OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 1 DE MARÇO DE 2015 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Livros e Areias á contei a você o dia em que recebi a visita do escritor ar- gentino Jorge Luis Borges na minha casa, em Belém? Quer saber como foi? Meu amigo, O, o acompanhava. A casa ficava na Vila Farah, na antiga São Jerônimo, e por essa época em tinha meus dezesseis anos de idade. Bateram na porta, de manhã cedo – manhã que era noite – fui abrir, e O me disse: - Olha quem queria te conhecer. Vi um homem idoso, com um olhar vago para as coisas, que parecia, sem me ver, me ver. Pedi que entrassem e quando sentei ao lado do homem, no sofá da sala – meu amigo O sentou em uma cadeira diante de nós – o reconheci: era Borges. Como aquele espantoso viajante dos labirintos literários ha- via me achado? Conversamos longa- mente, durante toda a manhã. O que dissemos foi totalmente apagado na minha Memória. Depois levei Borges até a porta, nos despedidos, ele mer- gulhou no Sol tropical de Belém. E eu acordei – numa outra manhã. Nunca ousei perguntar ao meu amigo O se havia sonhado o mesmo sonho que eu naquela noite. Borges: Através do Labirinto Neste terceiro Diálogo com Bor- ges, falamos mais sobre os labirintos da vida: o amor, a solidão, a velhice, a Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo. BORGES/ O Livro de Areia morte, fracasso & sucesso e até da po- lêmica medieval sobre se Adão, que não teve mãe, teve ou não umbigo. Que grandes sensações teve em sua vida? - São as grandes sensações da vi- da de todo homem. O amor, a ami- zade, a leitura, o gosto por escrever, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos 30 anos, não li uma única linha que se escre- veu sobre mim. Guarda lembranças de seus amores? - O amor ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreendemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não. Não se sente solitário? Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários. Não vão du- rar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto mi- nha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noi- te. Agora não, porque quero conver- sar um pouco com você. Quando vo- cês se forem, eu morro. Eu gostaria. anos. Na Idade Média, houve uma discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não po- de ter umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Gostando tanto de livros, mes- mo agora que perdeu a visão, deve ter lido muitos. Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a li- teratura contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad. Gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro, escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Con- rad, que para mim é o romancista. Fracassei com grandes romances. O que acha da Imprensa? Nunca li um jornal na vida. Para que lê-los? É tudo bobagem. Você se opôs ao peronismo na Argentina – já foi ameaçado de morte? Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por telefone, o que não tem nenhu- ma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa por- que seria um imbecil. Bem, os as- sassinos são imbecis. J Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns me- ses antes de fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a noite. Você buscou o sucesso como escritor? - O que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero mor- rer eternamente — corpo e alma”. Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que an- tes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a aflição. Segun- do a tradição, os 33 são a idade per- feita, porque é quando morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33