SIGMUND FREUD: UM ALEMO E SEUS DISSABORESPeter Gay(titulo)
Franqueza e segredoQuem sabe apenas uma coisa a respeito de Freud,
sabe de algo que no verdadeiro. Sabe que Sigmund Freud criou toda a
sua teoria, e desenvolveu sua terapia, a partir do trabalho com
mulheres neurticas judias da classe mdia vienense, e que por isso
tanto a teoria como a terapia so vlidas apenas para elas - se que
so. Na realidade, o contato de Freud com os vrios tipos de stress
mental foi bem mais diferenciado: embora todos os seus pacientes
fossem, por definio, neurticos, muitos eram homens, aristocratas,
cristos, estrangeiros. O analisando mais famoso de Freud - ele
mesmo constitui um catlogo de excees. No era, naturalmente, uma
mulher; como judeu era muito indiferente, e vienense s por adoo.
Depois da Primeira Guerra Mundial, Freud conduziu mais anlises em
ingls do que em alemo, e, apesar de faz-lo mais por necessidade do
que por opo - em meio s dificuldades econmicas do ps-guerra,
dificuldades -da ustria e dele, precisava desesperadamente de moeda
forte -, isso revela algo sobre a possvel aplicao da psicanlise
paraPag. 2alm daquele crculo especializado e altamente seleto -
burgus, judaico, feminino e vienense - que lhe impingiu a lenda.' O
rico e variado repertrio de casos de Freud importante; importa no s
porque sustenta sua alegao de que propunha uma psicologia geral,
como tambm porque ajuda a situar Freud nesse extenso territrio,
familiar mas s vezes surpreendente, a que chamamos de cultura alem.
A implicao mais enganosa desse mito mal informado sobre os casos de
Freud a convico de que a psicanlise algo caracteristicamente,
inescapavelmente vienense - como se Freud jamais pudesse ter feito
suas descobertas em Munique, muito menos em Berlim. Viena, segundo
nos dizem, era uma cidade vibrante de intelecto e de sexo, e Freud,
aproveitando essa oportunidade nica, usou o primeiro para explorar
o segundo. "'A Viena do fim do sculo XIX", escreveu A.J.P. Taylor,
"era uma cidade palpitante e criativa. Com total independncia em
relao aos novos movimentos na arte e na msica, Freud elaborou uma
nova abordagem da psicologia, que iria abalar os alicerces da moral
estabelecida." Taylor passa ento alistar, como prova da
criatividade de Viena, a filosofia de Brentano, o pensamento
econmico de Boehm-Bawerk e os estudos pioneiros dos socilogos
austracos. "As mentes eram mais geis em Viena do que na Alemanha,
as ideias mais novas, e os espritos menos restritos." A frivolidade
sexual desempenhava um papel importante na atmosfera: os casos de
amor, depressa consumados e depressa abandonados, eram, como diz
Taylor, "uma especialidade vienense. Neles tinha que entrar o
sentimento, juntamente com a cama. OsNotas:1. Hanns Sachs, Freud:
MJzslerand Fn"end(1945), passim; Ernest Jones, Tbe Lif andWork
ofSigmund Freud, 3vols., (1953-57), lU, capo1,passtm. Embota svezes
lhe falte graa de estilo e distncia em relao ao mestre, o Freud
de.jones continua indispensvel pelo extenso material, que no se
encontra em outro lugar, e por esplndidas informaes "de dentro".
[Edio brasileira: A Vida e a Obra de Sigmund Freud, 3vols., Imago,
1989, traduo deJlio Castaon Guimares; h uma verso mais curta da
mesma biografia, reduzida - abn'dged - por Lionel Trilling e Steven
Marcus: Vida e Obra de Sigmund Freud, Zahar Editores, 3~ed., 1979,
traduo de Marco Aurlio de Moura Mattos. O trulo original deste
ensaio, "Sigmund Freud: A German and his Discontents'", ~uma pardia
de Civilization and its Discontents , ttulo ingls de O Mal-estar na
Civilizao, de Freud. N.T.)Pag. 3Casos de amor eram to ligeiros
quanto a maior parte das emoes vienenses. O homem sempre sabia que
o caso iria terminar, e em geral ficava aliviado quando isso
acontecia". O que fazia esses casos to fceis de comear e de romper
que em geral as moas eram de classe social inferior dos amantes,
"garonetes, balconistas, costureiras, amadoras facilmente
disponveis" que, no entender dos jovens da sociedade, ficavam
contentes por serem seduzidas e gratas por uma companhia to
distinta. Porm, conclui Taylor, "por fim os homens acabavam casando
e virando patriarcas, tiranizando a esposa e os filhos. Freud", diz
Taylor numa tirada final, "sups muito prontamente que todos os
homens eram como os vienenses'"." No parece um fundamento muito
slido para uma cincia geral da mente.Esses trechos so
representativos de uma vasta literatura. Pode-se objetar que Taylor
foi um historiador poltico, e demonstrou uma ignorncia quase
hilariante da psicanlise': porm outros autores, mais bem
informados, tambm insistiram no carter essencialmente vienense da
mente de Freud. Assim, em sua enorme histria da psicologia dinmica,
Henri Ellenberger afirma sumariamente, embora sem muitas provas,
que "Freud era vienense at a raiz dos cabelos"; chama-Notas:2
Prefcio a My Youlh in Vienna, de' Arthur Schnitzler, trad.
Catherine Hutter (1970), xii, xiii. 3. Taylor fez uma resenha da
controversa "psicobiografia" de Woodrow Wilson por William Bullit,
na qual Freud colaborou: Thomas Woodrow Wilson: A Psychological
Study (1967). Segundo ele, "Freud tinha algumas ideias brilhantes,
que chamava de 'leis'. Aplicavam-se a qualquer ser humano, vivo ou
morto, e no ajudavam muito a explicar por que um indivduo difere de
outro. O ponto de partida era o complexo de dipo, Segundo este,
pela prpria natureza das coisas todos os rapazes amam a me e odeiam
o pai. Vale notar que o prprio dipo estava livre deste complexo.
Homem algum se esforou tanto para no matar o pai, e detestava tanto
a me que arrancou os olhos quando descobriu que estava casado com
ela. Essa analogia defeituosa tpica da maneira descuidada com que
Freud operava. Entretanto, aqui ficamos ns com o complexo de dipo.
Infelizmente, muitos homens gostam de seus pais, e at mesmo os
amam. Isso no surpreende se o pai for simptico, como so muitos
pais. Entretanto, segundo Freud isso tem resultados
estarrecedores... " Thomas Woodrow Wilson, conclui Taylor, " bem
divertido quando se I em pequenas doses" , porm "tedioso depois de
algum tempo" , e deixa o historiador com apenas uma pergunta: "Como
possvel que algum tenha levado Freud a srio?" "Silliness in
Excelsis", The New Statesman and Nation, 12 de maio de 1967,
pp.653-54
Pag. 410 de "no-vienense revela uma confuso entre o esteretipo
de uma opereta vienense e a realidade histrica"." Carl Schorske, no
incio de seu muito citado ensaio' 'Poltica e Parricdio na
Interpretao dos Sonhos, de Freud", relata a espirituosa resposta de
Freud notcia de que acabava de ser nomeado Ausserordentlicher
Professor (Professor Extraordinrio) da Universidade de Viena. Numa
carta a seu amigo WilheIm Fliess, de Berlim, Freud qualifica sua
promoo como um "triunfo poltico" , e tece fantasias sobre o imenso
entusiasmo pblico, o fluxo incessante de buqus e congratulaes, como
se Sua Majestade o Imperador acabasse de reconhecer o papel da
sexualidade, o Conselho de Ministros tivesse confirmado a
interpretao dos sonhos, e o Parlamento aprovado por maioria de dois
teros a necessidade do tratamento psicanaltico para a histeria. "
uma fantasia alegre" , comenta Schorske, "bem vienense: as
autoridades polticas curvam-se a Eros e aos sonhos.") Numa palavra,
o nexo entre psicanlise e Viena parece estar acima de qualquer
discusso. Entretanto, h um tpico onde' se dividem os historiadores
que ligam Freud a Viena, e esse conflito de opinies constitui, como
costuma acontecer, um convite ao ceticismo e um caminho para a
liberdade de interpretao. Alguns sugerem que a psicanlise tinha de
surgir em Viena, e s ali, porque a hipo-Notas:4. Henri F.
Ellenberger, The Discovery of the Uncomnscious: The History and
Evolution of Dynamic Psychialry (1970), 465, 463. Presunoso e
dogmtico, este livro distribui vereditos de aprovao e desaprovao de
modo semelhante a um antiquado mestre-escola, embora contenha,
inevitavelmente, muitas informaes histricas. 5. Carl E. Schotske,
"Policies and Patricide in Freud's lnterpretation of Dreams" ,
American Historical Review, LXXVIII(1973),32847, p. 328. Embora eu
no aceite a sua concluso, aprendi muito com esse ensaio sutil,
assim como com outros dois de Schorske, "Politics and the Psyche in
fin-de-siecle Vienna: Schnitzler and Hofmannsthal", American
Historical Review, LXVI (1961), 930-46; e "Policies in a New Key:
An Austrian Triptych" , journal of Modem History, XXXN
(1967),343"86,Estes ensaios de Carl E. Schorske foram reunidos num
livro, que teve edio brasileira: Viena "Pin-de-Sicle ", Companhia
das Letras, S. Paulo, 1988). Para uma nova expresso da tese de que
Freud era essencialmente vienense, veja-se de Jerome Bruner,
"Psychology and the Image of Man", uma das Herbert Spencer
Lectures, em Oxford: "Os escritos de Freud podem ter sido projees,
condicionadas pela cultura, da Viena fin-de-siecle. Mas para ele
serviram como os sistemas cognitivos sem termos dos quais se podia
compreender a significao, simblica dos eventos". The Times Literary
Supplement, 17 de dezembro de 1976, p. 1591).Pag.5crisia sexual
vigente praticamente clamava por algum que investigasse essa
preocupao dominante, embora oculta, que marcava toda a vida
interior da cidade. Outros, ao contrrio, afirmam que a psicanlise
nasceu em Viena porque ali a franqueza sexual fornecia amplo
material a um psiclogo indagador, material mais abundante e mais
exposto ali do que em outras cidades." Essas duas afirmaes no podem
ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas todos concordam que Viena na
virada do sculo se vangloriava de uma brigada de combatentes da
liberdade - um grupo heterogneo, porm com estreitas vinculaes, de
libertadores que devem ter inspirado um ao outro de modo relevante:
Arthur Schnitzler , Karl Kraus, Ludwig Wittgenstein - e Sigmund
Freud. certo que Freud tinha muita conscincia de Viena e que,
embora em grau muito menor, Viena tinha conscincia de Freud. Foi
ali que ele travou muitas de suas escaramuas cientficas; seus
primeiros detratores - mas no seus primeiros admiradores - eram
vienenses. Freud admirava Schnitzler muito citado' seu tributo a
Schnitzler como "colega" nas pesquisas sobre o "elemento ertico. to
subestimado e difamado" -, foi ridicularizado por Kraus, e deu a
Wittgenstein motivo para torturadas reflexes." Mas seria
precipitado, eNotas:6. O locus classicus para uma descrio da
sexualidade e hipocrisia vienense o livro de Stefan Zweig, Die Welt
von Gestem: Erinnerungen eines Europers [O Mundo de Ontem:
Recordaes de um Europeu] (1944), que animado e no muito analtico.
Outro elo suposto igualmente tnue: os dramas de Hugo von
Hofmannsthal foram por vezes situados na tradio freudiana. verdade
que Hofmannsthal tinha em sua biblioteca as primeiras edies da
Interpretao dos Sonhos, de Freud, e de Estudos sobre a Histeria, de
Freud e Breuer. Porm, comenta Michad Hamburger, que registra esse
detalhe biogrfico, como poeta Hofmannsthal tinha acesso s regies
dos impulsos inconscientes por outras vias alm do estudo de Freud;
este foi, no mximo, um de seus muitos guias. O prprio Freud teria
dito a mesma coisa. (Hamburger, Hugo von Hofmannsthal: Zwei Studien
[trad, para o alemo por Klaus Reichert, 1964),87.) 7. Schorske,
"Policies and the Psyche", 936. 8. Para detalhes ver, de William M.
