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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, vol. 43, e20200448 (2021) Artigos Gerais www.scielo.br/rbef cb DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0448 Licenc¸a Creative Commons Sobre a Dedu¸ ao do Axioma de Carath´ eodory da Segunda Lei da Termodinˆ amica dos Princ´ ıpios de Clausius e Kelvin On the Deduction of the Carath´ eodory’s Axiom of the Second Law of Thermodynamics from the Clausius and Kelvin Principles Pedro F. da Silva J´ unior *1 1 Universidade Federal de Pernambuco, N´ ucleo de Forma¸c˜ ao Docente, Caruaru, PE, Brasil. Recebido em 22 de outubro de 2020. Revisado em 25 de dezembro de 2020. Aceito em 28 de dezembro de 2020. O formalismo de Carath´ eodory para a termodinˆ amica cl´ assica ´ e uma rica abordagem alternativa para essa teoria, apesar de impopular entre estudantes e professores de f´ ısica. Essa abordagem dispensa o conte´ udo das aquinas t´ ermicas para a apresenta¸ ao da segunda lei da termodinˆ amica. Neste artigo, discutimos o formalismo de Carath´ eodory historicamente, e mostramos como o axioma de Carath´ eodory da segunda lei da termodinˆ amica se deduz, didaticamente, do princ´ ıpio de Clausius e do princ´ ıpio de Kelvin. Al´ em disso, fornecendo tamb´ em um car´ ater objetivo para este artigo, no sentido de buscar popularizar o ensino do formalismo de Carath´ eodory em disciplinas de termodinˆ amica cl´ assica em n´ ıvel de gradua¸c˜ ao, guiamos o leitor at´ e a obten¸ ao da entropia e do conte´ udo matem´atico da segunda lei da termodinˆ amica atrav´ es desse formalismo. Por ´ ultimo, considerando a ampla literatura revisada, a prova que demos para a dedu¸c˜ ao do axioma de Carath´ eodory da segunda lei da termodinˆ amica a partir do princ´ ıpio de Clausius ´ e nova. Palavras-chave: formalismo de Carath´ eodory, axioma de Carath´ eodory, segunda lei da termodinˆ amica, princ´ ıpio de Clausius, princ´ ıpio de Kelvin. Carath´ eodory’s formalism for classical thermodynamics is a rich alternative approach to this theory, although unpopular with students and physics professors. This approach dispenses with the content of thermal machines for the presentation of the second law of thermodynamics. In this paper, we discuss Carath´ eodory’s formalism historically, and show how Carath´ eodory’s axiom of the second law of thermodynamics is derived, didactically, from the Clausius principle and the Kelvin principle. In addition, also providing an objective character for this paper, in the sense of seeking to popularize the teaching of Carath´ eodory’s formalism in disciplines of classical thermodynamics at undergraduate level, we guide the reader to obtain the entropy and mathematical content of the second law of thermodynamics through this formalism. Finally, considering the wide reviewed literature, the proof we gave for deducing the Carath´ eodory’s axiom of the second law of thermodynamics from the Clausius principle is new. Keywords: Carath´ eodory’s formalism, Carath´ eodory’s axiom, second law of thermodynamics, Clausius principle, Kelvin principle. 1. Introdu¸ ao Na f´ ısica, costumeiramente somos apresentados a abor- dagens conceituais e matem´ aticas distintas, por´ em equi- valentes, para uma mesma teoria. Por equivalentes entende-se dizer que essas descri¸c˜ oes distintas para uma mesma teoria obtˆ em, sem nenhuma perda de conte´ udo ısico, os mesmos resultados finais. Al´ em disso, geral- mente, os caminhos e m´ etodos utilizados por cada des- cri¸ ao diferem enormemente entre si. A essas descri¸ oes distintas para uma mesma teoria damos o nome de formalismos. Um caso famoso de formalismos na f´ ısica ocorre na mecˆ anica cl´ assica, onde temos os formalismos devidos a Newton, Lagrange, e Hamilton. Outra disciplina da f´ ısica que permite o uso de for- malismos ´ e a termodinˆ amica cl´ assica. A termodinˆ amica * Endere¸co de correspondˆ encia: [email protected] cl´ assica ´ e a perspectiva da termodinˆ amica que estuda os sistemas f´ ısicos a partir das leis que generalizam as observa¸c˜ oes feitas sobre o comportamento macrosc´opico desses sistemas. Para isso, a termodinˆ amica cl´ assica des- considera a natureza microsc´opica da mat´ eria. Isso difere de outra perspectiva famosa da termodinˆ amica que considera para a sua descri¸ ao a natureza microsc´opica da mat´ eria e os avan¸cos da mecˆanicaestat´ ıstica. Essa outra perspectiva da termodinˆ amica ´ ea termodinˆamica estat´ ıstica. N˜ ao ser´ a sobre a termodinˆ amica estat´ ıstica que estaremos lidando aqui. A termodinˆ amica cl´ assica ´ e uma ´ area da f´ ısica al- tamente solidificada e bem estabelecida em todo o meio cient´ ıfico. Outrossim, trata-se de uma teoria cujo conte´ udo ´ e consideravelmente popular, desde os n´ ıveis mais b´ asicos de educa¸c˜ ao em ciˆ encias, at´ e em cursos de n´ ıvel superior em f´ ısica e ´ areas afins, como qu´ ımica, engenharias, etc. Assim, o material te´ orico fundamental Copyright by Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.
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Jul 25, 2022

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200448 (2021) Artigos Geraiswww.scielo.br/rbef cb

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0448 Licenca Creative Commons

Sobre a Deducao do Axioma de Caratheodory da SegundaLei da Termodinamica dos Princıpios de Clausius e Kelvin

On the Deduction of the Caratheodory’s Axiom of the Second Law of Thermodynamicsfrom the Clausius and Kelvin Principles

Pedro F. da Silva Junior*1

1Universidade Federal de Pernambuco, Nucleo de Formacao Docente, Caruaru, PE, Brasil.

Recebido em 22 de outubro de 2020. Revisado em 25 de dezembro de 2020. Aceito em 28 de dezembro de 2020.

O formalismo de Caratheodory para a termodinamica classica e uma rica abordagem alternativa para essateoria, apesar de impopular entre estudantes e professores de fısica. Essa abordagem dispensa o conteudo dasmaquinas termicas para a apresentacao da segunda lei da termodinamica. Neste artigo, discutimos o formalismode Caratheodory historicamente, e mostramos como o axioma de Caratheodory da segunda lei da termodinamicase deduz, didaticamente, do princıpio de Clausius e do princıpio de Kelvin. Alem disso, fornecendo tambem umcarater objetivo para este artigo, no sentido de buscar popularizar o ensino do formalismo de Caratheodory emdisciplinas de termodinamica classica em nıvel de graduacao, guiamos o leitor ate a obtencao da entropia e doconteudo matematico da segunda lei da termodinamica atraves desse formalismo. Por ultimo, considerando aampla literatura revisada, a prova que demos para a deducao do axioma de Caratheodory da segunda lei datermodinamica a partir do princıpio de Clausius e nova.Palavras-chave: formalismo de Caratheodory, axioma de Caratheodory, segunda lei da termodinamica, princıpiode Clausius, princıpio de Kelvin.

Caratheodory’s formalism for classical thermodynamics is a rich alternative approach to this theory, althoughunpopular with students and physics professors. This approach dispenses with the content of thermal machinesfor the presentation of the second law of thermodynamics. In this paper, we discuss Caratheodory’s formalismhistorically, and show how Caratheodory’s axiom of the second law of thermodynamics is derived, didactically,from the Clausius principle and the Kelvin principle. In addition, also providing an objective character for thispaper, in the sense of seeking to popularize the teaching of Caratheodory’s formalism in disciplines of classicalthermodynamics at undergraduate level, we guide the reader to obtain the entropy and mathematical content ofthe second law of thermodynamics through this formalism. Finally, considering the wide reviewed literature, theproof we gave for deducing the Caratheodory’s axiom of the second law of thermodynamics from the Clausiusprinciple is new.Keywords: Caratheodory’s formalism, Caratheodory’s axiom, second law of thermodynamics, Clausius principle,Kelvin principle.

1. Introducao

Na fısica, costumeiramente somos apresentados a abor-dagens conceituais e matematicas distintas, porem equi-valentes, para uma mesma teoria. Por equivalentesentende-se dizer que essas descricoes distintas para umamesma teoria obtem, sem nenhuma perda de conteudofısico, os mesmos resultados finais. Alem disso, geral-mente, os caminhos e metodos utilizados por cada des-cricao diferem enormemente entre si. A essas descricoesdistintas para uma mesma teoria damos o nome deformalismos. Um caso famoso de formalismos na fısicaocorre na mecanica classica, onde temos os formalismosdevidos a Newton, Lagrange, e Hamilton.

Outra disciplina da fısica que permite o uso de for-malismos e a termodinamica classica. A termodinamica

* Endereco de correspondencia: [email protected]

classica e a perspectiva da termodinamica que estudaos sistemas fısicos a partir das leis que generalizam asobservacoes feitas sobre o comportamento macroscopicodesses sistemas. Para isso, a termodinamica classica des-considera a natureza microscopica da materia. Isso diferede outra perspectiva famosa da termodinamica queconsidera para a sua descricao a natureza microscopicada materia e os avancos da mecanica estatıstica. Essaoutra perspectiva da termodinamica e a termodinamicaestatıstica. Nao sera sobre a termodinamica estatısticaque estaremos lidando aqui.

A termodinamica classica e uma area da fısica al-tamente solidificada e bem estabelecida em todo omeio cientıfico. Outrossim, trata-se de uma teoria cujoconteudo e consideravelmente popular, desde os nıveismais basicos de educacao em ciencias, ate em cursosde nıvel superior em fısica e areas afins, como quımica,engenharias, etc. Assim, o material teorico fundamental

Copyright by Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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da termodinamica classica deve causar pouca estranhezaao leitor. Especificamente sobre os formalismos existen-tes para a termodinamica classica, e tambem sobre oseu proprio ensino em nıvel de graduacao, e notavela tradicional apresentacao dessa disciplina segundo aperspectiva da eficiencia dos motores termicos – oumaquinas termicas.

