiro, Rosa me indicou o que
ficava no interior de um dos quartos, no qual dormia sua filha quando ia a Porto Rico.
Foi ao cruzar o quarto vi que Rosa mantinha ali um altar para os mistérios.
Naquela manhã, escutando Rosa (e o que já vinha ouvindo com as visitas à
Plaza) comecei a me colocar um problema: mistérios, santos e orichas seriam
intercambiáveis entre si? Sem sentido, como depois percebi, para meus interlocutores
dominicanos, que com freqüência me diziam: – É o mesmo, o que se modifica é a forma
da pessoa trabalhar.
No entanto, não eram uma classificação e hierarquização entre entidades que eu
buscava. Interessava-me entender quem ou o que eram os mistérios a partir do que
vinha observando e escutando, pois eu simplesmente não sabia como concebê-los,
embora estivesse explícito que, para Rosa, se tratavam de outros já não mais vivos. Mas
25
Obrigação ritual daqueles que se chamam de pessoas que têm os mistérios. Nos altares são arranjados
quadros e figuras em resina de santos diante dos quais se posiciona alguma louça (copos, xícaras, taças)
com certos líquidos e substâncias, velas, objetos pessoais como fotografias das pessoas, dos clientes ou de
outros que os últimos levavam.
39
seriam eles humanos mortos, humanos mortos vistos como deuses ou ainda deuses que
nunca teriam sido completamente humanos?26
Convivendo com ela, na botânica e em sua casa, notava que seu altar era
formado por imagens singulares, escutava em suas conversas, particularmente com
clientes dominicanos, referências a certos santos, em geral os mesmos que ela havia
mencionado no meu primeiro dia na botânica (São Miguel, São Elias, Santa Marta A
Dominadora...) e continuavam a sê-lo em boa parte das vendas. Mas não conseguia
dimensionar essas especificidades etnograficamente. Não sob uma forma que eu
considerasse etnograficamente mais válida.
Ainda durante a minha primeira estada, Rosa me avisou um dia que um cavalo
dos mistérios havia chegado à Plaza. Raul estava ali para comprar nas botânicas, e se
dirigiu até a dela. Ela me apresentou a ele dizendo que eu fazia uma investigação de
doutorado sobre os santos, que eu gostaria de ver um mistério montado e o altar de uma
pessoa que monta. Além disso, indagou se eu poderia fotografar seu altar e ele
(montado). O jovem dominicano reagiu: – São Elias não gosta que lhe façam fotos.
Tentando me explicar o motivo da recusa, Rosa me disse: – É que isso são espíritos…
Até então ela não havia mobilizado espíritos para se referir aos mistérios. Ele tomava os
mistérios, em nossas conversas, sempre como santos.
Como já salientei, vinha notando que pessoas que têm os mistérios era a maneira
como meus interlocutores dominicanos chamavam os seres humanos que mantinham
certas ‘relações’ com esses espíritos: atender (com os altares) e trabalhar ritualmente os
mistérios, por exemplo, como o fazia Raul.
Ao começar a me perguntar sobre as pessoas que têm os mistérios como Rosa (e
também Diogo) e Raul, eu pressupus (mais uma vez) uma separação radical entre ‘mim’
e ‘eles’.
1.7 Capturas ou enredada pela própria trama
Após o meu retorno a Porto Rico para dar continuidade à pesquisa, Rosa me
convidou para acompanhá-la até San Francisco de Macorís. Havia quase um mês que
eu estava em Porto Rico, voltando a viver em sua casa com sua família. Rosa precisava
fazer consultas e exames médicos, o que só realizava em seu país. Aproveitaria a
ocasião para levar duas crianças, filhos de seus primos que viviam ilegalmente em Porto
26
É óbvio que formulei tal indagação a partir de distinções que carregava a partir do pouco que conhecia
e ouvia falar sobre candomblé e umbanda no Brasil.
40
Rico. Os avôs e outros familiares da República Dominicana não conheciam os meninos.
Eu a ajudaria no deslocamento com uma das crianças e teria a oportunidade de conhecer
seu padrinho. Ela gostaria que eu conversasse com ele, pois além de fazer consultas, era
quem cuidava da sua preparação em relação aos mistérios.
Eu acabei me encontrando, em certo sentido, com o padrinho de Rosa. Contudo
a situação não se desenrolou exatamente como eu esperava. Pois a conversa foi com o
mistério que ele monta. A chegada à República Dominicana, que para mim seria uma
forma de conhecer algumas pessoas, tendeu a deslocar (e a questionar) a minha posição
de antropóloga. Pois se meu objetivo era saber um pouco mais sobre as pessoas que têm
os mistérios, eu passei a experimentar encontros nos quais de algum modo fui sendo
produzida como uma delas através dos processos internos que eu definira como objeto
de estudo (ALTHABE, 1990, p. 129). Diálogos e observações, no entanto, altamente
sensíveis.
Neste sentido, as descrições que se seguirão só podem ser vistas como “caso
etnográfico” no sentido que defende Favret-Saada (1977, p.74-75): não para dar a ilusão
de uma diferença de natureza entre o sujeito que teoriza e o sujeito teorizado, mas para
possibilitar o próprio direito à interpretação da etnógrafa; que, no que lhe toca, por
diversas vezes e maneiras “foi tomada” pelos discursos e práticas de feitiçaria no oeste
da França.27
San Francisco de Macorís, 4 de outubro de 2010.
Acabei de sair da consulta que fiz com o padrinho de Rosa. Ela me levou
bem cedo lá com sua irmã Jose. Nós ficamos esperando, havia 3/4 pessoas
esperando. Um rapaz que é dominicano (+-35), que nasceu em Boston, mas a
família é dominicana, acompanhado de outro homem branco (+-40), entrou
com este para a consulta.
Nós chegamos, sentamos e ficamos esperando. Um senhor mulato (+-55) nos
recebeu, e era ele quem abria o portão para as pessoas. Rosa perguntou por
Nelson, e eu achei que esse fosse o nome do senhor que monta. Depois
percebi que não. Nelson me pareceu ser o nome do rapaz que faz a tradução
do que o ser/mistério/espírito diz para quem está sendo consultado. Rosa,
acompanhada da irmã, perguntou pela esposa do senhor, que não estava.
27
Fazendo o trabalho de campo, a autora se deu conta que sua investigação etnográfica poderia deslocar a
maneira como as práticas de enfeitiçamento eram compreendidas na França. E aqui ela se contrapõe a
uma série de saberes, como os de folcloristas, médicos e jornalistas que procuravam a região do Bocage
por causa da feitiçaria seguindo ideias pejorativas e sensacionalistas. Porque ela considera seriamente que
“[...] na feitiçaria a palavra é a guerra [...] todos são beligerantes, inclusive o etnógrafo, e não há lugar
para um observador não engajado”. (FAVRET-SAADA, 1977, p.27), ao se interessar por esse assunto e
buscar conversar com as pessoas acerca disso, Favret- Saada se inseria numa trama em que uma
complexidade de significados e práticas construía o enfeitiçamento/desenfeitiçamento como um discurso
e uma experiência real. Além de ser vista como alguém que ao procurar falar poderia ser potencialmente
uma enfeitiçada – alguém que tivesse ‘sido tomada’ por um mal – foi concebida às vezes também como
uma “desenfeitiçadora”: porque já sabia muito dado que falava constantemente com feiticeiros e
enfeitiçados, era localizada como alguém que tinha certa “força”.
41
Então elas esperaram um pouco, e tiveram que ir, pois Rosa tinha consulta
marcada num hospital de San Francisco de Macorís (privado).
Eu então fiquei sozinha, e o senhor que recebia as pessoas começou a
conversar comigo. Rosa antes de ir falou o que eu queria lá, e eu também lhe
disse algumas coisas. Que eu estava em Porto Rico estudando as botânicas, e
queria agora me aproximar, conviver, com as pessoas que fazem consultas.
Não me lembro o porquê, mas esse senhor me disse que o outro senhor, que
faz consultas, tinha uma botânica em Nova Iorque (ele antes havia dito outra
cidade norte-americana, mas não me lembro o nome). Eu então disse o nome
da botânica de Rosa, e lhe perguntei o nome da botânica do senhor. Ele
acabou que não me disse, conversamos um pouco, mas ele não falou.
Nesse meio tempo os dois rapazes entraram, e haviam chegado dois senhores.
Ah, já havia uma moça lá esperando, branca (+-35), que não parecia
dominicana. Ela não conversava com ninguém. Ah, o senhor que recebe as
pessoas me disse que a casa ficava muito cheia. Que vinha gente da
República Dominicana, dos EUA, do México, da Jamaica, do Haiti, de
diferentes lugares. Que o senhor fazia cura, trabalha com cura, e com coisas
boas. Ele então disse que o procuram tantos os mansos quanto os cimarrones.
Eu não entendi o que ele queria dizer, e lhe perguntei. Ele então me disse que
todo o tipo de gente procurava o senhor, tanto boa quanto má. Esse senhor
me disse também que já viveu em Boston, em diferentes lugares.
Então quando ele saiu do pátio, um dos senhores que estava lá [esperando]
ouviu que sou brasileira, e começou a conversar comigo me perguntando
sobre o Brasil, minha cidade, essas coisas. Ele então falou com o outro
senhor que sou brasileira, e me convidou que eu sentasse mais perto deles. O
que mais conversou comigo é branco (tinha a pele bem avermelhada,
queimada de sol, +-55), o outro era mulato (também com a pela bem
queimada de sol, e um pouco mais novo). Então o senhor branco me
perguntou se eu estava má [mala], no sentido de se esse era o motivo para eu
estar ali. Eu lhe disse que não, que estava ali por outra razão. O mais novo
falou que bem que se via que eu estava bem (se referindo à minha aparência
física), e eu lhe disse que sim, que tenho saúde. Então conversamos um
pouco, eu estava bem, descontraída, até que o rapaz que acompanha as
consultas me chamou. Ah, antes disso, quando os dois rapazes mais novos
entraram lá dentro, eu entendi o senhor que recebe as pessoas dizer que ele (o
senhor que atende) estava com muito trabalho porque, eu entendi assim,
atendia as pessoas e falava/atendia pelo telefone também. Eu entendi ainda
alguma coisa de Uruguai...
Então o rapaz fez sinal para que eu fosse para a consulta. Ele é jovem (+-35),
mulato, e parece dominicano. Eu então esperei alguns segundos na porta, o
senhor estava fumando, na verdade, acendendo um cigarro. Eu então fui até
ele, que segurou minhas mãos as cruzando, e me deu benção (Dios te
bendiga, eu acho). Ele estava usando na cabeça um pañuelo (lenço) lilás, um
chapéu de palha, e óculos escuros. Não me lembro se estava descalço...
Fumava todo o tempo, e fica sentado. Houve um momento em que ele
levantou, acho que para pegar fósforos, algo assim. O rapaz [Nelson] senta ao
lado dele (direito). Do seu lado esquerdo há um altar com uma imagem
(estátua) de São Expedito com uns colares, eu acho. Um quadro de Santiago
Apóstolo e a Virgem da Alta Graça. Próximo à imagem de São Expedito, há
três estátuas pequenas iguais às que Rosa me disse que se chamam São
Francisco e Santa Francisca, e mais uma de um senhor negro, também
sentado, que se parece mais com a de um “preto-velho”. Acho que havia
algumas flores, não me lembro bem, mas vi as caixas em papel de alguns dos
banhos/despojos que se vendem em Porto Rico [nas botânicas]. Do lado
esquerdo do quarto há uma espécie de box, que me parece ser o espaço onde
os banhos/despojos são feitos. Então, quando eu me sentei, o senhor que
estava com a pele bem escura (preta) começou a me falar várias coisas. Ah,
depois que ele nos cumprimenta, ele utiliza a mão, acho que a direita, para
fazer uma espécie de benção na cabeça, com o sinal da cruz, me parece. [...]
42
Ele se comporta da seguinte maneira. Parece que se põe a escutar o que
alguém está lhe dizendo do lado esquerdo, porque faz um movimento com o
corpo como se estivesse ouvindo algo. Então diz as coisas, e o rapaz traduz.
Depois de um tempo percebi que ele fala espanhol, mas com alguns sons que
não deixam muito claro o que está dizendo. Depois, eu entendia algumas
palavras e frases que ele dizia.
Então fiquei não assustada, acho que essa não é a melhor palavra, mas
decepcionada. Ele me disse várias coisas que não foram boas. Algumas eu
acho que têm a ver, outras não. [...] falou que via um zombi em mim. Zombi é
um morto (Ele me disse que um dos motivos para eu me preparar para
estudar los misterios era o de evitar que coisas más – zombies são uma delas,
mas ele usou outros termos – se aproximassem de mim) . Não sei se a
sequência foi essa. [...]. Então em um momento me disse que, não me lembro
exatamente, [algo] como dons espirituais. A palavra não foi dom. Não me
lembro, e ele me perguntou se eu queria ser uma santera. Eu disse que não.
Ele então falou que São Miguel Arcanjo me protegia, e que sou filha dele,
Anaissa a Pie, Santa Marta, e Virgem de Pilar. [...]. Eu não me lembro se ele
falou da preparação nesse momento, acho que sim.
Quando ele me perguntou se eu tinha alguma pergunta para lhe fazer, eu
expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre religião, que teve início
numa botânica em San Juan (PR). Acho que antes ela já havia dito que eu
estava em Porto Rico, e que as coisas estavam melhor lá do que onde eu
estava [no Brasil]. Acho que ele já havia dito sim que eu devia ser preparada
para montar os mistérios... Então quando ele me deu a palavra, ele disse que
só têm os mistérios os elegidos pelos elegidos; que todos são elegidos, mas só
apenas esses podem. Ele se apresentou como Prin, um espírito (de uma
pessoa, como nós, o rapaz me explicou) que viveu na África há muito tempo
atrás. Ele disse que as pessoas precisam de uma preparação, precisam
preparar a cabeça para que possam montar, e que eu necessito fazer isso, para
me preparar e pedir permissão aos mistérios para fazer a pesquisa. Ele me
disse que o espírito, ele, Prin, pertence às 7 Potencias Africanas; que ele é o
segundo; o primeiro seria Juan.... e o terceiro Guedé...; não entendi os outros
nomes que aconpanham. Falou que ele é um Guedé, mas um Guedé bom, que
trabalha para o bem das pessoas.
[...] quando eu comecei a dizer o que estava fazendo/queria ali, e então disse
que estudava religião, o rapaz me perguntou que religião. Eu falei os
misterios (com o som aberto), e ele repetiu pronunciando de outra maneira
(como se a palavra fosse menor, incompleta, e com sons mais fechados). Prin
então nesse momento inicial me disse que a preparação é para abrir a cabeça
das pessoas; falou algo de cérebro, que eu não entendi; e se eu estava
interessada em espiritismo. Foi aí que fiz referência aos mistérios. Ao longo
da conversa ele reafirmou que eu não estava preparada, e me fez propostas de
que eu poderia trabalhar com isso [...] lhe disse que não era isso que queria
[...]. Antes havia me dito que se eu me preparasse, ele poderia me explicar
tudo, deixar eu gravar, escrever, fazer fotos das festas de São Miguel e
Anaisa, dos despojos/banhos. Que poderia me passar algumas gravações de
programas que foram feitos com ele. Por vários momentos me falou que as
minhas capacidades – não foi esse o termo – espirituais é uma herança de
família, que vem há várias gerações. Afirmou muito isso, e quando eu falei
sobre a mudança de tema da pesquisa, me explicou que isso aconteceu por
causa dessa minha sensibilidade espiritual (não usou essa expressão mas foi
esse o sentido). Que eu me senti tocada ao ver a botânica, uma energia
posistiva, que na verdade a mudança tem a ver com isso. Seguiu dizendo que
eu precisava de um batizado para estudar a ciência oculta. Eu perguntei se
essa iniciação me permitiria montar, pois não queria isso. Ele me disse que
sim, mas que não precisaria montar, mas teria que fazer, ter, não sei bem, os
7 pontos...
43
Mesmo com todas as ressalvas desse mistério sobre as exigências que, segundo
ele, me seriam colocadas para fazer a pesquisa (e a minha recusa em aceitá-las), eu tive
acesso nessa conversa a uma variedade de informações que posteriormente se
transformaram em dados etnográficos. Como Prin se apresentou, dizendo o seu nome e
origem, pude perceber como os mistérios são concebidos: espíritos de pessoas que
viveram como nós há tempos atrás. A partir disso, também mapear certa especificidade
dos mistérios face ao problema que havia colocado sobre a diversidade de agências
(santos e orichas) que eram mencionadas durante as práticas de comércio na botânica
em Porto Rico.
Além disso, uma inflexão relevante se deu. Pela primeira vez eu tinha um
mistério como interlocutor direto. Isso adensava as experiências que vinha tendo no
trabalho de campo. Os espíritos passaram a ser parte atuante da pesquisa. Se nesse dia
em San Francisco de Macorís me senti um pouco frustrada quando me dei conta que não
falaria com a pessoa do padrinho de Rosa, mas sim com o mistério que ele monta, no
decorrer da investigação outras pessoas me diziam que havia uma abertura ou demanda
de alguns mistérios, que queriam falar comigo
Como se nota nas transcrições do meu caderno de campo, é importante destacar
que a própria noção que eu perseguia – como se definia a categoria pessoa que tem os
mistérios – se tornou interna à relação que eu procurava estabelecer com meus
interlocutores. Penso que as considerações de Favret-Saada (2005) em “Ser Afetado”
explicitam um domínio interessante desse processo.
Também interessada em refletir sobre como foram obtidas suas informações de
campo, neste texto Favret-Saada revela que lhe foi necessário adotar um dispositivo
metodológico. Isto lhe permitiu a formulação de certo saber posterior à pesquisa.
Entretanto, não se tratava nem de observação participante, menos ainda de empatia.
Conforme a autora, seus interlocutores só falaram sobre feitiçaria com ela quando
pensaram que tinha sido tomada; quando reações que não estavam sob seu controle
significavam, para eles, que ela havia sido afetada pelas falas e atos rituais. De modo
que ninguém pensava em falar com ela pelo fato de ser etnógrafa.
A minha presença diante de Prin, e por que não pensar frente aos interlocutores
humanos da pesquisa, parece-me que também não era percebida a partir do meu
objetivo profissional e acadêmico. Ainda que para mim isto não fosse imediatamente
explicito, eles me viam (e Prin usou exatamente esse verbo: ele via um zombie em mim)
de determinada maneira. Com isso não quero utilizar um recurso de linguagem, mas dar
44
relevo a uma das capacidades sensíveis, atribuída tanto às pessoas quanto aos mistérios,
por meio da qual uma série de interações pode ser estabelecida ou rechaçada. Diante
deles, eu me tornara uma confluência também constituída por espectros, espíritos e
imagens. Uma ‘nova’ pessoa me foi delineada.
45
CAPÍTULO 1 DOM EM CIRCULAÇÃO
1.1 AS PESSOAS E SEUS MISTÉRIOS
1.1.1 A missão e os caminhos de Joana
– Eles disseram aos meus pais que eu tinha uma luz muito forte e era preciso
cuidar disso. A essa época Joana era uma criança, estava com cerca de sete anos.
Acompanhada de suas irmãs, ela cantava no coral de uma paróquia na cidade de La
Romana, costa sudeste da República Dominicana. Mas, no interior da igreja, Joana
desmaiava enquanto participava das atividades do coral e das missas católicas. Além
disso, era comum ela se sentir enfraquecida e doente. Um casal de idosos que
frequentava a mesma igreja e vinha observando os desmaios de Joana, decidiu procurar
os pais dela. Falaram com eles, então, nos termos acima. Eles [o casal] trabalhavam a
obra, Joana me disse.
28
Seus pais eram católicos. E Joana escutava o pai, em particular, volta e meia
dizer que só acreditava em Jesus Cristo e na Maria Santíssima (Virgem Maria). Por isso,
durante a infância dela, nas paredes da sua casa viam-se apenas os quadros de ambos.
No entanto, mortos familiares e de antigos amigos estavam sempre próximos do pai de
Joana. E, às vezes, incorporavam-se nele enquanto dormia. Ele assumia as
características físicas e gestuais dessas pessoas falecidas, mas depois não se recordava
de nada. Joana me disse que seu pai também era capaz de tumbar (derrubar) bruxas
invocando orações em La Romana, e era conhecido por isso. Inicialmente, entretanto,
seus pais nada fizeram para tentar conter o enfraquecimento que a acometia.
Joana estava com treze anos quando seus pais convenceram-se de que ela
precisava ser batizada. A tarefa coube ao casal de idosos que os havia aconselhado. O
batizado de Joana durou um ano. Na verdade, vários batizados. Pois ao longo desse
período o casal a levou para percorrer diferentes cidades da República Dominicana.
Conduziram-na a um cemitério, a sete igrejas católicas, ao mar e ao monte (áreas de
mato e bosque). 29
Em cada um desses locais, uma cerimônia específica foi realizada.
28
Expressão utilizada pelos meus interlocutores dominicanos ao se referirem às pessoas que têm os
mistérios, aquelas que atendem ritualmente esses espíritos e realizam consultas espirituais, o que chamam
de trabalhar os mistérios. 29
A espacialidade do monte está ligada, em várias ilhas caribenhas (Haiti, Suriname, Jamaica, Cuba,
República Dominicana, Porto Rico, Guadalupe, Martinica) à presença e ocupação das áreas de mato,
bosque e montanhas pelos chamados cimarrones, escravos africanos e crioulos que não se submetiam ao
poder colonial e fugiam para regiões isoladas e de difícil acesso, e que podiam também entrar em
confronto direto com os exércitos coloniais. Entre os meus interlocutores dominicanos, uma categoria
particular de espíritos, conhecida como los petroses, são concebidos como aqueles que em vida se
estabeleceram no monte, assunto que será discutido no terceiro capítulo. Esses espíritos são definidos por
46
Durante doze meses, Joana vestiu apenas roupas brancas. Para Joana, o batizado é
importante porque tranquiliza os espíritos.
Para Joana, seu enfraquecimento e desmaios deviam-se a força dos seres de luz
na sua vida, que a derrubavam (tumbaban) no chão. Os mistérios são a luz a que ela fez
referência nas nossas conversas.
Joana reconhece que trabalha esses espíritos desde que terminaram as
cerimônias de seu batizado. E isso já durava quarenta e um anos, quando a conheci em
2010 em uma botânica em Río Piedras. Após a fase mais crítica da infância, Joana
passou a ser procurada em sua casa por vizinhos e mesmo estranhos. Suas capacidades
divinatórias atraíam outros. Aos treze anos, ela também engravidou de um namorado,
com quem teve seu primeiro filho. Na juventude trabalhou em restaurantes em La
Romana, e, anos mais tarde, quando se casou com um comerciante dominicano com
quem teve duas filhas, passou a ler as cartas, consulta feita aos mistérios por meio de
um jogo de baralho espanhol. Primeiro, para algumas amigas. Depois, para
desconhecidos. A solicitação dos trabalhos,30
especialmente para os relacionamentos
amorosos, começou a aparecer nessas consultas iniciais, e Joana passou também a
prepará-los.
No entanto, assumir a tarefa de trabalhar os mistérios não ocorreu sem
questionamentos. Joana sempre insistia comigo que pôr suas capacidades divinatórias à
disposição de outros não foi uma escolha sua. Os mistérios foram preponderantes nesta
decisão. Ela sabe que tem os mistérios desde o seu nascimento. Os eventos que a
debilitaram na infância eram uma mostra do que ela definiu como a força dos espíritos
sobre si mesma. Assim como a sua capacidade de relatar e prever acontecimentos ou de
gerar outros quando, depois de invocar os santos por causa do que considerava uma
agressão contra si, observava os responsáveis por tais atos prejudicados econômica e
fisicamente.
meus interlocutores dominicanos como tendo comportamentos violentos, intransigentes e rebeldes.
Historicamente foram associados às vitórias dos escravos crioulos e africanos em Saint Domingue (que se
tornou a república do Haiti no início do século XIX) contra o domínio colonial francês. Meus
interlocutores dominicanos não costumam nomear os espíritos dessa categoria individualmente. Usam
com mais frequência o termo petro para fazer referência a esses mistérios. 30
Trabalhos são objetos criados em potes, preparados a partir da manipulação de velas ou de órgãos de
animais que os interlocutores dominicanos fazem para os clientes incorporando os mistérios ou invocando
esses espíritos. Geralmente quando esses compósitos são feitos à base de substâncias como óleos,
especiarias e outros alimentos os dominicanos os chamam de serviço. Esse assunto será tratado no
próximo capítulo.
47
Ainda na juventude, durante as consultas que ela fazia com terceiros, Joana
ouvia com frequência um aviso. Diziam-lhe que ela veio ao mundo para trabalhar os
mistérios. Essa era a sua missão. E, em caso de recusa, esses espíritos a levariam. Para
Joana, isso queria dizer que ela morreria e outra pessoa seria colocada em seu lugar. Já
os mistérios reencarnariam novamente em quem fosse substitui-la. Ainda assim, ela me
dizia: – Eu não queria saber disso para nada, para nada!
Com um sorriso um tanto desconfortável em seu rosto, sinal mais de
preocupação que exatamente de satisfação, Joana explicava-me que, quando morresse,
seus filhos ficariam em uma situação complicada: – Eles têm seus mistérios, têm sua
proteção através de mim. Com o seu falecimento, um deles teria que começar a
trabalhar e assumir a atenção ritual que ela vinha dando a esses espíritos há décadas. O
problema, nesse caso não mais para ela, mas para seus descendentes, é que nenhum dos
três gostava disso.
No decorrer das consultas, Anaisa – chamada de metresa pelos dominicanos –
era o espírito feminino que mais se apresentava quando Joana jogava as cartas para os
clientes.31
São Miguel Arcanjo e Santa Marta A Dominadora, outra metresa, também
são seus mistérios protetores; ambos se apresentavam durante as consultas e
intervinham no auxílio e na resolução das suas dificuldades cotidianas: – Eles resolvem,
acomodam as situações para mim. É preciso ser fiel a eles, ser leal. Eu sou uma pessoa
que sigo meu caminho e não me deixo influenciar... eles [esses santos] não fazem nada
de graça, é preciso dar algo em troca.. Eu os atendo e eles me assistem, Joana
argumentou comigo.
1.1.2 A árvore de Gina
– Joana, por exemplo, trabalha isso, e quando a pessoa falece os filhos e filhas
dela, alguns deles, inevitavelmente, vão ter que trabalhar, foi o que Gina comentou
quando soube o motivo de minha presença junto à Joana na botânica, que, então, reagiu:
– É mais comum os netos, mas se não há netos, são os filhos mesmos.
Já havia notado a ida de Gina à botânica em outras ocasiões, ora acompanha de
um casal de crianças (seu filhos), ora de uma senhora que me parecia ser sua mãe. E, às
vezes, de outra mulher que se parecia muito com ela. Quando Gina para lá se dirigia,
31
Metresa é uma corruptela de maîtresse, termo que no vodu realizado no Haiti nomeia um espírito
feminino conhecido como Metresili: uma mulher que se apresenta em um estilo burguês crioulo,
vinculada aos padrões de feminilidade da época colonial e geralmente concebida como acompanhante e
amante de personagens masculinos, especialmente aqueles ligados às forças de guerra. Entre os meus
interlocutores dominicanos, não apenas Metresili, mas outros mistérios femininos são chamados de
metresa.
48
estava à procura de alguma mercadoria. Sempre perguntava sobre velas, imagens de
santos e óleos.
Gina trabalha os mistérios há nove anos. Como Joana, ela também relutou em
assumir esses espíritos. Isso ocorreu quando ela já não vivia mais em Miches, sua
cidade na República Dominicana, mas trabalhava como empregada doméstica em Porto
Rico. Era comum que Gina caísse ao chão e perdesse a consciência enquanto realizava
suas tarefas nas casas das patroas. À noite, quando saía para se divertir, bastava ingerir
um pouco de rum ou qualquer outra bebida alcoólica para dar início às consultas na rua
ou dentro dos bares. Os mistérios montavam ela. Para Gina todas essas situações eram
constrangedoras. Entretanto, faziam-se cada vez mais comuns.
Quando passava diante de alguma botânica, ela se detinha em frente. Olhava os
quadros, as imagens de santos. Sentia-se de alguma forma capturada, ao mesmo tempo
em que se perguntava: – Por que eu? Depois da repetição dos desmaios nas casas em
que trabalhava e das consultas cada vez mais frequentes nos espaços públicos, ela
desistiu de sua ocupação como empregada doméstica. Começou, assim, a se dedicar à
consulta espiritual de terceiros. Gina recebe os clientes em um altar organizado dentro
da casa em que mora com seu casal de filhos e o marido, em Río Piedras. Mas já havia
oferecido as consultas na mesma botânica em que conheci Joana e atuado em outras.
Durante aquela conversa na botânica, depois de ter indagado à Joana se ela havia
me dado um número – informação que os mistérios comunicavam à Joana, conhecida
por receber até oito mil dólares nas loterias de Porto Rico e da República Dominicana –
Gina me questionou: – O que você quer saber sobre os mistérios? Isso é como uma
árvore com raízes, ela argumentou, movendo suas mãos em sentido vertical e em
seguida espalhando seus dedos. Gestos que procuravam demonstrar que as raízes e os
galhos se propagavam: os que chegavam (novos nascidos) continuavam a trabalhar.
– Meu avô, minha avó trabalhavam os mistérios, e eu faço parte disso. Isso é
algo que se passa pela família, e os mistérios são quem decidem até quando eu vou
seguir trabalhando. Cada cabeça é um mundo e os mistérios pegam (cogen) as cabeças
que eles querem.
Além de Gina, sua irmã, a outra mulher que a acompanhava algumas vezes na
botânica, realizava consultas também em Río Piedras. Sua família há muito mantinha
relações com esses espíritos. Quando passei a frequentar a casa de Gina e a observar seu
altar, ela comentou que sua mãe trabalhou com São Judas Tadeu. Perguntei-lhe, então,
se isso havia ocorrido quando ela era uma criança: – Naquela época eu ainda não
49
estava nesse mundo, Gina me respondeu. Ela me explicou que isso ocorreu no final dos
anos 1950, no início dos 1960, e que ela mesma só nasceu em 1973. Quem lhe detalhou
o modo como sua mãe trabalhava com aquele santo foi São Santiago Apóstolo/Ogun
Balendyó, o mistério protetor de Gina. El patrón, como às vezes ela o chamava.
1.1.3 No meio disso: Rosa e Diogo
Foi salientando que se trata de um dom com o qual se nasce, algo natural, que
Diogo certa vez me contou, sem que eu esperasse, que tem os mistérios, em particular o
espírito de uma mulher chamada Anaisa.32
Mas também um espírito chamado de Barão
do Cemitério.
Diogo era marido de Rosa, minha principal interlocutora durante os primeiros
meses que estive em Porto Rico. Ele me parecia sempre muito desconfiado e reticente
quanto ao assunto da pesquisa de doutorado. Se Rosa permitiu, prontamente, que eu
ficasse com ela na botânica, fazendo-lhe perguntas, anotações e fotografias, enquanto a
ajudava com as vendas, Diogo me via com certa suspeição. Meu interesse por um
assunto que não apenas ele, mas também Rosa e outros dominicanos com quem convivi
demonstravam reserva, gerava nele certo desconforto.
Entretanto, Diogo disse-me que também tinha os mistérios quando estávamos na
botânica de Rosa, na Plaza del Mercado. Logo depois que retornei ao Brasil, em abril de
2010, Rosa viajou para o Alasca. Ela havia se cadastrado, via internet, junto à Trident
Seafoods, uma multinacional pesqueira norte-americana com base no Alasca e no
noroeste do Pacífico. E havia sido recrutada para trabalhar no processamento de salmão
por cerca de três meses. Com isso, a botânica ficou sob a responsabilidade de Diogo.33
Na ausência de Rosa, Anaisa subiu nele. Na ocasião, ele havia entrado na loja
para procurar uma mercadoria a pedido de uma cliente. Por isso, ele me disse, não
gostava de ficar no interior da botânica. Ao sair Diogo começou a rir sem interrupção.
Parentes e conhecidos que estavam próximos dele não compreenderam o que acontecia.
Diogo acreditava que não estava ainda maduro. Por isso, era incapaz de se controlar
quando a metresa se aproximava.
32
O mesmo mistério feminino de Joana. 33
Diogo e o irmão caçula de Rosa se cadastraram também no site da empresa, mas não foram recrutados
como ela. Meses depois, o irmão caçula foi chamado, mas teria que se apresentar em um escritório da
empresa em Washington, nos EUA. Sua condição econômica, no entanto, não lhe permitiu fazer a viagem
50
Nessa ocasião, ele me explicou que ter os mistérios é uma coisa de família.
Minha avó tem, meu tio também,34
e eu cresci no meio disso. Minha tinha recebeu da
minha avó, mas ela não ficava bem quando os seres se colocavam [se ponían] e não os
quis, Diogo argumentou comigo.
Diogo e Rosa são de cidades do norte da República Dominicana, da região
conhecida como Cibao, mas se conheceram em Porto Rico. Ele nasceu em Isabela; ela,
como eu pude visitar, é de um bairro rural, antiga região de cultivo de arroz em San
Francisco de Macorís. Enquanto Diogo chamou a minha atenção para o caráter natural e
familiar de seu dom, Rosa pouco falava sobre o aspecto familiar dos seus mistérios.
Enquanto conversávamos certa vez na botânica, perguntei-lhe com quem havia
aprendido sobre tudo aquilo que vendia ali. Rosa argumentou que isso é como uma
coisa que te falava, ninguém te ensinou, Deus e os santos te dão os conhecimentos. Ela
percebeu que possuía esses conhecimentos quando vivia ainda na República
Dominicana e estava com cerca de dezessete anos. Nessa época, Rosa me disse, semi-
desperta [em estado de sonolência], se sonha a coisa [com as situações], vê a coisa [o
que aconteceu ou acontecerá], vê uma pessoa e sabe o que se passou. É um dom que
Deus te dá.
Ela dizia que em sua família não havia outros que tinham esses espíritos,
somente ela. Nossas conversas giravam, basicamente, em torno dos banhos, limpezas e
trabalhos. Era isso o que Rosa recomendava aos clientes, amigos e parentes, cujas
mercadorias eram geralmente adquiridas na botânica. Conversávamos, ainda, sobre as
peculiaridades de alguns mistérios, especialmente São Miguel Arcanjo, seu santo
protetor.
Mas no decorrer de uma conversa com um assíduo cliente porto-riquenho, Rosa
se referiu a um antigo parente seu, adoecido em uma cama havia muitos anos. O
comportamento do homem idoso seria repetido por uma cobra enroscada em uma árvore
no quintal. Isso era o que vinha sendo contado entre os familiares ao longo dos anos.
Ele era um antepassado seu, o cliente lhe falou. Ao que Rosa, apenas acenando com a
cabeça, respondeu que sim. A possibilidade de um vínculo espiritual entre o senhor
adoecido e o animal perpassou tanto o comentário do cliente quanto o gesto positivo de
Rosa.
34
Padrinho de Rosa nos mistérios, que cuidava dela espiritualmente e a quem fui levada para conhecer
quando viajei com Rosa até sua cidade natal, San Francisco de Macorís, na República Dominicana, em
outubro de 2010. Viagem a que fiz referência na Introdução.
51
Era provável que ela não fosse a única a ter os mistérios em sua família. Sua
irmã mais velha, que vivia no bairro San Jose, próximo a Río Piedras, possuía, assim
como Rosa, capacidades divinatórias através dos sonhos. Além disso, enquanto
conversávamos no quintal da casa que Rosa construiu para os pais e a filha em San
Francisco de Macorís, suas jovens primas com pouco menos de vinte anos comentaram
que uma delas sempre ia ao chão quando participava das missas da igreja católica local.
Os parentes adultos suspeitavam que ela também tivesse os mistérios.
Devido à convocação para o trabalho com o processamento do salmão na
Trident, Rosa adiou seu batizado em San Francisco de Macorís. As cerimônias seriam
conduzidas por seu padrinho nos mistérios, tio de Diogo. E deveriam ser realizadas em
fins de maio de 2010. Mas no início de junho ela deixaria Río Piedras rumo ao Alasca.
Para Rosa, a comunicação que mantinha com os mistérios, não apenas por meio dos
sonhos, mas também da audição e visão, era um dom com o qual havia nascido. Irritada,
a vi certa vez reclamar com Diogo e a irmã com quem morava sobre uma borícua35
que
estava aprendendo a fazer os trabalhos.
Rosa gastava boa parte de seu tempo na botânica vendendo e ensinando sobre o
uso de produtos, objetos e plantas para retirar as coisas más (sacar las cosas malas).36
Além disso, recomendava a aquisição de imagens de santos e velas para a organização
de altares domésticos como forma de cuidar e estar pendente aos santos; e, ainda,
preparava os trabalhos porque é uma pessoa que têm os mistérios. Para ela, o
aprendizado sobre esses assuntos era contrário (e mal visto) à sua própria experiência,
ao que ela definia como o seu dom.
1.2 CONECTANDO ‘PESSOAS’, FAMÍLIA E ESPÍRITOS
Meus interlocutores, dominicanos e mistérios, definem alguns desses espíritos
como a força da pessoa.37
Isso significa que é por meio de uma série de práticas rituais
que a disposição e a capacidade cotidianas para a realização da vida daqueles que têm
35
Termo do grupo indígena taino que designava a atual ilha de Porto Rico como Borinquén, é utilizado
com o sentido de identidade porto-riquenha. 36
Para os meus interlocutores dominicanos, as coisas más são espíritos invisíveis e anônimos enviados
por meio de bruxaria para causar malefícios aos seres humanos. Mas também se emprega o termo em
referência aos mistérios conhecidos como petroses. Joana e Antonio, por exemplo, assim chamavam os
petroses. 37
As pessoas possuem geralmente um mistério protetor e outros dois que se fazem também presentes em
seu cuidado e auxílio. Esses três espíritos não são obrigatoriamente os mesmos que protegiam os
antepassados familiares. Outros mistérios, no entanto, devem ser atendidos ritualmente e podem montar
essas pessoas. Há, no entanto, uma hierarquia nessa forma de incorporação. Alguns mistérios são
impedidos de passar, ou seja, de montar as pessoas, pelo mistério protetor (ou pelos outros dois
principais). No segundo e quarto capítulos, descrevo algumas situações em que isso ocorreu.
52
esses espíritos são ativadas e conservadas. Nesse sentido, manter ritualmente os
mistérios como uma potência para si requer das pessoas engajamentos de ordens
diversas. Um desses engajamentos diz respeito ao fato de que, ao serem recebidos, os
mistérios solicitam retribuição. “Que força faz com que se retribua uma coisa recebida,
e em geral se executem os contratos reais” (MAUSS, 2008, p. 60) é um questionamento
pertinente, também, para aqueles que atendem e trabalham os mistérios.38
O fato de que fluxos de força – de dom espiritual concebido como potência
pessoal – sejam debitados a uma conexão familiar levou-me a procurar entender como
essa ‘relação’ é compreendida. Isso é o que farei nesta seção. Na seguinte, tentarei
demonstrar quais são as implicações de receber um dom espiritual porque se é parte de
uma família e como o dom age e constrange aqueles que o receberam, ou seja, o que
essa transmissão cria contemporaneamente para as ‘pessoas’. Para isso, considero a
sugestão de Marilyn Strathern de que a ideia de “força vital” pode ser compreendida
como uma potência transferível. Assim procuro lançar luz às narrativas de Joana, Gina e
Diogo acerca dos ‘dons’ por eles recebidos.
Em uma reflexão sobre o papel estético de substâncias como a gordura entre os
Etoro do interior da Papua Nova Guiné, Strathern (1999, p.47-48) sublinhou a
importância dos arranjos sociais concernentes ao fluxo da força vital que os homens
faziam circular entre si. Para os Etoro a imagem negativa de uma pessoa que não
dissipa, mas, antes, acumula a vitalidade dos outros, é de caráter estético, liga-se à
forma ampla do corpo. Por consequência, um corpo franzino ao final da vida de um
homem é o esperado. Tal forma indica que as gerações mais antigas conferiram seus
corpos às mais jovens; estes absorveram a força vital daqueles.39
Por isso a força vital não deveria ficar alojada durante muito tempo no corpo, o
importante era que pudesse fluir. Buscando isso, os homens a mantinham em constante
circulação sob a forma de doação de sêmen, de provisão de carne (alimento que induz o
crescimento) e da distribuição de conchas valiosas (riqueza); todos signos de vitalidade.
Deste modo, os homens Etoro eram capazes de rastrear a expansão e o esgotamento da
força vital em sua relação com os outros. Um homem era, na juventude e no início da
38
No entanto, o que me interessa por enquanto não é exatamente a descrição desses modos rituais entre os
dominicanos e seus espíritos herdados, o que farei no segundo capítulo. 39
Conforme Strathern (1999, p.50), os Etoro não interpretam o crescimento e a forma da pessoa como
uma consequência direta da ingestão de comida comum. A autora afirma que foi nesse momento, ao
estabelecer uma imagem de algo preenchido com carne, que se deu conta que introduziu,
deliberadamente, a massa, um sentido de volume e peso, a solidez que os falantes do inglês associam com
a ideia de substância.
53
vida adulta, recipiente da força vital de outros homens, até o momento em que se
tornaria doador, conferindo-a aos mais jovens. A força vital era transmitida às crianças
não-nascidas por meio do intercurso sexual, aos meninos através da inseminação ritual,
e a outros nas transações com conchas e carne, cuja doação era tida como equivalente à
transmissão (STRATHERN, 1999, p.49).
Guardadas as diferenças entre o que consiste a força vital para os Etoro e aquilo
que meus interlocutores chamam de força da pessoa – os espíritos recebidos de seus
antepassados – descrevo a circulação dos mistérios como um processo em que ‘pessoas’
são singularizadas. Para isso, é importante um exercício reflexivo em torno do que
consiste esse dom e como ele circula pela família. Para isso, eu não tomo, como
observou Carsten (2000, p. 1), o conteúdo do “parentesco” como garantido. O que faço,
seguindo as considerações dela, é tentar construir uma imagem das implicações e da
experiência vivida dessa forma de relacionar-se.
Chamo de ‘circulação do dom’ a transmissão dos mistérios de antepassados
familiares (vivos ou mortos) a seus descendentes. Aqui a família é compreendida como
uma configuração relacional produzida pela reprodução sexual e desta deriva a
reprodução social. Neste sentido, a compreensão dos meus interlocutores assemelha-se
‘parcialmente’ ao que vem sendo chamado de modelo cultural euro-americano do
parentesco (CARSTEN, 1995, 2000; BAMFORD, 2004). Parcialmente porque o que é
transmitido nessas famílias, ao mesmo tempo em que se assemelha a esse modelo
cultural, o torna mais complexo: trata-se de espíritos que também chegam a filhos e
filhas, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas.
Se a família é vista enquanto uma configuração ramificada de genitores
primários – e recupero aqui a imagem da árvore com raízes evocada por Gina –, o que
passa por ela não se limita a substância biológica. E isso apesar de o sangue ser evocado
como índice substantivo que explica as conexões familiares tanto do ponto de vista de
meus interlocutores dominicanos quanto de seus mistérios. Por ora, darei um exemplo
de como o sangue é mobilizado pelos primeiros. Mais à frente, de como os mistérios
também falam empregando essa noção.
Quando acompanhei Rosa a San Francisco de Macorís, na República
Dominicana, conversei com uma jovem que era conhecida na cidade como alguém que
sabe muito. Um primo de Rosa me levou para conhecê-la por causa das capacidades
divinatórias dessa jovem. Em sua casa, ela explicou-me que existiam pessoas que, como
era seu caso, tinham os mistérios para desenvolver. Outras, como eu mesma, tinham
54
para cuidar de si. Quando eu lhe perguntei sobre como ela aprendeu suas capacidades
de adivinhação e comunicação com esses espíritos, ela argumentou que isso não se
aprende: é alguma coisa com que as pessoas nascem e vem da família. Ela ainda
argumentou comigo que herdou dos dois lados, materno e paterno, e assim me explicou:
– É algo que tem a ver com a raça, o sangue, ela me dizia enquanto apontava para as
veias de seu braço.
Chamar a atenção para essa maneira como se explica o recebimento do dom
espiritual é enfatizar apenas um tipo de transferência a que os mistérios se ligam. Como
a jovem de San Francisco de Macorís argumentou comigo – mas também Diogo, Rosa,
Gina e Joana –, essa transferência é localizada como um processo natural.
Mas é importante que eu faça a seguinte consideração: conceber os mistérios
como um dom inato no sentido de que alguém nasceu ou foi escolhido para ter esses
espíritos devido à sua conexão familiar não tem tanto a ver com uma concepção em que
aquilo que é natural se equaliza a algo dado ou espontâneo. Pretendo demonstrar que
meus interlocutores definem esse dom como sendo de ordem natural situando-se em um
ponto de vista muito particular. Essa naturalidade do dom espiritual se explica em
oposição ao que eles chamam de compra de espíritos (ou espíritos comprados).
Essa é uma prática ritual que permitiria a obtenção de mortos e dos mistérios por
meio de certos modos rituais caracterizados pelo contrato. Comprar os espíritos
contrapõe-se a recebê-los naturalmente porque, no primeiro caso, há a intencionalidade
humana de estabelecer relação com essas entidades.40
Assim, quando os meus
interlocutores dominicanos se referem aos mistérios como algo inato, o que pretendem
informar é que não foi uma decisão deles ter esses espíritos. Embora seus antepassados
familiares sejam os doadores do dom, à frente estavam os próprios mistérios (há quem
fale em Deus) na escolha das cabeças humanas que os receberiam.
Essa é uma perspectiva singular sobre o que é visto como o caráter natural
daquilo que foi recebido dos parentes que pertencem a gerações anteriores. Há ainda, no
entanto, espaço para outras compreensões. Para os meus interlocutores, o que está em
jogo não é apenas um processo de transferência de substância que garante a manutenção
40
A descrição de práticas sobre a compra, o pagamento e a coerção de espíritos, enfatizando a alienação,
o trabalho e o contrato, são aspectos comuns às etnografias contemporâneas que discutem cosmologia,
modos rituais e formas de socialidade no Caribe. Dois sistemas rituais vêm sendo, em alguma medida,
contrapostos na literatura. No Haiti, os rituais vodu radá (ligado aos espíritos familiares) e petro (nos
quais seria possível entreter relações de compra de espíritos, ainda que alguns dos espíritos petro também
se definam como herança familiar). Em Cuba, os sistemas religiosos da regla de ocha (culto yorubá) e
das reglas del palo monte (de fundamentos congo). Cf. RICHMAN, 2008; PALMIÉ, 2002; 2006.
Discutirei esses modelos rituais contrastantes no segundo capítulo.
55
ritual dos espíritos porque com isso são gerados novos nascidos, novas pessoas. São
também modos diversos de “dispor”, enquanto atos intencionais de “trabalho social”
(STRATHERN, 1999, p. 46), que são transmitidos aqueles que têm espíritos. O que
quero dizer com isso é que tais seres humanos engajam-se em uma série de relações
sociais na medida em que assumem o cuidado e o trabalho ritual. São essas relações que
também passam para aqueles fazem parte dessas particulares famílas.
Sugiro que, no caso dos meus interlocutores dominicanos e seus mistérios, não
se trata de conceber a transmissão dos espíritos como um processo que garante a
continuidade de um vínculo unicamente substantivo. Seja esse vínculo entendido como
oriundo da reprodução biológica de indivíduos do “mesmo sangue” (intercurso tido
como natural porque os espíritos não foram comprados, mas vieram da família), seja
esse vínculo proveniente da obrigação ritual de alimentar os espíritos herdados enquanto
uma prática que seria inerente à família.
Possíveis aproximações com algumas leituras recentes sobre parentesco podem
oferecer pistas interessantes para o entendimento de noções como herança e transmissão
de substância. Crítica quanto à permanência de uma abordagem substantiva nos estudos
contemporâneos sobre o parentesco produzidos por Janet Carsten e outros autores,
Bamford (2004) observa que, apesar do aparente conforto que as noções kamea sobre a
transmissão de substâncias corporais do pai e da mãe poderiam ter frente aos princípios
do modelo ocidental, o que conta para a definição das capacidades de reprodução
feminina de uma menina vem de outros fluxos: dos presentes doados pelos afins do
noivo a partir da aliança entre primos-cruzados da segunda geração. Isso não é dizer que
os pais kamea deixam de transmitir substâncias aos seus filhos. Eles o fazem. A
diferença é que não são tais substâncias que permitem a uma menina amadurecer e gerar
sua própria prole, singularizando-se da perspectiva de um gênero. São as dádivas
recebidas da família do noivo, posteriormente dele próprio.
Os argumentos de Bamford orientaram minha releitura do importante trabalho
de Karen Richman na comunidade haitiana de Ti Rivyé, em Léogâne, Haiti. Lá o uso do
termo famni/eritaj celebrava o primeiro proprietário da terra na qual se viveu e cultivou.
Os membros da famni partilhavam os direitos da parcela fundiária e herdavam através
do sangue todos os espíritos antropomórficos servidos por aquele fundador (Richman,
2008, p.117-118). Para Richman (2008, p.157), seria difícil pensar a transmissão dos
espíritos alijada da prática de servi-los ritualmente nas terras familiares. Alimentá-los
56
nesses espaços era a atividade constitutiva da eritaj (parcela da terra familiar) do grupo
de descendência.
Richman se ateve à relevância da prática de alimentar os espíritos herdados
(obrigação ritual) como um processo de produção por meio da qual são “criadas pessoas
e relações pessoais”, ainda que, para a autora, tal prática seja capturada por uma lógica
mais ampla: a partilha de alimento entre os próprios haitianos (seres humanos) é o que
se reflete nas interações com seus espíritos. “Alimentar é o símbolo que resume o
processo de produção – criando pessoas e relações pessoais – e não é surpreendente que
a alimentação envolva as relações rituais (RICHMAN, 2008, p. 157)”. 41
Mesmo considerando que alimentar – “servir os espíritos” em Ti Rivyé – é uma
prática em que são criados laços substantivos entre os membros da famni e seus
espíritos herdados e a terra, Richman parece conferir pouca relevância a que tipo de
compreensão sobre si alguém revela quando afirma “eu sirvo meus espíritos”.
Partindo das considerações de Bamford e do material etnográfico sobre os meus
interlocutores dominicanos e seus mistérios, pretendo demonstrar que não é apenas a
oferta de alimentos (substância), em troca do bem-estar da famni ou da restituição de
auxílio junto aos seus membros, que caracteriza a manutenção ritual dos espíritos
herdados. São também formas de socialidade – a isso meus interlocutores chamam de
trabalhar os mistérios – que são transferidas pelos antepassados e garantem a
continuidade dessas entidades no mundo dos vivos.
Além disso, mesmo nas descrições dos meus interlocutores dominicanos em que
estão em jogo práticas substantivas, a elas se articulam noções tão particulares sobre a
pessoa e seu corpo (concebido como algo disponibilizado para o consumo dos mistérios
e instrumentalizado por esses espíritos para o trabalho ritual com os clientes), que seria
difícil pensar aquelas práticas como opostas ao que Richman chama de
“contratualização da substância”.42
Em Ti Ryvié a transmissão dos espíritos pelos antepassados reivindica um
discurso sobre substância entendida como “sangue, alimentação e descendência”.
Mobilizando as considerações de David Schneider, em que substância tem a ver com o
41
De qualquer modo, Richman esteve atenta ao que Carsten (1995, p.223) descreve como um
componente vital no processo de tornar-se uma pessoa e participar dar relações sociais, a prática de dar e
receber alimento, como já salientei na Introdução. O que, em Ti Rivyé, foi descrito como incluindo a
alimentação ritual daquelas entidades face à singularidade do que significa aí ser relacionado a uma
fanmi. 42
Do ponto de vista dos interlocutores dominicanos, dentre as diversas modalidades de incorporação dos
mistérios, algumas geram uma experiência de destacamento entre a pessoa e seu corpo. Esse passa a ser
concebido como lócus de consumo dos espíritos. Discutirei essa questão mais à frente.
57
que “é interno e inseparável da pessoa”, Richman constrói em sua etnografia a imagem
de que a reprodução da famni e dos espíritos herdados ao sucumbirem, socialmente e
ritualmente, a mudanças econômicas baseadas em diversas formas de alienação, passam
a depender de relações ou indivíduos intermediários (RICHMAN, 2008, p. 148).
Para Richman, alienar (ritualmente, inclusive) é uma consequência do que foi
gerado pela capitalização das terras da famni por empresas norte-americanas. Ao se
estabelecerem em Léogâne, essas corporações transformaram os camponeses haitianos
em trabalhadores imigrantes e produtores (mantenedores) dos camponeses e da cultura
tradicional.43
Sua crítica à economia ritual transnacional documentada na Flórida e em
Léogâne baseia-se principalmente na indicação do quanto de trabalho, especialmente
daqueles que emigram e tornaram-se mão-de-obra assalariada explorada pela
agroindústria nos EUA, incorpora-se às remessas enviadas aos seus parentes em Ti
Ryvié.
Com tais somas monetárias, em geral transferidas em dólar, os que ficaram no
Haiti procuram aplacar a fúria de seus espíritos, que se sentem esquecidos e
abandonados pela fanmi, especialmente pelos emigrados. Por isso é preciso alimentá-los
nas terras familiares. Para Richman, esse engajamento pretende garantir a mutualidade
entre seres humanos e seus espíritos, mas explicita interações em que os imigrantes nos
EUA aparecem como produtores de riqueza e seus parentes camponeses (e as entidades)
consumidores dela no Haiti. No entanto, reciprocidade não deve ser entendida como
altruísmo, tampouco ações econômicas com motivações economicistas (STRATHERN,
1999, p. 18-19).
Logo, considerar o material etnográfico sobre os meus interlocuotores
dominicanos e seus mistérios revela que são ‘pessoas’ concebidas enquanto ‘parentes’
que parecem incorporar em si mesmas um tipo de transferência especial. E essa não se
resume à substância, como discutiu Richaman. O dom que passa pela família – os
mistérios e as diversas formas de comunicação com eles – circula porque os
antepassados transmitiram não apenas substância (sanguínea e alimentar) a seus
43
Richman (2008, p.148) se refere à instalação da Haytian American Sugar Company e à capitalização
das terras familiares. Conforme ela, ao mesmo tempo em que a terra, elo de ligação entre os membros do
grupo de descendência e seus espíritos herdados, era comercializada, inventavam-se novas tradições
rituais em Ti Rivyé. Ela documenta as mudanças rituais que criaram a figura do intermediário ritual, o
gangan ason, entre os membros de um grupo de descendência e seus espíritos herdados, que passam a
consultá-lo, pois já não se comunicam através do sonho e da possessão com suas entidades; o ritual de
iniciação das mulheres, que pagam ao gangan ason para começar a invocar e servir seus espíritos do
grupo de descendência; e o ritual de retirar os antepassados familiares já falecidos debaixo das águas, e
objetificá-los como espíritos oraculares do grupo de descendência dentro dos altares domésticos.
