-
Seletividade da esfera pblica e esferas
pblicas subalternas: disputas e
possibilidades na modernizao
brasileira
Fernando Perlatto
Resumo
O artigo analisa o processo de constituio da esfera pblica no
Brasil. Sugere-se a hiptese segundo a qual, pelo menos desde o
sculo XIX, constituram-se uma esfera pblica seletiva e esferas
pblicas subalternas. Para sustentar o argumento proposto,
procura-se, por um lado, estabelecer um dilogo com a literatura
internacional dedicada reflexo em torno do conceito de esfera
pblica em especial com as formulaes realizadas por e a partir de
Jrgen Habermas , com o intuito de explorar as transformaes
que essa categoria passou no decorrer dos anos, dando nfase
especial ao conceito de subaltern counterpublics, proposto por
Nancy Fraser. Por outro lado, busca-se, com apoio de estudos
historiogrficos realizados no decorrer das ltimas dcadas sobre
a
sociedade brasileira dos sculos XIX e XX, construir uma formulao
terica acerca do processo de configurao da esfera pblica no
Brasil. Alm de problematizar as teorias que sustentam a
inexistncia de uma esfera pblica no pas, ou que concebem sua
constituio somente a partir do final do sculo XX, procura-se
apontar no somente para a necessidade de um olhar histrico mais
acurado para a compreenso das esferas pblicas seletiva e
subalternas, mas um movimento analtico no sentido de perceber
outras formas de associativismo como legtimas que no se prendam
ao paradigma organizacional do mundo europeu ou
norte-americano. O artigo contribui tanto para uma melhor
compreenso histrica do processo de configurao da esfera pblica
no
Brasil quanto para um entendimento mais bem compreendido da
dinmica de organizao e mobilizao das esferas pblicas
subalternas, chamando a ateno para suas potencialidades ao
aprofundamento da democratizao do pas.
PALAVRAS-CHAVE: esfera pblica; Habermas; subalternos;
modernidade; democracia.
Recebido em 17 de Maio de 2013. Aprovado em 30 de Julho de
2014.
I. Introduo1
J bem conhecida pelas nossas cincias sociais a capacidade
exemplar daselites brasileiras, ao longo dos anos, de mudar para
conservar. Os pactos porcima, que procuraram excluir de todas as
formas o povo das decises significa-tivas da nao, no se
configuraram como pequenos nterins na nossa trajetria,mas se
constituram como condio sine qua non capaz de assegurar o
anda-mento conservador da modernizao no Brasil. O processo
modernizador poraqui, ao contrrio do ocorrido em outros paradigmas
clssicos, no se confi-gurou como uma ruptura com o atraso, mas como
um longo processocontnuo, marcado pelo entrelaamento entre o
arcaico e o moderno,logrando constituir uma ordem social altamente
desigual, na qual o elemento dacontinuidade tendeu a prevalecer
sobre o da transformao. Durante muitosanos, a razo dualista que
opunha pares de conceito como arcaico-moderno,rural-urbano,
agrrio-industrial, sociedade fechada-sociedade aberta,
sociedadeestagnada-sociedade dinmica, sociedade
tradicional-sociedade de massas, feu-dalismo-capitalismo foi
considerada como a chave explicativa da realidadenacional, sendo
mobilizada por setores importantes da intelectualidade brasi-leira
e latino-americana. A partir dos anos 1960 essa perspectiva comeou
asofrer diversas crticas de estudiosos que apontavam para as
intrnsecas relaes
DOI 10.1590/1678-987315235307
Artigo Rev. Sociol. Polit., v. 23, n. 53, p. 121-145, mar.
2015
1 Agradeo os pareceristasannimos da Revista deSociologia e
Poltica por seuscomentrios. Agradeotambm a Luiz WerneckVianna e a
FrdricVandenberghe pela leituracrtica e fraterna, que meforam de
inestimvel valia
-
existentes entre o moderno e o atraso na constituio do
capitalismo no pas.Respeitadas as singularidades e
particularidades, essa nova forma de compre-enso da modernizao
brasileira esteve presente em diversos autores, comoFernando
Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira, Luciano Martins,
FlorestanFernandes e Luiz Werneck Vianna.
Visto desse prisma, portanto, nossa modernizao j se processou,
ainda queconservando elementos arcaicos, e no nos diferenciamos de
outras naes pelofato de no termos ainda atingido a modernidade pela
nossa to propaladaherana ibrica, que nos manteria presos ao mundo
da tradio. Ao criticar anossa sociologia da inautenticidade, Jess
Souza, dialogando criticamentecom a obra de Gilberto Freyre,
demonstra que as instituies fundamentais damodernidade, quais sejam
o Estado e mercado, associadas difuso dos valoresocidentais
individualistas, estariam presentes em nosso territrio desde osculo
XIX, sobretudo a partir da Abertura dos Portos e da chegada da
famliareal no Brasil, em 1808. Porm, como destaca Souza, embora
essa moderni-zao tenha sido efetiva e no superficial, os mecanismos
de integrao social epoltica permaneceram profundamente
hierarquizados ao longo dos anos, pro-movendo uma modernizao
seletiva (Souza 2000).
Partindo das sugestes levantadas por Souza em relao ao Estado e
aomercado, pretendemos demonstrar que a terceira instituio da
modernidade qual seja, a esfera pblica tambm est presente no Brasil
desde o sculo XIX.Conforme bem observado por Srgio Costa, durante
muitos anos perdurou nopas a ideia da inexistncia de um espao
pblico entre ns, na medida em que seacreditava que a esfera privada
apresentava-se de tal forma ampliada que algica das relaes pessoais
e patrimonialistas seria `contrabandeada para oplano pblico,
condicionando os relacionamentos nessa rbita (Costa 2002,p. 30). A
partir das dcadas de 1980 e 1990, contudo, diversos estudos
contri-buram para consolidar a convico da existncia no pas de um
espao pblico(Avritzer 2002; Costa 2002; Avritzer & Costa 2003).
Ao criticarem as teorias detransio da democracia focadas em
dimenses institucionais e no papel desem-penhado pelas elites,
essas pesquisas tiveram o mrito de chamar a ateno paraa importncia
da participao dos novos atores sociais emergentes no contextoda
redemocratizao do pas (movimentos sociais, associaes de
vizinhos,ONGs etc.), trazendo o conceito de esfera pblica para o
centro da reflexoanaltica e normativa sobre a democracia.
No obstante a importncia desses trabalhos, o foco dos mesmos se
concen-trou nas dcadas de 1970, 1980 e 1990, como se a esfera
pblica apenas tivessese configurado no pas no contexto do fim da
ditadura militar, quando novasformas de associativismo voluntrio e
novas prticas pblicas renovaram orepertrio de prticas polticas,
fomentando, assim, novas formas de engaja-mento cvico (Wampler
& Avritzer 2004, p. 212). O processo de construo danao teria
sido marcado, segundo se desprende desses estudos, pela
desor-ganizao cvica e desmobilizao da sociedade civil, como
decorrncia dadominncia de prticas autoritrias e clientelistas.
Dessa forma, ainda quedestacando a importncia desses trabalhos para
problematizar as formulaesque sustentam a inexistncia de uma esfera
pblica no pas, preciso reco-nhecer a insuficincia dos mesmos no
sentido de compreender como se proces-sou historicamente a construo
da esfera pblica no pas.
A partir de um dilogo com a historiografia brasileira que tem se
debruadopara compreender aspectos dos sculos XIX e XX, esse artigo
defende ahiptese de que a esfera pblica, ao lado do Estado e
mercado, configurou-se noBrasil desde o sculo XIX, ainda que sua
construo tenha sido marcada pelaseletividade, tanto no que tange
aos personagens capazes de nela operar, quantoem relao aos temas a
serem debatidos em seu mbito. No obstante a
122 Fernando Perlatto
-
construo dessa esfera pblica seletiva, apontaremos ao fato de
que, paripassu, ocorreu a formao de esferas pblicas subalternas,
constitudas pordiferentes espaos de sociabilidade nos quais os
segmentos subalternos bus-caram se organizar. Nesse sentido,
importante ressaltar desde j que, a des-peito de separarmos
analiticamente a esfera pblica seletiva e as esferaspblicas
subalternas, no se pretende sugerir que elas se configuraram
demaneira isolada. Pelo contrrio. Parte-se do pressuposto de que
essas esferas serelacionam permanentemente, quer de forma dialgica,
quer de maneira confli-tuosa. No obstante se reconhea a existncia
de uma circularidade culturalentre essas esferas para utilizar a
formulao conceitual de Ginzburg (1998),em dilogo com Mikhail
Bakhtin , com cada qual filtrando determinadoselementos da outra, a
partir de seus prprios valores e condies de vida, preciso
reconhecer que as relaes comunicacionais entre elas se deram,
histo-ricamente, de maneira desigual, com a busca constante da
primeira em construirum discurso hegemnico sobre a segunda. Alm
disso, como bem percebidopor Nancy Fraser, em sociedades
estratificadas, as relaes entre os diferentespblicos pertencentes a
estas esferas tendem a ser mais de contestao do que depropriamente
de deliberao (Fraser 1992, p. 125).
Baseado nessa discusso acerca da institucionalizao seletiva dos
proces-sos deliberativos na histria brasileira, demonstrar-se-,
guisa de concluso, anecessidade da ampliao da democratizao da
esfera pblica, mediante noapenas a institucionalizao de
procedimentos democrticos capazes de darvazo a argumentos
racionais, mas de mecanismos que a tornem mais porosaaos valores,
demandas, reivindicaes e manifestaes dos setores subalternos.A
ideia subjacente a essa perspectiva a da necessidade da ampliao de
canaisque permitam que as potencialidades do mundo da vida aqui
existente, histo-ricamente manifestadas principalmente por meio de
performances e discursosocultos, possam se manifestar em uma esfera
pblica renovada e democrtica.
II. Uma breve introduo sobre o conceito de esfera pblica e seus
crticos
No se tem como objetivo fazer uma ampla discusso sobre a obra
haberma-siana, considerada por muitos, com razo, como o momento
mais alto de racio-nalizao do mundo existente, sobretudo por
perpassar praticamente todos oscampos disciplinares das humanidades
e colocar-se em interlocuo com quasetodas as tradies importantes da
reflexo contempornea, oferecendo umaperspectiva crtica modernidade
sem, contudo, abdicar das suas potencia-lidades tericas e prticas
(Eisenberg 2003a, pp. 24-26). Pretende-se, nessesentido, apenas
introduzir a discusso de Habermas sobre a esfera pblicacom o
intuito de destacar algumas crticas pelas quais esse conceito
passou nosltimos anos para, posteriormente, discutir como se deu o
processo da suaconstituio no Brasil2.
A primeira formulao sistemtica em torno do conceito de esfera
pblicafoi realizada por Habermas em sua tese de livre-docncia,
Mudana estruturalda esfera pblica, publicada em 1962. Nessa obra,
Habermas procurou des-crever o processo histrico de configurao de
um novo espao a partir dosculo XVIII, principalmente na Inglaterra,
Frana e Alemanha, situado entre asociedade e o Estado, que tinha
como principal caracterstica o debate livre eracional entre os
cidados sobre questes pblicas. A constituio dessa esferaesteve
diretamente associada ascenso da burguesia, bem como ao
cresci-mento das cidades, proliferao dos cafs e dos sales e,
sobretudo, ao novopapel adquirido pela imprensa, que passou a se
configurar como um frumapartado das instncias estatais, no qual se
debatiam questes pblicas e seconstituam opinies crticas topicamente
definidas, capazes de problematizarpublicamente a legitimidade das
aes do Estado.