Majoritario nos livros didaticos atuais, esse forma-lismo tradicional faz uso dos dois princıpios experimen-tais equivalentes da segunda lei da termodinamica –os princıpios de Clausius e Kelvin – em conjunto como teorema de Carnot das maquinas termicas, para aobtencao da entropia e do conteudo matematico dasegunda lei da termodinamica – o princıpio do aumentoda entropia. Esse formalismo tradicional foi construıdopor Clausius com base em desenvolvimentos historicose tecnicos de nomes como Carnot, Clapeyron, e Kelvin[1]. Assim, nomeamos aqui esse formalismo tradicionalde formalismo de Clausius, inspirados tambem pelaliteratura didatica da termodinamica classica [2].

Todavia, como ja anunciamos previamente, o for-malismo de Clausius nao e o unico possıvel paradescrever a termodinamica classica. Outro formalismofamoso se originou do trabalho de Gibbs [3] que, emuma serie de artigos entre 1873 e 1878, advogou pormetodos analıticos para a descricao da termodinamicaclassica. Com isso, Gibbs influenciou varias obras po-pulares de termodinamica classica que surgiram poste-riormente [4, 5]. Essas obras construıram uma termo-dinamica classica de postulados, introduzindo nocoestermodinamicas fundamentais como a entropia na formade conceitos elementares dos quais os outros conceitos dateoria se derivam [6]. De forma geral, chamamos aqui deformalismo de Gibbs os formalismos devidos ao pioneirotrabalho de Gibbs.

Alem desses, ha ainda o formalismo de Caratheodorypara a termodinamica classica, sendo esse o formalismoque mais nos interessa neste artigo. O formalismo deCaratheodory difere dos outros dois formalismos cita-dos anteriormente uma vez que dispensa as maquinastermicas utilizadas no formalismo de Clausius, bemcomo, apesar de tambem se valer de postulados, ou axi-omas, nao o faz usando a mesma metodologia envolvidano formalismo de Gibbs. O formalismo de Caratheodorytem um importante papel na construcao da propriateoria da termodinamica classica, conforme relata aseguinte citacao:

Entropy was discovered by a somewhat cir-cuitous path through the efficiency of heatengines, a finding that in hindsight couldappear serendipitous. Were we just lucky tohave discovered something so fundamentalin this way? Can it be seen directly thatentropy as a state variable is contained inthe structure of thermodynamics, withoutthe baggage of heat engines? It can, as shownby Constantin Caratheodory in 1909.

(A entropia foi descoberta por um cami-nho um tanto tortuoso atraves da eficienciados motores termicos. Uma descoberta que,em retrospectiva, poderia parecer aciden-tal. Tivemos a sorte de ter descoberto algotao fundamental dessa maneira? Pode servisto diretamente que a entropia como umavariavel de estado esta contida na estruturada termodinamica, sem a bagagem dos mo-tores termicos? Pode, como mostrado porConstantin Caratheodory em 1909.)

([7] — p. 149, enfase do autor)

Essas sao as primeiras palavras de James H. Lus-combe na introducao do decimo capıtulo do seu re-cente1 Thermodynamics [7]. Apesar da sua reconhecidaimportancia2, o formalismo de Caratheodory e quasetotalmente desconhecido atualmente pela maioria dosprofessores e estudantes de fısica. Atualmente tambemsao escassos os exemplos de producoes didaticas queensinam o formalismo de Caratheodory. Dito isso, apre-sentamos na secao 2 uma pequena discussao historicasobre o contexto e os metodos do formalismo de Ca-ratheodory. Mostramos tambem, nas secoes 3, 4, e 5,como o formalismo de Caratheodory se conecta comum dos resultados mais importantes da termodinamicaclassica: a segunda lei da termodinamica, formulada apartir dos princıpios de Clausius e Kelvin.

2. Formalismo de Caratheodory

Em um artigo de 1909 publicado no MathematischeAnnalen, o matematico Constantin Caratheodory [10],propos um formalismo para a termodinamica classicaque obtinha os resultados da teoria3 a partir de doisaxiomas, um para a primeira lei, e outro para a segundalei da termodinamica, de forma que o desenvolvimentodos conceitos termodinamicos se dava em termos deconsideracoes oriundas de conceitos mecanicos.

O axioma usado por Caratheodory para a segundalei da termodinamica foi a maior novidade do seu

1 Luscombe apresenta em seu livro uma abordagem moderna doformalismo de Caratheodory, trabalhando-o com o conceito decampos vetoriais.2 O trabalho de Caratheodory e um marco historico no que serefere as bases descritivas de uma termodinamica classica analıtica[8, 9].3 A totalidade dos resultados esperados da termodinamica naosurge do formalismo de Caratheodory. O mesmo e tambem verdadepara o formalismo de Clausius. O maior exemplo disso e a terceiralei da termodinamica, cujo conteudo preciso e completo somentepode ser obtido pelo advento da mecanica quantica. Sem essainclusao, ambos os formalismos produzem o conteudo da terceiralei da termodinamica de forma ad hoc. Nesse sentido, podemosdizer que esses formalismo nos fornecem aquilo que seria esperadocomo o conteudo matematico classico da teoria. Para mais detalhesquanto a esse assunto, sugerimos ao leitor a consulta do livro deTisza [11].

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trabalho. Esse axioma nao era baseado em experimen-tos, nao obstante, dele emergiam a entropia e o seuconteudo matematico classico. Apesar desse axioma sereventualmente conhecido como o segundo axioma deCaratheodory [12], dada a existencia de um axioma deCaratheodory tambem para a primeira lei da termo-dinamica, nosso maior foco aqui e o estudo em particularda segunda lei da termodinamica. Por esse motivo, dora-vante iremos nos referir ao axioma de Caratheodory paraa segunda lei da termodinamica apenas como axioma deCaratheodory.

Varios autores se dedicaram a missao de disseminar asideias de Caratheodory ao longo dos anos, a saber: Sears[12], Chandrasekhar [13], Buchdahl [14], Landsberg [15],Dunning-Davies [16], entre outros. Em especial, MaxBorn, um dos fısicos precursores da mecanica quantica,defendeu a visao de Caratheodory durante uma grandeparte da sua vida. Com publicacoes [17, 18] e tambemcom duras crıticas ao formalismo de Clausius, Bornbuscou popularizar o formalismo de Caratheodory aodizer, por exemplo, em um artigo de 1921:

a) Nao existe nenhuma outra area da fısicaonde sao aplicadas consideracoes que tenhamqualquer semelhanca com o ciclo de Carnote correlatos. b) Tem-se que admitir que atermodinamica, no seu modelo tradicional,ainda nao realizou o ideal logico da separacaoentre o conteudo fısico e a descricao ma-tematica. c) E preciso fazer uma remocao deentulhos, que uma tradicao cheia de piedadedemais ate aqui, nao ousou remover.

([17] — enfase do autor)

Em correspondencia a Einstein [19], exatamente sobreessa publicacao [17] que submetia ao atual PhysikalischeZeitschrift, Born escreveu:

Frankfurt a.M.12 February, 1921

Dear Einstein. . . I have done little theoretical work.I have recently written an account ofCaratheodory’s thermodynamics, which willappear shortly in the Physikalische Zeitung.I am very curious to know what you will sayabout it.

Frankfurt a.M.12 Fevereiro, 1921

(Prezado Einstein. . . Tenho feito pouco trabalho teorico.Recentemente escrevi uma exposicao datermodinamica de Caratheodory, a qual iraaparecer em breve no Physikalische Zeitung.Estou muito curioso para saber o que vocedira a respeito.)

([19] — p. 53)

Ja havendo publicado os trabalhos que elevariam seunome ao patamar de um dos maiores da historia daciencia – sobre a relatividade e o efeito fotoeletrico –, umretorno positivo de Einstein a respeito do formalismo deCaratheodory com certeza poderia ter proporcionado aesse assunto uma recepcao diferente da comunidade dafısica. Mas, apesar da solicitacao de Born, nao constamnas posteriores correspondencias entre Born e Einstein[19] qualquer mencao desse ultimo a questao do trabalhode Caratheodory. Posteriormente, e ainda sobre a suatentativa de popularizar o trabalho de Caratheodory, afrustracao de Born se confirma quando ele afirma, sereferindo por metodo classico ao que chamamos aqui deformalismo de Clausius:

My interpretation of Caratheodory’s ther-modynamics did not have the effect I hadhoped for of displacing the classical methodwhich, in my opinion, is both clumsy andmathematically opaque.(Minha interpretacao da termodinamica deCaratheodory nao obteve o efeito que euesperava de substituir o metodo classico que,na minha opiniao, e desajeitado e matema-ticamente opaco.)

([19] — p. 55)

Apos Born, possıveis empecilhos para com o uso e adivulgacao do formalismo de Caratheodory foram inves-tigados por diversos outros autores. Nesse contexto, alemda aparente ma sorte historica que citamos, obstaculospedagogicos e matematicos que podem ter contribuıdopara a impopularidade do formalismo de Caratheodoryforam apontados por Zemansky [20], em 1966. Zemanskyescreveu que para a apresentacao da segunda lei datermodinamica:

Due to the fact that Caratheodory’s axiomwas not based directly on experience andthat the proof of his theorem was longwindedand difficult, most physicists and textbookwriters ignored the Caratheodory treat-ment [. . . ](Devido ao fato de que o axioma de Ca-ratheodory nao era baseado diretamente daexperiencia e de que a prova do seu teoremaera longa e difıcil, a maioria dos fısicos e es-critores de livros-texto ignorou o tratamentode Caratheodory [. . . ])

([20] — p. 915)

Curiosamente, anteriormente ao relato de Zemanskyja haviam trabalhos que solucionavam as questoes queele apontava. Por exemplo, em 1964, Landsberg [21]provou que o axioma de Caratheodory pode ser dedu-zido do princıpio de Kelvin. Esse resultado foi melhorinvestigado por Titulaer e Van Kampen [22] um ano

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depois, em 1965. Nesse mesmo ano, Dunning-Davies[23] provou a recıproca da conclusao de Landsberg,estabelecendo a equivalencia entre o axioma de Ca-ratheodory e o princıpio de Kelvin. Entao, mesmo quenao seja baseado diretamente de fatos experimentais,o axioma de Caratheodory se mostrou equivalente aoprincıpio experimental de Kelvin, de forma que o axiomade Caratheodory pode ser visto como apenas outroenunciado da segunda lei da termodinamica [14].

