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NOTA DO ORGANIZADOR sobre Canco, sobre Poesia
O cultivo da poesia jamais deve ser to desejvel quanto em
perodos em que, em virtude de um excesso do princpio egostico e
calculista, a acumulao dos materiais da vida exterior excede a
capacidade de incorpor-los s leis internas da natureza humana
(Shelley, Uma Defesa da Poesia)
O que h de melhor em ns talvez legado de sentimentos de outros
tempos, os quais j no alcanamos por via direta; o sol j se ps, mas
o cu de nossa vida ainda arde e se ilumina com ele, embora no mais
o vejamos
(Nietzsche, Humano, Demasiado Humano um livro para espritos
livres, Aforismo 223)
Essa uma tentativa de compilao da obra do Poeta Joo Batista
de
Siqueira (Canco), nascido no Stio Queimadas, pequena mesopotmia
de So Jos do Egito, municpio da microrregio pernambucana do Vale do
Paje. Reuniu-se, neste volume, os poemas publicados em seus livros
Musa Sertaneja (1967), Flores do Paje (1969) e Meu Lugarejo (1979)
e aqueles (vrios deles inditos) que constam de vetustos manuscritos
e registros fonogrficos, por largo tempo entesourados e garimpados
nas vigiadas gavetas de (desconfiados) amigos e admiradores.
Amadrinha esta empreitada, unicamente, a grata satisfao de um
anseio amanhecido em quadra mui recuada, mas somente h pouco
amadurado, na escutao de alguns de seus alumiosos cnticos nas
lancinantes declamaes de Zeto, outro nobilssimo bardo de saudosa
memria. Foi quando, ouvendo A Casa do brio e Sonho de Sabi,
arrebatado por seu impressionismo imagtico, que me arroguei a
incumbncia de no deixar perecer no limbo do ostracismo quem se alou
s vertiginosas culminncias da Arte de Homero e de Arquloco.
Entretanto, se o cumprimento desta demanda significa uma espcie
de prestao de contas sentimental com o poeta, certo que exprime,
tambm, a superao de desmedidos obstculos. Destes, destaca-se a
inglria peleja de definio do texto que viria a figurar no corpo do
livro. Isto porque numerosos poemas foram republicados (de se ver,
p. ex., que, do livro Musa Sertaneja, apenas os poemas Saudades da
Minha Terra e Ano Novo no foram reproduzidos nas demais obras) e o
que deveria constituir um aspecto facilitador do trabalho de
organizao terminou, isto sim, por torn-lo extremamente rduo, uma
vez que do necessrio cotejo realizado entre as publicaes e,
ademais, entre estas e os referidos manuscritos e registros
fonogrficos , verificou-se a existncia de diversas e significativas
variaes textuais, indicativas da frequente refundio a que Canco
expunha suas composies e, portanto, de seu incessante labor potico
e da salutar modstia e nobre humildade que o notabilizaram.
O espinhoso dilema se punha, todavia: como escolher, sem
receios, entre os versos num lago oculto e sombrio e num lago vasto
e sombrio, do poema Manh de Chuva, como publicado, respectivamente,
nos livros Meu Lugarejo e Musa Sertaneja? Ou
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entre os versos belas roseiras nevadas / diariamente abanadas /
das asas do beija-flor e belas roseiras nevadas / diariamente
abanadas / das brisas do sol-se-pr, do poema Meu Lugarejo, assim
editado nos livros Flores do Paje e Meu Lugarejo?
Assim sendo, e tendo em mira que tais reformas constituem usana
consagrada na arte literria1, para o cumprimento desta penosa
tarefa recorreu-se a critrios (no seqenciais e no excludentes entre
si) como coerncia com o restante da composio, recentidade da
publicao e carter esttico das verses, privilegiando-se, no entanto,
quando existentes, aquelas que constam de registros pessoais do
autor. A ttulo de exemplo, o que ocorreu com o 3 verso da seguinte
estrofe:
Vestal linda dos templos de Diana Parnasiana de sublime inspirao
Rainha amada das fontes de Castlia Dourado cisne do Pas do Corao
(Teus Vinte Anos e Tua Beleza)
No livro Meu Lugarejo, onde foi publicada, consta Rainha amada
das fontes de cristal, sendo que a verso acima transcrita consta de
manuscrito do autor. Ora, conquanto semelhantes na grafia (e por
isto admissvel o equvoco editorial), os vocbulos finais possuem
significados bastante distintos, de modo que a substituio efetuada
terminou por represtigiar a composio, alusiva, toda ela, arte
potica e mitologia grega: segundo esta, Castlia era uma ninfa que,
fugindo das perseguies de Apolo (deus da poesia e da msica), foi
por este transformada em fonte, a fonte da inspirao potica, que
nasce no Monte Parnaso (morada daquele deus e das musas
inspiradoras), donde deriva o termo parnasiana (e a denominao do
Parnasianismo, importante escola literria), que, assim como o
vocbulo vestal (sacerdotisa de Vesta, deusa do fogo), possui, no
sentido do texto, o significado de moa pura e ingnua2.
Evidentemente, tais precaues no se mostraram suficientes para
derribar as
dificuldades deste processo seletivo, dado que se trata de
variantes igualmente sublimes e legtimas (sobretudo porque
supostamente submetidas reviso do poeta, que teve 1 A exemplo de
Ariosto, que concebeu nada menos que 56 verses apenas do primeiro
verso de seu
poema Orlando Furioso, bem como de Fagundes Varela, que
modificou e republicou pelo menos 8 poemas de seus Cantos
Meridionais, e de Castro Alves, que refundiu toda a composio Horas
de Martrio e a republicou sob o ttulo Longe de Ti, conforme noticia
Frederico Ramos, in Grandes Poetas Romnticos do Brasil (Editora
LEP, 1953, p. 733).
2 Cfr. Mrio da Gama Kury, Dicionrio de Mitologia Grega e Romana
(Jorge Zahar, 2003). Assim canta o coro da tragdia grega As
Fencias, de Eurpides (versos 304/319):
Iguais s oferendas feitas de ouro, seremos dedicadas a Apolo; as
guas sempre puras da Castlia esperam-nos, pois nelas banharemos a
servio do deus a opulncia de nossa cabeleira virginal. Penhascos do
Parnaso, cujos cumes parecem gmeos e resplandecem luzentes como o
fogo, nas alturas onde Dioniso vai celebrar suas orgias bquicas, e
vinhas de cujos bagos saem todos os dias o suco inspirador, e antro
divino do clebre drago, mirante timo frequentado somente pelos
deuses, e monte sacro coberto de neve!
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oportunidade de v-las publicadas), de modo que, nalgumas ocasies
terminaram por preponderar as dbeis faculdades perceptivas do
organizador, nico responsvel, portanto, em todo caso, pelos
inevitveis e abundantes desacertos que certamente tero registro
neste volume.
Todavia, na sensata (e aguardada) apreciao crtica dos leitores,
valha-me,
ao menos, o propsito de difundir a obra de Canco em sua
inteireza, e, para tanto, haver transcrito as variantes no
selecionadas em notas apostas no final do volume (referidas aos
respectivos poemas atravs da indicao numrica contida em seu ttulo).
Afrontou-se, assim, o temor de se avolumar a obra em demasia,
primeiro, porque tais notas foram dispostas numa espcie de apndice,
inserto na derradeira parte do livro, de modo a no embaraar a
leitura dos poemas; segundo, porque tal procedimento, longe de
constituir um preciosismo incuo, denota o profundo respeito que
aqui se guardou ao poeta e aos leitores: quele, porque teve
registrado seu laborioso e fecundo processo de criao; a estes,
porque se lhes permite que, luz de suas prprias reflexes, possam
proceder s observaes e/ou substituies que porventura entendam
oportunas para uma melhor apreenso do(s) sentido(s) das
composies.
Com esse propsito, e com a pretenso de trazer mais estmulos
que
definies, nestas notas ousou-se entremear um rudimentar esboo de
anlise de alguns dos aspectos esttico-literrios da obra de Canco,
aventurando-se a observao das figuras e dos tropos mais
recorrentes, ante a importncia que possuem como elementos que
permitem a apreenso (i) de sua viso de mundo, (ii) de sua
fisionomia artstica e, por fim, (iii) da caracterizao do parentesco
estsico que possui com outros autores3.
Assim, no sendo esta uma obra de crtica literria, mas que, no
entanto, no se restringe ao mero ajuntamento de poemas, a fim de
evitar equvocos e dissipar dvidas, convm tecer algumas consideraes
elementares acerca destes tpicos.
I MUNDIVIDNCIA
Inicialmente, cabe salientar que no se descura a preponderncia
da expresso artstica em relao a qualquer teoria: sabe-se, com Mrio
Quintana, que a poesia no se entrega a quem a define; entretanto,
sabe-se, tambm, que tal atividade, alm de no ser refratria reflexo
interpretativa, requisita-a como condio indispensvel sua
caracterizao, dada a necessidade de interpretao inerente s
expresses do gnio humano4. O que acontece que tal anlise somente
pode alcanar seu desiderato quando munida do arsenal teortico que
lhe fornecido por outra Arte: a Hermenutica, que, assim como a
Potica, irredutvel ao logos, e que, por este motivo, impe que, na
apreenso da obra do artista, tambm o intrprete deva estar inspirado
(enthousiasmado no sentido etimolgico: en + thous = com um deus
dentro)5.
Deste modo, concepo que propugna a esterilidade das controvrsias
sobre Esttica e Arte6 sobreps-se o entendimento de que, longe de
constituir uma ameaa 3 A obra Teoria Literria, de Hnio Tavares (Ed.
Itatiaia), foi de fundamental importncia para a
elaborao destas consideraes. 4 Onde quer que um homem sonhe,
profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar, como o
professa Paul Ricoeur (Da Interpretao), citado no prtico do
livro Sonho e Literatura: mundo grego (USP, 2000), de Adlia Bezerra
de Menezes.
5 De poesia s se pode falar em poesia, diz Schlegel em sua
Conversa Sobre A Poesia (Ed. Iluminuras, 1994, p. 30). a teoria do
im, apresentada por Plato em seu dilogo on. Por fim, vale assinalar
que a fundamental importncia da intuio e da imaginao tanto na criao
como na percepo da obra de arte assinalada nas idias estticas de
Kant e de Bergson, como o noticia Ariano Suassuna em sua obra
Iniciao Esttica (Jos Olympio, 2004, pp. 102 e 202).