58
descendentes e a seus espíritos. Seus descendentes receberam, também, outros meios de
criar conexões com os espíritos, como venho enfatizando. Meios que não se limitam a
alimentá-los. Sobre isso sabia Gina quando me falou: – Meu avô, minha avó
trabalhavam os mistérios, e eu faço parte disso. Como será visto ao longo deste
capítulo e do segundo, dispor a outros (alienar) e pagar não são aspectos que Gina
experiencia como estranhos, sendo alguém que têm os mistérios, às suas conexões
familiares.
Trabalhar os mistérios propicia um modo de vida particular. Recebê-los
pressupõe engajar-se em várias relações sociais e na criação de diferentes artefatos.
Trabalhar significa que a interação pessoa e seus espíritos herdados não se encerra em
uma relação diádica (ou familiar), mas estende-se a outros, chamados de clientes. Como
salientaram Joana e Gina, esses espíritos pedem e por vezes fazem com que isso seja
inevitável. Com isso, as pessoas são levadas a pôr suas capacidades divinatórias à
disposição de terceiros. Elas lidam com os clientes por meio das consultas. Em troca,
são pagas por isso. Trabalhar quer dizer, ainda, organizar os altares para esses espíritos
no interior dos ambientes domésticos. Desse modo, os mistérios são atendidos
(alimentados), o que, por sua vez, demanda a compra e o acesso a uma infinidade de
substâncias e outros materiais, além da própria atividade de composição dos altares. 44
Além de atender (alimentar com os serviços rituais) os mistérios e trabalhar
(lidar com os clientes com as consultas), frequentemente nos altares domésticos as
pessoas preparam os trabalhos: geralmente objetos compósitos que entram na esfera
coletiva a partir de sua comercialização para os clientes. Tendo como objetivo criar ou
alterar o estado dos indivíduos e/ou das situações em que eles se encontram, os
trabalhos podem ser preparados com os espíritos montados ou não.
Para os meus interlocutores, a comercialização dos trabalhos, as relações de
pagamento com os clientes, a compra e o consumo de substâncias e outros materiais por
seus espíritos não são práticas rituais exteriores aos seus vínculos familiares. Todas elas
lhes chegam com o dom.
Da perspectiva das pessoas (e como discutirei no segundo capítulo, também da
dos mistérios), seria difícil sinalizar, como fez Richman, que relações e indivíduos
intermediários, com os quais elas e seus espíritos herdados interagem, seriam externos à
44
Por meio da criação dos altares são fabricadas para os mistérios temporalidades e espacialidades
específicas. Assim, tenta-se recuperar para os espíritos o que foi a sua existência em vida, como discutirei
no terceiro capítulo.
59
cosmologia e à linguagem ritual aqui descrita. O fato de que gerações anteriores de
familiares tenham assumido compromissos com os mistérios, compromissos esses
definidos enquanto uma atividade quase sempre enunciada no tempo infinitivo –
trabalhar –, também cria as condições para que emerjam, potencialmente, novas
pessoas entre seus descendentes.
Se o dom é transmitido naturalmente, recebê-lo tem implícito, assim como um
dia esteve para os antepassados dos antepassados, a continuidade, a produção e o
desdobramento de várias relações (STRATHERN, 2009, 1999; BAMFORD, 2004).
Aí está um filho de um amigo meu. Aí há um filho de um amigo meu. Tu não
pode passar por baixo da mesa meu filho, porque teu, teu papai foi um fiel
filho e amigo dos mistérios. [...]. Tem a mesma cara, tem o mesmo sangue, e
tu tem que… [Belié Belcan fez um som com as mãos] Quando te digam: - Tu
és filho de fulano des tal [...]. Pois já. Dá-me um abraço. Como tu tá
garçon, bem? (Belié Belcan, 28 de setembro de 2010, Santurce.)
Decorria a festa de São Miguel Arcanjo, em que se celebra também o dia de
Belié Belcan, o mistério mais popular entre os dominicanos, quando esse espírito
alertou aos convidados sobre a presença do filho de um amigo seu. O rapaz caminhava
em direção a Belié Belcan, para cumprimentá-lo, enquanto o mistério lhe informava que
deveria assumir os espíritos de seu pai. Nesse momento, Belié Belcan destacou uma
‘relação’ entre ele (espírito) e o pai do rapaz como de amizade. A afinidade entre ambos
– e entre o pai do rapaz e outros mistérios – era em que consistia o vínculo transferido a
esse convidado da festa. Mas além da transferência da afinidade que o pai manteve com
os mistérios, Belié Belcan chamou a atenção para outro tipo de conexão que o rapaz
trazia consigo: ele tinha a mesma cara e o mesmo sangue. Para Belié Belcan, ele era
uma ‘pessoa’ vista a partir também da sua descendência linear: filho de outro filho dos
mistérios, e não somente de um amigo desses espíritos. Sem dizer exatamente como a
afinidade prefigurada (STRATHERN, 1999) e a continuidade sanguínea que
singularizam o rapaz como ‘pessoa’ deveriam ser por ele atualizadas, Belié Belcan lhe
antecipou, no entanto, um porvir.
1.3 INCORPORANDO O PARENTESCO
São momentos desse processo de atualização do dom, em que relações
prefiguradas se efetivam por meio de certos arranjos coletivos em que estão em jogo a
convivência e interação com os mistérios e outros seres humanos (inclusive os clientes),
mas também a confecção de objetos compósitos a serem comercializados e a recriação
60
de certos tempos e espaços nos ambientes domésticos das pessoas, que minha etnografia
captura.
Descrever as maneiras diversas como aqueles que se tornaram meus
interlocutores dominicanos e seus mistérios se relacionam em Porto Rico é, também,
trazer à tona (e em alguma medida imaginar) existências múltiplas de muitas outras
‘pessoas’: os mistérios, concebidos como espíritos que tiveram uma existência histórica
(pessoas que viveram como nós, como Gina me explicava), e os antepassados
familiares. Dentre elas, algumas não foram meus interlocutores diretos. Mesmo assim,
de maneira indireta, estão presentes nas interações e narrativas que conheci e relato.
Atualizar o dom, como a partir de agora descreverei, revela o que essa particular
forma de parentesco pode criar – a ‘incorporação da relacionalidade’ – e o que isso
significa para as pessoas.
1.3.1 Montar ou subir: percursos do dom no corpo
No caso de Gina, atender e trabalhar os mistérios são os modos rituais que ela
incorpora há nove anos. Por um lado, é assim que se atualiza o tipo de conexão familiar
da qual ela faz parte.45
Mas dizer que Gina incorpora, em seu cotidiano, relações de
trabalho ritual (e não apenas substância hereditária) porque receber um dom não é tudo.
Ela conhece outros fluxos corporais, que não terminam com a transferência dos espíritos
familiares. Esses fluxos, na verdade, desdobram-se a partir do engajamento dela com
seus mistérios.
Vários mistérios se incorporam à Gina. Montar ou subir são as categorias dos
meus interlocutores que descrevem a modalidade mais explícita da ação dos espíritos
sobre o corpo de uma pessoa que têm os mistérios.46
A modificação do comportamento,
do tom da voz, por vezes da tonalidade da cor da pele e dos olhos, das roupas, dos
objetos, adornos e gostos, e, em alguns casos, a assunção de modos animais, caracteriza
o que vem sendo chamado na literatura antropológica de possessão.
Gina trabalha os mistérios geralmente montada. E ela se refere a essa
modalidade de incorporação como subir porque começa a sentir os mistérios pelos
45
Como discutirei no segundo capítulo, esses modos rituais correspondem igualmente ao fortalecimento
da pessoa. Portanto, vão além de um compromisso que efetivaria apenas relações passadas. É com esse
engajamento que se produz a vitalidade diária de meus interlocutores dominicanos. 46
No entanto, é comum os interlocutores dizerem ele monta os mistérios ou eu subo um mistério; uma
inversão do sujeito da ação, que deixa de ser os espíritos e se torna a própria pessoa, assunto que será
discutido no próximo capítulo.
61
pés.47
Os espíritos então percorrem seu corpo: chegando ao estômago, passam pela
garganta em direção à sua cabeça (o que ela me indicou pondo sua mão na nuca). A
percepção que Gina passa a adquirir quando um mistério sobe permite-lhe descrever um
percurso desses espíritos por seus órgãos até que ocupem seu corpo. Para ela, os
mistérios localizam-se no estômago da pessoa, mas somente naqueles que os têm
naturalmente.
Contudo, não se trata apenas de uma sensação interna: – Quando um mistério
sobe, eu sinto um do lado direito, outro do lado esquerdo e um em cima, Gina me disse,
enquanto apontava para as laterais de seu corpo e espalmava as mãos em frente a ele. O
dom que ela incorpora produz, ainda, uma percepção espacial tridimensional. Embora
três mistérios fiquem ao seu redor, um em particular a transforma em cavalo, termo
empregado por esses espíritos para se referir às pessoas a que se incorporam.
As descrições de Gina sobre esse percurso interior dos mistérios aproximam-se
da proposição de Augé (1986, p.164) quando propõe que se imagine “o que é o percurso
dos deuses em direção ao homem”. Para ele, o próprio corpo humano poderia ser o
ponto de partida do vodu (espírito) entre os Fon, e dos ancestrais familiares, que se
localizam no dedão do pé entre os Yorubá.48
De acordo com os primeiros, se o que é
específico à divindade é “entrar na cabeça”,49
seria no rim que o vodu se encontra.
Entre os Fon e Yorubá, unções e sacrifícios são prestados aos órgãos e membros do
corpo por causa da força espiritual neles acolhida.
Para Augé, apesar de uma visão cíclica informar as narrativas míticas e os
discursos sobre a entrada dos ancestrais divinizados do exterior na cabeça dos fiéis, a
ideia de que o vodu e os antepassados yorubá estão nos órgãos permite pensá-los como
“potências e qualidades físicas incorporadas”, geralmente herdadas. Baseando-se nesses
47
Armando, outro interlocutor dominicano que monta os mistérios, que conheci na botânica em que Joana
realizava as consultas, também sente os espíritos inicialmente como um formigamento nos pés. 48
Cartry (1973, p.27), em publicação sobre a noção de pessoa na chamada África Negra, destacou que
vários pesquisadores acentuaram a importância de modelos de tipo biológico nas ideias africanas relativas
à estrutura da pessoa. Em algumas dessas sociedades, a criação humana seria descrita mais em termos de
um modelo biológico do que de uma fabricação artesanal. Para Cartry, isso explicaria as concepções de
que na placenta estariam inscritos alguns princípios espirituais entre os Mandinga, Yorubá, Ewé e
Gourmantché. Verger (1973, p. 62-63), por exemplo, chama a atenção que o orí, termo yorubá para
cabeça e que significa o local corporal onde a inteligência é assentada, ou ainda, o “guardião da alma dos
ancestrais”, retorna para a mesma família quando há um novo nascido. Ou seja, uma das dimensões
espirituais de uma pessoa yorubá, seu orí, também seria recebido por hereditariedade. Segundo o autor,
um culto ao orí, ou seja, a essa parte do corpo, era feito com oferendas, tendo início com o rei de uma
cidade e se estendendo por personalidades e titulados locais. Já a dimensão da pessoa mais conhecida
entre os yorubás, o òrìsa (e, conforme Verger, o vodun para os fons), seria “... ancestrais distantes cuja
lembrança foi mais ou menos perdida na noite do tempo e cujo caráter divino é sobretudo retido por seus
descendentes atuais” (Verger, 1973, p. 69). 49
« Car si les Fon disent que le propre de la divinité est de « monter à la tête » de ses fidèles... »
62
cultos, Augé sugere que, para ambos os fiéis, a reflexão e experiência sobre a alteridade
são produzidas fundamentalmente através de seus corpos, dos quais os Fon e Yorubá já
teriam se distanciado à medida que neles hospedam-se outros (AUGÉ, 1986, p.186).
A proposta de Augé de que a reflexão sobre a alteridade seja associada a tal
forma de incorporação espiritual me serve para pensar o que significa subir um mistério
para Gina. Não porque para ela seu corpo é anatomicamente constituído por potências
espirituais no mesmo sentido que entre os fiéis Fon e Yoruba. Embora Gina tenha me
dito certa vez que os mistérios estão no estômago, não tenho mais informações de
outros interlocutores sobre isso. E ela não se estendeu sobre o assunto.
O que saliento é que suas descrições sobre essa forma de incorporar os mistérios
demonstram o distanciamento que ela consegue tomar de seu próprio corpo. Sentir os
mistérios o percorrendo é assumir a perspectiva de quem pode falar de si ao mesmo
tempo em que se sabe que alguma outra coisa (neste caso, espíritos) transita em seu
interior. Se trabalhar esses espíritos é uma maneira ritual de efetivar relações familiares
anteriores, de singularizar-se como ‘pessoa’, o caso de Gina aponta para experiências
diversas que são sentidas internamente em seu corpo. Ela se singulariza porque recebeu
certos fluxos (de sangue e de trabalho ritual), mas também porque através deles
incorpora ainda sensações e percepções outras: ligadas a ação dos mistérios sobre ela e,
como descreverei adiante, às particularidades que cada mistério cristaliza. É lidando
com experiências sobre alteridade e produção de afetos e disposições múltiplas em seu
corpo que Gina se conhece enquanto uma ‘pessoa’.
Escrevendo sobre as reglas del palo, Ochoa (2004, p. 25, 39, 40, 41) destacou
que boa parte de seu aprendizado com sua interlocutora palera foi procurando entender
o que ela encontrava em suas “entranhas” e na sua pele. 50
De acordo com ele, ela estava
atenta aos “eventos” em seu corpo e sobre sua superfície como a ativação de seu
coração, a falta de ar, os arrepios e calafrios cruzando seu pescoço. Sob a insistência
dela, sua expectativa (simbólica) quanto ao que ela lhe narrava deu um salto
epistemológico. Compreender o pensamento dela requereu dele considerar literalmente
o que ela lhe dizia: que os mortos estavam em suas entranhas.
Segundo Ochoa, ela considerava as experiências tais como a falta de sono e
aflições não como “signos” dos mortos em seu corpo, mas como avatares dos próprios
50
Sacerdotisa (palero, o sacerdote) de um sistema religioso afro-cubano chamado de reglas del palo, de
“inspiração” congo, como Ochoa prefere definir, sobre o qual darei mais informações no segundo
capítulo ao discutir as prestações rituais que os meus interlocutores dominicanos oferecem aos mistérios.
63
mortos. As descrições dela de tais momentos perturbaram o que para ele era uma
oposição familiar entre corporalidade e significação (corpo e significado, matéria e
conceito). Conforme Ochoa, sua dificuldade em entender a experiência dela foi fundada
em hábitos do pensamento que lhe falavam que a experiência não poderia ser
simultaneamente visceral e intelectual. Ele se baseva em uma compreensão sobre um
modo dualista do ser, que postulava que uma relação entre víscera e intelecto era
mutuamente exclusiva. No entanto, nas explicações dela, víscera e intelecto eram
mutuamente afirmadas sem contradição, Ochoa afirma. Para ele, compreender os
mortos como uma sobreposição de sensação conceitual e visceral é crítica para
compreender a expansão global e a ubiquidade dos mortos no pensamento cubano-
congo.
Eu diria que tal sobreposição não existe apenas para os praticantes das regras del
palo. E, ainda, que a maneira como nós (antropólogos) lidamos com isso indica que
definimos eixos analíticos diferenciados. E não que os nossos interlocutores
desconheçam tais experiências. Ochoa se apropria das descrições de sua interlocutora
para evidenciar que os mortos são sentidos como forças ubíquas e ambíguas no limite
onde razão e sentido corporal eram mutuamente afirmados, anteriores à identificação,
“mais do que indivíduos”. Eu procuro chamar a atenção para os “eventos” que são
produzidos quando os mistérios percorrem o corpo e o ocupam completamente, e para
aqueles em que certas sobreposições não se completam. Com isso, pretendo enfatizar as
categorias que os meus interlocutores mobilizam quando experienciam as incorporações
dos espíritos e como essas categorias permitem que eles se concebam como certas
pessoas.
Uma dessas concepções sobre a pessoa que tem os mistérios tem a ver com a
possibilidade de separação que elas exprimem entre a capacidade de falar de si sabendo
que seu corpo não está completamente integrado a um único eu.51
Essa experiência
sensível revela uma forma de conhecer a alteridade que emerge e se consolida na
medida em que os espíritos são assumidos e passam a entreter relações de trabalho ritual
com aqueles que receberam o dom. Nesse sentido, argumento que esses engajamentos
corporais cotidianos revelam que se particularizar como uma pessoa que têm os
mistérios poderia ser visto como um duplo processo de incorporar e separar/destacar.
Com isso, eu não tomo a incorporação como um processo que somente atualiza laços de
51
Os mistérios produzem esse afastamento, falando da perspectiva de quem monta um corpo.
64
afinidade entre seres humanos e espíritos. O que gostaria de propor é que atualizar o
dom é recriar de novo essas relações (e outras) conhecendo experiências de
instabilidade, variação e dissociação, o que, em alguns casos, implica a criação de
marcas de violência pelos mistérios no corpo das próprias pessoas.
Lambek e Strathern (1998, p. 6-7) propuseram uma abordagem que funciona
como um horizonte de análise para as descrições como as de Gina. Na introdução a uma
coletânea sobre as noções de pessoa e corpo na África e na Melanésia, eles se
perguntam como o corpo pode sintetizar e simbolizar noções de pessoa e relações,
conexões e desconexões, dependência e independência, dividualidade e individualidade,
autonomia e hierarquia. Além disso, quais seriam os limites do corpo nesses
empreendimentos.
Seguindo Csordas quando defende a importância de uma abordagem
fenomenológica para a condição da incorporação, Lambek e Strathern (1998, p.14)
reafirmam a crítica de que o corpo não deve ser visto como algo garantido e objetificado
em si mesmo. Para eles, a fenomenologia oferece um status ativo e positivo ao corpo.
No entanto, ambos relutam em referir-se a ele como um “agente da experiência”, como
faz Csordas. Se o corpo tem agência, Lambek e Strathern (1998, p.25).observam, os
agentes são pessoas incorporadas.
Com isso, o que os dois autores enfatizam é que os processos de incorporação e
objetificação ou de incorporação e subjetificação sejam considerados momentos
privilegiados para a compreensão de como aqueles pares conceituais se viabilizam. Da
abordagem fenomenológica de Csordas eles recuperam a noção de pré-objetivo (que é
importante também na discussão de Ochoa). Querem, desse modo, indicar um campo de
experiências antes que se tornem completamente “culturais”. Para Lambek e Strathern
(1998, p.14-15), essa formulação é útil porque fornece uma “gênese” para as práticas
incorporadas, que precisam ser objetificadas para que gestos, por exemplo, transmutem-
se como símbolos de valores.
Recuperar essa discussão de Lambek e Strathern é interessante porque eles
procuram tornar visível certa indeterminação entre o que pode ser incorporado e
objetificado quando são consideradas as etnografias sobre corpo e pessoa na África e na
Melanésia de um ponto de vista comparativo. De acordo com os autores, “o que é pré-
objetivo em um lado pode tornar-se objetificado em outro; o que não é enfatizado em
um pode tornar-se central em outro” (LAMBEK e STRATHERN, p.15).
65
Nesta etnografia sobre os meus interlocutores dominicanos e seus mistérios,
incorporação e objetificação podem ser mapeadas não apenas entre pessoas e corpos,
mas também entre corpos e mentes e pessoas e espíritos. Como indicou Lambek (1998,
p. 109), ao defender que corpo e mente não são opostos empíricos ou lógicos, mas sim
incomensuráveis que falham em fazer inteiramente contato, “a mente não é
simplesmente a ausência do corpo, nem o corpo a ausência da mente”.
Como procurei enfatizar com as descrições sobre o percurso dos mistérios no
interior de Gina, subi-los, enquanto uma prática incorporada, sustenta uma junção
interna que permite uma disjunção significativa. Gina percebe o trajeto dos espíritos por
seus órgãos. Com isso, consegue falar da perspectiva de quem se distancia do que se
passa nele. Mas essa separação inicial que ela consegue produzir entre si e seu corpo,
enquanto ele está sendo percorrido pelos mistérios, pode revelar compreensões
significativas sobre o que implica ser alguém que incorpora certas conexões familiares.
Compreensões que, eu proponho, tornam mais densas o que pode significar ser uma
‘pessoa’ múltipla ou que agencia variadas vozes.
É sobre a possibilidade de tais arranjos, caracterizados ora por experiências
descritas em termos de destacamento, ora de confluência, que emergem as noções de
corpo e mente e pessoa e espírito entre meus interlocutores. Não explicitamente
dicotômicas, as narrativas que apresentarei parecem descrever dinâmicas em que cada
um desses pólos se liga e se separa produzindo experiências que remetem à invasão, a
sobreposições relativas e vontades incongruentes, à falta de liberdade e ao exercício de
poder, àquilo que escapa e surge como inesperado.
1.3.2 Objeto e Cavalo
Na ocasião em que Diogo narrou o episódio em que Anaisa subiu nele, ele me
disse: – Os mistérios são espíritos que entram nas pessoas, que tomam conta da mente
das pessoas... as pessoas são objeto. Perguntei-lhe, então, como ele descobriu que tem
esses espíritos: – Eu sinto minha mente, meu corpo, Diogo me respondeu.
Para ele que experiencia interações com seus mistérios em grau e frequência
diferentes de Gina, corpo e mente são sentidos como mais ou menos indistintos. No
entanto, assim como ela, ele também é capaz de se pensar a partir de um afastamento de
seu corpo, que os mistérios transformam em um objeto.
Eu também me encontrava em uma botânica (onde trabalhava Joana e não
Rosa), quando um cliente dominicano, que morava em frente à loja, foi ali à procura de
mercadorias. Ele pretendia afastar os mortos que o rondavam comprando alguns
66
produtos. Na conversa sobre a presença dessas entidades espirituais junto aos seres
humanos, Joana lhe explicou que um mistério quando chega, ele se mete no corpo [da
pessoa].
Para Gina, Diogo e Joana, a transposição de suas delimitações corpóreas pelos
mistérios parece assemelhar-se a uma sensação de intrusão. Esses espíritos fazem do
corpo objeto, metem-se nele, percorrem os órgãos. O fato de que essas entidades são
concebidas como próprias a uma configuração relacional entendida como família nem
impossibilita experiências sobre alteridade, tampouco impede algumas formas de
objetificação em que o corpo e/ou a mente são sentidos como destacados de si quando
ocupados por esses espíritos.
Os mistérios tornam-se assim espíritos familiares especiais. Sua internalização
corporal parece ser a base sobre a qual é possível, para meus interlocutores
dominicanos, falar de diferença e separação. No entanto, são múltiplas as vozes capazes
de emergir quando um mistério sobe. E isso provoca junções e disjunções não apenas do
ponto de vista das pessoas sobre corpo e pessoa e corpo e mente, como salientaram
Gina, Diogo e Joana. Também do ponto de vista dos mistérios, incorporação e
objetificação podem assumir novos sentidos. Para essas entidades estão em jogo espírito
e pessoa, ou, mais precisamente, espírito e seu cavalo.
Belié Belcan: Aí Joaquim, o cavalo não sabe nada, quem […] sou eu.
Ouviste? O cavalo, […] a dizer ao cavalo se ele não sabe nada. É verdade.
Cavalo não sabe nada. O cavalo, somente eu […] sei eu. Nada sabe o
cavalo, nada. Se eu não lhe dou a mensagem […]. O cavalo não sabe nada.
Desde que queira dizer com a língua, o que o cavalo somente lhe diga, quem
encontra ela não me encontra tampouco.
Durante aquela festa para São Miguel Arcanjo/Belié Belcán, a que já fiz
referência, um convidado mais idoso fez um comentário sobre a anfitriã, Dina, ou talvez
sobre o que ela sabe. Isso em tom baixo, discretamente, pelo menos aos meus ouvidos e
ao alcance do gravador. No entanto, Belié Belcan imediatamente retrucou.
Categoricamente, esse espírito salientou uma relação assimétrica entre Dina e ele. Para
Belié Belcan, o cavalo não sabe nada. O convidado se equivocava ao supor que a fonte
do saber de Dina reside nela mesma.
A instrumentalidade dela era flagrante. A transmissão das mensagens a outros
(incluindo os clientes) ocorria apenas porque o espírito fornecia-lhe isso. Do ponto de
vista de Belié Belcan sobre o que ocorre com Dina, incorporar os mistérios significava
67
simultaneamente objetificá-la de tal maneira que o corpo dela não estava a serviço de
sua própria mente. E a explicação do mistério foi contundente: o que o cavalo quisesse
dizer somente com a sua própria língua não conta com Belié Belcan. Quem encontra
apenas com Dina, não encontra esse espírito.
Mas Belié Belcan não tratou apenas de uma divisão entre o corpo de Dina e a
mente (ou o espírito) que lhe introduzia conhecimento. Da sua perspectiva de mistério
montado, Dina, uma senhora com mais de setenta anos, teve a sua condição alterada.
Ela fora glosada por ele como cavalo. Se, como argumentei inicialmente, um dos
significados dessas práticas incorporadas, do ponto de vista da pessoa, é a possibilidade
de separação entre a capacidade de falar de si sabendo que seu corpo não está
completamente integrado a um único eu, do ponto de vista dos mistérios, falar da
perspectiva de um espírito que monta um corpo é construir outras distinções: sobre os
próprios mistérios e as pessoas que têm esses espíritos. A autoria do que se fala e a
autoridade de quem o faz distinguem e hierarquizam mistério e pessoa (ou, antes,
cavalo). Uma distinção que ocorre simultaneamente à incorporação. 52
Colocar-se à disposição de Belié Belcan, aqui, já seria uma forma de separar-se
de si (alienar, se quisermos) que não é estranha à lógica da transmissão dos mistérios
como algo natural. Como venho enfatizando, o que Richman demonstra em suas
descrições sobre as mudanças rituais em Léogâne como uma tensão entre aquilo que é
entendido como “substância” (algo interno e inseparável) e o que é “contrato”, os meus
interlocutores dominicanos incorporam em si mesmos porque receberam um dom dos
antepassados familiares. Sugiro que para meus interlocutores dominicanos, não se trata
de dois modos rituais que se confrontam, mas de uma maneira singular, híbrida e
instável, de se conceberem enquanto pessoas.
E aqueles que têm esses espíritos concebem essas relações como tendo muito de
desconhecido: – Os mistérios são um mistério, Joana me dizia. Ninguém entende bem
eles, as pessoas sabem o que têm que fazer [referindo-se a como os espíritos devem ser
atendidos], mas, são um mistério, ela enfatizava. Por diversas vezes ela afirmou que se
não trabalhasse os mistérios morreria e os espíritos reencarnariam em outra pessoa.
Sua substituição nesses termos, o que ela dizia ser uma forma de punição dos mistérios,
era tida como certa. Mas Joana também demonstrava incompreensão. Não entendia o
52
Lambek (1998, p.115-116), por exemplo, observou isso ao destacar que a incorporação da persona de
um Marinheiro (espírito francês do período pré-colonial) por um médium de Mayotte habilita esse
espírito a falar sobre “Madagascar” e “os Malagasy” como um “objeto”, da perspectiva de quem havia
sido em vida de certa forma um estrangeiro no que veio a se tornar uma nação.
68
porquê de viver dessa forma: ser remunerada com as consultas espirituais e a preparação
dos trabalhos, ter de receber os clientes, bem como ver boa parte de seu cotidiano
organizado pela interlocução com os mistérios.
A experiência de desconhecimento, no entanto, não era apenas de Joana.
Antonio e Maria eram um casal de dominicanos e também moravam em Río Piedras.
Eles eram proprietários de uma firma de extintores e trabalhavam os mistérios, sendo
pagos para isso, embora tenham salientado que não dependem economicamente das
consultas. Em uma visita a casa deles, Antonio argumentou comigo: – É difícil explicar
[a relação com esses espíritos]... Ele mesmo não saberia direito como as coisas
acontecem. Ambos sabem que os mistérios chegam e podem se comunicar com eles
através de seus corpos, mas a incompreensão também fazia parte de tudo isso.
1.3.3 Há uma metresa em cima
Com um baralho de cartas espanholas, um pequeno sino (utilizado para chamar
os mistérios) sobre uma modesta mesa, uma cruz de madeira pendurada na parede e
portando um maço de cigarros – para fumar caso Anaisa se apresentasse durante
alguma consulta –, Joana começava a trabalhar na botânica.
Quando os clientes chegavam à procura de uma consulta, Joana os conduzia até
um espaço reservado, atrás da parede em que se encontravam as prateleiras com as
mercadorias. Era comum que logo após sua entrada no estreito ambiente, fosse ouvido o
som do sino. Às vezes, suavemente, em outros momentos com mais intensidade. Como
eu havia notado que não era para todos os clientes que ela o tocava, perguntei-lhe certa
vez como ela decidia para quem soar tal objeto. São eles [os mistérios] que o agarram e
tocam, Joana me respondeu.
No decorrer das consultas, ela produzia para os clientes o que chamava de
receita: uma lista em que escrevia o que era necessário ser comprado para resolver o
problema que lhes afligiam. Os casos sobre bruxaria eram tão recorrentes quanto os
pedidos para que fossem feitos trabalhos de amor e as perguntas sobre a vida presente e
futura.
Observar sua performance gerou uma inquietação em mim: como Joana sabia o
que deveria receitar para cada cliente? Depois que a indaguei sobre isso, ela me
respondeu: – Não é que eles [os mistérios] sabem o que há na botânica. Santigua-se a
carta em nome dos mistérios e se sai na carta, então se escreve mais ou menos o que a
pessoa necessita pelo que sai na carta, Joana respondeu. E depois observou: – Eu tenho
69
que escrever porque quando saio [do espaço da consulta] não me recordo. Você não viu
que quando saio me esqueço?
Joana já teve seu altar para a invocação dos mistérios no interior da botânica,
naquele espaço onde realizava as consultas. Mas o desfez havia certo tempo. Logo que a
conheci questionei-lhe sobre a ausência do altar na loja. Eu já sabia que atender e
trabalhar esses espíritos dependem da organização dos altares. –Eu os tenho [os
mistérios] em cima, ela argumentou. Por isso não precisava do altar na botânica.53
Nas ocasiões em que recebia clientes masculinos, três ou quatro homens que
sempre a procuravam e, às vezes, entravam na botânica praticamente um atrás do outro,
Joana comentava consigo mesma em voz alta: – Há uma metresa hembra em cima que
só me manda homem!54
Anaisa era de quem ela falava.
Montar ou subir não é a única forma de incorporação dos mistérios. Ter os
mistérios em cima ou ter os mistérios em cabeça descreve outra modalidade de
incorporação desses espíritoas às pessoas. As transformações são mais sutis. E a
amplitude dos espíritos no corpo humano parece concentrar-se em um único órgão, a
cabeça, e não difundir-se por todo o corpo, como relatou Gina ao descrever que os
mistérios sobem em sentido vertical, percorrendo seu corpo de baixo para cima.
Aquelas duas expressões descrevem uma percepção de que sobre a pessoa há um
espírito criando uma espécie de sobreposição em seu corpo, um tipo de composição
híbrida. Pessoas e espíritos incorporam-se relativamente. E não absolutamente, como
acontece quando meus interlocutores dominicanos mobilizam o termo montar.
Mas isso não a torna um cavalo dos mistérios. Com um mistério em cabeça uma
pessoa tem a capacidade de conversar, comentar e fazer revelações sem que seus
interlocutores tomem conhecimento de que são os mistérios quem lhes falam. – As
pessoas [os clientes] não se dão conta de que são os mistérios que lhes dizem, foi o que
Joana comentou comigo depois de uma consulta solicitada por um jovem advogado
porto-riquenho que vivia nos EUA. Ele queria se candidatar a governador de Porto
Rico, mas foi aconselhado pelos mistérios a esperar o próximo pleito. Pois, de acordo
com esses espíritos, o momento ainda não era adequado.
Gina também mencionou esse tipo de incorporação enquanto conversávamos
com Joana na botânica. No dia anterior, ela contava-nos que uma mulher foi até a sua
53
Joana mantinha seu altar no quarto dos santos, maneira como os meus interlocutores dominicanos
chamam o cômodo reservado aos mistérios no interior da casa. 54
Certa vez, ao lhe perguntar o que era uma metresa, ela me disse que É uma santa feminina.
70
casa para uma consulta. Aceitando fazê-la, Gina começou a dizer à cliente o que essa
desejava saber. Mas eles [os mistérios] não quiseram subir, ela ressaltou.
Ao fim da consulta, Gina se dirigiu ao interior de sua casa, em direção ao altar e
eles já estavam lá. Então Gina argumentou comigo e Joana que, às vezes, os mistérios
chegam ao altar antes que ela vá até lá. Além disso, seria comum que antes de alguém
chegar à sua casa, tais espíritos já o soubessem. Com o fim da consulta, a cliente foi
embora: – Um mistério se subiu e tomou uma garrafa de Brugal (rum dominicano),
Gina comentou conosco. – Às vezes eles não querem subir para certas pessoas. Dão
cento e setenta voltas, mas não sobem, interferiu Joana.
1.3.4 Não governo de si
Quando Gina e Joana observaram que os mistérios não quiseram subir diante da
cliente, elas apontaram para uma dimensão importante desse convívio relativamente
incorporado. Questões relacionadas à vontade e à liberdade, mas também ao
indeterminado e ao que lhes escapa fazem parte da maneira como as ‘pessoas’ se
concebem ao incorporar esse dom. Ao falarem de si dando ênfase a essas experiências,
os meus interlocutores chamam a atenção para modos de vida que, através de seus
corpos, são constantemente problematizados. Eles questionam o poder desses espíritos
herdados sobre eles e os limites que lhes são colocados como pessoa que têm os
mistérios.
Gina me explicava que há espíritos que fazem trabalhos utilizando o sangue, o
coração e a língua de animais como cabrito e vaca, além de objetos como agulha e
prego, bruxaria, ela definiu. Argumentando que ela não faz isso, disse-me que mesmo
assim há momentos em que se vê sem saída: – Alguns mistérios me põem sentada no
altar [montada] e fazem esse tipo de trabalho.55
Lembrei-me, ao ouvi-la, do comentário
que meses antes Diogo fizera sobre sua tia, que não ficava bem quando os seres se
punham. Isso a levou a não querer os mistérios herdados da avó dele, Diogo salientou
na ocasião.
A descrição de que os mistérios se põem tem a ver com a resistência que as
pessoas exprimem em permitir que os espíritos as montem. A intenção delas, entretanto,
parece ser solapada. Gina fala sobre a falta de controle sobre seu corpo, mas também
sobre a irrelevância de sua vontade diante do que foi produzido – um trabalho de
bruxaria – depois que determinado mistério se colocou nela. Em seu caso, a
55
Meus interlocutores geralmente atribuem esses trabalhos aos espíritos petroses.
71
incorporação embora completa do ponto de vista da ocupação do corpo de Gina, gerou
uma dissociação total: entre o espírito e a pessoa – Gina era simplesmente o objeto, o
cavalo, mobilizado pelo mistério – e entre as disposições, os desejos, de ambos.
Foi mostrando-me a marca de um corte em seu ombro que ela narrou outra
experiência de dissociação entre seus desejos e os de outro mistério, mas também de si e
de seu próprio corpo. – Isso foi para pagar-lhe, a São Santiago, um serviço que ele fez
para uma mulher dominicana, que não lhe pagou, Gina me dizia. Ogun Balendyó feriu
Gina, seu cavalo, como forma de punição pela falta de um pagamento que não foi
cumprido com esse espírito.
Uma cliente dominicana havia procurado Gina para a realização de um trabalho
espiritual. Após a consulta com Ogun Balendyó montado em Gina, ele lhe deixou no
altar uma advertência escrita. Recomendava que não fosse preparado o trabalho para a
cliente, pois a mulher não realizaria o pagamento por isso. Gina, que decidiu ajudá-la,
fez o trabalho, desconsiderando o aviso do mistério. E a cliente não pagou. Até então a
vontade de Gina foi preponderante
No entanto, quando Ogun Balendyó montou Gina novamente, fez um corte em
seu ombro, do qual escorreu sangue o suficiente para assustar seu marido, que estava no
altar junto com esse mistério. Diante da agressão, o marido de Gina exasperou-se. Aos
gritos, disse ao mistério que ele não iria mais ali. Ogun Balendyó então argumentou que
Gina não sentiu a dor do corte, nem viu o ferimento sangrando. Sua intenção era fazer
com que ela pagasse pelo trabalho, já que a cliente não o fez. Visualizar a cicatriz em
seu corpo seria a lembrança de tal pagamento.
– Quem trabalha isso não se governa, é como uma criança a quem se diz: Sente
aí! Foi nesses termos que Gina me falou sobre as situações, não tão radicais como a
descrita acima, em que sentada em frente à mesa principal de seu altar, dirige-se às
imagens e pergunta ao santo onde veria colocar-lhe, que então lhe diz ali.
Durante a preparação de um trabalho para uma cliente porto-riquenha, percebi,
ao observar Joana, uma diferença em seu comportamento. Sentada diante da mulher, sua
cabeça cambaleava um pouco para trás, como se estivesse tonta. Em seguida ela passava
a mão pela testa e se mantinha de olhos fechados. Ao terminá-lo, Joana liberou uma
interjeição, algo cujo significado me escapa à escrita.
Eu queria entender o que havia acontecido. Joana manipulou um spray, óleos,
velas e objetos pessoais levados até a botânica pela cliente. Além disso, Joana lidou
também com substâncias corporais da mulher, que as retirou de seu próprio corpo
72
quando, por alguns minutos, saiu do espaço onde estava Joana e se encaminhou para os
fundos da botânica. Joana tocava o sino em diferentes momentos da preparação do
trabalho. Depois que a cliente foi embora, incitei uma conversa.
Joana falou-me que estava longe enquanto preparava o trabalho para a cliente e
que Santa Marta que estava ali. Essa metresa apareceu porque Joana a invocou para o
trabalho. Mas ela se subiu sem pedir permissão. A senhora… Sem pedir permissão!,
Joana novamente acentuou.
Joana pretendia trabalhar os mistérios (ou pelo menos essa era a sua expectativa)
por meio de uma alguma forma de controle sobre seu corpo. Sentir que um mistério
subiu sem pedir permissão era uma experiência delicada, mas não apenas para ela,56
que
evitava ao máximo demonstrar qualquer sinal de transformação corporal por causa da
proximidade desses espíritos. Como certa vez ela me disse, desde jovem sentia
vergonha disso.
Algumas vezes escutei e observei Joana falar do quão inesperado, quando não
assustador, era sentir que os mistérios subiram ou vê-los em sua forma física se
apresentando a ela. Até que, enquanto conversávamos, ela categoricamente afirmou: –
Quem tem esses mistérios têm que viver quase sozinho. Ela dizia-me que gostaria de
atender os mistérios, mas sem receber as pessoas em casa, fazer os trabalhos... Isso não
lhe agradava: – Eu peço a Deus que retire um prêmio [na loteria] para deixar isso,
porque quem tem os mistérios não tem vida própria, não se governa.
O que Gina e Joana definem como essas experiências de não-governo de si
mesmas pode produzir ainda um corpo marcado fisicamente pela ação dos mistérios.
Para além da visão mais radical de que o corpo é simplesmente inutilizado com a morte
se uma pessoa se recusa a trabalhar esses espíritos – concepção que perpassava sempre
os comentários de Joana –, ele se torna lócus de memória sobre o poder exercido por
tais espíritos. Como a própria Gina me descreveu, o corpo da ‘pessoa’ pode se
tranformar em lugar de memória de uma relação contratual que havia gerado um débito
com esse mistério.
56
Gina contou-me que se ela ingerisse um pouco de rum quando estava na rua era o suficiente para que se
subisse um mistério, depois outro, depois outro... Eles tiravam meu sapato, porque não sobem com a
pessoa de sapato, e eu começava a consultar as pessoas na rua. Seu marido lhe sugeriu que procurassem
alguém para batizá-la. Isso lhe permitiu controlar-se. De acordo com Gina, ter força para montar um
mistério e dizer-lhes que não quer subir, pois os espíritos depois do batizado já não o fazem
inesperadamente. Agora, Gina enfatizou, eles sobem quando eu os chamo. Apesar de certo controle sobre
seu corpo e sobre os mistérios, ela me explicou que, quando está em algum lugar e eles querem subir,
pede-lhes para esperar até que possa o fazer.
73
1.3.5 Sonho e outras formas de incorporação
Em uma festa para Papa Candelo, um dominicano que organizou a cerimônia,
chamou São Elias com um recipiente que continha ossos. O rapaz pretendia dar esse
resto moral ao marido de Gina. Mas Gina já havia sido avisada pelos mistérios sobre
essa situação. Ela foi à festa tendo ao redor de sua cintura um lenço (pañuleo) preto e
outro azul. Ela tinha da cintura para cima ela mesma, da cintura para baixo o mistério,
que caminhava, andava por ela, e por meio dela, Gina me explicou ao mencionar os
lenços amarrados ao redor de seu corpo. O mistério que estava com ela também já havia
lhe dito disse-lhe para não deixar seu marido segurar os ossos. Ela mesma deveria
agarrar o recipiente. E ela seguiu essa recomendação. No decorrer da festa, o homem
dominicano pediu para que o marido dela pegasse o recipiente e Gina se propôs a
segurá-lo. Suas mãos ficaram sem movimento e sensibilidade. Dormindo, durante um
sonho, ela chamou os mistérios para que a ajudassem. E viu os sete mistérios ao redor
de sua cama. Candelo acendia o fogo, acalentava a sua mão, ela me disse, pois sentia
frio por todo o seu corpo.
Perguntei-lhe então se o osso era um morto. Gina, acenando a cabeça, fez que
sim. Ela se silenciou. Alguns minutos depois, contou-me que esse mesmo dominicano
que trabalha os mistérios batizou uma jovem também dominicana para que ela pudesse
trabalhar. Certo dia a jovem foi até Gina. Disse-lhe que só conseguia montar quando
colocava um anel. Fiquei olhando para Gina, aguardando seu próximo comentário: –
Isso não é um mistério, mas um morto comprado. Todos são mortos, mas os mistérios
são seres de luz enquanto os mortos gostam da escuridão.
1.3.6 Vicissitudes do dom: transitando por e incorporando habitus humanos e
animais
Concebidos como pessoas que viveram como nós e/ou santos que andaram com
Jesus, os mistérios conservam muito das características sociais, individuais e estéticas
de quando foram vivos. Neste sentido, uma pessoa possui várias outras pessoas. O que
requer saber administrar no cotidiano – e, para alguns dos meus interlocutores, até
mesmo tentar quitar (retirar) – as influências e ações sobre si e sobre os outros dessas
várias pessoas, que parecem ter vivido e pertencido a épocas e lugares distintos e
expressam variadas disposições.
A ideia de que esses espíritos tiveram uma existência em certo tempo e lugar não
é tudo. Aspectos relacionados ao comportamento de animais como cobra, galo, abelha e
74
peixe também compõem o comportamento dos mistérios.57
Assim, o ‘dom’ de uma
pessoa pode ser tão múltiplo a ponto de transitar por e incorporar formas humanas e
animais quando certos espíritos montam ou sobem.
Os modos como um mistério interfere sobre as pessoas revelam experiências que
vão desde a produção de novas sensibilidades e capacidades até a possibilidade e
qualidade da interação delas com terceiros. As intervenções e interlocuções dos
mistérios se desdobram socialmente e podem abarcar familiares e clientes, além de
outros seres humanos.
São Santiago/Ogun Balendyó me disse que a irmã de Gina tem Jean Criminel,
Agoue Taroyo e outro espírito, cujo nome eu não consegui compreender durante nossa
conversa. Conhecido como um dos petroses, espíritos que são considerados impetuosos,
agressivos e impacientes, Jean Criminel, Gina me disse, gosta de sangue e sacrifício de
animal. Essa era uma das razões que fazia sua irmã querer passar, termo de Ogun
Balendyó, esse mistério para Gina, que também o atendia em seu altar. No entanto, a
vontade das pessoas de se afastarem desses espíritos parece ser mais difundida entre os
meus interlocutores dominicanos, e também mais antiga.58
Logo depois que me aproximei de Joana, eu contei-lhe que havia viajado para a
República Dominicana com Rosa fazia pouco tempo. Ela me perguntou como a
pesquisa se desenvolveu, tratando de informar-me que lá existe um espírito, um petron
que corta a cabeça das galinhas com a boca e bebe o sangue. Era a primeira vez que
escutava um interlocutor dominicano fazer uma referência direta a essa categoria de
espíritos. Como não havia compreendido inicialmente o que tinha acabado de ouvir,
57
Durante o trabalho de campo, foram feitas referências a esses animais, o que não impede que as
composições entre humanidade e animalidade dos mistérios sejam mais variadas. Herskovits (1971,
p.160) descreve uma cerimônia em que os haitianos servem seus espíritos herdados, e dentre os pétro que
são alimentados com touros há um espírito que recebe o serviço ritual primeiro porque “como o animal
tem chifres”. 58
No mesmo trabalho de Herskovits (1971, p.168-169) que citei anteriormente, ele narrou o seguinte. As
cerimônias que os haitianos prepararam com o objetivo de servir os espíritos pétro seriam utilizadas
também como um meio de “afastá-los” e “contê-los”. Os órgãos dos animais sacrificados foram inseridos
em receptáculos apropriados contendo agulhas sem as brechas e linhas para que esses “espíritos
indesejáveis” tivessem uma “ocupação”. Assim, antes deles chegarem para molestar a família, perderiam
tempo com a tarefa inglória de passar linhas por agulhas sem passagem. A alguns dos espíritos pétro que
foram enterrados fora da terra familiar, no momento da oferta da comida em um buraco cavado por um
sacerdote do vodu que trazia nas mãos uma cruz de madeira (“que faz toda coisa que é diabólica fugir”),
foi dito que a comida dada a eles, espíritos da família, desobrigava as pessoas de qualquer outro
comprometimento. Por isso esses pétro não deveriam retornar para causar problemas aos vivos. Além
disso, esses espíritos deveriam se tranqüilizar nos locais onde foram enterrados de sete a dezessete anos.
Esses espíritos resistiram a contenção ritual e lutaram, montados, com o sacerdote do vodu. “Se o hungan
(sacerdote) não tivesse sido dominador, muito de algo diabólico poderia ter ocorrido naquele momento,
porque ele precisou lutar com três loa (espíritos) fortes”, foi dito a Herskovits.
75
indaguei Joana se o que ela me falava era que alguém matava a ave para o espírito beber
seu sangue. Joana esclareceu-me que a pessoa montada mata com a própria boca a ave.
Durante certas cerimônias, cabras e vacas também seriam mortas na República
Dominicana, Joana me explicava, para que um desses espíritos ingerisse o sangue
desses animais. Eu lhe perguntei então se eram apenas algumas pessoas que montavam
esses espíritos. E ela me respondeu que muita gente em Santo Domingo o fazia. Para
ela, esses espíritos... [e rapidamente alterou o substantivo de espíritos para pessoas]
essas pessoas eram como pássaros maus, como animais que se vão para o monte
porque são maus, porque trazem algo de mau.59
Bem depois dessa conversa Joana me falou que quitou um petro que tinha
quando vivia ainda em La Romana. Em sua cidade, ela contou, fez remédios para quitar
os petroses. Voltando a insistir que as pessoas têm os mistérios bons e maus, e que os
petroses são espíritos de gente má, que fazia dano e vivia no monte, Joana narrou em
sequência uma série de disposições que passava a adquirir quando esses espíritos
aproximavam-se dela: ela chocava a cabeça contra a parede; mordia a si mesma; era
capaz de comer gente; se colocava enraivecida rápido; por qualquer motivo era capaz de
pegar um facão do mato (coger un machete) para brigar (pelear) com uma pessoa. Sob
esses estados, era capaz de cortar a cabeça de alguém com tal instrumento-arma. Para
Joana, os petroses são intolerantes. Por isso, a encorajavam a fazer tudo isso,
colocando-a enraivecida e orgulhosa, ela repetia para mim. Depois que Joana quitou as
coisas más, referindo-se aos seus espíritos petroses, ela disse-me, ficou tranquila
demais. Mas, em seguida, argumentou: – Eu prefiro assim. A vida é muito complicada,
há coisas que eu não entendo [como o que me acabara de contar], ela concluiu.
Entretanto, mesmo depois que foi morar em Porto Rico, excessos e
comportamentos diferenciados, dos quais Joana depois não se lembrava, foram relatados
a ela pela sobrinha no apartamento em que moravam.60
Reproduzindo para mim o que a
sobrinha lhe contou ao perceber uma série de transformações quando ambas se
encontravam na residência que compartilhavam, Joana me falava: – Subirão esses
mistérios todos, a 21 Divisão... Foi o que, à época, a sobrinha lhe disse: – Tu falava
como teu papai, como não sei o quê... uma língua esquisita...
59
Em La Romana, Joana realizava cerimônias para os petroses. Para isso, utilizava em certas situações
órgãos de animais. 60
Joana e essa sobrinha deixaram a República Dominicana juntas. Em Porto Rico, elas começaram a
compartilhar um apartamento no município de Carolina, área metropolitana de San Juan, não muito
distante de Río Piedras. Mais informações sobre a imigração de Joana aparecerão no quinto capítulo.
76
Um mistério, que se apresentou como Criminel (o espírito petro Jean Criminel) à
sobrinha de Joana, modificou a cor de seus olhos, que se tornaram vermelhitos.61
Jean
Crimnel ameaçou a moça, que havia escondido o uísque para impedir que esse mistério
o bebesse. Se ela não lhe desse a bebida, Criminel lhe disse, iria pregá-la com uma faca
na parede e feri-la. Depois dele, Santa Marta A Dominadora subiu em Joana, que então
passou a se arrastar como uma cobra. Essa chegada e partida dos mistérios no corpo de
Joana ocorreu das oito horas da noite até as quatro da manhã do dia seguinte. E após o
consumo excessivo de uísque (cerca de quatro litros) e de café (cerca de oito garrafas)
sem açúcar, Joana destacou, ela dormiu no chão diante do altar.
– O mau também trabalha sobre nós [pessoas que têm os mistérios]... Você sabe
quando há uma luta em que todo mundo está te puxando para um lado e somente um
para outro? É assim..., Antonio argumentou, descrevendo em termos de uma luta às
ações que as pessoas – como sua mãe, e, possivelmente, ele mesmo – estavam
submetidas porque têm os petroses. Antonio fez esse comentário quando estive na casa
dele e de Maria. Nessa ocasião, havia poucos dias que ele tinha regressado da República
Dominicana. Ele viajou ao seu país para ir a um lugar conhecido como El Monte de
Oración. Nessa colina, quitou um espírito mau de sua mãe, ele me falou, que era um
petron.
Na casa de Gina, eu e ela conversávamos com Luís,62
seu amigo jamaicano,
sobre os mistérios, e o rapaz me explicou que se Gina está com o sangue quente, o
mistério sobe assim também. Dependendo também do estado emocional dela, o espírito
chega mais tranquilo ou aborrecido. Gina então salientou que quando briga com alguém
há um mistério que lhe diz: – Mata, mata, mata. São mistérios que gostam de sangue,
que bebem sangue, que comem vidro, ela me explicou, o que lhe demanda saber se
controlar, ela concluiu.
Gina incorpora ainda outras disposições quando monta um mistério que se
chama Ogun Ferraile, vinculado à imagem de São Jorge. Ela passa a se comportar como
um galo: bate seus braços, espalma seu colo e assovia. Ao descrever os acontecimentos
que ocorrem em seu corpo, Gina contava-me que é como se existisse algo em seu
61
Uma das características desses espíritos é subir extremamente quentes (calientes), o que faz com que os
olhos dos cavalos fiquem vermelhos, o que caracteriza agitação e raiva. Mesmo os mistérios que não
fazem parte da categoria dos petroses podem subir sob essa modalidade espiritual (como petro)
considerada mais forte, agressiva e perigosa. 62
O rapaz vivia em Porto Rico e foi por ela batizado nos mistérios. Quando nos conhecemos, ele me
explicou que ao regressar a Jamaica teria que seguir sua religião como era feita lá. Perguntei-lhe então
como se chamava na Jamaica, e ele falou que se chama obeah e vudú.
77
estômago, que chega ao seu peito e depois se prende à sua garganta. Então, ela assovia e
faz uma espécie de canto. Porém, ela observou, isso se dá quando percebe que vai
montar. Durante esse momento, Gina vê um galo vermelho e negro que, conforme ela,
são as cores do pañuelo (lenço) desse mistério. Depois, ele [Ogun Ferraile] chega e
trabalha como uma pessoa, Gina notou.
Diferenciando-se dos comportamentos que foram descritos por Gina ao me
contar sobre o que ela experiencia quando um espírito petro está próximo, ou ainda,
quando monta um mistério como Ogun Ferraile, a metresa conhecida como Metresili
atualiza em Gina formas corporais e gostos ligados a um habitus feminino crioulo
(colonial). Gina havia acabado de tomar banho quando Metresli subiu em sua casa. No
entanto, esse espírito feminino reclamou com o marido de Gina que ela, Metresili,
estava suja, suja. Para que Metresili caminhasse e sentasse no altar, ele precisou
estender uma toalha branca no chão, sobre a qual ela se locomoveu na ponta dos pés.
Pediu em seguida perfume e talco, substâncias que passou pelo corpo e pés, e falou
sussurrando. Depois de se perfumar e usar o talco, duas lágrimas em cada canto do olho
desceram sobre o seu rosto. Indaguei a Gina por que Metresili chorava, se ela havia
sofrido: – Se parece que sim, Gina me respondeu.
1.3.7 Consumo dos corpos
As diversas modalidades de incorporação dos mistérios geram, como venho
tentando demonstrar, objetificações cujos significados para esses espíritos e para as
pessoas não são exatamente os mesmos. Relações assimétricas de poder, de
conhecimento e acerca dos modos de dispor (aos espíritos e aos clientes) são
significativas para os meus interlocutores, especialmente os vivos. É considerando essas
relações múltiplas e densas que Gina, Joana, Diogo e outros interlocutores dominicanos
se concebem como ‘pessoas’ que receberam dos antepassados um dom e se veem diante
da tarefa desafiadora de atualizá-lo em seus corpos.
Mas é importante ainda destacar outro aspecto dessas ‘relações’. Quando se trata
especificamente de montar ou subir, o que parece estar em jogo vai além de uma
compreensão sobre trabalhar como uma relação ritual em que dispor o corpo aos
espíritos é colocar-se a serviço de terceiros, como as narrativas de Joana e Gina com que
iniciei o capítulo revelaram. Para essas elas, há poder, há dissociação e há uma forma de
colocar-se à disposição que problematiza qualquer visão simplista sobre o que significa
viver relacionando-se com outros que são espíritos herdados. Eu argumento, como fiz
ao longo desse capítulo, que dispor o corpo como uma forma de trabalhar os mistérios
78
não é exterior ao universo cosmológico que informa o cotidiano dos meus interlocutores
dominicanos. Procurei demonstrar isso salientando os processos de incorporação e
objetificação que criam junção e disjunção entre esses seres humanos e seus espíritos
em diferentes domínios da vida cotidiana.
E ainda há um pouco mais a dizer sobre esses agenciamentos corporais.
Na botânica, Joana dizia-me que para ler as cartas trabalha muito com a mente.