Johnston, Tbe Austna Mind: An Intellectual and Socid History
1848-1938 (1972), em especial os captulos 15-17; e de-Allan Janik e
Stephen Toulmin, Wittgenstein 's Vienna (1973), pp. 63, 64, 75, 77.
Como severem meu texto, rejeito a construo de "Viena" desses
autores. Mais sbrio o pioneiro esforo de desmascaramento, Vienna,de
Ilsa Barca (1966). Um estudo geral muito til sobre um tema crucial,
o conflito e a cooperao das naes nos domnios habsburgos, o de
Robert A. Kann, The Multinational Empire (1950). O grau dePag.
6tambm errado, creio, concluir que a audcia dos vienenses tenha
contagiado Freud, ou que as observaes alheias tenham encurtado ou
facilitado em qualquer aspecto sua laboriosa descida aos
fundamentos da conduta humana. O que quero demonstrar que Freud
vivia muito menos na Viena austraca do que em sua prpria mente;
vivia com a tradio positivista internacional, com os tentadores
triunfos da arqueologia clssica, com o admirvel e comovente modelo
de cientista que foi Jean-Martin Charcot, grande neurologista
francs, com sua extensa e gratificante correspondncia, e com as
surpresas infinitamente instrutivas da introspeco sistemtica. Como
natural, essa introspeco se alimentava - muitas vezes de maneira
casual e bem inconsciente - dos materiais que Freud coletava em
Viena, de visitas a seu fornecedor de charutos ou de seu costumeiro
jogo de cartas, da lenta ascenso pelos degraus acadmicos e de sua
experincia com o anti-sernitisrno austraco. Afinal, como muitos de
seus primeiros pacientes, Freud se criou em Viena e ali se
estabeleceu em carter permanente; a poltica vienense, tantas vezes
bizarra, invadia sua conscincia diariamente, ao ler os jornais.
Mesmo assim creio que no demais afirmar que essa "Viena" , essa
atmosfera peculiar, impalpvel, eltrica, que a tudo impregnava, onde
todo mundo conhecia todo mundo que tinha importncia, e todo mundo
que era algum funcionava ao mesmo tempo como professor e aluno, num
intenso e contnuo seminrio sobre a cultura modernista - essa Viena
uma inveno dos historiadores da cultura em busca de explicaes
rpidas. Havia, de fato, opulentos sales em Viena, ambientes frteis
para novas ideias, novas composies. Os poetas declamavam uns para
os outros, os compositores comNotas:isolamento de Freud no mundo
acadmico de Viena permanece um assunto controvertido, embora K. R.
Eissler demonstre de maneira bem convincente. em seu
belicoso5igmllnd Frelld IInd die Wiener Universitt (1966) [5igmllnd
Frelld e 11 Universidade de Viena). que a carreira de Freud foi mas
lenta do que a de outros acadmicos. Isso no significa. porm. que de
no tivesse defensores influentes entre os mdicos que rejeitavam
suas ideias psicanalticas; o fato que tinha. h indispensvel a obra
de Erna Lesky, Die Wiener medizinische Schule im 19.Jabrbundert
(1965) [A Escola mdica de Viena no sculo XIX].Pag.7pareciam aos
concertos de seus rivais, os filsofos formavam crculos de trabalho.
E alguns mdicos com quem o jovem Freud trabalhou frequentavam essas
escolas de cultura; Freud, porm, ia ao teatro cada vez menos, e
nunca se tornou habitu dos sales vienenses. Sua Viena era a Viena
mdica, e essa raramente frequentava as hospitaleiras manses dos
mecenas da cidade." Alm do que, a Viena mdica era austraca s em
parte: representava, no final do sculo XIX, um microcosmo do
talento cientfico alemo: o fisiologista Ernst Brcke e o clnico
Hermann Nothnagel, dois eminentes mdicos que tiveram influncia
decisiva sobre Freud, eram alemes que assumiram seus postos em
Viena depois de se formar e trabalhar no "norte". Assim, Freud
tinha relativamente pouco a ver com aquela "priso"10 que ele por
vezes amava e com frequncia odiava, e seu alcance ia alm dela. Sua
mente, como veremos, era to vasta e to livre quanto era restrito
seu habitat fsico. Berggasse 19, onde Freud morou por quase meio
sculo, um despretensioso prdio de apartamentos numa respeitvel rua
residencial na zona norte de Viena. No vero de 1891, quando alugou
ali um pequeno apartamento, Freud era um jovem neurologista
promissor, com ideias pouco ortodoxas e ~m futuro a conquistar.
Quando deixou a casa, e tambm a ustria ocupada pelos nazistas, em
junho de 1938, "para morrer em liberdade" ,li era um senhor
conhecido no mundoNotas:9. George Rosen foi praticamente o nico a
notar esse fato; ver seu perceptivo ensaio "Freud and Medicine in
Vienna", in Jonathan Miller, ed., Freud: The Man, His World, His
lnfluence (1972), pp. 21-39, esp. 23. Muito informativos quanto a
esse mundo so o estudo da filha de Meynert, Dora
Stocken-Meynert.--theodor-Meynert und seine Zeit: Zur
Geistesgeschichte Osterreichs in der zweiten Halfte des
19.Jabrhunderts (1930) [Theodor Meynert e seu Tempo: a Vida
Intelectual na ustria na Segunda Metade do Sculo XIX]; Ernst
Theodor Brcke, Ernst Brcke (1928); e Siegfried Bernfeld , "Freud's
Scientific Beginnings", Amencan Imago , VI (1949), 163-88. 10.
Carta de Freud a MaxEitingon de Londres. 8de junho de 1938; citado
em lones, Freud, III, 230. 11. Carta de Freud a seu filho Ernst,
12de maio de 1938. A expresso est em ingls. SigJund Freud, Briefe
18731939, selecionadas e editadas por Ernst L. Freud (1960),435.
[Existe edio brasileira desta seleo de cartas de Freud:
Correspondncia de amor t! outras cartas, Nova Fronteira, Rio,
1982].Pag. 8inteiro, fundador de uma cincia to difundida quanto
controversa. Nessa casa Freud encenou muitos dramas silenciosos; as
lutas silenciosas e triunfos particulares que marcam a vida de
todos os inovadores intelectuais marcaram este inovador mais do que
outros. Ali, na Berggasse 19, Freud escreveu a maioria de seus
livros e analisou a maioria de seus pacientes; ali formou sua
biblioteca, coletou seus objetos de arte, teve encontros com seus
associados, criou os filhos e manteve uma volumosa correspondncia,
onde ensaiava suas marcantes ideias e impedia que os vrios fios do
movimento psicanaltico se emaranhassem ou se desintegrassem por
completo. Hoje seu apartamento um museu; uma placa informa o
passante que ali "viveu e trabalhou" Sigmund Freud. Essa homenagem
parece bastante modesta para um dos descobridores mais decisivos da
histria, para o Colombo da mente. A placa tampouco representa uma
efuso do orgulho local: foi colocada ali em 1953pela Federao
Mundial de Sade Mental. Na verdade, a maior parte do reconhecimento
que Freud recebeu em Viena foi obra de estrangeiros: seu busto,
hoje na universidade, foi ofertado por Ernest Jones. No h em Viena,
em meio a tantas ruas com o nome de seus cidados ilustres, ou ao
menos bem conhecidos, nenhuma Rua Freud.12 Os guias de turismo e os
folhetos de propaganda insistem, como de praxe, em salvar do
esquecimento os vienenses famosos de outrora, porm mal mencionam
seu nome. A indiferena pblica, a hostilidade latente, so
desanimadoras. Freud, o primeiro psiclogo a mapear as tramas da
ambivalncia, tinha nessa cidade material abundante para o exerccio
de sentimentos ambivalentes. Viena, ao que parece, reprimiu Freud
em larga medida.Mas Freud irreprimvel. Disseminou uma profuso de
pistas, ricas e gratificantes, quanto sua maneira de pensar e
trabalhar, seus hbitos e averses. Seus aposentos eram umNotas:12.
justo notar que por algum tempo, na dcada de 1930, a municipalidade
de Viena props dar o nome de Freud Berggasse, sugesto a que o
prprio Freud se ops e que os acontecimentos polticos
impossibilitaram. Hoje h um conjunto de apartamentos com o nome de
Freud no Nono Distrito de Viena, onde de viveu tanto tempo. Jones,
Freud, lI, 14, p. 380.Pag. 9museu no sentido figurado - um
expressivo depsito de ideias, gostos e convices- muito antes de ser
promovido a lugar oficial de peregrinao para psicanalistas e
analisados estrangeiros. Seus escritos autobiogrficos so sucintos,
porm informativos. Suas cartas so abundantes, cheias de energia e
totalmente caractersticas. Melhor ainda, seus trabalhos cientficos
nos do esboos de mapas que nos levam sua natureza mais ntima.
Considerando o tipo de cincia que criou, no poderiam ser menos do
que isso: a psicanalista autobiografia controlada e profunda, e,
sendo o primeiro psicanalista obrigado, assim, a utilizar a si
mesmo como material -, Freud achou necessrio publicar algumas de
suas fantasias mais ntimas. Sua vida um de seus melhores
documentos. Entretanto, no sem mscaras que Freud se apresenta ao
mundo. Algumas so estratgias deliberadas de autoproteo: outras so
recursos inconscientes. verdade, e nos ajuda muito, que Freud no
sofria do vcio da modstia. Falava e escrevia sobre suas descobertas
e realizaes com uma cativante desinibio; tendo sido uma criana
muito amada, sempre manteve uma firme noo de seus talentos. Mas,
apesar da confiana em si, no chegou a perceber toda a dimenso de
suas qualidades e de sua estatura histrica. Num famoso resumo
autobiogrfico, em fevereiro de 1900,ele escreveu a Wilhelm Fliess:
"Na verdade no sou em absoluto um homem de cincia, nem um
observador, um experimentador ou pensador. No sou seno um
conquistador* por temperamento, um aventureiro, se quiser traduzir
o termo, com a curiosidade, a ousadia e a tenacidade desse tipo.13
Essa passagem cndida e sincera. Fliess era um proeminente
otorrinolaringologista com uma prspera clnica em Berlim, homem de
presena carismtica e de ambies cientficas que s ficavam a dever s
do prprio Freud; na dcada de 1890, a solitria dcada das descobertas
de Freud, foi seu melhor e provavelmente nicoNotas:13. Cana de 1 de
fevereiro de 1900. Texto alemo reproduzido em Max Schur, Freud:
Living and Dying (1972). A biografia ntima de Schur contm muitos
materiais inditos valiosos. [Edio brasileira: Freud - Vida e
Agonia, 3 vols. Imago, 1981].* O original usa o termo espanhol
conquistadorPag. 10amigo. Mas mesmo aceitando essas negativas de
Freud como uma tentativa sria de auto avaliao, devemos rejeitar
suas pretenses de ser um autorretrato preciso. Indicam a solidez de
seu amor-prprio, a fora de seu ego; ilustram a presteza com que
falava de si com gestos largo se abrangentes. Porm mostram tambm
uma certa miopia, um reducionismo que raro no pensamento de Freud.
Sob muitos aspectos Freud foi sui generis, mas nesse ponto foi como
os outros seres humanos: no foi o melhor juiz de si mesmo. Seu
julgamento errneo, aliado a um feroz desejo de resguardar a
privacidade, gerou uma contradio que todo estudioso de Freud tem de
confrontar. A cincia de Freud , acima de tudo, a cincia da
franqueza. A tcnica da psicanlise depende, como todos sabem, da
liberdade desinibida com que o analisando produz suas associaes,
sem medo e sem reserva; suas ideias mais ilgicas e seus desejos
mais proibidos devem aparecer e ser registrados, na aparente
desordem em que emergem conscincia - isto , tanto quanto lhe
permitirem suas defesas sempre alertas. No deve organizar nada,
esconder nada: o psicanalista e o censor so inimigos jurados. Essa
franqueza, naturalmente, unilateral; Freud disse mais de uma vez
que para o bem do paciente o psicanalista deve resguardar-se,
permanecer um estranho, uma folha em branco onde o analisando
inscreve suas transferncias. Mas Freud ficou na histria como
analista e tambm como analisando, e para compreend-lo devemos v-lo
em ambas as condies tal como ele prprio fez em sua autoanlise.