6 Por todos, Arthur Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e
Representao, Livro Primeiro, 12 (Ed. Contraponto, 2001).
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liberdade inventiva, a anlise dos distintos aspectos da criao
consiste, em verdade, numa defesa de sua autonomia. Isto porque a
obra corporifica a viso de mundo do autor e, ao solicitar nosso
juzo acerca do contedo de sua representao, no apenas permite, mas
impe mesmo, que tornemos notrias as mltiplas e proeminentes
implicaes que possui sobre a nossa viso de mundo, cuja tenebrosa e
apertada vereda assim iluminada e alargada pelo poder fecundante
das imagens que assimilamos, pois com base nelas que interpretamos
a vida e nos exercitamos para viver7.
Assentadas tais premissas, compreende-se a importncia dos mtodos
e
tcnicas que nos fornecem a Teoria Literria e a Esttica para o
devido aclaramento e a adequada apreenso da mundividncia do poeta,
sobretudo do poeta lrico, posto que, em sua obra, nada enfeite,
tudo hierglifo necessrio (Schlegel): os recursos estilsticos de que
faz uso no constituem meros elementos de retrica, mas aquilo que
realmente paira diante de seus olhos, seu universo mitopotico, e as
imagens que concebe nada mais so que objetivaes de si mesmo8. Da
porque se assevera que
o verdadeiro poeta lrico vive em si mesmo, apreende as
circunstncias conformemente sua individualidade potica e, por mais
variadas que sejam as relaes que se estabeleam entre a sua
interioridade, por um lado, e o mundo sensvel, com as suas concepes
e destinos, por outro, o tema principal (de sua obra) o livre
movimento dos seus prprios sentimentos e meditaes (...) O homem,
ciente de sua subjetiva interioridade, v a si prprio e torna-se
para si mesmo uma obra de arte.9
Contudo, se certo que as imagens intudas pelo poeta lrico
efetivamente
constituem a expresso da sua vida, no menos correto que esta sua
mundividncia no se oferece plenamente na mera literalidade do
texto, vazado em caracteres lingsticos que so meros meios de
transmisso, degradados at o nvel de insignificantes sinais10. Para
alm do aspecto vernacular, a viso de mundo do autor subjaz,
inclusive (e, sobretudo), em significaes latentes que se comprimem
e se difundem particularmente atravs das figuras e dos tropos que
emprega em sua faina criadora, pois so os recursos de que se vale
para conferir carga lrica ao texto e criar a sua realidade
artstica, e que constituem, portanto, no apenas o meio atravs do
qual comunica a sua decifrao do mundo, mas tambm a forma qual se
encontra jungido para alcanar tal desiderato, no inesgotvel
paradoxo em que a arte literria se embaraa, mas do qual se
nutre11.
II IDENTIDADE 7 Cfr. Arthur Schopenhauer (ob. cit., p. 23),
referido por Friedrich Nietzsche, in O Nascimento da Tragdia
(Companhia das Letras, 1992, pp. 28/29). 8 Hegel, Curso de
Esttica o sistema das artes (Martins Fontes, 1997, p. 193). 9 Id.
ibid., pp. 518 e 519. Jung retoma essa mesma perspectiva quando
diz:
... o artista como tal ... () objetivo, impessoal no mais alto
grau, e at inumano, pois que , como artista, a sua obra, e no um
homem. (Psicologia y Poesia, apud Adolfo Casais Monteiro, A Palavra
Essencial estudos sobre a poesia, Ed. Universidade de So Paulo,
1965, pp. 54/55)
10 Nietzsche, O Nascimento, ob. cit., p. 45. A Esttica Filosfica
fundamenta-se no que Ariano Suassuna, com apoio em Jacques
Maritain, denomina de primeiros princpios, que possuem carter
eminentemente axiolgico, e que por isto mesmo reivindicam, apenas,
o direito de julgar o valor das escolas artsticas, assim como a
verdade ou a falsidade, a influncia boa ou m de seus princpios, in
Iniciao, ob. cit., p. 355.
11 Massaud Moiss, Literatura: Mundo e Forma (Cultrix, 1982, p.
189).
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A repisada recorrncia a tais figuras e tropos constitui tambm um
dos mais ntidos aspectos do que se denomina de foras-motrizes ou
filosofemas, modalidades de redundncia que compem o ncleo
fundamental da viso de mundo do escritor, e que possuem indelvel
importncia no sentido de trazer baila os elementos que permitem
apreender a sua fisionomia artstica, sua identidade literria,
pois
verdade universalmente emprica que todo escritor se repete, como
se os textos segregados por sua imaginao apenas fossem as variaes
do mesmo tema ... Faz parte das idias assentes que entre o Ea de
Queirs das Prosas Brbaras e A Cidade e as Serras persiste uma
unidade substancial, uma viso de mundo especfica do ficcionista,
que a discrepncia vocabular, mesmo a sinttica ou a estrutural, pode
camuflar, mas no diluir. Idntico raciocnio vale para a trajetria de
um Machado de Assis, um Carlos Drummond de Andrade, um Fernando
Pessoa, para apenas nos restringirmos aos autores vernculos.12
Para a adequada apreenso da fisionomia artstica de Canco,
faz-se
necessrio perquirir, portanto, acerca das motivaes, dos modos e
da herana literria de seu afazer potico.
a - Individuao e Reunidade
Embora no tencione explicar a obra do autor de modo mais
profundo do que ele a concebeu (advertido estou, com Nietzsche, de
que isto terminaria por obscurec-la), o intrprete que se pretenda
respeitoso no pode se satisfazer com a mera compreenso de seus
sinais exteriores, pena de no enxergar tudo aquilo que, de algum
modo, nela est. necessrio que envide esforos para decifrar o saber
que se amoita na dobra da metfora13, pois se por um lado provvel
que venha a atribuir ao autor propsitos que lhe so desconhecidos,
igualmente correto, por outro lado, que nada descobrir em sua obra
que ali j no esteja14, e que por esta razo possui tanta
legitimidade e valorosidade quanto aquilo que efetivamente se
tencionou exprimir, uma vez que
... existindo um conhecimento histrico e lingstico adequado, o
intrprete encontra-se em posio de compreender melhor o autor do que
este se compreendeu a si prprio. Dilthey ... faz remontar esta
possibilidade concepo de Fichte da alma como possuidora de intuio
consciente e inconsciente e descobre que 'o intrprete que segue
conscienciosamente o fio do pensamento do autor ter de trazer para
o nvel consciente muitos elementos que ficariam inconscientes neste
ltimo compreend-lo-, por conseguinte, melhor do que ele se
compreendeu a si prprio' (Dilthey, XIV/I, p. 707)15
12 Id. ibid., pp. 36/37. 13 Massaud Moiss, Literatura, ob. cit.,
p. 33. A esse respeito, Nietzsche observa que
... no devemos atormentar um poeta com uma sutil exegese, mas
alegrarmo-nos com a incerteza de seu horizonte, como se o caminho
para vrios pensamentos ainda estivesse aberto. (Humano, Demasiado
Humano Um Livro Para Espritos Livres, Aforismo 207, p. 129)
14 Sigmund Freud, Delrios e Sonhos na Gradiva de Jensen (Imago,
1976, p. 93). 15 Josef Bleicher, Hermenutica Contempornea (Edies
70, p. 28). Numa ptica ainda mais
contundente a respeito da tarefa do intrprete, ao comentar
aspectos da interpretao na obra de Heidegger, Marco Antnio Casanova
assinala que o referido filsofo
cita, com freqncia, um princpio de hermenutica
schleiermacheriana em suas leituras dos pensadores da tradio: o
princpio de que toda interpretao precisa necessariamente dizer
mais
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E isso tambm porque
a crtica literria que na verdade deveria fazer parte da
literatura s tem, pois, justificao quando aspira completar,
arredondar, quando aspira o acesso obra ... Ela (a crtica) um
grande dilogo entre o intrprete e o autor, um dilogo entre iguais,
que apenas utilizam meios diferentes. Ela cumpre uma funo literria
indispensvel. Ela , na sua essncia, tambm no ataque se for preciso,
tambm na destruio , criativa e concriativa16
Dotados, assim, do adequado arsenal teortico e do sentido crtico
concriativo, podemos ousar descortinar relevantes aspectos da
mundividncia de Canco, como o que nos oferece, verbi gratia, a sua
perene recorrncia aos pssaros, que milipousam17 em toda a sua obra,
e que constituem smbolo no apenas da fragilidade das coisas
terrenas, mas, tambm, das relaes entre o Divino e o Humano (em
grego, alis, a palavra ornis, pssaro, significa vaticnio, de vates,
que por sua vez sinnimo do vocbulo poeta)18. Sintomticos desta sua
contnua personificao nas aves so os poemas Sonho de Sabi e Sonho de
um Poeta, e no apenas pela semelhana entre os ttulos, mas porque,
em ambos, canta as agruras dagora e decanta a liberdade
doutrora:
Depois, uma tarde inteira Dormi, dormi na velhice O pobre do
passarinho Sonhei que era pequeno Sonhou que ia palmeira Senti o
zfiro brando
do que a o que se encontra expresso no texto, e sempre contm,
por isso, uma aparncia de arbitrariedade (Apresentao obra Nietzsche
vol. II, de Martin Heidegger, Forense Universitria, 2007, p.
VI).
No fosse assim, a interpretao resultaria na mera presentao dos
pr-conceitos do intrprete, como o assinala o prprio Heidegger, ao
observar que
se a concreo da interpretao, no sentido da interpretao textual
exata, se compraz em se basear nisso que est no texto, aquilo que,
de imediato, apresenta como estando no texto nada mais do que a
opinio prvia, indiscutida e supostamente evidente, do intrprete. Em
todo princpio de interpretao, ela se apresenta como sendo aquilo
que a interpretao necessariamente j pe, ou seja, que
preliminarmente dado na posio prvia, viso prvia e concepo prvia.
