Secos & Molhados: metfora, ambivalncia e performanceJos
Roberto ZanDoutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
Pro-fessordoDepartamentodeMsicaedoProgramadePs-graduaoemMsicada
Unicamp. [email protected] do LP Secos & Molhados
(1973).ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
8Corriaoanode1973quandoasemissorasderdiopassarama veicular msicas
de um grupo ainda desconhecido, que caram imediata-mente no gosto
do pblico. Era o Secos & Molhados. Ao lado de sucessos
memorveis que marcaram aquele ano, como Estcio Holy Estcio, de
LuizMelodia,Ourodetolo,deRaulSeixaseFolhassecas,compo-siodeNelsonCavaquinhoeGuilhermedeBritointerpretadaporElis
Regina, trs gravaes do novo conjunto ocuparam posies de destaque
nas paradas: O vira, de Joo Ricardo e Luhli, Rosa de Hiroshima, de
Vinicius de Moraes e Gerson Conrad, e Sangue latino, de Joo Ricardo
e Paulinho Mendona.1 Essas canes fazem parte do primeiro LP do
grupo lanado pela gravadora Continental. Com um repertrio que
combina ele-mentos do pop rock, lirismo de baladas folk e letras
que transitavam do tom alegre, debochado, brincalho crtica social e
poltica, os novos artistas
venderammilharesdediscosnumcurtoespaodetempo,tornando-se um dos
maiores fenmenos comerciais da indstria fonogrca brasileira.
Suasapresentaesaovivoerammarcadaspeloforteapelovisual,com seus
integrantes usando fantasias, maquiagens carregadas e gestualidade
com traos andrgenos, lembrando a chamada esttica gliter, em voga no
cenrio da msica pop internacional daqueles anos. Tudo isso, parecia
chocar e, ao mesmo tempo, seduzir a plateia. As aparies nas
emissoras Secos & Molhados: metfora, ambivalncia e
performance*Secos & Molhados: metaphor, ambivalence, and
performanceJos Roberto ZanresumoEsteartigotrazalgumasreflexes
sobreaproduodogrupoSecos& Molhados,nosanosde1973e1974,
caracterizadaporformaspeculiares deenunciaodacano.Oobjetivo
dotextocompreenderossentidos das escolhas e da performance da banda
num contexto poltico e cultural marca-do pela vigncia do regime
ditatorial, pelo desenvolvimento da indstria cul-tural e por uma
nova congurao do mercado de bens simblicos no Brasil.
palavras-chave: msica popular; per-formance; indstria
fonogrca.abstractThisarticlebringssomereexionsabout the production
of the group Secos & Mo-lhados, back in the years of 1973 and
1974, characterizedbypeculiarenunciation
formsofthesong.Thetextsobjectiveis to understand the meanings of
the bands
choicesandtheirperformancesinapoli-ticalandculturalcontextmarkedbythe
dictactorial regime, the cultural industry development and by a new
market congu-ration of symbolic goods in
Brazil.keywords:popularmusic;performance; music industry.* Este
artigo a verso amplia-dadotextoapresentadono
VIICongressodaIASPM-LA, realizadoemHavanaCuba,
em2007,sobottuloSecos &Molhados:onovosenti-dodaencenaodacano.
Agradeo aos amigos Antonio RafaeldosSantoseAdelcio Camilo Machado
pelos toques musicais. 1 Cf.SEVERIANO,Jairo& HOMEMDEMELLO,Zuza.