Entretanto, nesse ponto ele frustra o historiador, ao menos em
parte. Suas confisses; na Interpretao dos Sonhos e em outras obras,
embora ntimas e copiosas, requerem elucidaes, ampliaes, correes -
em suma, interpretao. Com frequncia parecem feitas de m vontade,
quase que extradas fora. Max Schur, seu mdico e amigo, observa a
relutncia com que Freud via a publicao de suas cartas a Fliess, as
mais reveladoras e ntimas que escreveu. Suas confisses so
fragmentrias, e assim permanecero para sempre: em abril de
1885contou noiva, Martha Bernays: "Quase conclu uma tarefa que um
certo nmero de pessoas, ainda no nascidas mas destinadas ao
infortnio, lamentar seriamente. Como voc no podePag. 11adivinhar de
quem estou falando, vou lhe dizer agora mesmo: so os meus bigrafos.
Destru todas as minhas anotaes dos ltimos catorze anos, assim como
cartas, extratos cientficos e manuscritos de meus trabalhos. Entre
as cartas, s as da famlia foram poupadas" .14 claro que quando
escreveu essas linhas Freud tinha uma noo de sua possvel
importncia; usou um tom leve, mas ele prprio nos ensinou a levar
qualquer expresso a srio. Assim, ficamos autorizados a concluir que
j em 1885, quando tinha vinte e oito anos e era completamente
desconhecido, fantasiava sobre seus futuros bigrafos. Quinze anos
mais tarde, aps ter feito suas descobertas, escreveu a Fliess
conjeturando se algum dia no haveria uma "placa de mrmore" na casa
de Bellevue onde teve o sonho de "Irma": "Aqui, no dia 24 de-julho
de 1895, o Segredo dos Sonhos foi revelado ao Dr. Sigm. Freud.' 15
sem dvida um trao atraente em Freud o fato de que no se permitia
posar nem como pobre criatura sem valor, nem, inversamente, como um
monumento antes da hora. Sua irnica informalidade, mesmo em
momentos de grande exaltao , seu invarivel estoicismo em dias de
desapontamento, conferem ao material que ele decidiu preservar uma
autoridade que no teria, se estivesse sempre lanando piscadelas
astutas e olhares compenetrados para os bigrafos. Contudo, ao
disfarar algumas provas e destruir outras, Freud no agiu como algum
que esperava seriamente que aquela placa de mrmore fosse algum dia
colocada. Assim, h muita coisa que Freud no permitiu que a
posteridade soubesse a seu respeito. Face a face com essa discrio
to seletiva - e do ponto de vista do pesquisador, to irrefletida
Notas:14. Carta de 28 de abril de 1885. Freud, Briefe, 136. Ver
tambm Jones, Freud, I, p. xii. 15. Sigmund Freud, The Ongins of
Psychoanalysis. Letters to Wilhelm Phess, Drafts and Notes:
1887-1902, ed. Marie Bonaparte , Anna Freud, Ernst Kris; trad. Eric
Mosbacher e Jarnes Strachey (1954), 322; Sigmund Freud, AUJ de
Anfongen der PJychoanalYJe. Bnefe an Wilhelm Hiess, Abhandlungen
und Notizen aus den jahren 1887-1902 (1950), 344. (A respeito desta
e de outras citaes duplas, ver nota 20, adiante). (No Brasil foi
lanada a nova edio: A Correspondncia Completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess 1887-1904, editada por Jeffrey Moussaief Massono
trad. Vera Ribeiro, Imago, 1986).Pag. 12- O historiador forado a
explorar as pistas que Freud permitiu que sobrevivessem. Pode
interrogar os escritos de Freud, notando suas deliberadas
estratgias de estilo e seus hbitos literrios inconscientes; pode,
com proveito, justapor o radicalismo das ideias de Freud ao
conservadorismo de sua postura social; pode traar a origem de seu
compromisso com a cincia at suas razes intelectuais e emocionais.
Pretendo seguir essas trs rotas de investigao, mas quero comear
surpreendendo Freud em casa, em seu consultrio, seu gabinete, no
restante de seu apartamento, e descobrir o que esse laboratrio
histrico revela acerca de Freud, esse quebra-cabeas de que faltam
tantas peas. Afinal, ele viveu rodeado de objetos que estimava -
livros, fotografias, esculturas - e esses objetos testemunham, de
maneira relutante mas eloqente, como um sonho, a mente de seu
possuidor." Verificar de que maneira ele vivia o primeiro passo
para resolver a tenso que h em Freud entre a franqueza e o segredo,
tenso que suas ideias explicam amplamente, e que seu carter exigia
de maneira imperiosa.(subttulo) Predileo pelo pr-histricoA primeira
e mais forte impresso que o habitat de Freud causava no visitante
era a profuso de coisas. Os livros ficavam bem arrumados, os
quadros bem pendurados, os tapetes e mantas bem estendidos na
parede, no sof e no cho, as esculturas bem alinhadas, todas viradas
para a frente em compactas fileiras, como soldados num desfile. S
os livros no evocavam comentrio; pareciam inteiramente apropriados
para um professor erudito e escritor prolfico. Mas os quadros se
amontoavam como se imitassem o arranjo de um museu antiquado, e
ainda assim eram demasiados para o espao disponvel: algumas
fotografias emolduradas obstruam e ocultavamNotas:16. Para uma viso
do apartamento de Freud em Viena em 1938, ver Berggasse 19: Sigmund
Preud's Home and Offices, Vienna 1938, The Photographs of Edmund
Engelman (1976), que tem como introduo uma verso mais antiga do
presente ensaio.Pag. 13os livros atrs delas. Os tapetes invadiam o
campo visual um do outro , literalmente se sobrepondo; belos
exemplares orientais de procedncia vria, eles no se complementavam,
mas quase se anulavam mutuamente com seus desenhos conflitantes. As
esculturas, por fim, tinham suas prprias prateleiras e armrios
envidraados, mas invadiam e se intrometiam em superfcies destinadas
a outros fins: nas estantes de livros, em cima dos armrios, nas
mesinhas, e at na muito usada escrivaninha de Freud. O conjunto era
uma aglomerao de objetos. Eram as esculturas que chamavam a ateno
de maneira mais irresistvel. Em 1909, quando o psicanalista Hanns
Sachs, que acabou conhecendo bem Freud, visitou Berggasse 19 pela
primeira vez, observou que embora a coleo de antiguidades estivesse
"ainda num estgio inicial, alguns objetos atraam de imediato o
olhar do visitante".17 Haveriam de tornar-se ainda mais destacados,
mais atraentes vista com o passar dos anos. Resumindo suas
recordaes alguns dias depois da morte de Freud, o psicanalista
alemo Victor von Weizsacker s conseguia lembrar-se, ao descrever o
consultrio de Freud, da "longa galeria de estatuetas antigas, de
bronzes e terracotas sobre a escrivaninha. Assim, quando levantava
a vista, o olhar do professor dava com os stiros e as deusas" .18
Mas o que via ele? Traar a origem dessas antiguidades at seu ponto
de partida significa viajar por entre as remotas razes da cultura
ocidental no mundo mediterrneo: Egito, Chipre, Pompia, Grcia e
Roma. Foi s nos ltimos anos de vida que Freud acrescentou objetos
chineses a essa coleo bem concentrada. Suas peas lembravam o Sul,
esse lugar cheio de calor, de liberdade sem inibies, associado a
marcantes histrias ouvidas na infncia, que h sculos exerce uma
irresistvel atrao sobre os habitantes do Norte - inclusive sobre
Goethe, to amado por Freud, e sobre o prprio Freud. "Uma cesta de
orqudeas,Notas:17. Sachs, Freud, 49. As recordaes de Sachs so
econmicas, esclarecidas e cheias de admirao. O cap. II, Vienna",
traz alguns insights importantes. 18. "Rerniniscences of Freud and
Jung", in Benjamin Nelson, org., Freud and lhe 20lh Century (1957),
60.Pag. 14Disse ele a Fliess quando completou quarenta e cinco
anos, "imita o esplendor e o sol ardente; um fragmento de parede de
Pompia, com centauro e fauno, traduz para mim a saudosa Itlia" .19
Colecionar foi a paixo da vida de Freud: Max Schur recorda que ele
a chamou de "um vcio, que nele s ficava a dever em intensidade ao
da nicotina. "20 Durante seu ltimo ano de vida, j com oitenta e
dois anos e morrendo de um cncer doloroso, ainda se correspondia
com a princesa Marie Bonaparte , que ajudara a salvar Freud e a
maior parte de sua famlia dos nazistas, a cerca de suas queridas
estatuetas. Era um vcio bem informado. Freud gostava de ler a
sobras relevantes sobre o assunto, e acompanhava trabalhos de
escavao. Entretanto, quando disse a Stefan Zweig, em 1931, que
tinha feito muitos sacrifcios por minha coleo de antiguidades
gregas, romanas e egpcias, e na verdade j li mais sobre arqueologia
do que sobre psicologia", 21 a primeira metade da afirmao mais
verossmil que a segunda. No hNotas:19. 8 de maio de 1901, Freud,
Ongins of Psychoanalysis, 330; Aus den Anfangen, 354. 20. Schur,
Freud, 247. No muito depois de 1900, Freud referiu-se publicamente
a suas antiguidades como "uma pequena seleo". The Psychopl1lhology
of Everyday Life, in Slandard Edition of the Complete Psychological
Worh Sigmund Freud, traduzido com edio geral de James Sttachey, em
colaborao com Anna Freud, auxiliados por Alix Strachey e Alan
Tyson, 24 vols. (1953-75), VI, 167 (de agora em diante referida
como SE); Zur Psycbopathologie des Alltaglebens, in Sigmund Freud,
Gesammelte Werke, ed. Anna Freud. E. Bibring. W. Hoffer, E. Kris e
O Isakower, em colaborao com Marie Bonaparte, 18 vols., (1940-68),
IV, 186 (de agora em diante referida, como GW). Embora se deva
dizer, para o bem da justia, que os tradutores de Freud (tanto de
suas obras como dos vrios volumes de canas) realizaram uma tarefa
heroica ao passar para o ingls seu alemo vigoroso e gil, e ao
normalizar sua linguagem durante uma vida inteira de escritos,
muitas vezes deixaram suas formulaes certeiras e felizes. Portanto,
embora tenha consultado regularmente a SE e as verses inglesas das
cartas de Freud, eu mesmo traduzi todas as citaes de Freud. Ao
mesmo tempo, para facilidade de referncia, eu situo tambm a traduo
inglesa, em cada caso. Os tradutores fizeram a Freud dois tipos de
injustia: tomaram-no ao mesmo tempo mais prolixo e mais afetado do
que na verdade era. Para expressar uma palavra alem to comum e
sugestiva como Besetzung ("ocupao") criaram o formidvel neologismo
"cathexis", (Para uma justificativa, ver SE 1II, 63n.) E a crua
expresso de Freud, Dukatenscheisser, ou "caga-ducados", foi
traduzida como "aquele que excreta ducados". (Ver Ongins, 189). Na
realidade, num raro exemplo de inconsistncia, eles usam a expresso'
'shitter of ducats" (cagador de ducados) em CbaracterI1ndAna!
Erotism, SE IX, 174. 21. Carta de 7 de fevereiro de 1931. Freud,
Briefe, 398-99.Pag. 15dvida de que Freud tinha excelentes
conhecimentos de histria antiga e arqueologia, mas os livro sem
suas estantes - os volumes encadernados das revistas que ajudava a
editar, os livros que lia e os livros que escrevia - reafirmam que
o centro de sua ateno era sempre a mente humana, o interesse
predominante do qual todos os outros, inclusive sua coleo, eram
tributrios. O mundo antigo, porm, era um tributrio privilegiado:
algumas das fotos mais destacadas nas paredes, como a de 'Abu
Simbel, sobre o div analtico, servem de comentrios a um interesse
inexaurvel. Tambm certo que fez sacrifcios a esse vcio, em especial
no comeo da carreira, quando era um mdico de parcos recursos
financeiros, combatendo por inovaes na cura das doenas mentais. Em
suas cartas aos parentes e amigos encontram-se relatos das compras
a que no conseguiu resistir, das pechinchas que no pde deixar
passar. "Os antigos deuses ainda existem, escreveu a Fliess no vero
de 1899, "pois acabo de comprar alguns, inclusive um Jano de pedra,
que com seus dois rostos me fita com ar de grande superioridade.
