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Ponto UrbeRevista do núcleo de antropologia urbana da USP
18 | 2016
Ponto Urbe 18
São Paulo: metrópole da modernidade vacilante
José de Souza Martins
Edição electrónicaURL: http://journals.openedition.org/pontourbe/3042DOI: 10.4000/pontourbe.3042ISSN: 1981-3341
EditoraNúcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo
Refêrencia eletrónica José de Souza Martins, « São Paulo: metrópole da modernidade vacilante », Ponto Urbe [Online],18 | 2016, posto online no dia 31 julho 2016, consultado o 05 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/pontourbe/3042 ; DOI : 10.4000/pontourbe.3042
Este documento foi criado de forma automática no dia 5 Maio 2019.
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São Paulo: metrópole damodernidade vacilanteJosé de Souza Martins
Impressões de um flâneur
1 Foi num fim de manhã. Decidi que numa de minhas visitas ao dentista, perto do
apartamento em que morara quando era solteiro, aproveitaria para tirar algumas fotos da
bela escadaria que desce da esquina da Rua Frei Caneca com a Rua Caio Prado em direção
à Rua Avanhandava e Avenida 9 de Julho, na cidade de São Paulo. Não é preciso conhecer
o lugar. Basta imaginá-lo. Escolhi os ângulos e comecei a fotografar. Pelo canto do olho
percebi que uma viatura da Polícia Militar parou perto de mim. Desceram uma policial e
um policial, ela no comando.
2 – Bom dia, cumprimentou-me ela.
3 De olho no visor, respondi, de costas e continuei a fotografar.
4 – O senhor é fotógrafo?
5 – Não, respondi, já virando-me porque percebi que os dois não estavam apenas de
passagem. O negócio era comigo.
6 – Não?! – exclamou ela com fingida surpresa. O que o senhor faz, então?
7 – Eu trabalho.
8 – Sim, mas em quê?
9 – Sou professor.
10 – Ah, é?! Professor de quê?
11 – De Sociologia.
12 – Nossa! Onde?
13 – Na Universidade de São Paulo.
14 – Uau! Que chique!
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15 – Chique, por que? É um trabalho como outro qualquer.
16 – O senhor tem um documento de identidade?
17 Tirei do bolso minha carteira de identidade e a entreguei a ela, que a repassou ao soldado.
Com uma prancheta e uma caneta nas mãos, ele tomou nota dos meus dados, quis saber
meu endereço.
18 Devolveu-me o documento e fez uma recomendação:
19 O senhor tome cuidado, pois aqui é um pouco perigoso. Se houver qualquer problema, o
senhor nos chame, estaremos por aqui.
Fig. 1.1: Escadaria (© J. S. Martins, 2006)
20 De fato, naquele canto, costumam dormir na calçada vários moradores de rua, quase
sempre suspeitos de alguma coisa, menos de pobreza e desamparo. E não é raro encontrar
por lá poças de urina e montes de fezes, o que torna aquele canto da cidade um canto
repugnante, que as pessoas evitam, apesar de sua beleza. Uma imperturbável paineira, ali
do lado, floresce suas flores rosadas todos os anos e depois distribui lentamente ao vento
o algodão sedoso de suas painas. No tronco entumescido de um lado só, diz a lenda
popular e piedosa, escondeu a sagrada família, à qual se abrira e que nele se refugiou na
fuga para o Egito, perseguida pelos soldados de Herodes. No passado, as crianças da
cidade ainda aprendiam essa história, contada por pais e avós que haviam migrado do
campo para trabalhar nas fábricas do subúrbio.
21 Naqueles minutos, eu havia passado radicalmente da suspeição de vadio à suspeição de
cidadão. Vivera um ritual de classificação social, comum na cidade de São Paulo há mais
de 200 anos. Um resquício da primeira escravidão, a dos índios. Quando formalmente
libertados em 1757, para viabilizar a escravidão de negros africanos e seu comércio
lucrativo, índios e bastardos, nome que se dava aos mestiços de índia e branco, vagando
pelas ruas já eram suspeitos de vadiagem, isto é, gente dada a vadiar, a perambular, sem
dono, uma categoria que até hoje se aplica também aos cachorros de rua.
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Fig. 1.2.: Vida de cachorro (© J. S. Martins, 1998)
22 O vadio era tido como ocioso contumaz, inútil, reácio ao trabalho, insubmisso. Quando a
escravidão negra começou a entrar em crise, na segunda metade do século XIX, e já havia
muitos negros livres, também os negros vadios passaram a ser objeto de estigmatização.