Isso fazia com que ela se sentisse cansada. Seu esgotamento, Joana justificava, devia-se
ao fato de que porque usa muito o cérebro precisa de concentração: – Os mistérios me
dizem quando eu leio as cartas, ela me explicava. Se eu não estiver concentrada o que
vou falar para as pessoas? No entanto, para ela montar um mistério é pesado, um
mistério consome a pessoa.
Embora pôr a mente/o cérebro ou todo o corpo à disposição dos mistérios, de um
lado, e colocar-se a serviço dos clientes, de outro, sejam duas práticas definidas pelos
meus interlocutores dominicanos como trabalhar, Joana vê a segunda forma de
incorporação como mais desgastante. Para ela, essa é uma das implicações da ação dos
espíritos sobre a pessoa, que torna necessário o ritual do batizado: – O batizado é para
não ir ao chão [tumbar]... Porque quando um mistério sobe, ele derruba [tumba] a
pessoa, que fica no chão. Um mistério quita a energia de alguém. Ele [o batizado] lhe
dá força para receber os mistérios.
Foi também enquanto consumo de si que Gina descreveu, certo dia em que eu
estava na sua casa, a sua sensação de esgotamento porque trabalha os mistérios. Ela me
dizia que estava exausta, pois no dia anterior foi a um rio. Nele, realizou um banho em
Luiz, seu amigo jamaicano, que viajaria para Santo Domingo. Gina, então, explicava-
me que em diversas situações, mesmo tendo comido e sentindo-se saciada, depois de
montar um mistério era como se não tivesse ingerido absolutamente nada: – O que eles
[os mistérios] querem é meu sangue. Eles se alimentam através de meu corpo, Gina
afirmou. – Eles consomem muito, reagiu seu marido ao escutá-la. Ele, entretanto,
referia-se agora não ao corpo de Gina. Sua consideração era sobre tudo aquilo que
precisava estar no altar para os mistérios.
Para Gina e Joana, montar ou subir é uma prática ritual afeita a um consumo que
dá substância aos mistérios ao mesmo tempo em que se dissipa algo de humano. O
corpo de Gina, aqui, não seria apenas um meio para se atingir algo: a transmissão de
mensagens a outros por meio de variadas formas de incorporação. Seu corpo teria um
fim em si mesmo para os mistérios. Por meio dele, ocorreria uma transformação
79
consubstancial: o que se busca, ou antes, o que os espíritos querem, para ficar com um
termo caro à explicação de Gina, está no próprio corpo da pessoa: sangue humano
(nutrientes).
É essa forma de dar substância aos espíritos transmitidos familiarmente, que
ocorre no corpo da pessoa, que a etnografia de Karen Richman desconsidera. Não são
apenas serviços rituais obrigatórios, mas a própria incorporação definida enquanto
montar (ou subir) que revela a criação de um vínculo substantivo entre os indivíduos e
seus espíritos. Vínculo que, do ponto de vista da pessoa, resulta na extração da
vitalidade de si.
Parece-me que aqui há uma maneira de conceber como é possível dispor o corpo
ou alienar substância a outros (aos espíritos, experienciados como alteridades), sem que
seja necessário evocar a figura do intermediário que chega de fora da configuração
familiar (natural). Em maior ou menor grau saber deixar-se consumir é um dos
imperativos de incorporar aquilo que foram relações entre antepassados e seus próprios
mistérios.
Logo depois que conheci Gina, ela me disse que serão os mistérios que decidirão
até quando ela seguirá trabalhando. Ela poderia atender os clientes até seus setenta,
oitenta anos, mas, alcançando essa idade, não conseguiria mais subir um mistério. Seu
corpo não aguentaria mais fazer isso. O parâmetro dela é um limite físico. Ao me
explicar isso, ela indicava uma visão que articulava noções de geração, duração, mas
também de transformação e consumo dos corpos das pessoas.
Por sua vez, São Santiago/Ogun Balendyó, montado em Gina, ressaltou a
juventude como um marcador importante para aqueles que são seus cavalos. Ele
explicava-me que tinha mais de quinhentos anos e por isso gosta dos cavalos jovens.
Caso contrário, ele ironizou, é um velho em cima de outro velho.
Nessa perspectiva genealógica e geracional parece haver uma compreensão
singular sobre ‘pessoas’, corpos e espíritos. Os corpos das pessoas têm uma duração. E
um processo de vida e morte, marcado pela chegada de novos nascidos, garantiria a
princípio a manutenção dos espíritos das famílias, ou seja, a vitalidade dos mistérios no
tempo. Nesse sentido, a atualização dos espíritos estaria submetida, em parte, à duração
dos corpos enquanto lócus de consumo.
Mas se o corpo de Gina e as coisas postas no altar, entre as quais comida e
bebida, equivalem-se mais ou menos quando estão sob a ação dos mistérios, seria
redutor imaginar que nestas experiências apenas os mistérios são alimentados. Isso seria
80
mapear somente um trajeto do que implica receber e assumir o dom. Quando montado
em Gina, seu patrón contou-me que a irmã dela era montada pelos mistérios chamados
de petroses e, por isso, a moça queria quitar esses espíritos, como já descrevi. Então,
esse mistério disse-me que a irmão de Gina não poderia o fazer: – Os petroses são a
força da irmã de Gina, se ela os quitar, seria como não se alimentar.
O foco etnográfico deste capítulo foi principalmente o corpo enquanto um lócus
no qual se experienciam algumas das implicações de uma forma de parentesco em que
espíritos circulam como um dom. Passarei, no segundo capítulo, às descrições sobre os
modos de atenção ritual prestados aos mistérios. As situações etnográficas ocorrem
particularmente nos altares, onde são manipuladas substâncias alimentares, mas também
químicas. Com essas práticas, meus interlocutores dominicanos pretendem afetar – para
controlar, estimular ou suavizar – as disposições cristalizadas de seus espíritos que,
eventualmente, eles mesmos atualizam, como me disseram Joana e Gina e Antonio, ao
falar de sua mãe. Por meio de certa materialidade (substâncias, objetos, dinheiro)
ganham relevo maneiras de produzir reciprocidade e trabalho ritual entre ‘pessoas’ e
mistérios. As prestações rituais que serão então descritas dialogam com as experiências
de criar ligação e destacamento que foram narradas até aqui, cujo alvo de minha
reflexão foi o corpo. Nele, instabilidade e indeterminação tensionam o cotidiano da
atualização das relações entre pessoas e seus espíritos herdados.
81
CAPÍTULO 2
FLUXOS, DIMENSÕES E TRANSBORDAMENTOS
“Que será que os anjos pensam de Deus?”
(Alejo Carpentier, O Século das Luzes, p. 233)
2.1 SOBRE COMO GERAR LUZ, FORÇA, E OUTRAS DISPOSIÇÕES
Naquela tarde, um casal de jovens havia entrado na botânica em que Joana
realizava as consultas aos mistérios. Ao olhar para a prateleira em que estavam
agrupadas as velas grandes, o rapaz se voltou para a moça que o acompanhava, sua
irmã, e disse-lhe: – Você tem tua força, mas você os mantém apagados. O jovem
dominicano se referia, eu pressupus ao ouvi-lo, ao fato de que sua irmã seria uma
pessoa que tem os mistérios. Mas, ele chamava a atenção, a moça não fazia uso de um
dos principais objetos que os meus interlocutores dominicanos adquirem nas botânicas
com o intuito de ativar alguma forma de relação com espíritos, particularmente seus
mistérios herdados.
Enquanto realizei o trabalho de campo com Rosa na Plaza del Mercado de Río
Piedras, ajudando-a com as vendas, era notável a recorrência da compra por imigrantes
dominicanos das grandes velas de São Miguel Arcanjo, São Elias, Santa Marta A
Dominadora, Santa Ana, São Expedito, São Santiago Apóstolo e Virgem A Dolorosa.
O próprio altar de Rosa, inicialmente organizado no quarto dos santos e depois
transferido para um local entre a sala de estar e a cozinha, era mantido diariamente com
velas acesas. Ela e Diogo, ao final do dia de trabalho, separavam algumas velas para
levar para casa e acender para os santos. Ele, especialmente, levava quase sempre
plantas além das velas. Em casa, Diogo preparava seus banhos. Com eles buscava
afastar as coisas más ou para atrair boa sorte. Rosa, ao chegar da botânica, sempre
substituía as velas de seu altar que já haviam se apagado. Mas também tinha o hábito de
acendê-las no chão da sala, logo depois da entrada da porta. – Essa casa tem os santos,
Rosa sempre dizia a alguém quando queria enfatizar que vivia em um lugar protegido da
violência urbana de Río Piedras.63
Por sua vez Joana foi taxativa, desde o início de nosso convívio, em explicar o
motivo de semanalmente comprar as velas para os mistérios, às vezes na mesma
botânica em que trabalhava os espíritos. As velas de seu altar deviam estar sempre
63
Caderno de Imagem do Capítulo 2 (Imagens 1, 2 e 3).
82
acesas, caso contrário, ela me dizia, me contraria a sorte. Eu não gosto de ver meu altar
às escuras… Se põe uma miséria, Joana me disse, ao que eu argumentei: – Não se vê
bem. – Apagado, ela reagiu, não se vê bem apagado, Joana reafirmou enquanto
separava velas, um banho, uma água espiritual e essência para uma assídua cliente
dominicana da botânica.
Em seguida a cliente fez um comentário sobre a falta de velas em seu próprio
altar. E Joana argumentou com a mulher: – Assim eles [os mistérios] se põem. A isso a
mulher retrucou: com quaisquer vinte, trinta pesos [dólares], eu acendo velas para eles
[os mistérios]. Entretanto, quando ela não tinha dinheiro, eles também precisam
entender, a cliente concluiu.
Em sua casa, Gina explicava-me que é preciso acender as velas aos santos,
porque senão é assim que eles põem alguém, me põem... Apagada, sem luz, era o que
significava seu comentário. Para ela, à medida que se faz isso, as coisas vão
melhorando, se desenvolvendo, progredindo.
Neste dia, logo que chegamos à entrada de seu altar, localizado ao fundo da casa
em que ela vivia em Río Piedras, no último cômodo depois do seu quarto de dormir,
Gina me deixou atrás dela. Parou alguns segundos em frente à porta antes de entrar. A
luz do cômodo estava apagada e as velas do altar também. Ela então me disse que
quando sai deixa as velas apagadas. Quando vai trabalhar as acende, pois chega a
gastar oitenta dólares comprando somente as grandes velas para os santos: – Quando eu
as acendo quer dizer que estou chamando os mistérios, Gina me disse. Com a lâmpada
ainda apagada, puxou uma cadeira, pediu-me para sentar e depois apertou o interruptor.
Em seguida começou a me mostrar alguns serviços que os mistérios lhe pedem, que eles
vão consumindo ali mesmo no altar, ela observou.
Mostrando-me uma xícara de café com rum, que estava ao lado de sobras de cera
vermelha, em frente ao quadro de São Carlos Borromeu (Candelo Sedifé) e Santa
Bárbara Africana, Gina apontou em seguida para a imagem de São Miguel Arcanjo, que
lhe pediu água não havia muito tempo. O mistério, ela observou, bebia a água aos
poucos. Água, também, era a bebida que toda segunda-feira ela colocava para São Elias.
E, retirando do chão a xícara com café que colocou para esse mistério – também
conhecido como o Barão do Cemitério –, pediu-lhe licença ao fazê-lo, mirando o
quadro, e argumentou comigo: – De todos os santos ele é o mais fodão. Gina então
apontou para a altura inicial do café dentro da xícara. Mostrava-me, assim, a marca que
surgiu na cerâmica depois que São Elias começou a consumi-lo.
83
Para Gina também é importante que um mistério possa trabalhar rápido. Aliás,
foi por causa disso que ela fez referência a certo quadro de seu altar. O quadro estava
amparado em frente a uma imagem em gesso (uma figura mais popular de São Elias),
mas que o retrata enquanto o profeta sentado em uma carruagem atrelada a cavalos.
Olhando para o quadro, Gina me falou: – Esse é um mistério que trabalha com São
Elias. E completou: – Esse mistério trabalha rápido. Para que ele continuasse a fazê-lo
dessa forma, Gina lhe põe um serviço.
Garantir a rapidez da ação de certos mistérios, entendida como trabalhar, não é
o único objetivo que Gina busca ao manipular substâncias alimentares como serviços
para esses espíritos. Com o mel ela pretende criar certos efeitos sobre as disposições de
Jean Criminel, o espírito petro de sua irmã, que ela também atende em seu altar.
Apontando em direção a um quadro de São Sebastião, Gina me explicava: – Eu o tenho
aí [em uma quina do altar], isso supõe que não haja outros mistérios [imagens
próximas]. Eu lhe ponho mel (uma taça com tabaco e mel) para tranquilizar. Ele gosta
de sangue, sacrifício de animal. Eu tenho que o ter aí, isolado [referindo-se àquela
localização de seu quadro]. Ele gosta de trabalhar com cabeça de bacá, de sangue.64
Joana também põe serviços aos santos. Tanto para os mistérios quanto para
Eleguá, Obatalá e as 7 Potências Africanas. Ela atende os últimos de modo semelhante a
como faz com seus mistérios. Assim, Joana não faz alterações importantes no
tratamento dado àqueles dois orichas a partir do sistema cosmológico e preceitos rituais
da santería ou regla de ocha. Para Eleguá, Joana prepara arroz doce com leite de coco,
às vezes doce de goiaba ou a própria fruta. Já para Obatalá prepara também arroz doce,
mais com um pouco de cascarilla (pó feito da casca do ovo). – As coisas são feitas
pelos seres humanos, mas são para os santos. Eles comem e bebem, Joana me disse,
referindo-se também às velas e aos óleos que utiliza nos trabalhos para os clientes
dedicados aos mistérios, especialmente em objetos rituais conhecidos como lâmpadas
(lámparas).
Para as 7 Potências Africanas, ela prepara uma bandeja com frutas frescas – eles
se alimentam do odor das frutas, Joana afirmou –, e pede-lhes desenvolvimento,
evolução e proteção. No centro da bandeja ela insere uma vela grande e depois de 9
dias leva as frutas a um monte: – Quem trabalha com santería põe no meio a cabeça de
um animal, de um cabrito... Os santeros dizem que antes de Jesus Cristo e no tempo
64
Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 4.
84
dele também as pessoas faziam sacrifícios para oferecer a Deus. Mas eu não trabalho
com sangue. Perguntei-lhe, então, se os mistérios não gostam de sangue: – Eu não
trabalho, ela respondeu.
Quando se sentia constrangida pelos comentários de uma amiga dominicana que
freqentava igrejas cristãs (evangélicas) – mas que tem um índio e por isso fumava um
tabaco para esse espírito vez ou outra, inclusive na botânica – sobre os maus trabalhos
(trabajo malo) feitos com os santos, Joana argumentava com essa senhora: – Eu os
atendo, acendo suas velas grandes, suas coisas. Mas trabalho tranquilamente isso.
Faço minhas coisitas, mas eu gosto dos trabalhos doces, trabalhar com coisas doces.
No entanto, Joana sempre dizia que quando alguém lhe faz um dano ou ela quer
algo, crava a espada de São Miguel que possui na mesa de seu altar e oferece uísque a
esse mistério. Com um gesto que indicava um corte em seu pescoço, ela pretendia
sinalizar para mim que seu agressor estaria, depois de tal serviço, morto. Porque ela
mencionou a bebida alcoólica, eu lhe perguntei se havia diferença entre oferecer água
ou uísque aos espíritos. Para ela, pôr uísque aos mistérios é um serviço mais forte. Tal
substância permite que seu pedido se realize mais rápido. Para Joana, essa é a bebida
que se põe para os mistérios mais fortes: São Miguel, São Marcos de León, São
Santiago, Papa Candelo...
Já Rosa não colocava alimentos em frente às imagens de seu altar. Água era o
líquido contido nas taças e copos. Mas ela inseria mercúrio no interior de uma pequena
xícara diante da imagem de São Miguel Arcanjo, seu santo protetor, e às vezes da
imagem de Santa Marta A Dominadora. Em frente a São Miguel Arcanjo, Rosa tinha
amparada uma fotografia de si. Certa vez a vi limpando a louça com um pedaço de
papel. A cor amarronzada da cerâmica levou-me a pensar que se tratava de borra de
café. Quando eu lhe perguntei o que era aquilo, Rosa me disse que era azougue
(mercúrio) e servia para a boa sorte.
Meses depois, Joana me explicou na botânica que o mercúrio é usado para os
trabalhos, para inquietar um homem. Essa substância poderia ainda ser incorporada às
lámparas: recipientes que contêm uma série de óleos (aceites), incluindo o de milho ou
de oliva (considerado de melhor qualidade) em maior quantidade, bem como especiarias
e outras substâncias no interior do qual se colocam pequenos pavios, chamados de
mechitas, que devem ser acesos.65
65
Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 5.
85
As lámparas são preparadas pelos meus interlocutores dominicanos como um
serviço ritual aos mistérios. No altar de Gina, uma lámpara divisional de la 21 División
é oferecida a todos os mistérios, preparada com canela, anil estrelato, óleos, malagueta,
cravo, entre outras especiarias. Tal serviço garantia coletivamente a alimentação dos
espíritos mantidos em seu altar ao mesmo tempo em que se esperava que os pedidos e
ações espirituais por ela solicitados fossem realizados. Gina, assim como Rosa, também
amparou uma fotografia de si em seu altar. Mas para isso inseriu sua imagem em uma
ampla bandeja, que, no momento em que a vi, já estava com vários dos alimentos nela
colocados em estado de decomposição. Para Gina, os serviços como as lámparas são
feitos a base de óleos e especiarias porque os mistérios gostam de tudo que nós, porque
foram vivos.66
Às vezes Joana recomendava que seus clientes preparassem as lámparas e
dedicassem tal compósito alimentar e de luz, adicionado com o azougue, aos mistérios
em sua própria casa: – Se põe uma lámpara aos santos e se se deseja apressar-lhes se
põe esse azougue… O santo não se pára, está sempre correndo, os santos se põem
ligeiritos, Joana argumentou. Enquanto a observava na botânica, notei que ela inseria os
chamados óleos nas velas que acendia para os mistérios, uma das formas de preparar um
trabalho para os clientes. E perguntei-lhe um dia o porquê de inserir tal substância às
velas. Joana me explicou que o fazia para que as velas ficassem mais fortes: – Os
mistérios vão puxar (jalar) mais rápido a vela, a vela tem mais força. Mantendo-se
pensativa por alguns segundos, ela concluiu: – Os óleos são um suplemento. Enquanto
os mistérios vão comendo a vela, trabalham.
2.2 PRESTAÇÕES RITUAIS: SUAS CONEXÕES, SEUS EFEITOS
2.2.1 Servir e Conectar
Como essas descrições evidenciam, boa parte da atenção ritual que os meus
interlocutores dominicanos oferecem aos mistérios refere-se a práticas de dar
substâncias aos espíritos herdados. A isso eles chamam de atender os mistérios. As
substâncias, particularmente alimentares, permitem a criação de fluxos de troca
contínuos entre as pessoas e seus mistérios. É sob essa modalidade de atenção ritual,
chamada por eles de pôr serviço, que o dom recebido é retribuído ao longo da duração
da vida de cada interlocutor. Nesse sentido, a água solicitada por São Miguel à Gina ou
o café que ela e Joana colocam para São Elias/Barão do Cemitério todas as segundas-
66
Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 6.
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feiras, dia desse santo, ou ainda o refrigerante avermelhado Country Club, da
preferência de Metresili, sobre o qual Armando pôs uma vela branca porque ela gosta
que seja assim, mediam o processo de produção de relações entre esses vivos e mortos:
– O serviço é como uma força para eles, que se alimentam disso. Tu põe comida e a
comem... os espíritos vêm e se alimentam .67
Dar substância aos mistérios configura-se assim como uma forma de
reciprocidade. É no decorrer da colocação dos serviços que os espíritos se fortalecem. É
atualizando esse compromisso ritual familiar que as pessoas se potencializam. Nessas
trocas, ambos vão adquirindo um fortalecimento mútuo. Seres humanos e espíritos se
tornam indissociáveis no sentido estrito que dependem, cada contraparte a seu modo, de
uma vitalidade que não está exatamente em si.68
A força da ‘pessoa’ liga-se à organização e à atualização desses circuitos rituais.
Foi isso que enfatizou Ogun Balendyó e sugeriu o jovem dominicano à irmã na
botânica. O mistério explicou-me porque a irmã de Gina não poderia passar seus
petroses para a própria Gina: seria como se ela não se alimentasse. O rapaz observou
que sua irmã tem sua força mas a mantém sem ativação.
Tal dependência recíproca é um dos aspectos que Mauss (2008) considerou
como fundamental nas economias da dádiva. Nelas, pessoas e coisas se entrelaçavam de
tal modo que era difícil pensá-las como inseparáveis. E isso a despeito de toda a
circulação a que ambas estavam submetidas. Posteriormente Gregory (1982, p.18-19)
enfatizou essa preocupação de Mauss, destacando que os sistemas de troca de dádivas
estabelecem uma “relação entre os sujeitos” que transacionam. Para Gregory, o objetivo
dos sujeitos é obter o máximo de devedores de dádiva; as relações pessoais que essa
forma de troca cria e não as coisas em si mesmas são o que eles desejam.
Mas o fluxo e as contrapartes pelos quais me interesso nesta etnografia são
outros. Espíritos, que já foram pessoas como nós ou que foram vivos – para usar
expressões recorrentes de Gina – e não exatamente coisas (itens materiais) circulam
entre aqueles definidos como parentes. Esta é uma diferença importante, que me leva a
fazer pelo menos duas considerações gerais ao aproximar esse material etnográfico de
tal discussão conceitual e teórica sobre as trocas de dádiva e de mercadoria.
67
Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 7. 68
Isso, no entanto, como procurei mostrar no primeiro capítulo, não significa que corpo (ou mente) e
pessoa ou pessoa (cavalo) e espírito experimentem uma mesma relação ou ponto de vista, seja em termos
de percepção, saber ou poder.
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A primeira é que diante da distinção que apontei não convém pensar as relações
entre meus interlocutores dominicanos e seus espíritos utilizando uma noção de troca
cujo acontecimento fundador é a sociedade. Isso, no entanto, não impede que eu
experimente o seguinte movimento analítico: mobilize a troca, enquanto uma noção
antropológica que descreve certos arranjos e interações entre coletivos diversos por
meio da circulação de itens variados, para pensar a constituição de pessoas em relação a
seus espíritos herdados contemporaneamente.
Mauss foi perspicaz a isso ao indicar que um dos primeiros grupos de seres com
os quais os homens tiveram que entrar em contato, e que por definição, estavam lá para
contatá-los, eram os espíritos dos mortos e os deuses.
Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do
mundo. Era com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não
trocar. Mas, inversamente, era com eles que era mais fácil e mais seguro
trocar. A destruição sacrificial tem precisamente por objetivo ser uma doação
necessariamente retribuída. (MAUSS, 2008, p. 79).
As trocas que Gina e Joana vêm estabelecendo com os mistérios e que eu tentei
tornar visível no início desse capítulo funcionam como imagens parciais, não idênticas,
mas mesmo assim factíveis sobre como pode ter sido a interação de seus antepassados
familiares com esses espíritos. Gina, Luiz, seu amigo jamaicano, e eu conversávamos
em um final de tarde na casa dela. Enquanto Gina lavava certa quantidade de arroz que
prepararia para o nosso jantar, movimentava suas mãos por entre os grãos e observava a
água turva que escorria. Isso a levou a comentar conosco: – Cada geração trabalha
diferente. Até com isso [água do arroz] se pode trabalhar. Ao propor esse segundo
capítulo, tenho como intenção deflagrar imagens contemporâneas sobre as ‘relações’
pressupostas que constituem as ‘pessoas’, discutidas no primeiro.
A segunda consideração é a seguinte: não se trata de uma diferença de escala
tampouco de uma substituição homóloga. Retira-se a sociedade, incluem-se meus
interlocutores dominicanos; saem os itens materiais, entram os espíritos. Pois os
mistérios figuram excessivamente nessas interações. Eles são o que se transmite adiante
quando certo circuito ritual chega ao fim com a morte de uma pessoa ‘e’ um dos pólos
da troca. Sendo, além de uma das contrapartes rituais, o que também é transmitido, os
mistérios podem ser localizados em três dimensões quando se procura refletir sobre suas
‘relações’ com os seres humanos.
Com essas considerações, tentarei explicitar o que proponho como a tripla
localização desses espíritos. Quero especificar, desse modo, uma dimensão da análise
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que não se reduz apenas à dependência recíproca entre contrapartes humanas e
espirituais.
Uma das dimensões das relações que venho discutindo diz respeito a quando os
mistérios são descritos como um dom transferido pelos meus interlocutores. Aqui
ganham realce as relações prefiguradas: trocas cotidianas de serviços rituais que lhes
foram transmitidas, cujo pressuposto é uma continuidade no tempo, assunto do primeiro
capítulo. O que me leva a pensar esses espíritos como um dom em circulação é o caráter
inalienável e a profundidade temporal que os mistérios assumem, na medida em que
estão associados a uma forma de conexão familiar que precisa se efetivar para gerar a
força da pessoa. Aqui penso nas considerações de Gregory (1982, p.43-44, 47) de que
as relações pessoais são importantes e devem se perpetuar para aqueles que
transacionam dádivas porque são elas mesmas que se fazem presentes nos itens
materiais trocados.69
Do ponto de vista das pessoas e dos mistérios, as trocas rituais que
criam a potência de ambos são aquilo que vai sendo perpetuando, enquanto uma
obrigação ritual, para aqueles que receberão o dom.
Contudo, esses fluxos cotidianos de substância – as trocas de serviços rituais –,
quando atualizados, recriam ‘relações’ diversas. Eles produzem mutualidade entre as
‘pessoas’ e seus espíritos ao longo de um determinado transcurso de anos. Mas tais
fluxos podem ser empregados também como forma de gerar trabalho dos mistérios e das
próprias pessoas.
Nesses contextos de atualiação do dom os mistérios não aparecem como aquilo
que foi recebido. Mas sim enquanto um dos agentes das trocas. Quando se trata das
prestações rituais, esses espíritos se alternam entre duas posições: eles são uma das
contrapartes das relações mútuas com as pessoas, que se fortalecem conforme atendem
ritualmente seus espíritos, oferecendo-lhes os serviços nos altares; mas os mistérios se
69
O que procurei demonstrar no primeiro capítulo usando a ideia de ‘incorporação do parentesco’.
Personificação é a noção mobilizada por Gregory para definir esse processo. Incorporação foi a minha
opção conceitual na medida em que se trata, para pessoas e mistérios, de justificar o dom referindo-se a
relações familiares anteriores. O que é recebido e incorporado durante certo período não é tido como
item material ou artefato que traz em si o labor dos que o criaram; trata-se de mortos que se reconhecem,
falam sobre uma existência também humana e suas relações com os vivos de quem receberam cuidado e
trabalho ritual. Desse modo exprimiram-se Ogun Balendyó com Gina ao lhe revelar como sua mãe
trabalhava com São Judas Tadeu e Belié Belcan com o convidado da festa, cobrando-lhe cuidado ritual.
Mas com essa observação não pretendo essencializar o que vem sendo definido como “coisas” nos
sistemas de troca de dádivas na Melanésia. Bateson (2008, p.106-107) destaca que entre os Iatmul uma
forma de tratamento habitual do wau para com um lau é reunir em uma sequência de nomes ancestrais
maternos importantes, tais como um tipo de palmeira, que é também um peixe e um ancestral do clã. No
caso dessa forma de tratamento, planta, animal e pessoa se conectam de tal forma que, empiricamente, o
que pode ser tomado como ‘coisa’ é posto em suspensão. E apenas um exercício etnográfico poderia
procurar esmiuçar essas ligações.
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tornam ainda os intermediários a quem os meus interlocutores dominicanos recorrem
quando os clientes entram em cena. É ativando-os que as pessoas pretendem satisfazer
os desejos e/ou solucionar os problemas daqueles que as procuram. Sob essas
condições, substâncias também são dadas aos espíritos para que possam trabalhar.
Esses dois aspectos são importantes para a maneira como os meus interlocutores
dominicanos entendem os modos rituais que prestam a esses espíritos. São os contextos
que se referem a esses dois modos rituais – de alguns participar, de outros observar –
que revelam a existência de direções e interações variadas nas prestações rituais.
McCarthy Brown destacou isso ao observar que, para a sua interlocutora haitiana
em Nova Iorque, chamada de Mama Lola, a comida cumpria um papel importante na
maneira como essa sacerdotisa se relacionava com seus espíritos herdados. Essas
entidades eram alimentadas em escala mais ampla uma vez por ano, em suas festas de
aniversário, e, em escala menor, diariamente com libações e pequenas oferendas. E ela
destaca que “sem essa nutrição os espíritos não deveriam, e talvez não poderiam,
trabalhar para Mama Lola” (McCarthy Brown, 2001, p. 44).
Na introdução ao livro, ela também esboça uma abordagem semelhante a que eu
proponho aqui, pois dá ênfase aos fluxos de prestações rituais que permitem o cuidado e
a manutenção dos espíritos de Mama Lola, e, nesse sentido, dela própria, assim como
salientei para meus interlocutores dominicanos no início deste capítulo. McCarthy
Brown destaca ainda a importância de uma “rede de troca de presentes” mais ampla,
criada por meio da condução do trabalho espiritual, da leitura das cartas e dos
tratamentos rituais para outros. Rede na qual ela mesma se inseriu quando começou a
dar presentes aos espíritos e notou que isso modificava o altar de Mama Lola
(MCCARTHY BROWN, 2001, p. 6-7).70
2.2.2 Servir e Alienar
As lámparas que Gina prepara como um serviço ritual para todos os mistérios ,
chamados de 21 Divisão, serviam à Joana como uma forma de direcionar a ação dos
mistérios para seus clientes. Preparando em seu altar doméstico essas composições
substanciais formada por óleos, especiarias e luz dedicadas ao consumo desses espíritos,
Joana pretendia assim fazer com que os mistérios chegassem até seu altar. Nele, esses
espíritos comeriam aquilo que se encontrava dentro das lámparas e trabalhariam:
concretizariam, para os clientes, aquilo que lhes foi solicitado por Joana com a oferta do
70
As prestações rituais também foram mobilizadas por Ochoa (2004, p.107) para descrever a maneira
como as regras do palo se organizam ritualmente.
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serviço ritual. Gina também descreveu em termos de dar substância a maneira que
emprega para manter um mistério conhecido por trabalhar rápido. É colocando-lhe um
serviço que ela consegue reproduzir tal ação espiritual quando dele precisa.
Ainda que transmitidos familiarmente, os mistérios são alimentados também
para satisfazer os desejos de estranhos, alheios à lógica da transmissão do dom. E as
substâncias alimentares não são as únicas manipuladas para tal fim. Visando-se ao
imediatismo na concretização dos desejos e interesses dos clientes, nos serviços que são
colocados aos mistérios são adicionadas substâncias químicas como o mercúrio, por
exemplo. O efeito esperado é produzir estímulos intensificados nos espíritos. Nos
termos de Joana, o santo não pára, está sempre correndo, se põem ligeiritos. O que se
pretende é que os mistérios possam trabalhar e que o façam em ritmo acelerado. Joana
investe também em tal intensificação ao inserir óleos às velas que acende para os
mistérios, destinadas aos clientes: um suplemento para que eles consumam a energia do
calor mais rápido, e assim realizem o que lhes foi pedido.
O que passa a estar em jogo é uma maneira de reproduzir, através dos serviços
rituais, uma força espiritual que é ou será empregada não diretamente para as próprias
pessoas. Tal força deve ser canalizada para os clientes. Se com essas trocas rituais os
mistérios também se fortalecem, já que lhes são oferecidas substâncias que lhes
conferem força, nesses contextos alimentá-los significa mais do que simplesmente criar
reciprocidade.
Pessoas e mistérios se utilizam de um fundamento ritual para produzir algo que
não se limita às ‘relações’ de mutualidade entre ambos. Quero argumentar que com isso
o que surge é algo que sinaliza para transformações: novas disposições são criadas nos
espíritos e novas potências místicas (os serviços ou trabalhos destinados aos clientes)
extravasam os limites dos altares, propagando-se coletivamente e redefinindo os densos
e complexos contornos entre os seres humanos e seus mistérios.
Com isso destaco que o caráter da ‘relação’ entre pessoas e seus espíritos se
modifica. Gerar a disposição para os espíritos trabalharem, nos termos que me foram
descritos, faz com que os meus interlocutores dominicanos e os mistérios manejem
compreensões acerca da troca de mercadoria. Nesse sentido, ao lado das substâncias
alimentares, outras formas materiais (e conceituais) fazem parte das prestações rituais.
Uma delas é o pagamento por algo que foi externalizado aos clientes sem a criação de
uma dependência duradoura e rotineira.
91
Desse modo, o que faço é tomar alguns aspectos da proposta de Gregory ao
tentar caracterizar o que definiria a troca de mercadorias: a independência recíproca
entre os envolvidos e a interrupção no tempo daquilo que trocam como itens alienáveis.
É a partir dessa ideia de alienabilidade, talvez, mais propriamente, a partir de uma
compreensão sobre a capacidade de ‘pessoas’ e ‘espíritos’ serem descritos como
propícios a se adequar, em alguns momentos, a essa condição, que proponho uma
reflexão.
A troca de dádiva praticada na PNG hoje não é uma relíquia colonial, mas
uma resposta contemporânea a condições contemporâneas. Sem dúvida, a
troca de dádiva é uma atividade econômica indígena; mas a troca de dádiva
dos dias pré-coloniais (da qual quase nada é conhecido) foi muito diferente
da troca de dádiva atual. A atividade econômica não é uma forma natural de
atividade. É um ato social e seu significado deve ser compreendido com
referência a relações sociais entre pessoas em cenários historicamente
específicos. A essência da economia da PNG hoje é a ambiguidade. Uma
coisa é agora uma dádiva, agora uma commodity, dependendo do contexto
social da transação. Um porco pode ser comprado como uma commodity hoje
de modo que possa ser usado em uma troca de dádiva amanhã. É por causa
dessa ambiguidade que o conceito de dualismo, com seu setor tradicional
claramente definido, deve ser abandonado. A colonização da PNG não
produziu uma transformação de mão única, de ‘bens tradicionais’ a ‘bens
modernos’, mas complicou a situação onde coisas assumem diferentes formas
sociais em diferentes épocas e em diferentes lugares (GREGORY, 1982,
p.115-116).
Essas imagens contrastantes entre dependência recíproca e alienação que
resultam das trocas de dádivas e de mercadorias foram mobilizadas também por Palmié
(2002, p.159-200) em sua discussão sobre a regla de ocha e as reglas del palo. Palmié
se atém, especialmente, às formas de socialidade que os praticantes das reglas del palo
descrevem em suas interações com as contrapartes espirituais. E entrega-se à tarefa de
refletir sobre como as experiências históricas de violência, dominação e transformação
de “pessoas” em “coisas” nas economias transatlânticas da plantação escravista
penetram na linguagem, tecnologia e performance rituais desses cultos afro-cubanos.
Como Gregory salientou na citação acima, Palmié também chama a atenção para as
repercussões que essas experiências da modernidade tiveram especialmente para
aqueles recriaram suas vidas vendo-as submergir em marés coloniais.
Ele destaca que no simbolismo ritual dos praticantes da regla de ocha os orichas
são entidades cuja volição é fundamentalmente independente da agência de sua
contraparte humana. E, embora os deuses possam ser persuadidos a garantir favores
específicos, podem recusar-se a realizá-los, chegando a punir os devotos que não têm
um comportamento divino adequado (PALMIÉ, 2002, p.166).
92
Para ele, o simbolismo do parentesco está implícito nas representações sobre os
vínculos estabelecidos através da iniciação na regla de ocha: os orichas, tidos como
pais, veem os devotos como filhos. Desse modo, ele destaca que a troca entre ambos é
frequentemente definida como um processo de alimentação baseado em noções de
reciprocidade generalizada. Os deuses devem ser alimentados e a imagem da
alimentação condensa todo um arranjo de noções sobre a troca como um meio de
conectar os humanos e os orichas em um relacionamento duradouro.
Palmié, então, observa que uma série de operações rituais liga a cabeça do
iniciado com os recipientes que contêm a presença objetificada do oricha em questão.
Uma vez que isso ocorra, as relações não devem ser rompidas por ambas as
contrapartes. Antes, devem ser mantidas pelo que é considerado, idealmente, como uma
cadeia de prestações recíprocas. Isso assume a forma de sacrifícios e de outros tipos de
atenção ritual dos devotos, de um lado, e da influência positiva do oricha, de outro.
Entretanto, Palmié ressalta,
Na prática, o deus se apropria do trabalho ritual do devoto consumindo seus
produtos na forma de sacrifícios e cerimônias. E, de fato, os iniciados às
vezes lamentam-se sobre quão exigentes seus deuses são, que tarefa árdua é
trabalhar com os orichas (PALMIÉ, 2002, p.166).
Um simbolismo ritual completamente diferente caracteriza as relações entre os
praticantes das regras del palo e suas contrapartes místicas. Enquanto na regla de ocha
considera-se que os orichas iniciam as relações com os seus devotos, “reivindicando
suas cabeças”, nos cultos congos praticados por cubanos destaca-se a agência humana.
Ela deflagra a interação com as entidades espirituais, conhecidas como nfumbi.
Embora possam ser herdadas (geralmente quando isso é prescrito em
adivinhação), essas potências espirituais entram em contato ritual com os seres humanos
por meio de um sacerdote (tatá nganga), que cria um objeto chamado de nganga ou
prenda. Esse sacerdote deve ser conquistado para concordar em iniciar alguém nas
regras del palo e deve ser pago por esse trabalho ritual. Isso feito, ele estabelecerá
contato com o espírito de um morto humano e o instalará ritualmente em um
receptáculo, chamado de nganga ou prenda (PALMIÉ, 2002, p.167).
Palmié acentua que a relação mística entre o espírito e sua contraparte humana
se efetiva mais por meio desse objeto complexo, que media o contato entre ambos, do
93
que pelos ritos de iniciação, chamados de rayamiento.71
Isso porque a relação entre
ambos é geralmente descrita como um pacto firmado. Desse modo, afasta-se das
imagens de nutrição doméstica, troca recíproca e dependência benéfica veiculadas na
regla de ocha. Para ele, os símbolos do trabalho assalariado e do pagamento, da
dominação e da subordinação, da escravização e da revolta são pervasivos às práticas
rituais das regras del palo.
Se a interação entre o devoto e seu oricha assim como aquela entre tatá nganga e
o espírito de um morto humano descrevem relações de dependência, esse vínculo é
conceituado de modo contrastante. Enquanto os primeiros poderiam ser vistos como
modelados parcialmente sobre concepções naturalizadas de obrigações mútuas entre
prole e pais, o sacerdote do palo seria um empreendedor místico que comanda uma
força de trabalho vinculada pelo contrato ou pela captura (PALMIÉ, 2002, p.167-168).
As ngangas são um objeto compósito. Geralmente construídas com caldeirões,
em seu interior são estocados materiais heterogêneos como galhos, ervas, terra, ossos,
despojos animais e humanos, pós, cinzas e cera de vela, além de chifres, penas e crânios
fazerem parte de tal composição (PALMIÉ, 2002, p.170, 184; PALMIÉ, 2006;
OCHOA, 2004, p.125; ROUTON, 2008).
Citando Lidia Cabrera, Palmié descreve que, no palo monte, o ato deliberado de
apropriação de substâncias conectadas metonimicamente com a individualidade de um
morto humano, tais como a extração de crânios, ossos e seus fragmentos ou apenas terra
do cemitério, é descrito como roubo. Assim, acredita-se que o espírito move-se à
procura de seus restos mortais, que ainda subsistem. No entanto, para que tal captura
seja bem sucedida, é importante atrair o espírito (nem sempre essa entidade mora nas
imediações do cemitério), através de cantos e oferta de bebida alcoólica e outras
substâncias para perto de seus restos mortais. Isso realizado e dispondo-se o espírito a
entreter relações de serviço com sua contraparte humana – o que se confirma com um
oráculo de pólvora –, algumas moedas são depositadas no local em que se extraíram os
materiais que incorporam o espírito, seu pagamento (PALMIÉ, 2002, p.172-173).
A partir desse pagamento, as trocas entre tatá nganga e os espíritos que são
instalados nas ngangas sob seu comando são descritas em termos de um simbolismo
contratual. Além das ofertas de tabaco e aguardente que mantêm o funcionamento
71
Com tais ritos, o iniciado tem o direito de possuir e interagir com uma nganga. Além disso, passa a se
integrar formalmente a uma série de vínculos religiosos.
94
adequado da nganga e a sua lealdade ao tatá nganga, esses objetos compósitos são
alimentados geralmente após o fim de certa tarefa específica.
Eles trabalham por comissão, e, enquanto a apropriação de seu labor místico
define uma relação expressa em um idioma de troca, isso pareceria se
conformar muito mais às noções marxistas de relações sociais mediadas pela
transação de commodities do que a uma imagem maussiana de troca de
dádiva (PALMIÉ, 2002, p. 173).
Algumas prestações rituais oferecidas aos mistérios deixam mais permeáveis as
fronteiras entre dependência recíproca e alienação que, pelo menos idealmente,
garantem a integridade da regla de ocha e das reglas del palo como dois sistemas
religiosos autônomos.
Tanto os temas da volição dos deuses e do processo de alimentá-los como meio
de produção de vínculos recíprocos domésticos, mais afeitos a relação entre devoto e
oricha, quanto aqueles que tratam do contrato ou da captura de mortos humanos por
meio de técnicas de manipulação de substâncias para atraí-los ou pagá-los nas regras del
palo, combinam-se e não simplesmente se opõem nesse material que venho
descrevendo.
Quando destaquei que a prática de alimentar os mistérios pode ser vista
enquanto uma técnica ritual que incita o trabalho desses espíritos, percorria essa
consideração o seguinte argumento: se dar substância significa mais que criar conexões
mútuas, produzir as disposições para o trabalho dos mistérios aparece como um dos
efeitos de alimentá-los. Servir, neste caso, significaria também criar a capacidade ou a
vontade neles para alienar. A criação de tais disposições gera uma transformação, pois
transborda a definição das relações entre pessoas e seus mistérios quando vistas da ótica
apenas do fortalecimento recíproco. Outra socialidade passa a ser descrita.
São justamente essas disposições para trabalhar ou servir o tatá nganga que
Palmié realça para os praticantes das regras del palo. Para isso, ele reconhece que
considera como parâmetro de comparação o que significa idealmente para os devotos na
regla de ocha alimentar os orichas (PALMIÉ, 2002, p.171). No palo, os espíritos são
contratados ou capturados para servir sacerdotes (ou seus clientes). E esses geralmente
não possuem um lastro (de parentesco simbólico, como na ocha, ou biológico, como no
caso dos mistérios) com as entidades espirituais.
Palmié enfatiza as tecnologias rituais que pretendem criar nos espíritos dos
mortos a vontade de locomoção, cujo resultado é sua instalação nos caldeirões que se
tornarão as ngangas. A extração de substâncias que fazem parte do corpse ou do
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ambiente fúnebre de indivíduos falecidos, a oferta de bebida e o pagamento com
algumas moedas nas sepulturas engendram e firmam o contrato entre o tatá nganga e
esses espíritos. Roubo, oferta de substância e pagamento aparecem como eventos
críticos que permitem as possibilidades de se firmar esse tipo de relação.
O que “complica a situação das coisas” no material que apresento, para usar uma
expressão de Gregory, é que mesmo tendo esse lastro familiar (natural), os mistérios e
as prestações rituais que lhes fortalecem não parecem indiferentes ao contrato. Embora
esses espíritos não tenham sido capturados, no sentido que acentua Palmié, a oferta de
substância pode funcionar como uma troca alienada e com isso a volição dos mistérios é
transformada, como ele chama a atenção para as regras del palo. Além disso, é
justamente porque o serviço ritual é concebido como algo que se produz para outros (e
não para a potencialização da própria pessoa), que necessita ser retribuído enquanto um
pagamento.
Aqui retomo a história de Gina, em que seu corpo foi tomado como lócus de
produção de memória sobre o poder e uma dívida espiritual. O corte no ombro dela, por
um lado, pagou Ogun Balendyó pelo serviço que o mistério fez para a cliente
dominicana, que não cumpriu seu trato com esse espírito. Por outro lado, Gina
comentou, a sua mutilação não foi o bastante para esse mistério.
Em seguida, Ogun Balendyó propôs à Gina a preparação de outro serviço, que
ela deveria colocar-lhe. Gina se recusou, no entanto, a fazê-lo. Ela me explicou que, no
altar, visualizou todo o serviço ritual indicado por Ogun Balendyó, com tudo, tudo que
eu deveria colocar nele, lembro que ela acentuou. Se lhe colocasse esse serviço não
haveria outro caminho, ela me falou – e o seu olhar era ainda apreensivo –, a mulher
estaria morta.
Por um lado, nessa história vê-se a importância de ser cumprido um acordo
firmado com os espíritos, no sentido de que eles dispuseram a outros algo da força que
lhes pertence. E, neste caso, não foram saldados por isso. O pagamento de Ogun
Balendyó, ainda que sob forma substantiva (o sangue), foi aquilo retirado de Gina. Não
se tratou, aqui, da cobrança (e extração) de uma dádiva simplesmente. Como Palmié
observou a recompensa da nganga também lhe chega ao fim da execução de uma tarefa
específica. Tais objetos trabalham por comissão. Mas através da imagem da prestação
ritual oferecida aos mistérios, é possível rastrear outras transformações acerca da
posição desses espíritos quando entretêm suas trocas. E essas transformações, ainda que
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flertem com a capacidade dos mistérios de se alienarem, têm outros efeitos. Novos
transbordamentos são delineados.
2.2.3 Dos serviços que geram revolta
Em geral, a tríade pessoas, mistérios e clientes descreve relações de
independência recíproca entre os dois últimos. Uma vez atendidos pelas primeiras
invocando os segundos ou ainda pelos próprios espíritos montados em seus cavalos, o
cliente interrompe seu contato com as entidades e as pessoas, ou, pelo menos, essa é a
expectativa. No entanto, esse acordo que une momentaneamente espíritos e outros
indivíduos continuou a repercutir na maneira como Gina e Ogun Balendyó interagiram
na histórica acima.
Por meio da própria ideia de serviço, o que era inicialmente a vontade de Ogun
Balendyó – a sua recusa em trabalhar para a tal cliente – assumiu a forma de uma
relação contratual e temporária. E eu não sei como Gina o convenceu a fazer algo pelo
qual ele, como espírito, já sabia que não receberia. E, diante da dívida gerada, a mesma
imagem foi empregada pelo mistério, que sugeriu uma vingança fatal. Para isso, bastava
Gina alimentá-lo. Servir, neste caso, significaria estimular (alimentar) a revolta para
matar.
Nessa narrativa está presente um dos elementos que torna as práticas das regras
del palo, segundo Palmié (2002, p.176), formas condensadas da violência que perpassou
as socialidades do sistema da plantação escravista nas Américas. Como já chamei a
atenção, a ênfase inicial de Palmié é sobre as relações de contrato e trabalho pago que
caracterizam as práticas rituais entre paleros e mortos humanos. No entanto, dentro do
simbolismo contratual das regras del palo é comum os praticantes alimentarem com
sangue as ngangas, no interior das quais os espíritos se encontram. Tal substância
aumenta a efetividade desses objetos compósitos Os sacerdotes que falham em
alimentá-las adequadamente com gotas de sangue e outras substâncias ou as estimulam
sobremaneira com a oferta do mesmo sangue, criam nesses objetos um gosto acentuado
por isso. Tal desejo incontrolável só será completamente saciado com a devoração de
seus “senhores” (PALMIÉ, 2002, p. 173).72
72
“Há algum tempo elas [as prendas ngangas] já começaram a extrair o sustento diretamente dele
[palero]. Pouco a pouco elas minaram a força dele e, quando a luta se intensificar, começam a levar ele
para baixo, blindando caminhos certos ou pondo-o em risco. Se ele não banquetear elas, elas iram
banquetear ele”, interlorcutora palera de Ochoa ( 2004, p. 131).
97
Tornando o sangue o objeto da troca de commodity, alguém se arrisca a ser
vítima dos desejos de um consumidor fundamentalmente alienado porque
literalmente semelhante à coisa: o nfumbi. A desumanização através da
agência das coisas é, assim, a outra face da fantasia de controle total obtido
por meio de representar objetos como extensões de si (PALMIÉ, 2002,
p.173).
Isso leva Palmié a deslocar sua análise para as transformações que seres
humanos e espíritos passam a experimentar nas regras del palo com base em suas
relações de trabalho alienado. Inicialmente os espíritos dos mortos são objetifcados
como “coisas”, combinados no interior da ngangas com uma série de substâncias e
materiais que são parte de si e outras que lhes dão efetividade ritual para o uso do tatá
nganga. Entretanto, por causa da própria manipulação substancial a que são submetidos
pelo sacerdote, os espíritos se tornam potencialmente agentes da revolta.
A instabilidade dessa forma de relação, que tem premente a ameaça de
coisificação – ou desumanização como propõe Palmié – dos próprios sacerdotes (e de
seus clientes que lhe solicitam uma nganga) precisa ser cuidadosamente modulada. Caso
contrário, a predação faz dos vivos (agentes) alimento das ngangas (objetos).
Essa ameaça não é uma característica das relações de contrato das regras del
palo. Para Ogun Balendyó, um mistério herdado, predar a cliente poderia assumir a
forma de um serviço ritual que ele consumiria por causa de sua ira pelo não
cumprimento do contrato. Fazer essa aproximação não significa que tomo os mistérios
como as ngangas, ou seja, como “objetos”, embora altamente complexos e híbridos,
como o próprio Palmié (2002, 2006) enfatiza.
O que pretendo é considerar como esse universo conceitual, em que alienar a
outros pode ser praticado como uma ‘relação’ que traz em si uma chance de
transbordamento, neste caso de retaliação, perpassa diferentes cosmologias sobre as
interações entre seres humanos e espíritos no Caribe, particularmente naquelas
chamadas de afro-caribenhas.
Em Cuba (e na sua diáspora nos EUA) Palmié descreveu o complexo da ngangas
afro-cubanas. Em Porto Rico, com sua presença acentuada de imigrantes da República
Dominicana, vê-se que as linguagens e técnicas rituais entre os meus interlocutores
dominicanos e seus espíritos herdados são modeladas por relações de dom e trabalho:
servir ritualmente informa como práticas caracterizadas pela constituição e manutenção
recíproca de ‘pessoas’ e mistérios podem estar a serviço de estranhos. No entanto, isso
98
não se define como uma anomalia para a dependência mútua que é criada entre as
contrapartes da troca ritual transmitida como herança familiar.
O que ocorre parece ser uma alternância sobre quem ou o que é o sujeito e o
objeto nas diversas prestações rituais. Como Palmié salientou, experienciar essa
dinâmica implica conhecer relações de comando e controle, e elas não estão isentas do
risco da revolta. Trata-se, assim, de socialidades que se desenvolveram imbricadas com
os “sistemas históricos de escravidão no Novo Mundo (...) com contradições sociais
crônicas que emergiam do fato de que a desumanização completa do escravo como um
simples fator de produção permanecia uma finalidade inatingível” (PALMIÉ, 2002, p.
176).
Uma narrativa que Joana me ofereceu sobre um acontecimento que experienciou
enquanto vivia na República Dominicana, refaz com outros personagens alguns dos
argumentos que defende Palmié: a fantasia do controle total de objetos que funcionam
como extensões da pessoa apresenta como seu outro lado a desumanização a que se
incorre com isso.
Durante uma madrugada, na cidade de La Romana, Joana sentou-se para fumar
um cigarro e beber café no segundo andar da casa em que vivia com o marido e as
filhas. Era isso o que fazia quando lhe faltava o sono. Como em outras noites, ela
escutou um barulho que vinha da rua, um som que sempre lhe parecia o de uma cadela
com correntes.
Joana já havia contado ao marido sobre os sons que ouvia nas madrugadas. E ele
disse-lhe que se tratava de um bacá, e, por isso, que deixasse isso para lá. Mas naquela
noite, sentada sobre o reservatório de água do terraço, Joana não ouviu apenas aquele
barulho. De longe, viu também um cão andando na rua. O cachorro com as correntes, à
medida que se aproximava, transformou-se em um touro, acompanhado por vários
filhotes de cães atrás. Sem encarar o animal, ela começou a rezar alguns salmos da
bíblia.
Depois disso, Joana me disse, um vizinho suicidou-se. O homem era proprietário
de um negócio, e teria comprado um bacá. Ele teria feito uma tentativa, mal-sucedida,
de matar a esposa e um dos filhos. E, por fim, acabou com a própria vida.
– Muitas pessoas que compram um bacá se suicidam, se matam ou então o bacá
come o próprio dono. O bacá se alimenta de sangue e os donos de fazenda, de tempos
em tempos, têm que lhe dar um animal, uma vaca, um cavalo... Eles gostam de sangue,
o que querem é o sangue, e as pessoas acabam se matando, Joana concluiu. Para ela,
99
os bacás são homens que se transformam em animais e animais que se transformam em
[outros] animais. Os dominicanos que têm firma, fazendas e negócios compram isso no
Haiti, mandam fazer no Haiti.
Convivendo com os imigrantes dominicanos é possível serem ouvidas narrativas
sobre os bacás. Seres híbridos criados a partir da manipulação humana de forças
espirituais, pouco escutei sobre como os bacás são produzidos. Em contrapartida, os
relatos sobre sua comercialização e atuação percorrem os relatos daqueles que vivem
em Porto Rico. Nesses relatos sobre a interação entre os seres humanos e esses seres
híbridos (meio-homens, meio-animais), coerção, pagamento e a possibilidade de
predação são completamente pervasivos.
A imagem dos bacás não é completamente estranha às dimensões de troca pelas
quais fluem dádivas e trabalho ritual entre pessoas e seus mistérios. Jean Crimnel, como
Gina salientou, gosta de trabalhar com cabeça de bacá e Gina por isso serve-lhe mel.
Assim Gina procura atingir seu paladar. Ela esperava que essa substância adocicada
atuasse sobre os gostos que o espírito manifesta, considerados perigosos e violentos,
como a manipulação de sangue de animais sacrificados ou das cabeças de bacás. E não
seria equivocado sugerir que, tal como ocorre com os paleros, estimular
demasiadamente Jean Criminel, oferecendo-lhe uma substância pela qual ele já sente
desejo, possa ser o que Gina teme. Possivelmente dar-lhe sangue seria abrir caminho
para algum futuro ato de revolta. Gina faz uso, por sua vez, de práticas de controle. É
buscando constantemente acalmá-lo que ela convive com ele em sua casa e no seu altar.
Ou, antes, em sua vida.
Adocicar (endulzar) os espíritos é uma técnica ritual partilhada pelos próprios
mistérios quando trabalham montados em seus cavalos, como logo descreverei. Em
geral, empregá-la, como Gina o fez, tem o intuito de controlar a rebeldia, seja a dos
espíritos ou dos seres humanos. Foi no contexto da solicitação de um trabalho espiritual
por uma cliente porto-riquenha, no qual se procurou adoçar o marido dela, que pude
observar algumas das técnicas de invocação empregadas para a materialização desses
espíritos. E essas vão além da colocação dos serviços.