(Ser e Tempo, 32. Ed. Vozes, 3 ed., 2008, pp. 211/212)
Da porque no despropositado dizer que o processo reflexivo
desenvolvido com a crtica,
ao dissolver e reintegrar a obra na totalidade ideal que ela
mesma evoca, faria do crtico um autor em segunda potncia e
permite-lhe o desenvolvimento contnuo do tema, de acordo com leis
que operavam de modo inconsciente na concepo original do artista.
(Victor-Pierre Stirnimann, Schlegel, carcias de um martelo, Prefcio
obra Conversa Sobre A Poesia e Outros Fragmentos, de Friedrich
Schlegel, Editora Iluminuras, 1994, p. 16).
Numa palavra:
a significao de um poema pode ser algo maior do que o propsito
consciente de seu autor, e algo bastante afastado de suas origens.
(T. S.Elliot, A essncia da poesia estudos e ensaios, Ed. Artenova,
p. 49)
16 Joo Guimares Rosa, Literatura deve ser vida entrevista a
Gunter Lorenz, in Exposio do Novo Livro Alemo, 1971, p. 283.
17 O termo de Zila Mamede, in O Arado (Ed. UFRN, 2005). 18 Cfr.
Eurpides, Ifignia em ulis, v. 8; squilo, Agammnon, vs. 129/167,
Prometeu Acorrentado, vs.
631/633.
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Onde tinha feito o ninho Soprar, suave e sereno Olhava, em
frente, as campinas Aromatizando as plagas Via por trs das colinas
Do meu sagrado terreno A Natureza sorrindo Ao sentir a liberdade
Por sonho via os verdores Pensou ser realidade Daquela terra
querida Sem saber cantou dormindo A brisa soprava lenta Dentro da
veiga florida Viu a vinda do inverno Quebrando o grande silncio Nos
quadrantes da paisagem Da floresta adormecida Ouviu o sussurro
terno Do bulcio da folhagem Via os verdejantes bosques Cantou todo
o arrebol, As esplanadas mais belas O brilho morno do sol Pareciam
um mar de luz Morrendo nos altos cumes Os rosais, as caravelas
Sentia, quando cantava As aves, as mariantes Que seu corao chorava
Que viviam dentro delas Com mais tristeza e queixumes (Sonho de Um
Poeta) (Sonho de Sabi)
Da no despropositado conceber uma referncia dubiedade ntima do
Poeta, vez que, embora ou porque sabedor de revelaes que s mesmo
Deus compreende (Fantasmas da Noite), de sua ndole
suscetibilizar-se, em grau superlativo, ante s vicissitudes
mundanas. Endimio revivido na ribeira do Paje, a cujos seres Selene
sente prazer em assistir (Palavras ao Plenilnio), na sua nsia de
catarse, Canco aspira a um mundo s de gorjeios (O Poeta), intenta
alar seu esprito aos pices do amor divino, mas v frustrada sua
pretenso por se encontrar inexoravelmente preso s excrescncias
terreais, por se achar pela voragem do vcio deformado (O brio).
Ento a, neste supremo perigo de perdio, quando se encontra
privado da interao que mantinha com a essncia da vida (ficou mais
martirizado / pensando no seu filhinho / implume, sem alimento /
exposto chuva e ao vento / sem poder sair do ninho Sonho de Sabi),
em que tomba compelido a se nutrir das migalhas que lhe oferece o
mundo (ouvindo algum que cantava / na porta, pedindo esmola idem),
a que se refugia na sua danao: a predestinao potica. Dele se
achega, como uma feiticeira salvadora, com seus blsamos, a arte19:
atravs dela, decanta seus Lamentos, seu Abandono, sua Solido, sua
Noite Triste, suas Tristezas, suas Queixas e Revoltas, vez que
a dor a fonte da poesia. S quem experimenta a perda de um ser
finito como uma perda infinita tem fora para o fogo do
lirismo.20
Mas igualmente por intermdio dela, da arte, que canta seus Dias
de Outono, seus Momentos Matutinos, sua Meninice; por meio dela, a
Musa Consolatrix a que alude Machado de Assis, o ltimo asilo de que
nos diz Castro Alves, a compensao ponderadora a que se refere
Fernando Pessoa. que,
19 A expresso de Nietzsche, in O Nascimento, ob. cit., p. 23. A
embriaguez da Arte mais apropriada
que qualquer outra para velar os terrores do abismo, como o diz
Baudelaire (Morte Herica, in Pequenos Poemas Em Prosa - Poesia e
Prosa, Ed. Nova Aguilar, 1995, p. 311). A perda de referncias
metafsicas em Fernando Pessoa (navegar preciso, viver no preciso) e
em Nietzsche (pequeno barco j sem ligaes com a terra firme - A Gaia
Cincia, 124) encontra idntica alternativa: a arte; para o primeiro,
como uma afirmao trgica da vida; para o segundo, como uma forma
superior de religio, com o assinala Antnio Azevedo, in Pessoa e
Nietzsche subsdios para uma leitura intertextual de Pessoa e
Nietzsche (Lisboa, Instituto Piaget), p. 122.
20 Ludwig Feuerbach, Princpios da filosofia do futuro (Edies 70,
p. 23).
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pela Arte, eles (os artistas) respondem aos ferimentos e
insegurana que o mundo real lhes infligem, o que fazem atravs de
outro mundo, no qual tanto a beleza quanto a feira, tanto a
felicidade quanto o infortnio, tanto o riso quanto o sangue,
aparecem domados, cicatrizados e eternizados pela Beleza.21
Deste modo, malgrado viva ferido por mil anseios, sofrendo pela
mgoa alheia e pelos animais, Canco se considera o filho mais
querido / de nossa Me Natureza, porque alto o seu sentimento /
devido ao deslumbramento / do mundo da poesia, e assim, atravs de
idias mais altas, faz morada num mundo / de coisas irrevelveis,
onde vive sem egosmo e ganncia / entretido na fragrncia / das
flores que tem seu mundo (O Poeta). que nela, na Arte, encontra o
meio mais apropriado para exprimir a sua viso holstica, o
conhecimento bsico da unidade de tudo o que existe: o
Uno-Primordial a que alude Nietzsche, a unidade substancial a que
se refere Hegel, a escuta crepuscular do jacente de que fala
Virglio, a unidade harmnica de que nos diz Herclito. Atravs dela
revela-nos que o todo uno, que tudo se relaciona (ou interage, para
usar uma expresso de nossos tempos) e diz respeito e uma nica
realidade, sintetizada, em sua potica, na Natureza.
Aponta, assim, a individuao como causa primeira do mal da
separao entre o geral e o particular e a necessidade da experincia
onrica como o pressentimento de uma unidade restabelecida20. E,
para isto, a Poesia revela-se-lhe como o instrumento mais eficaz,
uma vez que
como arte, a poesia mais antiga do que a prosa. Exprime a
representao espontnea do verdadeiro, um saber que no separa ainda o
geral das suas viventes manifestaes particulares, a lei das suas
aplicaes, o fim e o meio, pois no concebe nenhum destes termos seno
em relao com o outro. Por isso, no exprime um contedo, conhecido
somente sob o aspecto da sua generalidade, de maneira figurada,
mas, conformemente ao seu conceito, faz ressaltar, pelo contrrio, a
unidade substancial que ignora ainda esta separao e no admite a
existncia de simples relaes exteriores entre o geral e o
particular. Ela apresenta assim tudo o que apreende sob a forma de
uma totalidade completa e independente (...)22
b - In-nocens
Atravs da Poesia, Canco ambiciona, pois, o rompimento deste
isolamento e a conseqente restaurao da unidade substancial, e o faz
atravs do retorno ptria de sua infncia primeva, a seu reino
distante, incandescente e brilhante (Viso de Um Sonho), onde
sempiternamente vive a gozar um tempo ditoso / de amor, sorriso e
meiguice, na simbitica relao com a Natureza, seu palacete dourado /
puramente bafejado / das brisas celestiais (Minha Meninice). Esta a
gide que o protege da dissipao e o mantm umbilicalmente vinculado
Grande Me, pois
um homem que, como aqui no caso, haja por assim dizer aplicado o
ouvido ao ventrculo cardaco da vontade universal, que sinta como o
furioso desejo da existncia se derrama a partir da em todas as
veias do mundo, como torrente atroadora ou como mansssimo arroio em
gotas pulverizado, tal
21 Ariano Suassuna, Iniciao., ob. cit., p. 274. Nesta mesma
obra, Ariano alude teoria do jogo,
formulada por Schiller (apontando, no entanto, suas imprecises),
segundo a qual a Arte seria uma espcie de conciliao e apaziguamento
da alma humana com o mundo, do esprito humano dilacerado entre o
seu campo natural, a liberdade, e a necessidade cega do mundo, in
Iniciao, ob. cit., p. 270.
22 Hegel, Curso, ob. cit., p. 373.
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homem no se destroar de repente? Deveria ele suportar ouvir, no
miservel invlucro vtreo do indivduo humano, o eco de inumerveis
gritos de prazer e dor do vasto espao da noite do mundo, sem
refugiar-se incontivelmente diante dessa ciranda pastoral da
metafsica, em sua ptria primignia?23
Regressa, assim, uma vez mais e sempre, a seu ednico mundo
infantil, dando vazo ao indefinido sentimento de nostalgia de um
paraso perdido, ao encanto doloroso da recordao do que j no
existe24, que acompanha todos os poetas, de Milton a Fernando
Pessoa, de Rilke a Rogaciano Leite, de Cames a Joo de Deus, de
Baudelaire a Manoel Fil, e que constitui a origem comum de sua
atividade artstica, que o primitivismo de que brota a prpria
inspirao em que se gera25.
Asila-se nas reminiscncias e alegorias pueris da poca da vida em
que ainda
no se pertence ao mundo, em que a prpria vida o abrir dos olhos
para uma manh deliciosa, quando se salta pela primeira vez do ninho
e se sente ainda o calor do ninho26. E assim poetiza, para
continuar o seu jogo infantil sem renunciar ao prazer da
brincadeira, porque no apenas no se envergonha de suas fantasias
como as comunica a todos ns, oferecendo-nos a possibilidade de
tambm evoluir no sentido de no interromper nossos devaneios e com
eles deleitarmo-nos sem remorso (Felizes os que se instruem
brincando, ensina Fnelon)27.