Aliás, mulheres desacompanhadas, na rua, eram consideradas mulheres à-toa, soltas e
livres, designação que acabou sendo sinônimo de prostituta. Até hoje, os mais pudicos se
referem às putas como mulheres à-toa, já que puta é palavrão e prostituta é quase bíblica
definição, muito aquém do que muitos pensam a respeito desse ofício. Sem contar que
vago (e vagar) não é só o que perambula, mas também o desocupado, o que não está
trabalhando, o desempregado.
23 Com o fim da escravidão, em 1888, e o quase simultâneo fim do Império, em 1889, e o
começo da República, ganhou vigor o discurso sobre o trabalho e a valorização do
trabalho. Esse foi o valor social central da sociedade brasileira, sobretudo na cultura
paulistana pós-escravista. Trabalho se transformou em remédio, recurso medicinal,
passou a ser usado com fins terapêuticos nos manicômios, nos seminários católicos, nos
asilos de órfãos. A ociosidade era uma doença, um pecado, orfandade e desamparo. Coisa
de gente que precisa de tutela e repressão. O trabalho curava o corpo e curava a alma.
Desorfanizava os órfãos e os desamparados. Um poeta paulistano, Paulo Eiró, foi expulso
do seminário católico do bairro da Luz porque fazia poesia e acabou no manicômio da
Várzea do Carmo porque fazia poesia, denunciando a escravidão, aliás. Morreria no
hospício, de meningite, ainda jovem, sem poesia alguma. Só por milagre uma parte de
seus versos e de seu teatro abolicionista foi salva e publicada, setenta anos depois, pelo
escritor anarquista Afonso Schmidt.
24 Na República, com o tempo, surgem as delegacias de repressão à vadiagem. Ser vadio
ficou entre doença e crime. Ainda hoje a polícia aborda pessoas, sobretudo negros, nas
ruas e lhes pede a carteira de trabalho, para que provem que não são vadios. Quando se
pergunta à polícia, se faz isso, nega. Mas quem perambula, sabe e vê. Já vi isso nas
escadarias da estação Sé do metrô de São Paulo, um jovem negro abordado pelo jovem
policial militar branco, que tentava se explicar a uma velhinha branca e bem vestida que o
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interpelava pelo que fazia e o desafiava a fazer o mesmo com ela: “É porque ele é negro,
não é?” – vociferava ela indignada e cheia de razão cidadã e republicana.
25 Na verdade, a repressão à vadiagem urbana nos fala da doença da modernidade ou a
modernidade tratada como doença. O vadio foi o primeiro habitante da cidade a
comprometer moralmente o confinamento na sociedade tradicional e remotamente
marcada por valores muçulmanos, que foi São Paulo até o início do século XX. Mulheres
viviam trancadas dentro de casa, protegidas por rótulas ou muxarábis nas janelas para
verem os da rua sem serem vistas pelos da rua. Só saíam à rua rebuçadas e, de
preferência, acompanhadas pelo marido ou pai, ele na frente e o restante da família atrás.
Um verdadeiro rebanho de gente carneiril.
26 O vadio foi o primeiro personificador da modernidade, um ser de ubiquidade simbólica,
personagem do lugar nenhum, desacompanhado, livre de tutela, ser de vários lugares.
Anomalia antecipatória da modernidade urbana, escorrendo por entre as ruas da
metrópole nascente, às escondidas, fora de hora como até hoje se diz. Refugiada na
escuridão da noite, perdida no desencaixe das antecipações de um processo de
desenvolvimento desigual que, desigualando os momentos da história social, promove os
desencontros e tensões da história falsamente evolutiva do desenvolvimento econômico.
A modernidade propondo-se de maneira atropelada, sem harmonia e sem graça, criando e
distribuindo personagens pelas ruas da cidade, o lugar dos que não têm lugar. Coisas de
uma sociedade que teve escravidões e as ocultou em gestos e modos de andar, de viver, de
falar, de pensar para fazer de conta que é moderna, que chegou lá adiante quando ainda
está lá atrás. Hipocrisia e fingimento como técnicas sociais para ser moderno sem sê-lo,
para viver e sobreviver na cidade. Coisas de uma cidade que é pós-moderna há séculos,
como nos diz Néstor García Canclini (1990:19) sobre esta nossa América Latina. Nela, seus
séculos se tocam, se falam, embora não se entendam.