Entretanto, se os serviços colocados nos altares fazem com que os mistérios
trabalhem sem que estejam visíveis aos olhos humanos, para que realizem suas tarefas
montados em seus cavalos, antes eles precisam chegar às casas. Por um lado, o
deslocamento dos mistérios ocorre porque as suas práticas de consumo ocorrem
geralmente no interior dos ambientes domésticos. Práticas que permitem a reciprocidade
100
entre eles e as pessoas, bem como a produção de disposições para o trabalho dos
espíritos por causa dos efeitos das substâncias que lhes são oferecidas. Mas, por outro
lado, a chegada precisa ser produzida por meio da ativação de outras sensibilidades dos
mistérios.
2.2.4 Fazer chegar para trabalhar
Quando fui conhecer o altar de Armando no município de Canóvanas, fora da
área metropolitana de San Juan, ele aguardava uma cliente porto-riquenha. Ela iria até a
casa dele acompanhada de uma senhora dominicana, amiga de Armando. A porto-
riquenha seria consultada pelos mistérios. Na verdade, ela já vinha passando por essas
consultas havia algum tempo.
Era uma quinta-feira de dezembro muito chuvosa. O dia se via completamente
nublado e úmido. Eu havia chegado à casa de Armando cerca de quarenta minutos antes
delas. Quem me conduziu até lá foi Carlos, um senhor porto-riquenho taxista, amigo de
Rosa. Mas ele se recusou a retornar ao final daquela tarde para me buscar. Isso porque
enquanto fazíamos o percurso, adentrando o município de Canóvanas, ele me descrevia
extremamente apavorado o bairro San Isidro como uma barriada perigosa, em que
ocorreriam muitos assassinatos. Nesse bairro se localizava a residência de Armando e
Renan, seu companheiro porto-riquenho.
Armando havia ido até a entrada de Canóvanas. Lá pediu que o taxista o
acompanhasse de carro. O trajeto até a sua residência e de Renan era labiríntico. As
ruas, completamente sinuosas, de terra. À medida que íamos percorrendo o caminho,
viam-se casas simples enfileiradas, com os muros contíguos formando becos. Por causa
da forte chuva, tornava-se mais difícil fazer o trajeto enlameado e repleto de buracos.
O taxista demonstrava irritação e medo. Rezando, perguntava-me até onde
iríamos. Mas eu não sabia respondê-lo. Era a primeira vez que estava ali. Mais
adentrávamos a San Isidro, mais assustado ele sentia-se. Já na rua em que Armando e
Renan moravam, vimos dois homens adultos negros no portão de uma casa. E Carlos
esbravejou muito, quase retirando as mãos do volante. Ele não conseguia controlar seu
pavor. Em tom alto, dizia-me que gostava de mim, mas que não retornaria ali para levar-
me de volta a Rio Píedras. Carlos insistia em dizer que estávamos em uma barriada.
Quando ele parou o carro, Armando saiu para nos cumprimentar. E chegou a ver e ouvir
os comentários de Carlos.
Depois de desculpar-me com Armando por causa da reação de Carlos, ele me
encaminhou até uma construção, em um nível abaixo de sua casa. A casa se localizava
101
em uma pequena encosta e foi feita com madeira. No interior daquela construção ele
organizou seu altar: um espaço criado com pedaços de papelão, folhas de zinco,
estrados de madeira a partir de uma estrutura de concreto. Em seu interior, uma espécie
de antessala, as imagens de santos podiam ser vistas em várias paredes.
Ao entrar, à esquerda havia dois quadros de virgens com um crucifico ao meio.
E, um pouco afastado, um quadro de Santa Clara. Na mesma parede, existiam ainda um
quadro da Virgem A Dolorosa e na parede à direita (pintada de azul e bolas rosas pelo
casal) outro de Anaisa/Santa Ana. Um quadro de São Elias foi pendurado numa pilastra.
Ao lado dessa estrutura, mas em um espaço separado por tábuas de madeiras, Armando
organizou um altar índio. Formado por dois bustos de índios, um feminino e outro
masculino – entre os quais fora colocado um totem –, esse altar se destacava pela
quantidade de terra exposta.
Logo que nos sentamos na antessala, Armando pediu a Renan para preparar uma
defumação (sahumerio). Ele começou a queimar o carvão. Em seguida, Renan acendeu
uma vela branca, que foi colocada no chão. Quando a defumação ficou pronta, Armando
se dirigiu à porta da antessala e ali permaneceu por alguns minutos. Então começou a
espalhar a fumaça pela antessala. Ao terminar, Armando entrou no altar.
Antes, no entanto, por causa daquele dia chuvoso e denso, Armando havia
comentado comigo que alguns mistérios não gostavam de subir nestas condições. Em
dias como aquele, só sobem os mistérios mais fortes, ele pontuou.
Neste intervalo de tempo, o telefone dele tocou. Uma cliente queria lhe
perguntar sobre quantos dias ela deveria manter um trabalho. Armando continuava no
altar. Depois de dar a resposta à mulher, que conversava ao telefone com Renan, nós
escutamos o som forte do sino. Amauri o tocava dentro do altar. Ele também borrifou
algo no ar, provavelmente água florida. Renan, então, comentou comigo que seu
companheiro estava chamando os mistérios.
Quando conheci Armando na botânica em que Joana realizava as consultas, ele
me explicou que os mistérios não chegam imediatamente. Seria necessário um tempo.
Tocar o sino e esperar foi como ele sintetizou. Mais do que isso, no entanto, precisa ser
feito em seu altar para que a chegada desses espíritos seja bem sucedida, ou seja, para
que os mistérios entrem no ambiente doméstico e depois ocupem o corpo de Armando.
Fumar um tabaco, por exemplo, foi o que Renan me disse que Armando faria logo
depois que ouvimos os sons do sino que vinham do altar. Esses atos realizados por
Armando e Renan para invocar os mistérios demonstram que eles precisam ser atraídos.
102
Acender uma vela, produzir um chamado sonoro através do toque do sino, fumar um
tabaco, são atos sutis que criam as condições para que os mistérios se movimentem em
direção à casa de Armando.
No entanto, em outra conversa que tive com ele em seu altar, dei-me conta que
tais indicações materiais diziam respeito também a um comprometimento dos mistérios
com seus cavalos. Comprometimento que pode fazer de tal chamado quase uma ordem.
Armando me falava sobre as imagens dos santos e alguns objetos rituais relacionados
aos mistérios. Ao segurar o sino e sacudi-lo com vigor, ele comentou: – Já o espírito
tem que chegar, já sabe que tem que trabalhar. Seu tom de voz era marcadamente
impositivo. Semelhante maneira de falar eu já havia ouvido de Joana na botânica. Eu
tinha lhe perguntado se era possível que os clientes fizessem eles mesmos os trabalhos e
dedicassem aos mistérios: – Não é da mesma maneira, porque eu tenho os mistérios e
como eu os atendo eles têm que me obedecer!
Logo depois desse comentário, Joana me olhou de forma estranha. Parecia ter
percebido o tom autoritário que utilizou, elevando e impondo a sua voz. Geralmente
eram as relações de poder e controle dos mistérios sobre ela que eram acentuadas em
nossas conversas. Não o contrário, como ela acabava de expressar.
Essas considerações de Joana e Armando revelam que, além dos serviços que
geram disposição para o trabalho, esses pequenos ritos de invocação também são
importantes. Eles criam uma espécie de etiqueta disciplinar para o tipo de prestação que
está em jogo aqui. Como Palmié apontou em sua análise sobre as ngangas, pelo menos
nesse momento, o comando (ou a agência) está com os seres humanos.
Minha observação, no entanto, não significa que a interferência dos mistérios se
arrefece no cotidiano dos meus interlocutores dominicanos. O que me parece relevante é
que à medida que a prática de atender esses espíritos engendra outra dinâmica ritual,
algumas obrigações são criadas para os mistérios em termos de uma etiqueta disciplinar.
A partir dos pequenos atos que Armando e Renan realizaram, os mistérios sabem que
têm que chegar para trabalhar ou obedecer porque são atendidos, como Joana me
falou exasperada.
Esses procedimentos fundados em técnicas que manipulam certa materialidade
(chama de vela como sinal luminoso e não apenas como energia consumida pelos
espíritos, água florida borrifada no ar e fumaça de tabaco liberada), como aqueles de de
Armando, pretendem produzir um ambiente sensível propício aos mistérios. – É
preciso ensinar os mistérios porque o mundo hoje é outro. Quando um mistério sobe,
103
ele olha ao redor e não reconhece nada, é preciso fazer com que ele se sinta à vontade,
bem, Luiz, amigo jamaicano de Gina, certa vez me explicou.
Neste sentido, se através de certa materialidade substantiva (alimentar) as
‘pessoas’ alcançam alguma autoridade, embora relativa e instável, sobre os mistérios
pondo-os para trabalhar, a manipulação de outras formas materiais criam condições
ambientais que revelam alguns modos de regulação das ‘relações’ em jogo. Como Gina
me explicou, acender as velas significa que ela está chamando os mistérios. Assim ela
os invoca quando vai trabalhar, e, possivelmente, esses espíritos também.
Depois que Armando saiu do altar, ele comentou com Renan sobre um talco que
a cliente porto-riquenha deveria trazer consigo. Consideração que me soou esquisita.
Passaram-se alguns minutos e as duas mulheres entraram na antessala. Traziam, de fato,
um frasco de talco infantil Johnson, duas garrafas médias de rum Bacardi e uma vela de
cera com formas humanas. Armando conferiu esses materiais, e argumentou com a
cliente porto-riquenha que ela só saberia se iria necessitar somente do trabalho ou ainda
de um banho durante a consulta com o mistério.
Armando me chamou para conhecer seu altar. Estávamos ali havia já certo
tempo quando Renan entrou. Ele dizia que a cliente porto-riquenha estava apressada.
Sentamo-nos novamente na antessala e só então Armando começou a fumar um tabaco,
como Renan me disse: – O tabaco é para chamar os mistérios. Eu tenho que fazer
certas coisas para que eles subam sem demorar muito, Armando completou. Para ele,
quando se santigua um tabaco para fumar é importante que isso seja feito até o fim.
Descartar o tabaco seria jogar fora seu aché, sua bendição.
Enquanto ele fumava, sentado em uma cadeira ao lado da minha, sua amiga
dominicana, Luz, que acompanhava a cliente porto-riquenha, me perguntou se não
havia essas coisas no Brasil. Antes, quando as duas chegaram, Armando me apresentou
como uma brasileira que quer conhecer os mistérios. Eu então mencionei o candomblé
como uma religião que se aproximaria da santería (regla de ocha). Luz me perguntou se
os caracoles eram jogados no candomblé. E Armando pediu para que eu olhasse a
pedra colocada pouco depois da entrada da antessala, próxima à porta. Na verdade, três
pedras formando um busto cuja cabeça tinha olhos, nariz e boca feitos com búzios (los
caracoles como Luz mencionou), além de uma espécie de penacho no topo: uma
imagem de Eleguá.
Luz passou da santería aos santeros. Mencionou alguns desses sacerdotes que
trabalharam na botânica em que conheci Joana, e se referiu particularmente a um deles
104
que teria enlouquecido. Armando imediatamente reagiu. Ele não sabia o que se passava
com os santeros, que quando trabalham mal ficam loucos. Para Armando, com relação
aos mistérios, as pessoas só ficam loucas se deixam de trabalhar. Eles querem seu
corpo, ele concluiu. E em seguida argumentou: – Se a pessoa morre, eles reencarnam
em uma pessoa da família, que deve seguir trabalhando. Eu então lhe perguntei se os
mistérios eram uma herança. Repetindo o termo que eu empreguei, ele novamente
enfatizou: – Se uma pessoa morre, eles ficam na família.
Foi durante essa conversa que Armando pegou um frasco de uma loção,
conhecida como “Pompeia” (de fragrância dita francesa). Ele passou a substância em
seus braços e em ambos os lados das mãos. Passando a diante o frasco para a cliente
porto-riquenha, pediu-lhe que também usasse a substância e que ficasse tranquila. Ela
demonstrava nervosismo e já havia dito isso a Armando. Ele então pediu à Luz e a
Renan que fizessem o mesmo, e, por fim, a mim. Eu lhe perguntei qual era a finalidade
de usar a loção em nossos corpos: – Tranquilizar o espírito, Armando respondeu.
Em seguida Luz pediu-me que não ficasse nervosa. De fato, eu não estava. E
argumentou que há pessoas que se assustam, porque os mistérios chegam às vezes com
muita força. Por isso, seria comum que Armando chocasse bruscamente sua cabeça na
divisória que separa a antessala em que nos encontrávamos do altar. Comentava-se,
então, que há dias em que o mistério demora para subir e chega muito forte.
Mas foi Luz que quando usou a loção em seus braços e atrás do pescoço, em sua
nuca, sentiu um tremor (temblor). Mais tarde, como pude saber por causa da carona que
ela e sua amiga porto-riquenha deram-me de volta a Rio Píedras, a pedido de Armando
e do espírito que subiu nesse dia, Luz também é um cavalo dos mistérios.
Alguns minutos depois de usarmos a loção, Armando pediu a Renan um lenço
preto. Momentos antes, ele havia mencionado a palavra velho, mas nesta ocasião eu não
entendi do que se tratava. Ele voltou a falar então nesses termos. Até que nos informou:
– O velho está por aí, sem saber exatamente onde, mas ali, entre nós. Luz disse a
Armando que sentia uma vibração apenas em um lado do pescoço. Sua sensação
corporal era a de que eles [os mistérios] não conseguem subir, pois ela deveria sentir
isso [a vibração desses espíritos] dos dois lados do pescoço.
Renan então perguntou a Armando se deveria buscar junto com o lenço também
a capa. Depois que Renan retornou com essas duas vestimentas, Armando pediu que
todos ficassem tranquilos. Sua cliente porto-riquenha acabara de dizer-lhe, mais uma
vez, que sentia arrepios.
105
Pronunciando o nome de Papa Legba, Armando enunciou uma sequência de
frases em outra língua, que não era o espanhol. E eu não pude compreendê-lo. Então
pediu a Renan a garrafa de rum que a cliente lhe trouxe e bebeu uma quantidade
considerável, de uma única vez, no gargalo. Mais alguns minutos se passaram, quando
Armando movimentou seus ombros, sacudindo-os com vigor e sussurrou algo. E
novamente fez outro pedido a Renan. Agora, uma garrafa de água florida, cujo líquido
Armando borrifou na capa e no lenço.
Novamente voltou a pedir tranquilidade – sua cliente porto-riquenha insistia em
afirmar que estava nervosa –, pois ele não queria retirar ninguém do chão. Luz disse
que sentia a corrente e Renan então comentou que sentia a presença de São Elias ali,
apesar de não ter isso e não montar. Armando reagiu a esses comentários dizendo que
era a corrente que estava passando. Lentamente ele foi se transformando.
Foi depois que borrifou a água florida na capa e no lenço que seu corpo começou
a se movimentar para trás e para frente. Nesse momento, ele pediu a Luz para iniciar
uma oração. Primeiro um pai-nosso, que todos oramos. Ela então emendou uma ave-
maria. Renan, de pé e ao lado de Armando, posicionou sua mão atrás da cabeça de
Armando, para amortecer o choque de seu companheiro na divisória. O que não
adiantou. Sentado, Armando se movia para frente e para trás durante certo tempo. Mas
logo depois que Renan se afastou, Armando bateu a cabeça bruscamente. Seus olhos
arregalaram-se. Vagarosamente arrotos foram liberados. Esse era o som que ouvíamos
pausadamente, devagar... Ao olhar para Armando, víamos pouco a pouco que São Elias/
Barão do Cemitério ali chegava.
Depois de materializar-se, esse mistério, conhecido como o Barão do Cemitério
– o primeiro morto enterrado em um campo santo, como os meus interlocutores
dominicanos o definem –, começou a consultar a cliente porto-riquenha. E montado em
Armando ele fez um trabalho para ela: – Armando está me ajudando a trazer de volta
meu marido, a adocicá-lo, a mulher posteriormente me falou.
Essas técnicas de invocação de São Elias me permitem reforçar uma
consideração que fiz anteriormente, quando afirmei que, ao aproximar a discussão de
Palmié sobre as ngangas dos mistérios não pretendia dizer que esses espíritos são
“objetos” ou “coisas”.
Como venho procurando demonstrar, a questão principal que perpassa esse
capítulo é demonstrar a alternância entre as posições ou condições dos espíritos quanto
a duas dimensões das prestações: aquelas em que eles se fortalecem reciprocamente e
106
alienam aos clientes parte daquilo que os constitui. O que me interessa é a variação e
não a fixidez. De modo que o que faço, ao longo dessas descrições especialmente, é
mapear algumas experiências sobre a instabilidade e a dissociação como uma forma de
relação. Por alternância, volto a afirmar, entendo a capacidade dos mistérios se
destacarem da força que lhes constitui, vinculada à atenção ritual prestada por certas
pessoas e baseada nos mais diversos vínculos substantivos (alimentos, bebidas,
lámparas e velas), e apresentarem isso a outros sob aspecto novo. Enquanto um produto
(serviço ou trabalho) destinado a sujeitos que lhes são estranhos, mas que nem por isso
estão fora do circuito ritual no interior do qual os mistérios e as pessoas se mantêm
cotidiamente.
A invocação de Armando reforça que, para os meus interlocutores, os mistérios
não são “coisas” no sentido estrito. 73
Isso porque se, por um lado, parece-me que nela
está mais ou menos explícito que a aproximação da cliente porto-riquenha de Armando
e seus mistérios se baseou em um lógica contratual: não apenas a pressa dela, mas a
própria etiqueta ritual na qual ele mesmo se engajou, definem uma dinâmica de
produção de um tarefa por demanda; por outro lado, mesmo assim chamar os mistérios
foi uma técnica ritual que demandou cuidados especiais.
Esse cuidado não se deveu somente ao fato de que a incorporação da contraparte
fundamental dessa troca poderia não ser bem sucedida. O que frustraria a cliente e
Armando. Ou que sua ida poderia gerar sérios traumas no cavalo. Assim argumentou
comigo Belié Belcan montado certa vez em Armando, quando observou que é
importante tranquilidade no momento do transe. Pois, em seu decorrer, há o risco do
espírito da pessoa não retornar ao seu corpo depois que o mistério o deixa. O que
implicaria a sua morte.
A tranquilidade que Armando e Belié Belcan mencionaram é uma noção
importante porque diz sobre aquele que está na iminência de receber o espírito e o
ambiente que precisa ser criado para que isso se efetive. Odores doces, como o da água
florida e da loção, são utilizados para suavizar a atmosfera que circunda os mistérios e o
corpo que irá recebê-los. No limite, os próprios espíritos.
Esse é um aspecto sensível característico das relações entre as ‘pessoas’ e alguns
de seus espíritos.74
Como discutirei no quarto capítulo, é engajando-se na liberação de
73
E me pergunto se em algum outro contexto etnográfico, é possível de fato falar disso nestes termos. 74
E esteve presente na maneira como Ogun Balendyó elaborou o que chamo de um plano de ação ritual
para mim, ao me prescrever a necessidade de um despojo e banho antes que eu regressasse ao Brasil.
107
odores característicos (especialmente acres e fortes) que alguns dos meus interlocutores
dominicanos evitavam a aproximação e contato com os chamados mortos: espíritos
anônimos ou mesmo de parentes que para eles se distinguem dos mistérios que atendem
ritualmente.
Cuidado, também, foi preciso com as vestimentas que o Barão do Cemitério
usaria. Seus trajes receberam um pouco de água florida. Além disso, foi preciso saber
esperar. Pois em um dia de dilúvio como aquele era preciso aguardar o deslocamento do
mistério. Tal desvelo, por exemplo, não se assemelha com as técnicas mobilizadas para
fazer com que o espírito que se encontra dentro da nganga apresente-se nos rituais das
regras del palo.
Vê-se isso nas descrições de Routon (2008, p.632-633) sobre uma cerimônia no
palo mayombé: “– Vamos velho”, era assim, ele diz, que o morto da nganga, construída
com um caldeirão e no interior da qual havia, entre outras coisas, um boneco, foi
chamado. Após a entoação de cantos que tardavam em cumprir o seu papel, um novo
cantor assumiu a liderança e o corpo do mayombero exibiu os primeiros sinais de
possessão (convulsões rápidas, explosões vocais, respiração ofegante e babas). O
ambiente na sala, de um automatismo triste se tornou fervoroso. Um canto evocava que
cães perseguissem um cimarrón que foi para o monte. Com isso, Routon explica,
espera-se provocar o morto, invocar o espírito com mais força, quando uma pessoa não
quer cooperar e luta com os espíritos para que não tomem seu corpo.
De acordo com Routon, a cerimônia, que começou como uma honra aos mortos,
transformou-se, impregnando-se com a imagem violenta de um capataz da plantation e
seus cães atrás de um escravo fugido. “Os espíritos dos escravos fugidos estão sempre
sem ar, eles sempre chegam correndo para escapar do capataz e seus cães”, comentou-se
na cerimônia.
Relutante a emergir de seu lugar escondido no outro mundo, o espírito do
escravo fugido de Arcano tinho sido forçado a participar da festa feita em sua
honra através de um apelo para a imagem aterrorizante de uma caça de um
escravo colonial. Com a face contra o chão, o espírito incorporado se
contorcia com seus braços firmemente pressionados contra a extensão de seu
torso de um modo terrivelmente reminiscente da boca bajo, uma tática
disciplinar que requeria a um escravo deitar-se com a face no chão enquanto
recebia chibatadas. Um dos assistentes rituais então suavemente colocou a
lâmina de um facão do mato sobre os ombros do espírito, estendendo-a para
baixo em um ângulo que cruzava suas costas. O espírito logo se recuperou,
ficou de pé, e começou a dar conselhos para todos os presentes, em uma fala
108
misturada consistindo do bozal, o espanhol entrecortado falado pelos
escravos africanos recém-chegados à ilha e a variante cubana do kikongo
(ROUTON, 2008, p.633 grifo do autor).
Assim como os mortos das regras del palo, diz-se que os mistérios são também
de outro mundo, muito embora, como será visto adiante, tal mundo para os mistérios se
encerre no mesmo em que os vivos habitam. Como observou Luiz, (...) o mundo hoje é
outro. Quando um mistério sobe, ele olha ao redor e não reconhece nada (...). Por isso,
Luiz indicou, é importante que os mistérios se sintam bem ao chegar à casa dos cavalos.
Sua consideração indica que fazer chegar um mistério para trabalhar implica lidar com
alteridades que não se identificam tampouco se comportam – pelo menos os espíritos
mais conhecidos vinculados aos meus interlocutores dominicanos com os quais pude ter
contato – como os escravos fugidos, cimarrones das plantações no Novo Mundo.
Essa é uma diferença importante, pois cria uma série de nuances não apenas
sobre quem troca (‘pessoas’ e seus espíritos ou ‘pessoas’, seus espíritos e os clientes) e
o que se troca (serviços que fortalecem mutuamente ou trabalhos espirituais realizados
para terceiros). Chamo atenção para a existência dessas nuances pela seguinte razão:
articulada a essa economia ritual apresenta-se uma cosmologia na qual os mistérios
reconhecem uma ordem espiritual singular em que está implicada também uma noção
de trabalho. O que discutirei a seguir é que se isso quer dizer que esses espíritos têm
suas tarefas – como várias das situações etnográficas já demonstraram –, sua realização
se dá de acordo com um regimento cosmológico que me parece singular. Outros
elementos, além daqueles que descrevem as relações rituais (com seus variados fluxos,
dimensões, posições e transbordamentos) entre contrapartes humanas e espirituais,
fazem-se relevantes nessa cosmologia. Se há trocas de naturezas diversas, há igualmente
hierarquia e colaboração quando se caracteriza o trabalho ritual dos mistérios.
– Os mistérios não foram escravos, foram pessoas livres pelo mundo, os
orichas foram escravos, isso é outro ramo, depois que os escravos morreram... depois
os indígenas, eles, os mistérios, saíram. Os mistérios são espíritos de várias partes do
mundo, Belié Belcan argumentou comigo montado em Armando. Atenta a essa
perspectiva de Belié Belcan, descrevo abaixo uma cena etnográfica em que dois modos
rituais (pagar e adocicar), quando empreendidos pelos mistérios, revelam uma
cosmologia delineada e experienciada como uma divisão, chamada pelas pessoas e
pelos mistérios de A 21 Divisão (no singular mesmo).
109
2.2.5 Pagar e adocicar: táticas de um plano ritual
Quando os mistérios trabalham não o fazem isoladamente, mas em colaboração.
Conversando com Gina em seu altar, ela me explicou que São Elias, Santa Marta e
Guedé Limbó são companheiros de trabalho. Quando ela põe um serviço para eles ou
apenas para São Elias, os outros dois lhe ajudam. Gina já havia destacado a
colaboração entre os espíritos quando me mostrou o quadro do mistério que trabalha
com São Elias e rápido.
Quando eu passei a frequentar a sua casa e o seu altar, ela mencionou algumas
vezes que eu retornaria a Porto Rico. No entanto, nunca me explicava exatamente o
motivo. Certo dia, Gina avisou-me que um mistério queria falar comigo. Eu estava
prestes a regressar ao Brasil e insisti que precisava saber do que se tratava. Gina pediu-
me para esperar.
Abriu a cortina da entrada do altar e foi até a mesa. Encostando sua mão direita
com a parte exterior sobre a testa ela tocou o sino, abaixando-se até a altura em que
estavam as imagens dos santos no chão. Como se ouvisse algo, ela aproximou sua
cabeça do quadro de São Santiago Apóstolo, que estava em frente à mesa, com uma
nota de um dólar pendurada no canto direito: – É São Miguel que quer falar com você.
São Miguel é bom... Foi o que ele, São Santiago, me disse. Gina me pediu então que eu
fosse à sua casa ao fim da tarde do dia seguinte, por volta das 18 horas, para uma
consulta.
Quando toquei a campainha ao final da tarde, Gina estava ainda deitada.
Trocamos algumas palavras enquanto ela deixava a sonolência de lado. Aproveitei a
ocasião para entregar-lhe uma imagem impressa em papel de Nossa Senhora da
Aparecida, que ela incorporou ao seu altar, aderindo-a na parte elevada de uma parede.
No dia anterior eu, ela e Luiz conversávamos, enquanto bebíamos café em sua
sala, e inusitadamente Gina me perguntou sobre o patrón do meu país. Expliquei-lhe
que no Brasil havia uma padroeira, dizendo-lhe o nome da santa. Gina então reagiu.
Naquele momento, os mistérios estavam dizendo-lhe que a padroeira era como São
Aparício, faz as coisas aparecerem e trabalha com São Donato. No decorrer da
conversa, olhando para a parede da sala diante de nós, ela argumentou que estava vendo
a santa. Pediu-me então que lhe desse uma imagem da padroeira.75
75
Caderno de Imagens do Capítulo 2. Imagem 8.
110
Já desperta, ela iniciou a preparação de uma defumação (sahumerio). Ao pôr
uma pedra de carvão em uma chama do fogão, Gina comentou que sentia frio. Quis
saber se eu também estava com a sensação, ao que lhe respondi que não. Ela então
aproximou suas mãos do fogo para aquecê-las, passando-as depois por seu pescoço e
suas costas. Parecia-lhe que havia um mistério ali que sentia muito frio.
Luiz, seu amigo jamaicano, chegou logo depois. Ele também seria consultado
pelos mistérios. Ela permanecia com a sensação de frio, e argumentou com seu marido
que era São Lazaro quem estava na sala entre nós. Algum tempo depois, ela deu uma
vela branca mediana para mim e outra para Luiz.
Gina se dirigiu até o altar. Quando retornou usava uma capa azul com bordas
brancas, os pés estavam sem sapatos, e tinha nas mãos um jarro divisional, objeto ritual
da 21 Divisão, que sempre contém um líquido. Para chamar os mistérios, ela ingere um
pouco dessa bebida. Caminhando até a entrada da porta, subiu alguns degraus. As
pernas então cambalearam, seu corpo estremeceu, o que a fez se desequilibrar. Já firme,
ela ergueu o jarro, olhando fixamente para o horizonte enquanto sussurrava algumas
frases. Em seguida fez libações em três lugares no chão, diante da porta da sala, para
que os mistérios entrassem em sua casa.76
Ao descer, mancava, andando com
dificuldade.
Direcionando-se a um móvel sobre o qual havia uma grande garrafa de rum,
presente que Luiz tinha levado naquele dia para os mistérios, ela pegou a bebida. Ao ver
isso, seu marido comentou em voz baixa comigo que o rum não era para ele (Ogun
Balendyó), mas para outro mistério.
– Esse garçon está sempre trazendo as coisas para os mistérios... É por isso que
ajudamos ele. Porque é assim. Nós vemos isso e o ajudamos, Ogun Balendyó
comentava ao receber do marido de Gina a garrafa de rum que Luiz havia lhe dado,
enquanto eu me sentava em frente ao mistério, que, ao deparar-se comigo, chamou-me
de madama.
Além da capa, Ogun Balendyó usava no altar um pañuelo na cabeça com um nó
atado para frente, também azul. Ao redor do pescoço, ele havia transpassado mais ou
menos sobrepostos três lenços (pañuelos): vermelho, verde e azul. Nessa consulta, o
mistério se apresentou como espanhol, destacando que na Espanha tem muitos cavalos
dos mistérios que o montam, que montam seu mistério, ele enfatizou. Sua pronúncia do
76
Conforme Gina, além dos pontos com o líquido contido no jarro divisional e rum no chão da porta, é
bom que se queime água florida nas invocações dos mistérios para atrair boa sorte, cheiros bons.
111
espanhol acentuava ao final das palavras a letra ‘s’, e Ogun Balendyó empregava ainda
algumas palavras em crioulo haitiano.77
Durante o tempo em que estive com ele, o
mistério fumou tabaco, ingeriu rum, e utilizou uma vela acesa, cuja chama eu encarei
enquanto o espírito se fixou em meus olhos e transmitiu seu saber divinatório para mim.
Ele confirmou que pediu ao cavalo – foi assim que se referiu à Gina em todo
momento – para avisar-me que queria falar comigo. O motivo era um despojo que
deveria ser feito em mim. Como eu frequentei muitos altares, ele argumentou, eu não
poderia voltar ao Brasil sem uma limpeza. Em mim aderiram-se o que os meus
interlocutores dominicanos chamam de coisas más, espíritos de mortos anônimos que
podem perambular pelas ruas, mas também se encontram nos altares, levados pelos
clientes sem que o saibam. De acordo com ele, eu estava muito pesada, sem conseguir
dormir bem. Era necessária, por isso, uma abertura de caminho.
Quando Ogun Balendyó mencionou o preço do despojo, na verdade, ele
pronunciou apenas alguns números, eu não entendi o que isso significava. Perguntei-
lhe o que me dizia: – É isso a que vocês chamam de dinheiro, ele me respondeu. E
depois completou: – Eu tenho que pagar os outros que vão me ajudar (com o meu
despojo e banho), meus irmãos. Momentos antes, o mistério havia dito que possui sete
irmãos. Eu quis saber se ele se referia a irmãos espirituais. Sete irmãos espirituais e em
vida, ele sintetizou.
Logo depois, Ogun Balendyo fez referência ao badi, palavra do crioulo haitiano
que significa altar.78
Novamente não compreendi o que o mistério me dizia.
Conversando com Gina e seu marido mais tarde, entendi que o que ele me informava
era que o pagamento pelo despojo deveria ser colocado, posteriormente, por mim ali
mesmo, no próprio altar.
O mistério foi incisivo comigo. Ele queria saber se eu realmente faria o despojo.
Era patente que havia desconfiança dele em relação a mim. Enquanto questionava-me se
eu realmente faria o que ele tinha acabado de me prescrever, Ogun Balendyó comentou:
– É por isso que o Ogum do Mar fica aborrecido, não gosta dos seres humanos...
77
Gina e seu marido explicaram-me que os mistérios usam com o casal palavras em patuá (é assim que
meus interlocutores dominicanos chamam o crioulo haitiano): tafu (tabaco); tafiá (rum); cofi (café); lajan
(dinheiro), la plas (marido de Gina, que auxiliava os mistérios quando montados nela). Métraux (2007, p.
60) observou que la place era uma abreviação de “comandante geral do lugar”, o mestre das cerimônias
vodu nos templos urbanos no Haiti. 78
Métraux (2007, p.66) também salientou que caye-mystères, bagui, badji ou sobadji eram os nomes para
o santuário no interior dos templos vodu urbanos; geralmente, uma sala que, ao fundo, era ocupada por
um ou mais altares.
112
Porque eles não lhe dão o que prometem. Os seres humanos lhe pedem as coisas e
depois que conseguem não lhe pagam.
Extremamente sério, fixando os olhos nos meus, Ogun Balendyó me explicava
que eu faria um despojo no mar e então um banho no rio. Após ouvi-lo, indaguei-lhe se
poderia anotar o que seria preciso para a limpeza. – Você vai fazer? Você vai anotar,
mas vai fazer mesmo?, o mistério insistia. Somente quando lhe dei certeza de que faria o
despojo, Ogun Balendyó começou a ditar-me o que eu deveria comprar e entregar ao
cavalo. E descreveu-me, detalhadamente, seu modo de ação ritual.
O despojo seria feito primeiro no mar. Depois disso iríamos a um rio:79
– Eu
vou com o cavalo no mar. Lá, em cabeça do cavalo [ou seja, ele não estaria montado
em Gina],80
o cavalo vai invocar Yemaya e esse Ogum, que é metade sereia [e como
quisesse lembrar-se da palavra disse pescado, logo se corrigindo]... Esse Ogum que é
metade pescado e metade pessoa. Quando chegássemos ao rio, Ogun Balendyó não
entraria, porque aqui é com outros mistérios, ele destacou: – São Judas Tadeu também é
um Ogun, mas do rio [era quem iria trabalhar nesse lugar]. Aí vão ser invocados La
Caridad del Cobre, para fazer tua abertura de caminho, e os índios Guaicaipuro e... [o
outro nome eu não consegui entender]. Ao repetir-lhe o que deveria ser comprado, o
mistério fez um acréscimo. Lembrou-se que precisava pedir-me para comprar também
maças. As frutas seriam levadas porque há mistérios rebeldes no rio. E ele, Ogun
Balendyó, precisaria adocicá-los (endulzarles).
– Os mistérios estão todos na Terra, no céu estão apenas Papa Bon Dieu, Jesus
Cristo e o Espírito Santo. Deus escolheu eles para ficar com ele no céu. Os mistérios
estão no que vocês, seres humanos, chamam planeta Terra. Eles estão....Sem completar
a frase, o mistério movimentou as mãos como Gina costumava gesticular, indicando que
esses espíritos estão no ar, ao redor.
Por causa dessa conversa, esqueci-me de pagar-lhe a consulta. Já na sala, disse
isso ao marido de Gina, que me pediu para voltar ao altar. Receosa, reagi. Seria melhor
ele perguntar ao mistério se eu poderia entrar e pagá-lo. Ao sair do altar, o marido de
Gina deu-me passagem para entrar.
Ogun Balendyo já se encontrava com o amigo jamaicano de Gina. Ambos
conversavam. Luiz estava sentado à sua frente com um lenço vermelho amarrado à
cabeça (como Ogun Balendyo) e fumava um tabaco. O mistério fazia referência ao
79
Além de mim, uma cliente porto-riquenha de Gina e seu marido passaram pelo despojo e banho. 80
Modalidade de incorporação relativa dos espíritos, como discuti no primeiro capítulo.
113
medo que o rapaz sentia, o que lhe impedia de montar os mistérios. O rapaz já havia me
dito que Ogun Ferraile é seu protetor, ele é um soldado dos mais poderosos, Luiz fez
questão de enfatizar.
Eu então os interrompi. Trazia as notas nas mãos. Exasperado, o mistério me
disse para pôr o pagamento em qualquer lugar do altar: – Eu não toco nisso, eu não
ponho a mão nisso, ele esbravejou. Novamente faltou-lhe a palavra dinheiro para as
notas com as quais eu lhe pagava a consulta.
2.2.6 Tateando mistérios e divisões
Que os espíritos trabalham em companhia, tendo a ajuda de outras entidades,
não parece ser uma peculiaridade da maneira como os mistérios se engajam em suas
tarefas visando aos humanos. Ochoa (2004), Espírito-Santo (2009) e o próprio Palmié
(2002) já chamaram a atenção para isso em suas etnografias sobre Cuba.
Em sua etnografia sobre as regras del palo, particularmente aquelas chamadas de
palo briyumba, Ochoa observa que ao lado das prendas ngangas mais poderosas, cujos
caldeirões alcançam altura considerável, geralmente veem-se outras que são suas
“aliadas”, que ajudam as primeiras, fabricadas em recipientes de ferro e cabaças
menores (OCHOA, 2004, p.125).
Recuperando o trabalho de Cabrera, Palmié (2002, p.176) ressaltou a existência
de uma estrutura de comando e submissão nas regras del palo. Sacerdote e espírito eram
apenas alguns dos agentes que tinham lugar para fazer uma nganga funcionar. Na
narrativa que ele recupera em seu livro, uma informante de Cabrera define tudo o que
está no interior da nganga como “animais”, “turmas de escravos” sujeitas, às vezes, à
revolta. Esse agrupamento ajuda o espírito (nfumbi) em seu trabalho. O sacerdote
(ngangulero) comanda o espírito, que é o capataz que dá ordens aos animais e galhos
(“turmas de escravos”) que são sua força escrava.
Já Espírito-Santo (2009, p.101-103) observa que em Cuba há basicamente dois
tipos de entidades na cosmologia espírita. O primeiro tipo é chamado de “cordão
espiritual” e apresenta-se como o grupo mais importante. O segundo se refere aos
espíritos familiares, que podem se inserir no cordão espiritual de um médium, ou
mesmo representar um cordão específico. Para a autora, o cordão espiritual principal é
formado por espíritos cujas características biográficas e físicas misturam-se às
narrativas e imagens de grupos sociais e étnicos historicamente diversos em Cuba.
Freiras, padres franciscanos, índios e indianos, escravos, cimarrones, escravos
emancipados, ciganos, intelectuais e negociantes, europeus dos séculos XVIII e XIX,
114
chineses, palestinos, árabes, artistas e dançarinos de cabaré, médicos, devotos católicos,
haitianos, mexicanos e feiticeiros africanos são alguns dos espíritos que constituem o
cordão de alguém. Um cordão espiritual é organizado hierarquicamente, pois à frente
dele há sempre uma entidade chamada de “anjo da guarda”. O espírito que, durante as
sessões de possessão, Espírito-Santo argumenta, possui mais “luz” ou “conhecimento” e
cujo encargo é coordenar e supervisionar os outros espíritos em suas tarefas respectivas.
Espírito-Santo salienta que cada uma dessas entidades conecta-se a um conjunto
de histórias mais amplo, a um grupo de identidade distinto e particular chamado de
“comissão”. Para ela, uma comissão é ontologicamente mais ampla do que
simplesmente um grupo selecionado de espíritos. Isso porque tal agrupamento contém
todos os seres que têm historicamente, através de suas vidas, tornado-se parte dele por
causa de identidade, profissão, filiação religiosa ou causa da morte. “Comissão médica”,
“comissão africana”, “comissão ngangulera” (“comissão palo”), “comissão científica”
são algumas delas.
[...] se uma médium trabalha com o espírito de um índio [...] ela saberá que o
poder e a visão deste espírito residem e dependem, no mínimo parcialmente,
da conexão dele com todos os outros espíritos índios – a comissão índia –
cujo conhecimento e serviço esse espírito deve frequentemente evocar para
ser bem sucedido em sua desejada evolução (ESPÍRITO-SANTO, 2009,
p.103).
Se a partir do detalhamento do despojo e do banho que Ogun Balendyó me
prescreveu é possível afirmar que os mistérios são espíritos que trabalham em
companhia, acredito que algumas especificidades caracterizam esse tipo de associação.
Antes dele (ou talvez justamente porque estava com ele), Gina já havia chamado a
minha atenção para isso. Ela ressaltou que ao pôr um serviço para determinado espíritos
outros que lhe são próximos trabalham junto com o mistério principal. Companheiros
de trabalho foi a expressão que ela usou para definir esse tipo de ação espiritual entre os
mistérios, como narrei no início desse capítulo.
Neste contexto em que eu assumi a posição de uma das contrapartes da troca,
apareceu mais uma vez uma descrição sobre um contrato. Essa foi uma das tônicas de
Ogun Balendyó enquanto conversávamos no altar. E não seria equivocado supor que a
sua preocupação quanto à minha confirmação em fazer a limpeza estava relacionada ao
seu compromisso: ele precisava pagar os outros mistérios que o ajudariam, seus irmãos
115
espirituais e em vida. Sua insistência, talvez, era uma repercussão do acontecimento
com aquela cliente dominicana, em que o trato firmado não foi saldado.
Mas ao explicitar uma relação de contrato, Ogun Balendyó traçou outros
delineamentos no interior dos quais os mistérios se associam. Além do pagamento como
uma forma de vínculo entre os próprios mistérios, um universo cosmológico descrito em
termos de uma concepção espacial foi enfatizado. Em teoria, cada espírito singular
realizaria uma tarefa em pelo menos três ambientes: na praia, no rio, e como eu soube
somente no momento do banho, na atmosfera. Isso, segundo Ogun Balendyó, incluiria a
transferência de responsabilidades dentro do plano de ação ritual que me foi traçado.
A primeira especificidade que aponto diz respeito ao estatuto desses espíritos.
Os mistérios parecem ser tão diversos quanto os ambientes geográficos em que podem
ser encontrados ou nos quais vivem. Belié Belcan, por exemplo, revelou-me que os
mistérios foram pessoas livre pelo mundo. Ogun Balendyó, que os mistérios estão no
que nós, seres humanos, chamamos de planeta Terra. Das duas perspectivas, esses
espíritos preservam (e se esforçam para recriá-lo, como será visto ao final do capítulo)
seu cosmopolitismo.
Mas a partir de mais alguns detalhamentos sobre a minha limpeza, pode-se
imaginar que, se pelo menos um espírito europeu (espanhol) de séculos passados e uma
prostituta estiveram presentes no rio, diversos outros trabalharam como mistérios: entre
eles, espíritos híbridos, condensações de potência humana e animal, mas também do que
chamarei de energia vital, na falta de um termo melhor que defina a existência de um
mistério que é um sol, um Barão muito poderoso, segundo Gina. Vamos, então, a alguns
dos detalhes.
Embora invisível para mim, Ogun Balendyó estava em cabeça de Gina, com ela
e entre nós, desde que deixamos a casa dela bem cedo pela manhã. Logo que eu e a
senhora porto-riquenha chegamos, Gina nos disse que chamaria São Santiago antes de
sairmos. Ela se dirigiu ao altar e em poucos minutos ouvimos o sino tocar. Seu marido
foi até o cômodo e então me pediu para entrar. Ao ver-me, Ogun Balendyó se referiu a
mim como pitiso (menina, filha pequena, Gina me explicou, porque para ele nós somos
muito jovens). Sem o lenço na cabeça e a capa, três lenços (vermelho, verde e azul)
estavam sobrepostos ao redor de seu pescoço.
Indagando-me se eu estava bem, o mistério quis saber em seguida se eu estava
com o pago (pagamento). Respondi-lhe que sim, ao que ele reagiu dizendo-me que o
deixasse numa espécie de caldeirão que havia dentro do altar. Mostrando-me um galão
116
no qual se via grande quantidade de um líquido e uma vela em cima, o mistério voltou a
esclarecer que se tratava de um despojo na praia e um banho no rio. O marido de Gina,
que estava dentro do altar conosco, então foi lembrado por Ogun Balendyó de levar
tabaco, pois nós vamos também, o mistério lhe disse.
Gina saiu de casa tendo ao redor de sua cintura alguns lenços amarrados. Nos
ombros, ela havia posto um lenço amarelo. Em seu corpo havia ela, Ogun Balendyó e
talvez outros mistérios, que seriam invocados no decorrer daquele dia, cuja cor de cada
lenço indicava.
Na praia, depois do despojo que Gina e seus mistérios realizaram em mim,
lancei alguns centavos de dólar para trás. Assim paguei pelo despojo um mistério que
vive no mar, um ser híbrido (meio-pescado, meio-humano). Gina nos pediu que
saíssemos da faixa de areia sem olhar para trás. Devíamos seguir caminhando em frente.
– Tudo de mal, todas as energias negativas vão ficar aqui, ela mencionou. Yemaya,
Ogun Balendyó me falou na consulta, também seria invocada para mim ali. E Gina
usava na praia um lenço amarelo ao redor da cabeça, que representava essa entidade.
Ainda na praia, lembro que ao me pedir para segurar a camisa da cliente porto-riquenha,
enquanto despojava a mulher, Gina estava com voz rouca, como a de Ogun Balendyó.
Enquanto nos deslocávamos até a região de rio, ela comentou no carro conosco:
– O rio e o mar são onde se há mais força, os dois lugares em que há mais força. Em
meio a pedras e à água do rio, mais mistérios foram invocados e outros subiram em
Gina. Ogun Balendyó preparou meu banho logo depois que Gina fez um resguardo (ela
ainda não estava montada) e pediu que eu o ingerisse. Aparentemente São Judas Tadeu,
um mistério que vive ali, não se apresentou.
Ogun Balendyó adoçou o mistério rebelde do rio utilizando as maças (que
parece ser um híbrido de humano com abelha), invocou outro, também um petro, mas
que é o sol, acendeu velas e pediu-me para manter uma acesa quando chegasse aonde
vivia. Uma das velas foi colocada sobre um desenho que ele fez com cascarilla em
uma ampla e mais elevada pedra, espécie de mirante.
Depois que terminou de atender-me ele deu passagem à Anaisa. Essa metresa
cuidou primeiramente da cliente porto-riquenha de Gina, depois de seu marido. Anaísó,
na verdade, pois logo que subiu em Gina bamboleando a cintura como se estivesse
mantendo relações sexuais, com as mãos nos órgãos genitais, essa metresa anunciou
que estava sob sua forma petro: – Anaisa de Piés chegou! Eu sou Anaisa Petro... Eu sou
velha... As pessoas dizem que eu não subo no rio, que eu só subo no seco, eu subo em
117
qualquer lugar onde eu quero... Eu possa nadar no rio..., a metresa nos dizia,
solicitando ao marido de Gina seu lenço amarelo, que ela mesma amarrou à cabeça,
deixando uma das pontas na lateral do ombro, como se fosse uma trança; depois
perfume, que usa nas partes íntimas do corpo de Gina, cerveja e cigarro.
O marido de Gina, depois de procurar em várias sacolas sobre as pedras, não
encontrou o maço. Anaisa percebeu isso. Vagarosamente, ela saiu da frente da cliente
porto-riquenha e organizou com muito zelo, sobre uma pedra, alguns materiais do
despojo que estavam completamente espalhados. Olhou na direção de uma bolsa
plástica e caminhou até onde a sacola estava. Ali dentro encontrou o maço de cigarros.
Seu cuidado em fazer isso era notório.
Preparada (perfumada, ela fumava e bebia sua cerveja quente), Anaisa
conversava conosco enquanto macerava as plantas para o banho da senhora porto-
riquenha, dizendo-nos que já era bem velha. E que a chamam também de Anaisa 7
Voltas: – No tempo em que eu trabalhava em negócio de madama, eu tinha muitos
homens. Indaguei-lhe, ao ouvi-la, que tempo foi esse. Vagamente, Anaisa me
respondeu: – Era um tempo. Ao encarar-me, seu olhar transmitia seriedade, e ela me
questionou: – E o que tu crês, que tu és desse tempo de agora? Teu corpo agora é esse,
mas você vem de outro tempo. Sentada sobre uma pedra próxima à água do rio,
mantendo a cabeça abaixada enquanto trabalhava, Anaisa comentou irritada: – Santa
Marta está aqui, ela vive fodendo atrás de mim. Mas Anaisa não a deixou passar (subir
em Gina).
A partir destes detalhamentos, sugiro que o plano ritual que Ogun Balendyó
traçou parece contar com espíritos cuja força se liga, em parte, a ambientes geográficos
singulares (e há a possibilidade de que tais ambientes se cristalizaram nesses seres post-
mortem ou eles se cristalizaram nesse ambiente durante a vida). Além dos espíritos
híbridos que foram invocados naquele contexto, a própria Santa Marta A Dominadora,
como apontei no primeiro capítulo, é descrita como uma combinação de mulher negra
rústica e cobra.81
É neste sentido que sugiro uma segunda especificidade nessa maneira como os
mistérios trabalham ritualmente: se de um ponto de vista mais geral, os espíritos se
associam em um universo cosmológico que é caracterizado por algumas premissas
81
Essa espécie de simbiose de uma vida em comum, que cria intimidade entre ambientes e aqueles que
foram também humanos, como os mistérios, será evocada com mais vagar no próximo capítulo. Nele
discuto a interiorização dos mistérios na casa das pessoas.
118
espaciais, como já salientei, arregimentar a força de seres diferentes parece algo
semelhante a uma estratégia militar. Com isso, adocicar o espírito petro rebelde do rio e
pagar o Ogun do Mar que não gosta dos humanos porque esses não saldam seus
compromissos com ele, poderiam ser vistos como táticas rituais que pretendem reunir e
comandar potências diversas, encontradas em diferentes lugares.
Essa imagem tem a ver com as descrições etnográficas das ações rituais de que
também participei. Mas ela se sustenta ainda nas conversas com os meus interlocutores
dominicanos, que vez ou outra, fizeram referência para mim à 21 Divisão. As pessoas
falam em divisão como uma noção que reúne certos mistérios. Divisão dos oguns,
divisão dos guedeses, divisão dos petroses, divisão dos congos, divisão dos índios, são
as mais comuns. Em geral, há um mistério que lidera cada divisão, e é comum que isso
seja indicado com a expressão ele está à frente da divisão, é o chefe da divisão ou
aquele mistério que vem/está atrás dele. Entre as chamadas metresas, algumas são
identificadas com os mistérios de cada divisão. As mais populares são Anaisa, Santa
Marta a Dominadora e Metresili/Virgem A Dolorosa.
Entre os oguns, Ogun Balendyó está à frente. Quando comentei com Gina sobre
a seriedade com que ele falou comigo naquela primeira consulta, ela reagiu: – Ele é
sério sim, ele não sorri, porque ele é um mistério muito velho, é o mistério mais velho,
muito respeitado pelos outros mistérios, que quando o veem fazem reverência. É por
isso que ele é chamado de El Patrón, porque é muito velho. Ogun Balendyó é
concebido como um guerreiro, que tem atrás de si mais seis mistérios, seus irmãos
espirituais e em vida, como ele mesmo definiu. Os espíritos guedeses são os
responsáveis pelos mortos humanos, e estariam também em um agrupamento de sete
entidades masculinas. Os espíritos petroses geralmente são considerados impetuosos e
violentos, aqueles que trabalham particularmente com sangue e vivem no monte.
Mas se as divisões funcionam como categorias cosmológicas que instituem
algumas demarcações,82
essas se desfazem parcialmente quando os mistérios entram em
ação.
Quando conheci Armando na botânica, ele observou que o nome pelo qual o
conjunto dos mistérios é chamado é 21 Divisão. Isso, ele me explicou, não tem a ver
com o número de santos, antes com a quantidade de grupos de espíritos. São
Miguel/Belié Belcan (alguns falam também em Candelo Sedifé) é considerado
82
O que, como será visto no próximo capítulo, parecem ter como aspectos diacríticos marcos diversos de
temporalidade, espacialidade, origem social/cultural e estatuto dos espíritos
119
geralmente o chefe da 21 Divisão. É comum também ouvir os dominicanos dizerem que
ele é o chefe da milícia, uma referência que combina seu caráter belicoso enquanto
espírito (ele é um mistério que luta e derruba os inimigos) e descrições cristãs sobre o
arcanjo São Miguel.
E é articulando-se a espíritos de divisões diferentes que os mistérios trabalham.
Assim, faz sentido que, para além do que tentei explicitar com as descrições acima, no
dia a dia fale-se em termos da ajuda, por exemplo, entre Candelo Sedifé e Anaisa,
Anaisa e São Miguel/Belié Belcan, ou ainda Candelo Sedifé e Belié Belcan.
Enquanto ouvia Armando falar sobre os grupos de mistérios, mencionei a
umbanda – ele havia me perguntado se havia santería no Brasil – por causa da
organização dos espíritos também semelhante a grupos. Expliquei-lhe mais ou mesmo
que havia os espíritos de preto-velhos e caboclos, por exemplo. Os primeiros seriam
pessoas que viveram durante a escravidão; os segundos seriam pessoas misturadas entre
índios e brancos. Ele, Renan e uma amiga dominicana do casal prestavam atenção ao
que eu dizia. Depois de me ouvirem, Armando me disse: – Cada escravo tinha uma
arma, assim se passa com os mistérios. Anaisa trabalha com cerveja, cigarro e
perfume. Candelo Sedifé trabalha com tabaco, bebendo café sem açúcar, ele destacou.
Ele havia me perguntando se eu já tinha conversado com outras pessoas e com
os mistérios. Contei-lhe que quando vi Candelo Sedifé em uma festa para São Miguel/
Belié Belcan, esse mistério pediu óleo (aceite) para fazer uma chama: – Encanta-lhe
trabalhar com o fogo, Armando afirmou, Belié Belcan tem como arma a espada, e
Santa Marta a cobra. Nós [Armando apontou para a amiga dominicana] somos índios,
descendentes de índios, de Enriquillo, de Guaicaipuro, um índio que é muito conhecido
na Venezuela. Essa religião começou com os escravos africanos que estavam na
Hispaniola, [citou então o nome de alguns mistérios, dos quais eu só entendi o do Barão
do Cemitério], isso é vodu, que é praticado no Haiti. Com a fronteira, as pessoas de um
lado se casavam com as outras e iam se mesclando. Começou aí o surgimento das
raças. No Haiti, a religião popular é vodu, que é como se eles fossem para igreja todos
os dias. O que os dominicanos fazem é uma adaptação da religião no Haiti.
A noção de fronteira mobilizada por Armando ou mais precisamente, a sua
compreensão sobre o que permanece e se reproduz a despeito dela – os espíritos
atendidos ritualmente pelos escravos africanos que estavam na Hispaniola, e se
propagaram no que venho a se tornar o Haiti e a República Dominicana – serve-me para
120
dar realce a meu argumento sobre o que proponho como uma cosmologia espiritual
quase militar.
À frente da divisão (e de todo conjunto da 21 Divisão) estão alguns homens de
batalha, como Gina certa vez definiu se patrón, ideia que perpassava também os
comentários de outros interlocutores sobre seus mistérios. Mas mesmo essa definição
não impede o suposto de que a ‘zona de combate’ (Palmié, 2002, p. 188) em que cada
um desses seres espirituais se localiza não é (e não foi) a mesma. Os princípios desse
universo conceitual (as divisões) e suas táticas fundadas em meios de controle
(alimentar, adocicando, para acalmar), de trabalho ritual em colaboração, e de
pagamento demonstram o seguinte: tal lógica ritual busca ultrapassar, expandir-se,
capturando o que pode ser conceituado e experimentado em alguma medida como
diferenciado.