E para recuperar este seu Ninho Roubado, requesta o beijo de
Euterpe e devota seus cnticos Lua, o seu Sol, o sol dos mendigos
(Noite Triste, 7 dc./1 v.), que em sua obra simboliza a divindade
da mulher e da fora fecundadora da vida, fundidas no culto Mater
Magna, porquanto:
essa corrente eterna e universal se prolonga no simbolismo
astrolgico, que associa ao astro das noites a presena da influncia
materna no indivduo,
23 F. Nietzsche, O Nascimento, ob. cit., p. 126. 24 Cfr. Ludwig
Feuerbach, Princpios, ob. e loc cit. 25 Esta a razo por que
Baudelaire diz:
nada se parece tanto com o que chamamos inspirao quanto a
alegria com que a criana absorve a forma e a cor (...) O gnio
somente a infncia redescoberta sem limites; a infncia agora dotada,
para expressar-se, de rgos viris e do esprito analtico que lhe
permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulada.
(O Artista, Homem do Mundo, Homem das Multides e Criana, in Poesia,
ob. cit., p. 856)
E Fernando Pessoa, na casca de Bernardo Soares:
... a poesia , por certo, qualquer coisa de infantil, de
mnemnico, de auxiliar e inicial. (Livro do Desassossego, trecho
227)
Segundo Victor-Pierre Stirnimann, Schelegel aponta uma ltima via
de acesso infncia perdida, um tempo em que ainda no havia fratura
entre o sujeito e o mundo:
a ascese operada pela reflexo, o mtuo estmulo e o espelhamento
dialgico do intelecto e da fantasia, que em seu percurso permitem
pensar o que ainda no representado, a noo que nunca chega a ser
conceito, mas que orienta o refletir. (Schlegel, carcias..., ob.
cit., p. 19)
26 Joo Gaspar Simes, Fernando Pessoa - breve histria da sua vida
e da sua obra (Difel, 1983, p. 56). 27 esta a verdadeira ars
poetica a que se refere Freud, como a tcnica de superar esse
nosso
sentimento de repulsa, sem dvida ligado s barreiras que separam
cada ego dos demais (Delrios, ob. cit., p. 110).
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enquanto me-alimento, me-calor, me-carinho, me-universo afetivo
... a parte do primitivo que dormita em ns, vivaz ainda no sono,
nos sonhos, nas fantasias, na imaginao, e que modela nossa
sensibilidade profunda. a sensibilidade do ser ntimo entregue ao
encantamento silencioso de seu jardim secreto, impalpvel cano da
alma, refugiado no paraso de sua infncia, voltado sobre si mesmo,
encolhido num sono da vida ...28
precisamente a em que ressai a ingnua profundidade de Canco29,
esse inocente, esse in-nocens, in-nocivo palavra, matria-prima da
poesia, posto chama as coisas pelo seu nome prprio30. Dele como de
todos os poetas pode-se dizer que assim permanece para conservar
seu quinho de sonho e com ele escudar-se ao pegar, nas prprias mos,
os relmpagos dos deuses, transform-los em cano e distribu-los aos
outros homens.
c - Poiesis: a totalidade
Por outro lado, no se pode olvidar que a anlise dos recursos
lingsticos utilizados por Canco termina por evidenciar a totalidade
harmoniosa de que a obra de Canco portadora, uma vez que
consubstancia a essncia da Poiesis, termo grego que simboliza a
unio entre a poesia, a msica e a pintura31.
c.1 - Ut musica poesis: como a msica, (deve ser) a poesia
(Horcio, Ars Poetica, verso
361, aplicado arte musical). No que respeita ao mbito rtmico, da
musicalidade, as sugestes estticas
apostas na obra de Canco podem ser sumariadas atravs das
diversas figuras de harmonia que utiliza na urdidura dos poemas,
evocando-lhes a msica latente, primeva, donde constri verdadeiras
poemsicas.
Denota-o o reiterado uso da aliterao: viu a vinda do inverno /
canta
contente o caro / o vento que vem convulso / os grilos trilam
tristonhos / mostrando, ainda, muitas marcas mortas. Tambm assim as
metforas, presentes em toda a sua obra (celeste vulco / rainha da
noite), que no pedem compreenso explcita, mas uma impresso geral e
tendncia de afirmao, coisas que soam, por si, j no meio caminho dos
'significantes sem significados' da msica32. 28 Jean Chevalier,
Dicionrio de Smbolos (Jos Olympio, 2006, pp. 564/565). 29 O poeta
Geraldo Amncio bem compreendeu essa particular ingenuidade de
Canco: cantando certa
vez no aniversrio de Lourival Batista, Geraldo observava Canco,
que cochilava numa cadeira enquanto Pinto do Monteiro cantava com o
aniversariante. Logo aps, despertou, exatamente quando Geraldo
tomava o lugar de Pinto na peleja. Dando incio ao baio com Louro,
Geraldo observou:
Canco s vezes parece no saber quem canta bem Pinto cantando, ele
dorme, eu vou cantar, ele vem mas todo gnio ingnuo no sabe o valor
que tem
30 Gerardo de Mello Mouro, entrevista:
http://virtualbooks.terra.com.br/entrevistas/morao/morao4.htm. 31
Dadas as limitaes inerentes a um texto desta natureza,
circunscrevemo-nos anlise dos aspectos
imagticos e rtmicos, que so aqueles que verdadeiramente
caracterizam a poesia. No se poderia deixar de registrar, no
entanto, a conhecida formulao exposta por Ezra Pound acerca das trs
dimenses do poema: a melopeia, que evoca a sonoridade; a fanopeia,
relacionada a seus aspectos visuais; e a logopeia, que respeita
construo das ideias no texto (ABC da Poesia, Moderna, 1991).
32 Gerson Valle, Msica e Poesia. Disponvel em , com acesso em
10/07/2008.
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Presente em toda a concepo potica de Canco, esta inteno
musical33
no passou despercebida ao Mestre Patativa do Assar, que em seu
poema Ao Poeta Joo Batista de Siqueira (Canco)34, vaticina:
Esta suave ternura De tua musa sublime Nos afugenta e tortura O
pranto que nos oprime Estas jias cintilantes De teus poemas
cantantes, Para mim so obras-primas Quer no prazer quer na mgoa Tu
fazes de um pingo de gua Um oceano de rimas Compondo a beleza rara
Da poesia sonora Tua noite sempre clara E o teu dia sempre aurora
Pois, mesmo sendo Canco, Gozas da mesma atrao Do famoso uirapuru
Teu verso causa cime E possui mesmo o perfume Das flores do Paje
Nos teus versos, caro amigo, Que jorram como a nascente, A gente
sente contigo Tudo que tua alma sente Com inspirao divina A tua
lira domina O vale, o serto e a serra Com melodias infindas
Colheste as flores mais lindas Que o teu Paje encerra
Atravs de tais fenmenos lingusticos, Canco oferece continuidade
tarefa de Arquloco, belicoso servidor das musas, que mereceu dos
gregos a especial distino de ser posto ao lado de Homero por haver
introduzido a cano popular na literatura atravs da inveno do metro
jmbico e fazer, assim, com que a linguagem envide todos os seus
esforos para imitar a msica35, o que, afinal de contas, consiste na
prpria essncia da poesia lrica (o prprio vocbulo lirismo advm de
lira, instrumento musical de cordas, e soneto originariamente
significa pequeno som).
Por tal razo que Nietzsche se refere poesia lrica como a
fulgurao
imitadora da msica em imagens e conceitos, salientando que o
fenmeno mais importante de toda a lrica antiga era a identidade, em
toda parte considerada 33 A expresso de Gerson Valle, citada na
entrevista referida na nota anterior. 34 Do livro Cante L Que Eu
Canto C (Vozes, pp. 117/120) (os grifos no constam do original). De
se
observar, por oportuno, que, em vez do correto Siqueira, por
equvoco editorial consta o sobrenome Cerqueira no livro Flores do
Paje, obra referida por Patativa do Assar, o que certamente levou o
mestre cearense a utiliz-lo nesta sua composio.
35 Assevera Cmara Cascudo que os gregos falam de Arquloco
(falecido em 560 a.C.) e especialmente numa sua inovao genial... O
canto acompanhado teria tido, desta forma, seu incio popular.
(Vaqueiros e Cantadores, Ed. Itatiaia, 1984, p. 190). Ver, ainda, a
respeito de Arquloco, a nota de Schlegel na obra Conversa, ob.
cit., pp. 35/36.
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natural, do lrico com o msico, concluindo, a respeito, que
(a obra de arte do poeta lrico) foi com razo qualificada de
repetio ou reproduo do mundo; esta msica torna-se-lhe depois mais
sensvel e, por influncia apolnea do sonho, visvel em imagens
simblicas (...) A cano popular aparece-nos, antes de mais, como
espelho musical do mundo, como melodia primordial que anda procura
da imagem de sonho que lhe seja irm para a exprimir num poema (...)