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
123
2 Alm das obras deHabermas (1984; 1992; 1997;2002; 2012), tem-se
comoreferncia, quanto a essetpico, as anlises de Avritzer(1996),
Calhoun (1992; 2010),Costa (2002) e Maia (2007a).
-
A esfera pblica se configurou, segundo Habermas, como uma nova
fontede legitimidade do poder, que tinha como caracterstica
principal a discussolivre e racional entre os cidados. Nesse espao,
as opinies passaram a serlegitimadas pela fora dos melhores
argumentos racionais mobilizados no de-bate pblico, que deveriam
ser considerados e valorizados independentementede fatores como
poder, riqueza ou status social. De acordo com Habermas, aolongo
dos anos, a esfera pblica sofreu uma srie de mudanas
estruturais,passando a se constituir, no sculo XIX, como um espao
de presso, comodecorrncia do prprio processo de democratizao e da
ampliao do pblicoque passou a exigir a considerao de seus
interesses no sistema poltico. J nosculo XX, a esfera pblica teria
passado por um processo gradativo de dege-nerao, como decorrncia da
obliterao da diviso entre as esferas privada epblica, quer pela
privatizao de espaos outrora pertencentes ao domniopblico, quer
pela interveno cada vez mais ampliada do Estado no domnioprivado,
que teriam conduzido transformao do cidado em cliente ouconsumidor
de servios.
Conforme destacado por diferentes autores, nos trabalhos
posteriores deHabermas sobretudo em A teoria do agir comunicativo e
Direito e demo-cracia , a esfera pblica deixa gradativamente de se
referir a uma instituiohistrica especfica ou a suportes
institucionais particulares, passando a sevincular capacidade
a-histrica do homem para a comunicao humana(Calhoun 1992; Lavalle
2002). Ao pensar a esfera pblica mais associada aosfluxos
comunicativos espontneos que emergem na sociedade, a partir do
de-bate e da discusso livre sobre questes de interesse comum entre
os cidadosconsiderados iguais, poltica e moralmente, Habermas
procurou inserir essacategoria no ncleo de sua teoria
procedimentalista da democracia, apon-tando-a como uma arena
discursiva do agir orientado para o entendimento, naqual os valores
democrticos se formariam e se reproduziam a partir de redes
decomunicao de contedos e tomadas de posio (Habermas 1992;
2012).
O que interessa reter dessa discusso o fato de a concepo de
esferapblica burguesa, desenvolvida por Habermas em Mudana
estrutural daesfera pblica, ter gerado diversas crticas no decorrer
dos anos, que condu-ziram a uma reformulao conceitual da categoria,
inclusive nas obras poste-riores do autor. Se alguns trabalhos
enfatizaram a ausncia de uma discussomais detalhada de aspectos
culturais e identitrios na obra de Habermas de 1962(Baker 1992;
Elley 1992), outros procuraram destacar a pouca importnciaconferida
religio na configurao da esfera pblica (Zaret 1992).
Algunsestudiosos buscaram problematizar o enfoque pessimista de
Habermas sobre osculo XX, focado no processo de degenerao da esfera
pblica, com o intuitode demonstrar o quanto sua anlise
sobrevalorizava o quadro de homogenei-zao da mdia e as consequncias
de sua massificao e alienao fazendoeco aos diagnsticos pessimistas
da Dialtica do Esclarecimento descon-siderando a emergncia de novos
segmentos sociais e a possibilidade de quefluxos comunicativos
originrios do mundo da vida pudessem ser mobilizadosno debate
pblico, por meio da presso de associaes voluntrias desvin-culadas
do mercado e do Estado (Calhoun 1992; Avritzer 2000; Costa
2002).
No obstante a importncia dessas objees a Mudana estrutural da
esferapblica, interessa-nos enfatizar outra ordem de crticas, que
contriburamsobremaneira para repensar a temtica da esfera pblica a
partir de novasperspectivas tericas. De modo geral, pode-se dizer
que essas crticas procu-raram problematizar a formulao de Habermas
sobre a esfera pblica, cha-mando a ateno para a desconsiderao, em
sua obra, quanto existncia deoutras esferas pblicas na sociedade,
constitudas por segmentos como osoperrios e as mulheres que, no
obstante excludos da esfera pblica burguesa,formularam discursos e
participaram de diferentes maneiras dos debates sobre
124 Fernando Perlatto
-
questes pblicas. Se Negt e Kluge (1993) tiveram o mrito, em
1972, derealizar uma primeira crtica mais ampla formulao
habermasiana, no livroThe Public Sphere and Experience. Toward an
analysis of the bourgeois andproletarian public sphere,
demonstrando como uma esfera pblica proletriaatuava em paralelo
esfera burguesa, foi Nancy Fraser quem melhor siste-matizou essas
objees, ao desenvolver o conceito de subaltern counter-publics
(Fraser 1992).
No obstante reconhecesse a importncia da elaborao de Habermas
emtorno do conceito de esfera pblica, Fraser o criticava por
idealiz-la, ao noperceber como essa esfera se constitura pela
excluso de diversos segmentos dasociedade, como as mulheres e os
operrios. Frente a esse quadro de excluso,os subaltern
counterpublics constituram arenas discursivas paralelas por meiodas
quais criaram e circularam discursos contestadores, de sorte a
formulareminterpretaes e definirem suas identidades, interesses e
necessidades (idem).Posteriormente, alguns trabalhos exploraram
essas ideias dos counterpublics,quer teoricamente (Warner 2002;
Calhoun 2012), quer empiricamente (Asen &Brower 2001; Squires
2002), ao passo que outros autores aproximaro essacategoria de
outros conceitos como o de new publics (Cohen & Arato 1992)
relacionado emergncia de novos pblicos e de formas crticas de
comu-nicao, vinculados aos movimentos sociais, que se constituem
paralelamenteao crescimento da grande mdia e diasporic publics
(Gilroy 2001) que dizrespeito ao desenvolvimento, junto com a
dispora africana, de uma contra-cultura fora da rbita da poltica
formal, que se valeu da performance, da danae da msica como forma
de manifestao (Avritzer & Costa 2004, pp. 710-714).No obstante,
importa destacar que apesar das crticas realizadas a Habermaspela
desateno a outras esferas pbicas existentes na sociedade, ele j
desta-cava no Prefcio da Mudana estrutural da esfera pblica que
concentrariasua anlise no modelo liberal da esfera pblica burguesa.
Dessa forma, ele nose debruaria sobre a sua variante plebeia, que
reuniria a plebe ignara, e queteria emergido no perodo da Revoluo
Francesa, permanecendo atuante nomovimento cartista e nas tradies
anarquistas do movimento operrio (Haber-mas 1984, pp. 10-11). A
despeito dessa ressalva, Habermas admitir posterior-mente que o
enfoque por ele privilegiado obstou uma percepo mais bemformulada
da dinmica interna da cultura plebeia e de seu potencial para
adinamizao do debate pblico (Habermas 1992).
Seguindo as sugestes levantadas por Habermas sobre as mudanas
estru-turais da esfera pblica e por seus variados crticos, em
especial Nancy Fraser eseu conceito de subaltern counterpublics, a
construo da esfera pblica noBrasil ser analisada buscando-se
demonstrar como ela se configurou de ma-neira seletiva, tanto em
relao aos personagens do mundo subalterno, quantoaos interesses que
vinham de baixo e aos temas que poderiam colocar a ordemdesigual
aqui construda em cheque. Em seguida, ser destacado o
desenvol-vimento daquilo que chamaremos de esferas pblicas
subalternas, por meio dasquais os setores populares procuraram
estabelecer arenas discursivas alter-nativas quelas constitudas
pelos segmentos elitistas.
O conceito de esferas pblicas subalternas se inspira na
categoria de sub-altern counterpublics de Nancy Fraser, mas dele se
diferencia por no colocartanta nfase na ideia segundo a qual os
pblicos subalternos seriam necessaria-mente contrrios esfera pblica
seletiva. Ainda que em alguns momentos dahistria brasileira eles
tenham assumido essa perspectiva de contestao, seriaequivocado
defini-los apenas a partir da sua oposio esfera pblica seletiva,
oque equivaleria tanto a reduzir a importncia da prpria dinmica
interna dessasesferas pblicas subalternas quanto as complexas
relaes existentes entre asdiferentes esferas pblicas.
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
125
-
III. Seletividade da esfera pblica brasileira
De acordo com Warner (2002), a ideia de pblico se configura como
umaespcie de fico prtica presente no imaginrio social de diferentes
socie-dades. Na maior parte das vezes, noes como pblico, esfera
pblica esubaltern counterpublics so tomadas como se trouxessem em
seu bojo umsignificado explicativo universal, independente dos
contextos ao quais soaplicadas. Porm, como destacado pelo autor, as
experincias nacionais possui-riam um papel importante para a
investigao dessas categorias, na medida emque os solos nos quais
elas decantam recolocam novos desafios para a prpriainvestigao
terica. Nesse sentido, pensar a dimenso do pblico implicaatentar
para um imperativo descentramento da teoria social que leve em
contaas diversas formas pelas quais categorias sociolgicas
produzidas em determi-nados contextos so interpretadas e
mobilizadas em outras realidades (Connell2007). Refletir, portanto,
sobre o processo de configurao da esfera pblicaem pases perifricos
ou semiperifricos como o Brasil contribui sobrema-neira para esse
processo de descentramento, possibilitando o dilogo entrediferentes
experincias de modernidade, sem que se conceba a priori a
superio-ridade de alguma delas sobre as demais, de modo a pensar de
maneira maisampliada o prprio conceito de esfera pblica3.
A construo de uma sociedade altamente excludente como a
brasileira,marcada por altos ndices de analfabetismo e pelo
desprezo frente ao trabalhomanual, tido como coisa de escravo,
desde a Independncia, permitiu aedificao da noo de que apenas
alguns seletos seriam aptos a operar na esferapblica, organizando o
debate pblico e instituindo o campo semntico em queele se deu,
selecionando temas e constituindo interlocutores legtimos.
Essaforma de modernizao, marcada pelo afastamento, quando no a
excluso, damaioria da populao dos espaos de discusso pblica e de
deliberao,conduziu conformao de uma esfera pblica seletiva, a
partir da qual setoresdominantes formularam ideias e percepes que
decantaram com enorme forapor toda a sociedade. Ao sustentar-se a
noo da seletividade da esfera pblicano Brasil, no se pretende dizer
que as esferas pblicas constitudas em outrospases, em especial na
Europa e nos Estados Unidos, no foram tambmseletivas. Pelo
contrrio. Diversos estudos tm procurado apontar justamentepara o
fato de que as esferas pblicas nesses contextos foram marcadas
pelaexcluso, na medida em que apenas aos homens burgueses era
facultada aparticipao, resultando, consequentemente, na excluso de
diversos outrossegmentos da sociedade (Fraser 1992; Ryan 1992;
Calhoun 2012). Contudo,no resta dvida de que em sociedades
estratificadas como a brasileira, carac-terizadas pela escravido e
por altos ndices de analfabetismo, essa seletividadeganhou novos
contornos, configurando-se de forma mais significativa e
siste-mtica. Desde 1808, quando ocorre a chegada da famlia real,
trazendo em seubojo uma srie de transformaes polticas, sociais,
econmicas e culturais,verificar-se-o os primeiros indcios da
construo de uma esfera pblica noBrasil, ainda que pouco permevel
tanto aos setores subalternos e aos seusinteresses, quanto aos
temas capazes de introduzir o novo nesse mundo, pondoem questo o
status quo.