Essa imagem é apresentada por Palmié (2002, p. 185 apud Brown 1989, p. 376),
quando recupera uma passagem de David Brown. Nela, um interlocutor diz-lhe que se
concebe como um “sacerdote-guerreiro urbano conquistando território estrangeiro por
meio da incorporação disto no ‘mundo’ encerrado em sua nganga”. A prenda seria
como o mundo, na qual existe alguma coisa de todas as coisas. Dessa maneira, algo de
qualquer lugar aonde o sacerdote vai deve ser inserido na prenda. Segundo o informante
de Brown esse procedimento se explica porque ele é um “(...) guerreiro. Quando um
exército conquista um país, eles deixam um exército de ocupação. Eu vivo em Union
City; se eu vou a Nova Iorque para ‘trabalhar’ eu terei que deixar escoltas ou guardas,
construir um perímetro, uma fortaleza”. Questionado por Brown se há uma “moralidade,
um certo ou errado” em seu trabalho como palero, o informante lhe diz: “Qualquer coisa
que você pague a prenda para fazer, ela fará, isso não é como os santeros”.83
83
Para Palmié (2002, p.185-187), essa imagem poderia representar o desenvolvimento de uma série de
transformações em que a fabricação e manipulação rituais das ngangas assumiram, historicamente, a
forma de um campo marroom (e não apenas condensaram era relações de trabalho servil da plantation
escravista. Conhecido como manigua, essa era a área geográfica conhecida como ‘terra de nenhum
homem’, criada entre o território operacional das tropas espanholas e o espaço precário tomado do antigo
regime colonial pelo exército da “ralé” (Cuba Libre) no decorrer da guerra dos Dez Anos (1868-1978).
Segundo Palmié, as tropas espanholas no curso de uma investida a um campo rebelde negro capturou uma
escultura antropomórfica de madeira, cujo torso tinha uma cavidade preenchida com “remédios” e ao lado
do qual havia um chifre bovino, em cuja abertura foi inserido um espelho. Quando os remédios eram
aplicados na ponta dos chifres junto ao corpo da imagem, o pequeno espelho reproduzia as formas e os
movimentos dos espanhóis perseguindo os insurgentes. Outro uso tático desses objetos [minkisi] em
operações militares que Palmié descreve é uma nganga encerrada em uma pele de cabra. Tal objeto
induzia o transe em uma mulher que vivia em um palenque, um assentamento negro marroom, que, sob
essa condição, indicava aos rebeldes onde as tropas espanholas estavam. Para Palmié, esses são episódios
que descrevem uma guerrilha brutal e interminável em que esses objetos rituais afro-cubanos foram
controlados com a finalidade de reconhecimento militar: dispositivos técnicos ou de guerra para fugir dos
121
Naquela primeira consulta que tive com Ogun Balendyó, esse mistério – como
outros vinham fazendo durante meu trabalho de campo – procurou conectar as minhas
próprias conexões. Fazendo parte da tarefa a que me dediquei no primeiro capítulo,
Ogun Balendyó argumentou comigo que eu tenho uma missão com eles (os mistérios).
Por isso, eu deveria trabalhar os mistérios no Brésil, ele me propôs, afrancesando com
dificuldade o nome do país.
Travando uma negociação com ele, expliquei-lhe que estava ali por causa do
doutorado. Não gostaria de trabalhar os espíritos. Depois de tanto insistir e eu recusar,
ele se conformou parcialmente: – Está bem, então tu tens que ter um altar lá, colocar as
coisas... E tu crês que não me tens?, ele desafiou-me, eu falo português lá.
Voltando ao assunto do banho e despojo, ele procurou explicar-me que não
pretendia (com seu plano de ação ritual) praticar o que as pessoas chamam (e temem) de
roubo dos mistérios: – Eu não vou te quitar [os mistérios], porque eu te disse que eu
tenho Yemaya. Os lenços [pañuelos] ficarão com você. E, então, sinalizando para aquilo
que firmaria a nossa futura e momentânea aliança, na medida em que aceitei receber o
seu cuidado ritual, ele comentou: – Se fosse outra pessoa, seria vinte [número que
representa o valor da consulta]. Mas como é para você... Seu cosmopolitismo e ímpeto
de expansão, como mistério que pede atenção e trabalho ritual, quando eu me recordo
dos fragmentos dessa conversa, agora me parecem prementes.
É como um esforço de aprofundar, no próximo capítulo, certas perspectivas
desse universo cosmológico fundado nas divisões que me aproprio não apenas de
narrativas e observações sobre e dos mistérios, mas fundamentalmente de suas imagens,
que se espaçam na casa das pessoas. Ao dar relevo a esse material, procurarei
demonstrar que através de algumas das formas de interiorização desses espíritos nos
ambientes domésticos as divisões são recriadas. Mas é também por meio de tais formas
que os mistérios reivindicam seus modos próprios de lembrança.
ataques espanhóis enviando espíritos ao território inimigo para revelar a inteligência vital. Contudo, ele se
pergunta, para além disso, que tipo de guerra esses matiabos/matiaberos (os que usam tais “objetos”
rituais) estavam envolvidos.
122
CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 2)
Imagem 1. Altar para os mistérios na casa de Rosa: da esquerda para a direita, Virgem A
Dolorosa/Metresili, São Santiago Apóstolo, Santa Bárbara, São Miguel Arcanjo/Belié Belcan, Santa
Ana/Anaisa, e Grande Poder de Deus. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto: Alline Torres.
123
Imagem 2. Altar para os mistérios na casa de Rosa. Santa Marta A Dominadora e São Elias, espíritos
guedeses, diante de xícara com mercúrio e taça com água. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto:
Alline Torres.
124
Imagem 3. Velas para os santos. Casa de Rosa. Río Piedras, San Juan, setembro 2010.
Foto: Alline Torres.
125
Imagem 4. Altar para os mistérios de Gina. Serviço de mel com tabaco para tranquilizar Jean Crimnel
(São Sebastião), espírito petro. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.
126
Imagem 5. Altar para os mistérios na casa de Joana. No recipiente branco sobre a mesa e nos latões no
chão, as lámparas, serviços oferecidos aos santos para que trabalhem. Carolina, dezembro 2010. Foto:
Alline Torres.
127
Imagem 6. Altar para os mistérios de Gina. Lámpara divisional em recipiente circular de vidro, serviço
para a 21 Divisão. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.
128
Imagem 7. Altar para os mistérios na casa de Armando. Serviço para Metresili (Virgem A Dolorosa):
refrigerante Country Club sobre o qual havia sobras de cera derretida, na bancada mais alta. San Isidro,
Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.
129
Imagem 8. Figura em papel de Nossa Senhora da Aparecida, que Gina incorporou ao seu altar, na parte
elevada, junto aos quadros de São Miguel. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.
130
CAPÍTULO 3
A CASA E OS ALTARES. INTERIORIZANDO TEMPOS,
ESPAÇOS, RECRIANDO PAISAGENS MNEMÔNICAS
O solo estava coberto por uma espessa capa de excrementos
que aprisionava utensílios líticos e espinhas de peixe
petrificadas. Ti Noel observou que várias botijas de barro
ocupavam o centro e que devido a elas reinava, naquela
úmida penumbra, um aroma acre e pesado. Sobre folhas de
soroca amontoavam-se peles de lagarto. Uma grande rocha
plana e várias pedras redondas e lisas tinham sido utilizadas,
sem dúvida, em recentes trabalhos de maceração. Sobre um
tronco, aplainado a fio de machete em toda a sua longitude,
estava um livro de contabilidade, roubado do caixa da
fazenda, em cujas páginas se alinhavam grossos traços de
carvão. Ti Noel não pôde deixar de pensar nas lojas dos
herbanários do Cabo, com seus grandes pilões, seus
receituários em estantes, seus potes de noz-vômica e de assa-
fétida, seus maços de raiz de malva-branca para curar as
gengivas. Só faltavam alguns escorpiões em álcool, as rosas
em azeite e o viveiro de sanguessugas. (Alejo Carpentier, O
reino deste mundo, p.27-28)
3.1 ALGUMAS AMBIENTAÇÕES
Depois que São Elias/O Barão do Cemitério ocupou o corpo de Armando, esse
mistério amarrou o lenço preto ao redor da cabeça de seu cavalo, lenta e
silenciosamente. Em seguida, Renan o auxiliou a vestir uma capa preta com bordas
brancas e uma grande cruz nessa mesma cor decalcada no centro. Renan deixou a
antessala e dirigiu-se ao interior do altar. Ao sair dele, trouxe uma muleta, que fora
pintada também com a cor preta.
Com muita dificuldade, São Elias se apoiou no bastão. Renan o ajudou a ficar de
pé, e, então, a caminhar. Os pés estavam tortos, virados para a parte interior das pernas,
e os dedos dobrados. Luz, ao perceber que eu prestava atenção nesses membros,
indicou-me com seu olhar que eu ficasse atenta para esses aspectos. O corpo de
Armando parecia ao mesmo tempo frágil e contraído. São Elias e Renan reservaram-se,
por alguns instantes, no interior do altar.
Como discuti no segundo capítulo, os mistérios são concebidos como espíritos
que precisam chegar à casa das pessoas. Nela eles se alimentam e trabalham. Ambas as
atividades geralmente ocorrem com os mistérios assumindo o estado de fumaça (humo),
como Gina certa vez comentou. Pois os mistérios estão no que nós, humanos,
chamamos de planeta Terra, como seu patrón me falou. Por aí: ouvi algumas vezes os
dominicanos dizerem nas botânicas.
131
A característica volátil desses espíritos é algo a ser considerado na atenção ritual
prestada pelos meus interlocutores dominicanos, parece-me, não apenas porque ‘ter um
altar’ é sinônimo de cuidado ritual obrigatório, um meio dos mistérios, que estão ao
redor, nutrirem-se (e vitalizarem as pessoas); e, igualmente, uma condição material para
o trabalho espiritual.
Se os altares indicam que a interiorização dos mistérios na casa das pessoas pode
ser vista como uma forma de agenciar a transitoriedade desses espíritos, neste capítulo
quero argumentar que, por meio deles, os mistérios conseguem reivindicar suas próprias
lembranças. Desse modo, um dos desdobramentos mais radicais dos altares é que
através deles os mistérios obtêm a capacidade de se sentir como eram quando vivos.
Nos altares, os mistérios se encontram com objetos e paisagens recriadas
domesticamente. Esses artefatos incitam lembranças nesses espíritos à medida que os
afetam enquanto mortos e podem habilitá-los ainda que efemeramente, por vezes,
inesperadamente, a recuperar contemporaneamente suas antigas experiências em vida.
É buscando viabilizar esse tipo de conjunção entre espíritos e materiais que as ‘pessoas’
manipulam artefatos que se tornam mnemônicos (SHAW, 2002, p.14): condensações de
experiências históricas, modos de agenciamentos, geografias e sensações ambientais
que são significativos do ponto de vista do que foram ou do que são os mistérios.
Esses espíritos ocupam as casas por certo período, assim como o fazem com o
corpo das pessoas. Entram e saem desses dois lócus materiais ao longo do ciclo de vida
de alguém. E é justamente no decorrer desses movimentos que é feito um esforço,
geralmente solicitado pelos próprios espíritos, para fixá-los. Isso garantiria a
estabilização e sedimentação do vínculo recíproco, e, posteriormente, a possibilidade de
sua continuidade geracional.
– O altar é um símbolo de atração... tranquiliza o cavalo, pois os mistérios estão
na casa, ele não pode, o cavalo, trabalhar em outro lugar, São Elias me explicou
durante a minha consulta, realizada com esse mistério depois daquele que foi um
demorado encontro de trabalho com a cliente porto-riquenha na casa de Armando.
Como me indicou São Elias, o altar funciona como um ambiente criado para permitir a
efetivação da tarefa que cabe aos espíritos (e às pessoas). Por meio do altar, elas
sentem-se sensibilizadas pelos espíritos, tranquilas, e por isso permanecem junto dos
mistérios na casa.
Espírito-Santo (2009, p.110), ao longo de sua tese, enfatizou que um elemento
crucial do desenvolvimento da “pessoa espírita” em Cuba é que o mundo espiritual, para
132
ser efetivo e ter uma existência produtiva, precisa ser recriado socialmente e
materialmente pelos médiuns. “Desenvolver o morto”, como ela define, solicita que o
médium externalize e potencialize, trazendo sob seu controle, uma rede de espíritos, da
qual ele se torna parte à medida que possibilita que tais entidades possam exercer
influência no mundo.
Do ponto de vista social, a habilitação dos espíritos ocorre num processo de
identificação que implica que outros percebam, testemunhem, confirmem e convençam
futuros espíritas sobre a veracidade de tais entidades durante as chamadas missas
espirituais. Do ponto de vista material, o ato de representar os espíritos através de
imagens e bonecos é um procedimento fundamental para aquela habilitação, o que torna
visível os guias espirituais do médium (ESPÍRITO-SANTO, p. 135).
Para ela, “(...) os espíritos do médium, e assim, sua ‘pessoa’, devem ser
trabalhados em interação social para serem eficazes e consequentes. A agência do
espírito se expande quando é socializada e materializada em contextos sociais
(ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.138).
Assim como São Elias, Espírito-Santo indicou a importância dos processos de
materialização dos mortos para o desenvolvimento do trabalho espiritual. A diferença
entre ambos, eu diria, é que esse mistério chamou a atenção para a necessidade das
pessoas terem próximas de si um símbolo (material) de atração. Enquanto Espírito-
Santo (2009, p.154), apesar de reconhecer que os materiais (plantas, flores, álcool,
velas, tabaco) utilizados nas missas espíritas encorajam os espíritos dos participantes a
se deixarem ver e também funcionam como ferramentas que permitem a concentração e
facilitam a incorporação espiritual, defende um argumento que me parece mais radical
quanto a esses processos de materialização.
[...] os espíritos tornam-se reais, tornam-se presentes, quando são colocados
para trabalhar através do médium; e isso pode somente ser realizado via uma
série de correspondências materiais [...]. Invocar um espírito é, em muitos
sentidos, visualizar e materialmente representar ele, recriá-lo [...]. Um
espírito simplesmente não existe, no contexto de uma missa, como também
no contexto da vida, sem as condições com as quais ele pode efetivamente se
manifestar (ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.155).
Do ponto de vista dos meus interlocutores dominicanos, por exemplo, a
“realidade” e “presença” dos mistérios não passam necessariamente pelos processos de
materialização que pretendem colocar os espíritos para trabalhar através dos seres
humanos. Tais espíritos, enquanto entidades que remetem a relações familiares
anteriores, não são criados, mas assumidos e atualizados no decorrer da vida de alguém.
133
Espectros de relações prefiguradas, os mistérios, ainda que estivessem
encerrados apenas sob essa forma, dificilmente teriam sua existência negada. Neste
sentido, como observou Battaglia (1992, p.10) é uma “pessoalidade convergente”, que
traz consigo relações históricas e sequências de comprometimentos de relações
prefiguradas, que são produzidas com os altares para os mistérios. Ao dar saliência à
observação de Espírito-Santo sobre a materialidade enquanto meio de objetificação dos
espíritos que, de outra maneira, não poderiam existir, quero chamar a atenção para um
aspecto que, na cosmologia dos mistérios, é central. Mas não exclusivo a essa
cosmologia, como demonstram as etnografias de McCarthy Brown (2001) e Ochoa
(2004).
Esse aspecto é o seguinte: à medida que os altares geram uma forma de
coabitação entre as pessoas e seus mistérios – fundada, sem dúvida, nos processos de
materialização das entidades como Espírito-Santo discutiu – a tarefa de dedicar-se a
interiorizar domesticamente os mistérios aparece como um ofício singular.
Uma tarefa quase estética na qual são recriadas algumas divisões por meio da
combinação de coordenadas espaciais e variações de gostos, inclusive aqueles
eminentemente ambientais, assuntos que descreverei a seguir.
McCarthy Brown, em sua etnografia sobre o vodu em Nova Iorque, destacou a
importância da produção dessas ambientações para os espíritos por meio dos altares. Ao
descrever um altar para a festa de aniversário do espírito Azaka, ela observou que, a
partir de materiais exíguos, a família de sua interlocutora e ela mesma começaram a
criar a impressão da densa opulência dos altares do vodu: seu “estado de ânimo”, seus
‘humores” (MCCARTHY BROWN, 2001, p. 41).
A ambiência que se torna objeto de atenção dos seres humanos quando se
dedicam ao ofício de construir altares para suas contrapartes espirituais é um assunto
discutido também por Ochoa. Com base em seu trabalho de campo entre paleros e
paleras, ele conceitua a proliferação dos mortos com os quais esses sacerdotes entram
em contato e lidam como um “plano de imanência”. Chamado de kalunga, esses
“mortos do ambiente” seriam como uma “atmosfera” ou “clima”, “zonas de alta e baixa
pressão”, cuja influência saturada seria mais ou menos discernível corporalmente
(OCHOA, 2004, p.50).
Para ele, a inspiração das regras do palo é esse plano de imanência, os mortos do
ambiente. Segundo ele, o palo ensina que o morto toma a forma e exerce suas
influências em objetos exteriores a si, o que sugere que os mortos do ambiente e seus
134
poderes de criação e decomposição podem ser encontrados em inúmeras formas
(substâncias, objetos e na sua inexplicável dissipação). O morto do ambiente é sentido
como uma força anônima, vaga e incrustável (OCHOA, 2004, p.51).
Ochoa salienta que os antepassados familiares de sua interlocutora palera (e não
aqueles mortos contidos nas ngangas) que respondiam às suas inquietações (e às dos
clientes dela) eram simultaneamente frágeis. Eles necessitavam de assistência, pois
poderiam desaparecer no vasto anonimato do kalunga. Esses mortos eram condensações
momentâneas dessa atmosfera. Emergiam como silhuetas, repentinamente e
iluminavam-se de uma massa anônima. “Os mortos são ofendidos com facilidade e são
afugentados (...). Eles são facilmente esquecidos”, a palera lhe explicou (OCHOA,
2004, p. 57-58).
Assim como Espírito-Santo, Ochoa observa que esses mortos familiares
tornavam-se materiais sob a forma de fotografias, estatuetas e copos de água que
compõem um altar espírita. Seu “lugar” é um pedaço do chão (pequenos rincões no
interior ou fora da casa). E, talvez, porque essa seria uma maneira de estabelecer uma
relação de contigüidade esses mortos, a terra, e a água, substâncias subsumidas dentro
do kalunga, a atmosfera dos mortos (OCHOA, 2004, p.63, 65)
Ochoa chama a atenção que esses rincões não seriam propriamente altares, na
medida em que se configurariam mais como “lugares de profundo respeito”, ligados a
uma fabricação individual e à intimidade de alguém com seus mortos familiares e não às
regras de iniciação da ocha, que permitem a produção de seus imponentes tronos, e do
palo, que levam à construção das não menos imponentes prendas ngangas.
Ao fazer isso, ele indica a importância do que chama de “pequenas
materialidades” (cinza, terra e trilhas de serragem de cupins na casca das árvores),
formas do morto que são ubíquas na matéria e parecem inconsequentes, tanto para os
pesquisadores quanto para os iniciantes do palo, que não lhe confeririam muito apreço.
Nesse sentido, ele dá visibilidade não apenas aos espíritos, mas igualmente a uma
“atmosfera” ou “clima” que na produção dos altares para os mistérios é aspecto
fundamental. Não porque os mistérios são essas substâncias. E sim porque estar
incrustados a elas é uma forma de recriar à sua existência, enquanto mortos ou de
quando foram vivos. Nesse sentido, tais substâncias e esses espíritos não se separam de
uma multiplicidade de ambiências.
135
A partir da minha própria movimentação durante o trabalho de campo, também
entrando e saindo da casa das pessoas, comecei a notar que os altares fazem mais do
que atraí-las (e os mistérios) para tornar possível a realização do trabalho espiritual.
Os altares são constituídos como certas paisagens de memórias espirituais
(SHAW, 2002, p.56) em que terra, monte, rios e cemitérios condensam experiências de
tempos diversas, violentas e conflitantes. Nesse sentido, essas paisagens também tornam
visíveis formas de socialidade que descrevem associações, isolamento, braveza, rebeldia
e indiferença, semelhantes àquelas sobre as quais me debrucei no final do segundo
capítulo.
Os altares de Gina e Armando são paisagens de memórias espirituais nesse
sentido. Tais composições se expandiam à medida que refaziam ambientações:
assumiam certa profundidade, variações de altura, temperatura e uma notória alteração
de qualidades estéticas e de paladares. Nesses agenciamentos materializavam-se, além
de espíritos discretos, também espaços de divisões, hierárquicos mesmo quando
contíguos.
Quando considero as diferentes perspectivas que surgem desses altares para os
mistérios – variadas paisagens de memórias –, torna-se difícil, mas também pouco
produtivo, sugerir que o morto ganha existência através dos objetos pensados como
“[...] instrumentos de sedimentação espiritual [...] meios pelos quais uma presença
espiritual na vida material e social do médium pode ser gerada, consolidada e mantida”.
(ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.160).
Primeiro porque materializar mortos como os mistérios diz respeito a um
processo de composição cuja intenção não é somente a objetificação de entidades
discretas (um ou mais espíritos). O que está em jogo nessa tarefa é igualmente a
possibilidade de trazer à tona a densidade de existências que não se alijam de
incrustações espaciais. Logo, não é apenas o morto, ou antes, os mortos que os meus
interlocutores dominicanos precisam materializar para trabalhar. As pessoas veem-se às
voltas com o imperativo (às vezes insólito) de refazer também os ambientes geográficos
sensíveis que fazem parte das paisagens de memórias dos espíritos.
Segundo, porque materializar os mistérios a partir da atenção a variações de
temperatura, profundidade, textura, odores e maximização de vitalidade (consumo)
espiritual, significa que esses aspectos fazem parte de paisagens de memórias que
recuperam nem sempre e obrigatoriamente espíritos individualizados que deveriam ser
objetificados. Tais aspectos sensíveis são agenciados pelas ‘pessoas’ como certas
136
formas diferenciadas de socialidades cristalizadas nos ambientes. Nesse sentido, esses
ambientes funcionam como geografias espectrais não menos importantes que os
próprios espíritos.
3.2 DIVISÕES INCRUSTADAS NA TERRA
3.2.1 Os guedeses e suas sensações
Intrigada com a forma de conceituar o deslocamento espiritual dos mistérios,
cujo resultado final é quase sempre a sua incorporação absoluta, como a parte final da
descrição da chegada de São Elias mostrou, indaguei à Gina o seguinte: se os mistérios
sobem, de onde eles o fazem. – Da terra, do ar, ela me respondeu.
Terra e ar podem ser vistos enquanto duas coordenadas espaciais que delimitam
mais ou menos os níveis intermediários em que os mistérios se localizam: seus mundos
dentro do nosso mundo. Com isso, a montagem dos altares, tarefa da qual os mistérios
também participam e que parece inacabável dada a infinidade de espíritos que uma
pessoa pode montar,84
aparentemente diz respeito à organização de imagens,
substâncias e artefatos segundo o critério da variação de altura. Alto e baixo, assim, são
dois marcadores espaciais que contam nesse tipo de composição.
Nos altares que frequentei, por exemplo, é estabelecida uma separação entre os
santos da terra e de cima. Na terra ou no chão, os meus interlocutores dominicanos
dizem, estão os negros. São Elias/O Barão do Cemitério é conhecido como o chefe da
divisão dos guedeses. Os guedeses são conhecidos como os espíritos responsáveis pelos
mortos, tanto anônimos quanto familiares. E o Barão do Cemitério, como o seu cognato
indica, estaria no cemitério. Geralmente as pessoas o visualizam nesse local como um
homem trigueño (“mulato” cuja pele é escura). E, quando o veem aí, o cumprimentam.
Para os meus interlocutores dominicanos, ele foi o primeiro homem enterrado
em um terreno utilizado como campo-santo.85
Neste sentido, a primeira tumba fúnebre
funciona como lugar de atenção e trabalho ritual para acionar São Elias. Ele mesmo,
durante a minha consulta, enfatizou a sua especificidade em relação aos outros
mistérios, insistindo que seu espírito é de um morto humano anônimo: – Eu me chamo o
Barão do Cemitério, espírito de um morto, tu me entendes [Ele me perguntou
84
Durante nossas conversas, Gina me dizia que há tantos mistérios quantos seres humanos no mundo. Já
Renan comentou que a cada dez anos Armando se tornaria capaz de montar mais mistérios, se torna mais
evoluído, e poderia montar mistérios do Egito. 85
Um palero cubano, interlocutor de Ochoa (2004, p.143), definiu assim esse espaço fúnebre: à noite, ele
é chamado de “campo lemba”, o “campo dos mortos”; “campo santo”, durante o dia; e “campo finda”
quando ele queria se referir ao cemitério de modo geral.
137
repetidamente, insistindo sobre tal condição], espírito de um morto, que cuida dos
mortos em acidentes trágicos e…, mortos em acidentes de carro.
Certo anonimato, que tangencia a indiferença (ou a indigência), na medida em
que qualquer morto humano pode ser invocado como o Barão do Cemitério – um corpo
enterrado em uma área que se transformou esse lugar em um campo-santo – caracteriza
seu estatuto em relação a outros mistérios. Alguns desses espíritos, por exemplo, fazem,
embora vagamente, alusão a um tempo – como o fez Anaisa ao dizer-me que trabalhou
em negócio de madama. Outros recuperam pertencimentos nacionais e fragmentos
narrativos sobre seus antigos modos de vida, como Ogun Balendyó Paradoxalmente, foi
o próprio São Elias que chamou a minha atenção para o fato de que todo mistério tem
uma cultura, uma origem e uma história. Muito embora as dele mesmo não tenham sido
evocadas.
– São Elias me pediu uma cobra, mas eu lhe disse que vou comprar uma de
mentira. Eu tenho as crianças aqui... Esse foi o pedido que o mistério fez à Gina.
Assim, ela recriaria para ele a geografia fúnebre em que esse mistério se encontra. Além
disso, Gina ressaltava, quando lhe coloca como serviço ritual uma xícara com café, não
deve lavá-la depois que esse mistério consome a bebida. Gina precisa passar a louça na
terra e tornar a servi-lo: – São Elias gosta da terra, ela justificou. Isso faz com que sua
imagem seja localizada no chão do altar.
Já Raul, um amigo de Rosa que conheci na primeira estada em Porto Rico,
ampliou as dimensões e as próprias percepções de São Elias em seu altar. Ao lado da
estátua do santo – ele mesmo fez questão de chamar a minha atenção quando o visitei –
havia um esquife, sobre a qual colocou uma panela com terra de cemitério.86
Com a voz rouca e praticamente sussurrando, São Elias explicou-me porque usa
talco na pele quando sobe. Ele gosta do frio, e possui a pele fria; por isso usa tal pó (que
foi levado pela cliente porto-riquenha à casa de Armando) no rosto, cujos frascos podem
ser encontrados ao lado de sua imagem nos altares. Com tal substância, esse mistério
mantém sua adequada temperatura enquanto um espírito de um morto humano enterrado
em um cemitério.
Na terra, ou seja, no chão dos altares, os meus interlocutores dominicanos
localizam ainda os mistérios guedeses chamados de Santa Marta A Dominadora e
86
Caderno de Imagem do Capítulo 3. Imagem 9.
138
Guedé Limbó, também considerados espíritos negros. Suas imagens sempre são
colocadas ao lado da de São Elias.
Enquanto conduzi o trabalho de campo, nunca escutei ser mencionado o nome
espiritual com que essa metresa se apresenta quando monta seus cavalos. Contudo,
Gina me disse que quando ela sobe, senta-se no chão. Cobras, também artificiais, são
associadas à imagem de Santa Marta nos altares – alguns dominicanos dizem que ela é a
virgem que dominou a serpente –, além de potes de mel, perfume, uma maracá feita de
cabaça e um lenço em tons predominantes de roxo. Foi um tecido dessa cor que Gina
envolveu ao redor da cintura da estátua de Santa Marta, provavelmente a pedido da
metresa.87
Guedé Limbó, que nos altares aparece como a imagem de São Expedito, é um
espírito cujo estado é o de fome permanente. Ele solicita dinheiro dos seres humanos, o
que é colocado em um recipiente nos altares, óculos, sempre de lentes escuras, um
chapéu e seu macuto, sacola de palha no interior do qual guarda esses diversos
pertences, além de um lenço ou echarpe preto.
É possível intuir a diversidade de espíritos que podem ser atendidos pelos meus
interlocutores dominicanos observando somente a maneira como a divisão dos
guedeses, formada por mais espíritos do que esses três que apresentei e conheci, é
organizada: um espírito de um homem morto trigueño, a princípio desconhecido, e
onipresente em qualquer local que tenha se tornado um campo-santo; uma mulher negra
que teria sido capaz de dominar uma cobra e que a esse animal foi vinculada tanto em
forma quanto em conteúdo dada as suas preferências alimentares, como discutirei
adiante; um homem negro faminto que pede, sempre muito irritado, comida e dinheiro
para serem guardados em seu macuto, sua sacola de palha.
Essas imagens e artefatos vinculados a esses três guedeses são arranjados no
chão dos altares por causa de seus gostos, como os meus interlocutores dominicanos
comumente afirmam. No entanto, eles se tornam objetos mnemônicos que produzem
não somente efeitos sobre os espíritos. Eles produzem também relações de contiguidade
entre experiências sobre certos tempos (não necessariamente cronológicas) que remetem
à pobreza e a um relativo isolamento social (o que inclui a possibilidade de indigência)
de homens e mulheres negros em socialidades caribenhas. É como uma espécie de
composição sincrônica que o altar materializa mais do que espíritos. São alguns indícios
87
Caderno de Imagem do Capítulo 3. Imagem 10.
139
e marcos de formas de socialidade que foram associados cosmologicamente como
divisões que vêm à tona com essas composições.88
3.2.2 Escavar a terra, ver do mirante: as divisões índias
Quando eu entrei na antessala do altar de Armando desculpando-me pela reação
de Carlos quanto a São Isidro, o bairro em Canóvanas, ele me disse que não havia
problema. Armando viu com naturalidade a reação do taxista e de certo modo a
legitimou: – As pessoas se assustam, mas isso aqui é um campito, ele definiu.
Entretanto, não empregou barriada, a barriada São Isidro, como Carlos repetidamente
me dizia enquanto percorríamos o local.
Como era a primeira vez que eu estava ali, Armando explicou-me que vivia
nesse campito e que ali há gente de vários lugares. Ele, dominicano, Renan, que é
porto-riquenho, e haitianos: – Para os mistérios é bom que eu viva num lugar como
esse. Porque os mistérios gostam de umidade, de terra, de sentir o cheiro da terra,
porque isso os atrai, eles sobem mais rápido. Além disso, esses espíritos gostariam de
ter próximo uma árvore de guando, o que Armando plantou na área íngreme em frente à
sua casa. Atrás dela, ele observou, havia um lago com crocodilo, peixes, caranguejos. E,
Renan destacou, cobras. Por isso, Armando novamente repetiu, é bom para os mistérios
que ele viva ali.
Ele então exemplificou: em um lugar como aquele em que morava a dona da
botânica em que Joana fazia as consultas – Armando também trabalhou ritualmente por
certo período nela – uma urbanização na área metropolitana de San Juan, construída
basicamente com cimento, torna-se difícil ele montar os mistérios: – Para os mistérios
não é bom, Armando reafirmou, quando então direcionou seu olhar para um altar que
estava à nossa frente, bem ao fundo da antessala, e explicou-me que ali o chão era,
inicialmente, coberto com cimento. No entanto, ele precisou desfazê-lo para deixar que
a terra ficasse exposta. Com essa desmontagem uma nova paisagem foi criada para os
mistérios índios.89
Já no altar de Gina foi utilizada não terra e sim farinha de milho sobre a área do
chão em que as imagens de índios se encontravam. Isso, contudo, a pedido de Ogun
Balendyo. Esse mistério avisou-lhe que os espíritos dos índios gostavam de ter aquela
substância perto deles. Uma particularidade do altar na casa de Gina concerne às
imagens dos mistérios índios. São de importantes personagens históricos no confronto e
88
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 11. 89
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 12.
140
na oposição à invasão e ocupação espanhola durante o início do século XVI nas ilhas
caribenhas, particularmente naquela que esses europeus chamaram de Hispaniola (parte
do território que se tornou o Haiti no início do século XIX e depois a República
Dominicana), e no que se tornou a Venezuela (especialmente a região centro-norte).
As imagens foram localizadas em um nível acima do chão, em uma espécie de
mirante. Nele, Gina arranjou os quadros da chefe indígena Anacaona, que teria vivido
no que hoje é Léogâne (Haiti), do cacique Guaicaipuro (que habitava a região de Los
Teques, na Venezuela) e de um espírito chamado de Negro Felipe.90
Sobre aquela
pedra, um pouco elevada em relação ao nível do chão, Gina (talvez também a pedido de
Ogun Balendyó) sincronizou tempos e espaços referentes a grupos indígenas e negros
diversos. Pequenos artefatos como uma coruja em miniatura em frente à imagem de um
índio em posição de observação, uma guimba de tabaco, uma xícara de café, outra com
uma espécie de tostado funcionam junto aos quadros como índices não apenas da
presença, mas das próprias lembranças dos mistérios. Aquilo que permaneceu, para eles
(nesse sentido, com eles), no decorrer de séculos e de ações seculares, no interior da
casa de Gina. 91
Armando, por sua vez, preparava-se para começar a atender e trabalhar com o
espírito da índia Anacaona. Quando ele me mostrou seu altar, percebi que havia uma
boneca em um canto das prateleiras em que foram arranjados os quadros e estátuas dos
santos. Fiquei curiosa. No interior do altar, esse era o único artefato sob a forma de uma
boneca.
Depois que sai dali, eu e Renan começamos a conversar na antessala. Perguntei-
lhe então sobre a boneca: – É a índia Anacaona. Armando lhe colocou esse nome
porque como parecia uma indígena, um espírito a benzerá [santiguará] e se pode usar
ela para trabalhar; coloca-lhe sua oferenda e se usa para trabalhar, Renan me
respondeu. E em seguida ele indagou Luz: – Se busca um boneco e se pode colocá-lo
como um espírito?, ele procurava confirmar o que me dissera. – Tem devoção ao
boneco, Luz argumentou. – Há um mistério que se chama assim, e Armando colocou
esse nome na boneca porque ela se parece com Anacaona, Renan reafirmou.92
Um pouco de grãos de milho e apenas moedas foram colocados por Raul diante
de uma estátua de um índio no chão, assim como uma quantidade considerável dessas
90
Os dois últimos são cultuados junto com María Lionza pelos venezuelanos, e são chamados as Três
Potências. 91
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 13. 92
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 14.
141
peças cunhadas sobre seus braços, como se ele as segurasse. Além disso, várias
fotografias de homens, mulheres e crianças índias, realizando atividades em aldeias e
rios, foram reunidas em um quadro, posto ao lado da estátua.93
3.2.3 Rebeldes da terra, do rio e do monte
Além de terra, pedras de rios e água fluvial fazem parte da espacialidade dos
mistérios índios. Durante o meu banho e despojo, o marido de Gina jogou os ramos das
flores que foram utilizados no rio. Anaisa ficou extremamente irritada com o ato dele. E
praticamente ordenou que ele retirasse aquilo das águas, pois ela não havia lhe pedido
para fazer isso, o que deixa sujo, emporca o rio: – Eu não gosto de sujeira, da porcaria,
ela esbravejou.
Enquanto o marido de Gina argumentava que não sabia, procurando um galho
para puxar os caules da água, Anaisa resmungava, repetindo que não pediu que ele
fizesse isso, pois suja, e ela não gosta disso. Aborrecida, ela o chamou. Ele ainda
procurava arranjar-se para retirar o que tinha lançado ao rio. Séria, disse-lhe que era a
última vez que ele fazia aquilo. Então, Anaisa me olhou, pois percebeu que eu a
observava: – Os índios não gostam que sujem a água, não se pode fazer isso, ela
reafirmou. Pouco depois, a metresa ensinou a mim e à senhora porto-riquenha a pegar
uma pedra do rio, levá-la para casa, pôr sobre a sua superfície algum pó (que eu não
entendi o nome, talvez, farinha de milho), mel e uma vela branca. Ao ouvi-la indaguei
se isso era para os espíritos guedeses: – Não, é para os índios, isso se chama otá.
Os guedeses são espíritos que também podem ser encontrados nos rios. Foi isso
o que Gina me explicou ainda nesse dia. Quando ela está em tal ambiente vê alguns
guedeses sobre as pedras. Por causa disso, ela associa esses mistérios ao chão, à terra,
no sentido de que os vê a partir desse modo de ancoração. Renan, o companheiro de
Armando, quando me mostrou seu próprio altar, havia preparado um trabalho para
Guedé Limbó como um meio de aplacar uma bruxaria que teria sido feito para o casal:
em um recipiente de barro, Renan inseriu 7 pedras de rio, ele destacou, cobertas por um
pó branco.
Mas estar embaixo nos altares não significa necessariamente localizar-se
próximo ao chão no mesmo sentido que isso é atribuído aos mistérios guedeses, pelo
menos aos três mais populares entre os dominicanos (O Barão do Cemitério, Santa
Marta A Dominadora e Guedé Limbó).
93
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 15.
142
Nota-se isso com relação a um espírito que Gina atende, segundo ela, o velho
Lengassu, 94
que no tempo dele era monge da Igreja, cuja imagem está no chão do altar
ao lado de dois petroses, que Gina vê também sobre as pedras dos rios. Para ela,
Lengassu é um dos três mistérios mais fortes. Sua imagem é a de São Cipriano e seu
tempo e papel social recuperam um ambiente completamente distinto daqueles dos
guedeses já descritos.
Ao lado dessa imagem, Gina atende Ti Jean (São João O Conquistador), um
espírito petro – também considerado muito forte por ela – mobilizado para trabalhar em
conquistas amorosas. Outros petroses como São Marcos de Leon, para quem Joana vez
ou outra jalava (fumava) um tabaco na botânica, e Jean Criminel, o terceiro da tríade
mencionada por Gina, também têm suas imagens no chão.
São Marcos de Leon é um petro a quem Joana dedica alguns trabalhos feitos
para os clientes. Conforme ela, ele vive no monte. O espírito petro Gran Toroliza (Jesus
da Boa Esperança) é atendido por Gina na parte elevada de seu altar, ao lado dos
chamados santos de cima. Ele também vive no monte e sua imagem é a de um homem
sentado em uma cadeira construída com estrados de madeira: – Ele é bem bravo, sobe
no monte, em uma casa com palo [madeira, varas] atrás, fora da casa. Íamos até a
escola de seus filhos, quando Gina me disse que estava na casa da irmã quando precisou
ir até o quintal (patio) para que esse espírito montasse. Quando colocaram uma cadeira
para esse mistério se sentar, o móvel se rompeu com o peso do espírito. – Ele é muito
forte, ela salientou.
Além dos guedeses, índios e petroses, pelos menos dois espíritos da divisão dos
oguns têm as imagens também no chão. São João Batista está em um ambiente fluvial,
assim como São Judas Tadeu. São Lázaro, considerado o espírito de um homem
bastante idoso, Santo Antonio de Pádua, que se apresenta como Papa Legba, também
um espírito idoso a quem se pede que abra os caminhos na invocação dos mistérios,
estão no chão no altar de Gina, mas são vinculados à terra.
3.3 HORIZONTES EFÊMEROS: OS SANTOS DE CIMA E SEUS ARTEFATOS
– Esse chapéu azul foi feito especialmente para ele, São Santiago, que me pediu.
A capa e o chapéu se parecem com os do quadro de São Santiago. São Santiago, ele
conheceu Colombo [Cristõvão Colombo], tinha conexão. Ele é muito antigo, vem por
gerações, vivia em Madri, Espanha. Esse vermelho é de Papa Candelo. Eles querem
94
Provavelmente o loa (espírito) Linglessou, a que faz algumas referências Métraux (2007).
143
sentir-se vivo, querem se ver como eram antes em cabeça humana, se vestiam assim
antes. Eles viviam assim com essa roupa. 95
O chapéu confeccionado com um brilhante tecido azul para São Santiago
Apóstolo/Ogun Balendyo e o de palha pintado de vermelho para Candelo Sedifé
pendurados na parede do altar de Armando, enquanto objetos mnemônicos, reelaboram
para esses espíritos suas antigas experiências em vida. Foi também no encontro com
outro artefato que Ogun Balendyó alcançou, por alguns instantes, a sensação de ser
novamente vivo: – Agora sim eu me sinto como a pessoa que eu era, esse mistério
reagiu ao ter em suas mãos uma espada, com uma longa lâmina e punho de metal, em
estilo medieval, dada a ele de presente por Luiz, amigo jamaicano de Gina. – Isso é
bonito, o rapaz me falou ao me contar como Ogun Balendyó se sentiu ao receber o
objeto.
Candelo Sedifé, no altar da casa de Gina, também possuía seus objetos de
lembrança. E um deles pode lhe ter servido como uma arma bélica. Trata-se, no entanto,
não de uma espada, mas de um machete, seu facão do mato. Tal ferramenta é associada
pelos dominicanos a uma árvore chamada de caoba.96
Certa vez uma cliente dominicana foi até a botânica em que Joana fazia as
consultas, procurando por um pedaço da madeira de uma árvore conhecida como caoba.
Ela dizia à Joana que se encontrava muito salgada... que tudo que tem que comprar me
dá um trabalho [una brega]. Joana, entretanto, negou-se a cortar com um facão o tronco
da caoba para vender-lhe. Argumentou com a jovem que não se atrevia a fazê-lo. A
cliente, então, ela mesma o fez. E ao separar o pedaço que compraria, fez outro pedido à
Joana: – Me dá um refresco [refrigerante] vermelho desse... pra meu velho... pra meu
velho!
Joana depois me explicou que a Candelo lhe encanta essa árvore, cujo tronco
exala um cheiro semelhante ao de menta. As pessoas acenderiam a caoba para Papa
Candelo, pois a madeira entra em combustão rapidamente, e adicionariam um pouco de
incenso. Além disso, poderiam utilizá-la nos banhos para as coisas más –
provavelmente foi isso que a jovem dominicana fez, pois se dizia salgada (sem sorte) –
e para os trabalhos, nos quais são misturados a madeira da caoba e o incenso com um
pouco de gasolina. Isso faria com que a resina da madeira fosse liberada, o que depois
95
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 16. 96
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 17.
144
de certo tempo serviria como um tipo de emplastro a ser colocado sobre os ossos do
corpo daqueles que sofrem com artrite.
Apesar de sua imagem nos altares ser a de São Carlos Borromeu, sua estátua é a
de um senhor negro. Ele fuma cachimbo, carrega consigo um cesto, além de seu facão e
segura o crânio de um animal. Renan foi quem chamou a minha atenção para essa
dissociação entre a imagem do santo e a estátua. Ele explicava-me que embora o quadro
de São Carlos Borromeu (um santo branco) do altar de Armando ser Papa Candelo, esse
mistério era na verdade preto. – Preto não, trigueño, ele se corrigiu. Renan fez então
com que eu olhasse para a estátua e observasse a diferença que me assinalou. Antes
disso, Armando já havia comentado que Candelo Sedifé fala patuá, embora ele mesmo
não saiba a língua: – O espírito fala assim porque ele traz as raízes africanas da época
em que viveu, de suas origens africanas, ele ressalvou.
Ogun Balendyó e Candelo Sedifé são considerados santos de cima pelos meus
interlocutores dominicanos. E suas imagens ficam, geralmente, sobre uma mesma mesa.
Mas quando os altares são organizados sob a forma de uma escada (para Gina essa seria
a maneira correta) ou ainda semelhante a uma pirâmide, Candelo Sedifé é localizado em
um nível abaixo de São Santiago/Ogun Balendyo. Nos altares, acima desse patrón
estaria apenas São Miguel Arcanjo, considerado geralmente o chefe da 21 Divisão. Em
ambos os casos, as metresas, espíritos femininos, estão ao lado desses três santos de
cima. Anaisa a Pié/Santa Ana, como já salientei, viveu como uma prostituta, e é
localizada ao lado de São Miguel. Metresili é tida como a esposa de São Santiago (cuja
união teria ocorrido quando vivos). Para Gina, são os únicos que foram casados mesmo,
em seu tempo. Candelina ou a Virgem da Candelária é posicionada ao lado de Candelo
Sedifé.97
Os espíritos arranjados na parte elevada dos altares em relação ao chão
cristalizam experiências que evocam o fluxo de pessoas e de mercadorias. Além disso,
ambientes mais urbanos. A exceção entre esses santos de cima seria Candelo Sedifé.98
Os gostos das metresas Anaisa e Metresili, que são geralmente tidas como,
respectivamente, mãe e filha em vida, são por produtos que incorporaram estilos de vida
aburguesados, consumidos para um tipo de embelezamento considerado adequadamente
97
Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagens 18 e 19. 98
E talvez de Candelina, que às vezes é vista como a Baronesa do Cemitério, mas pouco é dito sobre ela.
145
feminino, como o uso de perfumes, talcos99
e jóias. E Anaisa expressa ainda o cultivo
da escrita, leitura e declamação de poesia como hábito de lazer.
São Miguel Arcanjo/Belié Belcan e São Santiago Apóstolo/Ogun Balendyo
também desenvolveram a prática da escrita, e são retratados por Joana como homens
brancos de olhos claros, que se locomovem a cavalo, e portam suas conhecidas e
cultuadas espadas.
3.4 AS COORDENADAS DAS SUBSTÂNCIAS E DOS MODOS DE SERVIR
As substâncias alimentares ocupam um lugar central nas prestações rituais
oferecidas aos mistérios. A qualidade dos alimentos inseridos nos serviços, contudo,
demonstra uma etiqueta ritual quanto ao que dever ser dado aos espíritos e de que
maneira as pessoas devem fazê-lo.
Não somente os artefatos, mas igualmente os alimentos produzem uma série de
efeitos sobre os mistérios. Desse modo, ao serem arranjados nos altares é importante
que se esteja atento a algumas diferenças de paladares e estilos de servir: lidar com
esses sentidos de gosto nos ambientes domésticos é refazer com a comida e certos
artefatos a separação entre os chamados santos de cima e os debaixo.
Para os guedeses, Joana me explicou, prepara-se o que os dominicanos chamam
de moro de arroz con habichuelas negras (combinação de arroz com grãos de feijão
preto) e arenque (um tipo de peixe). Junto a essa refeição, inclui-se um pão circular feito
com farinha de mandioca (casabe) e ovo cozido. Joana ainda destacou que esses
alimentos devem ser servidos no chão do altar e em recipientes específicos: – Eles
gostam de comer na figueira [higuera]. E justificando a preferência por esse tipo de
cabaça, ela continuou: – Eles gostam do chão, da terra, não gostam do luxo. Há
mistérios que gostam do luxo, mas os guedeses não. Eles gostam de comer na figueira
(higuera), que se fume seu tabaco... São Miguel e Anaisa gostam da finura, gostam de
bolo.
Uma vez Gina chamou a minha atenção para o fato de que Santa Marta A
Dominadora gosta de ovo cru (gema e clara), além de café, leite e tabaco. Para Gina,
esse paladar se explica porque se trata do mesmo que o da cobra, animal a que essa
metresa se hibridiza. Joana também salientou que Santa Marta fuma tabaco, aliás, seria
a única das metresas que tem esse hábito. Além de solicitar que seja servida pelas
99
Por razões completamente diferentes do que se passa com São Elias/Barão do Cemitério.
146
pessoas com berinjela crua. Nessas refeições para os guedeses, geralmente se acende
uma grande vela (da cor que representa esses espíritos) no centro dos recipientes.
A finura salientada por Joana quanto às preferências alimentares de São Miguel
e Anaisa associa-se não somente a diferenças de qualidade e textura das substâncias que
lhes devem ser oferecidas quando comparadas àquelas dadas aos guedeses. A finura
desses mistérios (e o não gosto pelo luxo de outros) é uma coordenada que se
materializa na mobília do próprio altar: seus alimentos são servidos à mesa. No altar
que Renan organizou para esses santos de cima, em uma prateleira presa à parede de seu
quarto de dormir, a uma distância considerável do chão, uma taça grande com cerveja
estava em frente à imagem de Santa Ana/Anaisa, que solicita também frutas. Em frente
à de São Miguel, havia uma pequena cruz de madeira enrolada em duas fitas (vermelha
e verde) e um prato com balas, doces e pedaços de pão (que não era casabe) em cima.
Balas, doces e bolos são considerados pelas pessoas alimentos vinculados a
certo refinamento social. Alimentos que não pedem muita elaboração no preparo, mais
artesanais, e crus caracterizam a alimentação oferecida aos guedeses. E apesar de vários
mistérios masculinos gostarem de bebida alcoólica, especialmente o rum, como Gina
observou em uma ocasião (e o gim, do gosto do Barão do Cemitério), o café, por
exemplo, é preferido por alguns e se liga a uma percepção de força dos espíritos que o
pedem. Cerveja é a bebida colocada para Anaisa. Já o refrigerante vermelho Country
Club é a bebida da preferência de Metresili, que pede sempre que se acenda uma vela
sobre a garrafa, cujo acúmulo de cera derretida pelo calor se vê nos altares de Gina e
Armando. Outro refrigerante, o Malta India, é oferecido a Santa Marta, que solicita
também uma vela acesa sobre os potes de mel e de malta ao lado de sua imagem.
3.5 MANIPULANDO SOCIALIDADES
Há trabalhos para unir, para separar, para trazer um homem
que saiu de casa, para uma pessoa criar ódio e asno em
relação à outra. Nesses trabalhos se levam muitas classes de
coisas (Joana, 28/10/2010, Río Piedras, San Juan).
Um assunto que vem perpassando esse capítulo (e também parte do segundo) é a
profusão de substâncias e objetos que são introduzidos e combinados nos altares. Como
procurei chamar a atenção, a manipulação de substâncias e objetos indica uma série de
efeitos que são atribuídos a essa materialidade. Ela é capaz de gerar apreço estético e
lembranças, de vitalizar os seres humanos e suas contrapartes espirituais, de recuperar
odores e sensações térmicas, de ativar, intensificar e tranquilizar disposições.
147
A compreensão de que os alimentos fortalecem os humanos e os espíritos – e
nesse sentido criam domínios de semelhança e partilha entre vivos e mortos – é um
princípio da atenção e do trabalho ritual cujos desdobramentos são vários: os alimentos
garantem a reprodução, na medida em que vitalizam, porém são capazes de mais. É
possível criar disposições nos espíritos para que se movimentem e trabalhem. Nesse
sentido, as substâncias ativam. Mas é também possível intensificar ações de trabalho
através da manipulação de substâncias químicas como o azouge ou de acalmar com o
açúcar. Nesse sentido, as substâncias alteram.
Um aspecto diacrítico da manipulação de substâncias diz respeito aos gostos (e
como será visto no próximo capítulo, aos odores). McCarthy Brown (2001, p.41-42)
chamou a atenção para isso em suas descrições de um altar vodu para o espírito Azaka.
Alguns espíritos preferem comidas picantes, outros consomem somente aquelas doces.
Alguns ingerem bebidas alcoólicas, o que outros já não fazem. Atenta aos paladares dos
vários espíritos servidos por Mama Lola, sua interlocutora haitiana em Nova Iorque,
McCarthy Brown destaca que certos alimentos têm, nesse sentido, a capacidade de
lembrar.
Ao reunir uma mesa de comidas simples para Azaka, os haitianos em Nova
Iorque procuram evocar uma culinária de uma época mais simples [...]. Em
Nova Iorque, os caules de cana de açúcar e o pão de madioca (cassava)
usados como dispositivos mnemônicos são difíceis de encontrar e caros
(MACCARTHY BROWN, 2001, p.42 grifo da autora).
As substâncias e os objetos oferecidos aos espíritos podem ser pensados como
artefatos mnemônicos como procurei discutir. Muito embora sejam mais os mistérios e
menos os meus interlocutores dominicanos que façam referência a essa materialidade
como meio de lembrança. Os últimos não falam em termos de memória, antes, de sua
tarefa de criar ambientações, sensações e lembranças, para os mistérios. Como salientou
Graeber (1997, p.377), quando se referiu aos rituais famadihana entre os “brancos”
Merina, em Madagascar, os corpos dos mortos eram retirados periodicamente das
sepulturas para serem revestidos em novo tecido como um meio de lembrar os mortos,
mas também foram reduzidos à poeira para que seus nomes fossem esquecidos e
encerrados novamente às sepulturas. Para os “brancos” Merina, a memória dos
ancestrais era vista como uma forma de imposição sobre os vivos, sentida como uma
“forma de violência”. Nesse sentido, eles manipulavam ritualmente os corpos dos
antepassados para fazer com que fosse mais fácil esquecê-los.
148
No entanto, gostaria de sugerir que a materialidade dos altares para os mistérios
não se reduz apenas a uma espécie de dispositivo que afeta os espíritos trazendo à tona
as suas lembranças, como mencionou McCarthy Brown. Procurando especificar um
pouco mais a maneira como eu penso os artefatos mnemônicos, gostaria de sugerir que,
através desses modos materiais de lembrar, no limite, das próprias paisagens de
memória espirituais, as ‘pessoas’ engajam-se ativamente (e criativamente) com “coisas”
que cristalizaram conhecimentos sobre formas de viver, de agenciamentos e de produzir
sensibilidades.
A imagem da conversa entre Joana e a cliente dominicana que buscava um
pedaço da caoba (árvore) na botânica, em que a primeira afirmou à jovem que não se
atrevia a cortar o tronco, parece-me reveladora do que podem recriar, para as pessoas,
os fragmentos e porções do que são artefatos mnemônicos para os mistérios. Mesmo
com sua recusa em tomar para si um facão do mato – o que a jovem cliente o fez –,
Joana mobilizou esse artefato e reconstituiu certa paisagem campestre, na qual era
possível ativar certo odor suave (de menta). Força, robustez, certa dose de destemor
aliada ao risco de ferir-se (e virtualmente de agredir), mas também conhecimentos sobre
formas de cura foram associados em um agenciamento aparentemente comercial no
interior de um espaço como a botânica.
A profusão de efeitos a que fiz referência mais acima poderia ser o resultado da
manipulação (ou obliteração) daquilo que se sedimentou como socialidades, de modo
fragmentado, indireto ou oblíquo, mas que mesmo assim informa sobre as relações
coletivas. Proponho que são justamente variações de temperatura, profundidade, textura,
odores, sabores, e maximização de vitalidade (consumo) espiritual que são apropriados
no cotidiano pelos meus interlocutores dominicanos como aspectos materiais e sensíveis
que informam sobre agenciamentos coletivos.
Aquilo que é doce suaviza, acalma. Neste sentido, pode funcionar como “arma”
de controle no sentido de que tem o poder quando, devidamente combinado, para alterar
disposições. – Armando está me ajudando a adocicar meu marido, a cliente porto-
riquenha me falou. – Eu também faço trabalhos de amor, São Elias me informou depois
de recebê-la no altar. – As maças são porque no rio há mistérios rebeldes, e eu preciso
adocicá-los, Ogun Balendyó explicou.