27 Desde o alto e desde longe, São Paulo parece Nova York, erguendo-se soberba sobre
montanhas de ferro e de concreto. Desde perto, São Paulo parece São Paulo, na
tortuosidade social que desmente a exuberância da arquitetura, a velocidade e o conforto
cada vez menor dos automóveis, dos trens, dos aviões. A São Paulo que justapõe o luxo
dos palacetes e dos apartamentos caros aos barracos desconstrutivos das mais de mil e
quinhentas favelas da cidade, cerca de dois milhões de pessoas. De famílias vivendo
apertadas nos nove metros quadrados de madeira velha e papelão, de paredes de outdoors
catados no lixo. Como aquele que se tornou célebre há vários anos: revestia a parede de
um barraco de favela o anúncio de um banco que propunha ganhos fáceis e rápidos em
determinado tipo de investimento.
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Fig. 1.3.: Arquitetura desconstrutiva (© J. S. Martins, 2000)
28 Numa foto imensa, recostado confortavelmente numa poltrona, de charuto na mão,
famoso e popular cômico de televisão, Ronald Golias, gargalhava os fingidos milhões de
sua felicidade teatral e publicitária de anúncio das ilusões do capital financeiro. Aquilo
era o tapume de um barraco. De uma janela improvisada no meio do anúncio, naquela
visão fantasiosa de uma farta riqueza, uma favelada negra franzia o cenho para o
fotógrafo que lhe tirava o retrato para documentar a contradição que ela representava e
sofria. Sua figura na janela desdizia o anúncio de sua parede, dizendo tudo que uma
fotografia no lugar errado pode dizer. Lá dentro, como vi em barracos da favela na
encosta do morro do Jaguaré, emoldurados por imenso anúncio da Coca-Cola que ocupava
sua parte alta, resíduos da modernidade alheia. A do aparelho de televisão, do fogão a gás
e até do telefone fixo, como vi numa tarde de sábado a Telefónica instalando aparelhos
em mais da metade dos barracos. É a modernidade própria sem conteúdo, antecipatória
de um possível que não vem, de um futuro que não chega, de uma demora que cansa.
29 No primor compacto de uma arquitetura popular inventiva e sintética a junção
impossível: quarto, sala, cozinha, privada no mesmo cômodo, em família e em comunhão,
comer, dormir, amar e cagar. Sem faltar o oratório esperançoso de Nossa Senhora
Aparecida ou o altar de oferendas mágicas e preventivas a Exu, Oxóssi, Xangô ou Ogum.
Realismo fantástico de escombros. Como vi nas ruínas ainda fumegantes da favela Diogo
Pires, perto da Cidade Universitária, no dia seguinte ao incêndio que a destruiu, quando lá
estive para fotografar e colher dados para um artigo de jornal.
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Fig. 1.4: Favela Diogo Pires depois do incêndio (© J. S. Martins, 2009)
30 Essas contradições não doem. Os recursos cosméticos do vestuário e da maquiagem são
instrumentos baratos de técnicas sociais de fingimento teatral que dissimula o que não se
quer ser. As artimanhas da aparência dão a todos os moradores da geografia da integração
social perversa os meios necessários a entrarem na modernidade pela porta da frente. No
lugar da igualdade social substantiva, o teatro da igualdade, o que atenua a chamada
exclusão social sem resolvê-la. A modernidade é conformista. Nela, sabemos, todos somos
o que parecemos ser. O resto não importa.
31 Isso pode ser feito com bom humor e deboche, traço bem brasileiro que tanto irrita, mais
a esquerda do que a direita. Há alguns anos surgiu em São Paulo um shopping center de
lojas de artigos de altíssimo luxo e mais alto preço ainda, o Daslu. Não tardou, do Rio de
Janeiro (daqueles cariocas sempre despeitados com o que se faz em São Paulo) veio a
resposta. A prostituta e socióloga Gabriela Leite lançou a grife Daspu (das putas), de
roupas baratas feitas por elas mesmas. A Daslu quase foi à falência, enquanto a Daspu foi
processada. Antonio Candido, o grande sociólogo brasileiro, já havia dito que no Brasil
fazemos crítica social fazendo troça, ironia. Discordamos, protestamos, rindo, caçoando.
Enfim, como já ouvi muitas vezes, a gente ganha pouco, mas se diverte.
Da primeira impressão à compreensão descritiva
32 Quando se pensa em cidade e modernidade, a primeira tendência é a de pensarmos as
formas arquitetônicas e urbanísticas, redutivamente. Nesse sentido, São Paulo é uma
verdadeira tentação. Desde o fim do século XIX, nos bairros de fazendeiros e industriais
ricos, o rebuscamento arquitetônico das mansões e palacetes anunciava a modernização
como recusa de nós mesmos. Copiávamos Paris. Não só no traço das casas, mas também na
fala. Aqueles paulistas enriquecidos pelo ouro verde do café e pelo suor mal pago do
arcaísmo de relações de trabalho pré-salariais e pré-modernas, de centenas de milhares
de colonos, sobretudo italianos e espanhóis, entravam na modernidade falando francês.