Acanonotempo:85anosde msicas brasileiras. So Paulo: Editora 34,
1998, vol. 2, p. 191. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27,
jul.-dez. 2013
9ArtigodetelevisodesdeolanamentodoLPgarantiamelevadosndicesde
audincia.EspecialmenteasperformancesdovocalistaNeyMatogros-so,comsuasfantasiasexticas,mscaras,maquiagempesada,tangase
requebrosexagerados,tudoissosomadoaoseutimbrevocaldecontra tenor
com entoao ao estilo das cantoras do rdio, construam um clima de
ambivalncias e metforas. A formao do grupo se deu num contexto
histrico marcado pela vigncia do regime ditatorial militar no pas
na sua fase mais violenta (anos imediatamente posteriores decretao
do Ato Institucional no. 5); pelo recrudescimento da prtica da
censura; por elevadas taxas de crescimento do produto interno bruto
combinadas com a forte concentrao da renda e arrocho salarial; e
pelo desenvolvimento e racionalizao da indstria cultural. Nesse
perodo, o ramo fonogrco atraiu novos investimentos, o que resultou
no aumento expressivo a produo de msica gravada.2 As empresas se
modernizaram e construram grandes estdios de gravao
comnovosequipamentos,reduzindoadefasagemtecnolgicaentrea
produofonogrcabrasileiraeadospasesdesenvolvidos.Oavano da
racionalizao dos modos de gesto das indstrias de bens simblicos
contribuiu para a superao da fase marcada por certa artesanalidade
que ascaracterizaraemdcadasanteriores.Nessecenrio,aprofundou-sea
segmentao do mercado de msica popular e tornaram-se mais eviden-tes
os sinais de mundializao da cultura, especialmente com o consumo
crescente de hists internacionais.3 Nesses anos foi se fechando
todo um ciclo de intensa participao cultural e poltica no Brasil
que se delineou a partir do governo nacional desenvolvimentista do
Juscelino Kubitshek e ganhou fora nos anos 60; um ciclo marcado por
uma profcua produo artstica diferenciada e muitas vezes conituosa
em diversos campos como msica, teatro, artes plsticas,
cinemaeliteratura,colocandonaordemdodiaquestesfundamentais
associadas s ideias de modernizao e revoluo brasileira. Sob o
impac-to do recrudescimento do regime no nal da dcada e de
ressonncias de movimentos culturais e polticos que abalavam pases
europeus e Estados Unidos, determinados segmentos da juventude
brasileira passaram a se identicar com uma produo simblica e um
estilo de vida associados contracultura, colocando em pauta as
temticas do corpo, da sexualida-de, da psicanlise, das drogas e
elegendo o rock como uma das formas de expresso. Esse gnero
musical, que nos anos anteriores fora estigmatiza-do como smbolo do
imperialismo cultural, se converteu em sinnimo de um novo
comportamento, de uma maneira libertria de encarar a prpria condio
moderna.4 Ao mesmo tempo, ganhava fora o culto marginali-dade como
forma de resistncia ao autoritarismo poltico e ao avano da
administrao da cultura. De certo modo, ser marginal, ou viver fora
do sistema, era uma espcie de resposta ou uma tomada de posio
frente s circunstncias impostas pelo regime ditatorial e por uma
indstria cultural fortemente integrada que restringia os espaos
para a interveno cultural e a criao artstica com perspectiva
crtica.5 Foinessecontextoque,noinciode1971,otrio,aindaamador,
formadoporJooRicardo,FredeAntnioCarlos(Pitoco),comeoua
seapresentarnacasadeespetculosKurtissoNegro,situadanoBixiga,
tradicional bairro bomio do centro da cidade de So Paulo. O
repertrio mesclava sonoridades de gneros musicais regionais
brasileiros e do pop 2 Ver ORTIZ, Renato. A moderna
tradiobrasileira.SoPaulo: Brasiliense, 1988, p. 133.3 Ver VICENTE,
Eduardo. Seg-mentaoeconsumo:apro-duofonogrficabrasileira 1965/1999.
ArtCultura: Revista deHistria,CulturaeArte. Uberlndia: Edufu, v.
10, n. 16, jan-jun. 2008, p. 104. 4 VerHOLLANDA,Heloisa
Buarque.Impressesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. So
Paulo: Brasiliense, 1981, p. 53-69.5 VerCOELHO,Frederico.Eu
brasileiroconfessominhaculpa meupecado:culturamarginal
noBrasildasdcadasde1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civiliza-o
Brasileira, 2010, p. 216-217.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27,
p. 7-27, jul.-dez. 2013 10internacional, com arranjos compostos a
partir de instrumentos como viola de 10 cordas, violo folk, gaita e
bong. Depois de alguns meses de relativo sucesso, Fred e Pitoco
deixaram o grupo e Joo Ricardo convidou dois ou-tros msicos para
recompor o trio: o violonista e compositor Gerson Conrad e o
vocalista Ney de Souza Pereira, que cou conhecido posteriormente
como Ney Matogrosso.Joo Ricardo, jornalista, msico e compositor,
foi o lder intelectual do grupo. De origem portuguesa, imigrou para
o Brasil ainda adolescente com o pai, o poeta e crtico Joo
Apolinrio, que foi obrigado a deixar seu pas por razes polticas.