Por outro lado, o teorema de Caratheodory verificou-se demonstravel com argumentos curtos, relacionados ageometria do espaco termodinamico [14, 17, 18], bemcomo, relacionados ao uso do conceito de campos ve-toriais [7]. Essas demonstracoes, no entanto, seguem umnıvel de simplicidade que nao contempla todo o conteudomatematico do teorema de Caratheodory na sua versaogeral, como mostrou Boyling [24]. Todavia, para o ensinoda termodinamica classica, as justificativas dadas pelosautores acima citados na demonstracao desse teoremasao, como propoem-se a ser, suficientes, e nao prejudicamo seguimento dos resultados fısicos da teoria [14].

Contudo, como ja esta claro, a superacao desses doisempecilhos apontados por Zemansky ao formalismo deCaratheodory nao bastou para fazer com que esse for-malismo se difundisse posteriormente no meio da fısica.Mas entao haveria alguma outra grande dificuldade,alem daquelas originalmente apontadas por Zemansky,para com o uso do formalismo de Caratheodory? E emparticular no ambito da apresentacao da segunda lei datermodinamica? Defendemos com este artigo que nao.E, assim, objetivamos introduzir alguns dos metodos esignificados do formalismo de Caratheodory ao leitor,especificamente no contexto da apresentacao da segundalei da termodinamica.

Logo, nas secoes seguintes, buscamos apresentar aoleitor, didaticamente, os esforcos que citamos relacio-nados a conectar o axioma de Caratheodory com oprincıpio de Clausius e o princıpio de Kelvin. Comoum resultado novo a partir da ampla literatura revisadaneste artigo, provamos a deducao direta do axiomade Caratheodory a partir do princıpio de Clausius. Asecao 3 trata da deducao do axioma de Caratheodorya partir do princıpio de Kelvin, conforme Titulaer eVan Kampen [22]. Ja a secao 4 trata da nossa deducaodo axioma de Caratheodory a partir do princıpio deClausius. Consideramos serem essas etapas as maisimportantes ao leitor no que se refere a conexao doformalismo de Caratheodory com a segunda lei datermodinamica.

Em seguida, procurando contribuir em alguma me-dida para com a popularizacao do formalismo de Ca-ratheodory em cursos de termodinamica classica emnıvel de graduacao, mostramos ao leitor na secao5 um vislumbre de como a entropia e o conteudomatematico da segunda lei da termodinamica surgemcomo consequencia direta da aplicacao do teorema deCaratheodory. Para isso, o teorema de Caratheodory

foi demonstrado na subsecao 5.1 de forma simples, apartir do argumento de Born [17]. Ja a entropia em sifoi abordada logo apos, na subsecao 5.2.

Tambem, para uma boa compreensao do que se-gue, basta ao leitor o conhecimento basico dos concei-tos fundamentais da termodinamica classica: sistemae vizinhanca; reservatorio termico, equilıbrio e espacotermodinamico; coordenadas, estado e processos termo-dinamicos; primeira e segunda lei da termodinamica,etc. Porem, sempre que necessario, por uma questao deenfase, faremos uma breve discussao de alguns dessesconceitos.

Por fim, este artigo nao possui o intuito de defen-der a superioridade do formalismo de Caratheodorycom relacao aos outros formalismos da termodinamicaclassica. Portanto, tentamos aqui apenas indicar a pos-sibilidade do uso do formalismo de Caratheodory noensino da termodinamica classica.

3. Axioma de Caratheodory a Partir doPrincıpio de Kelvin

Existem algumas diferencas na literatura quanto aredacao dos princıpios experimentais da segunda lei datermodinamica. Assim, mesmo que meramente relacio-nadas a uma escolha de palavras ligeiramente distintaspor cada autor, essas diferencas podem causar confusoesna interpretacao dos enunciados desses princıpios [25].Buscando evitar essas situacoes, este artigo enunciaratanto o axioma de Caratheodory, quanto os princıpios deClausius e Kelvin, conforme encontra-se no livro classicoAn Introduction to the Study of Stellar Structure, doganhador do Nobel de Fısica de 1983, SubrahmanyanChandrasekhar.

Segue entao o princıpio de Kelvin, conforme Chandra-sekhar [13]:

In a cycle of processes it is impossible totransfer heat from a heat reservoir and con-vert it all into work, without at the same timetransferring a certain amount of heat from ahotter to a colder body.(Em um ciclo de processos e impossıveltransferir calor de um reservatorio termico econverte-lo totalmente em trabalho, sem aomesmo tempo transferir uma certa quanti-dade de calor de um corpo mais quente paraum mais frio.)

([13] — p. 24)

O que o princıpio de Kelvin – que se mencionaradaqui em diante, de forma abreviada, por (K) – diz eque, durante um ciclo termodinamico qualquer, nao epossıvel que um sistema converta totalmente calor Qabsorvido de um reservatorio termico em trabalho Wsem que, durante o mesmo ciclo, haja tambem calor

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cedido do sistema para outro sistema a temperatura maisbaixa. Em outras palavras, seja Q o calor absorvido porum sistema a partir de um reservatorio termico duranteum ciclo termodinamico qualquer, e seja W o trabalhorelacionado a interacao do sistema com a sua vizinhancadurante esse ciclo. Entao, por (K), a seguinte igualdadeao final do ciclo e impossıvel, com Q > 0

Q = W. (1)

Observe que (K) destacadamente trabalha com osconceitos de calor, trabalho, e temperatura, de forma apriori. Ou seja, nesse enunciado da segunda lei da termo-dinamica, calor, trabalho, e temperatura, sao conceitostermodinamicas elementares.

Entendido (K), segue o axioma de Caratheodory,tambem conforme Chandrasekhar [13]:

Arbitrarily near to any given state there existstates which cannot be reached from an initialstate by means of adiabatic processes.

(Arbitrariamente proximo a qualquer es-tado existem estados que nao podem seralcancados a partir de um estado inicial pormeio de processos adiabaticos.)

([13] — p. 24)

Ha muito para se comentar sobre o axioma deCaratheodory – que se mencionara daqui em diante, deforma abreviada, por (AC) – contudo, inicialmente, faz-se necessario o entendimento da palavra estado nessecontexto. A termodinamica classica lida com sistemasmacroscopicos em situacoes de equilıbrio, ou seja, emsituacoes em que as coordenadas, ou variaveis, termo-dinamicas do sistema estao bem definidas. Com efeito,quando estabelecido o equilıbrio, analogamente ao casoda mecanica classica, temos a caracterizacao completado sistema termodinamico pelo valor das suas coorde-nadas termodinamicas independentes. E, quando isso efeito, o estado do sistema esta definido e e expresso peloconjunto dessas coordenadas termodinamicas indepen-dentes que caracterizam o equilıbrio. Logo, para a ter-modinamica classica, situacoes de equilıbrio equivalem adefinicao do estado do sistema termodinamico.

Dito isso, vamos ao conteudo de (AC). O que (AC)estabelece e que, dado um estado qualquer de um sistematermodinamico, existirao outros estados que o sistemanao pode alcancar por meio de processos adiabaticos.Processos adiabaticos sao processos que ocorrem semtrocas de energia na forma de calor entre o sistema ea sua vizinhanca. Observe que (AC) nao faz distincaoentre processos reversıveis ou irreversıveis. Perceba aquique (AC) pressupoe como maior conceito termodinamicoelementar a nocao de processo adiabatico. Essa cons-trucao se faz presente no formalismo de Caratheodorycom o objetivo de fugir do conceito direto de fluxo de

calor, trocando-o pela ideia de processos nao puramentemecanicos.4

Mas, para de fato entendermos o enunciado de (AC)precisamos analisar o significado do termo “alcancar”que nele consta. Para sair de um estado para outro, osistema termodinamico precisa realizar um processo eentao chegar a uma nova situacao de equilıbrio, confi-gurando assim um novo estado termodinamico. Dizerque existem estados que nao podem ser “alcancados”por processos adiabaticos significa dizer que existem si-tuacoes de equilıbrio que nao podem ser obtidas se usar-mos como caminho para isso um processo adiabatico.Dito de outra forma, dado um estado qualquer de um sis-tema termodinamico, nao podemos submeter o sistemaa processos adiabaticos arbitrarios.

Buscamos agora mostrar que (K) ⇒ (AC). Paraisso e suficiente mostrarmos que se (AC) e falso, (K)tambem e.5 Entao, conforme Titulaer e Van Kampen[22], provamos primeiro que (K) ⇒ (AC) para processosreversıveis. Processos reversıveis sao, como o proprionome sugere, processos passıveis de serem executadosem ambas as “direcoes temporais”, uma vez que to-das as situacoes do sistema durante esses processossao situacoes de equilıbrio. Por exemplo, se pudermosconceber um sistema constituıdo de um gas confinadoem um recipiente limitado por um embolo movel sematrito, poderemos abaixar o embolo depositando graosde areia um por um sobre ele, comprimindo assim ogas no recipiente de forma reversıvel, de modo que ogas sempre se mantera em equilıbrio nesse processo.Por outro lado, se retirarmos os graos de areia de cimado embolo um a um, poderemos, em algum momento,retornar a exata mesma situacao de equilıbrio queiniciamos esse raciocınio, retornando o gas ao seu estadotermodinamico original. Esse comportamento temporalreversıvel define os processos reversıveis. Por isso, pro-cessos reversıveis sao representados por curvas contınuasno espaco termodinamico.