Paulistas que cem anos antes ainda falavam nheengatu, a língua brasileira criada pelos
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jesuítas com vocabulário tupi-guarani e gramática portuguesa. Quando proibidos de falá-
la, em 1727, passaram a usá-la clandestinamente dentro de casa e a falar português com
sotaque nheengatu, o dialeto caipira, que muitos ainda falam sem saber que o estão
falando.
33 Parte do êxito inicial da Universidade de São Paulo, fundada em 1934, foi devido ao fato de
que os primeiros professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras eram da Missão
Francesa e davam aulas em francês. Era um programa da elite paulistana ir à
Universidade ouvir em francês as aulas de Claude Lévi-Strauss, nosso primeiro professor
de Sociologia, de Roger Bastide, seu sucessor, de Fernand Braudel, de História, e de outros
jovens eruditos e promissores que em São Paulo se refugiavam dos sufocos da Razão. A
sabedoria era um passatempo. Dessa experiência humana de encontro entre a quase
civilização e a quase barbárie, Lévi-Strauss deixou a memorável narrativa de Tristes
Trópicos, no fundo um livro sobre a modernidade como teatro e fingimento. Algo que não
era novo: o poeta paulistano, Álvares de Azevedo, em meados do século XIX, de outro
modo dissera quase a mesma coisa.
34 Também se comia em francês. Muito antes, o pai da grande pintora paulista, modernista,
Tarsila do Amaral, um dos maiores fazendeiros de São Paulo, que morava numa de suas
muitas fazendas, no interior, cercado de imenso cafezal, mas também de frutas e
verduras, tomava diariamente, no jantar, sopa liofilizada francesa, no maior desprezo
pelas verdurinhas nativas, frescas e sadias. Os grandes fazendeiros se urbanizaram e se
modernizaram na roça, cercados de relações de trabalho que ainda eram extensão de um
cativeiro extinto legalmente, mas sobrevivendo com rótulos e roupagens das relações
laborais modernas.
Fig. 1.5: A pausa que refresca (© J. S. Martins, 2000)
35 A elite da São Paulo afrancesada, que se pretendia moderna, descobriria, em 1922, na
Semana de Arte Moderna organizada por seus filhos rebeldes, que moderna não era na
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crítica ácida e nativista das novas gerações, fartas de prosperidade e de dinheiro fácil,
sem conteúdo próprio. Descobririam nos simples, nos originários das senzalas e das roças,
a raiz da nacionalidade e nela o outro lado da modernidade. “Macunaíma”, a personagem
de Mário de Andrade, uma das grandes expressões literárias da Semana, nascia mestiço e
sem nenhum caráter. E ainda por cima dominado por uma preguiça imensa, o principal
item da caricatura que os brasileiros fizeram de si mesmos. O vadio da repressão policial
se tornava herói de literatura. Com um atraso secular, os paulistanos se reconheciam nas
aparências e no cotidiano e se encontravam na contradição entre o aparente e o
substancial.
36 São Paulo era uma cidade de sotaques. Descendentes de italianos de diferentes regiões e
aldeias falavam, até 1930, nos bairros operários, os dialetos de origem. Italianos vieram
aprender italiano em São Paulo, antes de aprenderem português. Ainda hoje nos bairros
da Mooca, do Brás e do Bixiga se fala português com sotaque de diferentes dialetos de
aldeia, um português cantado como se fosse italiano, sem de fato ser português. Nos anos
1920, um engenheiro de família da elite cafeeira mais tradicional, sob o pseudônimo de
Juó Bananére, codificou essa fala numa literatura de ironia e troça, que descrevia o modo
de ser de paulistanos de origem estrangeira num português de forte sotaque napolitano.
No bairro do Brás, antigo bairro operário e italiano, uma velhinha, vendo-me fotografar a
velha viela proletária em que nascera e crescera, saudou-me um dia de manhã com um
alegre: “Ciau, bello!” Na festa da Madonna de Casaluce, no Brás, o vigário canta tarantelas
em dialeto. Negros do bairro calabrês do Bixiga, ainda há poucos anos, iam ao
confessionário confessar pecados ao Padre Toninho, negro, em dialeto calabrês.