"22 Alm do puro prazer de colecionar, as aquisies significavam
muito para Freud. Como outros eventos mentais, tambm esse vcio era
sobredeterrninado 23. As cartas sugerem que sua "predileo pelo
pr-histrico 25' era animada por diversas causas. "Decorei meu
gabinete com cpias em gesso de esttuas florentinas", escreveu a
Fliess em dezembro de 1896. "Para mim uma fonte de extraordinrio
prazer; estou pensando em ficar rico para repetir essas viagens. Um
congresso em solo italiano! (Npoles, Pompia)". 25 Vemos assim
queNotas:22. Cana de 17 de julho de 1899. Ongins, 286; Anfnge. 305.
23. "Sobredeterrninao" ["overdeterminacion") uma categoria
freudiana de grande utilidade. embora talvez com denominao infeliz.
Freud a formulou pela primeira vez em meados da dcada de 1890. nos
anos de sua colaborao com Breuer, para ressaltar o fato de que as
origens dos eventos mentais devem ser buscadas em regies diversas
da psicologia humana. A nfase na causalidade mltipla de todos os
eventos era. e continua a ser. uma saudvel advertncia contra o
dogmatismo e o reducionismo. 24. Cana de 30 de janeiro de 1899.
Origins, 275; Anfnge. 293. 25. Cana de 6 de dezembro de 1896.
Origins, 181;Anfonge. 192. Quanto ao anseio de Freud por Roma. ver
o sensvel tratamento de Schorske em 'Policies and Patricide ".Pag.
16por um lado a cabea de Jano e as estatuetas de terracota lhe eram
simplesmente gratificantes, agradveis vista e ao tato. Tambm o
tiravam de sua rotina diria e, melhor ainda, o tiravam do presente,
frequentemente desprezvel. Quando era jovem e pobre, Freud se
sentira s e na defensiva; depois que setor no uma espcie de
celebridade e um homem prspero, embora no rico, conservou uma'
irnica distncia em relao sua fama, e um profundo ceticismo quanto s
motivaes humanas em geral. J se observou que, para algum dedicado
cura, Freud tinha uma opinio notavelmente baixa do animal humano.
Muito lhe aconteceu ao longo dos anos, inclusive muitas coisas que
o agradaram. Mas o mundo pouco receptivo de Viena no mudou nunca;
no mudou o dio que a multido instruda sentia por Freud, o
descobridor indiscreto, nem o dio da multido maior, instruda e no
instruda, por Freud, o judeu impenitente. "Algo em mim se revolta
contra essa compulso de continuar ganhando dinheiro, um dinheiro
que nunca suficiente", escreveu, sombrio, a seu discpulo de
confiana Sndor Ferenczi, no incio de 1922, " ... e de continuar com
os mesmos expedientes psicolgicos que h trinta anos me mantm firme
em face de meu desprezo pelas pessoas e por esse mundo detestvel.
Estranhos anseios secretos afloram em mim - talvez da minha herana
ancestral- pelo Oriente, pelo Mediterrneo, por uma vida totalmente
diferente: desejos da infncia, que nunca sero realizados" .26
Contemplar suas antiguidades era evocar, com esprito alegre,
viagens feitas e viagens por fazer, e, nos momentos de desnimo, um
mundo que lhe agradava mais do que o seu prprio. Escrevendo a
Fliess de Berchtesgaden, em agosto de 1899, anunciou que no prximo
dia de chuva planejava caminhar at sua "querida Salzburg", onde h
pouco conseguira "algumas antiguidades egpcias. Essas coisas me
deixam de bom humor e me falam de terras e tempos distantes".27 Mas
Freud era acima de tudo um psicanalista; no permitiriaNotas:26.
Citado em Jones, Freud. III, 8384. 27. Carta de 6 de agosto de
1899. Origins; 291; Anfnge, 310.
Pag. 17ria que nenhuma obsesso o dominasse to completamente e
por tantos anos, se no tivesse alguma relevncia para a cincia que
era toda a sua vida. Colecionar antiguidades o libertava de seu
trabalho e ao mesmo tempo o levava de volta a ele. notvel, e no
passou despercebido, o fato de que Freud gostava de extrair suas
metforas da arqueologia. Numa de suas primeiras obras, Estudos
sobre a Histeria, escrita em parceira com Josef Breuer, ainda
emprega essas metforas de modo algo compenetrado: "Nesta que a
primeira anlise completa que realizei de uma histeria" - a anlise
da srta. Elizabeth von R. - "cheguei a um procedimento que depois
promovi a mtodo e empreguei deliberadamente: retirar, camada por
camada, o material psquico patognico, algo que gostamos de comparar
com a tcnica de escava ruma cidade soterrada".28 Em O mal-estar na
civilizao, um de seus ltimos e mais ricos ensaios, Freud ilustra o
"problema geral da preservao na esfera mental" por meio de uma
analogia: "o crescimento da Cidade Eterna", que na verdade uma srie
de cidades, das quais fragmentos dos mais antigos sobreviveram - ou
melhor, foram recuperados pelas escavaes- lado a lado com runas de
edifcios posteriores. A mente humana tem alguma semelhana com a
evoluo dessa Roma de tantas camadas. Mas a semelhana limitada:
depois de muito se estender na analogia arqueolgica, Freud
prontamente a abandona perante a dificuldade de representar a
sucesso histrica por meio de imagens espaciais.29 Freud est sempre
disposto a jogar com metforas: elas tm sua utilidade. Mas no so
provas; so apenas metforas. As metforas, porm, como Freud teria
sido o primeiro a afirmar, raramente so meras metforas. Podem ser
locues convencionais, propriedade comum de muitos escritores. Tambm
a imagem mental do arquelogo descobrindo verdades enterradas parece
bvia o bastante para ser coerente como trabalho de muitos
psiclogos. Mas essas-analogias, quando usadas com a frequncia e o
prazer com que Freud as ernprega,Pag. 18provavelmente indicam
significados mais profundos. Aqui, como em outras reas, no h lugar
para dogmatismo. Mas h alguma evidncia de que Freud invejava
Schliemann, o arquelogo que descobriu a antiga Tria,
desenterrando-a camada por camada. Invejava-o em parte pela
descoberta em si, em parte por sua boa fortuna ao realizar na vida
adulta uma fantasia de menino: "O homem ficou feliz ao encontrar o
tesouro de Pramo", disse a Fliess, "pois s h felicidade quando se
realiza um desejo de infncia". significativo, e um pouco pattico,
que essa mxima seja seguida por uma renncia: "Isso me lembra que no
vou Itlia este ano"." Felizmente, Freud no precisou se contentar em
invejar Schliemann: ele o igualou. Pelo menos uma vez Freud
comparou um sucesso analtico com a descoberta de Tria: soterrada
sob as fantasias de um paciente, relata a Fliess em 1899, encontrou
"uma cena do seu perodo primeiro (antes de vinte' e dois meses de
idade), que satisfaz todos os requisitos e para a qual confluem
todos os enigmas ainda remanescentes; cena que tudo ao mesmo tempo:
sexual, incua, natural, etc. Quase no ouso ainda acreditar. como se
Schliemann tivesse outra vez desenterrado a Tria que at ento se
acreditava lendria". 31 Que outros o comparem a Coprnico, a Plato,
a Moiss; Freud gostava dessas comparaes, e s vezes brincava com
elas. Mas tambm sentia prazer na identificao menos exaltada, mas
ainda ilustre, com um grande explorador do passado humano. Alm de
permitir-se essas fantasias pessoais, Freud achava a comparao da
psicanlise com a arqueologia adequada num sentido literal: a seu
ver, a escavao cientfica de vestgios pr-histricos descreve os
procedimentos psicanalticos de maneira mais acurada do que qualquer
outra disciplina comparvel. Tal como o arquelogo. o psicanalista
depara com superfcies promissoras, mas enganosas, que sugerem, mas
de modo algum garantem, estranhos achados l embaixo. Como o
arquelogo, deve tomar cuidado para no destruir o stioNotas:30, Cana
de 28 de maio de 1899, Origins, 282; Anfange. 301. 31. Cana de 21
de dezembro de 1899. Origins. 305; A Anfange 32627,Pag. 19com suas
sondagens; deve ser paciente, hbil, delicado. E tambm como o
arquelogo, um cientista prtico, guiado por construes tericas
abertas reviso. claro que todas as disciplinas cientficas se
empenham na busca de fatos ou leis ainda no conhecidas, mas as
verdades da psicanlise e da arqueologia se escondem de um modo
particular: para fazer com que o visvel seja um bom guia para o
invisvel, necessrio o ato da interpretao. Para ambas as cincias a
evidncia tentadora e fragmentria; para ambas produtivo trabalhar do
presente para o passado, e de volta, do passado para o presente:
seus materiais aparecem em camadas distintas, mas historicamente e
instrutivamente relacionadas entre si. E como trabalham com
fragmentos, as duas cincias tm que dar os saltos disciplinados de
uma imaginao treinada: tal como o arquelogo reconstri esttuas
completas e templos inteiros a partir de pedaos de bustos e colunas
destrudas, tambm o psicanalista reconstri as origens de uma neurose
a partir de lembranas distorcidas e lapsos involuntrios. No prefcio
do caso' 'Dora' , Freud explcita essa analogia: "Ante o carter
incompleto de meus resultados analticos, no me restou outra opo
seno seguir o exemplo dos exploradores que tm a boa fortuna de
trazer luz do dia, depois de soterrados por longo tempo, os
vestgios inestimveis, ainda que mutilados, da Antiguidade.
Restaurei o que estava incompleto, seguindo os melhores modelos que
conhecia de outras anlises; porm, como um arquelogo consciencioso,
no deixei de mencionar, em cada caso, onde comea minha reconstruo e
terminam as partes autnticas" .32 Mas at mesmo as comparaes mais
aptas tm seus limites de aplicao. O material do arquelogo'
'resiste" pesquisa apenas no sentido metafrico; j o psicanalista se
defronta com a literal resistncia inconsciente de seu analisando.