A poesia do poeta lrico nada pode exprimir que no esteja j contido,
com a mais extraordinria universalidade e perfeio, na msica que o
obrigou a fazer a traduo imaginal.36
Tambm por isto Hegel infere, poeticamente, que
A Plstica o signo do Esprito. Ela exprime a vida criadora, mas
paralisada e limitada pelo tempo e pelo espao. A Msica, ao
contrrio, revela-nos diretamente o movimento ntimo da alma, com
seus desejos e sentimentos eternos e sua aspirao ao infinito. A
Poesia, finalmente, a Msica Plstica. Ela pinta e esculpe por meio
de frases dotadas de mobilidade e por sons que se sucedem,
harmoniosamente ritmados. Ela a Arte suprema e exprime o pensamento
por imagens.37
Nesta senda, vale ressaltar que, no caso do poeta lrico, a
evocao dos j referidos filosofemas converge tambm para o fenmeno da
repetio, que, ao invs de mitigar-lhe a faculdade criativa,
notabiliza-o como artista visceralmente norteado pelo signo da
musicalidade, pois indicativo da j assinalada dependncia que o
lirismo possui quanto msica. Valho-me, uma vez mais, da lio de
Massaud Moiss:
Essa analogia metafrica dos predicativos decorre de a poesia
lrica caracterizar-se pela repetio, repetio no s no sentido formal
como no gnosiolgico. A estrutura sinttica em que o eu se mostra
regular, obedece a uma disposio fsica, elementar: sujeito +
predicado + predicativo. Evidentemente, o paralelismo pode lanar mo
de outros verbos, gerando estribilhos de vria natureza, mas o
resultado ser idntico: a recorrncia formal produzir o clima lrico,
como um retorno que garante a melodia e prope as solues do ritmo. O
consabido entrelaamento da lrica com a msica tem no fenmeno da
repetio um de seus mais poderosos sustentculos.38
36 O Nascimento, ob. cit., pp. 44 e 51. 37 Curso, ob. cit., p.
345. 38 Literatura, ob. cit., p. 279. Como ensina Manoel de Barros
(O Livro das Ignoras uma didtica da
inveno, Record, 1998, p. 11):
Repetir, repetir at ficar diferente. Repetir um dom do
estilo
A respeito do fenmeno da repetio e de sua importncia para a
caracterizao da obra do artista, vale registrar as argutas
observaes que Oscar Mendes lana sobre a obra de Shakespeare, quando
assinala que
(...) o ingls A. C. Bradley, professor de poesia em Oxford, no
seu estudo Shakespearean Tragedy, traou delas (das obras deste
dramaturgo) um quadro verdadeiro, que vai desde a sua composio como
tcnica teatral at sua significao mais profunda. (...) O que narra
sempre a histria de uma pessoa: o heri, ou de duas: o heri e a
herona (Romeu e Julieta, Antnio e Clepatra). E estes sempre morrem,
como clmax da tragdia. Nelas h sempre um contraste
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c.2 - Ut pictura poesis: como a pintura, (deve ser) a poesia
(Horcio, Ars Poetica, verso 361)
A este respeito, no mbito da percepo visual na obra de Canco
alcanam notvel relevo o delineamento pictrico, quase tctil, das
inutilezas naturais, minudncias que so mundos, donde extrai os
elementos para a confeco de verdadeiras telas, e o processo
adjetivante de que faz largo uso, suprindo, com o adjetivo, uma
relao lgica extensa, tornando imediata pela surpresa da relao
verbal uma sugesto que morreria, se se desdobrasse logicamente39. o
que se tem quando se refere, por exemplo, ao espao vermelho,
desabrida procela, tarde outonal, gua que vem chorosa, s noites
cravadas de vaga-lumes, voraz ternura da mulher, s lindas tardes
toldadas, boca triste da fonte, s manhs subdouradas, s brancas
nuvens franjadas, ao cu deserto ou sombra anilada.
Ressalte-se, por oportuno, que, embora no se pretenda 'filiar'
Canco a
qualquer escola literria40, certo que a evidenciao de seu estilo
atravs de uma frmula concisa, em que sejam ressaltados seus
aspectos mais relevantes, permite ousar dizer que sua obra se
ajustaria a uma espcie de Impressionismo, tendo em mira que
sedimentada, toda ela, na pormenorizao plstica dos elementos
naturais, em que ressai a vivacidade de cores fortes e ntidas, que
glorificam a variedade e a exuberncia de minudncias da Natureza do
Serto Profundo, de suas paisagens mais simples:
As regies despretensiosas existem para os grandes paisagistas;
as regies raras e notveis, para os pequenos. Isto : as grandes
coisas da natureza e da humanidade tm que interceder por todos os
pequenos, medianos e ambiciosos entre seus admiradores mas o grande
intercede pelas coisas mais simples41
Com efeito, os poemas do vate egipciense constituem verdadeiras
pinturas sonoras, em que, atravs de nuvens franjadas, da luz
cintilante, das rstias, valoriza-se, acima de tudo, a captao
imediata daquilo que, de fato, se consegue aperceber da Natureza em
movimento: alterao de luz e de atmosfera, sbitos raios de sol
rompendo por entre nuvens dispersas, enfim, ao que alude Raul
Brando, quando, na tentativa de retratar seus Stios Ignorados,
termina por confessar:
o que eu queria dar s o podem fazer os pintores os tons
molhados, os
entre uma grande felicidade anterior e o advento de sofrimentos
e calamidades fora do comum e inesperados, sendo quase sempre o
prprio heri que, pelos seus atos e pelas suas paixes, ocasiona tais
sofrimentos e tais catstrofes. (Nota Introdutria s Tragdias de
Shakespeare, in Wiiliam Shakespeare obra completa vol. 1 Nova
Aguilar, 1995, p. 57)
39 Esta concepo dada por Martinho Nobre Melo, na Apresentao de
Cesrio Verde (in Livro de Cesrio Verde, Ed. Agir, 1984, p. 26).
Ressalte-se, alis, que tal procedimento constitui notvel indcio da
valorizao que Cesrio Verde oferece vertente pictrica na poesia.
40 Mesmo porque sua obra no se deixa aprisionar pelos arqutipos
de nenhuma delas em particular, pois se do Classicismo adotou a
forma, no se deixou subjugar pelo estilo linear de descries
objetivas que o caracterizam; se do Romantismo acolheu a tendncia
apreenso da instantes fugazes de vibrao psicossomtica, dele no
agasalhou a liberdade potica (versos brancos e livres); se do
Simbolismo acolheu as variegadas e fecundas experincias meldicas,
dele se distanciou porque rejeitou o seu estilo elptico e hermtico,
permanecendo jungido s formas rmicas e mtricas da usana
parnasiana.
41 Nietzsche, Aurora reflexes sobre os preconceitos morais,
434.
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reflexos verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa
superfcie polida, e, por fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa
da luz.42
Ora, e no precisamente isto que Canco logra fazer?
A gua branda descia O sol, em nesgas vermelhas Pelo pequeno
gramado Vai atravessando o mangue A relva, fresca e macia, Aquelas
rubras centelhas Era um tapete rendado Parecem feitas de sangue Se
ouvia, l da colina, E o celeste vulco No corao da campina, Numa
santa erupo Soluar uma cascata Na montanha ainda arde E o sol, com
seus lampejos, Seus derradeiros lampejos Dava os derradeiros beijos
So eles restos dos beijos No rosto verde da mata Enfraquecidos da
tarde (Depois da Chuva) (Crepsculo)
O sol, guerreiro que veio do Oriente Passou o dia lutando
ferozmente Da guerra trouxe seu golpe assinalado Agoniza agora, e
atravs da tela infinda Pela grimpa da serra mostra ainda A metade
do rosto ensangentado (Crepsculo soneto)
Suas composies acumulam sensaes isoladas, detalhes, para a
captao
de um mundo de aparncias efmeras, em que inventa paisagens, que
parecem mais autnticas do que a realidade43, e sobre as quais se
poderia dizer que
tem-se a impresso de um pintor, que utilizasse as palavras em
lugar da tinta ... E de um pintor impressionista: a cena transcorre
ao ar livre; a descrio monta-se como uma soma de mincias pictricas,
semelhana de uma seqncia de pinceladas rpidas, superpostas, de
acordo com a tcnica pontilhista.44
Isto se deve ao fato de que, depois de se ter expandido
interiormente, o poeta lrico projeta a sua alma no mundo exterior
sob a forma de quadros descritivos, e por isso que, assim como os
pintores impressionistas, Canco um artista visceralmente popular e
essencialmente universal, vez que a estrutura pictrica de seus
poemas oferece expresso visual a fatos e a sentimentos, a idias e a
sonhos que, apesar de 42 Os Pescadores (Estudios Cor, s/d, pp.
18/19). 43 Keith Roberts, Obras-Primas do Impressionismo, Verbo,
1975, p. VIII. No clssico aforismo de
Terncio: Homo sum: nihil humani a me alienum puto Sou homem:
nada do que humano me alheio.
Gerson Valle aponta que esta caracterstica tanto mais visvel
entre os simbolistas, em que
tanto os msicos quanto os poetas tiraram da expresso dos
pintores a idia de representar imprecises, apenas impresses, o que,
de certa maneira, faz confluir para a msica toda a inteno artstica
desse tempo (sempre os 'significantes, mais evidenciados que os
'significados') (http://www.jornalpoiesis..., cit.)
44 Massaud Moiss, anlise ao captulo VIII de O Ateneu, de Raul
Pompia, in Literatura Brasileira Atravs dos Textos, Cultrix, 2004,
p. 290.
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originados no individual, exprimem o que h de mais geral e
profundo nas crenas, representaes e relaes humanas45.
Ainda a este respeito, cumpre assinalar que, no estro de Canco,
o assinalado
fenmeno artstico da repetio no descamba em paralisia
monotemtica, porquanto, ainda quando focaliza reiteradamente o
mesmo fenmeno, a cada vez que o faz, capta-o num espao-de-tempo
nico, apresenta-o sob uma nova ptica, surpreendendo-lhe aspectos
dantes no entrevistos, apreende-o, por fim, sob impresses
distintas, de acordo com a gama de sentimentos que, naquele
momento, so despertados em sua alma, de modo que, embora aludam s
mesmas realidades (p. ex., Manh de Chuva, Manh Sertaneja, Momentos
Matutinos, Horas Matutinas, Crepsculo Praieiro, Crepsculo,
Crepsculo - soneto), cada uma de suas composies possui contornos
prprios, que a singulariza em relao s demais.
d - Arabescos
Por tudo isto que se pode afirmar que as obras de Canco
constituem o exemplo mais contundente do paisagismo lrico herdado
pelo povo do serto nordestino da exuberante cultura rabe
transplantada para estas plagas pelos colonizadores
portugueses.