Junto com as mudanas desencadeadas a partir da Abertura dos
Portos sNaes Amigas, em 1808, a chegada da famlia real ao Brasil,
alm de promo-ver a criao de instituies culturais como a Biblioteca
Real, a Imprensa Rgia,o Jardim Botnico, a Academia de Belas Artes,
alm de teatros e museus,estimulou o desencadeamento de uma srie de
transformaes, em todos osaspectos da vida e dos costumes, criando
um ambiente favorvel para reunies,encontros e discusses pblicas.
Dessa forma, corroborando a anlise feita porAntonio Candido,
possvel destacar que a vinda da Corte para o Brasil marcou
126 Fernando Perlatto
3 Os trabalhos de Arjomand(2001) e a coletneaorganizada por
Hoexter,Eisenstadt e Levtzion (2002),respectivamente sobre a ndiae
as sociedades mulumanas,so exemplos de investigaessobre o processo
deconfigurao da esfera pblicaem contextos perifricos.
-
definitivamente o comeo da nossa poca das luzes, haja vista que
foi a partirde ento que o pas viu surgir os primeiros pblicos
consumidores regulares dearte e literatura, dando incio a uma
verdadeira, ainda que incipiente, vidaintelectual (Candido
1971).
Segundo Jos Murilo de Carvalho, at o incio do Segundo
Reinado(1840), o debate poltico estava restrito a espaos escassos,
concentrando-seprincipalmente na tribuna do Parlamento e na
imprensa (Carvalho 2007). Aexceo foram os anos da Independncia, em
especial aps a aps a RevoltaLiberal do Porto, em 1820, e o perodo
da Regncia (1831-1840), quandojornais, associaes e clubes polticos
se organizaram, sobretudo na capital doImprio. Conforme destacado
pela historiografia, no decorrer desses anos, oprocesso de
aparecimento dos jornais e de diferentes espaos de
sociabilidade,como associaes e clubes, favoreceu a formao de uma
opinio pblica nopas que, ultrapassando os limites do julgamento
privado, passou a influir odebate pblico, colocando em questo a
legitimidade discursiva do Estado. Osmomentos marcados por maior
agitao, no decorrer do perodo imperial,como os que se seguiram
Independncia e Regncia, foram aqueles nosquais a imprensa foi mais
mobilizada, com a proliferao de espaos abertosao debate pblico
(Basile 2000; Lustosa 2000; Neves 2003; Morel 2005).Alm disso,
transformaes nas prprias cidades, em especial na capital fe-deral
como a disseminao de cafs, confeitarias e restaurantes
criaroambiente favorvel para o encontro das pessoas em locais
pblicos (Alen-castro 1997, p. 85).
No decorrer do sculo XIX, as associaes cientficas, culturais e
literrias com especial destaque para a Sociedade Auxiliadora da
Indstria Nacional, aAcademia Imperial de Medicina, a Sociedade de
Geografia, o Clube de Enge-nharia, o Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro e o Instituto dos Advoga-dos Brasileiros tambm se
configuraram como espaos de animao intelec-tual e debate sobre
questes pblicas (Rezende de Carvalho 2007, p. 19).Conforme
destacado por Luiz Felipe de Alencastro:
Num contexto em que a poltica parlamentar e os debates
importantes stomavam corpo e expresso verdadeiramente nacionais nas
estreitas camadasda populao escolarizada, os jornais, panfletos e
revistas desempenhavam umpapel decisivo. Na ausncia de um
verdadeiro mercado editorial de livros e deuma massa de leitores
formados pelo ensino acadmico e a frequentao debibliotecas pblicas,
os peridicos apareciam como veculos quase exclusivosda difuso de
ideias (Alencastro 2001, p. 116).
Embora a liberdade da imprensa s tenha sido implementada em
1821,desde 1820, aps a revolta liberal do Porto, houve uma
intensificao do debatepoltico principalmente mediante a publicao de
folhetos e jornais. Essesmateriais foram mobilizados pelos polticos
e intelectuais do Imprio, consti-tuindo-se nos principais veculos
de debates pblicos (Carvalho 2006, p. 139).A imprensa da Corte
contava com trs grandes jornais Correio Mercantil,Dirio do Rio de
Janeiro e Jornal do Commercio. Ao lado da publicao dessasfolhas, no
decorrer do perodo imperial foram se multiplicando os panfletos
elivros, que tambm formavam um campo de debate entre a elite
alfabetizadanaquele contexto (Barbosa 2007). Embora a conformao
dessas esferas dereunio e discusso se desse com maior fora na
Corte, elas no se restringiam aessa geografia. Como exemplo, basta
observar o que ocorria na provncia deMinas Gerais, onde a primeira
metade do sculo XIX testemunhou o apareci-mento de novas formas de
convvio, sociabilidade e reunio no espao pblico(Barata 2009).
Nem preciso dizer que os debates alados principalmente pela
eliteintelectual e poltica do Imprio a essa restrita esfera pblica
alcanavam um
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
127
-
nmero muito reduzido da populao. escassez de espaos democrticos
paraque os setores subalternos deles participassem se somava um
nmero elevads-simo de analfabetos, que se no inviabilizava, ao
menos reduzia significati-vamente a possibilidade de interao
autnoma por parte dos segmentospopulares. De acordo com censo
realizado em 1872 e divulgado quatro anosdepois, na populao livre,
apenas 23,43% dos homens e 13,43% das mulheressabiam ler e
escrever. Caso os escravos fossem includos, somente 15,75%
dapopulao era considerada alfabetizada (Chalhoub 2006). Alm da
excluso daparticipao dos debates na imprensa, o analfabetismo era
decisivo para areduo da participao eleitoral. A lei eleitoral de
1881, que introduzia o votodireto em um turno, sob o pretexto de
moralizar as eleies, reduziu drasti-camente a participao eleitoral.
Ao exigir dos eleitores saber ler e escrever,restringiu o
eleitorado que era de 10% da populao, a menos de 1% numapopulao de
cerca de 14 milhes (Carvalho 1998a, p. 92).
Nessa esfera pblica seletiva, nem aos personagens do mundo
subalternoera permitida a participao e nem os temas que pudessem pr
essa ordem emcheque, como a escravido e o exclusivo agrrio, eram
mobilizados, com ointuito de serem, de fato, enfrentados.
Observando a produo dos principaispublicistas do Imprio, tanto do
campo liberal como do conservador, podemosconstatar que os debates
que ocorriam na cena pblica se davam entre as elites eenvolviam, no
mximo, a populao urbana letrada. Essas disputas relacio-navam-se
principalmente com questes polticas e institucionais, sendo
relega-das para segundo plano as questes sociais. Dessa forma, os
temas da mo-de-obra livre e da democratizao da terra no sero
enfrentados e os personagensdiretamente relacionados a esse mundo
no sero chamados cena pblica4.
As elites intelectuais e polticas do Imprio buscaro, de todas as
maneiraspossveis, controlar aqueles movimentos que porventura
contestassem o statusquo, na medida em que eles efetivamente
representavam uma ameaa frag-mentao territorial. Isso pode ser
evidenciado pela represso s rebeliesescravas, aos quilombos e a
qualquer forma de organizao dos escravos, assimcomo o combate s
revoltas provinciais no perodo regencial (1831-1840), queculminaram
no Regresso Conservador, com a Lei Interpretativa do Ato Adi-cional
(1840), a reforma do Cdigo de Processo Penal (em 1841) e o
restabe-lecimento do Conselho de Estado (em 1841). A prpria forma
como o Impriolidou com o tema do serto exemplar nesse sentido,
relacionando esse barbrie, violncia, s paixes ferozes e fragmentao,
ao passo que o litoral,exemplificado pela Capital Federal, seria a
representao da ordem, da civili-zao e da coeso nacional (Coser
2008, pp. 151-152).
A despeito da excluso existente dos atores e temas aptos a
participarem daesfera pblica seletiva, essa aos poucos se via
pressionada a democratizar-sesob a presso de diversos segmentos. A
crise da hegemonia imperial apresen-tou-se quando o Estado comeou a
mostrar-se incapaz de atender s necessi-dades da sociedade em
modernizao econmica, expanso demogrfica eampliao do leque de
demandas sociais (Salles 1996). Diversos movimentosocorridos na
segunda metade do sculo XX a crise de 1868, com a intervenodo
Imperador na queda do Gabinete Zacarias, o surgimento do Partido
Repu-blicano em 1870, a Questo Religiosa e a Questo Militar, a
Guerra do Paraguai(1864-1870), a Lei do Ventre Livre e a Lei dos
Sexagenrios evidenciavamque novos interesses buscavam sua
participao na esfera pblica seletiva e queo Imprio e a ordem
escravista no eram mais capazes de absorv-los.
No contexto da crise do sistema imperial e escravista,
iniciou-se, de fato, aconfigurao de uma esfera pblica mais
democrtica e consistente no pas. Nofinal da dcada de 1860 e incio
dos anos 1870, vrios clubes radicais foramorganizados, propondo,
alm da descentralizao poltico-administrativa, a
128 Fernando Perlatto
4 Se porventura pudesse haverexistido um debate sobre
ademocratizao das terras, aLei de Terras de 1850 ps porgua abaixo
essaspossibilidades, ao consagrar olatifndio e impedir a
efetivarealizao de uma reformaagrria no pas (Costa 1982).Quanto ao
tema da escravido,houve uma produo dosilncio sobre a raa nodecorrer
do Imprio por parteda elite intelectual, inclusivecomo um requisito
para sealcanar o ideal dehomogeneidade da nao(Chalhoub 2006).
-
abolio do Conselho de Estado, da Guarda Nacional, da
vitaliciedade doSenado e, em alguns casos, da escravido (Carvalho
2007). Nos anos queantecederam a Abolio (1888), no apenas a ordem
imperial, mas tambm aescravido perdeu visivelmente a legitimidade
na sociedade brasileira, criandoum ambiente favorvel proliferao de
diversas associaes abolicionistas,sociedades literrias e jornais em
defesa do abolicionismo (Azevedo 2003).
O movimento abolicionista ganhava fora em todos os setores da
sociedade,no se restringindo somente aos debates na Cmara e
organizao de asso-ciaes contrrias escravido. Na imprensa em jornais
como A Onda, AAbolio, Oitenta e Nove, A Redeno, A Liberdade, O
Alliot, A Gazeta daTarde, A Terra da Redeno, O Amigo do Escravo, A
Luta, O Federalista bemcomo por meio de dezenas de panfletos e
pasquins, intelectuais como Franciscode Paula Brito, Andr Rebouas,
Jos Ferreira de Menezes, Silva Jardim, LuisGama, Antonio Bento e
Jos do Patrocnio produziam artigos a favor daabolio e, por mais que
o governo tentasse recorrer a tticas reformistas, essemovimento
indicava o final da escravido no Brasil (Schwarcz 2007, p. 23).
Emtodos os ambientes debatia-se a questo da escravido, seja nas
ruas, teatros ousales. Conforme destacado por Joaquim Nabuco, no
pas j se consolidara umaopinio pblica aderente ao abolicionismo,
com jornais e associaes denun-ciando os horrores da escravido,
faltando unicamente vencer a batalha noParlamento (Nabuco
2000).