Assim, seja um espaco termodinamico que defineos estados termodinamicos para um sistema termo-dinamico modelo com um conjunto usual de tres coorde-nadas termodinamicas independentes: θ, a temperaturaempırica do sistema, mensurada por algum instrumentode medida, em alguma escala de temperatura; x1 ex2, duas coordenadas relacionadas ao comportamentomecanico do sistema termodinamico. Por exemplo, sendox1 = V e x2 = M , respectivamente o volume e amagnitude da magnetizacao do sistema. A escolha portres coordenadas independentes para a caracterizacaodo sistema termodinamico modelo em discussao se faz,simplesmente, pela facilidade inicial de se trabalhar emtres dimensoes. No entanto, naturalmente, o que sera

4 Para um amplo tratamento dessa questao, sugerimos ao leitor aconsulta da secao 8 do livro do Buchdahl [14].5 Em outras palavras, se for verdade que a negacao de (AC) fornecea negacao de (K), entao, uma vez que (K) e verdadeiro, (AC)tambem o sera.

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e20200448-6 Sobre a Deducao do Axioma de Caratheodory da Segunda Lei da Termodinamica

Figura 1: Espaco termodinamico das coordenadas θ, x1 e x2.

Figura 2: Ciclo reversıvel P construıdo atraves de processosintermediarios entre os pontos A, B e B′ no espaco termo-dinamico. Uma vez que P e reversıvel, o sentido de percursono ciclo pode ser escolhido arbitrariamente. Escolhe-se aqui osentido A → B → B′ → A.

argumentado a seguir vale tambem para um numeromaior de coordenadas termodinamicas.

Esse espaco termodinamico, representado na Fig. 1,caracteriza um estado termodinamico qualquer pelosvalores mensurados das coordenadas (θ, x1, x2), porexemplo: (θ0, x1

0, x20). Por consequencia, tal estado e

univocamente identificado como um ponto A no referidoespaco tal que, A = (θ0, x1

0, x20).

Alem disso, por estarmos tratando de sistemas ter-modinamicos, sempre se faz possıvel a escolha da tem-peratura empırica como uma das coordenadas termo-dinamicas independentes. Em seguida, seja P o seguinteciclo reversıvel dado no espaco termodinamico da Fig. 1e representado na Fig. 2.

O ciclo reversıvel P da Fig. 2 e montado de tal formaque: o processo A→ B e supostamente adiabatico, logo

QA→B = 0; o processo B → B′ nao foge da linha quepreserva os valores de x1 = x1

∗ e x2 = x2∗, logo nao

ha trabalho envolvido de B para B′, porem ha calorabsorvido QB→B′ > 0 de B para B′ gracas a diferencade temperatura entre B e B′, θ∗∗ − θ∗ > 0; por ultimo,o processo B′ → A e tambem supostamente adiabatico,logo QB′→A = 0. Isso fecha o ciclo P. Para esse cicloque construımos e importante percebermos que, comoP e reversıvel, toda essa construcao idealizada para Ppoderia ser invertida, invertendo o ciclo e tomando aocontrario B′ → B tal que, nesse sentido, haveria calorcedido QB′→B < 0 de B′ para B.

Porem, um olhar mais cuidadoso sobre o ciclo Pque construımos revela que se ele for possıvel, entao(AC) e falso. Com efeito, pode-se aproximar B′ deB de forma abitraria. Ademais, como P e reversıvel,tanto o processo adiabatico A → B quanto o processoadiabatico A → B′ podem ser realizados. Mas, seB′ e aproximado arbitrariamente de B, e a partir deA se pode alcancar tanto B quanto B′ por processosadiabaticos reversıveis, entao a partir de A todos osestados na mesma linha x1

∗x2∗ de B e B′ podem ser

alcancados por processos adiabaticos reversıveis. Logo,aproximando tambem a linha x1

∗x2∗ arbitrariamente de

A, terıamos que: arbitrariamente proximo de A existemestados que podem ser alcancados a partir de A porprocessos adiabaticos reversıveis, falseando, assim, (AC)para processos reversıveis.

Mas como nao temos ate agora justificativas reais –fısicas – para a validade de (AC), suponhamos que Pe de fato possıvel e entao (AC) e mesmo falso. Vamosagora aplicar a primeira lei da termodinamica em P.Isso nos fornece, gracas a aditividade da energia

∆EP = ∆EA→B + ∆EB→B′ + ∆EB′→A. (2)

Uma vez que P e um ciclo termodinamico, ∆EP = 0.Aplicando as caracterısticas de P em (2), temos

−WA→B + QB→B′ −WB′→A = 0. (3)

Observe que as contribuicoes algebricas efetivas dasquantidades de trabalho que aparecem em P estaorelacionadas a realizacao de trabalho do sistema navizinhanca, ou da vizinhanca no sistema. Entao, aexpressao (3) pode ser reorganizada. Nomeando de Wo trabalho efetivo envolvido no percurso de P, temos

Q = W. (4)

Mas isso e analogo ao que diz a equacao (1) eassim a equacao (4), que vem da hipotese de (AC) serfalso, falseia (K). Logo, para processos reversıveis (K)⇒ (AC). Porem, sabemos que tambem lidamos comprocessos irreversıveis na termodinamica classica. Essesprocessos sao, como o proprio nome sugere, processosque apenas podem ser realizados em uma unica “direcaotemporal”, uma vez que as situacoes intermediarias dosistema em um processo irreversıvel nao sao situacoes

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Figura 3: Ciclo irreversıvel P1 construıdo atraves de processosintermediarios entre os pontos A, B e B′ no espaco termo-dinamico. O processo intermediario A → B e irreversıvel. Logo,P1 so pode ser realizado no sentido A → B → B′ → A.

de equilıbrio. Mesmo sendo a termodinamica classicauma teoria que estuda apenas as situacoes de equilıbrio,nela uma analise qualitativa dos processos irreversıveise tambem possıvel. Isso se deve ao fato de que, natermodinamica classica, as situacoes iniciais e finais dosprocessos irreversıveis sao sempre situacoes de equilıbrio.Alem do mais, e dos processos irreversıveis que emergeo verdadeiro significado da entropia e da segunda lei datermodinamica.

Em termos do espaco termodinamico, processos ir-reversıveis nao podem ser representados como curvascontınuas usuais nesse espaco, ao contrario de comosao os processos reversıveis. Assim, como apenas estaodefinidos os estados inicial e final de um processoirreversıvel, costuma-se representa-lo como uma linhatracejada no espaco termodinamico, conectando os seusestados inicial e final. E natural que busquemos avaliar arelacao (K)⇒ (AC) tambem para processos irreversıveis.Assim, sejam os ciclos irreversıveis P1 e P2 no mesmoespaco termodinamico anterior da Fig. 1, representados,respectivamente, na Fig. 3 e na Fig. 4.

Os ciclos P1 e P2 sao construıdos de forma analogaaquela posta para o ciclo P no caso reversıvel. No cicloP1: o processo irreversıvel A → B e supostamenteadiabatico, entao QA→B = 0; o processo reversıvelB → B′ se mantem na linha em que x1 = x1

∗ ex2 = x2

∗, entao WB→B′ = 0, porem QB→B′ > 0 gracasa diferenca de temperatura entre B e B′, θ∗∗ − θ∗ > 0;por ultimo, o processo reversıvel B′ → A e tambemsupostamente adiabatico, entao QB′→A = 0. Isso fecha ociclo P1. Deve-se destacar que gracas a irreversibilidadede P1 o mesmo somente pode ser percorrido no sentidoA→ B → B′ → A.

Similarmente, no ciclo P2: o processo irreversıvel A→B′ e supostamente adiabatico, entao QA→B′ = 0; o

Figura 4: Ciclo irreversıvel P2 construıdo atraves de processosintermediarios entre os pontos A, B e B′ no espaco termo-dinamico. O processo intermediario A → B′ e irreversıvel. Logo,P2 so pode ser realizado no sentido A → B′ → B → A.

processo reversıvel B′ → B se mantem na linha emque x1 = x1

∗ e x2 = x2∗, entao WB′→B = 0, porem

QB′→B < 0 gracas a diferenca de temperatura entre B′ eB, θ∗−θ∗∗ < 0; por ultimo, o processo reversıvel B → Ae tambem supostamente adiabatico, entao QB→A = 0.Isso fecha o ciclo P2. Da mesma forma que para o cicloP1, gracas a irreversibilidade de P2 o mesmo somentepode ser percorrido no sentido A→ B′ → B → A.

Agora, suponha que ambos os ciclos irreversıveis P1 eP2 sejam simultaneamente possıveis, ou seja, ambos osciclos possam ser realizados. Ocorre que, se esse for ocaso, entao (AC) e falso. Com efeito, novamente, apro-ximamos B′ de B de forma arbitraria. Ademais, se su-pormos serem P1 e P2 simultaneamente possıveis, entaocomo consequencia ambos os processos irreversıveis A→B e A→ B′ sao tambem possıveis. Entao, se B′ e apro-ximado arbitrariamente de B, e a partir de A se pode al-cancar tanto B quanto B′ por processos adiabaticos irre-versıveis, entao a partir de A todos os estados na mesmalinha x1

∗x2∗ de B e B′ podem ser alcancados por proces-

sos adiabaticos irreversıveis. Logo, aproximando tambema linha x1

∗x2∗ arbitrariamente de A, terıamos que: ar-

bitrariamente proximo de A existem estados que podemser alcancados a partir de A por processos adiabaticosirreversıveis, falseando, assim, (AC) para processosirreversıveis.

Nesse ponto, em comparacao com o argumento docaso reversıvel, o leitor atento ja deve ter percebido qualsera o proximo passo que deve ser dado. Novamente,a princıpio nao temos nenhum argumento fısico queimpeca (AC) de ser falso no caso irreversıvel. Logo,suponha que (AC) e mesmo falso e entao P1 e P2sao simultaneamente possıveis. Em seguida, repetindoo argumento do caso reversıvel e aplicando a primeiralei da termodinamica tanto em P1 quanto em P2, temos

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e20200448-8 Sobre a Deducao do Axioma de Caratheodory da Segunda Lei da Termodinamica

que, ao final de cada um desses ciclos

Q = W. (5)

Na expressao (5) Q e o calor absorvido, ou cedido,pelo sistema em interacao com um reservatorio termicoapropriado para cada um dos ciclos, e W e o trabalhoefetivo relacionado as interacoes do sistema com a suavizinhanca tambem para cada um dos ciclos. Assumindoque P1 e P2 sao simultaneamente possıveis, fica claroque uma igualdade analoga a expressao (5) poderia serescrita para cada um desses ciclos irreversıveis: uma emque W = Q > 0 ao final do ciclo, relacionada com ociclo P1, e uma em que W = Q < 0 ao final do ciclo,relacionada com o ciclo P2. A primeira igualdade falseia(K), uma vez que ela exprimi exatamente o mesmoconteudo da expressao (1), que e proibida por (K).