Chamei a psicanlise de cincia da franqueza; tambm a cincia da
suspeita - suspeita sistematizada. Pois assim como a civilizao uma
teia de enganos, a vida mental do indivduo Notas:32. Fragment of an
Analysis of a Case of Hysteria [caso "Doca"], SE, VII, 12;
Bruchltck einer Hysterie-Analyse, GW V, 169-70.Pag. 20um sistema
altamente sofisticado de falsidades: sublimaes, deslocamentos,
formaes reativas. Nem mesmo os sonhos esto livres do trabalho
sorrateiro do censor que vive em ns todos, negando o inegvel,
tornando saboroso o intragvel especialmente para ns mesmos. E
quanto mais repulsivo o desejo secreto, mais elaborado o biombo
atrs do qual ele luta por sua realizao distorcida. Assim, o
psicanalista deve estar treinado para duvidar das explicaes mais
plausveis, reconciliar as contradies mais palpveis, captar os
indcios mais evasivos, extrair sentido dos absurdos. mais
impenetrveis. Escavando camada aps camada, ele procura a cidade
soterrada. A metfora arqueolgica, mesmo que incompleta para a obra
de Freud, sugestiva e elegante. O que est obscuro deve ser
esclarecido, o que est latente deve se tornar manifesto:
provavelmente este o sentido mais importante que sustentava as
atulhadas prateleiras de Freud.(subttulo) Estilo de um cientistaEm
setembro de 1907 Sigmund Freud escreveu de Roma a sua mulher,
relatando que acabava de encontrar no Vaticano "um rosto querido e
familiar". "O reconhecimento foi unilateral", acrescenta ele, "pois
era a 'Gradiva', no alto de uma parede".33 Mesmo unilateral, o
encontro deu a Freud, como ele afirmou, uma grande alegria. Esse
antigo baixo-relevo, mostrando uma jovem caminhando de maneira
graciosa, embora um tanto enfaticamente, era um objeto belo e bem
conservado. Mais que isso, despertou lembranas alegres, ainda
vvidas: apenas um ano antes Freud escrevera um estudo psicanaltico
sobre a novela Gradiva, de Wilhelm Jensen - histria inspirada
justamente por uma cpia desse mesmo baixo relevo. Achara o assunto
atraente, e o trabalho de redao fcil. Em maio de 1907, pouco depois
de publicar "Delrio e Sonhos na Gradiva de Jensen" , disse a Jung:
"Foi escrito emNotas:33. Carta de 24 de setembro de 1907. Freud,
Briefe, 226.Pag. 21dias de sol, e me deu grande prazer" .34 Na
verdade foi Jung, uma benvinda aquisio recente do aguerrido cl de
Freud, quem primeiro lhe chamou a ateno para a novela de Jensen, e
foi em parte por causa de Jung que Freud realizou essa psicanlise
literria. Do seu encontro em Roma ele guardou lembranas
inteiramente positivas, algo raro em Freud; dele gostou tanto que
comprou uma cpia da "Gradiva" para seu consultrio e a pendurou
acima do div. Como se no quisesse deixar margem a dvida de que
havia uma interseco emocional, por assim dizer, entre esse objeto
de arte e seu trabalho, pendurou esquerda uma pequena reproduo de
um quadro de Ingres, dipo Interrogando a Esfinge - de todos os
temas artsticos, a mais rica antecipao da curiosidade sistemtica do
psicanalista. Naquele estreito pedao de parede, a arqueologia e a
psicanlise se encontravam e convergiam.Esse encontro se d de
maneira ainda mais acentuada na novela de Jensen, ou melhor, na
interpretao que dela fez Freud. O paciente-protagonista de Gradiva
um arquelogo, Norbert Hanold, um europeu do Norte, reservado e
solitrio, que encontra a claridade e a cura atravs do amor no sul
da Itlia, na Pornpia banhada pelo sol. Hanold conseguira reprimir a
lembrana de uma garota com quem havia crescido e a quem fora muito
apegado. Visitando uma coleo de antiguidades em Roma, defronta-se
com um baixo-relevo mostrando uma jovem encantadora, com um modo de
andar caracterstico. D o nome de "Gradiva" a essa moa caminhante, e
pendura uma cpia em gesso num "lugar privilegiado da parede de seu
gabinete, quase todo repleto de estantes de livros" - da mesma
forma que Freud, mais tarde, colocaria na parede sua cpia do mesmo
relevo. Alguma coisa, especialmente a postura da moa, fascina
Hanold. Revela-se que o que torna a moa irresistvel que ela o faz
lembrar, embora inconscientemente, aquela jovem que amara e que'
'esquecera" em favor de sua profisso. Tem um pesadelo em que v
"Gradiva" no dia da destruio de Pornpia, e comea a tecerNotas:34.
Carta de 26 de maio de 1907. Ibid., 251.Pag. 22uma trama de iluses
a seu respeito, pranteando sua morre como se fosse uma contempornea
sua muito amada, e no algum que pereceu sob a lava do Vesvio no ano
79 d.e. Viaja Itlia sob o impulso de pensamentos indefinveis, e
acaba em Pompia , movido pela mesma inexplicvel obsesso. Ali
chegando, v "Gradiva" na rua e se imagina na antiga Pompia, no dia
em que foi soterrada. "Sua cincia", comenta Freud, "coloca-se agora
por inteiro a servio de sua imaginao" 35 A jovem se revela no s uma
pessoa real, como tambm alem; "Gradiva", naturalmente, a moa que
ele amara no passado. Mas esta "Gradiva" no s amorvel, como
inteligente: ela identifica a iluso arqueolgica de Hanold. Havia,
lhe diz ela, "uma fantasia grandiosa alojada em sua mente", de
encontr-la aqui em Pompia e v-la, assim como antes, "como algo
desenterrado e trazido de volta vida" .36Sabe que para Hanold ela s
se integrar na vida real se o ajudar a deslindar suas fantasias. No
fim de seu "tratamento", quando Hanold lhe pede de sbito que
caminhe sua frente, a moa, compreendendo seu pedido, d um passo
como jeito tpico de andar que ele notara no baixo-relevo. Ela
utiliza a iluso de Hanold a servio de sua cura. Freud, leitor de
gosto exigente, reconheceu que a novela de Jensen no era uma obra
de grande valor literrio, mas defendeu as percepes psicolgicas que
ali se revelavam: mesmo que parea sentimental, no se deve desprezar
o poder curativo do amor contra a ihiso".37 Tambm julgou notvel que
ao fazer a "Gradiva" viva imitar o andar do antigo relevo, Jensen
oferecia ao leitor a "chave do simbolismo" que Hanold empregara
para dissimular "sua lembrana reprimida" - ou seja, a arqueologia.
"No h melhor analogia para a represso, processo que torna algo da
psique inacessvel ao mesmo tempo que o preserva, do que o
sepultamento que foi o destino de Pompia, e do qual a cidade depois
reapareceuNotas:35. Delusions and Dreams in Jensens Gradiva, SE IX,
18; Der Wahn und die Traume in W.Jensens "Gradiva", GW VII, 42. 36.
Citado por Freud em Delusiom and Dreams, 32; Der Wahn, 58. 37.
Delusions and Dreams, 22; Der Wahn, 47.Pag. 23graas ao trabalho das
ps e picaretas.' '38 Freud aprovou o faro deJensen dotar sua
novela, sem dvida inconscientemente, de tcnicas psicanalticas tais
como o estmulo a associaes e a interpretao de sonhos. Se por um
lado a arqueologia foi o agente da neurose de Hanold, por outro foi
tambm til em sua cura. Se em "Delrio e Sonhos na Gradioa de Jensen"
Freud lana vrias pontes entre sua profisso e sua paixo de
colecionador, a obra tambm liga a psicanlise a outro interesse
permanente de sua vida, a literatura, tecendo uma complexa trama
intelectual. "Gradiva" foi sua primeira psicanlise .publicada de
uma obra literria'; um estudo de "sonhos que nunca foram sonhados".
39 J se exercitara antes, em particular, elaborando anlises
semelhantes de histrias de Conrad Ferdinand Meyer, um de seus
autores modernos favoritos; tirara imenso proveito das hesitaes de
Hamlet, e extrara de Sfocles sua metfora mestra, o complexo de dipo
- uma metfora (ou melhor, modelo) mais impressionante do que
qualquer outra que a arqueologia oferecesse. Afirmou tambm algumas
vezes que os escritores de fico, do seu modo intuitivo, realizam um
tipo de trabalho como o seu. A interao entre a obra de Freud e seus
interesses ainda mais ativa. A implicao mais instrutiva do fato de
Freud colecionar antiguidades , como j disse, que "o que obscuro
deve tornar claro". Essa norma nos leva s peculiaridades felizes do
estilo de Freud, pois levar seus analisandos a serem claros sobre
si mesmos era necessrio para tornar as coisas claras para ele
mesmo. E esclarecer as coisas para si mesmo era parte de uma tarefa
mais ampla: esclarec-las para os leitores. Como homem de letras,
Freud j foi fartamente elogiado: o Prmio Goethe lhe foi concedido,
em 1930, como escritor e cientista "em igual medida". 40 Artfices
profissionais como Thomas Mann e Stefan Zweig o valorizavam no
apenas como sbio, mas como colega. Todos os bigrafos de Freud
dedicamNotas:38. Deiusions and Dreams, 40; Der Wahn, 65. 39.
Delusions and Dreams, 7; Der Wahn, 31. 40. Dr. Alfons Paquet,
Secretrio do Comit do Prmio Goethe, em Frankfurt, escrevendo a
Freud em 26 de julho de 1930. Citado em GW XIV, 546n.Pag.
24obrigatoriamente uma ou duas pginas eficincia e beleza de sua
prosa - e no sem razo. Sua realizao ainda mais notvel
considerando-se o amplo espectro de suas publicaes: conferncias
introdutrias para ouvintes universitrios, comunicaes tcnicas em
revistas mdicas, ambiciosas especulaes para um pblico mais culto.
Seus relatos de casos gnero normalmente avesso graa e ao esprito -
so clssicos da literatura de investigao. Freud era um escritor
nato, que nunca descuidava dos dados essenciais de seu ofcio. At
onde pude averiguar, no tinha um programa neste sentido; no se
exercitou para tornar se escritor. Desde o incio agiu de modo
natural e intuitivo como homem de letras: as cartas mais antigas
que nos restam j demonstram que sua energia, sua graa e lucidez no
foram adquiridas a duras penas, mas faziam parte de seu carter.
Neste sentido Freud no foi, em absoluto, um estilista, Entre os
muitos tributos que outros autores prestaram sua prosa, o mais
interessante a esse respeito o de Alfred Dblin. Escreveu ele por
ocasio dos setenta anos de Freud: "Note-se o estilo simples e
claro; no , a bem dizer, um estilo. Sem artifcios nem frases de
efeito, ele diz o que quer dizer; assim que fala algum que conhece
o assunto" .41 Em suma, Freud era mais vigoroso, mais divertido,
mais razovel e convincente quando era mais de mesmo. E era ele
mesmo - isto , conseguia explorar seus recursos internos mais
profundos com um mnimo de bloqueios e conflitos - a maior pane do
tempo. Afinal, era bem disso que tratava sua autoanlise. Por mais
informal e no acadmico que tenha sido seu desenvolvimento como
escritor, evidente que ele acenou na escolhaNotas:41. "Zum
siebzigsten Geburtstag Sigmund Freuds" [No Septuagsimo Aniversrio
de Sigmund Freud"], almanach fr das Jahr 1927 [Almanaque do Ano de
1927). 33; citado por Walter Schonau, Sigmund Freuds Prosa:
Literarische Elemente seines Stils [A Prosa de Sigmund Freud:
Elementos Literrios de leu Estilo] (1968). 258. Devo muito
investigao que Schonau faz das analogias arqueolgicas de Freud:
quanto a isso. ver tambm Suzane Bernfeld Cassirer, "Freud and
Archaelogy": Tb American lmago, VIll (1951). 107-28. Maior ainda
minha dvida para com o ensaio magnificamente humano e inteligente
de Walter Muschg. "Freud als Schriftsteller" ["Freud como
Escritor"). includo em Muschg. Die Zerstrung der deutschen
Literatur [A Destruio da Literatura Alem] (3 ed., 1958).
303-47Pag.25dos meios e dos modelos. Disciplinou o ouvido lendo em
ingls e francs a vida inteira, e treinou a pena traduzindo livros
de ambas as lnguas. Lia contnua e intensamente, embora, claro, nem
todas as suas leituras fossem feitas por prazer, ou lhe dessem
prazer. Trabalhando na abundante literatura tcnica para A
Interpretao dos Sonhos, sua primeira obra-prima. fez a Fliess uma
queixa curiosa: esse tipo de leitura era "um terrvel castigo
imposto a quem pretende escrever".2 Tirou proveito at mesmo da
sintaxe laboriosa e do vocabulrio rido dos escritores acadmicos:
aprendeu com eles o que evitar. Mas seus verdadeiros professores
foram os estilistas inimigos da obscuridade e alheios ao jargo.