37 A pizza de São Paulo é infinitamente melhor que a da Itália. Conheço as duas. E o melhor
retrato do que é a São Paulo dos dias de hoje está num documentário de Ugo Giorgetti,
que se chama simplesmente Pizza. Os melhores pizzaiolos emigraram da Itália há muito
tempo. Em São Paulo, com eles aprenderam e os substituíram, pizzaiolos nascidos no
Nordeste do Brasil, não raro antigos trabalhadores rurais. Na Mooca, netos de espanhóis
ainda dizem palavrões na língua dos avós andaluzes. E há bairros de São Paulo em que
ainda se fala, e bem, o dialeto caipira.
38 Nas últimas décadas, de grandes migrações para São Paulo, sobretudo originárias do
Nordeste e do Estado de Minas Gerais, cresceram na cidade as manifestações folclóricas
típicas da roça, fora do lugar. Há poucos anos, em véspera de Natal, ouvi à porta de minha
casa uma toada que me pareceu de cântico dos Santos Reis. Fui ver e era um grupo
precatório de foliões de Reis que, ia de casa em casa, saudando os moradores com o
comovente “Deus te salve casa santa”, que eu só ouvira na roça. Eram moradores de um
bairro pobre, próximo ao meu, que é bem próximo da Universidade, o meu um bairro de
classe média alta. Saíram para os ritos natalinos que cumpriam quando eram
trabalhadores rurais, antes de migrarem para São Paulo. Foram caminhando pelas ruas e
acabaram num bairro em que a maioria dos moradores não tem a menor ideia do que seja
a grande, bela e antiga tradição ibérica de celebrar o Natal com a evocação dos peregrinos
de Belém, em contraste com o barbudo Papai Noel nórdico. Pessoas que enfeitam sua
árvore de Natal com neve falsa de algodão, em dias de temperatura não raro de 25º C.
39 Hoje na periferia pode-se encontrar a folia do Divino Espírito Santo, a folia de Reis, o
samba-lenço rural, o bumba-meu-boi do Maranhão. A importância que na cidade tem,
desde os anos vinte, a chamada música sertaneja nos fala de uma expressão musical
urbana apoiada em estilos e valores rurais. A mais difundida forma de expressão de
grande número de seus moradores é, portanto, um gênero musical antiurbano e
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antimoderno. No geral carregado de nostalgia, a cidade é nele definida como perda social
e moral em relação ao esplendor telúrico e simples do mundo rural, como privação e não
como conquista e benefício. Uma cidade em direta oposição à interpretação que dela
fazem os cientistas sociais, cujos estudos urbanos estão no geral, compreensivelmente,
baseados no pressuposto ideológico de que a cidade é historicamente superior ao campo,
o operário é historicamente superior ao camponês.
Fig. 1.6: Sono justo (J. S. Martins, s.d.)
40 Não é por isso estranho que em pesquisa sobre sonhos de moradores da cidade, o que
sonham quando dormem, realizado por meus alunos de Sociologia da Vida Cotidiana
(Martins 1996), a cidade seja um lugar de medo e de hostilidade. O imaginário onírico dos
paulistanos não é o imaginário do sexo proibido ou incestuoso da visão freudiana dos
sonhos, mas o imaginário da repulsa à cidade. O banco de sonhos que organizaram
contém muitas narrativas de pesadelos em que a casa aparece como refúgio e mesmo
como uma comunidade de vivos e mortos, familística. Cotidianamente ameaçada pelo
invasor, carros que atravessam salas e dormitórios, paredes de banheiros que se tornam
transparentes quando alguém o está usando, uma perda do caráter uterino, culturalmente
forte, da casa paulistana.
41 Na São Paulo de hoje, o ontem invasivo não permite que a cidade durma em paz a sua
modernidade de colagem, a sua inautenticidade. A modernidade, mais do que uma trama
de temporalidades desencontradas, é ali, um pesadelo.
Da descrição à compreensão sociológica
42 A São Paulo da primeira impressão dessa narrativa constitui apenas a primeira referência
de que se vale o sociólogo para compreendê-la. Na primeira impressão já se propõe a
junção das temporalidades desencontradas de sua modernidade. Nela, os momentos
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indicam a sedimentação de imaginários, de modos de viver, de experiências sociais do
urbano em distintas épocas. A narrativa junta a diversidade dos tempos da cidade e é
nesse sentido uma narrativa etnográfica. Para ser objeto do conhecimento sociológico, a
cidade tem que ser a matéria-prima do imaginário local, no modo como se dá a ver e se dá
a descrever. Isto é, no modo como a diversidade dos seus tempos de diferentes gêneses é
diluída num tempo atemporal que junta e cimenta a diversidade no imaginário que lhe
expressa a identidade.