Logo, para processos irreversıveis (K) ⇒ (AC). Umaargumentacao direta para essa conclusao pode ser encon-trada no capıtulo 5 do livro do Landsberg [15]. Algumasconsideracoes devem ser feitas sobre esse resultado.Observe que a verdadeira fenomenologia por tras de (K)em conexao com (AC) apenas e revelada a partir doestudo dos processos irreversıveis. Ja que, se (K) tratasseda impossibilidade de ao final de um ciclo termos W =Q < 0, ao inves de W = Q > 0, nada seria alteradona nossa analise do caso reversıvel para mostrarmos que(K) ⇒ (AC). A retirada dessa aparente ambiguidadematematica do estudo reversıvel de (K) apenas ocorrecom a analise dos processos irreversıveis, revelando overdadeiro carater fısico de (K). Para evitar nos esten-dermos em demasia nessa discussao, a argumentacaoquanto a recıproca dessa relacao entre (AC) e (K) naosera apresentada aqui; porem, ela e curta, e pode serconsultada no artigo de Dunning-Davies [23].

4. Axioma de Caratheodory a Partir doPrincıpio de Clausius

Apresentamos agora nossa prova da deducao do axiomade Caratheodory a partir do princıpio de Clausius. Igual-mente como foi feito na secao anterior, estabelecemos oprincıpio de Clausius, conforme Chandrasekhar [13]:

It is impossible that, at the end of a cycleof changes, heat has been transferred from acolder to a hotter body without at the sametime converting a certain amount of workinto heat.(E impossıvel que, ao final de um ciclo demudancas, calor tenha sido transferido deum corpo mais frio para um corpo maisquente sem que ao mesmo tempo se convertauma certa quantidade de trabalho em calor.)

([13] — p. 24)

Busquemos realizar uma analise semelhante para oprincıpio de Clausius – que se mencionara daqui em

diante, de forma abreviada, por (C) – daquela quefizemos para (K) na secao anterior. O que (C) diz eque, durante um ciclo termodinamico qualquer, nao epossıvel que um sistema absorva uma certa quantidadede calor Q de um corpo a uma temperatura mais baixaque a do sistema e, em seguida, transfira integralmenteessa mesma quantidade de calor Q para um corpo auma temperatura mais alta que a do sistema, sem que,durante esse ciclo, haja a conversao de alguma quanti-dade de trabalho W em calor adicional. Aqui, os corposmencionados, cujo sistema entra em contato no ciclodescrito, sao corpos que preservam as suas respectivastemperaturas quando interagem com o sistema. Issotorna implıcito que esses corpos em contato com osistema que realiza o ciclo sao reservatorios termicos.

Entao, no esquema do princıpio de Clausius, temosum reservatorio termico com uma temperatura maisbaixa que a temperatura do sistema, e um reservatoriotermico com uma temperatura mais alta que a tempera-tura do sistema. Esses reservatorios termicos estudadoscostumeiramente recebem o sugestivo nome de fontestermicas; fonte fria para o reservatorio termico sobtemperatura mais baixa que a do sistema, e fonte quentepara o reservatorio termico sob temperatura mais altaque a do sistema. Ou seja, suponha que um sistemadescreve um ciclo termodinamico que absorve uma certaquantidade de calor Qf de uma fonte fria, e entao rejeitauma outra certa quantidade de calor Qq para uma fontequente, sem que haja nesse ciclo qualquer realizacaode trabalho efetivo para que seja convertido em caloradicional. Por (C), a seguinte igualdade ao final do cicloe impossıvel

|Qf | = |Qq|. (6)

Isto e, ao final do ciclo nao podemos ter a igualdadeentre as magnitudes das quantidades de calor que foramabsorvidas e rejeitadas, respectivamente, da fonte fria, epara a fonte quente. Em (6) devemos escrever o modulodas quantidades de calor no ciclo, pois, em funcao dainteracao com o sistema, calor rejeitado para uma fontee, naturalmente, algebricamente negativo.

Assim, ja familiarizados com o conteudo de (AC),desejamos mostrar que (C) ⇒ (AC). Como antes, paraisso e suficiente mostrarmos que se (AC) e falso, (C)tambem e. Vamos mostrar uma prova para essa relacaoprimeiramente para processos reversıveis. Entao, sejaprimeiro P ′ o ciclo reversıvel representado na Fig. 5 edado no mesmo espaco termodinamico que ja estamoshabituados a trabalhar, para o mesmo sistema termo-dinamico modelo anteriormente utilizado. Observe queP ′ percorre o ciclo de pontos B → C → D → A → Bno espaco termodinamico. O trecho A → B′ → B e ociclo P ′′ que percorre os pontos B′ → B → C → D →A → B′, a princıpio nao fazem parte do que estamosconsiderando na Fig. 5.

Construımos o ciclo reversıvel P ′ da Fig. 5, percor-rendo o ciclo de pontos B → C → D → A→ B, de modo

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Figura 5: Ciclo reversıvel P ′ construıdo atraves de processosintermediarios entre os pontos A, B, C e D no espacotermodinamico. Uma vez que P ′ e reversıvel, o sentido depercurso no ciclo pode ser escolhido arbitrariamente. Escolhe-seaqui o sentido B → C → D → A → B. O trecho A → B′ → Bsera discutido posteriormente.

que o sistema descreve, durante P ′: o processo B → C,cuja temperatura θ∗ se mantem constante durante ocontato do sistema com a vizinhanca, mas ha a absorcaode uma certa quantidade de calor QB→C > 0 do sistemaa partir da vizinhanca; o processo C → D, que esupostamente adiabatico, logo QC→D = 0; o processoD → A, cuja temperatura θ∗∗ se mantem constantedurante o contato do sistema com a vizinhanca, mas ha arejeicao de uma certa quantidade de calor QB→C < 0 dosistema para a vizinhanca; por fim, o processo A → B,que e tambem supostamente adiabatico, logo QA→B =0. Isso fecha o ciclo P ′.

Aqui, algumas consideracoes importantes devem sernotadas: i) a princıpio nada impede que um ciclo comoP ′ seja construıdo, ii) em geral durante P ′ temos|QB→C | 6= |QD→A|, com trabalho efetivo sendo conver-tido em calor adicional, iii) os processos intermediariosB → C e D → A de P ′, ao preservarem a temperaturado sistema em contato com a sua vizinhanca, indicamque durante esses processos o sistema esta em contatocom fontes termicas, sendo que naturalmente a fonte friae aquela a temperatura θ∗ e a fonte quente e aquelaa temperatura θ∗∗, e iv) como P ′ e reversıvel, todaessa construcao idealizada para P ′ poderia ser invertida,invertendo o ciclo e tomando ao contrario uma absorcaode calor da fonte quente, e uma rejeicao de calor para afonte fria.

Em seguida, notamos o ciclo P ′′, que pode tambemser visto na Fig. 5 e percorre o ciclo de pontos B′ →B → C → D → A → B′ no espaco termodinamico. EmP ′′ o ponto B′ foi escolhido de tal modo que tenhamos|QB′→C | = |QD→A| durante a realizacao de P ′′, com oprocesso intermediario A → B′ tambem supostamenteadiabatico.

Dada a possibilidade irrestrita da ocorrencia de P ′,se for tambem verdade que P ′′ e possıvel nos moldesdo que foi construıdo, entao significa que os processosadiabaticos A → B′ e A → B sao simultaneamentepossıveis. Entretanto, se A → B′ e A → B foremsimultaneamente possıveis, entao (AC) e falso. De fato,podemos aproximar B′ de B de forma arbitraria. E,se supormos P ′′ possıvel, os processos adiabaticos re-versıveis A → B′ e A → B se tornam simultaneamentepossıveis. Se tambem aproximarmos arbitrariamente alinha de pontos no espaco termodinamico cuja tempera-tura e θ∗, da linha de pontos cuja temperatura e θ∗∗,terıamos que: arbitrariamente proximo de A existemestados que podem ser alcancados a partir de A porprocessos adiabaticos reversıveis, falseando, assim, (AC)para processos reversıveis.

Contudo, podemos ver que se assumirmos a falsidadede (AC), a execucao de P ′′ nos da de imediato a falsidadede (C). Com efeito, se (AC) e falso entao A → B′ eA → B sao simultaneamente possıveis, em particularP ′′ e possıvel, e como consequencia durante P ′′

|QB′→C | = |QD→A|. (7)

O que fornece, pela expressao (7), o mesmo que aexpressao (6), que e proibida por (C). Logo, para pro-cessos reversıveis (C) ⇒ (AC). Espera-se naturalmenteque (C) ⇒ (AC) tambem para o caso irreversıvel. Defato, uma argumentacao quanto a validade da relacao(C) ⇒ (AC) para processos irreversıveis se da de formanatural a partir do que ja foi mostrado com a analiseanaloga de que (K) ⇒ (AC) para o caso irreversıvel.Para essa argumentacao seria necessaria a construcaode dois ciclos irreversıveis semelhantes a P ′ e P ′′, taisque naquele analogo a P ′ o processo A → B seria su-postamente adiabatico e irreversıvel, e naquele analogoa P ′′ o processo A → B′ seria supostamente adiabaticoe irreversıvel. Os outros processos desses ciclos seriamreversıveis. Em seguida, tomarıamos a hipotese de seremesses ciclos irreversıveis construıdos simultaneamentepossıveis.

Assim, repetindo a mesma analise e verificando con-clusoes similares aquelas obtidas no caso irreversıvel darelacao (K) ⇒ (AC), mostrarıamos que, para nao violar(C), (AC) tambem e verdadeiro para processos irre-versıveis. Para evitar a repeticao desses mesmos passos edas mesmas argumentacoes ja feitas anteriormente, o quetornaria desnecessariamente macante a discussao aquirealizada, essa etapa nao sera desenvolvida no presenteartigo.