Com efeito, Alberto da Cunha Melo46 quem oferece dimenso erudita
da
potica rabe, herdada pelos poetas do serto nordestino,
poder-se-ia
... possvel supor, entre os rabes, duas categorias de poetas: de
um lado aparece o poeta que cultiva mesmo quando improvisa uma
linha de poesia sofisticada, lrica e cortes, um tanto retrica,
baseada em experincias pessoais, amatrias ... Do outro, o jogral
propriamente dito, com sua poesia-espetculo-reportagem; seu lendrio
pico-religioso, suas stiras e chacotas e seus vibrantes desafios
verbais.47
III - MALUNGOS
Noutro plano, igualmente com o objetivo de permitir a compreenso
da obra canconiana (e, de resto, da potica popular) no conjunto da
atividade artstica universal, que se traz a lume o paralelismo que
possui com a obra de outros mestres, a revelar a consanginidade
artstica existente entre eles e, portanto, a significao que suas
obras possuem no contexto da arte literria. o princpio esttico
referido por T. S. Elliot, quando afirma que
nenhum poeta nem qualquer outro tipo de artista tem seu
significado completo sozinho. Sua significao, sua apreciao, so a
apreciao de sua relao com os poetas e artistas mortos. No se pode
avali-lo isoladamente.
45 Cfr. Afrnio Coutinho, Introduo Literatura no Brasil, Bertrand
Brasil, 1995, p. 226. Isto porque
formar e dizer, segundo a fantasia, sem descrever as coisas na
respectiva existncia prtica, tal , com efeito, a finalidade e a
misso da poesia (Hegel, Curso, ob. cit., p. 374).
So comumente apontados como autores brasileiros impressionistas
Adelino Magalhes, Raul Pompia e Cornlio Pena.
46 O Repentista Nordestino e a Potica do Desafio, in Um Certo J
(Uzyna Cultural, 2004, p. 56). 47 Luis Soler, Origens rabes no
Folclore do Serto Brasileiro (Editora da UFSC, 1995, pp.
60/61).
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necessrio situ-lo por contraste e comparao com os mortos. E isto
um princpio esttico e no meramente crtica histrica.48
Desta forma, embora se admita o estabelecimento de graus de
grandeza
literria por meio de uma valorao objetiva, aqui no se intenta
propiciar qualquer espcie de exame comparativo entre produes
artsticas. Nesta ocasio, a indicao de tais recursos estilsticos
obedece exclusiva finalidade de trazer baila um dos aspectos mais
relevantes da proximidade sensria (sinfronia) que une seus
criadores, no sentido de evidenciar aquilo que Cmara Cascudo
denomina de poesia da continuidade sentimental49. De fato, no h que
se negar a existncia de aproximaes entre os seguintes excertos:
Era por uma dessas noites vagarosas do inverno, em que o brilho
de um cu sem lua vivo e trmulo; em que o gemer das selvas profundo
e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano
absoluta e ttrica. (Alexandre Herculano, Eurico, O Presbtero, Cap.
4)
e
Era por uma dessas tardes em que o azul do cu oriental - plido e
saudoso, em que o rumor do vento nas vergas - e montono e cadente,
e o quebro da vaga na amurada do navio e queixoso e ttrico. (Castro
Alves, Prlogo de Espumas Flutuantes)
Ou a coincidncia entre as seguintes composies:
Poeta, cant da rua Que na cidade nasceu Cante a cidade que sua
Que eu canto o serto que meu (Patativa do Assar, Cante L Que Eu
Canto C)
e
No sou um Manuel Bandeira Drummond nem Jorge de Lima No espereis
obra-prima Deste matuto plebeu Eles cantam suas praias, Palcios de
porcelana Eu canto a roa, a cabana, Canto o serto ... que ele meu!
(Rogaciano Leite, Aos Crticos)
Ou, no que se refere especificamente a Canco, o paralelismo que
existe entre
estas estrofes: 48 A Essncia, ob. cit., pp. 22/23. 49 Flor de
Romances Trgicos (Fundao Jos Augusto, 1982, p. VII). Rogaciano
Leite alude, a
propsito, ao intercmbio da famlia intelectual brasileira, A
Santos, in Carne e Alma (FUNDARPE, 1988, p. 11).
As guas silenciosas O sol alm se deitava Vo rolando preguiosas A
sua luz se esvasava L das colinas lodosas Pela ramagem da horta
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Se despenham sem alarde A brisa, em leves rudos A aragem
sertaneja Levava os ternos gemidos Sobre a paisagem que beija Da
tarde j quase morta Mansamente rumoreja (Depois da Chuva) Por
despedida da tarde (A Borborema)
e o seguinte trecho de prosa potica: Um concerto de notas graves
saudava o pr do sol e confundia-se com o rumor da cascata, que
parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder doce influncia da
tarde. Era a ave-maria (...) A brisa, roando as grimpas da
floresta, traz um dbil sussurro, que parece o ltimo eco dos rumores
do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre. (Jos de
Alencar, O Guarani, Cap. VII)
Ou, ainda, entre este excerto do vate egipciense:
Venho trazer-te a lembrana Daquele tempo passado Dos sopros da
brisa mansa Na orla verde do prado Lembrar-te as lindas verbenas
Por entre as flores pequenas Das manhs frescas e belas Venho chorar
minhas dores E trazer-te uma das flores Que nos viu passar por elas
(Lamentos Ao P De Um Tmulo)
e esta estrofe:
Trago-te flores - restos arrancados Da terra que nos viu passar
unidos E ora mortos nos deixa e separados (Machado de Assis, A
Carolina)
Ou, por fim, entre esta estrofe, tambm de Canco:
Vai a tabaroa roa Em um ar aborrecido No caminho mais seguido
Buscar gua no regato Se defendendo do mato Pra no molhar seu
vestido (Manh de Chuva, 4 dc./5 ao 10 vs.)
e estoutro trecho de prosa potica:
Por essa vereda meteram-se os dois irmos. Afonso adiante,
malhando com o basto os tufos de capim e relva para espantar as
cobras; Linda, no encalo, rocegando a fmbria da saia de musselina
para guard-la dos orvalhos. (Jos de Alencar, Til, cap. XI)
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18
De tudo isto, foroso concluir que uma judiciosa aproximao do
tema deve
necessariamente prestigiar os pontos de interseo existentes
entre criaes que possuem similar teor estsico (desimportantes, para
tanto, as geografias e os tempos), circunstncia esta que, ao
contrrio do que o entende o senso comum, constitui um dos mais
relevantes aspectos da valorosidade de todas elas, uma vez que o
produto final ser o gnio, e ser to final depois como antes50. No
por outra razo, alis, que Maximiano Campos assevera que
Emerson talvez tivesse razo quando afirmava, querendo se referir
a Shakespeare: O maior gnio o homem mais endividado. Por isso,
existe e existir sempre um parentesco entre as grandes obras
universais. Esse parentesco que h entre o romance de Joyce e a obra
de Homero, a filosofia de Nietzsche e a msica de Wagner, entre
Dostoievski e Gogol, a poesia de Baudelaire e a de Edgar Allan
Poe.51
a Dos labutos
Ademais, ao propsito de evidenciar tal parentesco artstico
alia-se outro intento, que lhe segue como conseqncia inevitvel:
fornecer um contributo para a desmistificao da assim denominada
cultura popular, entendida, aqui, como conjunto de prticas,
representaes e formas de conscincia que possuem lgica prpria, e no
como algo posto em antagonismo em relao chamada cultura erudita52.
Isto porque
a defesa do sentido integrado da expresso popular poderia e
deveria conduzir a uma reflexo sobre o modo peculiar de significao
da literatura oral. Se, ao contrrio, o pesquisador se limita a
constatar que acima da rima [est] a nota da cano, se no enfrenta a
complexa diferena desta poesia mediante a construo, a partir da
prpria poesia, de uma proposta crtico-terica tambm sujeita a
tratamento diferencial, sua percepo do objeto potica, alm de se
achar inevitavelmente limitada, converte-ser em foco de ambigidade
e discriminao
quando o que ocorre, no entanto, que
sua diferena (da poesia popular), quando no meramente traduzida
em inferioridade, enseja uma perspectiva ambivalente, que mistura
apreo e menosprezo, fascnio e censura, e que parece estar associada
hesitao entre valorizar e repudiar a espontaneidade da criao53
Neste sentido, emblemtico o caso de Canco, cuja verve
comumente
atribuda uma espcie de sobrenaturalismo, mormente pelo opulento
uso de recursos literrios e de abastado vocabulrio, presumidamente
inacessveis a algum que, como ele, 50 Fernando Pessoa, Antologias
de Esttica, Teoria e Crtica Literria (Ediouro, 1988, p. 34). 51
Posfcio ao Romance dA Pedra do Reino, de Ariano Suassuna (Jos
Olympio, 2005, p. 752). 52 Cfr. Marilena Chau, Cultura Popular, in
Cultura e Democracia (Cortez, 2006, p. 34). A respeito das
influncias na formao da poesia trovadoresca em Portugal, Yara
Frateschi Vieira assinala que a tese litrgica defende que aquilo
que se tem chamado de literatura popular nada mais do que uma
estilizao de formas da cultura dominante e que entre poesia popular
e poesia culta ou artstica no h uma 'diviso impenetrvel', in Poesia
Medieval literatura portuguesa (Global Editora, 1987, pp.
27/28).
53 Cludia Neiva de Matos, A Poesia..., ob. cit., p. 185 grifos
do original.
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somente possua instruo escolar primria, donde possvel inferir as
prfidas implicaes advindas da perspectiva de pretender categoriz-lo
como malassombrado e da pretender que a anlise de seu labor potico
deva restringir-se a arqutipos de simplismo, porquanto tal atitude,
ordinariamente entendida como valorativa, , na verdade,
profundamente perniciosa para a sua obra, quando se sabe que da
pode advir a deletria mutilao do fenmeno literrio por meio da
disjuno entre o popular/inspirao e erudito/reflexo54. Tem plena
aplicao aqui, portanto, a lio de Hegel quando assinala que
um preconceito muito comum aquele que diz ter a arte comeado em
simplicidade e em naturalidade ... A arte concebe, porm, o natural,
o vivente e o simples de um modo muito diferente (...) A beleza,
quando relacionada com a obra de arte, exige, logo de comeo,
sucessivas tentativas e demorado exerccio para chegar ao domnio de
uma tcnica perfeita. A simplicidade, na sua relao com o belo ...
resulta de esforo despendido aps numerosas mediaes que tiveram por
fim eliminar a variedade, os exageros, as confuses ...55
Isto porque atravs de um vis de razes preconceituosas, que
vislumbra a
potica popular como um trao folclrico, como um dado pitoresco de
nossa cultura, que se consuma a estigmatizao da expresso artstica
do poeta lrico como circunscrita a um carter de irracionalidade, e,
pois, como elemento inservvel ponderao lgico-cientfica, quando o se
tem, na verdade, que
... a entronizao da poesia popular na esfera imaculada da
palavra voltil pode representar um mecanismo sutil de excluso:
conceituar um objeto de maneira a revesti-lo de uma aura inefvel,
de uma natureza inapreensvel, equivale em certa medida a confina-lo
longe de nossos olhos e de nossas mos, guarda-lo intacto e frgil na
redoma do passado, interditar-lhe toda
54 Maria Didier, Emblemas da Sagrao Armorial (Ed. UFPE, 2004, p.
33). Sob essa tica, Nietzsche
assevera que
... no mnimo questionvel que a superstio relativa ao gnio, a
suas prerrogativas e poderes especiais, seja proveitosa para o
prprio gnio, quando nele se enraza. (Humano..., Aforismo 164, ob.
cit., p. 117).