43 Diferente do pressuposto que geralmente acompanha o estudo das cidades no Brasil, essa
conjunção de tempos na experiência social dos diferentes grupos humanos que a habitam
manifesta o desenvolvimento desigual no espaço urbano, o marco de sua historicidade.
Cada estrato dessa diferenciação retém códigos das singularidades do momento, das
condições e da circunstância de sua gênese, as peças dessa identidade. Em São Paulo, os
moradores do bairro da Mooca conservam sotaques do dialeto ítalo-paulista, sua culinária
napolitana e calabresa só encontrados lá. No bairro do Bixiga, sotaques e condimentos
calabreses contam uma história, diferente da dos da Mooca porque naquele houve forte
presença negra e uma recíproca aculturação de grupos: católicos negros que falam o
dialeto calabrês, descendentes de calabreses que no Carnaval desfilam na Escola de Samba
Vai-Vai. Na Zona Leste, de formação mais recente, o sotaque nordestino esconde a
diversidade do próprio Nordeste do Brasil e indica um Nordeste reinventado em São
Paulo, que é outra coisa, um regionalismo nascido em São Paulo mesmo. Algo que já havia
ocorrido com o italiano que se descobriu italiano no Brasil ou com o negro africano, até o
século XIX ainda com fortes marcas étnicas e tribais, que no entanto se descobriu negro
no tratamento servil que a palavra “negro” aqui pressupunha, isto é, escravo.
44 A cidade não é, pois, apenas um modo de viver, mas também um modo de inventar
relações sociais, mentalidades, identidades, a consciência social da diversidade na
unidade mediadora do espaço urbanizado. Idade é o lugar de muitas diversidades, de
situação social, de ideias, de costumes, de modos de ver a vida e o outro, de modos de usar
o espaço urbano. A cidade só o é como lugar da diferença e não como lugar da
homogeneidade social e cultural. Uma característica própria do paulistano é a de
transitar, cotidianamente, entre espaços dessa diversidade. Portanto, a de ressocializar-se
continuamente para a alteridade, coisa difícil de encontrar no Norte, no Nordeste, no Sul
do país e mesmo na cosmopolita Rio de Janeiro, que para o paulista não raro parece uma
cidade provinciana, provincianismo só atenuado pela peculiar sociedade de praia.
45 Uma perspectiva evolucionista muito presente nos estudos sociológicos dos anos 1950
valorizava o urbano como realidade social mais avançada do que a rural e no urbano a
cidade como a possibilidade extrema do desenvolvimento social. A cidade, isto é, o modo
de vida urbano, era um destino histórico da sociedade e o descarte de “seus passados” era
uma missão política e civilizadora. No entanto, a descrição impressionista da persistência
de costumes de extração não urbana documenta menos o atraso social, como se supunha,
e muito mais a resistência contra a corrosão de costumes e de identidades. Aquilo que
assegura a integração dos migrantes e adventícios numa sociabilidade de confronto com
um ideário hostil e anticomunitário, que é o ideário urbano. Nesse sentido a cidade é
muito menos um modo de ser do que tensão entre modos de ser: os da circunstância, os
que sobreviveram do passado que todos temos e carregamos conosco. Mas também o
possível, a busca de saída, a criação, a produção do novo, o que resulta dessa tensão
própria da diversidade, a imaginação contra o imaginário como sugeriu Henri Lefebvre
numa de suas obras (Lefebvre 1980). Recusa do que se tornou próprio do anômico mundo
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urbano que se desenvolve na periferia do mundo moderno. Caso em que a própria
concepção de anomia parece esconder a diversidade integrativa e eunômica da cidade.
46 A diversidade dos tempos, própria desses diferentes estratos socioculturais e históricos,
encontra uma de suas causas decisivas no ritmo desigual do desenvolvimento social em
relação ao desenvolvimento econômico, aquele mais lento do que este; aquele realizando
menos do que este possibilita, como mostrou Henri Lefebvre em diferentes estudos e
mostrou, também, Agnes Heller. A pobreza urbana (não propriamente a dos
materialmente pobres, mas também e sobretudo a pobreza do modo de ver, de viver e de
ser próprio do urbano) é entre nós pobreza de possibilidade de realização, no plano das
relações sociais, daquilo que já se propôs no plano das relações econômicas. Esse
desencontro se materializa nas áreas urbanas de São Paulo que, na perspectiva de Lewis
Mumford (2004), podem ser definidas como áreas de deterioração social em relação àquilo
que a cidade já foi, sem dúvida. Mas também como áreas de deterioração das condições
para surgimento e disseminação daquilo que é propriamente urbano. As favelas
paulistanas são uma indicação dessa insuficiência social institucionalizada, desse
crescimento involutivo da cidade. O próprio subúrbio que floresceu entre as fábricas
durante mais de um século de industrialização, povoado por um proletariado
relativamente próspero, certamente mais próspero que o de hoje, cria um cenário de
insuficiências, como cenário de reprodução social divorciada da produção, da riqueza
criada a mais e sem retorno.