5. Caminho Para a Entropia

Agora, munidos da validade do axioma de Caratheodory,deduzido dos princıpios de Clausius e Kelvin nas secoesanteriores, e do conteudo do teorema de Caratheodory,que veremos a seguir, mostraremos como obter a en-tropia e o conteudo matematico da segunda lei da

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termodinamica a partir do formalismo de Caratheodory.Com esse objetivo em mente, precisaremos antes falarum pouco de alguns aspectos formais do formalismo deCaratheodory. Buscando aliar detalhamento, fluidez ecarater didatico na presente secao, a dividimos em duassubsecoes: uma, a 5.1, para tratar da matematica em sie do teorema usado no formalismo de Caratheodory, eoutra, a 5.2, para tratar de um caminho6 possıvel paraa obtencao da entropia e do conteudo matematico dasegunda lei da termodinamica por esse formalismo.

5.1. Requisitos matematicos e teorema deCaratheodory

O primeiro dos aspectos formais do formalismo de Ca-ratheodory que devemos estudar e a interpretacao ma-tematica que esse formalismo da para as coordenadas ter-modinamicas. Grandezas como a temperatura empıricaθ, o volume V , entre outras, as quais usualmente damoso nome de coordenadas termodinamicas quando caracte-rizam o estado de um sistema termodinamico, aparecemno formalismo de Caratheodory em uma perspectivaformal que traca um grande paralelo com o conceito dascoordenadas generalizadas da mecanica classica [14], quecaracterizam um sistema mecanico.

Outras grandezas relacionadas a um sistema termo-dinamico, como o calor Q, o trabalho W , e a energia E,sao identificadas no formalismo de Caratheodory comouma especie de funcao generalizada das coordenadastermodinamicas. Matematicamente, as coordenadas ter-modinamicas se expressam como quantidades xi, onde oındice i varia conforme o numero de coordenadas termo-dinamicas em analise. Ja para as funcoes generalizadasdas coordenadas termodinamicas que anunciamos, escre-vemos que elas sao funcoes χi = χi(xj), onde o ındicej nos diz que as χi nao sao necessariamente funcoesque dependem de todas as coordenadas termodinamicasconsideradas.

E e justamente por esse fato que as χi nao saosempre funcoes de estado no sentido de caracterizaremo estado de um sistema termodinamico. Uma vez queelas nao contem necessariamente uma dependencia comtodas as coordenadas termodinamicas que definem esseestado. Um exemplo de uma funcao χi que e de fatouma funcao de estado e a energia E de um sistematermodinamico, uma vez que ela possui dependenciacom todas as coordenadas termodinamicas que definemo estado desse sistema. Ja um exemplo de uma funcaoχi que nao e uma funcao de estado e o calor Q, queesta relacionado as interacoes do sistema termodinamicocom a sua vizinhanca e assim nao possui dependenciacom todas as coordenadas termodinamicas que definemo estado desse sistema.

Ja perceba aqui a distincao fısica que esse formalismonos fornece ao nos dizer matematicamente que a energiae uma funcao de estado do sistema e, portanto, esta

6 Existem outros caminhos possıveis para isso [7, 14–16].

vinculada diretamente a caracterizacao do seu estado,ao passo que o calor nao e. Ou seja, a introducao dessasideias ja deixa claro que um sistema termodinamico podepossuir energia, mas nao pode possuir calor, ao passoque esse ultimo depende do processo termodinamicorealizado. Seguindo em frente nessa discussao, o quevemos na termodinamica classica com frequencia e

δχ∗ =n∑i=1

χi(xj)dxi. (8)

A analise cuidadosa da expressao (8) e crucial parao que segue7. O que (8) diz e que a soma do produtoentre as funcoes generalizadas χi e os infinitesimos dascoordenadas termodinamicas nos da um infinitesimo dealguma funcao generalizada χ∗ particular. Ou seja, natermodinamica classica os infinitesimos das χi se daopor expressoes analogas aquela em (8). Tratando sobreos sımbolos usados em (8), ambos δ e d remetem aquantidades infinitesimais. Mas, como de costume nafısica, para uma quantidade infinitesimal que caracterizauma diferencial exata8 reservamos o sımbolo d. Docontrario, damos o sımbolo δ para uma quantidadeinfinitesimal que nao e necessariamente uma diferencialexata, e a chamamos de diferencial inexata.

Se a quantidade δχ∗ e uma diferencial exata, subs-tituımos o sımbolo δ pelo usual d e temos que a funcaogeneralizada χ∗ e na verdade uma funcao de estado,possuindo dependencia com todas as coordenadas ter-modinamicas xi. Esse caso torna a expressao (8) maisfamiliar, quando temos

dχ∗ =n∑i=1

∂χ∗

∂xidxi. (9)

Isto e, nesse caso as χi sao as derivadas parciais de χ∗em relacao as coordenadas termodinamicas xi e a funcaode estado χ∗ pode ser obtida via uma integracao comum9

desde a expressao (8). Novamente, exemplificando, epelo que ja discutimos anteriormente, temos como umexemplo imediato de uma grandeza termodinamica quedefine uma diferencial exata a energia, e como uma quenao o calor. Um teste que sempre podemos aplicar paraverificarmos se a quantidade δχ∗ e uma diferencial exataou nao e o de avaliarmos, nas funcoes generalizadas χi

7 Um nome elegante para as quantidades expressas por (8) e o deformas diferenciais pfaffianas [26]. Porem, por se tratar apenasde um termo tecnico, e que pouco acrescentaria a discussao domaterial deste artigo, nao usamos dessa nomenclatura. Para oleitor que queira se aprofundar na rica teoria matematica dasformas diferenciais pfaffianas, sugerimos a consulta do livro doSneddon [26]8 Ou seja, uma quantidade infinitesimal cuja variacao somentedepende dos seus valores inicial e final.9 Com δχ∗ definindo uma diferencial exata dχ∗, a tomada dasua integral nao precisa especificar nenhum conjunto particularde valores das coordenadas termodinamicas, o que definiria umcaminho para que a integracao seja feita. Nesse caso, a integracaode dχ∗ avalia apenas os valores inicial e final de χ∗.

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de δχ∗ em (8), se

∂χk∂xl

= ∂χl∂xk

com (k, l = 1, 2, . . . , n). (10)

O teste da equacao (10) avalia se as derivadas parciaiscruzadas de quaisquer pares (χk, χl) das χi, para como correspondente par das coordenadas termodinamicas(xl, xk) com naturalmente (k, l = 1, 2, . . . , n), sao iden-ticamente iguais entre si. O leitor pode reconhecer queesse teste decorre do teorema de Clairaut-Schwarz, docalculo diferencial de varias variaveis. Se a equacao(10) for satisfeita para quaisquer par de ındices, (k, l =1, 2, . . . , n), a quantidade δχ∗ sera uma diferencial exata.

Em seguida, queremos tambem dar uma atencaoespecial a situacao importante na qual a expressao (8)se anula, ou seja, quando

δχ∗ =n∑i=1

χi(xj)dxi = 0. (11)

Para a equacao definida em (11) damos aqui o nome10

de equacao diferencial associada a δχ∗. E importanteobservarmos que as solucoes dessas equacoes diferen-ciais associadas as δχ∗ serao sempre um conjunto devalores das coordenadas termodinamicas, o que podeser visualizado, na perspectiva geometrica do espacotermodinamico, como um conjunto de pontos dadospor esses valores das coordenadas termodinamicas nesseespaco. Em especial, quando δχ∗ e uma diferencial exata,esse conjunto de pontos no espaco termodinamico queforma as solucoes da equacao diferencial associada aδχ∗ = 0 e, a partir da equacao (11)

χ∗ = χ∗(x1, x2, . . . , xn) = c. (12)

Onde na equacao (12) c e uma constante. A equacao(12) e uma hipersuperfıcie de n dimensoes no espacotermodinamico com n coordenadas termodinamicas.Entao, fixada uma hipersuperfıcie χ∗(x1, x2, . . . , xn) =c, para um determinado valor de c, naturalmente seestabelecem as solucoes de (12), que sao hipercurvasnesse espaco. A princıpio abstrata, essa conclusao sematerializa muito mais intuitivamente quando trabalha-mos com tres coordenadas termodinamicas e entao aequacao (12) se traduz em uma familiar superfıcie em 3dimensoes, χ∗(x1, x2, x3) = c, no espaco termodinamicotridimensional relacionado. Alem disso, as solucoes deχ∗(x1, x2, x3) = c se tornam curvas nesse espaco. Valedestacar que e a partir de tres coordenadas termo-dinamicas que costumamos modelar e estudar a maioriados sistemas termodinamicos da termodinamica classicaem nıvel de graduacao.

Finalmente, antes de falarmos do teorema de Ca-ratheodory, precisamos tratar de quando a quantidade

10 Essas equacoes sao costumeiramente chamadas de equacoesdiferenciais de Pfaff [26].

δχ∗ em (8) nao constitui uma diferencial exata, porem,passa a constituir quando e multiplicada por uma de-terminada funcao, a qual chamamos de fator integrante.Com efeito, analoga as χi, seja η uma funcao genera-lizada qualquer das coordenadas termodinamicas que aprincıpio nao e uma diferencial exata, logo o infinitesimode η e δη. Acontece que, em alguns casos, quandomultiplicamos δη por uma outra funcao generalizada µdas coordenadas termodinamicas, obtemos a validade daseguinte relacao

dσ = µδη. (13)

Ou seja, em alguns casos, podemos multiplicar umadiferencial inexata δη por uma funcao generalizadaapropriada das coordenadas termodinamicas µ, paraassim obtermos uma diferencial exata dσ. Quando issoacontece, dizemos que δη e uma diferencial inexataintegravel por µ, daı o nome sugestivo de fator integrantepara µ. Essa acao, dada em (13), tambem e chamada deintegrar a equacao diferencial associada a δη. E sendoδη uma diferencial inexata integravel, as solucoes da suarespectiva equacao diferencial associada tambem sao daforma da expressao (12). Mas em quais casos podemosfazer essa integracao? A menos dos casos restritos aduas ou tres coordenadas termodinamicas em estudo,11

o resultado que generaliza a resposta para essa pergunta,e da significado fısico a toda essa construcao matematicaanterior, e o teorema de Caratheodory.