Embora Freud se reconhea explicitamente em dbito apenas para com
Lessing, o enrgico polernista que criou praticamente sozinho o
alemo moderno, teve em alta conta, e absorveu com presteza, as
qualidades que distinguiam seus outros escritores favoritos: vigor,
preciso, clareza. Foram essas qualidades, afinal, que os tornaram
seus prediletos. A vasta obra escrita de Freud, repleta de aluses
casuais e citaes pertinentes, extradas de um impressionante leque
de obras literrias, revela-o continuamente pelo que era: um alemo
cultivado, de assombrosa memria. H ocasies em que cita dramaturgos
austracos, como Grillparzer, Nestroy, e tambm Schnitzler: mas tambm
se sente vontade, talvez mais ainda, com os alemes "do Norte" como
Goethe, Heine, E. T. A. Hoffmann e Theodor Fontane, com os dsticos
bem humorados de Wilhelm Busch e os aforismos ptofundos de Georg
Christoph Lichtenberg. No h personagem literria que cite com mais
frequncia do que o Mefistfeles de Goethe, a menos que seja o Hamlet
de Shakespeare: e mesmo nesta escolha de uma figura da literatura
inglesa continuou fiel a seu gnero, pois desde a famosa anlise do
carter de Hamlet feita por Goethe em Wtfhelm Meisters Lebrjabre (Os
Anos de Aprendizado de Wtlhelm Meister), o significado de Hamlet
era tema de debates entre os alemes instrudos. Naturalmente Freud
recrutou Shakespeare para suas investigaes psicanalticas, da mesma
formaNotas:42. Carta de 5 de dezembro de 1898. Origins, 270;
Anfange, 288Pag. 26
como recrutou Sfocles; ambos lhes emprestaram o poder de
penetrao dos grandes poetas, e magnficas metforas. Havia sempre
algo de utilitrio no consumo que Freud fazia da cultura.43 O que
importa, porm, que tinha cultura - a cultura alem - a seu dispor;
no era um tcnico de horizontes estreitos nem um austraco
provinciano. Na velhice Freud recordou que foi uma leitura pblica
de um "belo" ensaio de Goethe sobre a natureza que o colocou no
caminho da medicina - uma admisso reveladora, pois parece que no
foi s o naturalismo entusistico de Goethe que influenciou Freud na
escolha da carreira, mas tambm seu belo estilo.44Entre as provas
mais slidas do profissionalismo de Freud est o volume de sua
produo. Exercitava-seda nica maneira que um escritor pode se
exercitar: escrevendo sempre que conseguia achar (ou criar) tempo.
No incio da carreira, quando tinha poucos pacientes, passava mais
tempo escrevendo em seu gabinete do que fazendo anlises no
consultrio. Mais tarde, porm, quando devotava dez horas ou mais por
dia, cinco dias por semana, nove meses por ano, sua prtica
psicanaltica, sendo obrigado a escrever tarde da noite, aos
domingos, ou no meio das frias de vero, continuou a publicar
bastante. PO( mais sinceras que fossem suas declaraes de indiferena
ao mundo, por mais sria sua afirmao de que se escreve sobretudo
para satisfazer a uma necessidade interior, por mais pronunciado
seu pessimismo em conquistar reconhecimento por suas perturbadoras
teorias, o impulso de comunicar aos outros essas teorias o
mobilizou desde o incio. E permaneceu vivo at o fim: a ltima obra
que iniciou, e no viveu para completar, seria um manual
esplendidamente conciso, um Esboo da Psicanlise. Nos fragmentos que
deixou desse livro, assim como nos textos completados, seu estilo
era inteiramente apropriado s suas intenes.Notas:43. Ver as notas
63-64. 44. An Autobiographical Study, SE XX, 8; Selbstdarslellung
GW XIV, 34. Hoje os estudiosos esto de acordo em que este ensaio no
absolutamente de autoria de Gocthe , mas sim de um conhecido seu,
Christoph Toblcr. Ver a nota editorial de Andreas Spe iser emjohann
Wolfgang Goetbe, Gedenkausgabe der Werke, Briefe und Gesprche
[Johann Wolfgang Goetbe, Edio Comemorativa das Obras, Cartas e
D;().1 ,. ed. Ernst Beutler , 24 vols. (1949), XVI, 978.Pag. 27Se
Freud tinha o dom natural de escrever, suas relaes cordiais com a
literatura lhe eram problemticas. Admitia que os poetas e
romancistas muitas vezes so certeiros e profundos quanto conduta e
s motivaes humanas; parecem retirar do fundo do inconsciente
percepes e insights que exigiam dele, o cientista, anos para
descobrir e demonstrar. As comparaes que o mundo de ento gostava de
traar entre o poeta e o psicanalista eram ofensivas: faziam as
investigaes de Freud parecerem foradas, suas descobertas imprecisas
e fantasiosas. Quando, em 1896, o eminente neurologista Krafftebing
descartou as teorias de Freud sobre a histeria como "um conto de
fadas cientfico", escolheu - sem dvida inconscientemente - a
metfora que atingiria Freud em seu ponto mais sensvel. Freud, pelo
que insinuava o grande homem, era culpado de perpetrar mera
literatura.No incio dos anos 90, comeando sua carreira de psiclogo
inovador, Freud ainda adotava uma atitude defensiva quanto a essas
acusaes. "Nem sempre fui psicoterapeura", escreveu no relato sobre
a srta. Elizabeth von R., confessando que ainda achava "estranho
que os casos que descrevo paream novelas, e que caream, por assim
dizer, do cunho de seriedade da cincia. Devo me consolar pensando
que evidentemente a natureza do tema mais responsvel por esse fato
do que minha predileo". Acontece simplesmente", continua ele, "que
no tratamento da histeria os mtodos tradicionais de diagnstico e
reaes eltricas locais deram em nada, ao passo que uma descrio
completa e meticulosa dos processos mentais, tal como costumamos
encontrar nos escritores, me permite obter, empregando algumas
frmulas psicolgicas, alguma percepo do processo de uma histeria"
.4l Durante toda a vida Freud foi muito sensvel a ser qualificado
como artista: por mais lisonjeira que fosse a formulao, no lhe
agradava e suscitava sua desconfiana, como mais uma forma de
resistncia s severas proposies cientficas da psicanlise. Mas a
atitude defensiva nunca foi suficiente para Freud que veio a
desenvolver uma posio quanto ao lugar ocupado peloNotas:45. Studies
on Hysteria, SE 11, 160; Studien ber Hysterie GW 1,227.Pag.
28estilo em sua disciplina: terminou vendo a psicanlise como uma
cincia peculiar que tem, como outras cincias, seu discurso prprio,
mas, diferena das outras, deve lanar mo de recursos literrios que
elucidam suas teorias, ao mesmo tempo que as pem em perigo. Como
seus materiais so ntimos, ocultos, difceis de definir e impossveis
de quantificar, a psicanlise precisa de analogias, de imagens
mentais. Podem ser inexatas, mas so indispensveis. Portanto, a
retrica psicanaltica, tal como foi criada por Freud, era por
natureza rica em metforas. A persistncia das lembranas reprimidas
"por baixo" de experincias posteriores, os esforos do psicanalista
para "escavar" sob os sonhos manifestos pediam, como j vimos,
metforas da arqueologia. A organizao da mente em ego e superego
poderia se esclarecer com emprstimos tomados topografia. As formas
de resistncia a verdades dolorosas, e de adaptao aos imperativos da
cultura, eram to diversificadas que incitaram Freud a traar
analogias com as ocupaes humanas mais variadas: a guerra, a
poltica, a culinria, as viagens, a vida familiar, as artes. Que
comparao seria mais expressiva do que sua imagem de um censor
realizando o trabalho inconsciente de represso e distoro? Ou das
defesas mentais contra os impulsos sexuais como represas que
refreiam violentas inundaes? Ou do psicanalista conjurando demnios
malignos e selvagens e lutando contra eles? Os servios que esses
recursos prestam psicanlise no se limitam a dar mais vivacidade s
apresentaes. Pelo menos algumas das metforas, comparaes e analogias
que Freud empregava com tanto vigor eram, em sua mente, descries
quase literais: assimilar a vida mental s operaes de guerra, assim
como assimilar a psicanlise arqueologia, dizia algo que verdadeiro,
e no apenas pitoresco. Mais ainda: desenhar um mapa da experincia
humana onde se entrecruzam as rotas da analogia era ilustrar uma
convico com a qual Freud, esse materialista do sculo XIX, iniciou
suas pesquisas psicolgicas, e que seu acmulo de dados e teorias s
iria fortalecer: que a natureza humana, por mais variada que seja
em suas formas de expresso, repousa sobre elementos essencialmente
simples. As analogias revelavam relaes substanciais:Pag. 29os
neurticos eram como crianas ou "selvagens", os sonhos como as
fantasias ou psicoses, a resistncia do pblico psicanlise como a
resistncia do paciente sua prpria anlise no s na aparncia ou por
associao, mas genuinamente. Freud tinha conscincia de que o
cientista no deve se deixar dominar pelos instrumentos lingusticos
que ele prprio escolheu. "Na psicologia", escreveu em 1926, em A
Questo da Anlise Leiga, "s podemos descrever com o auxlio de
analogias. Nisso no h nada de especial: o mesmo se d em outras
reas. Mas precisamos estar sempre mudando essas analogias; nenhuma
se sustenta por muito tempo" .46 Quaisquer que sejam os limites da
metfora, a ambio de Freud de descobrir muito mais que uma explicao
para a histeria e solucionar muito mais que os mistrios da neurose,
de construir, em suma, uma psicologia de validade geral, encontrava
sustentao e exemplos na linguagem que ele utilizava. Metforas e
analogias eram apenas alguns dos recursos literrios sua disposio;
Freud tambm lanava mo de muitos estratagemas de persuaso. Embora
fosse, como j afirmei, sempre ele mesmo, e seus escritos, a prosa
cientfica mais direta e mais expressiva de que dispomos, sua falta
de artifcios era uma elevada forma de arte. Freud era demasiado
alerta para no perceber que ele mesmo era seu maior trunfo. Mas no
era compenetrado quanto sua espontaneidade; no cultivava a
informalidade maneira calculada de um jardineiro ingls que cultiva
um jardim silvestre. "Uma maneira de escrever clara e sem
ambiguidades", diz ele em Psicopata/agia da Vida Cotidiana,
"mostra-nos que naquele ponto o autor est de acordo consigo mesmo";
em contraste, "onde encontramos uma expresso forada e tortuosa"
reconhecemos a presena de "uma ideia problemtica ainda no
assentada, ou a voz abafada da autocrtica do autor" .47 Era raro
que Freud, o escritor, no estivesse de acordo consigo mesmo. Ter
conscincia de si mesmo implicava, para Freud, ter conscincia dos
outros que ele desejava atingir, persuadir, re-Notas:46. SE XX,
195; Die Frage der lienana/yse, GW XIV, 222. 47. SE VI, 101; Zur
Psychopalhologie des Allagslebens, GW IV, 112.Pag. 30crutar. Como
disse a um correspondente em 1932, no queria de modo algum cair
numa postura de "conferencista isolado"; desejava manter intacto o
carter de discusso." Conseguiu mant-lo intacto por meio de uma srie
de recursos que, em seu frescor e variedade, fazem inveja a
escritores profissionais: informalidade, surpresa, variaes de
ritmo, hbeis admisses de conhecimento incompleto, trato paciente
das objees, e um estoque aparentemente inesgotvel de metforas
reveladoras. A percepo , sem dvida, a caracterstica cultivada
profissionalmente pelo analista. Ele treinado, como j indiquei,
para notar aquilo que passou despercebido. Alteraes de expresso,
gestos habituais, reaes inslitas, lapsos casuais, nfases
excessivas, leves indcios - tudo isso so pistas para verdades
escondidas. E quanto mais leve o indcio, mais compensador o
trabalho de interpretao. De fato, o psicanalista se torna o
detetive das ausncias: de assuntos interrompidos, aberturas
rejeitadas, silncios prolongados. "Quem tem olhos para ver e
ouvidos para ouvir", escreveu Freud com suprema autoconfiana no
caso "Dora", "acaba se convencendo de que os mortais so incapazes
de manter segredos. Quem tem os lbios fechados fala com os dedos; a
traio emana de todos os poros" .49 Os relatos dos casos de Freud
esclarecem bem esse ponto: so estudos da sensibilidade de um
psicanalista. Examinando a srta. Elizabeth von R. em 1892, Freud
observou que quando lhe' 'pressionou ou beliscou a pele e os
msculos hiperalgsicos das pernas, seu rosto assumiu uma expresso
peculiar, mais de prazer do que de dor. Soltou ento um grito - no
pude deixar de pensar: como que provocado por uma ccega voluptuosa
- e seu rosto enrubesceu; fechou os olhos e atirou a cabea e o
corpo para trs". significativo que acrescente aqui: .'Isso no era
muito bvio, mas ainda assim claramente perceptvel?" - isto ,
perceptvel para Freud. Em 1902 "Dora" voltou a procur-lo, quinze
meses depoisNotas:48. Carta de Freud a Leon Steinig, junho de 1932,
Freud, Bnefe, 407. 49. Fragment of an Analysis, SE VII, 77-78;
Bruchstck einer Hysten"e-Analyse, GW V,240. 50. Studies on Hystena,
SE lI, 137; Studien ber Hystene, GW V, 240.Pag. 31de ter
interrompido o tratamento, "para terminar sua histria e mais uma
vez pedir ajuda". Freud no se deixou persuadir: um s olhar para sua
expresso foi suficiente para "convencer-me de que ela no levava a
srio seu pedido" .)1 E em 1907, quando ouvia um analisando
conhecido como "Homem dos Ratos", observou em seu rosto "uma
expresso composta, muito estranha", quando o paciente relatava, com
evidente -repulsa, certos castigos especialmente sdicos praticados
no Oriente. Freud decidiu ler essa expresso como "de borrar por um
prazer que sentia e que ele mesmo desconbecia"," Foi uma pista
tnue, mas suficiente para apoiar uma interpretao grave e decisiva,
como depois se revelaria. Um observador em sintonia to fina com os
estados de esprito e os significados no poderia deixar de ter
conscincia de seu publico. A nova cincia de Freud era desconhecida,
e em muitos aspectos repulsiva; no oferecia conforto algum ao
puritano e nenhuma recompensa ao lascivo. Associava-se, em nome da
cincia, mais crassa superstio: a interpretao dos sonhos. Pior
ainda, atacava a humanidade em seu ponto mais vulnervel: a
autoestima. Se Freud no fosse um cientista da mais absoluta
probidade, recusando-se decididamente a diluir sua mensagem ou sair
caa da popularidade, a aceitao da psicanlise teria vindo antes. E
se, apesar de toda a sua probidade, Freud no fosse um advogado de
gnio, a aceitao da psicanlise viria com grande atraso. Todas as
suas estratgias de persuaso vm de que ele se apresentava como um
explorador refazendo seus passos para um ouvinte inteligente e
compreensivo, embora pouco informado. Deixa implcito que sua
extenuante viagem compensou amplamente as provaes com as
descobertas inesperadas e sem precedentes que surgiram pelo
caminho, culminando com a histrica soluo de um antigo mistrio, o
enigma da Esfinge. Freud reconheceu, sem constrangimento por seus
fracassos ou orgulho em sua modstia, que por vezes seguiraNotas:51.