Joana, como mencionei no segundo capítulo, quando era constrangida por
alguém que via com maus olhos o fato de ela trabalhar os mistérios, reagia dizendo que
gosta de fazer trabalhos doces. Com isso, ela não se negava a tentar alterar as
149
disposições daqueles que eram os alvos de seus clientes. Apenas fazia isso, geralmente,
engajando-se com substâncias e técnicas mais agradáveis, apropriando-se da maneira
(ou das armas femininas) como trabalha Anaisa. A metresa que estava sempre metida
na botânica junto à Joana.
Aquilo (ou aqueles) que revela um paladar mais adstringente pode significar
capacidade de resiliência, e, assim, ser sinônimo de força. Aos santos mais fortes,
Joana oferece bebida alcoólica como uísque e rum não apenas porque esses espíritos
gostam, mas porque através desse líquido ela incita-os a manifestar essa força
violentamente em cenários rituais masculinos de combate. Simultâneamente a isso,
Joana crava a espada de São Miguel na mesa do altar. Desse modo, a maximização
dessa substância pelos espíritos, para ela, seria extrema. Enquanto produto líquido
resultante da fermentação da cana de açúcar, a bebida alcoólica (uísque, rum, gim)
torna-se uma substância modificada daquilo que os interlocutores concebem como algo
capaz de controlar por meios suaves. Como bebida fermentada, o álcool pode criar
agitação e efervescência nos mistérios, ativados ritualmente para agredir os inimigos de
Joana.
A recusa que Gina e Joana expressavam em manipular sangue nos serviços e
trabalhos relacionados ao petroses tem a ver com o efeito que tinha sobre elas a maneira
como esses espíritos agem. Ameaças de pendurar potenciais inimigos na parede e furá-
los com uma faca (cuchillo), como Jean Criminel explicitou à sobrinha de Joana que se
negou a dar-lhe bebida, ou de agressão levando alguém à morte, como me falou Gina
sobre o petro que lhe diz mata, mata, são imagens momentâneas, fragmentadas, do que
para Gina e Joana em um tempo configuraram-se como ‘relações’.
– Quando o cavalo quer me dá sangue com açúcar, São Elias me disse.
Misturando o que confere vitalidade com aquilo que informa sobre docilidade,
Armando manipulava essas duas substâncias tendo o cuidado para modular
adequadamente a sua relação com esse mistério. Ele decide em que momento oferecer a
substância a São Elias. E não esse mistério – que deixou isso explícito para mim – lhe
pedia como fonte de sua satisfação principal.
O sangue, como substância ritual, é um elemento diacrítico não apenas na
atenção prestada aos mistérios. Como discuti no segundo capítulo, esses espíritos,
quando evidenciam seus aspectos contratuais e de pagamento nas relações com suas
contrapartes humanas, aproximam-se das descrições sobre as práticas religiosas das
regras del palo. No palo, a oferta dessa substância caracteriza a preferência alimentar
150
das ngangas, que, como Ochoa (2004, p.130-131) descreve, é necessária para manter a
prenda “úmida”.
Além disso, diariamente, outras substâncias deveriam “esfriar” esses objetos
compósitos nas regras del palo: luz de vela, aguardente e fumaça. “Esquentar” e
“aquecer” as ngangas são procedimentos rituais que, de acordo com Ochoa, criam
efeitos que as ambientam de forma apropriada – sem gerar a revolta pela negligência ou
inadequação de sua alimentação – no interior das casas dos sacerdotes e iniciantes do
palo. Para isso, ele destaca, outras substâncias são manipuladas como terra, por causa
dos odores e temperatura que recria.
As prendas de Isidra eram bem cuidadas e alimentadas. Cobertas com penas
brilhantes, mantidas úmidas com úmidas com aspirações de aguardente e
vinho branco seco. Ela guardava as prendas em um armário, sobre a terra que
tinha trazido de sua cidade. Um grande depósito de cera derretida nos tijolos
demonstrava que ela acendia as velas regularmente. Mantidas úmidas por
suas libações diárias, suas prendas cheiravam como coisas da terra, frias e
úmidas, como o solo que se liga às raízes de plantas, como uma cavidade
úmida nos ossos da terra. O cheiro delas era profundo e direto, denso, úmido
e real (OCHOA, 2004, p.132).
Essa compreensão sobre a interiorização de terra nos altares como uma
substância capaz de gerar uma ambientação caracterizada por um cheiro específico e
uma temperatura úmida percorreu as descrições dos altares de diferentes divisões dos
mistérios. McCarthy Brown (2004, p.36-37) também destacou a importância dessa
substância, quando considerou que os templos vodu nas cidades haitianas mantinham os
adeptos em contato tátil com um chão de terra batido, local em que eram feitas as
libações para os espíritos. Entretanto, a autora vê tal manipulação como a retenção de
um “vínculo simbólico com a terra”, uma espécie de adaptação que restabelece nos
templos urbanos famílias (religiosas) para os migrantes rurais que, deslocados,
perderam suas terras familiares e as redes de convívio e apoio dos parentes.
Mas a partir das descrições que apresentei sobre as divisões enquanto paisagens
de memórias espirituais é interessante perceber o que há de “simbólico” nessa
manutenção do chão sem revestimento nos templos vodu nas cidades haitianas. A terra,
como McCarthy Brown sugeriu, revela um vínculo expressivo dos haitianos com as
propriedades fundiárias. E por isso mesmo, seria também factível pensá-la como uma
substância ou uma parte da paisagem que poderia reverberar mundos também habitados
por espíritos, o que altera tanto o sentido de propriedade quanto do imperativo de ter de
recriar esses mundos ritualmente. O foco deixa de serem as relações mundanas entre as
151
pessoas, para que se possam esmiuçar as relações entre pessoas e espíritos transitando e
fixando-se em variados mundos.
As prendas da Casa [de palo mayombé] estavam assentadas em um pedaço de
madeira compensada. A proibição das prendas permanecerem no azulejo ou
cimento foi assim observada. As prendas extraíam força da terra. Sua
verdadeira casa é a solidez secreta do monte e se elas pudessem ter seu
caminho, elas se aninhariam enterradas um pouco na terra sob as raízes de
antigas árvores, ceibas ou jagueys, perdidas na floresta. Sendo isso
impossível em Havana, a maioria das prendas encontra-se em armários em
camas construídas de terra do interior. Qualquer coisa é melhor do que o
azulejo ou cimento, e quando não há outra opção o compensado é a melhor
opção (OCHOA, 2004, p.154).
Outro elemento diacrítico diz respeito ao gosto pelo refinado e rude atribuído a
alguns mistérios. O que, eu sugiro, poderia ser uma maneira singular que os meus
interlocutores dominicanos empregam para mapear a domesticidade e o isolamento (e o
espectro da rebelião) enquanto formas de relacionamento, quando lidam com certos
vestígios materiais das paisagens espirituais. Alguns mistérios, como Santa Marta,
transitam pelo domínio doméstico e por aquele que lhe é exterior. Ela sobe como cobra,
mas, quando se incorpora totalmente, é capaz de cozinhar nas casas. Apesar de ser vista
desgrenhada, Joana certa vez me disse referindo-se à imagem da metresa (ao seu cabelo
volumoso e crespo), Santa Marta é uma mulher fina. Não completamente estranha à
casa enquanto uma forma material que informa um padrão doméstico de convívio, ela é
capaz de se interiorizar nela, embora chegue até aí rastejando, como um animal que vem
de fora. São Elias também flerta com essas imagens de domesticidade e isolamento. Ele
se apresenta vestindo uma capa preta com uma cruz branca, que reinscreve seu estatuto
de morto humano anônimo. Chegando sob tais condições de um cemitério, esse mistério
é aterrado nos altares, solicita maximização de consumo e assim se interioriza na casa e
na família.
Já Gran Toroliza, o espírito petro que vive no monte demanda que seu cavalo
saia do interior dos ambientes domésticos. É fora deles, junto a madeiras e varas (palo)
e cercado pelo mato no quintal, que esse mistério não simplesmente se materializa, mas
também se ambienta. Sentado em uma cadeira atrás da casa, área externa transformada
em seu monte, ele destrói com seu peso a mobília doméstica. Nessa imagem que Gina
me ofereceu, a des-familiarização desse espírito petro com formas materiais domésticas
parece assumir um lugar importante. 100
100
O que não impede, como demonstrei no primeiro capítulo, que mistérios como Grand Toroliza, sejam
uma herança familiar.
152
Como discuti no fim do segundo capítulo, a partir das considerações de Palmié,
o monte ou a (manigua) era a região de bosque, às vezes montanhosa, de acesso difícil
em que os escravos fugidos (cimarrones) estabeleciam-se e organizavam os
enfrentamentos contra os poderes coloniais. No entanto, como Palmié chamou a
atenção, apesar de seu isolamento geográfico da sede metropolitana colonial, na
manigua dos fins do século XIX, em Cuba, o que ocorreu foi a transformação de um
assentamento maroon, os chamados palenques (construções erigidas com tábuas de
madeira e galhos), em um campo rebelde entricheirado contra o ataque de tropas
espanholas.
Parece-me que são fragmentos do palenque, vestígios de suas construções
isoladas no meio do mato, que Gina recupera ao delinear a imagem do bravo Gran
Toroliza e seu ambiente. E, talvez, menos do campo maroon de luta contra o domínio
colonial explorada por Palmié. O que não impede que outros espíritos também habitem
o monte.
Mas o monte não é refeito atualmente somente por causa desses espíritos
discretos, bravos e rebeldes, em sua paisagem. Enquanto uma geografia caracterizada
pelo que Palmié chamou de dispositivos técnicos ou armas empregadas pelos escravos
fugidos na manigua – o envio de espíritos ao território inimigo para revelar informações
importantes –, o monte parece ter sido reelaborado atualmente no interior das casas e
botânicas. As ténicas e armas que nele vigoram assumem, com isso, a forma de
bruxaria.
Nas casas e botânicas, os meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos
descrevem a chegada de espíritos enviados por inimigos para causar-lhes danos. Seres
invisíveis que entram sem invocação ritual sob o comando de terceiros: – Estão
atirando-lhe [tirandole], eu ouvia quando alguém queria dizer que era alvo da ação de
espíritos ou pós lançados como bruxaria. Mobilizando um idioma de guerra, Rosa e
Joana manipulavam substâncias cujos efeitos cristalizam alguns modos de fazer
dispersar. São essas técnicas que pretendem afastar espíritos invasores que serão
descritas no próximo capítulo.
3.6 SINCRONIZAÇÃO E HIERARQUIAS
Ao dizer que os altares materializam indícios e traços de formas de socialidade
que foram associados cosmologicamente sob a noção de divisão, procuro indicar que os
mistérios se diferenciam sob o critério de uma oposição mais explícita entre aqueles
santos que são da terra e aqueles santos que são de cima.
153
Essas coordenadas espaciais condensam hierarquias (alto/baixo) entrecortadas
por regimentos intermediários, os grupos de mistérios mais ou menos horizontais, que
se espaçam, sem com isso perderem especificidade. A forma da pirâmide a que Gina fez
referência, e que observei em alguns altares, é uma imagem que poderia corresponder
inicialmente a essa composição.
Observar os altares desmonta, em certo sentido, a pirâmide. No entanto, os
enquadramentos espaço-temporais que descrevi revelam uma multiplicidade de
perspectivas sobre o que significa tomar a terra como uma forma de socialidade e
pertencimento. E o mesmo se passa na superfície plana das mesas afastadas do chão.
Sobre as mesas habitam espíritos guerreiros, cujas armas, indumentárias pessoais
e imagens informam que as guerras que eles lutaram em vida provavelmente não foram
as mesmas. Seus tempos e espaços eram outros, assim como aqueles que guedeses,
petroses e índios solicitam que sejam recriados no chão. Cosmologicamente tudo isso
foi sincronizado, e cada um desses tempos e espaços se torna uma perspectiva a ser
considerada para as ações rituais das divisões. É neste sentido que falo de sincronização
ou relações de contigüidades criadas pelos altares.
Ainda assim, é interessante ressaltar que são espíritos masculinos guerreiros que
se apresentam à frente de uma divisão. E se ao lado deles estão as metresas, atrás
legiões de soldados ou auxiliares, com quem esses chefes trabalham, parecem estar
mais ou menos à sua disposição. No chão, os campos de lutas parecem ter sido
diferentes. Os espíritos geralmente são concebidos como índios e negros, dos rios e do
monte. O mesmo se dá com os combates planejados sobre a mesa. McCarthy Brown
(2001, p.37, 45, 61, 68) observa que diferente de Azaka, espírito servido por Mama
Lola, sua interlocutora haitiana em Nova Iorque, Ogou, “identificado”, conforme a
autora, com o santo católico São Santiago (Saint James), é um espírito que torna a
antiga história urbana do vodu mais aparente.
No altar preparado para a festa de aniversário de Azaka (um homem da
montanha), sua comida foi arranjada abaixo da mesa mais ampla, cujos alimentos
seriam oferecidos a outros espíritos. Um chapéu de palha, seu macuto (makout), uma
garrafa de rum com um laço de ervas ao redor, e “uma camisa azul de brim feita
especialmente para ele”, sua interlocutora destacou, foram separados para o momento
da chegada do espírito. Para McCarthy Brown, Azaka aponta para a importância das
“raízes da terra” enquanto Ogou para uma dimensão mais urbana do vodu. Por isso seria
um erro ver o vodu como uma religião agrária que se tornou precária quando se
154
deslocou para as cidades. Quando Mama Lola planejou interromper as festas em Nova
Iorque para seus espíritos, e realizá-las a cada três anos no Haiti – o que significaria que
Ogou não teria a sua festa de aniversário – os espíritos lhe disseram: “Não! Faça uma
mesa”.
155
CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 3)
Imagem 9. Altar para os mistérios na casa de Raul. Divisão dos guedeses. À direita, São Elias com seu
serviço ritual e alguns artefatos fúnebres – casabe, arenque, ovo cozido e arroz com feijão; esquife e
recipiente com terra de cemitério; ao centro, Santa Marta A Dominadora. Hato Rey, San Juan, abril de
2010. Foto: Alline Torres.
156
Imagem 10. Altar para os mistérios na casa de Raul. Serviços para os guedeses São Expedito/Guedé
Limbó (à esquerda) e Santa Marta A Dominadora (à direita): casabe, berinjela, ovos cozidos e arroz com
feijão, alguns dentro de cabaça; mel e Malta India, além das grandes velas e frascos de talco infantil. Ao
fundo, à esquerda, um quadro de São Marcos de Leon, um espírito petro. Hato Rey, San Juan, abril de
2010. Foto: Alline Torres.
157
Imagem 11. Altar para os mistérios na casa de Armando. Divisão dos guedeses: São Expedito, São Elias e
Santa Marta A Dominadora, santos da terra, e alguns trabalhos e serviços rituais. San Isidro, Canóvanas,
dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.
158
Imagem 12. Altar para os mistérios índios na casa de Armando, que escavou a terra sob o chão e as
paredes para ambientar esses espíritos. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.
159
Imagem 13. Altar para os mistérios índios contíguo aos espíritos guedeses (à direita, serviço ritual para
São Elias: casabe, café e água; e moedas para Guedé Limbó/São Expedito) e a outros mistérios do rio. No
chão, farinha de milho, substância sensível para os espíritos índios. À direta, Eleguá. Ao centro, caldeirão
ritual envolvido pelos pañuelos (lenços). Casa de Gina, Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto:
Alline Torres.
160
Imagem 14. Boneca que seria transformada ritualmente no mistério Anacaona (índia). Atrás desse
artefato, a imagem de um mistério índio, ambos próximos ao chão. Casa de Armando. San Isidro,
Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.
161
Imagem 15. Mistério índio, cercado por alguns artefatos, e contíguo a São João Batista, um ogun, e a
miniaturas de galos (talvez, sinalizando a presença de Ogun Ferraile); ao fundo, Yemaya. Casa de Raul.
Hato Rey, San Juan, abril de 2010. Foto: Alline Torres.
162
Imagem 16. Chapéu em tecido azul confeccionado para São Santiago/Ogun Balendyó, e vermelho, em
palha, para Papa Candelo (Candelo Sedifé). À esquerda, imagem de uma deidade hindu. Altar para os
mistérios na casa de Armando. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.
163
Imagem 17. Artefatos de Candelo Sedifé: machete e um tipo de sacola (macuto). À frente do machete, o
quadro de São Carlos Borromeu, que representa Candelo nos altares. Casa de Gina. Río Piedras, San
Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.
164
Imagem 18. Santas de cima (metresas): ao centro, da esquerda para a direita, Virgem A
Dolorosa/Metresili, Santa Ana/Anaisa, e Virgem de Alta Graça; à direita, a imagem de Gran
Toroliza/Jesus da Boa Esperança, espírito petro do monte, sentado em uma cadeira de paus de madeira
tendo à sua frente um copo de vidro e abaixo uma nota de dólar. Altar para os mistérios na casa de Gina.
Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.
165
Imagem 19. Altar para os mistérios com os santos de cima na casa de Raul. Hato Rey, San Juan, abril de
2010. Foto: Alline Torres.
166
CAPÍTULO 4
APROPRIAÇÕES E SUBVERSÕES ESPIRITUAIS
Na segunda manhã, quando Clarke e Wade iam de carro para o
hospital de Nkisa, encontraram um despacho ao lado da
estrada. Era comum que vissem esses sacrifícios na estrada e
não costumavam parar. Mas este chamou-lhes a atenção por
sua extraordinária fartura. Wade parou o carro, e os dois
desceram para ver de perto. Em vez do costumeiro frango
branco, havia dois grandes galos. Os outros objetos eram
habituais: novas e amarelentas frondes de palmeira, cortadas do
topo de árvore, uma tigela de barro com dois pedaços de noz-
de-cola e um pedaço de giz branco. Contudo, os dois homens
só viram esses objetos depois. No que eles puseram o olho
imediatamente, ao chegar perto do despacho, foi no florim
inglês. – Ora essa! – exclamou Wade. – Realmente, isso é
muito estranho. Um sacrifício dos mais extravagantes. Eu me
pergunto qual será o significado de tudo isto. – Talvez seja pela
recuperação do representante do nosso rei – disse Wade em
tom alegre. Depois, algo pareceu lhe ocorrer, e disse
seriamente: – Eu não gosto do aspecto disso. Não me importa
que usem nos despachos seus cauris e manilhas, mas a cabeça
de Jorge V? (Chinua Achebe, A flecha de Deus, p.231-232).
Narrativas visuais
As imagens de santos como aquelas comercializadas nas botânicas em Río
Piedras mediaram grande parte das minhas conversas e interações com os meus
interlocutores dominicanos. Mas não foram somente essas pessoas que fizeram
referência aos quadros e figuras em resina, relacionando essas formas materiais aos
espíritos. Quando montaram ou subiram em seus cavalos, os mistérios também tomaram
essas imagens como objeto de suas narrativas. Nessas apropriações espirituais, que
incluem outros artefatos e linguagem ritual do cristianismo, os mistérios produziram
uma espécie de metanarrativa. Por meio das imagens de santos eles conceberam a si
mesmos.
Além disso, alguns desses espíritos assumem atributos estéticos das imagens
quando estão montados, e ainda oferecem a seus interlocutores um conhecimento que é
também visual, baseado nos elementos iconográficos que compõem as próprias
imagens. Neste sentido, visualizar certos quadros de santos pode ser também um modo
de aprender não apenas sobre a singularidade de um mistério, mas também conhecer
uma dimensão hierárquica que orienta a intervenção desses espíritos junto aos seres
humanos, como aquela que discuti no terceiro capítulo.
Os sentidos múltiplos dessas imagens nos altares parecem implicar que os
próprios mistérios – alguns deles, pelo menos – se reconhecem e se definem por meio
167
delas, mas também que podem refletir sobre as formas materiais que lhes permitem
coabitar a casa e a vida das pessoas. Sugiro que talvez essas compreensões não digam
respeito obrigatoriamente à ideia de que alguma outra coisa é imitada ou disfarçada
quando as imagens de santos e artefatos ligados ao cristianismo são por eles
apropriados.
– Você então quer ver os santos? Foi nestes termos que Raul, um cavalo dos
mistérios, indagou-me quando chegamos à sua casa, logo depois de mostrar-me que
estávamos à frente da porta de seu quarto espiritual.101
Contudo, na casa de Raul as
conversas se reduziram ao mínimo. O que lá ocorreu foram basicamente algumas trocas
de palavras. Os motivos para isso não me são completamente explícitos. Mas suponho
que, afora o fato de que a cautela caracteriza todos aqueles que trabalham os mistérios,
o caso de Raul pedia precaução redobrada.
Ele e um amigo também dominicano foram buscar-me na botânica de Rosa, na
Plaza del Mercado, pois quando combinamos a visita Raul não me disse seu endereço.
No carro, ele se lembrou que deveria comprar velas grandes. E alertou ao amigo que
não poderia voltar para casa sem elas. Fomos então a um depósito próximo à Plaza.
Nele Raul comprou duas caixas de velas, brancas e vermelhas. Ao efetuar o pagamento
em dinheiro, a operadora disse-lhe que a nota de cem dólares com a qual ele fez o
pagamento era falsa. Raul então retirou outra. Depois da compra, já no carro
novamente, seu amigo disse-lhe que ele deveria substituir a nota falsa por uma legítima.
Raul argumentou que não tinha como fazê-lo, pois estava ilegal em Porto Rico.
Ao chegarmos, ele gentilmente disse que eu poderia sentir-me em casa e chamou
um senhor mais velho que já se encontrava na residência. Apresentou-me como
pesquisadora brasileira e pediu ao senhor autorização para a minha permanência ali, que
reagiu dizendo que não havia problema. A escassez de conversas, no entanto, foi de
certo modo compensada pelo aspecto visual da casa de Raul. Os santos não estavam
apenas em seu altar, mas em várias locais da sala. Como ele mesmo havia proposto, eu
estava ali para ver os santos, e foi isso o que eu fiz. Ou melhor, era isso que ele esperava
que eu fizesse ao me levar até onde vivia e permitir que fizesse as fotografias do altar.
Visualizar e não falar me pareceu ser a disposição de Raul diante de mim.
Já o meu encontro com Antonio e Maria em Río Piedras ocorreu meses depois
de eu conhecê-lo também na botânica de Rosa, na Plaza del Mercado, durante a minha
101
Como descrevi na Introdução, conheci Raul na botânica de Rosa. Na ocasião, ele foi à loja para fazer
compras rituais.
168
primeira estada em Porto Rico. Neste dia nós havíamos conversado um pouco, depois
da apresentação de Rosa. E Antônio, ao saber sobre o meu tema de pesquisa, havia feito
menção a São Miguel Arcanjo.
Mas até que conseguisse ir à casa do casal, fiz várias tentativas de contato pelo
telefone. Em uma tarde falei com Maria, que permitiu a minha ida até eles. O que eu
fiquei sabendo ao chegar lá, no entanto, era que aquele dia estava sendo extremamente
delicado e difícil para o casal: o pai de Antonio havia falecido naquela madrugada.
Maria então confessou que ao falar comigo pelo telefone, quase desistiu que eu fosse à
sua casa. Antônio, no entanto, disse-lhe para deixar-me ir.
Desde a minha chegada naquele fim de tarde ela foi muito simpática. Explicou-
me que o pai de Antônio também tinha esses dons espirituais, tinha seus arcanjos, São
Miguel... Por isso eles precisariam fazer certas coisas por causa de seu falecimento.
Entretanto, Antonio já sabia o que ocorreria com seu pai, Maria me explicava. Ele
estava em Santo Domingo e lá foi avisado pelos seres (mistérios) que precisaria
regressar a Porto Rico por causa do que aconteceria com seu pai.
Enquanto ela narrava-me isso, Antonio, que estava no interior da casa, foi à
varanda onde nós duas estávamos e aproximou-se: – Ah, é você!, ele exclamou ao me
ver, e explicou à Maria que foi ele mesmo quem havia me dado o cartão da firma de
extintores com seus números de telefone à época em que me conheceu na botânica de
Rosa.
Antônio se sentou e Maria descreveu o estado físico do sogro. Quem o visse no
dia anterior nunca pensaria que ele morreria, pois parecia estar bem, aos olhos dos
familiares mesmo, ela salientou. Maria, contudo, insistia em afirmar que o marido já
sabia o que aconteceria. Ele preparou aperitivos para comermos, e nos dirigimos até
uma varanda mais ampla, onde continuamos a conversar. Antônio então me contou
porque estava na República Dominicana nos dias que antecederam o falecimento de seu
pai. Ele viajou para ir a um lugar conhecido como El Monte de Oración. Nessa colina,
quitou um espírito mau de sua mãe, ele falou. Tal espírito era um petro, como descrevi
no segundo capítulo. Antes de dizer-me isso, ele comentou que na festa de São Miguel
do ano anterior quitou um morto da irmã de Rosa, levada por ela à celebração.
Maria então explicou ao marido que o que me levava até eles era o interesse nas
pessoas que têm os mistérios, que trabalham os mistérios, e na religião dos
dominicanos. Eu havia mencionado a última expressão, mas, como está implícito por
toda a tese, as ‘pessoas’ não definem suas ‘relações’ com esses espíritos como
169
‘religião’. Um equívoco meu que, no entanto, gerou alguns comentários de Maria sobre
a maneira como é prestada a atenção ritual aos mistérios.
Ela e Antonio criticaram aqueles que colocam comida e bebida alcoólica em
frente às imagens: – No meu altar você sempre vai ver copos com água clara, nem
bebidas, nem cigarros, porque Deus não fuma. E os anjos também não, Maria
enfatizou. E tentando marcar uma diferença em relação ao modo como outros
dominicanos lidavam com as imagens do altar, reiterou: – Eu não uso nada disso em
meu altar porque Deus não necessita disso. Às vezes eles [os mistérios] me pedem uma
comida, mas para que eu compartilhe com alguém. Me pedem coisas, para que faça
coisas… Antônio, ao ouvir as considerações da esposa, comentou que isso (pôr comida
e bebida alcoólica nos altares) não é verdadeiramente espiritual, as pessoas fazem as
festas para beber, para fumar, isso de amarrar um lenço, pegar um tabaco não são
coisas verdadeiramente espirituais. Eu não gosto disso.
No decorrer dessa conversa em que Maria, Antonio e o que eles mencionavam
sobre os seres eram o foco da minha atenção, mais uma vez eu fui enredada nas
experiências e concepções que vinha procurando tornar o material desta etnografia. Ela
estava sentada em frente a mim e de repente começou a falar sobre minha mãe,
posteriormente sobre meu pai, que havia falecido quando eu estava em Porto Rico
durante a primeira viagem. Inicialmente eu reagi ao que ela me dizia, pois não me dei
conta do que se passava, mas Antônio me pediu para que não falasse. Eu deveria apenas
escutá-la.
Por causa da advertência dele, percebi que o tom de voz de Maria se modificou.
Ela agora falava de modo alterado, às vezes mais alto, exasperadamente, quase aos
gritos, e suas falas sofriam pausas. O movimento de seu corpo parecia-me também
diferente. Maria estava agitada, gesticulava a cada frase que pronunciava. Mas sua
transformação não era absoluta. Minutos antes, quando Maria comentava sobre os
altares, ela havia dito que em certas ocasiões encontra alguém na rua, que a
cumprimentava, e, em seguida, indagava-lhe sobre algo que teria falado. Maria me
explicava que isso se dava porque, nessas situações, tinha um mistério em cabeça.
Entretanto, não lembrava o que havia pronunciado a outros sob esta condição: – Eu não
sei de nada, ela insistia.
Eu escutava os comentários e descrições sobre minha vida familiar vindos de
Maria, cujo comportamento se diferenciava da ‘pessoa’ com quem eu mantinha um
diálogo havia pouco tempo. Ali, naquele momento, eu deparava-me com um monólogo.
170
Pouco antes dessas mudanças, Antonio comentou em voz baixa: – Eles chegarão. Ao
ouvi-lo não entendi seu comentário. Questionei sobre o que ele havia dito. O casal se
olhou e ficou em silêncio. Quando novamente ele fez tal afirmação, insisti na pergunta,
e Antônio respondeu que os mistérios chegariam, e eu sentiria, pois teria arrepios.
No decorrer de suas falas, Maria novamente se modificou. Depois de dizer-me
coisas sobre meu pai, voltou a referir-se à minha mãe, e parecia a ‘pessoa’ de antes.
Logo depois ela se levantou e foi para o interior da casa. Eu e Antônio ficamos na
varanda. Ele, como no dia em que nos conhecemos, começou a falar sobre São Miguel:
– Lucifer era um arcanjo de Deus que tinha o domínio, que comandava outros
arcanjos, mas que não quis reconhecer a Jesus Cristo como Deus queria. Então se
rebelou contra Deus, e se reuniu com outros arcanjos maus para dominar. São Miguel
Arcanjo foi quem defendeu Deus e venceu Lucifer. E buscando tornar explícito o que ele
entendia por Lucifer, destacou, Satanás.
Nesse momento Maria o chamou. Antonio entrou, deixando-me na varanda. Ele
se demorou por alguns minutos e quando retornou pediu-me para acompanhá-lo.
4.1.1 Uma guedé e suas imagens
Eu me dirigi até os fundos da casa. Nesse local havia um cômodo amplo.
Chegando ali, mantive-me do lado de fora. Antonio entrou. Escutava então uma voz
feminina, mas que soava como a de alguém com idade mais avançada, como uma
senhora, pronunciando algumas vezes Ela, ela... (referindo-se a mim), de maneira
agitada. Quando entrei nesse cômodo, vi ao fundo o altar, organizado sob a forma de
uma pirâmide com as imagens dos santos (como Gina salientou), e Maria sentada.
Porém agora completamente transformada. O quarto estava escuro, as luzes das velas
que estavam no altar iluminavam o ambiente. Antônio estava de pé, ao lado da cadeira
em que se sentava Maria, e ficou assim durante todo o tempo em que fiquei lá dentro,
tendo sobre um dos ombros um pañuelo verde.
Ela vestia uma capa roxa e tinha um pañuelo preto amarrado à cabeça, o que a
caracterizava como um mistério pertencente à divisão dos guedeses. Apesar de não ter
se apresentado, o que geralmente todo mistério faz, suponho que era Santa Marta A
Dominadora. Minha impressão era de que além de mais velha, Maria estava com a pela
mais escura. Antes de sentar-me, eu a cumprimentei aproximando minhas mãos, que ela
cruzou. Durante todo o tempo ela se referia a mim como mujer e madama – essa palavra
era pronunciada como se existisse uma consoante a mais, como mandama –, e minha
vida também foi assunto das considerações desse espírito feminino.
171
Em frente ao altar, mas não muito próxima dele, ela disse esbravejando: – Os
seres humanos não crêem mais em Deus, não crêem mais no próprio ser humano... E ao
olhar para as imagens dos santos no altar, continuou: Eles [os seres humanos] têm os
quadros, usam os quadros, mas... Sua insatisfação era patente: os quadros dos santos
estavam sendo usados inadequadamente. Voltando-se a Antônio e girando o corpo em
direção ao altar, disse-lhe que eu falaria com cada um deles, arcanjos como ela. Então,
voltando-se para mim, pontuou: – Porque tu estás buscando a verdade. E novamente
reiterou para Antônio, por isso, eu voltaria ali mais vezes.
Interrompendo o que me dizia, ela destacou: – Ele passa por um momento difícil.
Ambos precisavam conversar. Despedindo-se de mim com o mesmo cumprimento, fez
o sinal da cruz sobre as minhas mãos, na cabeça e na altura do peito. Quando me
levantei da cadeira, ela pediu água a Antônio e ao bebê-la se engasgou um pouco.
Já fora do cômodo, ouvi um barulho muito forte, como se ela tivesse caído no
chão. Depois de um tempo, Maria se dirigiu à varanda acompanhada de Antônio.
Aparentava extremo cansaço e estava aérea. Andando devagar, sentou-se e disse que
queria deitar-se porque sentia sono. Passando sua mão pela testa, olhou para Antônio e
indagou-lhe sobre onde tínhamos parado nossa conversa. Maria retomou o assunto de
minha mãe, e o marido salientou para ela: – Eles sentem também a morte de uma
pessoa, referindo-se ao que a guedé lhe disse sobre o falecimento de seu pai, após eu ter
deixado o altar. Maria então observou: – Foram eles que ajudaram com teu papai...,
referindo-se à morte do sogro. Ela quis saber de Antônio se eu havia feito uma consulta,
e ele explicou que ela quis falar comigo.
Foi depois do meu encontro com a guedé que Antônio me mostrou o altar em
que há pouco nos encontrávamos. As luzes, agora, estavam acesas. Dizendo-me o nome
de cada quadro, ele argumentou: – Para nós [pessoas que têm os mistérios] as imagens
são vivas, eles [os mistérios] estão aqui. E ao pegar um dos quadros do altar, enfatizou:
– Para outra pessoa isso é um pedaço de madeira, mas para nós que cremos isso é vivo.
Tudo bem, isso é um pedaço de madeira, mas para nós é vivo, ele repetia. Olhando para
o quadro de São Elias – o profeta Elias –, Antônio comentou: – Esse venho antes que
Jesus, foi o único que Deus tirou da Terra com uma carruagem. As pessoas fazem mal,
não entendem São Elias.
A partir do encontro com Maria e Antonio, comecei a perceber que seria difícil
pensar a existência das imagens de santos nos altares isolada de uma agência dos
próprios mistérios, ou seja, como artefatos mobilizados unicamente pelas pessoas.
172
Engajando-se com os quadros do altar, que, da perspectiva de Antonio, por
exemplo, são vivos, a guedé fez uma crítica à maneira como os seres humanos usam
esses artefatos. Com seu engajamento, ela mesma distanciou-se do que é tido pelas
pessoas como uma forma material de sua presença espiritual. O que não significa que
ela desconsidere que os quadros também sejam os mistérios: olhando para os quadros,
ela dizia a Antônio que eu retornaria à casa e falaria com cada um deles.
Diferenciando-se do que chamou de Deus, dos seres humanos e mobilizando
criticamente os próprios artefatos que possibilitam a sua materialização, o que a guedé
fez foi definir-se (e também os outros mistérios) como arcanjos. Assim, ela revelou seu
próprio ponto de vista: designou alteridades diversas e conferiu um sentindo singular
aos mistérios, ligando-os a uma hierarquia espiritual e a disposições benevolentes, ao
chamá-los de arcanjos. No encontro que descrevi, ela destacou não apenas alteridades
humanas e espirituais, mas também a intenção de qualificar as ações de ambos.
4.1.2 Um quadro, dois oguns
Em outro encontro, agora na casa de Gina, eu fazia fotografias de seu altar, o
que, segundo ela, não foi autorizado pelos mistérios inicialmente, que queriam saber
dela se eu estava escrevendo um livro. Nessa ocasião, ela me dizia que porque Ogun
[Balendyó] foi um homem de guerra, de batalha, ele lhe pediu dois cavalos (artefatos) e
ferraduras para serem colocados perto de seu quadro no altar. Diferentemente dos outros
altares que frequentei, no de Gina o quadro de São Santiago estava no chão. Ao
perceber essa diferença, perguntei-lhe o motivo dessa localização. Ela me respondeu
que Ogun Balendyó lhe pediu para colocá-lo ali. Os cavalos, Gina ainda salientou,
deveriam ser postos um em cada lado do quadro.
Especialmente no caso desse mistério é difícil dissociar a imagem do santo da do
espírito, como, por exemplo, Renan fez com Candelo Sedifé e São Carlos Borromeu.
Como descrevi no terceiro capítulo, Armando visualiza o quadro de São Santiago e
reconhece nessa imagem características estéticas que fazem parte da maneira como ele
vê o mistério. O chapéu confeccionado especialmente para Ogun Balendyó, por
exemplo, parecia o do quadro, Armando chamou a minha atenção. Geralmente, as
pessoas tomam a imagem como ele. E essa apropriação não se restringe à Gina e a
Armando.
Conversando com esse mistério, percebi que a presença de outros desses
espíritos no altar de Gina era sinalizada com o toque de um sino utilizado para chamá-
los. Por três vezes Ogun Balendyó o tocou e o marido de Gina entrou no altar
173
perguntando se o mistério se dirigia a ele. Nas três vezes Ogun Balendyó estava se
comunicando com os mistérios que ali se apresentavam. Depois que o marido de Gina
deixou o altar pela última vez, Ogun Balendyó, que nesse momento chamou a si mesmo
de Santiago Balendyó, contou-me que Candelo estava ali, mas ele não o deixaria passar
(ou seja, montar Gina). Ele me pediu então que pegasse um pañuelo vermelho que
estava amarrado ao redor de um caldeiro e o enrolou ao corpo (na cintura) de Gina.
Ele seguiu dizendo-me que Ogun Ferraile, outro mistério, estava sempre atrás
dele. Ogun Balendyó segurava uma caneta, e com ela apontou para seu quadro no altar,
mostrando-me a figura de um homem vestido com uma armadura, montado em um
cavalo, um dos elementos que compõe a paisagem iconográfica da imagem: – Ele é esse
aqui. Ele está sempre atrás de mim por isso eu pego um lenço (pañuelo) vermelho. E
ainda salientou ele – Ogun Ferraile – é São Jorge, apontando, novamente, mas agora
para outro quadro do altar, depois de procurar esse entre tantos outros.102
Considerando essas descrições etnográficas, os quadros e imagens em resina do
santos parecem compor de modo inusitado as maneiras singulares como os mistérios se
concebem. Nessas interações entre esses espíritos e as imagens, vários sentidos
parecem ser produzidos para essas formas materiais. Pelo menos no que diz respeito às
situações que apresentei, tais formas não se resumem simplesmente a representar
espíritos que seriam algo diferente daquilo que está retratado nas imagens. Isso
implicaria a ideia de que essas formas materiais apenas disfarçam por meio das figuras e
cenários alguma outra entidade ou realidade que não estaria contemplada ali. Se isso é
verdade para alguns mistérios, ainda assim, como demonstrou a guedé, é possível tomá-
las de vários pontos de vista. E retratar a si, por exemplo, como arcanjo.
A partir das descrições da festa para São Miguel, em que o espírito Belié Belcan
é celebrado, outras formas de apropriação pelos mistérios de artefatos relacionados ao
cristianismo têm destaque.
4.2 A FESTA DE SÃO MIGUEL
A festa de São Miguel Arcanjo é a mais esperada pelos dominicanos que
atendem os mistérios e por aqueles que se relacionam com o santo por meio das
consultas e devoção. Durante minha primeira estada em Porto Rico, era notório que as
mercadorias de São Miguel estavam entre as mais procuradas na botânica de Rosa. Mas
102
Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagem 20.
174
o que vinha se apresentando, no decorrer do trabalho de campo, como a importância
desse santo ia além de qualquer forma de mensuração numérica.
A maneira como Rosa indicava – e ensinava – para alguns clientes como uma
invocação a São Miguel deveria ser feita ao se acender uma vela antes de um despojo
para sacar as coisas más ou de um pedido ao santo, implicava a mobilização de seu
corpo. Tratava-se de uma impostação da voz que transmitia emoção e ao mesmo tempo
firmeza com as palavras.Ao mesmo tempo, os olhos dela brilhavam.
Nos primeiros dias em que comecei a trabalhar com ela na botânica conheci um
amigo de Rosa, Horácio, dominicano de Samaná. Ele trabalhava como cozinheiro em
um restaurante em Puerto Nuevo e vivia em Río Piedras. Nos seus dias de folga, ia até à
Plaza e ajudava Rosa com as vendas. Em uma de nossas conversas na Plaza, Horácio
falou-me que, para ele, São Miguel é um santo vivo e não morto.
O meu retorno a Porto Rico em meados de setembro de 2010 ocorreu por causa
dessa festa, que é realizada no dia 29 de setembro. Nessa ocasião esse santo vivo –
como destacou Horácio cerca de quatro meses antes – monta geralmente o anfitrião da
festa, seu cavalo. Logo que cheguei, Rosa avisou-me que ela e sua família foram
convidados por Antônio e Maria para a celebração.
Quase às vésperas do dia 29, eu soube que Diogo tocaria a conga em uma festa
dedicada a São Miguel dentro de um bar em Río Piedras. Conforme Rosa, em Porto
Rico não existia o palo (dominicano).103
Para Rosa a ausência desse instrumento
musical diferenciava – e desvalorizava – as festas (para os mistérios) realizadas em
Porto Rico. Em San Francisco de Macorís, ela contou, seu pai costumava oferecer uma
festa em homenagem a esse santo, e a celebração se estendia por todo o dia. A fartura de
comida e bebida assim como a presença da música com os homens do lugar tocando
palo eram o que Rosa acentuava. Nesse dia, um domingo à noite, fomos (ela, sua
família e eu) a uma discoteca próxima à casa.
O bar era o local de encontro dos imigrantes dominicanos que trabalhavam com
Rosa na Plaza del Mercado, de seus amigos e vizinhos. Ela costumava frequentar esse
local, e Diogo às vezes se apresentava ali com seu grupo de merengue. Para minha
surpresa, no intervalo da sequência de reggaeton, o DJ avisou ao público,
majoritariamente dominicano, que na quarta-feira próxima, 29, se comemorava o dia de
103
Instrumentos musicais ligados, respectivamente, a estilos musicais afro-cubanos e afro-dominicanos,
que tanto as pessoas quanto os mistérios diferenciam quando tomam como referência as invocações
rituais.
175
São Miguel. Por isso, ali seria realizada uma festa e uma bruxa consultaria o público.
Fiquei ainda com a impressão de que a presença de um haitiano na festa, que tocaria
algum instrumento, tinha sido anunciada. De volta ao reggaeton, o DJ depois de certo
tempo passou a tocar uma sequência de músicas que mencionavam os nomes dos
santos/mistérios. Luci, cunhada de Rosa, avisou-me que o que ouvíamos era palo
(música de palo).
Ao som dessas músicas sobre os mistérios, jovens dominicanos acompanhados
de uma moça, também dominicana, começaram a dançar. Os rapazes, seguindo o ritmo
do palo, moviam seus corpos com as costas curvadas. A moça movimentava
rapidamente os ombros, e depois fazia o mesmo movimento que eles. Quando o DJ
anunciou a realização da festa pela segunda vez, não se referiu mais à presença de uma
bruxa na discoteca, mas sim de uma santa que faria as consultas.
No dia seguinte, durante suas atividades na botânica, Rosa avisava aos clientes
que naquela semana seriam realizadas festas para São Miguel em vários lugares em Río
Piedras. Durante os três dias que antecederam àquela data, Rosa e Diogo, ao atenderem
os clientes, avisavam-nos sobre o dia do santo. Na véspera do tão comentado e esperado
dia, Rita, uma dominicana que trabalhava em um posto de verduras e frutas em frente ao
de Rosa, avisou-me que iria a uma festa em San José, bairro próximo a Río Piedras. Um
jovem comerciante porto-riquenho que a ouviu, começou a criticá-la. Para ele, isso era
coisa do diabo, que não existe, que era uma mentira: – A única pessoa que viveu e
ressuscitou foi Jesus Cristo, ele afirmou à Rita. E o rapaz ainda acrescentou que não
acreditava que uma pessoa que fosse até a botânica, comprasse um santo, e depois
acendesse uma vela em casa poderia obter algo por isso. Rita contra-argumentou.
Segunda ela, o rapaz pensava assim porque nunca havia visto... Aludindo ao que
poderia significar ver um mistério. Depois que o jovem comerciante porto-riquenho se
afastou, Rita, que morou em Caracas por mais de dez anos, contou-me que uma vez foi
necessário regressar da capital venezuelana para a República Dominicana logo depois
de ter chegado porque um de seus filhos sofria bruxaria.
Até então eu acreditava que iria à celebração organizada por Antonio e Maria. O
que não aconteceu. Ela teria desistido de fazer a festa devido a problemas de saúde na
família. Antonio fez uma cirurgia espiritual, como ele me disse quando fui à casa dele e
de Maria. Na noite do dia 29, Rosa me levou, junto com sua filha que passava algumas
semanas em Porto Rico, à outra discoteca em Río Piedras. Nela Diogo tocaria com seu
grupo de merengue como parte das homenagens a São Miguel. Mas antes disso, no dia
176
28, uma amiga brasileira que conheci na época da minha primeira estada me chamou
para ir a uma festa de São Miguel em Santurce, bairro de San Juan também conhecido
na ilha por causa da acentuada presença de imigrantes da República Dominicana.
4.2.1 Horas Santas
A celebração foi realizada por Dina, uma senhora de setenta e três anos. Ela
vivia em Porto Rico há mais de quarenta anos e fazia consultas, conforme Janaína,
minha amiga brasileira. Na festa do ano anterior, Janaína foi quem confeccionou a
principal roupa para São Miguel.
Quando chegamos a Santurce, por volta de 19:30, os convidados já haviam
ocupado a casa e a varanda de Dina. Ela esperava a nossa chegada – a de Janaína com a
roupa – para que fosse iniciada à comemoração. Janaína lhe avisou que eu iria com ela.
Depois que Dina nos cumprimentou, demonstrou satisfação ao ver a roupa que minha
amiga costurara: uma capa longa em tom verde musgo – assemelhando-se a um manto –
com detalhes em dourado e rosado. Dina então pediu que fôssemos ao cômodo em que
havia um altar para São Miguel. Um imenso altar, cuidadosamente decorado. 104
Ali, um senhor que durante quase toda a festa se posicionou no portal de entrada
do altar, entregou-nos grandes velas vermelhas que traziam a imagem e o nome do
santo. Verde e vermelho eram as cores de vários adereços que ornamentavam o altar; as
cores que são do gosto de São Miguel. O senhor nos encaminhou ao interior do cômodo,
indicou que acendêssemos as velas e pedíssemos o que desejássemos. As velas que
Dina oferecia permaneciam ali depois de acesas pelos que chegavam. Alguns faziam
nesse momento uma oração diante do altar.
Pouco depois Dina iniciou uma curta saudação a São Miguel Arcanjo.
Estávamos numa antessala, com cadeiras e dois instrumentos musicais que me
pareceram os palos encostados numa parede, sinal de que não seriam utilizados.
Sentadas e próximas à Dina, algumas senhoras dominicanas usavam sobre os ombros os
pañuelos (lenços) verdes. Além desse adereço, elas vestiam pelo menos uma peça de
roupa verde e/ou vermelha. Dina usava também um lenço verde, mas não nos ombros e
sim amarrado à sua cabeça, e vestia um conjunto de blusa e calça da mesma cor.
Ao fim da sua saudação, ela e as senhoras começaram a entoar cantos parecidos
com o que chamamos de ladainhas no Brasil (Janaína já havia me alertado que a festa se
iniciava assim). Algumas delas – e outros convidados – tinham em suas mãos um
104
Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagens 21 e 22.
177
panfleto religioso, cuja leitura dos trechos produzia uma espécie de liturgia católica.
Além dos panfletos, trechos de um livro também católico, chamado Horas Santas –
nome dado a esse primeiro momento da festa –, iam sendo lidos a pedido de Dina, a
quem também cabia essa tarefa. A essas orações e frases intercalavam-se exclamações
da anfitriã: – Viva Jesus! Viva São Miguel Arcanjo! E Viva Belié Belcan!
Ao ouvirem o último nome, os convidados responderam Dina de forma mais
entusiasmada. Neste momento, uma daquelas senhoras dominicanas transformou a
aclamação em canto, e entoou melodicamente: – Eu sou Belié, Belié, Belié... Belié,
Belié, Belié… Oh Belié! Belié, Belié... Mas as outras canções que se alternavam aos
trechos da leitura do livro criavam, por sua vez, uma situação semelhante à de uma
missa católica.
Entre saudações a São Miguel Arcanjo, Dina entoava canções católicas,
pronunciava os trechos do livro Horas Santas, o que chamou de palavra de Deus, e a
isso aqueles que estavam na antessala respondiam com um Amém. Ela também invocou
os anjos e as almas daquele maní – termo utilizado pelos dominicanos para a festa
oferecida aos mistérios, basicamente com comida e bebida apropriada – assim como os
santos e as virgens. Permitindo-se, assim, improvisar sobre o livro Horas Santas.
Enquanto Dina iniciava a oração do pai-nosso e da ave-maria, um sino começou
a ser tocado com entusiasmo – pelo senhor que se localizava no portal de entrada do
altar – e assim Dina saudou novamente São Miguel, e anunciou que seria realizada a
consagração. Encaminhando-se para o fim da cerimônia, Dina pontuou, por entre
suspiros daqueles que a ouviam ali:
Dina: Senhore, eu, em particular, e aquilo que temos vindo com esta devoção
por 40 anos, lhe dando o agradecimento a todos por estar aqui conosco…
Convidada: Ai!
Convidados: Obrigada.
Dina: Espero que tudo saia com bênçãos deste humilde arcanjo, dê saúde e
abundância, dê… desenvolvimento espiritual e material.
Convidados: Amém.
Dina: E que todo chegue com uma paz…
Convidados: Ai! Que assim seja.
Dina: …mistérios.
Convidados: Amém.
Dina: Que a paz de Deus esteja com vocês.
Convidados: Amém. E com o Espírito Santo.
Dina: E que assim permaneça para sempre.
Sob uma nova entoação que versava sobre desejos de paz, os convidados na
antessala se levantaram das cadeiras a pedido de Dina, que lhes solicitou que
caminhassem. Uma fila ia sendo formada. Uma baixela com vários tipos de grão secos,
178
ovos cozidos, farinha e um lápis, na qual se apoiavam três velas acesas, foi retirada de
uma mesa posicionada em frente à imagem de São Miguel no altar, erguida e carregada
por aquele senhor dominicano, o primeiro da fila. Atrás dele, passamos então a
percorrer o interior da casa, fazendo uma espécie de volta. Saímos da casa até a rua e,
depois, entrando novamente por outra porta, retornamos à antessala. Enquanto
levantávamos a pedido de Dina, regalos (presentes que protegem oferecidos em nome
de São Miguel) foram distribuídos aos convidados. Depois disso, aquele senhor salpicou
água florida e um punhado dos grãos sobre os que regressaram à antessala. Assim as
Horas Santas chegavam ao fim.
4.2.2 Festejando como morto
Então a comida foi servida: carne de cabrito acompanhada de um molho bem
apimentado e pedaços de pão, e como sobremesa arroz com coco e suspiro, além de
cerveja e refrigerante. Enquanto as pessoas conversavam e comiam no interior da casa,
no corredor externo, na varanda e na calçada da rua, outros aí permaneceram durante as
chamadas Horas Santas.
No corredor, outro senhor dominicano, com uma cadeira à sua frente, despojava,
conforme me disse um homem idoso que estava na calçada, alguns dos convidados.
Quatro ou cinco pessoas esperavam em fila. Iniciando com um Em nome do Grande
Poder de Deus, ele fazia um movimento com as mãos sobre a cabeça e ao redor do
corpo delas – às vezes o tocando –, e dizia-lhes algumas frases em voz baixa.
Enquanto os observava, outro senhor – que me pareceu porto-riquenho – usando
sobre os ombros dois lenços (verde e vermelho) e tendo amarrado à sua cabeça um
branco, aproximava-se. Borrifando um líquido perfumado nas mãos dos que ali se
encontravam – água florida talvez com um pouco mais de essência –, ele informava que
isso era uma preparação para os trabalhos que teriam início e para a vinda dos mistérios
(Fiquei com a impressão de que neste momento ele disse Em nome de Bon Dieu). Com
o líquido nas mãos, os convidados esfregavam-nas, e passavam o restante pela nuca,
braços e cabeça.
Na antessala Dina conversava com alguns jovens e senhoras dominicanas, e
utilizou também água florida, pondo um pouco nas mãos das pessoas que estavam
próximas a ela. Segundo a anfitriã isso era para afastar as coisas negativas. Uma
senhora, ao esfregar suas mãos e passar o líquido pelo corpo, disse à outra que isso era
como se saísse uma coisa má de dentro dela.
179
Ao som das palmas de quem estava na antessala, o nome de Belié Belcan
começou a ser pronunciado pelas senhoras dominicanas. Uma delas não se lembrava
mais do canto, e perguntou às outras se não era possível improvisar. Chacoalhando as
maracás que tinham nas mãos, elas tentavam iniciar o canto do mistério. Alguns
acompanhavam e tocavam os palos que estavam encostados na parede: – Ya tumbó uno,
Belié. Ya tumbó dos. Ya tumbó uno […], ya tumbó dos [Já derrubou um, Belié. Já
derrubou dois].
Sentada e segurando uma maracá desenhada, Dina também começara a cantar: –
Llegó Belié, Belié Belcan… [Chegou Belié, Belié Belcan]. E as pessoas reagiram.
Segundo ela, era preciso chamar São Miguel. Quanto mais se esperasse para fazê-lo,
mais longa seria a festa, pois ele se recusaria a ir embora. Entre o burburinho das
conversas, alguns sons das maracás e dos palos podiam ser ouvidos. A presença de São
Miguel foi então sentida, e uma senhora reagiu dizendo que o momento deveria ser
aproveitado para chamar seu velho.
Dina se levantou, e com os senhores dominicanos que a ajudavam, pediu que se
deixasse a entrada da porta livre. Eles insistiam nisso. Aos poucos as pessoas que
estavam do lado exterior da casa iam entrando e se acomodando nas laterais da
antessala. Sob os cantos vacilantes – por causa do esquecimento de alguns ou do
desconhecimento de outros –, ela pediu aos convidados em alto tom e batendo palmas
vigorosamente: – Caliéntense la mano, bien caliente... para ver si levanta ese viejo
donde esteba. Bien caliente, bien caliente, caliente, caliente, caliente, caliente
[Esquentem a mão, bem quente... para ver se esse velho levanta de onde está]. Alguns
gritaram e agitaram as maracás com entusiasmo. Dina continuava a pedir que as pessoas
aquecesem as mãos. Diante das dificuldades em reproduzir o canto – os palos e as
maracás eram tocados sem criar uma harmonia – um convidado brincou: – Belié foi
passear em outra parte, e todos riram.
Então mais uma tentativa foi feita. Pequenos sinos agora eram badalados.
Inicialmente de modo mais lento. Mas à medida que se escutava Llegó Belié, [...], pá
trabajar. Belié, Belié, Belié Belcan, […]. Ya tumbó uno, Belié, Ya tumbó dos, […], os
toques eram acelerados. Dina novamente pediu que a entrada da porta ficasse aberta, ou
seja, sem pessoas na frente: – Abra um pouquinho a porta. Mantenham-se tranquilitos e
vamos ver se vão chegando os mistérios. Vamos ver se vão chegando os mistérios. Uma
entoação foi feita por uma senhora dominicana, ainda sob os sons dos sinos, que agora
assumiam um ritmo mais rápido, e das maracás: – Oh San Miguel, Belié Belcan [...],
180
misericordia baja a la tierra pá trabajar. Oh San Miguel, Belié Belcan, misericordia
baja a la tierra Belié Belcan [Oh São Miguel, Belié Belcan, misercórdia desça à terra
pra trabalhar. Oh São Miguel, Belié Belcan, misercórdia desça à terra pra trabalhar
Belié Belcan].