55 Curso, ob. cit., p. 5. Exemplo disso o que relata T. S.
Elliot acerca do Hamlet, de William Shakespeare, ao assinalar:
As primeiras 22 linhas so construdas com as palavras mais
simples, na linguagem mais corriqueira. Shakespeare tinha
trabalhado durante longo tempo no teatro, e j havia escrito uma boa
quantidade de peas, antes que alcanasse o ponto em que poderia
escrever essas 22 linhas. No h nada to simplificado nem to seguro
em sua obra prvia (A Essncia., ob. cit., p. 109)
Nesse mesmo sentido, ao ponderar acerca da labuta artstica,
Nietzsche assinala a importncia do exerccio criativo, asseverando,
enfaticamente:
A Crena Na Inspirao ... a improvisao artstica se encontra muito
abaixo do pensamento artstico selecionado com seriedade e empenho.
Todos os grandes foram grandes trabalhadores, incansveis no apenas
no inventar, mas tambm no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar. A
seriedade do ofcio S no me falem de dons e talentos inatos! Podemos
nomear grandes homens de toda espcie que foram pouco dotados. Mas
adquiriram grandeza, tornaram-se gnios (como se diz) por qualidades
de cuja ausncia ningum que dela esteja cnscio gosta de falar: todos
tiveram a diligente seriedade do arteso, que primeiro aprende a
construir perfeitamente as partes, antes de ousar fazer um grande
todo ... (Humano..., Aforismos 155 e 163, ob. cit., pp. 111 e
116).
No mesmo sentido, a crtica de Baudelaire queles que despojam ...
o gnio de sua racionalidade e lhe atribuem uma funo puramente
institiva e, por assim dizer, vegetal (Richard Wagner e Tannhuser
em Paris, in Crtica Musical - Poesia e Prosa, Nova Aguilar, 1995,
p. 923).
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possibilidade de conexo com o presente vivo e ativo.56
b - xtase
Nesta linha de raciocnio deve-se ter em conta que hodiernamente
possvel qui necessrio elaborar uma tentativa de compreenso de sua
potica (e, de resto, da atividade artstica lato sensu) atravs do
estudo do desenvolvimento de potencialidades relacionadas a estados
alterados (ou superiores) de conscincia, glorificados como fontes
supremas de criatividade57. Cuida-se, aqui, das chamadas
experincias ocenicas (Freud), experincias numinosas (Jung) ou
experincias culminantes (A. Maslow), em que o sujeito experimenta
uma temporria dissoluo do ego e a expanso da conscincia e da
auto-percepo, de forma a incluir e abranger outros elementos do
mundo exterior.
o que vislumbra Brulio Tavares, em precioso artigo em que
discorre sobre
a viso csmica em Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos,
ao asseverar que
so numerosos os relatos de indivduos que declaram haver
experimentado em algum momento um vislumbre visionrio em que o
mundo inteiro parecia estar presente diante de si, e em que todas a
coisas pareciam embebidas de significao. Ao emergir de uma
experincia desse tipo, as pessoas de ndole religiosa a consideram
uma iluminao mstica, um sinal da presena da Divindade (...) Os
poemas 'As Cismas do Destino' (Augusto) e 'A Mquina do Mundo'
(Drummond) descrevem experincias desse tipo. Em ambos, o poeta faz
a ss uma caminhada, e comea a ser dominado pela sensao cada vez
mais intensa da presena (quase que da aproximao) do Mundo. Ele tem
a impresso de que o mundo se personifica, o mundo lhe dirige a
palavra; segue-se uma torrente de imagens que procuram, de modo
fragmentrio, exprimir esse 'recado do Mundo'. A viso fugaz e logo
se desvanece; o poeta constata a impossibilidade de apreender o
Mundo, cuja complexidade transcende o intelecto e seus sentidos
(...) Em ambos os poemas ... esto presentes os mesmos elementos: a
Caminhada; a contemplao da Paisagem; a brusca Revelao; o Recado do
Mundo58
56 Cludia Neiva de Matos, A Poesia Popular na Repblica das
Letras: Slvio Romero folclorista (Editora
UFRJ Minc/Funarte, 1994, p. 194). 57 No texto O Mistrio do
Intuio, Cultrix, citado no endereo eletrnico
imagick.org.br/zbolemail/Bol07x03/BE03x12.html, Brian Ings e
Ruth West assinalam que em seu livro Mysticism, F. C. Happold
identificou as caractersticas mais marcantes de tais estados: no
podem ser prontamente descritos com palavras; proporcionam vises
interiores 'que trazem consigo um sentido tremendo de autoridade;
so transitrios, e raramente duram mais que alguns minutos; no podem
ser preparados; do 'uma conscincia da unicidade de tudo'; deixam um
sentido de intemporalidade.
Alis, sintomtica a assombrosa semelhana que se observa entre o
labor potico de Augusto dos Anjos e o de Canco. Sobre o vate
paraibano, com apoio em Raimundo Magalhes Jr., Brulio Tavares
assevera que textos como 'Poema Negro' e 'Tristezas de um quarto
minguante' so certamente retratos fiis das madrugadas insones em
que metrificava seus delrios. No de admirar que declarasse sentir,
no momento de criar seus versos, 'uma srie indescritvel de fenmenos
nervosos, acompanhados muitas vezes de uma vontade de chorar'.
Canco, por sua vez, assim relata a um interlocutor (Urbano Lima?) a
sua faina criativa:
Int.: - Na hora em que voc est escrevendo, sente alguma coisa
estranha? Canco: - Sinto: calafrios, gua nos olhos. Int.: - Qual a
hora em que voc mais se dedica a escrever? Canco: - Meia-noite ou
madrugada. Int.: - Voc se levanta para...? Canco: - Me levanto para
escrever. Sem ver ningum minha frente.
58 In A viso csmica em Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos
Anjos. As semelhanas e
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Ao leitor atento decerto no escapar o fato de que tais
experincias permeiam a febril atividade criativa de Canco. A ttulo
exemplificativo, colha-se o que registra nos poemas Viso de um
Sonho, Sonhando ao Relento e Um Sonho Que Durou Trs Horas. Nestes
ltimos, assim enuncia o itinerrio de seu 'vislumbre
visionrio59:
Dormindo, sonhei que via Dormi, sonhei que voava Um campo verde
bordado Buscando um pas distante Caa a neve em punhado Pra ver se
desencantava Pela pelcia macia Um dia, um reino brilhante O
arvoredo se erguia Depois que muito voei Enquanto o vento passava
Alm, alm, avistei Parecia que contava Vastos planaltos risonhos
densa folhagem sua Era o Reinado das Rosas, Algumas lendas da Lua
De belas veigas relvosas Que a Natureza ocultava Subdouradas dos
sonhos Sentia a alma enlevada Olhava a variedade Ao contemplar os
verdores Das flores pelos caminhos Olhava por entre as flores
Ouvindo a sonoridade Uma virgem ajoelhada Do canto dos passarinhos
A sua face nevada De uma pequena roseira Mostrava um ar prazenteiro
Entre a folha e a madeira Sorria ao beijo maneiro Uma virgem
aparecia Do vento que a noite espalha Cantava baixa cano Olhando o
cu entre a palha A sublime entoao De um verdejante coqueiro S ela
compreendia Depois, por entre os bambus Andando bem vagarosa
Ligeiramente fugia Entre a neve se envolveu De longe ainda eu a via
Entrou num clix de rosa Por uma farpa de luz Dali desapareceu Nos
horizontes azuis Procurei-a em todo canto Prestava toda ateno Senti
saudade e meu pranto Olhando pra vastido Sobre a relva derramei Do
campo verde e sereno A sua transformao Cheirando um lrio pequeno
Foi na mesma ocasio Que apertava na mo Em que tambm despertei Hora
que ainda dormia Esse sonho, essa iluso Entre o gramado pequeno Eu
nunca mais esqueci Branco lenol de sereno A mais sublime feio Toda
a floresta cobria Da santa mulher que vi Despertei pela folia As
flores, os pirilampos, Da pequena passarada O prado, o planalto, os
campos, Reparei, no vi mais nada O chorar dos vendavais, Sentia s a
frieza Um cu tranquilo de glria Da brisa que a Natureza E a
lembrana dessa histria Espalha na madrugada No morrer nunca mais
(Sonhando ao Relento) (Um Sonho Que Durou Trs Horas)
coincidncias entre os poemas As Cismas do Destino, do poeta
mineiro: o de Drummond uma citao deliberada do de Augusto, extrado
de revista.agulha.nom.br/augusto17.html.
59 Trata-se, aqui, de tema de estudo da denominada Psicologia
Transpessoal, sobre a qual vale consultar Mrcia Tabone, A
Psicologia Transpessoal, Cultrix; Shultz, Histria da Psicologia
Moderna, Cultrix; J. Lacoste, A Filosofia da Arte, Ed. Jorge Zahar.
Na rede de computadores, consulte-se, dentre outros: Carlos Antnio
Fragoso Guimares, A Natureza Transpessoal., ob. cit.; Giuliana
Gnatos Lima Bilbao e Vera Engler Cury, O Artista e Sua Arte: Um
Estudo Fenomenolgico, in
sites.ffclrp.usp.br/paideia/artigos/33/12.htm; Alexandre
Pedrassoli, Psicologia Transpessoal, in
pedrassoli.psc.br/psicologia/psitrans.aspx.