Pessoas de todas as concepes polticas, de todas as cores, credos
enacionalidades organizavam manifestaes, boicotes e protestos
contra a escra-vido. Arrecadavam-se fundos para promover alforrias
e milhares de annimosmilitantes, profissionais liberais,
biscateiros, libertos, escravos, capoeiras, ne-gros, mestios,
brancos brasileiros, africanos e imigrantes participavam doprocesso
(Machado 1994; Soares & Salles 2005). Nesse contexto de
intensaagitao intelectual e poltica, a possibilidade da esfera
pblica abrir-se aospersonagens do mundo subalterno e aos temas que
colocassem em cheque aordem de maneira concreta estava na ordem do
dia.
No obstante todo esse processo de mobilizao, fato que a fora do
movi-mento abolicionista desapareceu com a prpria escravido
(Hasenbalg 1979,p. 154). A Repblica que vir na esteira da abolio,
inaugurada com aConstituio de 1891, no ser acompanhada da incluso
social dos libertos e dapopulao pobre em geral, assim como da
democratizao da terra. O novo re-gime no logrou romper com as
relaes costumeiras tpicas da escravido,sustentadas por hierarquias
sociais rgidas (Rios & Castro 2007). Todo esseprocesso sustou a
construo de uma esfera pblica democrtica, que parecia seforjar no
momento anterior abolio. Nesse sentido, convm destacar queembora
tenha havido uma ampliao da esfera pblica no perodo republicano,ela
ainda permaneceu pouco permevel aos personagens do mundo subalterno
eaos temas perigosos estabilidade da ordem. Em relao ao direito de
voto, aRepblica manteve a excluso da maioria da populao. A
Constituio de1891 eliminou a exigncia da renda para o voto, mas
manteve a restrio aosestrangeiros, menores de 21 anos e
analfabetos. Esse ltimo critrio foi o maisdecisivo para alijar
parte significativa da sociedade brasileira das votaes. NoCenso de
1920, na populao de 7 anos ou mais, o Brasil possua 31%
dealfabetizados. Entre estes, apenas 7,8% possuam direito de voto,
mas mesmoassim poucos se utilizavam dele. No perodo que se estende
de 1894 a 1930, aparticipao eleitoral girou entre 1,4% e 3,4% da
populao. Somente na ltimaeleio da Primeira Repblica que houve um
aumento mais significativo docomparecimento s urnas, apesar desse
no chegar a 6% da populao. Almdos critrios legais que restringiam a
participao eleitoral, havia um receiogeneralizado de se sair nas
ruas em dias de eleio, haja vista a violncia doscapangas a servio
dos candidatos. Ao reduzido nmero de votos e violncia
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
129
-
somava-se a elevada corrupo e manipulao das eleies pelos chefes
locais,estaduais e nacionais (Carvalho 2001, pp. 72-73).
O tempo republicano parecia ser mais acelerado, impulsionado por
novospotenciais energticos e tecnolgicos, no qual a exigncia de
acertar os pon-teiros brasileiros com o relgio global trouxe
consigo a hegemonia dos dis-cursos tcnicos, confiantes em
representar a vitria do progresso e da moderni-zao. As aes
concretas desencadeadas por esses discursos comoexemplificam a
represso a Canudos e o combate Reforma da Vacina, porexemplo se
traduziram em formas extremas de opresso quando voltadas paraas
populaes destitudas de qualquer educao formal e afastadas dos
proces-sos decisrios. No af do discurso modernizador, as novas
elites se empenha-vam em reduzir a complexa realidade social
brasileira ao ajustamento emconformidade com os padres abstratos de
gesto social sob a inspirao demodelos europeus ou norte-americanos,
buscando cancelar toda a herana dopassado histrico do pas5. Nesse
sentido, prevaleceu o sentimento de vergonhaem relao ao passado,
aos grupos sociais e rituais da cultura que evocassemhbitos
passados, sobretudo quando relacionados populao
afro-brasileira(Sevcenko 1998).
As primeiras dcadas do sculo XX testemunharam notveis
transfor-maes na sociedade brasileira, impulsionadas, em grande
medida, pela indus-trializao e pela urbanizao. Esse processo
resultou em uma ampliaosignificativa da presso de novos atores
sociais no sentido de participarem maisativamente da seletiva
esfera pblica brasileira (Domingues 2003). amplia-o do pblico
consumidor de bens simblicos e de meios de comunicao demassa, que
imprimiu novos ritmos, linguagens e direcionamentos esferapblica
(Gomes 1999, p. 13), somou-se, nesse contexto, uma ampla
movi-mentao social e intelectual de diversos segmentos da
sociedade, representadapor movimentos como a criao do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), aSemana de Arte Moderna de 1922 e a
Coluna Prestes. Ainda que o movimentodos intelectuais ligados a
essa animao intelectual e poltica no significassenenhuma ida ao
povo e nem expressasse o impulso jacobino de se pr nadireo poltica
e cultural dos setores subalternos (Werneck Vianna 2004,p. 203), o
fato que, em decorrncia das foras populares que emergiram comfora
nos anos 1910, a esfera pblica seletiva teve que se abrir, ainda
que comrestries, e a elite intelectual e poltica se viu na
necessidade de encontrar no-vas formas de representar e lidar com
as classes populares.
O perodo que se estende de 1930 a 1945 representou uma
mudanasignificativa no processo de configurao da esfera pblica no
pas. O governoVargas, especialmente, com sua busca em superar o
liberalismo da Constituiode 1891 e imprimir um novo ritmo
modernizao tendo como ator principal oEstado, teve papel decisivo
na ampliao da esfera pblica e dos direitos sociaisno Brasil
sobretudo com a entrada em seu mbito das classes mdias e
dostrabalhadores urbanos , ainda que esse processo tenha se dado na
chaverepressiva e sob o domnio da cidadania regulada (Santos 1979).
Atravs daorganizao e dos direitos corporativos, que instituram uma
nova relaopblico-privado, buscou-se elevar o interesse, seja ele do
empresariado, seja dooperariado, ao plano da esfera pbica, mediante
a subsuno do mundo dotrabalho razo do Estado (Boschi & Diniz
1991). A despeito do autoritarismodesse perodo, sobretudo no
contexto do Estado Novo (1937-1945), esse mo-delo logrou sucesso em
solidificar um cenrio institucional favorvel agre-gao e solidarizao
de interesses, bem como afirmao da prevalncia dacomunidade sobre o
indivduo liberal, e, em certa medida, do pblico sobre oprivado
(Werneck Vianna & Rezende de Carvalho 2000).
130 Fernando Perlatto
5 O processo deestabelecimento de uma ordempblica moderna nas
primeirasdcadas do perodorepublicano esteve associado,em grande
medida, ao discursode criminalizao de
prticasmgico-curativas,consideradas feitiaria oucurandeirismo
pelasautoridades, sobretudo quandoassociada aos negros(Schritzmeyer
2004).
-
A nova ordem estabelecida em 1946, aps o fim do Estado Novo,
retomou oiderio liberal, ampliando as liberdades e a autonomizao da
vida associativa,inclusive do mundo do trabalho, mas, de maneira
geral, reproduziu padres daordem corporativa anterior, acabando por
favorecer uma concepo de rep-blica orientada por valores
comunitrios, na qual o indivduo, apesar de reco-nhecido como dotado
de autonomia e portador de direitos prprios, via-seenvolvido com a
ideia de bem-comum. A despeito desse processo de fortaleci-mento do
pblico, as instituies permaneciam carentes de
procedimentosdemocrticos por onde pudessem transitar os temas
substantivos da democra-tizao social do pas (idem). De modo geral,
possvel dizer que a partir de1946 houve uma notvel expanso da
esfera pblica, embora permanecessemalgumas restries importantes,
como a participao eleitoral dos analfabetos, odireito de organizao
sindical dos trabalhadores do campo e o direito de grevedos
trabalhadores urbanos e servidores pblicos (Santos 2006).
O golpe militar de 1964 representou um retrocesso significativo
no processode democratizao da esfera pblica ento em curso. A
ditadura que ento seinstaurou no pas foi marcada pelo controle
sobre a esfera pblica e sobre todasas formas de manifestao da vida
associativa que pudessem hipoteticamentecolocar em perigo a
segurana nacional, em especial os sindicatos e organi-zaes
culturais ligadas ao campo da esquerda. Nesse contexto, as
concepesorientadas para a produo de consenso e de solidarizao
social que marca-ram o perodo anterior foram substitudas pela
sobrevalorizao exacerbada doindividualismo, com todas as
consequncias da advindas para a vertebraoassociativa. A poltica foi
travada pelo autoritarismo, ao passo que a economiaganhou autonomia
e se expandiu, resultando em uma brutal separao entre oprivado e o
pblico, com a sobreposio do primeiro sobre o segundo (WerneckVianna
& Rezende de Carvalho 2000, pp. 27-28).
Seria equivocado ignorar a expanso dos bens simblicos no
contexto daditadura militar (Ortiz 1986), bem como a ampliao de
alguns direitos, como ovoto dos analfabetos, a organizao dos
trabalhadores no campo e o lequeconstitucional de bens
politicamente regulados, como fundos de penso, segu-ros de sade
etc. Contudo, a regresso da esfera pblica foi muito
maissignificativa do que esses avanos pontuais, sobretudo pelo fato
de a ditaduramilitar ter sido responsvel pela regresso da
capacidade estatal de asseguraraos cidados o exerccio dos direitos
constitucionais garantidos (Santos 2006,p. 116). Nesse sentido, que
se pode dizer que houve uma perda, ao longodesses anos, da ideia de
uma esfera pblica capaz de atuar como uma espcie deespao de
pedagogia para o civismo, na medida em que ela se converteu em
umasimples alavanca dos interesses dominantes na esfera privada,
com o predo-mnio da dimenso econmica sobre o campo da poltica
(Werneck & Carvalho2004, p. 217).
O processo de degenerao da esfera pblica impulsionado pelos
governosmilitares resultou em uma srie de desafios, que tiveram que
ser enfrentados nocontexto de redemocratizao do pas. A Constituio
de 1988 apareceu como ocoroamento de uma conjuntura de intensa
mobilizao da sociedade civil,constituindo-se como elemento decisivo
para as lutas que tiveram curso nasdcadas seguintes pela
democratizao da esfera pblica brasileira. Admitindoa inspirao
comunitria da nossa tradio republicana, com a fixao deprocedimentos
que viessem a favorecer a cultura do civismo, a Carta de
1988ampliou os mecanismos de participao popular na esfera pblica
para alm dademocracia representativa por meio do estabelecimento de
instrumentos parti-cipativos, como plebiscitos, referendos e
conselhos (Dagnino 2002; Wampler& Avritzer 2004). Alm dos
instrumentos participativos, a Constituio de1988 tambm abriu novos
canais de participao funcional por meio dasinstituies do Judicirio,
recuperando o tema da pedagogia cvica exercida
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
131
-
pelo Direito, suas instituies e procedimentos, de modo a ampliar
as formas darepresentao da sociedade civil com vias prprias para
chegar esfera pblica.Dessa forma, ela retomou a tradio de fazer da
dimenso pblica um lugar depedagogia do civismo, agora animada pelo
princpio da auto-organizao e nomais pela presena tutelar do Estado
(Werneck Vianna & Rezende de Carvalho2004, p. 222).
Nos anos recentes, diversas transformaes vm se processando na
esferapblica, com destaque para a expanso e o aumento do impacto do
poder domercado, da mdia e da internet nas relaes culturais,
polticas e sociais. Asredes sociais, em especial, tm aberto novas
possibilidades de reinveno eampliao da esfera pblica. Ainda que
exista uma batalha em curso em tornoda definio dos padres de
apropriao da internet, sem que se saiba ao certo seser a soberania
do consumidor ou a soberania do cidado que ser privilegiadanesse
processo (Eisenberg 2003b), no restam dvidas quanto ao fato de que
arede tem atuado na ampliao da esfera pblica. Conforme destacado
poralguns autores, a internet tem contribudo para a configurao de
diferentesformas de interao por parte das organizaes cvicas,
gerando conhecimentotcnico-competente, memria ativa, recursos
comunicativos, exigncia de pres-tao de contas e solidariedade
distncia, facilitando a operacionalizao deformas variadas de
participao em mbitos distintos e expandindo o dilogoentre
diferentes atores da sociedade (Maia 2007b).