Segue, entao, o teorema de Caratheodory, adaptadoa notacao do presente artigo, a partir do que consta nolivro classico de termodinamica classica The Concepts ofClassical Thermodynamics, do H. A. Buchdahl [14]:

If every neighbourhood of any arbitrarypoint A contains points B inaccessible fromA along solutions curves of the equation∑ni=1 χi(xj)dxi = 0, then the equation is

integrable.

(Se cada vizinhanca de qualquer ponto ar-bitrario A contem pontos B inacessıveis deA ao longo das curvas solucoes da equacao∑ni=1 χi(xj)dxi = 0, entao a equacao e

integravel.)

([14] — p. 62)

Antes de provarmos o teorema de Caratheodory,vamos evidenciar para o leitor o conteudo fısico familiarque ele possui a partir do axioma de Caratheodory,que ja discutimos exaustivamente nas secoes 3 e 4.Primeiro, vamos recapitular que o calor Q relacionado aum sistema termodinamico e aqui identificado matemati-camente como uma funcao generalizada das coordenadas

11 Sugerimos a leitura do livro do Buchdahl [14] para o leitor quedeseje estudar esses casos mais simples de forma aprofundada.

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e20200448-12 Sobre a Deducao do Axioma de Caratheodory da Segunda Lei da Termodinamica

termodinamicas conforme (8), logo para n coordenadastermodinamicas xi quaisquer, temos

δQ =n∑i=1

Qi(xj)dxi. (14)

Naturalmente, com a respectiva equacao diferencialassociada a Q, dada por

δQ =n∑i=1

Qi(xj)dxi = 0. (15)

Observe que a equacao (15) ja nos fornece, pre-cisamente, a descricao matematica de um processoadiabatico infinitesimal. Agora, se traduzirmos e aplicar-mos o teorema de Caratheodory para Q, e para os pontosdo espaco termodinamico de quaisquer n coordenadastermodinamicas que quisermos estudar, poderemos es-crever que: se qualquer vizinhanca de qualquer ponto Acontem pontos B inacessıveis por A a partir das curvassolucoes da equacao δQ = 0, entao essa equacao eintegravel.

Mas, notamos aqui uma congruencia entre a pre-missa do teorema de Caratheodory aplicado a Q, e oaxioma de Caratheodory, que relembramos novamenteao leitor, ja traduzindo-o para o contexto do espacotermodinamico12:

Axioma de Caratheodory. arbitrariamente proximode qualquer ponto dado existem pontos inacessıveis desdeum ponto inicial por meio de processos adiabaticos.

E, como tambem lembramos, processos adiabaticossao processos nos quais a equacao (15) ocorre emtoda a sua execucao. Alem disso, perceba que umprocesso adiabatico e exatamente o conceito fısico quematematicamente se representa nesse formalismo pormeio das curvas solucoes da equacao (15). Em outraspalavras, processos adiabaticos sao as curvas solucoes daequacao (15). Observe a elegante distincao, e ao mesmotempo conexao, que faz o formalismo de Caratheodoryentre a substancia fısica e a substancia matematica datermodinamica classica.

Assim, reescrevemos o teorema de Caratheodory daseguinte forma: se arbitrariamente proximo de qualquerponto dado existem pontos inacessıveis desde um pontoinicial por meio de processos adiabaticos, entao, aequacao δQ = 0 e integravel. Ou, resumindo:

Teorema de Caratheodory. se vale o axioma deCaratheodory, entao δQ = 0 e integravel.

O teorema de Caratheodory fala em termos ma-tematicos quando uma equacao do tipo (11) e integravel,e o axioma de Caratheodory aponta em termos

12 Lembre-se, ja justificamos a relacao unıvoca entre estadostermodinamicos e pontos no espaco termodinamico.

fısicos que o calor sempre e. Por mera simplicidadeinicial, provamos o teorema de Caratheodory paratres coordenadas termodinamicas quaisquer (x1, x2, x3).Como havıamos anunciado anteriormente, seguimos osargumentos de Born [17].

Prova. Considere que, como nossa hipotese inicial, oaxioma de Caratheodory vale. Ou seja, considere queum ponto arbitrario B no espaco termodinamico em 3 di-mensoes e inacessıvel desde um ponto tambem arbitrarioA, o quao proximo sejam B e A, pelas solucoes de δQ = 0nesse espaco. Digamos agora que exista um segundoponto arbitrario C acessıvel a A por δQ = 0. Entao A e Csao acessıveis um ao outro pelas solucoes de δQ = 0. MasC tem que ser tambem inacessıvel a B por essas solucoesde δQ = 0, pois, do contrario, atraves da passagempor C, B seria acessıvel a A, o que contradiz a nossahipotese inicial. Logo, os pontos acessıveis a A definemuma superfıcie no espaco termodinamico contendo Atal que essa superfıcie tambem contem todos os pontosacessıveis a A pelas solucoes de δQ = 0. Agora, comoessa propriedade da inacessibilidade de pontos no espacofoi exemplificada por A, com A arbitrario, ela deve valertambem para qualquer outro ponto nesse espaco termo-dinamico. Definindo, assim, para cada ponto escolhido,e pelo fato de sempre existirem pontos arbitrariamenteproximos ao ponto que se escolha, uma superfıcie noespaco tridimensional, σ(x1, x2, x3) = c, que contemtodos os respectivos pontos acessıveis desde o pontoarbitrario escolhido. Existem assim, como consequenciada nossa hipotese da inacessibilidade, e de existirempontos inacessıveis arbitrariamente proximos do pontoque seja escolhido, varias superfıcies vizinhas que nao seinterceptam13, Σ(x1, x2, x3) = c, contendo os pontos quesao acessıveis entre si. Nessas superfıcies temos que terdσ = 0 e δQ = 0, donde concluımos que δQ e dσ devemser quantidades proporcionais nessas superfıcies. Isto e,existe µ = µ(x1, x2, x3) tal que

dσ = µδQ. (16)

�Para o caso geral de n coordenadas termodinamicas

a argumentacao acima e a mesma, trocando-se apenaso termo e a construcao de superfıcies pela generalizacaode hipersuperfıcies. Segue da prova acima que a escritade µ como uma quantidade que se relaciona com asdiferenciais dσ e δQ exatamente como da forma expressana equacao (16) nao e obrigatoria. Em outras palavras,segundo o teorema de Caratheodory, matematicamenteapenas precisamos que µ expresse a proporcionalidadeque existe entre dσ e δQ. Dessa forma, por razoes queficaram claras mais a frente, escreveremos para δQ e dσ,ao inves da equacao (16), a seguinte expressao

δQ = µdσ. (17)

13 Essa verificacao e simples, conforme discute Landsberg [15].

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Observe nesse ponto uma das caracterısticas mar-cantes do formalismo de Caratheodory: ambiguidades econclusoes matematicas gerais estarao, necessariamente,sujeitas as avaliacoes fısicas do seu significado. Vamosagora, no intuito de entender melhor a igualdade (17)e obter a entropia e o conteudo matematico da segundalei da termodinamica pelo formalismo aqui desenvolvido,buscar estudar melhor o fator integrante µ e a funcao deestado σ que recem descobrimos.

5.2. Entropia e temperatura absoluta

Com o objetivo de obtermos a entropia e o conteudomatematico da segunda lei da termodinamica pelo for-malismo de Caratheodory, devemos analisar a situacaode dois sistemas termodinamicos em contato puramentetermico um com o outro, bem como isolados adiaba-ticamente da vizinhanca que os cerca. E, nesse ponto,voltaremos a tratar de um numero n de coordena-das termodinamicas quaisquer para os sistemas termo-dinamicos em estudo, assumindo a validade do teoremade Caratheodory tambem para esse caso geral. Considereentao dois sistemas termodinamicos, que iremos nosreferir como KA e KB , em contato puramente termicoentre si, ou seja, KA e KB podem interagir apenasvia trocas de calor. Alem disso, como dissemos, KA eKB estao isolados adiabaticamente da vizinhanca queos cerca.

Se olharmos para o conjuntoKA eKB de forma global,poderemos dizer que ambos os sistemas formam umsistema termodinamico composto KC . Observando essesistema composto KC , em termos matematicos, temos

δQC = δQA + δQB . (18)

Quando estabelecido o equilıbrio termico entre KA

e KB , ambos os sistemas individuais terao a mesmatemperatura empırica θ ao final de um determinadotempo,14 que tambem sera naturalmente a mesmatemperatura empırica do sistema composto KC noequilıbrio. Agora, sendo (x1, x2, . . . , xn−1, θA), (y1, y2,. . . , yn−1, θB), e (x1, x2, . . . , xn−1, y1, y2, . . . , yn−1,θA, θB), as respectivas coordenadas termodinamicas deKA, KB e KC , teremos, no equilıbrio termico, θA =θB = θ. As coordenadas xi e yi sao as coordena-das termodinamicas que fornecem o comportamentomecanico dos respectivos sistemas KA e KB . Essas cons-tatacoes serao importantes mais adiante. Ao aplicarmosa equacao (17) na equacao (18), temos, de imediato

µCdσC = µAdσA + µBdσB . (19)

14 De forma geral, o tempo para que o equilıbrio termo-dinamico ocorra durante uma interacao termodinamica qualquer –mecanica, quımica, etc. – entre sistemas termodinamicos e cha-mado de tempo de relaxacao. Uma bela discussao sobre esseconceito em seu aspecto macroscopico pode ser encontrada no livrodo Callen [4].