Fragment of an AnalysiJ, SE VII, 120; Bruchucl: einer
Hystene-Anaiyse, GW V, 284850 520 Notes upon a Caseof Obsessional
Neurosis [Casodo "Homem dos Ratos"], SE X, 16667; Bemerkungen 6er
einen Fali uon Zulangsneurose, GW VII, 392.Pag. 32direes erradas;
vrias rotas sedutoras deram em nada, e terrenos que pareciam
promissores s renderam poos secos. Porm, cogitou ele, talvez esses
desvios frustrantes fossem o destino caracterstico do homem que vai
na frente, do pioneiro que abre caminho a machadadas na selva
desconhecida, para que outros possam passar em segurana - e depois
trat-la com condescendncia. Reconhecia que as rotas que fora
obrigado a seguir, conforme seus marcos de orientao, pareciam
tortuosas, e os despojos que reivindicava eram intragveis. Sabia
que seus crticos o chamavam de doutrinrio e autoritrio, e lamentava
as metforas to utilizadas para desacredit-la: at onde seu
autoconhecimento lhe mostrava, no era um pai ciumento nem um
poltico manipulado r, nem profeta louco nem papa infalvel. Freud
teve que insistir na autenticidade de suas descobertas chocantes
porque, por mais escandalosas que fossem, eram autnticas; a suprema
corte da experincia, alm da qual no h apelo racional, confirmava
continuamente seus achados. verdade que ningum ainda se tinha
permitido lanar mais do que um breve olhar escandalizado s
realidades fundamentais que ele fora o primeiro a desnudar; esse
temor no passava de uma vasta resistncia coletiva, provando no que
suas desagradveis asseres fossem falsas, mas sim que eram
desagradveis. Afinal, sob disfarces adequados - nos mitos, contos
de fadas e tragdias, nos aforismos dos moralistas e na sabedoria
popular das babs - essas verdades j tinham por vezes subido
superfcie da conscincia humana, para serem logo novamente
reprimidas. Freud acreditava que era capaz de compreender essa
resistncia e explic-las, assim como os fatos que a provocavam.
Conseguia ser to generoso e compreensivo porque era um homem
razovel, falando a outros homens razoveis; ele e seu pblico,
afinal, compartilhavam a mesma cultura literria e os mesmos valores
morais. Se Ihes citasse Goethe ou Shakespeare, eles reconheceriam a
aluso; se lamentavam a bestialidade humana que ele desvelara, o
mesmo sentia ele. Freud era capaz, em suma, de compreender sem
dificuldade por que seus ouvintes hesitavam e objetavam: pois j no
percorrera aquele caminho antes deles, experimentando as mesmas
hesitaes, apresentando as mesmas objees?Pag. 33Sua capacidade de
sentir os sentimentos de seu pblico, seu dom de antecipar-se s
objees, e assim desarm-las, foi o que fez de Freud, como afirmei,
um advogado de gnio. Foi sua empatia, elevada a um princpio de
estilo, que o fez conquistar a confiana de seus leitores e
ouvintes, passando ento, diante deles, a desenvolver sua
argumentao, mostrar sua evidncia e construir as provas em que
apoiaria suas concluses. Foi esse estilo baseado na empatia que o
fez escrever algumas obras - e no s de popularizao - em forma de
dilogos, dando a seus adversrios argumentos slidos que mantinham o
interesse do debate e o foravam a levar seus poderes de persuaso at
o limite mximo. por isso, tambm, que reconhecia sua ignorncia de
certos trechos, suas curas incompletas, ou mesmo fracassos
completos, e tambm suas mudanas de ideia, apresentadas em
ps-escritos simples e objetivos, porm poderosos. Sua cincia, como
ele no se cansa de repetir, explcita e implicitamente, ainda muito
jovem, afinal, e sempre ser difcil. Havia um quadro no consultrio
de Freud , na parede mais estreita, acima de um armrio de vidro
repleto de antiguidades, que, bem interpretado, documenta suas
aspiraes estilsticas. uma reproduo da pintura de Brouillet
mostrando o grande Charcot no trabalho, La leon clinique du Dr.
Charcot, uma das mais melodramticas representaes de uma atuao
intelectual na histria da arte. Enquanto um assistente segura uma
paciente histrica no meio de um ataque, Charcot disserta sobre o
caso, falando a uma atenta plateia. No como vente obiturio que
Freud escreveu por ocasio da morte de Charcot, em agosto de 1893,
compreendemos as razes de sua escolha, e da ateno que as
demonstraes pblicas de Charcot mereciam e recebiam. Freud trabalhou
com esse pioneiro neurologista parisiense de outubro de 1885 a
fevereiro de 1886, um contato que se revelou de importncia capital
para seu desenvolvimento como psicopatologista. Veio a conhecer
Charcot bastante bem. Com outros estudantes o acompanharam em suas
rondas na Salptrire , identificando os males dos doentes mentais
ali internados; um Freud surpreso fizera papel de Ado para o Deus
que era Charcot, obtendo esplndido "prazer intelectual" quando
Charcot no-Pag. 34meava as doenas sua frente. Pode-se ler no
obiturio que Freud fez desse mestre sua crescente insatisfao com as
teorias, as prticas e as grandes hesitaes da medicina vienense;
revela tambm com igual clareza que tipo de cientista e mdico
dedicado cura Freud esperava se tornar. Essa identificao no foi
passageira; Freud haveria de recordar e mencionar Charcot ao longo
de toda a sua vida. Charcot, escreve ele em 1893, era um observador
inigualvel, um homem de marcada orientao visual, que aprendera, e
ensinava os outros, a suplantar a teoria por meio de experincia.
Tinha justo orgulho de suas descobertas, e um "honesto prazer
humano por seus grandes sucessos". Como Freud, no sofria de falsa
modstia, e gostava de "falar sobre seus primeiros tempos e sobre o
caminho que percorrera". Era um trabalhador incansvel, um chefe
generoso que colocava suas descobertas disposio de seus alunos, e
um cientista de grande discernimento, capaz de distinguir entre um
conhecimento slido e uma conjectura inteligente: "Por vezes punha
de lado sua autoridade e confessava que um caso no admitia nenhum
diagnstico, ou que em outro as aparncias o tinham enganado". E essa
sinceridade unia a essncia de Charcot e seu estilo, pois, segundo
Freud, "nunca parecia mais admirvel a seus ouvintes do que quando,
ao fazer o mais minucioso relato de seus processos de raciocnio,
com total franqueza quanto s suas dvidas e reservas, esforava-se
para diminuir o abismo entre professor e aluno". Mais tarde Freud
haveria de empregar as mesmas tticas para os mesmos fins. A
franqueza de Charcot em suas sesses informais de todas as semanas,
as famosas Leons du mardi, encon trava paralelo na elegncia de suas
conferncias formais, cada uma delas, segundo as palavras
admirativas de Freud, "uma pequena obra de arte quanto construo e
composio".53 Ao traduzir dois livros de Charco t, Freud realizou um
ato de devoo, alm de incorporao intelectual. Mas Freud no nascera
para ser epgono. Admirando Charcot, tornou-se ele mesmo; o que
Charcot lhe ensinou, acima de tudo, foi que os artifcios que melhor
funcionam so os mais naturais - em suma, queNotas:53. Charcos, SE
III, 11-18; Charcos, GW I. 21-29.Pag. 35a honestidade a melhor
estratgia. Escreveu seus livros da mesma forma que praticou a
psicanlise: responsavelmente. Sabia, por exemplo, que poderia
exercer um efeito benfico sobre "Dora " deixando-a acreditar que
era importante para ele; porm rejeitava esse tipo de terapia
operacional. "Sempre evitei desempenhar papis, e me contentei com a
arte menos pretensiosa da psicologia.' 54 A ironia transparente;
Freud no era um homem humilde.(subttulo) O Burgus como
revolucionrioEnquanto a prosa de Freud era sumamente adequada a
seus propsitos, seus aposentos - voltando a eles por um momento -
ofereciam um sugestivo contraste com as ideias que ali eram
geradas. como se ele estivesse fabricando explosivos numa sala de
visitas. Freud foi um burgus irrepreensvel, que criou para si um
ambiente inequivocamente burgus, mas que, ao mesmo tempo,
desenvolveu teorias sobre a natureza e a conduta humanas mais
subversivas que qualquer conjunto de ideias da histria. Essa
impresso de espantosa audcia j esmaeceu, como inevitvel, com a
aceitao de sua psicologia, a penetrao de seu vocabulrio na fala
comum e as insistentes tentativas - contra as quais Freud advertiu
mais de uma vez - de atenuar suas arestas. s depois que se
reconstri a atmosfera mental e as crenas cientficas do final do
sculo XIX que a revoluo de Freud emerge em toda a sua estatura. No
entanto, ele fez sua revoluo no ambiente menos revolucionrio
possvel. Seus estandartes e slogans so invisveis. O que ficava em
evidncia eram fotografias de amigos, discpulos, membros de sua
famlia, e a mencionada profuso de coisas em seu apartamento, seu
amontoamento ordeiro: esttuas aglomeradas, fotos se tocando em
pequenas superfcies, quadros meio escondidos por outros quadros.
Uma foto do Mos de Michelngelo, tema de um clebre ensaio de Freud,
mal se reconhecia, espiando por cima de outro quadro e de algumas
estatuetas orientais. Parecia no haverNotas:54. Fragment ofan
Analysis, SE VII, 109; Bruchstck einer Hystene-Analyse, GW V,
272.Pag. 36lugar para mais nada. Com efeito, o espelho de moldura
elaborada que pendia, para surpresa do visitante, da janela do
gabinete de Freud, foi um presente ali colocado justamente porque
no havia mais espao em nenhum outro lugar do aposento. O famoso div
analtico de Freud era o exemplo mais conspcuo dessa autoindulgncia
domstica: era coberto por um pesado tapete, com macias almofadas e
mantas, e pelo seu formato o paciente no ficava propriamente
deitado, mas reclinado. Berggasse 19 era prdiga nesse excesso
visual e tctil que hoje quase obrigatrio chamar de "conforto
burgus". Esse epteto fcil, complacente, inexato e enganador;
suscita, como veremos, muitas questes. Mas diz alguma coisa sobre
os gostos e as escolhas de Freud: ele vivia como aquele tipo de
profissional respeitvel cujo modo de pensar ele haveria de solapar
irreparavelmente. A impecvel respeitabilidade de Freud j foi tema
de muitos comentrios, porm merece mais uma explorao. Seu anseio de
vida domstica assumia a forma convencional da classe mdia:
comodidade, plenitude modesta - conforto, Bebaglichkeit. Em agosto
de 1882, escrevendo a Martha Bernays durante seu longo e
sacrificado noivado, fez uma lista das coisas de que precisariam
para seu' 'pequeno mundo de-felicidade": dois aposentos, algumas
mesas, camas, espelhos, poltronas, tapetes, loua e copos para uso
dirio e festivo, um enxoval decente de cama e mesa, chapus com
flores artificiais, grandes molhos de chaves e uma vida repleta de
atividade significativa, afetuosa hospitalidade e amor recproco.