IV. Esferas pblicas subalternas
A construo de uma esfera pblica seletiva no pas permitiu a
organizaode uma hegemonia por parte das classes dominantes, que
logrou sustentar aconstituio de uma sociedade altamente desigual. O
conceito de hegemoniaadotado aqui, embora assumindo a noo de um
consenso permanentementeconstrudo que envolve todo o processo
social organizado praticamente porsignificados e valores especficos
e dominantes e que se equilibra com o uso dafora, de modo que esta
parea apoiada no consenso da maioria (Gramsci 2000,p. 95), pressupe
a ideia de que a hegemonia no se configura como um blococoncreto e
fechado, imposto mediante um discurso que assumido passi-vamente
pelas classes populares. O conceito aqui assumido de hegemoniasupe
permanentemente a ideia de antagonismo (Laclau 1990). A hegemonia
sempre viva, porque se v impelida a se refazer, a recriar-se, a ser
defendida emodificada, posto sofrer a todo o momento resistncia
daqueles que esto foraou na margem, constituindo-se como um
complexo de experincias e relaes,com presses e limites especficos e
mutveis (Williams 1979, p. 116).
Dessa forma, observa-se que a tendncia hegemnica de represso e
con-trole social sobre as classes subalternas no logra extinguir as
diversas concep-es de mundo a que ela se contrapunha. A cultura
popular, ainda que aceita,interiorizada e reproduzida, a todo o
momento relida e transformada pelosdominados, constituindo-se como
uma arena de consentimento e resistncia(Hall 2003, p. 263). Assim
sendo, ainda que a construo da esfera pblicaseletiva tenha sido uma
prtica estruturante da sociedade brasileira, ela nopossuiu um grau
de organizao to coeso, abrindo, por conseguinte, brechas nosistema
para que os subalternos resistissem e se exprimissem de
diversasmaneiras contra a predominncia das formas sistmicas de ao
no interior dosdomnios societrios. Dialogando com Spivak (1988),
possvel dizer que, adespeito dos subalternos dificilmente serem
ouvidos, eles foram capazes defalar, de diferentes maneiras, contra
os discursos hegemnicos e as prticasrepressivas do cotidiano.
O que interessa destacar o fato de que a resistncia nem sempre
passavapor falas pblicas, podendo assumir formas ocultas, nos
termos de Scott
132 Fernando Perlatto
-
(2003). O autor engloba essas formas de resistncia em um
conjunto de aes,que se configurariam como a infrapoltica dos
subalternos que, ao buscaremresistir explorao material e s formas
de dominao simblica, manteriam aresistncia viva, exercendo presso,
provando e questionando os limites dopermissvel. Ao espao negado no
discurso pblico, os setores popularesexerceriam prticas e criariam
formas expressivas fora de cena, constituindodiscursos ocultos por
meio dos quais buscariam romper, de alguma forma,com a aparente
homogeneidade da fala oficial.
possvel conectar essa perspectiva da infrapoltica dos
subalternoslevantada por Scott com a discusso dos subaltern
counterpublics abordada naprimeira parte desse texto. A despeito
das tentativas constantes da fala oficialpara construir discursos
hegemnicos a partir da esfera pblica seletiva, seja pormeio da
violncia fsica e/ou simblica, fato que, mesmo em
sociedadesestratificadas e extremamente desiguais como a
brasileira, os subalternos logra-ram descobrir e articular espaos
de manobras, por meios dos quais, mesmo emuma aparente
homogeneidade, construram discursos ocultos, muitas
vezessustentados em performances que, tornando ou no falas pblicas,
testavam atodos os momentos os limites da ordem. Em sociedades
marcadas pela violnciapermanente, o silncio, o implcito, o invisvel
so, frequentemente, maisimportantes do que o manifesto (Chau 1986,
p. 33).
Nesse sentido, possvel perceber que as aes dos segmentos
subalternospoderiam assumir carter reativo, localizadas em aes
coletivas como oexemplificam as diversas formas de protestos
abertos contra o sistema que sedesenrolaram no decorrer da histria
brasileira ou irromper por outras formasde manifestao mediante a
manuteno de todo um circuito de contatossociais, trocas culturais e
prticas ritualizadas em redes clandestinas, cercadaspor cdigos de
silncio e jarges indecifrveis, acessveis apenas aos inicia-dos, que
se construam como meio peculiar de garantir-se contra as invasesda
autoridade arbitrria e intolerante (Sevcenko 1998, p. 32). Essa
segundaforma, caracterizada pela resistncia difusa como na
irreverncia do humorannimo que percorre as ruas, nos ditos
populares, nos grafites espalhadospelos muros das cidades (Chau
1986, p. 63) , foi mais presente na histriabrasileira e configurou
um tipo de manifestao consciente dos subordinadosem contextos nos
quais o discurso oculto era mais seguro do que a falapblica. Dessa
forma, os setores populares, no Brasil, foram capazes de resistir
imposio hegemnica construda na esfera pblica seletiva, logrando
estabe-lecer, em determinados momentos, esferas pblicas
subalternas, que a despeitode no conseguirem alar suas demandas
esfera pblica elitista e, por conse-guinte, disputarem a hegemonia
da sociedade, foram capazes de construiroutros discursos, ancorados
em uma cultura popular repleta de fora inovadora,criatividade e
potencialidade.
importante destacar que a existncia de esferas pblicas
subalternas noconfere automaticamente a elas um carter virtuoso. Ao
discutir acerca daexistncia dos subaltern counterpublics, Nancy
Fraser faz uma importanteressalva, destacando o fato desses pblicos
no serem necessariamente demo-crticos e igualitrios, no obstante
serem fundamentais para a expanso doespao discursivo, sobretudo em
sociedades estratificadas:
I do not suggest that subaltern counterpublics are always
necessarily virtu-ous. Some of them are explicitly antidemocratic
and antiegalitarian, and eventhose with democratic and egalitarian
intentions are not always above practic-ing their own modes of
informal exclusion and marginalization. Still, insofar asthese
counterpublics, they help expand discursive space. In principle,
assump-tions that were previously exempt from contestation will now
have to be pub-licly argued out. In general, the proliferation of
subaltern counterpublics means
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
133
-
a widening of discursive contestation, and that is a good thing
in stratified soci-eties6 (Fraser 1992, p. 124).
A perspectiva da existncia de esferas pblicas subalternas, ainda
que nonecessariamente virtuosas, abre um dilogo direto com
pesquisas recentes quevm sendo desenvolvidas por diversos
historiadores brasileiros no sentido decriticar aquilo que seria
concebido como paradigma da ausncia. Esse para-digma se sustentaria
na ideia segundo a qual setores populares no Brasil, em fla-grante
contraste com os povos de outros paradigmas nacionais, em especial
oseuropeus, seriam bestializados, passivos e pouco afeitos
sociabilidade e organizao. Em uma perspectiva contrria, estudos
historiogrficos orientadospelo paradigma da agncia analisam
concretamente as negociaes, escolhase decises que os segmentos
subalternos estabeleceram tanto entre eles mes-mos, quanto frente
aos poderes constitudos (Chalhoub & Silva 2009). Mais doque
julgar se o nosso povo seria naturalmente propcio ao insolidarismo
so-cial, como estabelecido classicamente por Oliveira Vianna, em
PopulaesMeridionais do Brasil (1920), e seguido por outros
estudiosos nas dcadasseguintes, objetiva-se inquirir acerca das
redes sociais efetivamente estabe-lecidas pelos segmentos
subalternos.
Partindo dessa perspectiva possvel dizer que, assim como
destacado notpico anterior, esboos de esferas pblicas subalternas
podem ser encontradosno Brasil desde a Independncia do pas, ainda
que a consolidao das mesmastenha se processado no contexto da crise
do imprio e da escravido7. Conformedemonstrado por Ribeiro (2003),
ao contrrio de uma Independncia feitaplacidamente s margens do
Ipiranga, diversas manifestaes populares ocor-reram na Corte nesse
contexto, envolvendo, inclusive, a populao de cor.Prova dessa
movimentao foi o esforo das foras policiais poca no sentidode
explorar as ruas e as vielas atrs de papis e proclamaes incendirias
e deajuntamentos perigosos de negros. Alm de coibir panfletos
insidiosos epunir com rigor as desordens e os ajuntamentos,
buscava-se proibir o funcio-namento de tavernas, lojas e botequins
que continuassem abertos ao pblico emhoras indevidas, com o intuito
de impedir que aquele processo adquirisse umafeio radicalizada.
No contexto das revoltas regenciais, a luta poltica atingiu
nveis nunca an-tes alcanados, abrindo espao para que discursos
alternativos fossem formu-lados com maior sistematicidade nas
esferas pblicas subalternas. Nesse mo-mento de exploso da palavra
pblica (Morel 2003, p. 10) marcado poragitaes na Bahia (Sabinada,
de 1837 a 1838), Par (Cabanagem, de 1832 a1835), Rio Grande do Sul
(Farroupilha, de 1835 a 1845), Maranho (Balaiada,de 1838 a 1841) ,
a despeito das diferenas existentes e do grau de radicalismode cada
um, os movimentos contestatrios valorizaram as manifestaes pbli-cas
coletivas como forma legtima de ao poltica. Envolvendo pessoas
dasmais diversas camadas sociais, essa politizao das ruas
inclusive, mediantea mobilizao de panfletos e jornais animou a
resistncia construo deprojetos de cima para baixo e atuou como lcus
de exerccio da cidadania(Basile 2007, pp. 56-57).
Mesmo entre os escravos foi possvel a construo de redes de
sociabilidadee organizao coletiva. Muitas pginas j foram gastas e
ainda o sero no debatea respeito da resistncia escrava. abordagem
de Gilberto Freyre, em CasaGrande e Senzala que, segundo seus
crticos, suavizava as relaes entresenhores e escravos no Brasil
colonial, seguiram os estudos que procuravamenfatizar apenas a
rigidez e a violncia do regime escravista, demonstrando ocativo
somente como vtima passiva e objeto da ao dos senhores8. Por
outrolado, algumas pesquisas buscaram realar que somente atravs das
fugas, daviolncia contra os senhores e da formao de quilombos, que
os cativos
134 Fernando Perlatto
6 No sugiro que as esferaspblicas subalternas sejamsempre
virtuosas. Algumasdelas so explicitamenteantidemocrticas e
anti-igualitrias, e mesmo aquelascom intenes democrticas
eigualitrias eventualmentepraticam seus prprios modosde excluso
informal emarginalizao. Ainda assim,na medida em que so
esferaspblicas, eles ajudam aexpandir o espao discursivo.Em
princpio, assumpes queforam previamente excludasda contestao tero
de seragora publicamente discutidas.Em geral, a proliferao
dasesferas pblicas subalternassignifica uma ampliao dacontestao
discursiva, e isso uma coisa boa em sociedadesestratificadas
(Traduo doRevisor).
7 Caso desejemos retrocederno tempo para analisar espaosde
sociabilidade dossegmentos subalternos que,inclusive,
permaneceramexistindo no decorrer doperodo imperial,
poderamosdestacar a importncia dasirmandades religiosasconstitudas
pelos negros.Sobre esse tema, ver Reis(1997), Souza (2002) e
Borges(2005).