Reorganizando (19) em termos de dσC , obtemos

dσC = µAµC

dσA + µBµC

dσB . (20)

Como justificado pelo teorema de Caratheodory, asquantidades σ que surgem da integracao de quantidadesδQ sao funcoes de estado e, portanto, sao funcoes detodas as coordenadas termodinamicas que caracterizamo estado de um sistema termodinamico. Pela expressao(20), vemos tambem que σC = σC(σA, σB). Ou seja,podemos escrever

dσC = ∂σC∂σA

dσA + ∂σC∂σB

dσB . (21)

Tal que, comparando as expressoes (21) e (20), temos

µAµC

= ∂σC∂σA

; (22a)

µBµC

= ∂σC∂σB

. (22b)

As equacoes (22) nos dizem que os quocientes µA

µCe µB

µC

sao tais queµAµC

= µAµC

(σA, σB); (23a)

µBµC

= µBµC

(σA, σB). (23b)

Mas, sabemos que a princıpio, pelo teorema de Ca-ratheodory, as quantidades µ sao funcoes das coorde-nadas termodinamicas definidoras dos estados dos seusrespectivos sistemas termodinamicos progenitores, istoe, e ja para o equilıbrio termico entre KA e KB

µA = µA(x1, x2, . . . , xn−1, σA, θ); (24a)

µB = µB(y1, y2, . . . , yn−1, σB , θ); (24b)

µC = µC(x1, . . . , xn−1, y1, . . . , yn−1, σA, σB , θ). (24c)

Dessa forma, atente que para conciliarmos as equacoes(24) e (23) as quantidades µ nao devem depender dassuas respectivas coordenadas termodinamicas que forne-cem o comportamento mecanico do respectivo sistemarelacionado com µ. Do contrario, os quocientes dadosnas equacoes (23) nao poderiam depender somente dasquantidades σ. Logo, por essa analise, a forma mais geraldas quantidades µ deve ser15

µA = µA(σA, θ) = t(θ)fA(σA); (25a)

µB = µB(σB , θ) = t(θ)fB(σB); (25b)

µC = µC(σA, σB , θ) = t(θ)fC(σA, σB). (25c)

Observe que, apenas gracas ao equilıbrio termico entreos sistemas KA e KB conseguimos escrever as equacoes

15 Uma argumentacao mais detalhada para esse passo pode serencontrada no artigo de Zemansky [20].

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(25), que mostram que os fatores integrantes µ podemser escritas com relacao a uma funcao de carater univer-sal16 t = t(θ), independente do sistema termodinamico,que depende unicamente da temperatura empırica θ doequilıbrio entre KA e KB e que, portanto, e comum aambos os sistemas KA e KB .

O teor universal dessa funcao t = t(θ) nos motivaa definir a chamada temperatura absoluta T dos siste-mas termodinamicos [28], a menos de uma constantearbitraria k, de modo que

T = kt(θ). (26)

O sinal algebrico da constante arbitraria k que definea temperatura absoluta na equacao (26) e uma con-vencao,17 e o formalismo de Caratheodory deixa issobem claro. A escolha historica foi a de k > 0. Ademais,foi para obtermos essa direta proporcionalidade entreas escalas de temperatura T e t(θ) dada em (26) queescolhemos trabalhar com a equacao (17), ao inves daequacao (16). Isso sugere para a temperatura absolutaos mesmos metodos experimentais que sao usados para adeterminacao da temperatura empırica, como discutidopor Buchdahl [14].

Se substituirmos o resultado das equacoes (25), emconjunto com a equacao (26), na equacao (17), teremos,para um sistema termodinamico qualquer

δQ = T

kf(σ)dσ. (27)

Isolando os termos de (27) com a dependencia em σ

δQT

= 1kf(σ)dσ. (28)

Ja sabemos que a quantidade σ e uma funcao deestado, como tambem e, por exemplo, a energia E deum sistema termodinamico. Chamamos entao a funcaoσ de entropia empırica, em alusao a sua relacao coma temperatura empırica de um sistema termodinamico.Em seguida, definimos

dS ≡ 1kf(σ)dσ. (29)

A quantidade S e claramente tambem uma funcao deestado, e recebe o nome de entropia absoluta, ou apenasentropia do sistema termodinamico, tambem em alusao asua relacao com a temperatura absoluta. A mensuracaoda entropia tambem independe das propriedades par-ticulares de cada sistema termodinamico. Finalmente,substituindo a equacao (29) na equacao (28), obtemos

dS = δQT. (30)

16 Devemos destacar que o formalismo de Clausius tambem indicaque a temperatura esta relacionada ao fator integrante do calor[27]. No formalismo de Gibbs, apesar de tambem presente, essefato nao e muito relevante.17 Recomendamos fortemente ao leitor a consulta da secao 11e dos apendices [A-6] e [A-8] do livro do Pauli [28], para umaesclarecedora discussao sobre esse assunto.

Figura 6: Espaco termodinamico das coordenadas x1, x2 e S,com os processos supostamente adiabaticos irreversıveis P+ deA → B′, e P− de A → B.

A expressao (30) e o conteudo matematico da se-gunda lei da termodinamica para processos reversıveis.O motivo de (30) valer apenas para processos reversıveisfica claro na medida em que tentamos avaliar a en-tropia S desde (30) para processos irreversıveis. Setentarmos fazer isso, veremos de imediato que umasimples integracao de dS nao e possıvel para obtermosS em processos irreversıveis. Para essa integracao, atemperatura absoluta T em (30) nem mesmo estariadefinida nas etapas intermediarias de qualquer processoirreversıvel que considerassemos avaliar. Isso quer dizerque precisamos de uma outra estrategia para estudarmosS em processos irreversıveis.

Contudo, felizmente, o axioma de Caratheodory nosfornece essa outra estrategia rapidamente. Para isso,considere, novamente por pura simplicidade, um espacotermodinamico com tres coordenadas termodinamicas,x1, x2 e S. Em seguida, considere o esquema desse espacotermodinamico na Fig. 6 com dois processos supos-tamente adiabaticos irreversıveis, P+ e P−, partindoambos do mesmo ponto arbitrario A.

Feito isso, suponha ambos esses processos, P+ eP−, simultaneamente possıveis. Entao, a variacao daentropia no curso desses dois processos podera ser, apartir da Fig. 6, positiva ou negativa. Positiva duranteP+, negativa durante P−. Mas, podemos aproximararbitrariamente B′ de B, e como supomos P+ e P−simultaneamente possıveis, segue que todos os pontosna linha que contem B e B′ podem ser alcancados desdeA por processos adiabaticos irreversıveis. Aproximandotambem a linha que contem B e B′ de A, teremosque: arbitrariamente proximo de A existem estadosque podem ser alcancados a partir de A por processosadiabaticos irreversıveis, falseando, assim, o axioma deCaratheodory para processos irreversıveis.

Decorre dessa argumentacao o seguinte: para naoviolar o axioma de Caratheodory, a entropia de

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qualquer sistema termodinamico no curso de um pro-cesso adiabatico irreversıvel sempre deve ou aumentarou diminuir, nunca os dois [28]. Mais uma vez aqui, etalvez de forma ainda mais importante, o formalismode Caratheodory nos impeli a observar a distincaoentre a substancia fısica da termodinamica classica ea construcao matematica desenvolvida para descreve-la.Ou seja, a escolha para o sinal algebrico da variacao daentropia em processos adiabaticos irreversıveis se tornaarbitraria. Como o leitor ja deve saber, escolhemos osinal positivo para essa variacao e escrevemos

∆SQ=0 > 0. (31)

A expressao em (30) e o conteudo matematico da se-gunda lei da termodinamica para processos irreversıveis.Juntando as expressoes (30) e (31), quando tomamos umprocesso adiabatico em (30), obtemos

∆SQ=0 > 0. (32)

A expressao (32) e o conteudo matematico geral dasegunda lei da termodinamica.

Por ultimo, gostarıamos que o leitor se ativesse aobservar a essencia do formalismo de Caratheodory.Nele, apesar do investimento matematico que e ne-cessario, a fısica da termodinamica classica e ampla-mente refletida e solicitada, ao passo que a construcaomatematica distingue, com precisao, o conteudo fısicoda teoria do puramente formal e abstrato. O formalismode Caratheodory ainda fornece uma vasta margem deconexao pedagogica entre a termodinamica classica ea mecanica classica, a partir do conceito de coorde-nadas generalizadas, conforme aponta Buchdahl [14].Ainda, ao sermos capazes de reproduzir os resultadosda termodinamica classica simplesmente assumindo deinıcio a validade do axioma de Caratheodory, tracamosum paralelo entre esse axioma e aquele encontrado noformalismo de Hamilton – princıpio de Hamilton –,novamente no contexto da mecanica classica, como dizPippard [29]. Ou seja, apesar do infortunio da impo-pularidade do formalismo de Caratheodory ao longo dosanos, essa abordagem pode, definitivamente, acrescentarmuito para com o ensino da termodinamica classica,e pode ser utilizada como uma alternativa viavel aosformalismos de Clausius e Gibbs.

6. Conclusao

Neste artigo, abordamos um pouco da construcao do for-malismo de Caratheodory para a termodinamica classicaem relacao aos outros formalismos mais conhecidos dessateoria. Na secao 2 discutimos um pouco da origem e doteor do formalismo de Caratheodory no contexto da suaimpopularidade historica ao longo dos anos. Advogamospelo formalismo de Caratheodory ao fomenta-lo comouma alternativa viavel ao ensino da termodinamicaclassica.

Em favor dessa causa, buscamos mostrar didatica-mente ao leitor como o axioma de Caratheodory dasegunda lei da termodinamica pode ser deduzido dosprincıpios de Clausius e Kelvin: mostramos (K)⇒ (AC)na secao 3, e (C)⇒ (AC) na secao 4. Da ampla literaturarevisada, demos uma prova nova para (C) ⇒ (AC).

Alem disso, guiamos o leitor na secao 5 por umdos caminhos possıveis que levam a obtencao da en-tropia e do conteudo matematico da segunda lei datermodinamica a partir desse formalismo. Desse modo,esperamos que este trabalho sirva em alguma medidapara popularizar o formalismo de Caratheodory emdisciplinas de termodinamica classica em nıvel de gra-duacao, contribuindo tambem com o ensino da propriatermodinamica classica.

Agradecimentos

Agradecimentos se destinam aos professores PauloHenrique Ribeiro Peixoto, do NFD-UFPE, e GustavoCamelo Neto, do NICEN-UFPE. Agradecimentostambem se devem aos revisores do artigo pelas valorosascrıticas e sugestoes.

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