47 Nesse sentido, as espacialidades diferenciais da cidade indicam contradições do urbano
que tem indiscutíveis funções metodológicas no estudo do que o urbano é nessas
condições históricas. O desenho que a cidade de São Paulo tem hoje é o desenho que lhe
foi dado pela refuncionalização do espaço urbano, a partir do final do século XIX, com a
expulsão da indústria nascente do centro da cidade para o subúrbio agrícola, um centro
fagocitado pelo centro original que se expandiu com a expansão do espaço do poder. A
diversificação das categorias sociais geradas ou reproduzidas pela diversificação das
funções do espaço se traduziu numa diferenciação social de classes.
48 Se o café gerou imensas riquezas desde as décadas finais do século XIX até a crise de 1929,
essas riquezas deram fisionomia à cidade em função da elite empresarial ter optado por se
tornar uma elite residente contra a possibilidade de uma elite absenteísta. Ainda que
atraída pela Europa, especialmente, Paris, onde muitos nababos do café tiveram seus
palacetes e onde passavam uma parte do ano, eles não deixaram de ter em São Paulo seus
palacetes residenciais, em bairros luxuosos, num afã de enraizamento e de criar aqui, pela
cópia, o que viam e conheciam lá fora. Nas décadas finais do século XIX, recriaram a
cidade para acrescentar o poder político que tinham, o novo poder econômico da
cafeicultura e suas contrapartidas no campo cultural, a cidade como um monumento do
espírito e lugar de redistribuição cultural dos ganhos econômicos das fazendas cafeeiras
do interior e das fábricas suburbanas da capital.
49 A elite paulista criou, no limite do possível, a infraestrutura do consumo ostensivo,
sobretudo a da cultura erudita, nas salas de concerto, no Teatro Municipal, nas escolas
superiores e, finalmente, na Universidade. Destacou-se da de outros países da América
Latina por ter diversificado a aplicação e o reinvestimento de seus ganhos no café,
colocando seus capitais no comércio de exportação, nas ferrovias, na indústria e nos
bancos. Em curto prazo, famílias de grandes proprietários rurais e até mesmo de senhores
de escravos tornaram-se famílias de empresários no mais puro sentido weberiano. Deram
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funções econômicas e produtivas ao espaço urbano que se constituía, especialmente com
a indústria e a formação do subúrbio industrial.
50 A industrialização ancorada na agricultura de exportação teve, sem dúvida, a função de
substituir importações e a de criar um núcleo dinâmico de economia voltada para dentro
no próprio âmago da economia dirigida para fora, como um complemento que socorreu a
economia brasileira nos momentos críticos. A dependência externa gerou a economia
dual que dinamizou o mercado interno e criou na própria cidade de São Paulo uma cidade
de dois Brasis, a do Brasil da economia agrícola de exportação, a do café, e o Brasil da
economia industrial orientada para o mercado interno. Mercado constituído tanto pela
população urbana decorrente da contraditória característica da economia brasileira pós-
escravista quanto das relações não salariais do trabalho agrícola. Eram elas possibilitadas
pela produção direta dos meios de vida, a remuneração do colono de café feita
parcialmente em dinheiro e parcialmente pela permissão de trabalho por conta própria
fosse entre as leiras do café, fosse nos terrenos sobrantes, inúteis para a cafeicultura.
Produção de alimentos não baseada em contabilidade de custos, cujas sobras eram
vendidas nas cidades por preços inferiores aos preços do que pudesse ser uma produção
propriamente capitalista. Essa foi a economia marginal à de exportação que sustentou o
mercado interno, subsidiando a indústria nascente, sendo-lhe mercado e, ao mesmo
tempo ao baratear o custo de reprodução da mão de obra industrial com os gêneros
alimentícios cultivados fora da lógica capitalista da contabilidade de custos.
51 O capitalismo peculiar ao modo como se deu no Brasil e, sobretudo, em São Paulo a
substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre desenhou a cidade pós-escravista,
definiu-lhe as peculiaridades, contradições e as diferentes funções. Nesse sentido, a
própria concepção de urbano se alterou. Em meados do século XIX, uma indicação do que
era a cidade na interpretação de seus moradores estava na Árvore das Lágrimas, no
Caminho do Mar, árvore que ainda existe, a cerca de 6 km do centro, isto é, da catedral.