8 Entre os estudos queseguiram essa perspectiva,podemos destacar
as anlises
-
negariam a escravido. Alguns lderes dessas revoltas eram
transformados emheris e os pequenos mocambos ou revoltas
rapidamente sufocadas ou atmesmo a resistncia cotidiana eram
considerados de menor ou de quase ne-nhuma importncia histrica
(Gomes 2005).
Visando contestar a dicotomia destes estudos que colocavam de um
ladoZumbi dos Palmares o escravo que luta revolucionariamente
contra osistema e de outro Pai Joo o cativo submisso e conformado ,
surgiramnovas abordagens baseadas em profundas pesquisas empricas,
assim comodialogando com outros aportes tericos e metodolgicos, que
visavam reexa-minar e problematizar a resistncia escrava em
diferentes pticas. Esses estudosapontam para o fato de que os
escravos negociaram mais do que lutaramabertamente contra o sistema
(Reis & Silva 1989). Essas novas abordagens, quepassaram a
valorizar o escravo como um agente histrico, preocuparam-se
emevidenciar que antes de chegar ao Brasil essas pessoas possuam
uma histria euma cultura, que influenciaro decisivamente as relaes
estabelecidas entreeles, seus senhores e a sociedade (Priore &
Venncio 2004).
As pesquisas historiogrficas desenvolvidas nas ltimas trs dcadas
tmprocurando enfatizar os aspectos multifacetados da resistncia
negra durante aescravido, visando demonstrar de que forma os
cativos reelaboraram, reor-ganizaram e transformaram, sempre que
possvel, o universo em que viviam,desenvolvendo noes prprias sobre
o conceito de liberdade (Chalhoub 1990).As variadas formas de
resistncia escrava evidenciam que no somente rea-giam, mas que
agiam, enfrentando processos de lutas, conflitos e acomo-daes,
desenvolvendo uma contracultura fora da rbita da poltica formal,
quese valeu fundamentalmente da performance, nos termos de Gilroy
(2001).Embora os senhores procurassem controlar sistematicamente a
populaoescrava, os cativos buscavam modificar seus destinos,
alargando seus espaosem busca de autonomia dentro da escravido,
ampliando e reinventando asestratgias de resistncia, valendo-se
principalmente dos discursos ocultosem um momento no qual a crtica
aberta era demasiadamente arriscada.
Conforme destacamos no tpico anterior, sobretudo a partir das
dcadas de1870 e 1880, houve um aumento significativo da presso de
diferentes setoresda opinio pblica em favor da abolio da escravido.
Somado ao aumento daresistncia escrava, essas manifestaes
contriburam para a configurao deum contexto no qual discursos
ocultos e personagens outrora relegados sesferas pblicas
subalternas pudessem participar com maior fora dos embatesna esfera
pblica seletiva. Em seu estudo sobre associativismo na
AmricaLatina, Leonardo Avritzer chama a ateno para a criao, a
partir da dcada desessenta do sculo XIX, de diversos clubes
abolicionistas no Rio de Janeiro,Ouro Preto e Recife, os quais se
destacariam pela organizao de manifestaespblicas e pela utilizao da
imprensa para a realizao de discusses comcontedo moral na esfera
pblica (Avritzer 1997, p. 158). Contudo, Avritzerno explora de
forma mais sistemtica o impacto desse movimento para aconstituio da
esfera pblica no pas. Em estudos recentes, Angela Alonsoparte de
hiptese diferenciada, sustentando a importncia das mais de
duzentasassociaes abolicionistas que foram constitudas desde o
incio da campanhaantiescravista at 1888 no apenas no sentido de
transformar a agenda abolicio-nista em um tema do debate pblico,
mas em trazer para a vida poltica outsid-ers polticos, como
ex-escravos, mulheres e, at mesmo, crianas, expandindo,dessa
maneira, tanto o pblico quanto o espectro de agentes sociais
praticantesda poltica (Alonso 2011, p. 189).
Contudo, importa destacar que, findo o processo de Abolio, os
ex-escra-vos, libertos por alforria, ingnuos (nascidos no ps-1871)
e a populao delivres e pobres, em geral, tiveram que lidar com uma
nova etapa da violncia
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
135
da chamada escola paulistade sociologia, especialmenteos estudos
de Cardoso (1962)e Ianni (1978).
-
fsica e simblica, forando-os a encontrar novas performances
habilidosas deresistncia e manifestao. Nesse novo contexto, os
setores subalternos tiveramque, atravs da conquista, do
convencimento e da contnua produo de inter-pretaes, buscar espaos
por meio dos quais fosse possvel resistir ao projetodisciplinar
construdo na esfera pblica seletiva que instituiu juridicamente
afigura do cidado. Essa resistncia, por sua vez, longe de
constituir exemplode crtica social envolta num discurso poltico
nico, esteve mais presente emsituaes aparentemente triviais,
experimentadas em todos os momentos emque esteve em jogo o poder do
exerccio da igualdade para homens e mulheresmarcados por origem
social ou cor (Cunha & Gomes 2007, p. 14).
A primeira quinzena republicana, que vai de 1889 at a Revolta da
Vacinaem 1904, testemunhou a busca das esferas pblicas subalternas
no sentido de semanifestarem com mais nfase, sobretudo durante o
perodo jacobino quedurou at 1897, marcado por assassinatos
polticos, golpes de Estado, revoltaspopulares, greves, rebelies
militares, guerras civis, com elevada participaopopular. Apesar
disso, a paz oligrquica inaugurada a partir do governo Cam-pos
Sales (1898-1902) promoveu a verticalizao da ordem poltica atravs
daexcluso do demos e do controle sobre a dinmica legislativa e
sobre a geraode aes coletivas legtimas (Lessa 1999), consolidando o
regime mediante oalijamento da participao popular. Conforme
destacado por Jos Murilo deCarvalho, organizar um governo
republicano vivel significava afastar-se dademocracia (Carvalho
2001, p. 62);
No obstante as dificuldades advindas da violncia vertical e
horizontal esta ltima relacionada ao reduzido mercado de trabalho e
aos conflitos exis-tentes entre os operrios, principalmente
brasileiros e imigrantes (Chalhoub2001) , o movimento operrio, que
comeava a se organizar nesse perodo,logrou criar espaos por meio
dos quais pudesse se manifestar. Antes dos anos1920, no havia
propriamente uma cultura operria, mas sim culturas mili-tantes, em
particular a dos anarquistas, que se pretendiam alternativas
culturadominante (Batalha 2004, p. 99). Alis, ao contrrio do que
alguns estudosprocuraram evidenciar e do que a memria varguista
tentou construir, o movi-mento operrio no se constituiu a partir de
1930. Alm da ecloso de greves, dacriao de sindicatos, sobretudo por
ofcio, federaes e confederaes, darealizao de congressos e
encontros, havia uma vida popular ativa, inclusivecom a organizao
de jornais, panfletos e manifestos, ainda que efmeros, quebuscavam
disputar a opinio entre o reduzido nmero de trabalhadores
(Batalha2000). A ttulo de exemplo, basta observar a proliferao de
jornais anarquistasnesse perodo (Carvalho 1987, pp. 56-58),
constituindo esferas pblicas subal-ternas que buscavam, mesmo em
uma cultura marcada pela violncia vertical ehorizontal, difundir
suas ideias e mobilizar os trabalhadores. Nos momentos demaior
mobilizao, como as greves de 1902-1903, 1906-1907, 1917-1919 ou
omovimento contra a carestia de vida de 1913, as aes coletivas
transcendiamos interesses corporativos, envolvendo muito mais gente
do que o nmerorestrito de trabalhadores (Batalha 2003, pp.
172-173). Nessas ocasies, osmovimentos foram duramente reprimidos
pelas foras da ordem. Assim comoevidenciado no episdio da Revolta
da Vacina (1904), cuja represso brutal eindiscriminada buscou
eliminar da cidade todo o excedente humano, poten-cialmente
turbulento (Sevcenko 1993, p. 70), qualquer tentativa de organi-zao
popular implicava em intensa violncia vertical9.
Enquanto a grande maioria da populao permanecia alijada de
espaosinstitucionalizados de organizao e do acesso esfera pblica
seletiva, umapequena parte procurava se manifestar publicamente
atravs de queixas emjornais relativas segurana, qualidade dos
servios pblicos urbanos e scondies de vida (Silva 1988) e/ou
recorrendo ao poder Judicirio no apenaspara reagir contra a
represso, mas para reivindicar direitos novos ou pretritos
136 Fernando Perlatto
9 Outra situao exemplar derepresso a um movimentopopular foi
aquele verificadoquando da Revolta da Chibata,que ocorreu no Rio de
Janeiroentre os dias 23 e 26 denovembro de 1910.
-
considerados legtimos (Ribeiro 2009), ao passo que outra
encontrava nasdiversas associaes existentes espaos nos quais
pudessem assegurar umamparo atravs da proteo frente doena, velhice,
ao desemprego e scondies adversas ligadas morte de um familiar. Alm
disso, muitas dessasassociaes funcionavam como espaos de lazer e
solidariedade, bem comocontribuam para o reforo e ressignificao de
identidades coletivas, funcio-nando como instrumentos facilitadores
do processo de construo de cidadaniae como instrumentos de
pedagogia poltica (Viscardi & Jesus 2007).
Contrariando diversas anlises, diferentes pesquisas
historiogrficas recen-tes vm procurando demonstrar que, desde o
Imprio, se consolidou uma ricavida associativa entre os setores
populares, possibilitando a construo deesferas pblicas subalternas.
Esse processo, contudo, era controlado pelasforas da ordem e nem
sempre o processo de obteno da permisso para ofuncionamento dessas
associaes era tranquilo, sobretudo quando se tratavamde organizaes
coletivas de negros (Batalha 1999; Chalhoub 2007; Jesus2007). Na
Primeira Repblica, em um contexto de afirmao de uma
ideologialiberal, que convivia com uma sociedade civil ainda muito
fragmentada, ofenmeno associativo se ampliou de maneira
significativa, sendo criadasdiversas associaes no apenas de ajuda
mtua, mas tambm tnicas, culturaise recreativas (Carvalho 1987, pp.
143-145; Batalha 2004).
Os anos 1920 e 1930 testemunharam processos de transformao
nosespaos de sociabilidade dos setores subalternos, em geral, e dos
trabalhadores,em particular, impulsionados pelo aceleramento da
urbanizao e da indus-trializao, que estimularam a entrada de novos
atores e interesses na esferapblica seletiva, sobretudo devido
ampliao do acesso educao. A ttulode exemplo, basta observar que em
1922 foi fundado o Partido ComunistaBrasileiro (PCB), que a
despeito de ser significativamente constitudo porsegmentos da
classe mdia, representava uma primeira tentativa dos
segmentospopulares de se organizarem partidariamente para intervir
na esfera pblica.Tambm nesse contexto diversos movimentos de
minorias comearam a seorganizar, pressionando a esfera pblica
seletiva com suas reivindicaes. Nosanos 1930, aps mobilizao por
parte da imprensa negra, foi criada a FrenteNegra Brasileira,
movimento social que se transformou em partido poltico,para ser
extinto em 1937, com o Estado Novo (Guimares 2004, p. 274)10.
Almdisso, a presso das mulheres por uma participao mais efetiva na
esferapblica tambm comear a ganhar contornos mais claros a partir
desse contex-to. Nos anos subsequentes, alternando momentos de
avanos e retrocessos, omovimento feminista lograr consolidar
esferas pblicas subalternas capazes detecer discursos alternativos
ao status quo (Pinto 2003).