Dina, que estava no centro da antessala, de frente para o portal de entrada do
altar e cercada pelos convidados, já demonstrava sinais de alteração corporal. Com as
costas cada vez mais abaixadas para frente, seus passos eram cambaleantes. Fazendo
uma espécie de assopros profundos por alguns segundos, Belié Belcan anunciou sua
chegada: – Bendito [...] y El Santísimo Sacramento del altar! Gracia la misericordia!
Gracia a lo Papa Bon Dieu!, ele gritava com a voz aguda.
Depois dessas palavras, as primeiras de Belié Belcan após sua chegada, ele
novamente liberou alguns assopros, e ao fundo podiam ser escutadas ainda algumas
batidas no palo e as maracás. Seguiu-se, então, seu comentário acerca da roupa feita por
Janaína, a quem ele me pediu que chamasse: Oye, oye... [Mais assopros]. Tengo un
vestido nuevo que me trajeron por ahí... ¿Dónde está? Si me trajeron una capa nueva…
¿Y qué pasó? ¡Santísimo! ¡Gracia la Misericordia [sic]! ¿Dónde está? ¿Donde está la
amiga tuya? Que me trajo un... [Ouve, ouve... Tenho uma bata nova que me trouxeram
por aí... Onde está? Se me trouxeram uma capa nova... E o que aconteceu? Santíssimo!
Graças à Misericórdia! Onde está? Onde está a tua amiga? Que me trouxe um...].
Belié Belcan então começou a cumprimentar apenas algumas pessoas que
estavam ao seu redor, chamando os homens de garçon e as mulheres de femme. Ele
demonstrava que já os conhecia e aguardava sua capa nova. Passaram-se alguns minutos
e gritando ele pedia mais uma vez pelo vestido. Só depois de colocar o novo traje
cumprimentaria todos os convidados. Mas, ele ressaltou, o cavalo (Dina), estava com
um problema. E a sua presença ali era para dar a ela conhecimento: – Um vestido [capa]
novo que me trouxeram. Espera que eu vou cumprimentar, e a todos, para depois [...]
porque cavalo tem um problema, que ela [...], e eu estou aqui a dar-lhe conhecimento.
Garçon, como tu tá? Como Deus queira. Quita-me esta e coloque-me a outra… [Com a
voz charmosa] Graças à Misericórdia!
Ao ver o mistério pondo a vestimenta, um senhor fez um comentário que
aborreceu Belié Belcan. Ele teria dito algo relacionado à satisfação que o mistério
demonstrou ao vestir a capa. Belié Belcan reagiu dizendo que apesar de estar longe,
poderia inaugurar (usar pela primeira vez) o que quisesse. E não havia problema algum
nisso. Em seguida pediu respeito. E, indo além, desafiou seu interlocutor, dizendo-lhe
181
que como um homem que não cogitava se aproximar do palo (instrumento) poderia
fazer uma gozação com ele.
Belié Belcan: Eu estou longe, mas eu posso usar pela primeira vez
[estrenarme], eu posso usa pela primeira vez [estrenarme] toda a bata e toda
a capa que me dê vontade. E o que aconteceu? Respeita.
Convidado: A capa é sua. [sic]
Belié Belcan: Caralho! Como, como, como… um homem que não pensa nem
ir ao palo está sacándome en cuenta...
Convidado: O que passa é que eu não sei tocar palo.
Uma senhora dominicana falou para o mistério que o tal senhor não sabia tocar palo, e
ele próprio, após a advertência de Belié Belcan, sussurrou que não sabia fazê-lo. Ela o
ajudou a pôr a capa, dizendo-lhe que estava lindo. Após um assopro alto e profundo,
Belié Belcan lhe agradeceu, chamando-a de femme, e justificou o elogio recebido
revelando o que foi a ocupação de Janaína quando chegou a Porto Rico: – É que esta
mulher é costureira, costureira dos artistas… e das coisas para as películas. Graça.
[Mais assopros]. Graça...
Mas seu traje ainda não estava completo. Faltava um tecido vermelho que,
segundo o mistério, estava em algum lugar por ali. Depois de amarrar esse lenço à
cabeça, Belié Belcan pôde começar a cumprimentar os convidados da festa, realizando a
saudação (saludo) que lhe é específica.105
Simultaneamente, explicava aos convidados porque não havia música de palo
(ausência que parece ter dificultado a sua chegada, mas não a impossibilitado).106
Uma
metresa, Santa Marta A Dominadora, poderia montar o cavalo (Dina). Conforme Belié
Belcan havia o risco do cavalo se machucar, o que levou ele a dizer a ela (Dina) que não
houvesse música de A Dominadora na festa: – Agora, garçon, sim. [Após amarrar o
pañuelo vermelho à cabeça, seguido de um assopro profundo]. Graça à Misericórdia. E
Graça ao Papa Bon Dieu. Ouçam o que lhes vou dizer. Dê a volta bem [sic]. Ouviste.
Dê a outra. [Belié Belcan realizando seu cumprimento em uma convidada]. Ouçam o
105 Conforme Belié Belcan, era preciso ensinar o seu saludo: ele oferece a sua mão direita para um
cumprimento, depois a esquerda, e à medida que ambos os braços se cruzam, ele gira (dá uma volta) no
corpo da pessoa para os dois lados, segurando a mão dela. Segundo ele, ao cumprimentar alguém durante
a festa, – Essa volta quer dizer que mistérios te vão proteger no mundo. Onde quer que esteja. Porque o
mundo é redondo, e tu onde quer que esteja, [onde] tu andar.... Ao ver um senhor que se aproximava para
cumprimentá-lo, o mistério disse em tom direto e objetivo, sem dar chance ao senhor de reação: – Ele não
sabe cumprimentar os mistérios. Como está você? Bem! Estou feliz em ver-te. Gracia. Com isso,
recusou-se a cumprimentar o convidado. 106
Durante a celebração, um convidado notou a existência dos instrumentos de percussão na antessala, e
Belié Belcan lhe disse que naquele dia não haveria música de palo. O homem então queria saber se
poderia tocar, e o mistério lhe perguntou se ele sabia. O convidado disse que sabia tocar batá, mas Belié
Belcan explicou-lhe que aqueles instrumentos não eram batás e sim palos.
182
que lhes vou a dizer. Vim…, graça, por vir aqui. Eu disse ao cavalo que não queria
música de A Dominadora, e de Santa Marta A Dominadora porque depois [o cavalo]
cai e se fere. Tu me entende? E não estamos para isso. E desde que se lhe dá uma
cerveja se lhe monta A Dominadora. [As pessoas começam a rir]. E isso... há muito
canto... Eu lhes vou dizer, cavalo quer canto, tu sabe, desde que não seja para lançar-
se ao chão. Porque depois a coisa se põe má. Vim, cavalo. As palmas. Um
agradecimento [As pessoas batem palmas a pedido de Belié Belcan]. Graça à
Misericórdia, Graça à Misericórdia.
Ele seguia cumprimentando as pessoas, quando as convidou a dar um trago – de
rum Brugal – com ele. Uma garrafa da bebida passou a circular depois que o próprio
mistério tomou um pouco no gargalo, e alguns convidados fizeram o mesmo. Era
notório que alguns tinham uma relação próxima com esse espírito, a quem ele
manifestava satisfação em ver, dirigia perguntas específicas, desejava saber sobre os
familiares e, às vezes, exigia a aproximação e o cumprimento.107
A um homem, por
exemplo, ele invocou uma palavra de Candelo Sedifé – Las formas son más altas y los
pueblos comen migajas [As formas são mais altas e os povos comem migalhas] – o que
gerou risadas.108
A um jovem, ele pediu vigorosamente que fosse cumprimentá-lo, caso
contrário, subiria na cadeira em que o rapaz sentava para o fazer. Ao se aproximar de
Belié Belcan, o jovem se ajoelhou e disse: – Velho, velho, graça à Misericórdia. Mas o
mistério reagiu: – Levanta-te em nome de Deus… e de nosso Pai Amado. Porque as
formas são mais altas e os povos comem migalhas. Os convidados repetiram a frase
com Belié, que prosseguiu dirigindo-se ao rapaz: – Qualquer coisa que tu queira, tu
podes conseguir porque tu nasceste sem nada de [...].
Durante esses momentos, uma ave-maria foi orada, inclusive por Belié Belcan,
mas também se cantou a música desse mistério, que ele mesmo iniciou. As pessoas
acompanhavam-no, fazendo o coro. Belié Belcan batia palmas tentando criar um ritmo,
e após alguns minutos reclamou: na festa havia homens tão fortes, mas que não sabiam
nem cantar. Contrariado, ele pediu uma cadeira para sentar-se e avisou que não
cumprimentaria mais ninguém. Entre o burburinho das conversas e risadas dos que
107
Mas o contrário também aconteceu. A um homem que Belié Belcan não conhecia, ele disse: – Olá.
Como tu tá garçon? […] Eu não tinha te visto aqui, eu tenho vindo aqui um par de vezes e eu não havia
tinha te visto, agora que estou encarando. 108
Candelo Sedifé chegaria à celebração (montando Dina), aos olhos da maioria pelo menos, em um
momento posterior da festa, depois da partida de Belié Belcan.
183
estavam à sua volta, ele insistiu na reclamação até que se surpreendeu ao ver uma
pessoa conhecida.
Belié Belcan: Parece que não sabem nem cantar.
Convidado: Temos que aprender velho [...].
Belié Belcan: Pois então vão aprender [...]. Ai corno! Olha quem está aí
atrás de ti. Olha quem está aí atrás de ti. Machos, machos. Carajo![...] Deus
te abençoe.
Convidada: Amém.
Belié Belcan: Onde está Madalena? Como tá ela?
O canto de Belié Belcan menciona que a sua chegada tem como finalidade
trabalhar e derrubar (tumbar) outros. No entanto, como ele mesmo avisou a alguns
convidados, o dia não era de consultas. A ocasião era para cumprimentar (saludar) e
também para pedir, comer, para pedir saúde, desenvolvimento e paz. Em outro
momento, no entanto, aqueles que quisessem poderiam ir conversar com os mistérios, e
Belié Belcan fez o convite: – Venha ver os mistérios, venha cumprimentá-los, venha
para checar-se [consultar-se]. Que hoje não se trabalha, que hoje se cumprimenta, se
dá bênção para o ano.
Desde o início, Belié Belcan recomendou os convidados que não deixassem a
festa sem levar os regalos (presentes dele): o maní, uma bolsinha com grãos secos
dentre os quais amendoim, castanha, gergelim;109
o pañuelo verde (gravado com o
nome São Miguel Arcanjo) e uma pedra (cada uma com uma cor específica) com uma
oração, que foram colocados juntos nesse mesmo saquinho.
Conforme o mistério, ao abrirem esses pequenos embrulhos, as pessoas
deveriam dizer o próprio nome e que estavam recebendo o pañuelo e a pedra em nome
de Deus para a sorte, alegria e saúde. Belié Belcan explicou ainda a um convidado que
o pañuelo – chamado também de fula – 110
deveria ser levado com alguém em qualquer
situação em que os mistérios estivessem, fosse consulta ou festa. Portar esse objeto seria
uma maneira de os espíritos identificarem as pessoas. As pedras oferecidas (com as
orações), segundo ele, seriam otás: – Ola garçon. Como tá? Anda com seu fula?
Garçon, antes quando [...]. Eu não sei se já chegou aí, essa pedra... Quem tá na
consulta, já os mistérios identificavam a pessoa pelo pañuelo que levavam [...]. Isso se
chama otá. [...]. Esse pañuelo [...], vocês vão consultar-se [com o cavalo], [...], ou vão
consultar-se com alguém, vocês põem seu pañuelo aí ou o tenham na mão.
109
Os mesmos grãos que compunham a baixela colocada no altar, em frente à imagem do santo, que foi
erguida ao final das Horas Santas pelo senhor dominicano. Geralmente esses grãos, chamados de tostados
(torrados), são oferecidos como serviço ritual aos mistérios. 110
Ele pronuncia como fulá, com o acento na última sílaba.
184
4.2.3 Mistérios, doutores da igreja e antepassados
A festa prosseguia quando uma senhora dominicana, amiga de Dina, queixou-se
com Belié Belcan. Ela enfrentava dificuldades com alguém de sua família que estava
doente. Ele pediu-lhe que, depois, a senhora procurasse Dina, e lhe falasse sobre certo
texto católico. Com ele, a mulher poderia compreender e aliviar seu sofrimento.
– Quando tu venha diga ao cavalo que te busque uma leitura, que há em um
livro que é um doutor da Igreja, que se chama São João da [...], que [nos] anos dezoito
[século XVIII] escreveu sobre as almas. E não foi até que ela [Dina] fez essa leitura
que ela pôde aceitar a morte do papai dela. É uma, é uma coisa tão grande, tão grande,
não para quem [a tem], para a pessoa que está a sofrer. Mas eu não sei se vocês sabem
que há uma leitura que diz: “[...]”. E essa é a enfermidade que chega a esse [...].
Durante esse aconselhamento, a amiga de Dina demonstrava angústia com o
estado de saúde de seu familiar, cujo corpo não reagiria nem ao frio nem ao calor,
observou Belié Belcan ao escutá-la. Procurando explicar-lhe o que estaria acontecendo
com o corpo de seu parente, ele tentou tranquilizá-la: – Quando o corpo quer não faz
esforço para nada, e isso é uma bênção que o espírito tem. E torna a nascer de novo
Mas o que acontece? Que as pessoas que estão a sofrer [...] são os que o sentem, eles
não sentem nada. Ao fim desse comentário, Belié Belcan lhe pediu então que rezasse.
Logo depois outra convidada se aproximou de Belié Belcan. Ela procurava,
também, auxílio para algum problema. E, pelo comentário de Belié, a dificuldade agora
estava relacionada a questões de propriedade da terra. Por isso, ele recuperou uma
história em que Dina mediou a relação entre antepassados e algumas pessoas que
provavelmente disputavam uma posse fundiária. Conforme Belié Belcan, durante três
dias o cavalo pediu para ser iluminado acerca de tal problema. Quando obteve uma
resposta, quem se comunicou com Dina foram os antepassados, espíritos que
compraram e nasceram na terra em questão.
Os antepassados recomendaram que fossem colocados alimentos (vianda) –
provavelmente no terreno – e que duas pessoas velhas fossem procuradas, pois essas
conheciam e sabiam da história (da terra): – O cavalo pediu três dias, pedindo para que
desse uma luz para essa gente [...]. Inclusive, o pedido, quando lhe responderam, lhe
responderam os antepassados, donos dessa terra. E lhe disseram [à Dina]: “Que tu
crê? Que se tu chega à tua casa e tenha alguma pessoas roubando, tu pega preso”,
assim mesmo lhe disseram. “Perdoa, perdoa, perdoa”, e lhe disseram: “Que ponham
185
vianda e que busquem dois velhos que vivem ao nordeste desse sítio, e esses velhos
conheceram os antepassados e têm a história.
Os interessados na disputa pela terra foram aconselhados por Dina a buscar os
dois idosos através da internet. E, à medida que as mensagens foram chegando, Dina as
atirou ao vento. Segundo Belié Belcan, com isso os caminhos começaram a se abrir: –
E cavalo lhe mandou pôr uma página des internet [...]. E disseram que sim, que iam
colocar a… E em três dias começaram a levar a [...] e quando o cavalo lançou a
mensagem ao vento, começaram a abrir-se caminho [sic], e o cavalo iluminou
[alumbró] os antepassados dessa terra. Porque essa terra não é mais que dos
antepassados. E essa riqueza que há aí são dos antepassados dessa terra, dos
compradores, dos que nasceram. E já chegou o momento que eles disseram [os
antepassados]: “Estamos cansados!” [Belié então gritou] Então quando eles estão
cansados [...] caminho para encontrar e estar aí.
Por entre as expressões de Graça à misericórdia e Aleluia, de Belié Belcan e de
alguns convidados que o escutavam, o mistério continuava a comentar a disputa sobre a
terra quando, então, comunicou que ia embora. Ele começaria então a se despedir e se
preparar para deixar sua festa: – Mas isto são dos antepassados. Eles estavam roubando
os antepassados, eles estavam enganando o seu, mas eles entenderam [...] em seu
idioma, em sua língua que isso, isso não era deles. Garçon, ouve garçon. Femme,
femme... Garçon, [...] eu vou. Graça à misericórdia de Dios! E graça ao Papa Bon
Dieu. Muita graça. Muitas bênçãos. Muita saúde. Muito desenvolvimento. Paz e
tranquilidade.
Como aconteceu no decorrer da invocação, algumas pessoas pediram para que o
caminho de entrada da antessala fosse deixado livre. Enquanto isso, Belié Belcan dizia
às pessoas presentes: – Vocês não vão mendigar tanto, vocês peguem a coisa como
venha, que há passado tempo piores – ao que alguns disseram Amém –, piores tempos
têm passado, ele reafirmou, gritando Graça a misericórdia, antes de fazer seu último
comentário naquela noite e entoar seu canto batendo palmas: – E agora meu espírito se
retira da universidade dos espíritos [...]. [E ele bateu o pé forte contra o chão]. Para
levar-me toda sua contrariedade e a depositar diante da vontade divina. Dando três
passos para atrás e [...] todas as suas contrariedades, dando três passos para frente até
vocês e trazendo paz e tranquilidade, e desenvolvimento espiritual e material em nome
de Deus. Graça à misericórdia. Onde? Chegou Belié! [Donde? Llegó Belié], e ele
mesmo começou a cantar.
186
Alguns sacudiam as maracás e repetiam as estrofes, o acompanhando. Belié
Belcan saudou mais uma vez Gracia la misericórdia. Uma alteração na respiração foi
percebida e suspiros profundos podiam ser escutados. Algumas pessoas continuavam a
repetir o agradecimento acima, e pouco a pouco o som das palmas desapareceria. Um
burburinho se iniciou, resultado da conversa dos que estavam na antessala. Mas em
seguida ouviu-se um novo chiado.
4.2.4 Fogo, chaves e São Pedro
Sob tímidas batidas no palo, outro mistério, praticamente sem interrupção, havia
montado Dina e anunciava a sua presença: – Bendito y alabado [louvado] sea el
santísimo sacramento del altar. Gracia la misericordia de Dios. Candelo Sedifé. Ele
também deu início ao seu canto, e rapidamente foi acompanhado por uma senhora
dominicana. Depois pelos outros convidados.
Candelo Sedifé: Candelo, Candelo, Candelo Sedifé.
Convidada: Candelo, Candelo, Candelo...
Candelo Sedifé: Agogo, agogo, ag ogo, [...]. Agogo, agogo, Candelo ya
llegó [Candelo já chegou].
Cantando, ele pediu que fosse aberta uma porteira por causa do cavalo – acho
que agora a preocupação era com a respiração de Dina –, e um convidado insistiu para
que as pessoas saíssem da entrada da porta. Notando a ausência de seu pañuelo
vermelho, que ele ainda não tinha recebido, Candelo Sedifé disse que continuaria a
trabalhar e a cumprimentar: – Mas se não há um trapo vermelho, eu vou seguir
trabalhando, vou seguir saudando. Como está vocês?Como está vocês?
Alguns convidados então trataram de providenciar uma bacia de metal –
posicionada em frente ao mistério – na qual foi colocada água florida e um fósforo
aceso. Uma chama foi gerada e Candelo Sedifé mostrou aos convidados que havia fogo
no recipiente, pedindo que aquecessem as mãos: – Aqui há um fogo, olha. Esquentem a
mão e peçam. Candelo, Candelo, Candelo Sedifé. Agogo, agogo, Candelo ya llegó.
Agogo, agogo, Candelo ya llegó. Ave-María! Entoando mais uma vez o seu canto ao
som de algumas batidas secas no palo, Candelo Sedifé tratou de que os convidados da
festa se aproximassem das labaredas. Indo com as mãos abertas na direção do calor que
era liberado, as pessoas as deslizavam depois pelo corpo.
Uma senhora dominicana pediu um tabaco, e Candelo Sedifé perguntou quem
gostaria de dar um trago com ele. Nesse meio-tempo, ele avistou uma femme e a
cumprimentou, indagando se ela estava contente. Invocando com um grito as suas
palavras – como Belié Belcan já havia feito – ao falar com essa convidada, em seguida
187
ele deu uma alta gargalhada, Graça à misericórdia e Graça ao Papa Bon Dieu, o que
foi repetido por alguns. E, como tinha ocorrido durante a presença de Belié Belcan na
festa, Candelo também foi requisitado para dar um aconselhamento. Uma senhora, que
viajaria, pediu-lhe ajuda para que fosse bem-sucedida em seu objetivo fora de Porto
Rico. O mistério indicou o que ela deveria fazer. E, se antes da viagem, melhor. Assim
os caminhos se abririam para ela.
Pegue sete frutas e as coloque em sete garrafas, e pegue sete chaves e ponha
na porta da tua casa com um copo de água. Não lhe ponha água. Coloque
uma moeda de cinco centavos e [...]. E todos os dias pela manhã, essa
garrafa tu a ponha que pegue tempo, que pegue o sol e o sereno, e todos os
dias pela manhã tu traga esse banho e sai para rua. Sai para a rua.
Caminha. Caminha mas não volte por aqui. Se tu sai por aqui, não volte por
aqui. Dá a volta [...] com uma chave. Tu pegue uma, duas, três, quatro,
cinco, seis, sete. [sic] a número um, a número dois, a número três, a número
quatro, a número cinco e a número seis, e tu diz a São Pedro tu tens a chave
da igreja, tens [...] dos céus. Empresta-me… pega uma chave, tua, empresta-
me tua força e tua inteligência para me ensinar [...], que eu vou fazer a
vontade de Deus. Se pode o fazer antes de ir seria melhor. E se quiser o
fazer lá, mas [sic]. Se abrem os caminhos, [...]. Sete frutas doces: maça,
vermelha maça, maça verde, sete uvas verdes [...]. Fruta doce, não ácido.
Sua presença, entretanto, não se prolongaria por muito tempo. Quando terminou
de indicar o banho para a convidada, Candelo Sedifé avisou que teria que ir embora.
Outro mistério, Guedé Limbó subiria. Guedé estava mandando que Candelo se fosse
para que também pudesse chegar à festa. Antes, contudo, Candelo Sedifé antecipou os
convidados, enfaticamente, que Guedé estava com muita fome e teria que comer. Era
então preciso deixar tudo preparado para que esse mistério, ao chegar, pudesse se
alimentar e dividir a sua comida com os convidados: – Mas o Guede está mandando
para que eu me vá […] O cavalo, o cavalo… ele cavalo. Eu me vou junto com você
[Fazendo referência a uma convidada que ia embora], vai subir Guedé. Guedé vai
repartir a comida, busquem onde vão comer. Olha femme, busca papel de alumínio
para que levem a comida de Guedé porque ele está me mandando [...]. Porque tem
muita fome e ele tem que comer [Candelo falou gritando]. [...] Eu me vou, eu me vou!
Graça à misericórdia!
4.2.5 Das bênçãos em utensílios quebrados
– Não me sinto bem [...], me deem refleco [refeição]. Foi ao som das risadas de
alguns convidados, quando escutaram o pedido de Guedé logo que chegou à festa, que
pude me dar conta de que esse mistério estava presente entre nós. A respiração de Dina
agora se alterou pouco e suspiros menos intensos foram liberados depois que Candelo
Sedifé foi embora da festa. Porque Guedé se apresentou solicitando alimentação, uma
188
senhora dominicana reagir em tom de brincadeira: – Não te cumprimento, mas tu és bem
folgado!
Diferente do que aconteceu nos momentos iniciais da chegada de Belié Belcan e
Candelo Sedifé, a de Guedé foi iniciada com gozações. Mas, entre os comentários de
duas senhoras dominicanas que perceberam que esse mistério já havia chegado por
causa do pedido de comida, uma salva de palmas e gritos de comemoração – com a
participação do próprio Guedé – anunciaram a receptividade dos convidados com a sua
presença. No entanto, ele se mostraria ainda mais exigente. Gritando e irritado, queria
saber onde estava o cozinheiro – que deveria levar-lhe sua comida –, seu cuarto
(dinheiro), seu rum e seu arenque (peixe): – Ouve, ouve… Onde está o cozinheiro? [...]
garçon, [...], trazer minha comida. Corno! Onde está meu cuarto, onde está meu rum?
Onde está meu cuarto? Corno! E isso, [...], arenque, corno. Sua atitude fez com que
algumas pessoas resmungassem, mas outras pareciam achar graça e riam.
Enquanto o que o mistério demandou não chegava, um chapéu de palha lhe foi
dado. Ao usá-lo, Guedé perguntou se estava lindo. As pessoas que o rodeavam
começaram então a gritar, afirmando-lhe que agora sim o mistério estava pronto, ao que
ele deu Graça à misericórdia de Deus. A essa altura, uma ampla bandeja de alumínio na
qual eram encontrados arroz e feijão preto, batata doce cozida e arenque – alimentos do
gosto de Guedé – já havia sido posicionada em frente ao mistério. Ele então iniciou a
partilha dos alimentos. Um jovem dominicano, que brincava dizendo que a maior parte
seria para as pessoas, foi repreendido por Guedé, que lhe pediu para que não colocasse a
mão na comida. Mas, percebendo que o rapaz fazia mais uma gozação, Guedé lhe disse
que emprestaria – na verdade com um sotaque afrancesado – e confiaria o seu macuto
(saco de palha) no qual seu cuarto (dinheiro) é guardado, ao jovem.111
Guedé: Esta é de vocês…
Convidado: E este é de você.
Guedé: Não, não meta mão.
Convidado: Não, nunca velho.
Guedé: Esta é de vocês… Toma, fica tranquilo. Eu vou a pretêr [emprestar]
macuto aqui. E confío que tu me leve macuto para [...] meu cuarto [dinheiro].
Garçon, garçon. Como tu tá? Abre métro [espaço]. Abre métro.
Ao mesmo tempo em que Guedé repartia a sua comida e a oferecia aos
convidados, que preenchiam todo o espaço da antessala ansiosos para receber uma
porção, ele solicitava ajuda porque recebeu um presente. Um convidado lhe deu uma
garrafa de uísque Johnnie Walker (Label). O mistério, após ter avaliado a qualidade da
111
Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagens 23 e 24.
189
bebida, informou que ninguém a tomaria com ele. Entretanto, aquele mesmo jovem
dominicano o questionou, quando viu que Guedé oferecia a bebida ao homem que lhe
deu o presente: – E com quem tu tá repartindo? Guedé então justificou: – Porque
garçon me compra isso. Cuerno! Mas garçon o compra. [sic] ele o compra. Assim, o
misterio acabou por pedir um vaso de corte (copo rompido) para brindar com os
convidados: – Todo o que tem um vaso de corte que se alinhe. Que se alinhe. Apesar de
disso, à medida que distribuía a refeição, ele comia e comentava que o estavam pelando
– uma referência à comida que diminuía – e que faltavam ovos na bandeja.
As reclamações de Guedé continuaram ao longo da festa. Ofendido, ele
esbravejou: Corno! Não me colocaram óculos nem me puseram pó [talco], não me
puseram nada. Também como se passou com Belié Belcan e Candelo Sedifé, alguns
convidados deram início à busca dos objetos e substâncias que Guedé pedia. Quando os
óculos (gafas) e o macuto apareceram, o mistério pediu que fossem colocados nele. Mas
ele já vinha avisando que estava cansado e que iria embora. Queria apenas dividir um
pouco mais sua comida com os convidados. A alguns ele pediu que colocassem a
comida em um plato de corte (prato rompido) no interior da casa ou do negócio; a
outros, quando comessem a comida, que pedissem pela proteção dos filhos. A outros
que ainda não tinham se aproximado, ele perguntavam se não iriam comer. E, em tom
de brincadeira, de alguns foi exigido o pagamento pala comida. Janaína não se sentia
muito bem, já era quase meia-noite, e agora eu fui quem precisei ir embora.
4.3 TRANSFORMAÇÕES
Para além do fato da primeira parte da festa que descrevi se desenrolar
principalmente, mas não exclusivamente, como uma missa católica – através da leitura
comandada por Dina de um panfleto litúrgico e do livro Horas Santas –, os modos como
os próprios mistérios se apropriam de artefatos e linguagem ritual que geralmente são
associadas ao cristianismo, mais especialmente ao catolicismo, têm destaque.
A estátua de São Miguel no altar informa a maneira como Belié Belcan se veste
para a sua festa, uma maneira dele celebrar como morto o seu dia, foi o que ele me falou
montado em Armando. A vestimenta da imagem do santo, coberta por um manto em
tom de vermelho e rosado sobre trajes de um soldado em verde e dourado, foi de certo
modo reproduzida na capa confeccionada por Janaína, verde e rosa com detalhes em
dourado. Tanto o modelo da roupa quanto suas cores seriam do gosto de Belié e fazem
parte de seus atributos estéticos.
190
E isso não era uma questão menor do ponto de vista de Belié Belcan. Satirizado
por um senhor, convidado da festa, por causa da satisfação que demonstrou ao vestir a
capa, esse espírito lhe cobrou respeito, marcando uma diferença de estatuto com seu
interlocutor humano (Belié disse que vem de longe) ao mesmo tempo em que o desafiou
do ponto de vista da masculinidade. Além disso, o reconhecimento de tais atributos
estéticos renderam-lhe um elogio: ser chamado, por uma senhora dominicana, de lindo.
Além dessa apropriação de características da imagem do santo pelo mistério, a
chegada não apenas de Belié Belcan (mas também de Candelo Sedifé e de Guedé
Limbó) na festa, ocorreu enaltecendo um sacramento católico que caracteriza a
transubstanciação do corpo de Jesus Cristo. Nos momentos em que esses mistérios se
materializam no corpo do cavalo e antes de se apresentarem eles pronunciam,
entusiasmados: – Bendito y Alabado El Santíssimo Sacramento del Altar! ¡Gracia la
misericordia! ¡Gracia a lo Papa Bon Dieu!
Aqui, um ato de sacralidade fundado no altar aparece modificado e ampliado. O
altar e o processo de transformação (material e espiritual) que nele ocorreriam do ponto
de vista do catolicismo, por exemplo, parecem ter sido levados às últimas
consequências quando se considera a festa do ponto de vista dos mistérios. Enaltecendo
uma transformação que, para esses espíritos, é possível através desse artefato, os
mistérios agradecem por ter chegado para celebrar – comer, beber, estrear roupas,
rivalizar, informar, reclamar – com os vivos.
Assim como ocorreu no meu encontro com a guedé, em que seu engajamento
com os quadros de santos permitiu-lhe explicitar uma visão singular sobre Deus, crença,
e arcanjos, Belié Belcan e os outros mistérios da festa parecem falar de uma perspectiva
que subverte as imagens e linguagens do catolicismo (ou mesmo do cristianismo). Tais
espíritos não têm lugar nesses sistemas religiosos, mas apropriando-se das imagens de
santos, dos sacramentos católicos e liturgias eles se apresentam como múltiplos seres
que se concebem e agem como divinos.
191
CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 4)
Imagem 20. Da esquerda para a direita, quadro de Ogun Balendyó/São Santiago Apóstolo (segundo)
tendo atrás Ogun Ferraile, cavaleiro com armadura e espada. Botânica do Mercado Municipal de San
Francisco de Macorís, República Dominicana, outubro de 2010. Foto: Alline Torres.
192
Imagem 21. Altar para a festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. À esquerda, quadro de Metresili/
Virgem A Dolorosa, repleto de colares femininos. Ao centro, a grande imagem de São Miguel. Santurce,
San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.
193
Imagem 22. Serviço ritual para os mistérios: maní (grãos secos torrados iluminados por velas no interior
da bandeja). À direita, o jarro divisional, objeto ritual da 21 Divisão e sobre a mesa mais elevada uma
porção da comida oferecida a Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.
194
Imagem 23. Serviço ritual (feijão e arroz, batata doce e arenque) para Guedé Limbó (São Expedito) no dia
da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.
195
Imagem 24. Objetos de Guedé Limbó: ao fundo, seu macuto (sacola de palha), seu chapéu feito com esse
mesmo material e seu lenço preto. Dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. Santurce, San Juan,
28/9/2010. Foto: Alline Torres.
196
CAPÍTULO 5 AS COISAS MÁS NA CASA
Sobre las formas de hacer los rituales hay mucho que decir.
Ya te he dicho que no hay dos casas donde las cosas se hagan
iguales. Si cuando los orichas fueron traídos de África
tuvieron que adaptarse de las selvas de allá a los montes de
aquí, también tendrán que hacer lo mismo ahora que algunos
santeros se los han llevado para el Norte [EUA]. Si la
adaptación de ellos a Cuba fue obligada por la esclavitud, la
adaptación al Norte tendrá que ser más voluntaria, porque los
santeros se fueron porque quisieron. No pasará mucho sin que
veamos a un Changó vestido como un esquimal; y a Yemayá
y a Ochún con botas y abrigos de pieles y hasta con patines
de hielo para poder andar por los lagos y ríos congelados de
allá. Hay cosas que se han perdido en el Norte, como otras
también aquí. Allá ir a la plaza no es posible. No tienen
plazas como las que teníamos en Cuba; solo mucho minimax,
pero no sirven para el ritual de la plaza. Nosotros también
hemos perdido, en parte, porque como existían los lugares
donde hubo plazas, el ritual se hacía de forma simbólica.
Cuando las plazas dejaron de ser plazas y lo que se vendía en
ellas se podía comprar por los puestos de vianda de los
barrios, los iyawós con yubona [sacerdote masculino] iban a
la plaza, al edificio del Mercado Único, saludaban las cuatro
esquinas y regresaban al ilé, a la casa de santo. Ahora que ya
no hay plazas de nuevo en eses lugares, como las había antes,
es decir, que tú podías ir comprar viandas, frutas y algunas
otras cosas, se siguen haciendo las ceremonias de igual
forma” (Santero entrevistado por Robaina, Tomás Fernández.
Hablen Paleros y Santeros, p. 62)
5.1 SOBRE ALGUNS ESPAÇOS PRECÁRIOS
Meus interlocutores dominicanos estabelecem distinções entre os mistérios,
espíritos que foram deificados e são considerados divinos ou seres de luz e aqueles
chamados de mortos. Esses últimos podem ser espíritos de seres humanos
desconhecidos que transitam pelas ruas, de familiares e amigos, ou ainda anônimos, que
são enviados por meio de trabalho de bruxaria para causar danos, chamados também de
coisas más (las cosas malas).112
Rosa e Joana viam todas essas entidades como espíritos cuja aproximação nunca
é bem-vinda. Para Rosa, os espíritos de familiares deveriam ficar no outro mundo. Isso
era o que ela dizia ao ser procurada na botânica por clientes que lamentavam o
falecimento dos seus próximos ou sentiam-se afetados pela presença desses mortos
112
As coisas más podem ser descritas apenas como espíritos invisíveis, o que dá margem a pensá-las
como sendo não exatamente espíritos de mortos humanos, mas uma forma espectral bem mais difusa e
desconhecida.
197
humanos. Morto é atraso, Joana argumentava sempre que queria diferenciar-se da
maneira como os paleros trabalham. Elas (mas também Gina) procuravam afastar tais
espíritos com algumas técnicas vinculadas, principalmente, à manipulação de
substâncias de odor acre e amargo, estivessem essas substâncias sob a forma de plantas
ou de produtos químicos.
Como uma espécie de contraponto às relações que as pessoas mantêm com os
mistérios, em que a manutenção ritual é realizada como uma forma de produzir
dependência recíproca e trabalho entre ambos, neste capítulo serão descritas outras
modalidades de apropriação material e interações entre seres humanos e espíritos. Trata-
se de dois casos em que espíritos indesejáveis entram em contato com os seres
humanos: em um deles tais espíritos são chamados de coisas más, no outro quem
emerge é um morto humano familiar. Essas descrições estão em sua maior parte
baseadas nas práticas de compra nas botânicas. Ou fazem alusão aos produtos dessas
lojas.
A radicalidade do caráter invasor e perturbador – algo a que os mistérios não
estão completamente isentos, como procurei demonstrar no primeiro capítulo –
atribuída aos diversos trânsitos e contatos dos chamados mortos com os vivos, é mais ou
menos contida com técnicas que buscam seu afastamento temporário e controle relativo.
O fato de Joana e Rosa procurarem conter a aproximação dessas entidades têm
implícito um aspecto que merece ser explicitado. Enquanto pessoas que têm os
mistérios elas lidam com seus espíritos herdados em um universo conceitual que não se
sustenta apenas pelas relações de reciprocidade e trabalho, de fortalecimento mútuo e de
disposição dessa potência a terceiros. Isso porque as pessoas e os mistérios são
informados por uma cosmologia que não se restringe à 21 Divisão. Esta parece existir
em uma “atmosfera”, para usar um termo de Ochoa, ainda mais densa e complexa, em
que ameaças de agressão mística poderiam vir de muitas direções.
Fazer essa observação é importante porque, durante o trabalho de campo, ao
lado dos mistérios, as coisas más eram mobilizadas em comentários dos meus
interlocutores dentro de suas casas e nas botânicas, sobre situações em Porto Rico e na
República Dominicana, em relação a quem tinha o dom e àqueles que não o tinham.
Diante dessa onipresença, era difícil, entretanto, apreender o que eram ou onde
estavam as coisas más. Elas eram muito menos salientes para mim do que era observar
Joana e suas sutis e controladas mudanças de comportamento porque Anaisa estava
metida na botânica; Gina e sua sobreposição de expressões e informações com Ogun
198
Balendyó; Rosa e suas explosões de força que remetiam a São Miguel. Essas
modalidades de incorporação entre pessoas e seus espíritos herdados se tornavam mais
explícitas para mim com o convívio e a atenção a seus estilos de comportamento, modos
de enunciar (e enunciados) e gestos.
Com relação às coisas más, os indícios da presença dessas entidades na casa
apareciam basicamente sob a forma de proteção. Na casa de Rosa, cruzes eram feitas
com anil nos cantos das paredes dos cômodos. Na botânica dela e na casa de Gina
pañuelos com as cores do gosto de São Miguel (vermelho e verde) foram pendurados no
alto da porta junto a pedaços de pães, a cruzes envolvidas em fitas nessas mesmas cores,
e a ferraduras e plantas como resguardos que invocavam a presença protetora daquele e
de outros mistérios. Os pañuelos poderiam ser vistos ainda pendurados no alto dos
portões ou grades na vizinhança em Río Piedras. E, em uma casa ao lado da de Gina, na
vila em que ela morava, uma veve (símbolo ritual) foi desenhada na porta de entrada.113
Além desses resguardos para a casa e os negócios, outros geralmente sob a
forma de pulseiras trançadas pelos próprios mistérios eram colocados ao redor do pulso.
Contudo, mais do que essas proteções, o que se destacou durante todo o trabalho de
campo – e eu fui submetida também a mesma técnica ritual no despojo na praia – foi a
liberação de muitos odores. Manipulando principalmente certas substâncias químicas e
plantas, os meus interlocutores dominicanos procuravam fazer com que o corpo
humano, através da pele, e a casa e os objetos, através de suas superfícies, fossem
expostos a odores incômodos. Assim realizavam a chamada limpeza por causa desses
espíritos indesejados.
Referindo-se a cenários etnográficos diferentes, Shaw (2002) e Palmié (2002)
discutiram como técnicas rituais contemporâneas em Serra Leoa e Cuba condensam
táticas de guerra e escape que vigoraram, nos dois lados do Atlântico, em conexão com
o comércio transatlântico de escravos.
No caso de Serra Leoa, Shaw discutiu como os falantes da língua Temne
recuperaram em seu cotidiano a paisagem de rios e estradas como o domínio de
experiências sobre emboscada, invasão e captura. Nesses ambientes, pessoas foram
transformadas em cativos de chefes locais, posteriormente de comerciantes de
companhias europeias e, depois de uma longa, violenta e incerta travessia, propriedade
de outros senhores além mar.
113
Caderno de Imagens do Capítulo 5. Imagens 25, 26, 27, 28, 29.
199
Mesmo durante o dia, o mato e as estradas que se percorrem poderiam ser
espaços ameaçadores. Não pareciam ameaçadores para meu olhar europeu
[...]. Mas a ameaça era invisível: espíritos do mato ‘capturavam’ as pessoas
que entravam em seu domínio sem proteção ritual, fazendo particularmente
crianças desaparecerem na floresta para sempre. Esses espíritos podem
capturar adultos também, deixando suas vítimas loucas e sem orientação,
transformando-as em pessoas perturbadas que vagam pelas estradas e pelo
mato sem sentido de lugar. Naquela época, o perigo das estradas residia nos
espíritos e feiticeiros do mato que viajam à noite por elas, reunindo-se nas
estradas e atacando viajantes humanos sem sorte. Os rios, por sua vez, eram
as moradas de sereias sedutoras e ricas que poderiam fazer um homem rico,
mas ao custo de seu casamento, sanidade, e mesmo de sua própria vida.
(SHAW, 2002, p.49).
Uma consideração de Shaw que me parece interessante diz respeito à
transformação dos seres invisíveis que habitam as paisagens como rios e estradas em
Serra Leoa. Tais espíritos, ela observa, tornaram-se seres geralmente negativos,
“amorais” e “destrutivos”, que se localizam em áreas externas àquelas onde os seres
humanos se estabelecem. Excetuando-se os espíritos do rio ou do mato com os quais
alguns antepassados tiveram relações especiais e duas associações de culto (Poro e
Bondo) – ambos encontrados em lugares sagrados da floresta afastados da vila – apenas
dois tipos de santuários permaneciam e se localizavam com alguma centralidade.114
E
esses santuários, Shaw salienta, não eram espíritos da casa, mas forças que foram
humanas ou tinham sido: um santuário de um antepassado, outro de gêmeos (SHAW,
2002, p. 51- 52).
A percepção desses perigos implicou não somente uma modificação na maneira
como as comunidades falantes de Temne passaram a lidar com os espíritos encontrados
naquelas paisagens. A compreensão sobre as ameaças desses lugares ou que deles
poderiam chegar permitiu ainda que técnicas rituais de proteção (closure) e de confusão
visual (darkness) fossem empregadas.
Com relação às técnicas de prpteção, Shaw notou que os poucos ancestrais que
guardam uma vila são concebidos como “chefes de guerra”, “guerreiros”, que defendem
a comunidade dos espíritos do mato e dos feiticeiros, assim como a defenderam das
incursões humanas no passado. Para que a sombra de uma feiticeira falecida se
mantivesse longe da casa, pequenos machados foram cravados em um pedaço de
madeira em frente à porta. Se a sombra da mulher se aproximasse, foi dito a Shaw, os
ancestrais agarrariam os machados e lutariam com ela para afastá-la (SHAW, 2002,
p.55).
114
Shaw conduziu seu trabalho de campo em diferentes comunidades Temne, entre os anos 1970 e 1990.
200
[...] as possibilidades múltiplas de emboscada, captura, e incursão por
espíritos e (mais intermitentemente) ‘pessoas pequenas’ do mato recapitula
padrões de ataque que prevaleceram nos períodos dos comércios atlântico e
legítimo. Os espíritos ubíquos e vizinhos dos início dos séculos XVI e XVII
[...] não foram apenas banidos para o mato séculos depois. Eles também se
tornaram desonestos, transformados – com a exceção dos espíritos
domésticos da vila – de benfeitores que coabitavam em assaltantes
amplamente destrutivos. Em sua metamorfose e exclusão enquanto seres
externos, eles integram a violência dos comércios atlântico e legítimo no
lugar e no espaço, transformando a paisagem em uma paisagem de memória
(SHAW, 2002, p.56).
De acordo com ela, as técnicas de fechamento e confusão visual criam,
respectivamente, um estado de impenetrabilidade e ocultação rituais, na media em que
reelaboram os padrões de defesa que prevaleceram durante o comércio de escravos para
as Américas e dentro da África Ocidental.
Casas protegidas com “encantos” que impediam a penetração de espíritos do
mato e dos feiticeiros, pendurados internamente na porta ou no meio das vigas da
construção, elevando-se do teto, materializavam alguns dos “fechamentos” que Shaw
observou em Serra Leoa. Tratava-se de garrafas “místicas” ou amuletos islâmicos
benzidos em nome de Deus e dos ancestrais. O corpo humano também era submetido a
tais técnicas de fechamento. Amuletos sob a forma de pulseiras com búzios, presos ao
redor do corpo, e islâmicos, também envolvendo o pulso, eram usados especialmente
por crianças contra o ataque de seres invisíveis. Para os adultos, camisetas também
abençoadas feitas com tiras de tecido vermelho e branco cheias desses “encantos” eram
usadas sob as roupas como amuletos de proteção (SHAW, 2002, p.48).
Para Shaw, essas técnicas de fechamento associam-se às “armaduras místicas”
para o corpo, e à construção de fortalezas e paliçadas contra a invasão de guerreiros,
cujas brechas e pontos elevados funcionavam como locais de observação contra o
ataque e saque à procura de escravos (SHAW, p.58-59).
Com relação às técnicas de confusão visual, Shaw destaca os “encantos” e as
práticas de segredo ritual e verbal que a associação de culto Poro (masculina) elabora
para controlar os estados de “ocultação” ritual do corpo humano. Essa associação
responsável por treinar os guerreiros, bem como organizar e regular a guerra e a paz em
Serra Leoa contemporaneamente, conseguia, através de seus “encantos”, habilitar os
adeptos Poro a cruzarem estados em que a distinção entre “esse mundo” e o “mundo dos
espíritos” entrava em colapso. Aos adeptos eram conferidas capacidades tais como não
ser ferido quando agredidos por armas, habilidade que demonstravam em performances
públicas cortando-se a si mesmos com facas.
201
De modo semelhante a Shaw, Palmié, como venho chamando a atenção desde o
final do segundo capítulo, argumentou no sentido de que as técnicas rituais empregadas
nas regras del palo, especialmente aquelas que se utilizam das ngangas como um meio
de observar e adquirir informação através de espíritos enviados à casa de inimigos
rituais, poderiam ser concebidas como “armas de guerra”.
Shaw (2002, p.67) enfatizou que as transformações criadas com o comércio
escravo estão registradas em uma modificação da paisagem, na qual se deslocaram a
proximidade e intimidade dos espíritos do mato junto aos Temne. Mas essas
transformações estão também incorporadas na permanência de técnicas rituais que se
desenvolveram junto com essa forma de troca vivida como emboscada, invasão e
apreensão. Já Palmié assumiu que as táticas rituais empregadas na manigua (ou no
monte) recriam no trabalho ritual conduzido por paleros um universo conceitual em que
a cura de malefícios é alcançada através da agressão mística. De acordo com ele,
naquele contexto, obter o controle da própria subjetividade poderia significar privar
outros disso (PALMIÉ, 2002, p.177).
Eu retomo as discussões desses autores observando que elas não se replicam
diante das especificidades cronológicas e contextuais que caracterizaram, em cada lado
do Atlântico, a emergência de socialidades marcadas pela experiência de subordinação,
trabalho forçado e comercialização de africanos. Ao trazer a contribuição desses
autores, pretendo chamar a atenção para o que ambos apontam como formas de vida
forjadas pela instabilidade e violência no interior de “espaços precários” de existência
(SHAW, 2002, p.65; PALMIÉ, 2002, p.181-189).
São espaços precários que, parece-me, rondam os meus interlocutores
dominicanos e porto-riquenhos também hoje. Ao redor deles, no interior de suas casas e
na entrada dos negócios como as botânicas, eles descrevem ameaças que remetem às
táticas de guerra do monte baseadas em agressões místicas como o envio de espíritos.
Por se configurarem como práticas de ataque, essas agressões requerem também
resguardos de proteção que não são completamente estranhos às técnicas de fechamento
da casa e do corpo mobilizadas pelas comunidades Temne. É chamando a atenção para
esses aspectos que eu sugiro que as casas e os corpos, com e apesar dos mistérios, são
domínios da existência também precários.
Domínios sobre os quais parecem atuar também certas formas de
“improvisação” sobre atos rituais (mais ou menos) estáveis, como sugeriu Das (2010)
para os tipos de visões e sonhos nos quais indianos lhe diziam ter se tornado o alvo
202
específico do comando e do desejo de espíritos ou deuses que lhes escolheram
comunicar. Embora tais seres não tivessem nenhuma relação já codificada que, para
aqueles indianos, justificasse esse contato. Uma dessas “improvisações” rituais, comum
entre meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos que frequentam as botânicas e
que faz da casa um espaço instável de existência, remete ao envio da agressão mística.
Para isso, emprega-se uma técnica sobre a qual se comenta mais abertamente nas
botânicas: a invocação de espíritos intranquilos via orações à luz de vela, o que
direcionaria tais entidades instáveis para a casa daqueles que deveriam ser perturbados
do ponto de vista físico e emocional. As velas que dão luz aos mistérios poderiam
também deslocar espíritos que criam instabilidade.
Foi nesse sentido que propus, no final do terceiro capítulo, que o próprio monte
se tornou uma paisagem espectral. Ela assombra contemporaneamente meus
interlocutores dominicanos e porto-riquenhos sem que para isso seja importante a
objetifcação de espíritos individualizados. Essa paisagem do confronto místico não
mapeia, para os meus interlocutores, necessariamente pertencimentos nacionais, fatos
históricos registrados documentalmente ou personagens discretos e bem caracterizados,
como tentei indicar aos analisar os vestígios de Gran Toroliza no monte, que Gina
recuperou para si mesma e para mim ao narrar como ocorre a incorporação desse
mistério petro.
Pessoas como Joana, Rosa e Gina sabem que espíritos impetuosos e rebeldes
vivem nelas no monte (e nelas). Mas outras, como os clientes porto-riquenhos e
dominicanos que as procuram por causa dos sintomas da agressão mística em seus
corpos, não sabem disso obrigatoriamente e de antemão. E tampouco elas e seus clientes
fazem referência a qualquer espírito (ou petro) do monte.
Ainda assim Joana, Gina, Rosa, e seus clientes (ou familiares) lidam, em suas
casas e em seus corpos, com algumas técnicas de propagação de malefícios e de defesa
contra inimigos que estão fundados no envio do ataque. São essas técnicas rituais
específicas e as categorias que descrevem tais formas de agressão espiritual que se
fazem atuais no cotidiano dos meus interlocutores. Trata-se de viver em zonas
específicas de combate tais como havia salientado Palmié. É justamente enquanto uma
forma de socialidade que é sentida como algo da ordem da dispersão, da incerteza e da
dificuldade de definição e discernimento de espíritos reconhecíveis e individualizados
que a paisagem do monte subsiste, tornando-se ela mesma espectral.
203
De acordo com Rosa, por exemplo, as substâncias que ela manipulava ou
ensinava os clientes a fazê-lo são para vencer e dominar dentro de casa, afastando
ameaças espirituais através dos odores que amônia e aguarrás possuem. Joana, por sua
vez, durante certo tempo utilizou enxofre e pólvora, em combinação com plantas ditas
amargas, para espantar um morto humano que lhe foi muito íntimo, com que ela
conviveu por anos dentro da casa. O que está em jogo nessas técnicas rituais, eu
proponho, é o manejo de certas formas de dispersão que vigoram em conflitos. Tal
manejo de substâncias químicas são as armas de Rosa nessas novas guerras místicas.
Seus inimigos, como Shaw destacou, são entidades espirituais que não necessariamente
se equivalem: mortos familiares, mortos desconhecidos que perambulam pelas ruas, e as
coisas más. No entanto, para ela todas essas entidades deveriam ser afastadas ou
espantadas para o outro mundo, aquele da obliteração. O arsenal ritual contra essas
diferentes entidades espirituais Rosa encontrava em sua botânica.
5.2 BOTÂNICAS: ENTRE MATERIALIDADE E COSMOLOGIAS
O universo material das botânicas na Plaza del Mercado de Río Piedras, em
especial a de Rosa, era constituído por uma variedade de artigos religiosos como
imagens de santos e velas, objetos como colares e orações, produtos químicos e plantas.
Um primeiro olhar em direção à loja, que de modo mais imediato poderia ser visto
como simplesmente comercial, sinaliza a existência de uma série de incensos, velas de
variados tamanhos, sprays, frascos com líquidos coloridos – chamados de águas
espirituais e de óleos (aceites) –, banhos e despojos, sabonetes, especiarias (canela,
tipos diferentes de pimenta, mostarda, anis-estrelado, noz moscada), além de raízes e
plantas. Essas, no entanto, eram as mercadorias visíveis aos clientes.115
No interior da botânica, longe dos olhares mais interessados e curiosos, Rosa
guardava os produtos químicos como água de amônia, benzina, creolina e aguarrás,
cujos rótulos dos frascos indicavam tratar-se de produtos venenosos.116
Rosa explicou-
115
Como destacou Polk (2004, p. 22, 29, 31) em sua pesquisa etnográfica nas botânicas de Los Angeles,
particularmente na parte sul da Califórnia, dependendo dos sistemas religiosos e terapêuticos de cada
estabelecimento, revelavam-se os modos como os itens sacramentais eram utilizados, assim como as
maneiras pelas quais os altares, santuários e outros ambientes sacralizados eram construídos. 116
Long (2001, p.99), em seu estudo sobre o processo de mercantilização de “encantos” tradicionais e a
emergência de mercadorias espirituais fabricadas e comercializadas por empresas nos EUA que
expandiram a negociação de seus produtos nos anos 1920, chama a atenção para o caráter trivial de
muitos dos artefatos utilizados ainda nas primeiras décadas do século passado. Baseando-se nos dados,
entre outras fontes, coletados pela antropóloga e romancista Zora Neale Hurston durante o fim dos anos
1920 e o início de 1930 junto aos trabalhadores espirituais na cidade de New Orleans, Long (2001, p.55)
indica que vários dos ingredientes “mágicos” eram conservantes básicos e produtos de limpeza,
especialmente de uso doméstico (amônia, enxofre, assa-fétida, anil, detergentes). Nos relatos recuperados
204
me que cada uma dessas substâncias possui um cheiro e uma função: a benzina era
utilizada para vencer as coisas más, o demônio... para vencer e dominar na casa; a água
de amônia para sacar o demônio e os mortos maus (misturada a líquidos preparados
como banho); a aguarrás para vencer e limpar a casa; a creolina também para limpar a
casa. Também fora do alcance da visão, encontravam-se os pós, chamados de azufre
(enxofre) e precipitado rojo, e, sem menos cuidado, tabletes de anil, com o qual são
feitas cruzes nas paredes dos ambientes domésticos e no corpo após os banhos.117
As atividades de Rosa na botânica não se limitavam às vendas. Ali, ela
preparava também alguns trabalhos espirituais, como mencionei no primeiro capítulo.
Os de amor eram os mais comuns (mas não os únicos), e, geralmente, eram solicitados
por mulheres dominicanas e porto-riquenhas, jovens e adultas, o que não excluía a ida
de alguns clientes masculinos (que procuravam Joana também com freqüência)
solicitando especificamente isso.118
Para alguns desses trabalhos, os clientes compravam as mercadorias
recomendadas por Rosa, que as manipulava às vezes no interior da botânica. Alguns
clientes voltavam para comunicá-la que os trabalhos foram bem sucedidos, outros para
requerer dela a continuidade caso o efeito esperado não houvesse se concretizado. Entre
os clientes, havia aqueles que eram desconhecidos, que estavam ali pela primeira vez, e
outros que eram parentes ou vizinhos de Rosa, e a procuravam com certa regularidade.