Era um marco vivo, uma figueira que, por essa época, já devia ter uns 150 anos. Ali a gente
de proa, como se dizia, ia receber seus hóspedes e até ali os acompanhava na despedida.
Era como se a cidade fosse uma casa e aquela fosse sua porta. Com o advento da ferrovia,
alguns quilômetros distante do antigo caminho, o costume persistiu, agora mais complexo
dada a nova concepção de tempo introduzida pela circulação dos trens e a maior rapidez
nos deslocamentos. O rito se desdobrou. Os mais próximos de quem se despedia tinham a
obrigação de acompanhá-lo até Santos, até o porto e até mesmo dentro do navio. Com o
tempo, houve quem fingisse proximidade acompanhando o viajante até o porto. O tosco
noticiário jornalístico difundia os detalhes do que era um teatro da civilidade. Os não tão
próximos iam até a estação de Paranapiacaba, no limiar da Serra do Mar, onde podia
haver até almoços ou jantares de despedida. Pessoas próximas, mas ocasionalmente sem
tempo, ainda assim iam até a estação de Ribeirão Pires, no meio do caminho. Os não tão
próximos, mas sujeitos, pelo costume a gestos de deferência, compareciam à Estação da
Luz para receber quem chegava ou para despedir-se de quem partia.
52 Mesmo os mais simples e pobres tinham esse gesto de respeito em relação aos parentes,
gesto que produzia uma verdadeira etnografia das proximidades e distâncias nas relações
sociais. São Paulo já era uma grande cidade, em 1920, quando essas cerimônias de origem
patriarcal continuavam sendo praticadas, sendo grave desapreço não respeitá-las. A
estrutura social se desnudava. Era muito menos abstrata do que é hoje. De vários modos
estava fortemente presente na vida cotidiana de todos, mesmo que houvesse notórias
diferenças de classe social nessas práticas. Os ritos davam espacialidade às relações sociais
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e por esse meio lhe davam visibilidade, instituíam o que era propriamente público em
oposição ao privado e, sobretudo, ao íntimo. Diziam o que a cidade era, não sendo:
patriarcal e antiquada, valendo-se dos meios modernos de deslocamento e de
relacionamento entre os habitantes. Ser membro da cidade era, ao mesmo tempo, ser
capaz de preservar mentalidade e modo de vida cujo sentido estava mais na fazenda ou na
aldeia de origem.
53 Só nos anos 1950, a cidade estruturada em funções, não só econômicas, mas também
políticas e culturais, começa a sofrer lenta transformação que vem até os dias atuais. Até
então, o habitante de São Paulo era um usuário de seus espaços, para lembrar uma
definição muito apropriada de Henri Lefebvre ([1974] 2000). Desde então, começa a se
disseminar um povoador que é mais consumidor da cidade do que seu usuário. No limite,
ele se torna um predador, expressão de uma ruptura da sociabilidade urbana que anula a
própria civilidade, que nega o que a cidade deveria ser e poderia ser. A cidade deixa de ser
para numeroso grupo humano o lugar do cidadão.
BIBLIOGRAFIA
CANCLINI, Néstor García. 1990. Culturas Híbridas (Estrategias para entrar y salir de la
modernidad). Grijalbo: México.
LEFEBVRE, Henri. [1974] 2000. La production de l’espace. Paris: Anthropos.
LEFEBVRE, Henri. 1980. La présence et l’absence. Paris: Casterman.
MARTINS, José de Souza (org.). 1996. (Des)figurações: A vida cotidiana no imaginário onírico da
metrópole. São Paulo: Hucitec.
MUMFORD, Lewis. [1961] 2004. A Cidade na História. Trad. Neil R. da Silva. 4ª ed. São Paulo:
Martins Fontes.
RESUMOS
Em São Paulo hoje em dia, o ontem invasivo não permite que a cidade durma em paz sua
modernidade de colagem, sua inautenticidade. A modernidade, mais que uma trama de
temporalidades desencontradas, é ali um pesadelo.
Nowadays in São Paulo, the invasive yesterday forbids the city to sleep peacefully. Its collage
modernity, its inauthenticity. The modernity, more than a meshwork of unmatching
temporalities, is a nightmare.
ÍNDICE
Palavras-chave: São Paulo (história), modernidade, temporalidade, metrópole, aparência
Keywords: São Paulo (history), modernity, temporality, metropolis, appearance
São Paulo: metrópole da modernidade vacilante
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AUTOR
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Departamento de Sociologia – USP
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