No h como deslocar a anlise da reorganizao das esferas
pblicassubalternas a partir da dcada de 1930 sem que se tome em
conta a relaocontraditria de incluso e represso, estabelecida pelo
Governo Vargas e osgovernos que o seguiram at 1964, sobretudo
devido s relaes heternomasestabelecidas entre eles e o movimento
operrio que ento se fortalecia. Duranteanos, as relaes entre esses
governos e os trabalhadores foram analisadas sob achave explicativa
do conceito de populismo que, em linhas gerais, traziaconsigo a
ideia de uma poltica de massas, sob a liderana de um lder
caris-mtico, que agregava para dentro do Estado o movimento operrio
organizado,implicando, de um lado, em pequenos benefcios aos
trabalhadores, e por outro,na cooptao dos mesmos pelo regime ento
em vigor, impedindo que ostrabalhadores adquirissem conscincia e
sentimento de classe (Weffort 1973).Nos ltimos anos, contudo, a
interpretao populista tem sido alvo constantede crticas e revises.
Diversos estudos vm sendo desenvolvidos, questionandoa pertinncia
da utilizao do termo populismo para compreenso desseperodo da
histria brasileira, recusando-se a noo de uma posio poltica
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
137
10 Aps o fim do EstadoNovo, haver umrenascimento dasorganizaes
negras, comdestaque para a Unio dosHomens de Cor (UHC),
grupofundado em Porto Alegre em1943 e que cinco anos maistarde se
ramificou por maisdez estados da Federaomediante a mobilizao
deperidicos da imprensa negra(Silva 2003). Variados estudosrecentes
vm procurandodestacar a importncia doprotesto negro no decorrerdo
sculo XX, queculminaram nas diversasconquistas simblicas junto
aopoder institucional realizadasnos ltimos anos (Rios 2012).
-
passiva dos trabalhadores e destacando sua atuao como sujeitos,
em per-manente interlocuo com o Estado, que embora fosse marcada
por uma relaoassimtrica, no se constitua somente pela mera represso
e cooptao. A ideiade pacto trabalhista visa alcanar justamente o
objetivo de evidenciar queembora desiguais, as relaes entre Estado
e classe trabalhadora no erammarcadas exclusivamente pelo predomnio
total do primeiro sobre a passi-vidade da segunda (Gomes 1988;
Ferreira 2001).
Dessa maneira, as pesquisas passaram a valorizar a atuao dos
segmentospopulares como agentes desse processo, que buscavam, nos
meandros dosistema autoritrio, encontrar maneiras de conseguir
benefcios concretos e, sepossvel, construir esferas pblicas
subalternas capazes de questionar a ordemem questo. O processo de
fortalecimento das esferas pblicas subalternas tevenovo nimo
principalmente a partir do incio dos anos 1950 e 1960,
quandodiversos movimentos sociais em constituio passaram a
pressionar cada vezmais a esfera pblica seletiva para promover
reformas estruturais profundas, in-clusive contando com a
participao dos trabalhadores do mundo agrriomediante a organizao
das Ligas Camponesas e com a difuso do sindicalismorural. O golpe
militar de 1964 veio interromper esse andamento e constituiu-secomo
um interregno de perseguio, censura e represso a quaisquer
tentativasde organizao popular.
O perodo da ditadura militar foi uma poca por excelncia da
constituiode discursos ocultos, na formulao de Scott (2003) que,
devido represso,buscavam expressar principalmente por meios
informais sua oposio em ummomento no qual a crtica aberta era
demasiado arriscada. Aquele mundo que,aparentemente, comportava-se
de maneira submissa diante daquele contexto deviolncia
institucionalizada, movia-se por meio de performances habilidosas
deresistncia na luta pelo reestabelecimento do Estado de Direito.
Foi justamentea partir desses discursos ocultos, tornados aos
poucos falas pblicas, quecomearam a se constiturem esferas pblicas
subalternas pujantes e contes-tatrias da ordem. O perodo de
redemocratizao foi marcado pela emergnciade novos atores que
buscava pressionar a esfera pblica seletiva para fazer ouvirsuas
vozes e pressionar pela consecuo de seus interesses (Sader
1995).
A mobilizao de diversos setores da sociedade civil como a Ordem
dosAdvogados do Brasil (OAB), a Associao Brasileira de Imprensa
(ABI), aSociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC),
alguns setores daIgreja Catlica, instituies cientficas pblicas e
privadas, assim como movi-mentos de minorias no decorrer destes
anos teve como smbolo principal asreivindicaes dos metalrgicos no
ABC paulista, que desembocou na criaodo Partido dos Trabalhadores
(PT) e da Central nica dos Trabalhadores(CUT). Essa movimentao
evidencia o grau de organizao da sociedadebrasileira e dos
movimentos sociais, que desejavam influir decisivamente noprocesso
de construo da nova democracia. O aparecimento de novos movi-mentos
sociais ligados s mulheres, aos negros, s causas ambientais,
reforma agrria e urbana , vitalizando a infraestrutura comunicativa
do mundoda vida, desencadeou uma ampla discusso de temas at ento no
proble-matizados, tornando-os questes de relevncia social e
passveis, por conse-guinte, de interveno poltica (Costa 2002).
guisa de concluso desta seo, convm destacar que, no decorrer
dahistria brasileira, a msica e a religio talvez tenham sido as
principais formasde expresso e sociabilidade dos setores populares
na busca pela construo deesferas pblicas subalternas. Durante o
perodo imperial, por exemplo, paralela-mente s festas oficiais
organizadas pela realeza, havia uma profuso de festaspopulares,
como as cavalhadas, congadas, batuques, folia de Reis efesta do
Divino, que tinham como palco a rea central da cidade (Schwarcz
138 Fernando Perlatto
-
1998, pp. 247-278). As prticas musicais no decorrer da histria
brasileira fossem elas organizadas em senzalas, quilombos, rodas de
samba, sedes dassociedades carnavalescas, sales de bailes populares
ou teatro de revistas faziam parte da vida, do lazer e das demandas
polticas de setores populares e,embora muitas das suas modinhas,
lundus, sambas, msicas de protesto, rap,hip hop, funk etc. tenham
sido alvo de represso, as canes produzidas pelossubalternos
irreverentes, obscenas ou graciosas lograram alcanar osespaos da
esfera pblica seletiva11.
Em relao religio, a despeito de no colocarem em cheque a
institu-cionalidade oficial, os setores subalternos a interpretaram
de maneira prpria,apropriando-se dos smbolos e crenas de acordo com
suas experincias enecessidades, mesclando-os com outras formas no
necessariamente oficiaispara o exerccio da religio. Houve, no
decorrer da histria, uma permanentetenso entre o catolicismo da
hierarquia eclesistica e o catolicismo popular,assim como no
interior destes, revelando a pluralidade de possibilidades
deapropriao existentes. Essa sociabilidade, portanto, no era
organizada pelainstitucionalidade oficial catlica, embora essa
fornecesse o arsenal interpre-tativo sobre o qual o mundo popular
edificava novas interpretaes. Trata-se,portanto, de uma
religiosidade aberta, em constante movimento e criao, queenvolve
rezadores, curandeiros, pais e mes-de-santo, benzedeiras etc. e
supeuma vida comunitria ativa. As festas e a profuso de irmandades
e associaesreligiosas revelam um mundo popular que se associava e
continua se associan-do, lendo de maneira criativa as tradies, que
tentam regular essas mani-festaes12.
Dessa forma, possvel perceber que, no obstante a existncia da
violnciavertical e horizontal s quais os setores subalternos
estiveram submetidos nodecorrer da histria brasileira, eles
buscavam se organizar por diferentes meiose de diversas formas,
seja para resistir, seja para criar novos mundos alterna-tivos
quela ordem repressora, pressionando, de diversas maneiras, a
esferapblica seletiva. Os populares possuam noes prprias de justia
e, quandoenvolvidos em situaes de conflito, seguiam rituais de
conduta que mostravamapego a valores muitas vezes opostos queles
prezados pelas classes domi-nantes (Chalhoub 2001, p. 209). Da, a
permanente postura repressiva esuspeita dos segmentos dominantes
diante de possveis manifestaes dessasesferas pblicas
subalternas.
V. Concluses
Conforme discutiu-se no presente artigo, desde o comeo do sculo
XIX, aolado das duas instituies fundamentais da modernidade, quais
sejam, o Estadoe o mercado, foi construda no Brasil uma esfera
pblica, ainda que a forma desua configurao tenha ocorrido de
maneira seletiva. Pari passu a esse pro-cesso, houve a construo de
esferas pblicas subalternas que procuraramresistir de diferentes
maneiras aos discursos hegemnicos, sobretudo por meiode
performances e falas ocultas, embora tenham ocorrido momentos
nosquais elas tenham se tornado discursos pblicos, adquirindo mais
fora paradisputar vises de mundo com aqueles formulados na esfera
pblica seletiva.
A percepo da existncia dessas esferas pblicas demanda no apenas
umolhar histrico mais acurado, mas um movimento no sentido de
perceber outrasformas de manifestaes como legtimas para a
configurao de esferas pbli-cas que no se prendam ao paradigma
organizacional do mundo europeu ounorte-americano13. Sobretudo
quando se analisa a dinmica das esferas pblicassubalternas, deve-se
ter em mente que formas de organizao e associativismono Brasil no
foram as mesmas do modelo classista dos padres europeus, eos
discursos mobilizados na esfera pblica no adotaram
necessariamente
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
139
11 Para uma discusso sobreesses aspectos, vale consultarvrios
dos artigos contidos nostrs volumes da coleoDecantando a Repblica.
Uminventrio histrico e polticoda cano popular modernabrasileira
(Eisenberg,Cavalcante & Starling 2004).
12 Para uma discusso sobre arelao entre religio e esferapblica
no Brasil, ver Montero(2006).
13 Alguns trabalhos vmprocurando, nos ltimos anos,chamar a ateno
para anecessidade de se pesquisar amodernidade no Brasil de
-
padres crticos racionais centrados na dinmica dos interesses,
mas assumi-ram, diferentemente, mecanismos mais expressivistas,
carnavalescos e ldi-cos, muito mais ancorados na emoo, nos
sentimentos, no humor, na ironia ena pardia do que nas palavras de
ordem prontas e bem formuladas. Nessesentido, essa perspectiva de
pensar os discursos subalternos a partir de lgicasdistintas do
mundo europeu estabelece um dilogo direto com os
trabalhosproduzidos em torno do grupo dos Subaltern Studies, por
autores como GayatriSpivak, Ranajit Guha, Dipesh Chakrabarty e
Partha Chatterjee que, em dilogodireto com as formulaes de Gramsci,
contribuem para lanar luz sobre novaspossibilidades de investigao
em torno dos pblicos subalternos14.
Talvez um dos principais mritos de Gilberto Freyre (1990) tenha
sidojustamente o de perceber o carter solidrio dessa sociabilidade
popular, herda-da dos quilombos e atualizada pelos mocambos,
marcada pela miscigenao epela pluralidade, que permitiria a ns,
inclusive, um ingresso distinto moder-nidade. A importncia da
cultura popular, nas suas variadas expresses emnossa vida nacional
atuou como o mdium privilegiado de reproduo ereinveno da linguagem
dos sentimentos, com sua ambio de reabrir o mundo potncia da
multido (Barboza Filho 2008, pp. 33-34). Observada pelaslentes da
linguagem dos sentimentos, essa multido fez do improvvel a marcada
sua presena e o programa de sua potncia, atuando como combustvel de
umprocesso de democratizao, ainda que numa chave passiva15.