"Devemos fazer nossos coraes dependerem de coisas to pequenas?
Enquanto um destino mais alto no bater nossa tranquila porta - sim,
e sem apreenses.'55 As fantasias de Freud eram as mesmas que geraes
de namorados teceram juntos, olhando vitrines e lendo anncios -
aspiraes total e assumidamente burguesas. Uma vez estabelecido,
Freud fez tudo o que se espera de um bom burgus. Trabalhou duro,
preocupou-se com dinheiro, amou sua mulher, teve seis filhos;
jogava cartas, frequentavaNotas:55. Carta de 18 de agosto de 1882.
Freud, Briefe , 29.Pag. 37reunies de uma sociedade, usava uma
tabuleta na porta - "Prof. De. Freud"; fumava charutos e saa de
frias. Foi um pai de famlia responsvel, e embora inacessvel em suas
longas e absorventes horas de trabalho, e muitas vezes ausente,
mesmo nas longas frias de vero, colocava-se emocionalmente disposio
dos filhos. Seu filho Martin conservou por toda a vida a tocante
lembrana de como o pai resolveu um impasse humilhante em que o
garoto cara. Saindo para patinar no gelo, com um irmo e uma irm,
levou um tapa de um estranho devido a uma observao que no fizera;
seu bilhete, vlido para toda a estao, foi confiscado pelo
funcionrio, e (o mais humilhante para um menino com a cabea cheia
de romnticas ideias de vingana) recebeu o oferecimento de um
advogado para. processar esse agressivo estranho. Quando as crianas
voltaram para casa, cheias dos acontecimentos dramticos do dia,
Freud as ouviu com ateno e ento pediu a Martir que lhe contasse, em
particular e com detalhes, o incidente inteiro. O que o pai disse
para apaziguar os sentimentos do menino e lhe restituir o orgulho,
o filho no reteve por muito tempo. "Creio", escreveu ele com
gratido, muitos anos depois, "que isso tpico de todo tratamento bem
sucedido ao lidar com um trauma: a gente esquece no s o ferimento
mas tambm a cura" .)6 Freud era um homem muito ocupado, mas quando
se precisava dele, estava presente. No seria esse o estilo de um
bomio desenfreado, nem de um gnio absorto em si mesmo. A atitude de
Freud para com a sexualidade, que afinal a chave de sua cincia,
coerente com essa imagem. "Voc acredita", foi a pergunta retrica do
eminente psicanalista Heinz Hartmann, "que Freud, esse burgus
austraco eminentemente respeitvel, gostou de sua descoberta da
sexualidade infantil?" j7 De fato, Freud se apresentava em pblico
como um Colombo relutante, e no temos razo para questionar esta
auto avaliao. Em abril de 1896, falando em Viena perante a Associao
de Psiquiatria e Neurologia, insistiuNotas:56. Martin Freud,
Sigmund Freud: Man and Father (1958). 43. 57. Conversa particular
com o autor, 21 de junho de 1967.Pag. 38que, ao destacar o
"elemento sexual" na etiologiada histeria, no estava seguindo"
nenhuma opinio preconcebida de minha parte". Com efeito, "os dois
investigadores com quem iniciei, como discpulo, meu trabalho sobre
histeria, Charcot e Breuer, estavam longe de tal pressuposio; na
verdade eles a confrontaram com uma averso pessoal que eu tambm
compartilhei de incio" . Foram apenas" as investigaes mais
laboriosas e detalhadas" que converteram Freud ao seu ponto de
vista, "e mesmo assim com bastante vagar" .)8 A descoberta da
sexualidade infantil lhe foi muito mais dolorosa, e retardada por
uma resistncia muito mais forte, do que sua teoria sobre as origens
sexuais da histeria. H uma prova eloqente, embora involuntria,
dessa resistncia: em A Interpretao dos Sonhos, Freud observa de
passagem que' 'enaltecernos a felicidade da infncia porque ela
ainda no conhece o apetite sexual" - e isso vem do mesmo
investigador que fez da sexualidade infantil o tema de estudos
cientficos, e no prprio livro em que prenunciava o complexo de
dipo. Foi s na terceira edio, em 1911, que Freud acrescentou uma
nota de advertncia a essa extraordinria passagem, expressando suas
reservas sobre a felicidade e a inocncia da infncia. Porm nunca
exorcizou sua afirmao original, e ali continua ela, como um
monumento pr-histrico tenacidade de uma atitude mais antiga, menos
controversa." Se as idias de Freud sobre a sexualidade eram
inesperadamente complexas e ambguas, sua atitude para com as artes
era convencional, simples e sem ambiguidades. O que o diferenciava
do burgus. vienense mdio no era tanto seu gosto como sua
sinceridade; enquanto muitos iam pera para serem vistos em pblico e
se entediarem em particular, Freud raramente ia pera, para no se
entediar. Pode-se confiar que ele tinha total conscincia desses
sentimentos, e explorava suas possveis origens. Em seu ensaio sobre
o Moiss de Michelngelo, um agradvel documento para os que gostam de
denegri-lo como tpico filisteu, Freud admite com franquezaNotas:58.
The Aetiology of 'Hysteria, SE m, 199; Zur Atiologie der Hysterie ,
GW I, 435. 59. Ver The Interpretation of Dreams, SE IV, 130; Traum
deetung ;GW lI-IlI, 136 e 136n. Ver tambm a nota editorial em SE
VII, 128-29.Pag. 39que retirava mais prazer dos temas de artes do
que de suas "propriedades formais e tcnicas", mesmo sabendo que os
artistas a valorizam precisamente por essas qualidades. Seu
principal prazer com a literatura e a escultura, e, num grau bem
menor, com a pintura e a msica, era explorar os efeitos que
causavam sobre ele. "Nas reas em que no posso fazer isso, como por
exemplo na msica, sou quase incapaz de sentir prazer. 60
Considerando sua ampla cultura e sua facilidade de aluses
literrias, parece deselegante e injusto tach-lo de filisteu. Mas a
apropriao que fazia dos bens culturais sugere algo que eu chamaria
de filistinismo de alto nvel, um consumo de cultura no tanto pela
cultura em si, mas pela luz que ela pudesse lanar sobre os enigmas
cientficos que mais o interessavam, quase excluindo todo o resto.
Hanns Sachs relata que numa rara ocasio em que Freud foi convencido
a ir ao teatro para assistir produo de Max Reinhardt de dipo Rei,
gostou muito da noite, mas o que lhe deu prazer, mais que a
encenao, foram as ideias psicanalticas que a tragdia lhe despertou.
Freud obrigava a alta cultura a render proveito. Entretanto, a
suposta contradio entre Freud, o conformista burgus, e Freud, o
cientista intransigente, quase totalmente artificial. Deriva da
identificao plausvel de burgus com o convencional, algo que j se
tornou em si uma conveno. No fim dos anos 60 e na dcada de 70,
quando Freud era jovem, o termo burgus se tornara um insulto entre
artistas, escritores e crticos sociais de vanguarda. G burgus era,
numa palavra, intolervel. Porm o que o fazia intolervel permanecia
sujeito a discusso. Alguns o maldiziam como um explorador cruel da
sociedade, de seus operrios, de sua famlia e de si mesmo - um
materialista que em sua corrida febril atrs do lucro no se detinha
perante coisa alguma; um homem de rosto duro, filosofia utilitria e
onipotente talo de cheques. Outros condenavam o burgus como tmido
defensor do status quo , sempre em busca de investimentos seguros,
opinies seguras e ligaes emocionais seguras umNotas:60. The Moses
of Michelangelo, SE XIII, 211; Der Moses des Michelangelo, GW X,
172.Pag. 40homem de poltica conservadora, chinelos confortveis e
guarda-chuva a postos. Naturalmente, alguns engenhosos tericos da
poca encontraram meios de reconciliar essas denncias conflitantes,
encarando-as como estgios sucessivos no desenvolvimento histrico.
Segundo esse ponto de vista, o burgus comeou como pirata e terminou
como proprietrio. Mas fosse ele uma coisa ou outra, ou mesmo ambas,
permanecia a opinio de que o burgus amava o dinheiro e odiava a
arte. E ousado ou tmido. era um incorrigvel hipcrita quanto a seus
gostos culturais e seu comportamento sexual. O ideal moderno de
privacidade, to tipicamente burgus, era pouco mais que uma
conveniente mscara atrs da qual podia enganar seu vizinho,
entregar-se a suas vulgaridades e desfrutar suas amantes. Por mais
incisivos que sejam esses ataques respeitabilidade, por mais
perceptivos os crticos que os formularam, havia muito mais coisas
na cultura burguesa oitocentista. A palavra bipcrua um epteto
tendencioso que impede uma investigao objetiva do inevitvel hiato
entre afirmaes e atuao pblica. Seja como for, nem todos os
burgueses eram hipcritas, e nem todos os hipcritas eram burgueses.
Os operrios, camponeses e aristocratas normalmente amavam o
dinheiro, e muitos no odiavam a arte apenas no sentido de serem
totalmente insensveis a ela. Alm disso, no havia um nico cdigo de
conduta ou um s tipo de heri que definisse bem a classe mdia como
um todo; os mercadores de Manchester ou Hamburgo, cheios de
autoconfiana, tinham uma noo de si mesmos completamente diferente
da de seus colegas burgueses mais dependentes, de Munique ou Viena.
No por acaso que as ideias radicais e a arte de vanguarda, que se
difundiram cada vez mais pela cultura europeia na segunda metade do
sculo, foram em boa parte obra de pensadores e escritores
burgueses: poucos, como Marx e Engels, eram renegados conscientes
de sua classe. Ser, como Freud, consumado revolucionrio e consumado
burgus no era de forma alguma um paradoxo, uma anomalia, ou mesmo
uma raridade. No necessrio, portanto, sair dos limites da cultura
burguesa para explicar Freud. A luta pela respeitabilidade, a
disputa sobre o lugar das paixes na conduta, era inerente elasPag.
41se mdia. As opinies de Freud sobre a camada social a que
pertencia e onde se movimentava com desenvoltura esclarecem a
natureza dessa luta e definem as questes nela envolvidas. Com uma
sensibilidade para as nuances que hoje difcil imaginar, os europeus
dos sculos XIX notavam as manifestaes de classe, e usavam a
linguagem de sua classe. A movimentao dentro de cada classe - ou,
para os mais afortunados e os .mais desafortunados, a movimentao
entre uma classe e ou tra - era o prato bsico dos mexericos e da
poltica familiar, das peas de teatro e dos romances. Os esforos
para subir, ou as manobras para fazer os filhos subirem, eram a
verdadeira essncia da maior parte das estratgias sociais - da
escola que se procurava, do parceiro de casamento que se
considerava adequado, do gosto que se desenvolvia ou se
demonstrava, da linguagem que se falava ou se afetava. A escadaria
das classes era longa, ngreme, com muitos degraus. Havia muitas
maneiras de ser burgus - como, alis, de ser qualquer outra coisa.
Sob essas distines refinadas, porm, havia as divises mais
grosseiras com que todos lidavam. E cada classe, segundo Freud,
tinha sua relao particular com a cultura, sobretudo na maneira de
satisfazer ou restringir a vontade. Segundo a viso de Freud - alis
tpica do sculo XIX - a classe mdia se situava no meio, entre as
"classes baixas", que no tinham condies financeiras de sustentar o
autocontrole e nunca o aprenderam; e a aristocracia, que podia
sustentar a auto-indulgncia e no a desaprendera. O grande debate
sobre a cultura, de que participavam crticos to diversos como
Nietzsch