Além dos trabalhos de amor, boa parte do cotidiano de Rosa na botânica
caracterizava-se por aconselhar e recomendar alguns clientes sobre a compra de certas
mercadorias para sacar as coisas más.
Porque ouvia a expressão com tanta frequência, perguntei-lhe o que eram as
coisas más. Rosa disse-me que eram a má sorte, a raiva, tudo isso… os maus espíritos.
Além das coisas más, existiam também os espíritos de boa sorte, espíritos que são
bons, porque os espíritos são maus e bons. Quis saber então se os espíritos maus
por Long em Spiritual Merchants, substâncias com odores fortes como, por exemplo, enxofre, amônia e
assa-fétida eram “encantos” de proteção. Já nos anos 1940, essas substâncias químicas e produtos básicos
de limpeza assumiram, segundo Long (2001, p.57), a forma de lavados de banho (para o corpo) e de piso
(para as casas). Tais lavados poderiam atrair indivíduos e influências desejáveis e manter pessoas
indesejáveis e maus espíritos afastados. Embora em alguns dos relatos reproduzidos por Long substâncias
como a amônia possam servir tanto para proteger como para a preparação de um “trabalho mau” (bad
work) (Long, 2001, p.59), a primeira forma de uso se associa às descrições que Rosa me ofereceu mais
acima. A autora ressalta que “encanto” é um termo europeu, cujo emprego é raro nos “sistemas de crença
de origem africana”. Long (2001, p. xvi) afirma que faz uso dessa noção como uma designação genérica
para os muitos nomes pelos quais tais artefatos são chamados. 117
O anil é um produto químico utilizado durante a lavagem de roupas para deixá-las brancas. 118
Rosa ensinava alguns trabalhos aos clientes que deveriam ser preparados com excrementos de animais.
Tais trabalhos eram considerados mais fortes.
205
poderiam ser chamados por seus nomes, como ocorre com os mistérios, se possuíam e
se apresentavam com características semelhantes às de pessoas. Rosa respondeu-me que
os maus espíritos são invisíveis... [os] que não necessitam porta aberta para entrar, são
como que invisíveis...
Para Rosa os espíritos têm a capacidade de intervir de diversos modos na vida
dos seres humanos. Suas ações podem ser sentidas em domínios como o espaço
doméstico e o corpo. Mas a presença dos espíritos maus seria percebida a partir de
indicadores específicos: – Quando alguém não dorme, sente calafrio, tudo se sai mal, se
desespera… há pessoas que querem tirar a vida, há pessoas que se enfermam… um
exemplo, se todo está se saindo bem e tudo se modifica [te cambia para trás], tudo te
sai mal, isso significa que há um espírito mau, Rosa me disse.
Durante as relações de compra e venda das plantas, notava que alguns clientes,
especialmente os imigrantes dominicanos detentores de certos códigos, cheiravam as
plantas, referindo-se à preparação de banhos doces e banhos amargos. Depois de certo
tempo, atentei que as plantas estavam organizadas na botânica de Rosa em dois grupos,
conforme seu odor e gosto. As perfumadas e adocicadas eram reunidas de um lado, as
acres, de outro. Perguntei à Rosa que plantas eram usadas para os chamados banhos
amargos e ela me deu alguns exemplos: quita maldição para retirar (sacar) a
maldição; anamú, para todo o mal, altamisa, rompe zaraguey; além de água de amônia
– ela completou – para sacar os mortos, espantar os mortos.
5.3 UMA SUSPEITA DE BRUXARIA: ATIVANDO ODORES ACRES, AFASTANDO
ESPÍRITOS MAUS
Em uma tarde na botânica a vi separando algumas plantas (albhaca, paçote,
altamisa, flor de libertad), um frasco de Espanta Diablo (banho e despojo espiritual),
duas velas brancas pequenas, duas velas grandes, de São Miguel (vermelha) e São
Santiago Apóstolo (lilás).
Após certo tempo, Luci, sua cunhada, chegou à Plaza del Mercado e Rosa
contou-lhe que Julio, seu primo, estava com problema; e que ela já estava com algumas
velas (branca, de São Miguel e de São Santiago). Ambas demonstraram preocupação.
Pouco depois, Rosa me chamou para acompanhá-la até a sua casa. Lá começamos a
conversar na cozinha. Ela pegou uma garrafa de rum – que havia comprado na Plaza
antes de sairmos – e de água florida. Ao abrir essa última garrafa, um pouco do líquido
respingou em seus olhos, e ela reagiu dizendo-me que quando isso acontece é porque o
santo quer mais.
206
Em seguida, ela me chamou até o quarto dos santos, onde mantinha um altar
para os mistérios, e disse-me que gostaria de me mostrar o que faria. Pôs água florida
em uma taça, a maior e central, que ficava na parte superior do altar. Em seguida,
molhou as mãos com a mesma água florida e borrifou um pouco sobre os santos. Ao
observá-la, perguntei-lhe por que o fazia, mas ela não me ofereceu resposta.
Voltamos à cozinha, e ela pôs as plantas que havia trazido em um recipiente com
água e depois as levou para ferver. Começou então a fazer um remédio contra gripe que
seria armazenado em garrafas a pedido de um parente que estava com a filha doente e
de um amigo. Enquanto isso Rosa falava ao telefone com familiares na República
Dominicana sobre os problemas do seu primo Julio. O banho que estava sendo
preparado seria para ele.
Ao telefone, ela informava que Julio e outro primo têm espíritos na casa e que
os espíritos querem matá-los. Na conversa, ela fazia referência a um lugar em Santo
Domingo (nome da capital do país, mas que os dominicanos empregam de forma
genérica para qualquer cidade e local da República Dominicana) no qual bruxas faziam
trabalhos (e Julio poderia ter sido alvo delas) e a uma mulher haitiana.
Depois que Rosa encerrou a chamada telefônica, eu aproveitei a situação em que
nos encontrávamos e quis saber com quem ela havia aprendido a preparar o remédio e
os banhos. Ela sabia preparar as garrafas porque observava sua mãe, mas começou a
fazê-las sozinha; já os banhos, ela aprendera sem observar ninguém, pois sua mãe, ela
me disse, não gosta dessas coisas. Para Rosa, um saber como o que detinha ocorre
quando as pessoas nascem com esses dons.
Por causa do que conversávamos, interessei-me em entender desde quando ela
tinha o altar dos mistérios. Evitando se prolongar, ela respondeu sucintamente que
começou a organizá-lo desde que arrendou a botânica.119
Rosa silenciou-se. Após
alguns segundos comentou que, quando era mais jovem, já tinha santos, sob a forma de
pequenos quadros, em San Francisco de Macorís, sua cidade na República Dominicana.
Disse-me isso e novamente calou-se. Percebi que ela não queria conversar sobre o que
tinha acabado de associar: a obtenção da botânica e o início da organização do altar.120
Eu a ajudava a cortar as plantas para a preparação das garrafas, quando o
telefone de Rosa voltou a tocar. Alguém estava na Plaza e queria conversar com ela.
119
De uma senhora porto-riquenha que, algumas vezes, vi indo à Plaza para receber o valor do
arrendamento. 120
Durante a viagem que fiz com Rosa até San Francisco de Macorís, soube que ele fez uma festa para
São Miguel no ano anterior, em 2009, na casa de seu padrinho nos mistérios, tio de Diogo.
207
Nós então regressamos até lá. Alguns minutos depois chegaram Pablo, também seu
primo, com a companheira.
Eles já haviam estado ali outras vezes. Em uma dessas idas, o casal havia
passado um bom tempo no interior da botânica conversando com Rosa. A moça estava
enfrentando alguma dificuldade onde trabalhava. Depois de ouvi-los, Rosa indicou que
comprassem, entre outras coisas, água florida, tabletes de cânfora, algumas plantas
como arruda, águas espirituais, benzina, incenso e uma vela grande de São Miguel. E
explicou-lhes: primeiro, a moça deveria limpar seu corpo com um banho e depois
acender a vela em nome do santo. Simultaneamente, deveria espalhar pela casa, com a
mão direita, um produto que me pareceu uma espécie de açúcar, cujo rótulo indicava 7
Potências Africanas. Além disso, Rosa recomendou à moça a limpeza de objetos como
a mesa do local em que trabalha com a benzina.
Agora, o retorno à botânica também tinha a ver com assuntos espirituais. Pablo
era o outro primo a quem Rosa se referiu no telefonema que recebeu da República
Dominicana.
Ao fim da tarde, depois que fechamos a botânica, regressamos à sua casa. Já
havia anoitecido quando Rosa pediu à sua irmã que a ajudasse com o banho de Julio.
Sua irmã, no entanto, argumentou que não era boa para orar em voz alta, que fazia isso
para si e não para os outros; saiu da casa e só retornou depois que o primo Julio, com a
família, já tinha ido embora.
Rosa então começou a preparar uma defumação (sahumerio), queimando
incensos para fazer uma limpeza com a fumaça. Amarrou ao redor de sua cabeça um
pañuelo lilás, e passou a fumaça (humo) pelo próprio corpo: entre as suas pernas e,
depois, envolta do corpo, girando-o para a direita e então para a esquerda. Espalhou a
fumaça pela cozinha, pelo corpo da filha do primo (que não queria), pelo meu corpo –
dizendo que me queria limpa –, e pelo corpo da companheira de Julio. Nós repetíamos o
mesmo sentido dos movimentos de Rosa. Enquanto isso, Julio se encontrava no
banheiro da casa.
Rosa acendeu a vela de São Miguel na entrada da porta da sala e a de São
Santiago levou para o quarto dos santos, colocando-a no altar. Ela acendeu as velas
brancas pequenas no banheiro onde o primo estava, e passou a fumaça pelo corpo dele.
Rosa então pediu que a companheira do primo levasse o banho, feito com as plantas
fervidas em água e misturado ao despojo Espanta Diablo, até o banheiro. Nesse
momento, aconselhou a mulher a ficar junto com eles para aprender como isso era feito.
208
Ao sair, Rosa disse que o primo realmente não estava bem. Ela sabia disso em
função de uma indicação material: a pulseira (com imagens de santos) que ela usava em
seu braço explodiu (plotar) enquanto ela realizava o banho nele.
Enquanto Julio se vestia, Rosa perguntou à companheira dele se na casa em que
viviam havia uma cruz, um crucifixo, e apontou para uma imagem (busto) chamada de
Grande Poder de Deus, localizada em sua sala. Recomendou, após comentar que o casal
não tinha nada em casa, que eles comprassem aqueles objetos e pendurassem na porta e
parede – assim como ela o fez – e que a mulher também fizesse a defumação no
apartamento em que vivia com Julio e a filha. Antes que eles se fossem, Rosa deu um
pouco de incenso para a companheira do primo, além de cascarilla (pó feito com casca
de ovo) e um frasco que, pela embalagem, poderia conter água de amônia ou benzina.
Além disso, quis saber se ela havia aprendido a preparar a defumação.
Quando Julio saiu do banheiro, Rosa quis saber como ele se sentia: se aliviado e
se sua pele ardia (picaba). Ele sentia ardência na pele. Sua companheira comentou que
era por causa da amônia. Rosa, no entanto, replicou. Segundo ela a sensação de ardência
de Julio não era devido à amônia, pois no banho não haveria essa substância.121
Sentados na sala, Rosa continuou a fazer algumas perguntas a Julio. Queria
saber se ele estava dormindo bem durante a noite e se vinha tendo sonhos. Rosa, Julio e
sua companheira acabaram afirmando que vinham sonhando com algumas pessoas, que
incluíam mortos da família. Rosa indagou se o primo gostaria de voltar para Santo
Domingo, que atualmente há voos mais baratos para o país e, se ele desejasse, poderia
ficar em sua casa naquela noite ou dormir ali até se sentir melhor.
Eles conversaram um pouco mais, e o casal foi embora com a filha. A irmã de
Rosa retornou à casa e logo depois chegou um vizinho dominicano. Conforme a irmã de
Rosa, quando o telefone tocou bem cedo, naquela manhã, por causa de uma ligação de
Santo Domingo, ela se assustou, pois era sinal de que algo grave acontecia. Os três
iniciaram uma conversa relacionada ao que estava acontecendo com Julio. O vizinho
contava alguns casos sobre bruxaria em Santo Domingo e em Porto Rico. Rosa
argumentou que o trabalho feito para o primo era uma bruxaria, e ela e o vizinho
suspeitaram de uma mulher da República Dominicana. Eles desconfiavam da pessoa
com quem Julio era casado e tinha filhos. Acreditavam que ela desejava que ele
regrasse.
121
Em geral, as soluções vendidas como banhos e despojos têm em sua fórmula alguma quantidade de
amônia informada no rótulo.
209
Tanto Rosa como o vizinho argumentavam que o retorno do primo deveria
acontecer por causa da outra família que ficou na República Dominicana. Segundo
Rosa, o próprio primo lhe disse, enquanto conversavam após o banho, que não queria
mais ficar em Porto Rico. Mas a atual companheira não concordava com a sua decisão.
O vizinho então cogitou se Julio pretendia ir para Nova Iorque ou Canadá. Rosa
argumentou que ele desejava regressar para Santo Domingo mesmo. Para ela, a
bruxaria que foi feita já apresentava seu resultado: o trabalho fez com que Julio não
gostasse mais da companheira (também dominicana) com quem vivia em Porto Rico, e,
tendo percebido isso, ele desejava partir.
Para o vizinho, pessoas como Julio poderiam ficar loucas. Rosa então comentou
que o primo vinha escutando em sua casa uma voz que lhe dizia se mata, se mata. Tudo
o que ela havia preparado naquela noite pretendia interromper a influência de espíritos,
enviados da República Dominicana, sobre Julio. Para Rosa, Julio era uma pessoa que
sofria de depressão – o próprio primo teria dito isso a ela –, assim como um tio dela
chamado Humberto.122
Seu vizinho ainda mencionou outros casos de bruxaria, e a
impressão que tive era de que longe de ser uma exceção, essa noção era mobilizada
regularmente no cotidiano de Rosa e sua família.
No dia seguinte, Rosa recebeu na Plaza outra ligação, provavelmente de seu
país. Nessa ocasião, avisou por telefone que Julio está com uma coisa forte atrás.
Enquanto ela trabalhava na botânica, a companheira de Julio chegou. Depois de
conversarem um pouco, a mulher comprou algumas plantas, dentre elas um vaso com
arruda para pôr na casa, uma vela grande dessa planta, além de outras. Julio teria que
tomar outro banho naquela noite. E ele assim o fez.
Ao cair da noite ele chegou. Rosa, novamente, começou pela defumação da casa
e dos corpos das pessoas. Depois do banho – que vinha sendo realizado durante esses
dois dias com o primo chorando, Rosa havia comentado –, mais uma vez ela quis saber
se ele se sentia melhor, insistindo na pergunta. Ele disse-lhe que sentia uma dor muito
forte na cabeça, que lhe impedia de dormir; diante disso ela voltou a oferecer sua casa
para ele ficar naquela noite. Em seguida começou a ler orações de um livro vendido na
botânica, particularmente a de Santa Clara, e quando acabou preparou um resguardo
122
Em uma conversa que tive com Humberto ele disse-me que enquanto trabalhava em Nova Iorque
sofreu depressão e tinha a sensação de que havia malogrado naquela cidade. Seu retorno a Porto Rico
parece que demandou algum tipo de intervenção de Rosa como no caso de Julio.
210
com três dentes de alho amarrados em uma linha branca para o primo prender em seu
pulso, e um pedaço para ele guardar na carteira.
Na manhã seguinte, enquanto nós duas estávamos na botânica, eu conversei com
Rosa acerca do que ela vinha fazendo com Julio. Ela me explicou que isso é como um
medicamento. Se eu estivesse enferma, ela me interrogou, oferecendo em seguida a
resposta, Tu buscas o medicamento... Se tu tens uma dor de cabeça, o que vais tomar.
No caso de Julio, o que ela lhe preparou foi um banho para sacar as coisas más.
Contudo, além do banho, Julio também precisou ser untado.
Ele teria que voltar à casa de Rosa para tomar o terceiro e último banho, mas não
foi até lá como vinha fazendo. À noite, enquanto o esperava, a família se reuniu, e
novos comentários surgiram a respeito do primo. Eles acreditavam agora que poderiam
ter sido os próprios parentes de Julio na República Dominicana que fizeram um
trabalho de bruxaria para que ele regressasse.
Só vi novamente Julio depois de alguns dias, durante um sábado. Ele foi até à
Plaza para ajudar Rosa com as vendas das verduras e frutas, e passou todo esse dia entre
nós. Quando retornei a Porto Rico pela segunda vez para dar continuidade ao trabalho
de campo, Julio não vivia mais na ilha. Havia viajado para Nova Iorque, onde passou a
residir. Sua companheira e filha permaneciam em Río Piedras.
5.4 TÉCNICAS ESPECTRAIS
Quando chamei a atenção no início deste capítulo que as descrições sobre as
interações entre as coisas más e os seres humanos funcionam como uma espécie de
contraponto às relações das pessoas com os seus mistérios, essa observação se baseou
em algumas maneiras como os meus interlocutores dominicanos exprimem a
aproximação daqueles espíritos indesejados. Tais modos de exprimir percorreram as
descrições acima.
Os mistérios se apresentam (dizem seu nome) para aqueles que têm esses
espíritos. E, a partir do momento em que são invocados, os móveis que se encontram na
direção da passagem da porta da casa devem ser retirados, como sinalizei no segundo e
quarto capítulos. Retirando-se os obstáculos que estão em seu caminho, os mistérios
adentram. Quando perguntei à Rosa o que eram as coisas más e ela me respondeu que
eram espíritos invisíveis que não precisam de porta aberta para entrar, sua resposta
procurava indicar o fato de que os mistérios têm o seu ingresso permitido nos ambientes
domésticos por aqueles que são pessoas. E isso inclui dar passagem a eles abrindo
também as portas. Em muitas situações, como descrevi ao longo da tese, eles são
211
invocados para a condução e realização das tarefas espirituais. Eles estão na casa, nos
altares. Ao mesmo tempo por aí, trabalhando em diferentes cabeças (humanas). Desse
modo, precisam chegar.
Por sua vez, as coisas más são concebidas pelo seu caráter completamente
invasor e desconhecido. Esses espíritos maus, como também são chamados, não são
passíveis de ser identificados. Nesse sentido, estão alheios a um enquadramento como
aquele dos mistérios que passam pela família, que se fazem reconhecer e são
reconhecíveis por uma pessoa por causa das relações prefiguradas dos antepassados
com eles.
Outro contraponto que merece ser enfatizado não diz respeito ao estatuto dessas
entidades, mas sim ao modo como elas interferem na vida dos seres humanos. Esses
espíritos agem sobre o corpo dos vivos, produzindo sensações de calafrio, dores de
cabeça, insônia e são capazes de materializar-se fora do domínio corporal: suas vozes
são ouvidas, objetos explodem (plotar) – o que me parece uma forma de experienciar
esse tipo de conflito com base em indicações sonoras – 123
quando estão sob a sua ação.
No entanto, quando se fala do corpo, o que eu ouvi comumente é que ele ou ela tinha
um morto atrás: – Julio está com uma coisa forte atrás, foi como Rosa comunicou aos
familiares na República Dominicana a situação do primo. Nas costas dos vivos,
sobrepondo-se como uma espécie de sombra (algumas pessoas são capazes de visualizar
isso), que as coisas más se alojam.
Essa forma de incorporação é diferente, como discuti no primeiro capítulo, do
percurso interno que Gina sente antes que os mistérios a tornem seu cavalo. Além disso,
nesse momento, outros mistérios se fazem presentes no ambiente, nas laterais de seu
corpo. E mesmo quando não se trata de montar ou subir, o que as pessoas dizem estar
em jogo nas modalidades relativas de incorporação é a cabeça, que aparece como a
parte do corpo humano a que os mistérios se juntam.
Ainda no que concerne ao corpo, atrás dos vivos, as coisas más (ou mortos de
uma maneira geral) conseguem circular em ampla medida: entre casas e locais de
trabalho, pelas botânicas e pelos altares, levados por aqueles que buscam se consultar
com os mistérios, por exemplo. Como uma espécie de condutor, o corpo dos seres
123
Durante o período em que trabalhei com Rosa na botânica e em seus postos de venda de verduras e
frutas na Plaza del Mercado, percebi que o barulho acentuado decorrente da queda das caixas das
mercadorias gerava nela e em Diogo certo incômodo e insatisfação. Logo que tal fato ocorria, eles
direcionavam seus olhares rapidamente para mim. Depois de um tempo percebi que a atitude deles
indicava que espíritos indesejáveis, além de nós, poderiam estar presentes ali, derrubando
intencionalmente as suas mercadorias no chão através de mim.
212
humanos, que pode atrair esses mortos espontaneamente, é concebido não apenas como
portador dessas ameaças, mas também como meio de sua propagação.
Armando, por exemplo, mantinha em seu altar um vaso ao redor do qual havia
várias fitas coloridas, cada uma com a cor referente à divisão dos mistérios. – Uma
pessoa que vem [ao altar] com um espírito mau, Armando me explicou, poderia beber da
água contida no vaso ou colocá-la sobre a cabeça. Esse símbolo, ele me disse referindo-
se ao jarro cujas fitas o circundavam, são os 21 espíritos (21 División). Outro símbolo
dos mistérios em seu altar era os tecidos coloridos suspensos ao teto e centralizados,
uma proteção do altar, significam os 7 mistérios [principais], às vezes vêm espíritos
maus, vêm com uma pessoa ou sozinhos... os panos ao meio, os protegem Deus e os
mistérios, Armando concluiu. Além disso, Armando possuía pendurado ao teto do altar
um resguardo: uma cruz enrolada em fitas suspensas (vermelha e verde, as cores de São
Miguel), um embrulho e patas de algum animal.
Mas se esses espíritos maus podem difundir-se pelos ambientes de convívio
humano agarrando-se aos vivos, é o entendimento de que se trata de um combate que
ganhe realce nas considerações de Rosa. Como ela me explicou, as substâncias
químicas como a benzina e a aguarrás são manipuladas para que os seres humanos
vençam as coisas más, para que consigam dominar na casa. Do ponto de vista de Rosa,
o que se passa em seu ambiente doméstico é uma guerra mística com seres invisíveis. E
esse confronto não se limitava à sua casa, mas a de tantos outros a quem ela
recomendava na botânica os mesmos produtos e usos para afastar as coisas más.
Produtos e usos que, como Long (2001) demonstrou, eram completamente difundidos
entre os trabalhadores espirituais negros nas primeiras décadas do século XX nas
antigas áreas de plantações escravistas do sul dos EUA.
É essa imagem do conflito propagado no interior da casa, travado com seres
desconhecidos que ali teriam chegado por causa de técnicas rituais que procuraram
controlá-los e direcioná-los para gerar o infortúnio (físico e emocional, como no caso de
Julio), que meus interlocutores sentem materializar-se no seu dia-a-dia.
Como Shaw salientou em sua discussão sobre os Temne, essas experiências
descrevem uma forma de instabilidade radical na medida em que é pervasiva aos
espaços de convívio cotidiano. No caso dos meus interlocutores dominicanos, um
espaço familiar íntimo e visivelmente coabitado por seres humanos e os mistérios. Mas
a instabilidade também é radical porque as coisas más, a partir de sua aproximação dos
seres humanos, retiram destes o próprio controle subjetivo, como Palmié indicou. A
213
invisibilidade da agressão, da fonte do dano, da potência mística que invade e toma o
controle de si, dos desejos, do sono, da casa e incita ações como o suicídio, é vivida
como uma paisagem espectral.
Trata-se, parece-me, da compreensão de que a vulnerabilidade humana é
máxima diante da possibilidade de que diferentes modalidades de dano podem ser
experienciadas indiscriminadamente uma vez que sejam lançadas de qualquer parte.
Rosa cogitou, primeiro, um lugar onde mulheres haitianas fariam bruxaria em Santo
Domingo. Depois a esposa de Julio que permaneceu em San Francisco de Macoris, na
República Dominicana, enquanto ele imigrou para Porto Rico. Por fim, os parentes dele
que também permaneceram no país.
Diante do que afligia e perturbava Julio tanto física e emocionalmente, bem
como da dúvida quanto a quem deveriam ser imputados tais malefícios, o que Rosa e
seus familiares conseguiram mais ou menos articular como conhecimento significativo
é que a situação do primo dizia respeito a um trabalho de bruxaria. O que pode ter
sido, um dia, uma forma ritual de ataque como meio de cura (Palmié, 2002) para os
interlocutores se trata atualmente de uma forma de fazer dano.
Alguns trabalhos contemporâneos sobre modalidades de bruxaria na África têm
salientado que a mercantilização de espíritos humanos como trabalhadores forçados em
outros domínios do cosmo para o enriquecimento ilícito e dos próprios seres humanos
através do roubo de sua vitalidade orgânica, especialmente do sangue, comercializado
com vistas ao lucro e bem-estar de bruxos, seria um comentário crítico às
transformações globais seculares e contemporâneas no continente: ao deslocamento
forçado, à precariedade das formas de trabalho urbano assalariado, especialmente o
migrante, ao imperativo da venda e do consumo massivo de produtos de alta tecnologia
e de bens menos duráveis a partir de uma lógica máxima de obtenção do lucro, à
expansão concentrada e elitista de infra-estrutura e serviços urbanos (COMAROFF &
COMAROFF, 1999; GESCHIERE, 2006; SHAW, 1997; WEISS, 1999).124
124
Esses trabalhos enfatizam lastros históricos diferentes, especialmente o de Shaw, que defende uma
abordagem de longa duração baseada no comércio atlântico de escravos, e não nas mudanças globais mais
ou menos recentes em comparação a amplitude que a primeira forma de troca assumiu.
Metodologicamente o de Weiss também se diferencia. Ainda que ele discuta a captura de seres humanos
para a extração de sangue humano, de acordo com os rumores e as narrativas entre membros Haya de
comunidades rurais na Tanzânia, Weiss afirma que isso não é atribuído exatamente a espíritos ou
feiticeiros do mato, mas sim a “pessoas gananciosas” que vivem nas cidades e enriquecem através do
comércio de tal substância corporal. Para Weiss (1999, p.174), as compreensões acerca da transformação
do sangue em mercadoria que gerava o enriquecimento de outros estariam predicadas na maneira como
essa substância era conceituada entre os membros Haya. Nesse sentido, tais entendimentos não
214
Muito embora narrativas semelhantes de escravização de entidades espirituais
perpassem o cotidiano dos interlocutores dominicanos que conheci – e a imagem do
bacá, que apresentei no segundo capítulo demonstra isso – a bruxaria como “uma
ubíqua e inevitável parte da experiência vivida” (SHAW, 1999, p.867) entre os
dominicanos e porto-riquenhos assume menos a imagem de canibalismo, vampirismo e
trabalho forçado. O que parece ter maior relevância é uma compreensão sobre perigos
que estão dispersos, difusos, que são lançados no ar (e no chão, como os pós, outra
forma de bruxaria sobre a qual me foram dados comentários). Nesse sentido, tais
técnicas rituais são espectrais não simplesmente porque assustam, mas também porque
estão amplamente propagadas.
Defender-se dela implica em limpar a casa e os corpos. Enquanto morei com
Rosa e sua família, nos dedicávamos a essa tarefa com certa rotina. Já Diogo preparava
seus banhos com certa dose de amônia, especialmente quando sentia que sua vida não
se desenrolava como ele gostaria. E, no decorrer de uma sequência crítica de eventos,
em que tecatos entraram na garagem da casa e roubaram sua caixa de ferramentas e
instrumentos de reparo do automóvel, comigo dentro dela mas sem que eu escutasse
qualquer barulho, e, posteriormente, seu carro de passeio foi roubado, seus banhos
amargos procuravam afastar o que ela via como impedimento à sua sorte.
Neste contexto tenso para Diogo, particularmente, eu já vinha frequentando
vários altares. Ele não aprovava isso e acabei sendo vista como alguém que poderia
estar levando junto comigo, para a casa deles, a má sorte sobre a qual meses antes Rosa
me falara: [...] se todo está se saindo bem e tudo se modifica [te cambia para trás], tudo
te sai mal, isso significa que há um espírito mau.
Limpando a casa, Rosa procurava evitar e expulsar essas entidades.
Especialmente no caso de Julio, seu primo, no qual ela se engajou porque é uma pessoa
que têm os mistérios, o corpo dele foi submetido aos lavados de banho e a certas
plantas. Exalando um forte odor acre, essa composição líquida extrairia dele, mais
precisamente detrás dele, a influência negativa dos espíritos maus. A materialidade
particular de plantas como a altamisa e o paçote e do Espanta Diablo (cuja fórmula
indica alguma quantidade de amônia) caracteriza-se por um cheiro acre que age sobre a
assumiriam a mesma forma em relação a outras narrativas sobre o mesmo assunto na África Oriental, nem
descreveria simplesmente bruxaria.
215
sensibilidade dos vivos e dos mortos.125
Afeta, nesse sentido, o que está difuso, muito
próximo à pele e às superfícies, mas é invisível.
O princípio ativo da técnica de limpeza do corpo de Julio fundamenta-se no
pressuposto de que ele e as coisas más partilham uma experiência sensível vinculada ao
olfato. Isso, apesar de seus distintos estatutos. Afetar-se aparece assim como um
movimento perene entre vivos e espíritos, que tende a remeter mais ao que é comum
entre ambos do que àquilo que os separa. Mas afastar ou espantar pelo odor, parece-
me, poderia significar que se está lidando com uma dimensão sensível produzida pelas
táticas que descrevem a vida precária das paliçadas e trincheiras: cenários repletos de
adaptações como aquelas dos montes caribenhos e de alhures, conforme o santero
entrevistado por Robaina indicou.
5.4.1 Outras receitas para espantar os mortos
Duas mulheres entraram na botânica onde Joana podia ser encontrada todos os
dias. Uma era mais velha, a outra mais jovem. Eram mãe e filha que a procuravam,
como depois soube. Joana já estava sentada no espaço reservado em que sempre
realizava as consultas, atrás do balcão. Quando a mulher mais jovem se dirigiu até
Joana, ela tocou o sino. As duas permaneceram ali. Muito tempo depois, a mulher saiu
com um papel em suas mãos. Uma longa lista que continha muitos itens escritos.
A jovem mulher se dirigiu à dona da botânica, uma senhora também
dominicana, que ao ler a lista, reagiu: – Você está bem má! Em seguida, separou arruda
e alecrim, Espanta Muerto (uma água espiritual que ela mesma traz da República
Dominicana), água florida, Quita Maldición (um álcool) e creolina, informando
novamente à jovem cliente que traz a última substância da República Dominicana
porque a que se vende em Porto Rico não é como a de seu país. A dona da botânica
ainda separou um banho Rompe Brujo, uma vela grande com esse mesmo nome e um
spray Corta Fluído.
Dirigindo-se aos fundos da botânica, ela pegou ainda um saco no qual guardava
mata guangá, e pediu que a cliente o segurasse. Um cheiro ruim se propagou pelo
ambiente. Imediatamente, a dona da botânica voltou a afirmar que a jovem estava bem
má. E explicou-lhe: o cheiro putrefato que sentíamos era porque a moça tinha algo em
cima. Quando ela mesma foi até os fundos da botânica e pegou a sacola com a mata
guanguá, nenhuma de nós sentiu tal odor.
125
Uma “materialidade partilhada de vivos e mortos”, como observou Ochoa, em que “os mortos são
contíguos e imediatos aos vivos” (OCHOA, 2004, p.18).
216
Enquanto a jovem segurava a sacola com a mata guanguá, passou a mão duas
vezes por seus braços, como se sentisse arrepios. A dona da botânica argumentou,
então, que após o banho com a mata guanguá, a jovem sacará o que tem em cima. Toda
a compra custou mais ou menos sessenta dólares, se não um pouco mais. Passou-se
certo tempo, e a mãe da jovem saiu junto com Joana do espaço da consulta. Sua
consulta tinha chegado ao fim. Feliz, a senhora porto-riquenha disse que sempre tinha
amor perto dela, e que não tinha algo mal como a filha. Mas também lhe foi indicado
um banho, provavelmente para manter a boa sorte.
Enquanto a dona da botânica separava as mercadorias para essa senhora, ela
voltou a fazer outro comentário, agora, sobre o que se passava com a sua filha: – Estão
lhe lançando para matar (Están tirándole para matar).
Antes de ambas irem embora, a jovem perguntou à Joana o que deveria fazer
com tudo aquilo que comprara. Joana pediu para ela, primeiro, limpar a casa e depois
tomar o banho. A dona da botânica interferiu. Disse-lhe que depois deveria tomar um
banho doce, pois já teria sacado... Joana lhe disse, por fim, para usar o spray na casa e
então acender a vela.
Mãe e filha já tinham ido embora, quando Joana disse-nos que a jovem foi ali
havia algum tempo. Depois disso, teria ido a um santero, mas não gostou. Como havia
gostado da primeira consulta com Joana, decidiu retornar. Joana argumentou que há
quem jogue as cartas e ao saber que foi feita bruxaria para o cliente, o desespera,
dizendo-lhe: – Olha, tem um morto atrás de você, te fizeram bruxaria. Eu prefiro
orientar a pessoa e não desesperá-la. Se o cliente deseja saber quem está agindo dessa
maneira, Joana não lhe conta. Se uma pessoa vai morrer, Joana não pode lhe informar;
deveria lhe pedir para procurar um médico porque está enferma; se há traição, pedir
cuidado, mas não falar ao cliente isso diretamente, completou a dona da botânica.
Para Joana, uma pessoa pode atrair um morto para perto de si apenas andando na
rua ou se tornar alvo de uma bruxaria se pisar em algum pó colocado na calçada para
outros. Em Porto Rico, ela observou, seria ainda pior, pois não se tinha o costume de
rezar pelos mortos, sobretudo, realizando missas: – Os mortos precisam de claridade e
orações, ela concluiu. A dona da botânica então comentou: – Os mortos gostam de
coisas boas, carros, mulheres bonitas [e rondariam aqueles que têm automóveis para
não andar a pé assim como uma bela mulher]. Os mortos são ambulantes, a dona da
botânica sintetizou. E, então, comentou: – Há mortos que não querem sair de casa.
217
Ao ouvir esses comentários, Joana começou a me contar o que aconteceu com o
seu marido depois que ele faleceu. Ou melhor, com o espírito dele, depois que se
suicidou.
5.4.2 Joana e seu morto
No primeiro dia após o suicídio de seu marido, na cidade de La Romana, Joana
decidiu realizar uma missa em sua casa. Antigamente, ela me disse, as chamadas Horas
Santas eram realizadas por nove dias, mas atualmente não era assim que ocorria.
Somente quando se completaram nove dias do falecimento do marido que Joana
realizou uma Hora Santa em casa. Para isso ela convidou muitas pessoas. Era um dia
chuvoso e foi preciso instalar uma lona para evitar que os convidados se molhassem.
Uma forte ventania retirou, no entanto, essa proteção. E as pessoas buscaram abrigar-se
nos lugares cobertos da casa. Joana nunca havia visto um vento como aquele. Para ela,
foi o espírito de seu marido que retirou a lona que protegia os convidados da chuva.
Ele permanecia na casa em que Joana seguiu vivendo com as filhas depois da
morte dele. Por causa disso, Joana precisou fazer muitos remédios para sacar o espírito
da casa, assim como tomar vários banhos, com alhos e folhas. Um desses remédios foi
utilizando o que, na República Dominicana, é chamado de velón 7 Mechas, no interior
da qual podem ser encontrados enxofre (azufre) e pólvora (fula).126
Depois de comprar
essas velas grandes, Joana aumentou a quantidade de enxofre – uma coisa que espanta
morto, certa vez ela me disse – e pólvora. Ela adicionava mais dessas substâncias às
velas para que o espírito fosse embora, para quitar da casa.
Durante esse período, objetos e mobiliário se rompiam no interior de sua casa, e,
em algumas situações, faltou pouco para ela se ferir gravemente. Joana também sonhava
com seu marido em La Romana. Em um desses sonhos, ele estava no chão e ambos
brigavam; ela tentava agredi-lo com força, mas não conseguia. Depois de fazer vários
remédios – acender as grandes velas 7 Mechas repletas de enxofre e pólvora e tomar
126
Segundo Ochoa (2004, p.94), fula, no palo Kikongo atual (língua ritual utilizada nas regras del palo)
significa pólvora, que é importante no ofício religioso. Ele explica que fula não tem nenhuma etimologia
no espanhol. Ochoa explica que a pólvora é “quente” não apenas em termos de temperatura quando é
acesa, mas também porque se proíbe sua venda e posse em Cuba, e, por isso, adquire-se pólvora pelo
roubo. Rodolfo, interlocutor de Ochoa, usava fula para pólvora e para referir-se ao dólar americano.
Joana, enquanto vivia em La Romana, trabalhava ritualmente com alguns espíritos petroses, e comentou
algumas vezes comigo que usava pólvora para afastar as coisas más da casa de clientes, em função de seu
som explosivo. A concepção de que essas entidades também são mais quentes (calientes) perpassa o
emprego da pólvora na invocação ritual dos petroses.
218
banhos amargos –, ela teria alcançado seu objetivo: quitar o espírito de seu marido da
casa.
Nove meses tinham se passado desde que ele faleceu e Joana imigrou para Porto
Rico no início dos anos 2000. Nesta ilha caribenha, no entanto, teve novamente outro
sonho com o espírito do marido. Nele, seu marido dizia-lhe que ela queria sacar ele da
casa, mas quem a sacou da casa foi ele. Sua imigração para Porto Rico, desse modo,
assumia outros sentidos que não apenas a necessidade de manter a si nessa ilha e as
filhas em La Romana, trabalhando os mistérios sem os papéis, expressão utilizado pelos
imigrantes dominicanos para referirem à condição de ilegais.
Mas esse comunicado, durante o sonho em Porto Rico, não foi tudo. Joana
residia havia um ano nessa ilha, quando o espírito de seu marido descobriu onde ela
estava. Com ele atrás dela, Joana não conseguia se relacionar com ninguém. Para além
de tudo o que implicava ter um morto atrás – sinônimo de atraso, como ela sempre
insistia –, Joana se deparava com mais um problema: ter de se tornar legalizada após a
entrada clandestina em Porto Rico.
A estratégia de muitos homens e mulheres dominicanos que pretendem se
estabelecer em Porto Rico é contrair o chamado casamento por negócio. Essa é a
maneira como procuram obter o direito de residir na ilha, um território norte americano.
Joana também se enveredou nesse caminho, e por duas vezes, pois no primeiro
casamento por negócio seu esposo porto-riquenho faleceu. Quando a conheci em
outubro de 2010, ela já havia se casado novamente com outro senhor porto-riquenho,
com quem chegou de fato a dividir uma residência. Isso, no entanto, só foi possível
porque Joana mobilizou um dos mistérios que atende: São Elias/ Barão do Cemitério.
5.4.3 Comprando com São Elias: de pedras a mortos ou de anônimo a afim
Depois que o espírito do marido descobriu Joana em Porto Rico, ela decidiu
comprar um morto para São Elias. Como descrevi no terceiro capítulo, São Elias/Barão
do Cemitério é responsável, junto a outros guedeses, pelos mortos humanos. Herdado e
atendido por dominicanos e haitianos, São Elias é também conhecido entre os porto-
riquenhos que frequentam as botânicas ou passam por consultas espirituais diretamente
com esse espírito.
Joana foi até um cemitério e procurou a sepultura de São Elias.127
Escolheu
então uma pedra ao redor e comunicou ao santo: – Comprei-lhe um morto. Pagou a São
127
Segundo os meus interlocutores dominicanos, essa sepultura é a do primeiro homem enterrado em um
campo santo, como discuti no terceiro capítulo.
219
Elias, pela pedra, 7 chavitos (centavos de dólar) que foram deixados na sepultura. Ao
chegar em sua casa, iniciou então o preparo da pedra.
Confeccionou um boneco com um tecido de uma roupa que fora do marido.
Antes, Joana havia telefonado para uma de suas filhas em La Romana e pediu-lhe que
enviasse uma camisa do pai, pois gostaria de guardá-la como lembrança. Usou o tecido
para fazer uma roupa e inseriu a pedra no interior da vestimenta.
Durante vinte e um dias Joana passou suas noites dormindo com a pedra em sua
cama. Ao mesmo tempo acendia uma grande vela que, quando se apagava, ela
substituía por outra maior. Sua intenção era que o espírito do marido fosse se elevando,
se afastando. Após aqueles dias, Joana regressou à sepultura do Baron do Cemitério, e
informou-lhe que estava pagando pelo morto, agora o espírito de seu marido: uma
pedra vestida com um boneco e tecidos de roupa que lhe pertenceram, artefato com o
qual ela voltou a conviver por algumas semanas em sua casa. Ao retornar ao cemitério,
Joana deixou um morto específico na sepultura de São Elias e pagou-lhe, dessa vez, 21
chavitos.
As diferentes técnicas de manipulação da materialidade empregadas por Joana
para interromper a interferência do marido falecido em sua vida demonstram, assim
como no caso de Rosa e seu primo, o emprego de uma técnica ritual baseada na
dispersão via a ativação de uma sensibilidade olfativa dos espíritos indesejáveis.
Procurando, ainda enquanto morava em La Romana, sacar o espírito do marido da casa
espantando-o com as velas carregadas de enxofre, pólvora e os banhos, em Porto Rico
Joana viu-se diante da necessidade de fazer uso de uma nova técnica de afastamento.
Agora, um procedimento ritual em que um espécie de contrato foi firmado com o
mistério Barão do Cemitério.
A transformação ritual da pedra, um objeto mais ou menos indistinto retirado do
cemitério, uma espacialidade fúnebre densamente significada para os meus
interlocutores dominicanos por causa dos espíritos guedeses, como descrevi no terceiro
capítulo, mas também dos próprios mortos genéricos, como salientaram Palmié (2002) e
Ochoa (2004) ao descreverem as regras del palo, desenrolou-se durante uma dupla
relação mercantil com São Elias/Barão do Cemitério.
Para transformar tal objeto indeterminado em um afim que lhe foi muito
próximo, primeiro Joana se apropriou da pedra e precisou anunciar ao mistério que
habita aquele ambiente que se tratava de uma compra. Tornando o Barão do Cemitério
220
o dono da pedra (talvez reconhecendo isso) com o pagamento monetário dos 7 centavos
de dólar deixados em sua sepultura, Joana pode obter um morto comprado.
É com essa expressão que os interlocutores dominicanos salientavam durante o
trabalho de campo como é possível que os seres humanos possam ter espíritos sem
recebê-los como um dom (herança familiar). A pedra foi encarada por Joana como uma
força espiritual latente que, ao ser capturada através do pagamento a um mistério
considerado divino (deificado), não seria colocada à disposição dela, como ocorre nas
apropriações que os sacerdotes das regras del palo fazem de pedras de cemitérios e
substâncias desse ambiente. Como Joana enunciou ao retirar a pedra da sepultura, ela
comprava um morto para São Elias e não para si própria.
A ênfase sobre a maneira como se dá a apropriação da materialidade por meio da
qual seres humanos e espíritos interagem – e os sentidos que envolvem essas
apropriações – foi um aspecto mobilizado por Joana, Rosa e Gina para se diferenciarem
dos paleros e aqueles que fazem trabalhos maus (bruxaria). Para elas, os paleros
trabalham com morto, ou seja, possuem espíritos que seriam mortos comprados e os
colocam à sua própria disposição (e não sob o controle de seres de luz, divinizados e
herdados, como o Barão do Cemitério). Utilizando mortos, ou seja, realizando
apropriações mais ou menos semelhantes à de Joana, os seres humanos poderiam ainda
enviar esses espíritos, colocados ritualmente sob seu controle por meio da compra, para
prejudicar outros. Essa é uma das formas de compreender o que significa bruxaria.
Com a pedra sob a sua posse, Joana empreendeu ainda outras transformações.
Ela paramentou a pedra com um boneco e roupa feitos do tecido que pertenceu ao
marido em vida e vinculou o espírito a ela novamente, levando a pedra já vestida para
dormir junto de si no interior de um espaço doméstico caracterizado pela intimidade de
casal. Depois de esperar certo período, Joana concluiu que sua apropriação e recriação
material já teriam o efeito desejado. Com as roupas do marido e muito próxima dela,
aquele morto comprado se tornou o espírito de um afim. Na posse do que se tornou seu
afim espiritual, Joana então se dirigiu novamente à sepultura de São Elias. E lá pagou
novamente a esse mistério, agora para que mantivesse sob a sua guarda um novo morto,
o espírito de seu marido, artefato passível, então, de outras apropriações materiais e
relações mercantis depois de inserido na espacialidade fúnebre que habita o Barão.
221
CADERNO DE IMAGEM (CAPÍTULO 5)
Imagem 25. Resguardo preso no alto da botânica de Rosa, sob a proteção dos mistérios. Plaza del
Mercado, Río Piedras, março de 2010. Foto: Alline Torres.
222
Imagem 26. Resguardo preso no alto do portão principal da casa de Rosa, invocando a proteção dos
mistérios. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.
223
Imagem 27. Ao fundo, pañuelo vermelho, proteção dos mistérios, amarrado na janela de uma casa vizinha
à de Rosa. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.
224
Imagem 28. Cruz desenhada com anil, para afastar as coisas más, na entrada de acesso à casa de Rosa.
Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.
225
Imagem 29. Tecidos presos ao teto no altar onde Armando trabalha ritualmente: uma proteção que invoca
os mistérios contras espíritos maus. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.
226
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Terminar o último capítulo da tese com descrições sobre as pessoas, outros seres
humanos, e os mistérios a partir de uma série de interações e intervenções sobre um
universo cosmológico que não se reduz à 21 Divisão, permite-me fazer uma observação
que, acredito, perpassou todos os capítulos. Trata-se de salientar que a troca e o contato
com as entidades espirituais, independente de como essas sejam definidas, são tidos
como extensivos. Troca e contato aparecem como os pressupostos cosmológicos que
informam o cotidiano. E o que me parece ser o problema dos meus interlocutores
dominicanos e também dos próprios mistérios é como ambos administram isso. Ou, de
outro modo, como regulam as trocas e os contatos em que se fazem presentes seres
humanos, particularmente aqueles concebidos como pessoas, e uma miríade de
espíritos, dentre os quais esses seres de luz são alguns.
Ter partido da discussão sobre a noção antropológica de pessoa e a circulação de
dádivas me permitiu chamar a atenção para planos distintos em que essas trocas e
contatos podem ser experienciados. Com isso, quero observar que ao longo da tese seria
possível imaginar, a cada capítulo, perspectivas diferentes a partir das quais poderiam
ser observadas e conhecidas as densas e múltiplas relações que tentei descrever. Os
mistérios ocupam posições variadas em relação às pessoas, mas também quando são
consideradas as divisões e a ordem espiritual mais abrangente que essas entidades
chamam de 21 División; no interior da casa, coabitando esses espaços domésticos com
as primeiras, mas também no que nós, seres humanos, chamamos de planeta Terra. Do
mesmo modo, seria difícil pensar esse tipo de multiplicidade para a qual chamo a
atenção sem que houvesse deslocamentos no posicionamento das pessoas com as quais
eles interagem.
Procurei descrever, então, no primeiro capítulo, que engajamentos poderiam ser
mapeados a partir da premissa de que os mistérios são recebidos como um dom
transmitido por antepassados familiares. Para além da discussão sobre o que significava
tal dom, ou seja, que tipos de transferências poderiam ser mapeadas, procurei chamar a
atenção para as implicações disso para aqueles que se concebem como parte daquela
configuração relacional, que se definem como pessoas que têm os mistérios por causa
de suas famílias. Singulariza-ser por causa dessa forma de conexão implica, eu espero
ter conseguido demonstrar, experienciar um conhecimento sobre a alteridade com base
no próprio corpo e afetos variados. Mas quero sugerir que ao incorporar essa forma de
227
parentesco há aí uma espécie de modelagem imperfeita. Pois se as pessoas e os
mistérios se reconhecem e agem partir da ideia de força (vital), isso não implica uma
reprodução acabada. Não há amálgamas do ponto de vista da incorporação dessa forma
de ‘relacionalidade’ mesmo quando se trata de montar ou subir. Os encaixes não são
exatos: há sobras (os mistérios transformam as pessoas em cavalos e falam da
perspectiva de quem tem conhecimento e autoridade sobre elas); há excesso (alguns
mistérios manifestam disposições que ultrapassam os desejos das pessoas, e atuam
desconsiderando isso); há quebras e interrupções (ter um mistério em cabeça é
reconhecer uma sobreposição, e não uma internalização no corpo, cuja cabeça é
ocupada pelo espírito); além disso, há extração de energia, pois os mistérios consomem
o sangue humano; e ainda há peso.
A partir dessas considerações, sinalizo que incorporar os mistérios, sob suas
diversas modalidades, cria uma variação entre posições – talvez fosse mais apropriado
falar em formas como se exprimem a agência e o que (ou quem) é produzido (é
objetificado): destacamento, instrumentalidade, experiências sobre poder e controle,
variação e transformação de sensibilidades e consumo de si eram reconhecidos
pelosmeus interlocutores dominicanos como sendo gerados durante os modos variados
de incorporação.
Eu procurei descrever também em termos de variação os agenciamentos que
pessoas e mistérios estabelecem no contexto das prestações rituais ao longo do segundo
capítulo. Talvez, aqui, na medida em que apontei para como contemporaneamente o
dom transferido se atualiza, os modos rituais de produção de reciprocidade e trabalho
tenham aparecido mais explicitamente como dinâmicas que descrevem fortalecimento
mútuo e alienação. E, eu espero, sem que com isso a cosmologia da 21 Divisão
assumisse a forma de uma ordem espiritual corrompida. Contrato e pagamento ritual
demonstram que algo (talvez, parte)128
da força recíproca que liga as pessoas e seus
espíritos foi colocada à disposição de outros, alheios a essas conexões. Essa também é
uma maneira de os meus interlocutores dominicanos se singularizarem como pessoas. E
é por meio das prestações rituais que eles conseguem criar formas de controle relativo
sobre seus espíritos, geralmente descritos como entidades que se impõem e intervêm
diretamente em suas vidas.
128
Definir isso literalmente me parece um desafio.
228
Mas nos contextos das prestações rituais, essa espécie de modulação que torna
possível as pessoas interferirem sobre os mistérios depende da manipulação dos
serviços: substâncias alimentares e químicas entram nas composições que pretendem
fortalecer os espíritos herdados. Por sua vez através dessas formas de transferência
outras variações são produzidas: os serviços rituais nutrem e geram capacidade de
trabalho dos mistérios; intensificam e suavizam suas disposições cristalizadas como
espíritos. As relações prefiguradas, nesse sentido, são também refeitas por meio dessas
modulações, que tangenciam sempre a instabilidade e o inesperado.
Se as contrapartes humanas e espirituais atuam sob esses fundamentos, parece-
me interessante salientar que, como em outras cosmologias, linguagens e técnicas rituais
descritas no Caribe, particularmente os casos do vodu entre os haitianos e das regras del
palo em Cuba, há um universo conceitual e de experiência comum para aqueles que
vivem nesses mundos. Neles, como eu procurei discutir também no segundo capítulo,
em alguma medida alienar a outros pode ser vivido como uma relação que traz em
consigo uma chance de transbordamento, neste caso de retaliação que beira práticas de
predação. Parece-me que aqui há uma maneira singular de conhecer e lidar com a
instabilidade como uma forma de socialidade que se efetiva através dos modos de
atenção e trabalho ritual.
Acredito que no terceiro capítulo as modulações (ou, se quisermos, a variação e
amplitude) da atenção ritual alcançaram a sua forma mais concreta. E disso emerge
certa visão sobre a cosmologia 21 Divisão que só me foi possível mapear justamente
tentando descrever as perspectivas singulares que cada grupo de mistérios toma no
processo de interiorização na casa das pessoas. Tal variação e amplitude têm a ver com
os tipos de engajamento que essas mantêm com os mistérios. E quanto mais se entretêm
relações de atenção e trabalho com esses espíritos, mais os ambientes múltiplos dos
quais eles fazem parte são recriados nos altares.
Por causa dessas formas de materialização e ambientação dos mistérios, há uma
inflexão nesse capítulo, que se desdobra no capítulo seguinte. Pois simultâneo ao
engajamento com modos rituais que permitem a produção de reciprocidade e trabalho,
as pessoas que têm os mistérios dedicam-se a refazer antigos espaços de existência,
sejam aqueles referentes ao tempo em que os mistérios foram vivos, sejam aqueles que
recuperam seus lugares de existência como mortos. É dessa maneira que esses espíritos
se mantêm ao longo das gerações, e é assim que eles reclamam suas próprias
lembranças. Desse modo, enquanto as pessoas nos altares falam em trabalhar, nesses
229
ambientes os mistérios se tornam capazes de lembrar. Parece-me que aqui há outra
alternância de pontos de vista, que remete a um trato com os espíritos que não é da
ordem da junção ou disjunção corporal, do fortalecimento ou da separação
(destacamento) que gera pagamento, mas sim de uma espécie de remediação: ainda que
mortos, para os mistérios é possível estabelecer também relações de intimidade com as
pessoas. Elas manipulam artefatos e substâncias nos altares que permitem aos mistérios
sentir e lembrar novamente; recuperar o paladar de acordo com seus gostos, mas
também cheiros, temperatura, percepções de altura e profundidade.
No quarto capítulo, as perspectivas desses espíritos, descritas anteriormente,
ganham novas dimensões à medida que, através das imagens dos santos, alguns
mistérios exprimem como se concebem. Produzindo uma espécie de metanarrativa ao se
apropriarem de imagens e de outros artefatos que geralmente são associados ao
catolicismo (e em alguma medida ao cristianismo), os mistérios parecem levar às
últimas conseqüências sacramentos, saberes e liturgias que lhes recusam a existência
enquanto mortos que fazem parte materialmente do mundo dos vivos. Festejando sob
essa condição, os mistérios não apenas dão graças a consagrações católicas e invocam
alguns de seus personagens religiosos. Eles se assumem também enquanto seres
divinos. Sob a perspectiva deles todos esses aspectos parecem assumir novos sentidos.
O último capítulo, a que fiz referência no início dessas considerações finais,
talvez seja o que melhor demonstre como se regulam as trocas e os contatos
generalizados entre vivos e vários mortos. Tomando ele como um contraponto dos
anteriores, há aí um comentário sobre os três primeiros. Isso porque se trata de práticas
rituais que informam sobre como são produzidas interrupções em contextos não apenas
instáveis, mas também precários. Os agenciamentos que descrevi sobre as técnicas que
visam a afastar ou espantar as coisas más do corpo e da casa informam sobre como
bloquear a entrada, impedir a passagem, o que é permitido fluir e aquilo que não é
permitido.
O caráter invasor desses espíritos invisíveis de algum modo comenta também as
relações prefiguradas que são atualizadas por causa de uma imposição dos mistérios;
relações que pesam, geram excessos, extraem sangue, criam ímpetos. E, que, por isso,
podem ser quitadas. Além disso, embora as situações etnográficas nesse capítulo não
versassem exatamente sobre ‘relações’ com os espíritos como um dom, a técnica ritual
que pretendia afastar um morto familiar comenta algumas das formas como a essas
podem se incorporar o expediente diversamente empregado do contrato.
230
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