Diversos autores criticaram nos ltimos anos a ausncia de um
vaziomotivacional na teoria habermasiana, destacando o fato de seu
procedimentalis-mo ser demasiadamente racionalista (Ottmann 1992,
p. 65)16. As crticas maissistemticas, nesse sentido, do ponto de
vista terico, foram produzidas porautores associados ao chamado
comunitarismo, como Charles Taylor, MichaelSandel, Alasdair
MacIntyre e Michael Walzer. A despeito das diferenasexistentes em
seus trabalhos, os comunitaristas criticaram o
procedimentalismoracionalista, universalista e deontolgico presente
no apenas nos trabalhos deHabermas, mas tambm de John Rawls, que
desconsideraria a importncia dosvalores e configuraes morais
historicamente partilhados de uma comunidadepara se pensar
normativamente questes de justia e democracia17.
Rubem Barboza Filho estabelece uma crtica pertinente ao modelo
dedemocracia deliberativa habermasiano ao enfatizar que no obstante
ele con-temple as exigncias de uma razo bem compreendida, recusando
a inevitabili-dade de sujeio ao interesse egosta e ao clculo
estratgico, ele incorporaapenas parcialmente o sentimento bem
compreendido, isto , os valores, queseriam elementos fundamentais
para pensar analiticamente e normativamenteformas de vida
democrticas. Nesse sentido, a formulao habermasiana tornasecundria
a importncia dos processos expressivistas e dos sentimentos paraa
construo da democracia (Barboza Filho 2003)18. No caso do Brasil,
formascada vez mais aperfeioadas de organizao democrtica s podero
ser conso-lidadas caso sejam acompanhadas de uma vontade ou de um
sentimento dedemocracia, que reinvente a nossa tradio
expressivista, presente de maneiraintensa na nossa cultura popular,
em vez da sua substituio simplista pelamatriz utilitarista do
liberalismo19.
Ao estabelecer um paralelo comparativo entre as obras de
Habermas eBakhtin, Gardiner (2004) aponta para o fato de o primeiro
concentrar suaateno em uma forma de racionalidade abstrata,
distante das situaes da vidacotidiana. Dessa forma, separando as
razes morais das consideraes sobrejustia e colocando no primeiro
plano as formas de reivindicao de validade,Habermas teria dedicado
pouca ateno ao humor, ironia e pardia, idea-lizando o ato de fala
como uma situao de pureza. Bakhtin, ao contrrio, semcair no
relativismo, colocar-se-ia de maneira crtica ao universalismo
abstrato
140 Fernando Perlatto
modo a superar modelos quetomam a ideia demodernidade a partir
de umreferencial nico, e que tmcomo corolrio a avaliaoda
modernidade brasileiraassociada s ideias deausncia
einautenticidade. Para umadiscusso terica sobre esseaspecto, ver
Tavolaro(2005).14 A obra de Spivak (1988),em especial, inspirada
pelaexperincia indiana, abre umcampo importante deinvestigao sobre
estespblicos nas periferias aoproblematizar a ideiasegundo a qual
um sujeito,como o movimento operrio,seria o portador do
discursosubalterno. Para a autora, aexperincia perifrica apontapara
a heterogeneidade devozes que constroem suasfalas e
subjetividadesprecrias em contextosdiferenciados do
paradigmaeuropeu.15 A despeito dereafirmamos o fato dasesferas
pblicas subalternasno serem necessariamentedemocrticas e
igualitrias,reproduzindo padres dehierarquia inclusive, porestarem
inseridos em umasociedade que possui umacultura poltica
fortementeautoritria , dar voz a elesimplica na expanso doespao
discursivo,permitindo conferir primaziaao princpio de
integraosocial e da solidariedade, apartir da perspectiva
dosprprios participantes.16 Habermas (1990) criticaRousseau pelo
fato deste, aoacreditar que a virtude cvicados cidados
individuaisproporcionar per se aconstituio de um conjuntode cidados
orientados parao bem comum, darpreferncia mais aoconsenso dos
coraes doque aos argumentosracionais, desejando ele,
porconsequncia, umademocracia sem debatepblico. A moralidade
queRousseau advogava queresidisse nas motivaes evirtudes dos
indivduosdeveria estar, segundoHabermas, ancorada noprprio
processocomunicativo, operado no
-
kantiano, focalizando o fazer prtico dirio e as possibilidades
de transformaoe mudanas de significados em contextos concretos
diferenciados. Essa percep-o de Bakhtin pode ser articulada com o
debate sobre as esferas pblicassubalternas no Brasil, posta a sua
valorizao da pluralidade de vozes existentesno mundo pblico que,
apesar de combinarem consentimento e resistncia,questionam e
subvertem a ordem a todo o momento, por meio de
estratgiascarnavalescas, marcadas pela inventividade e pela
criatividade.
Nesse sentido que se coloca a tarefa da construo de estruturas
especficasde captao dos interesses e pblicos subalternos, no apenas
mediante a foraexpressiva dos argumentos, mas tambm das
performances, da linguagem dossentimentos e das formas no verbais
de comunicao. As expresses culturais,contudo, importante dizer, no
se apresentam em sua concretude como projetopoltico, devendo, para
tanto, serem apropriadas por grupos sociais mais am-plos, que as
reinterpretaro e as orientaro politicamente (Ortiz 1986, p.
142).Conforme destacado pelo prprio Habermas, a soberania do povo,
diludacomunicativamente, no pode impor-se apenas atravs de
discursos pblicosinformais para gerar poder poltico, devendo sua
influncia abranger tambm asdeliberaes democrticas da formao da
opinio e da vontade, assumindo aforma autorizada (Habermas 1997, p.
105). O desafio que se coloca, portanto,relaciona-se necessidade da
conexo das instituies polticas com essasesferas pblicas
subalternas, de modo a converter suas potencialidades
organi-zativas em uma verdadeira poltica de transformao do pas.
Fernando Perlatto ([email protected]) Doutor em Sociologia
pelo Instituto de Estudos Sociais e Polticos (IESP), daUniversidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Professor Adjunto do
Departamento de Histria e do Programa dePs-Graduao em Histria da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Referncias
Alencastro, L.F. 1997. Vida privada e ordem privada no Imprio.
In _____. Histria da vida privada no Brasil. Imprio: aCorte e a
modernidade nacional. V. 2. So Paulo: Companhia das Letras.
_____. 2001. Joaquim Nabuco Um estadista no Imprio. In L.D.
Mota, ed. Um banquete no trpico. Introduo ao Brasil.V. 1. So Paulo:
Editora Senac.
Alonso, A. 2011. Associativismo avant la lettre as sociedades
pela abolio da escravido no Brasil oitocentista.
Sociologias,13(28), pp. 166-199.
Arjomand, S. 2001. Perso-Indian Statecraft, Greek Political
Science and the Muslim Idea of Government.International Sociol-ogy,
16(3), pp. 455-473.
Asen, R.; Brower, D.C. 2001. Counterpublics and the State. New
York: State University of New York.Avritzer, L. 1996. A moralidade
da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrtica.
So Paulo/Belo
Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG._____. 1997. Um desenho
institucional para o novo associativismo. Lua Nova, 39, pp.
149-174._____. 2000. Entre o dilogo e a reflexividade: a
modernidade tardia e a mdia. In L. Avritzer; J.M. Domingues, eds.
Teoria so-
cial e modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Editora da
UFMG._____. 2002. Democracy and the Public Space in Latin America.
Princeton: Princeton University Press.
Seletividade da esfera pblica e esferas pblicas subalternas
141
interior da esfera pblica evoltado para a formao daopinio e da
vontade coletiva.17 Para uma discusso maissistemtica sobre esse
aspecto,ver Walzer (1990) e Taylor(2000).18 Em ensaios
recentes,sobretudo em seus estudossobre religio e esfera
pblica,embora venha admitindo apertinncia do papel dosvalores,
Habermas (2001)continua a aprision-los nosprocedimentos
enquantocondies prvias democracia, conferindo-lhesum papel
secundrio nodesenho normativo dodeliberacionismo.19 O brasilianista
RichardMorse (1988), em sua obra Oespelho de prspero, foi umdos
primeiros autores achamar a ateno para aspotencialidades
civilizatriasda opo ibrica com suasconotaes organicistas
ecomunitrias, quandocomparada com o mundoanglo-saxo, sobretudo por
suaporosidade diversidade dognero humano, o seu idealrousseauniano
de justia e davontade geral comoinstrumento poltico deconstruo de
identidade eemancipao, bem como porsua crena em uma realidadesocial
transcendente aoindivduo e a vitalidade doelemento ldico,
fundamentalpara o desenvolvimentocultural e a improvisaosocial.
-
Avritzer, L.; Costa, S. 2004. Teoria crtica, democracia e esfera
pblica: concepes e usos na Amrica Latina. Dados, 47(4),pp.
703-728.
Azevedo, C.M.M. 2003. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil,
uma histria comparada (sculo XIX). So Paulo: Anna-blume.
Baker, K.M. 1992. Defining the Public Sphere in Eighteenth
Century France: Variation on a theme by Habermas. In C.Calhoun, ed.
Habermas and the Public Sphere. London: MIT Press.
Barata, A.M. 2009. Do secreto ao pblico: espaos de sociabilidade
na Provncia de Minas Gerais (1822-1840). In J.M.Carvalho; L.M.B.P.
Neves, eds. Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, poltica e
liberdade. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira.
Barbosa, S.M. 2007. Panfletos vendidos como canela: anotaes em
torno do debate poltico nos anos 1860. In J.M.Carvalho, ed. Nao e
Cidadania no Imprio: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira.
Barboza Filho, R. 2003. Sentimento de democracia. Lua Nova, 59,
pp. 5-49._____. 2008. As linguagens da democracia. Revista
Brasileira de Cincias Sociais, 23(67), pp. 15-37.Basile, M. 2000.
Anarquistas, rusguentos e demagogos: os liberais exaltados e a
formao da esfera pblica na Corte imperial
(1829-1834). Rio de Janeiro. Dissertao (Mestrado em Histria).
Universidade Federal do Rio de Janeiro._____. 2007. Revolta e
cidadania na Corte regencial. Tempo, 11(22), pp. 31-57.Batalha, C.
1999. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do sculo XIX:
algumas reflexes em torno da formao da
classe operria. Cadernos AEL, 6(10-11), pp. 41-68._____. 2000. O
movimento operrio na Primeira Repblica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor._____. 2003. Formao da classe operria e projetos de
identidade coletiva. In J. Ferreira; L. Neves, eds. O Brasil
Republicano.
V. 1. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira._____. 2004. Cultura
associativa no Rio de Janeiro da Primeira Repblica. In C. Batalha;
F. Silva; A. Fortes, eds. Culturas de
classe. Campinas: Editora da Unicamp.Borges, C.M. 2005. Escravos
e Libertos nas Irmandades do Rosrio: devoo e solidariedade Minas
Gerais sculos XVIII e
XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF.Boschi, R.R.; Diniz, E. 1991,
O corporativismo na construo do espao pblico. In R. Boschi, ed.
Corporativismo e
desigualdade: a construo do espao pblico no Brasil. Rio de
Janeiro: Rio Fundo Editora.Calhoun, C. 1992. Introduction: Habermas
and the public sphere. In _____, ed. Habermas and the Public
Sphere. London: MIT
Press._____. 2010. The Public Sphere