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Ergo, como em Mrio de Andrade e em Augusto dos Anjos, tambm em
Canco o que se tem a verbalizao de uma experincia de iluminao
pessoal, e assim naqueles como neste, do ponto de vista literrio,
no interessa se os poetas experimentaram de fato uma 'iluminao' ou
se apenas a imaginaram (Brulio Tavares, cit.). Consequncia desta
assertiva, e por tudo o mais que se logrou demonstrar alhures, a
absoluta desimportncia da discusso acerca da intencionalidade de
utilizao de tais ou quais recursos literrios pelo vate egipciense,
uma vez que, como se logrou demonstrar, tal evocao encontra arrimo
no apenas em seu incessante percurso pela produo literria de
luminares da arte literria, como tambm em elementos psquicos (i)
pr-pessoais (individuais e coletivos, bem ainda lembranas
filogenticas, que formam a vida pr-consciente do intelecto60) e
(ii) ps-pessoais (a exemplo das j referidas experincias
transpessoais), vez que
o poeta e o sonhador, entrando em contato com o seu prprio
inconsciente (tanto o pessoal como o filogentico) descortinam uma
realidade que vai alm dos limites de sua prpria individualidade
(includa a, talvez, o que Freud chama de sonhos seculares da
humanidade jovem, op. cit., p. 109). Pois a possibilidade de estar
prximo das fontes inconscientes propicia-lhes um conhecimento que
se poderia chamar de intuitivo no sentido etimolgico: de in
(dentro) + tuor (ver); um ver dentro, que geralmente denominamos,
colonizadamente, insigth61
Desta forma, quando se alude inspirao que o arrebata com a
pretenso nica de enaltecer o arroubo e a profundidade de sua
embriaguez onrica, de uma tal concepo no advm qualquer prejuzo de
vulto sua obra como resulta dos poticos eptetos de poeta
intraterrestre e incgnita do verso, atribudos a Canco. O perigo de
uma tal concepo est, isto sim, em considerar que sua verve derive
de aspectos caracterizados unicamente pela irrazoabilidade, e, com
isso, estabelecer uma oposio entre arte primitiva (naf, instintiva)
e arte refletida (racional, cultivada), ou seja, de seccionar mais
uma vez pensamento e sentimento, colocando-os nas perspectivas, que
perduraram e perduram, de definir o popular como a esfera do
sentimento e o erudito como a esfera do pensamento ordenado62, e,
com isso, perder o sentido de sua historicidade, vez que
alijada do movimento histrico, confinada numa periferia
idealmente imobilizada, expurgada de toda relao dinmica com a
cultura viva, ela (a cultura popular) se presta docilmente
manipulao reificadora. Reificada, desloca-se discretamente do mbito
da Arte e da Cultura para o da
60 Jacques Maritain, apud Ariano Suassuna, ob. cit., p. 35. A
isto alude Freud, quando assevera que
os poetas so aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de
coisas entre o cu e a terra com as quais o nosso saber escolar
ainda no nos deixou sonhar. Esto bem adiante de ns, gente comum, no
conhecimento da psique, j que se nutrem de fontes que ainda no
tornamos acessveis cincia. (Delrios, ob. cit., p. 45)
Acerca do inconsciente coletivo, a que se refere Jung, e sua
confluncia para a Psicologia Transpessoal, veja-se a excelente obra
Argonautas dos Espaos Interiores, de Anna Mathilde Nagelshmidt (Ed.
Vetor).
61 Adlia Bezerra de Meneses, O Sonho, ob. cit., p. 25. 62 Maria
Didier, Emblemas, ob. cit., p. 67. Como o denuncia Nietzsche (O
Nascimento, ob. cit., p. 83), a
perspectiva irracionalista expressa por Plato em seus dilogos on
e Fedro, em que atribui a faculdade criadora do poeta, no ao
discernimento [Einsicht] consciente, mas a uma espcie de xtase
divino.
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Natureza63
Tais consideraes, evidente, no possuem o condo de desmerecer o
entendimento de que Canco efetivamente semelhana das coisas mais
puras do Paje64. Longe disso; aqui se busca apenas apontar o perigo
que h em se deixar de vislumbrar sua obra tambm sob uma ptica que
evidencie o aspecto relacionado j apontada dico erudita de seu
estro.
Neste contexto, nos mesmos moldes em que se logrou repelir o
entendimento
que pugna a imprestabilidade da atividade artstica anlise
cientfica, cumpre igualmente rejeitar a concepo segundo a qual tal
exame, embora admitido, deva se circunscrever ao estudo de aspectos
caracterizados pela irrazoabilidade. De fato, embora a potica
lrico-popular possa ser entendida como essencialmente espontnea,
ldica (circunstncia que constitui, alis, a sua originalidade mais
profunda65), insofismvel que esta compreenso no refuta a anlise de
seus aspectos formais, de modo que sua apreenso deve se fundar na
sntese dialtica entre a embriaguez e a forma, entre o apolneo e o
dionisaco, num sentido de integrao ambivalente entre a reflexo
racional e o xtase sonhoso66, o que consiste, ao fim e ao cabo,
numa das mais contundentes formas de proclamao de sua dignidade,
como das mais nobres expresses do gnio humano.
IV - GRATIA Feitas tais consideraes, convm uma palavra acerca da
vultosidade das
citaes apostas, aqui e nas aludidas notas: se muitos so os
autores e as obras a que se faz referncia, decerto que isto no se
deve ao atendimento de qualquer arroubo de vaidade do organizador
que repudiava o pedantismo j na remota quadra da vida em que seria
tolervel o cultivo de vanglrias , mesmo porque tal recurso somente
evidencia a debilidade de quem, para fazer chegar o de-comer a
outros sfregos pedintes, v-se coagido a esmolar com a cuia alheia.
O requesto a to numerosas citaes teve o propsito, isto sim, de
fornecer uma plida amostragem de algumas das mais expressivas
composies literrias (com o propsito de instigar os leitores a se
embrenhar no universo criativo de seus autores) e, ainda, de
oferecer subsdios imprescindveis (embora, evidncia, insuficientes)
a um oportuno e adequado estudo da potica de Canco. Isto tendo em
vista a sua polifrmica e complexa fisionomia literria, vazada,
ademais, numa exuberante diversidade estilstica que vai da quadra
(em sua maior parte com as belas e dificlimas rimas encadeadas) ao
soneto, passando pela quintilha, pela sextilha, pela oitava (com
versos de cinco e de sete slabas, em formatos diversos) e pela
dcima (em versos setisslabos e decasslabos, monostrfica e em
formatos diversos, desde o mais comum ABBAACCDDC dcima espanhola ou
espinela ao ABABCCDEED dcima 63 Cludia Neiva de Matos, ob. cit., p.
172. 64 Zeto, introduo ao poema Sonho de Sabi. 65 Cfr. Maria
Didier, Emblemas, op. cit., p. 65. 66 Nietzsche, O Nascimento., ob.
cit., p. 77. Noutro texto, o filsofo explicita:
A embriaguez apolnea excita sobretudo o rgo visual, de maneira a
produzir-lhe a acuidade da viso ... Ao contrrio, no estado
dionisaco, todo o sistema emotivo que ativado e dilatado, de modo
que descarrega de uma s vez a totalidade dos seus meios de expresso
e pe em jogo a sua fora de representao, imitao, transfigurao e
metamorfose, toda espcie de mmica e fico simultaneamente (Crepsculo
dos dolos, Companhia das Letras, 2006, p. 34).
Na j citada obra Tramas do Sagrado..., a pesquisadora Simone
Guerreiro aponta tal caracterizao em relao ao vate baiano, figura
contraditria, pois se enreda na teia que emaranhou, oscilando entre
o fascnio do artista pelos mitos, pela riqueza cultural do Brasil
sertanejo onde o sagrado dionisaco e plural e a crena do homem
religioso, orientado por um sagrado centrado e fixo, que tende mais
ao apolneo. (p. 26).
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portuguesa ou recitativa, especialidade canconiana). De todo
modo, de tudo penso que resulta uma vantagem que se estende a
todos: a Canco, de quem se evidencia a magnificncia de sua criao
artstica atravs da indicao da aproximao estsica que possui com
diversos outros luminares da arte literria de todos os tempos e
lugares; aos leitores, a quem se proporciona uma incipiente
aproximao com a essncia de significativas produes artsticas de
diversos matizes; aos prprios autores citados, a quem se faz justia
por se dar a conhecer pelo nome quem dadivosamente compartilha as
mais primorosas criaes de sua extraordinria faculdade inventiva,
verdadeiros transportes que apontam para a alegre necessidade da
experincia onrica, na contundente expresso de Nietzsche67.
Ainda a este respeito, registre-se que se teve o cuidado de
evitar o
sobrecarregamento do volume com notas em demasia e, para isto,
convencionou-se utiliz-las somente quando verificadas distines
significativas entre as verses apresentadas, relevando-se meras
incorrees tipogrficas ou de pouca monta. Convencionou-se, tambm, o
uso das seguintes abreviaturas: v(s). = verso(s); terc(s). =
terceto(s); quad(s). = quadra(s); quint(s). = quintilha(s);
sext(s). = sextilha(s); oit(s). = oitava(s) e dc(s). = dcima(s) e
inseriu-se, ao final, um pequeno vocabulrio.
Por fim, um preito de gratido: nas pessoas de Joana Darc,
Juberlita,
Tefanes Leandro, Ida de Coraci, Antnio de Catarina, Reginaldo
Sujinho, Joselito Nunes, Edvaldo da Bodega, Pedro Torres Tunu, Ded
Monteiro, Didi Patriota e Nenem de Santa agradeo a todos os
sonhosos malungos e companheiros d'armas desta quixotesca demanda,
cujo termo nos honra a todos, ante o oferecimento de uma escassa
contribuio irredenta cultura do Povo do Serto Profundo, nosso e de
outras plagas, atravs desta modesta homenagem a Canco, Osris da
Terra dos Faras da Poesia.
Lindoaldo Campos
67 O Nascimento, ob. cit., p. 34.