Portugal, nessa poca (meados dos anos de 1960),
viviasobaditadurasalazarista.JooRicardoiniciouestudosmusicais
aindaemPortugalelogoseinteressoupelofolcloredasuaterra,pelos
Beatles e pela msica pop norte-americana. Em So Paulo, ampliou seus
conhecimentos no convvio com o vizinho e amigo Gerson Conrad. Como
compositor, se dedicou principalmente criao de letras de canes com
contedo social e musicalizao de poemas.Gerson Conrad comeou a se
interessar por msica ainda na infncia,
quandoiniciouseusestudosdevioloacompanhadospelaaudiode bossa nova,
jazz e pop rock. Instrumentista, compositor, arranjador e cantor.
Quando comeou a compor, juntamente com Joo Ricardo, suas principais
referncias eram The Beatles e o quarteto norte-americano Crosby,
Stills, Nash and Young, cuja sonoridade pode ser reconhecida em
algumas com-posies e arranjos do Secos & Molhados. Para
recompor o trio, Joo Ricardo procurava por um cantor de voz aguda
para os arranjos vocais. Sua amiga, a cantora e compositora Helosa
Orosco Borges da Fonseca, Luhli, que tambm atuou na casa Kurtisso
Ne-gro, lhe apresentou Ney de Souza Pereira que conhecera no Rio de
Janeiro. Ney, o mais velho do grupo, lho de militar e natural de
Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul. Nos anos 60, em
Braslia, tentou carreira de ator e cantou em coral. Mudou-se para o
Rio de Janeiro onde fez algumas pontas em peas de teatro e se
dedicou ao artesanato, assumindo um es-tilo de vida hippie. Em
1971, mudou-se para So Paulo a convite de Luhli
eJooRicardoparaintegraroSecos&Molhados.Duranteosmesesde ensaio,
garantiu a sobrevivncia com artesanato e pequenas atuaes em peas
teatrais infantis e no musical A viagem, uma adaptao de Os Lusadas
de Cames realizada por Carlos Queiroz Teles. Em dezembro de 1972, o
grupo comeou a se apresentar no palco da Casa de Badalao e Tdio, do
Teatro Ruth Escobar, em So Paulo. Denise Pires Vaz fala das
impresses que teve da apario do trio e, especialmente, do cantor:
surgia [no palco]
umaguraestranhacorpoerostopintadosdedouradoeostentando smbolos
aparentemente excludentes: um enorme bigode e uma grinalda na
cabea. A voz revelou-se outro susto: soava numa fronteira meio
inde-nida e surpreendia pela limpidez. A dana cheia de saltos e
contores, parecia liberar emoes do inconsciente.6 As fantasias,
mscaras e maquiagens carregadas que Ney de Souza Pereira (que
adotara o nome artstico de Ney Matogrosso) usava em suas
apresentaes, se tinham como nalidade preservar sua privacidade, ao
mesmo tempo deniam e xavam o estilo performtico do grupo.
AtemporadanaCasadeBadalaoeTdioteveenormesucesso. O espao
relativamente exguo era insuciente para um pblico cada vez maior
que se aglomerava na porta de entrada a cada espetculo. Estimulado
6 VAZ, Denise Pires. Ney Mato-grosso: um cara meio estranho. Rio de
Janeiro: Rio Fundo Edi-tora, 1992, p. 51.ArtCultura, Uberlndia, v.
15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 11Artigopelas reaes da platia, o
grupo, em especial Ney Matogrosso, se esmerava nasperformances.
Aotomarconhecimentodagranderepercussodesses eventos, a empresria e
atriz Ruth Escobar, proprietria do espao, foi as-sistir ao show e,
se dizendo chocada, proibiu que os rapazes continuassem a se
apresentar naquele local, alegando a presena de loucos e drogados
entreosfrequentadores.OprodutoreempresrioMoracydoVal,que j
acompanhava a trajetria do trio, procurou alternativas, promovendo
apresentaes em programas de televiso, clubes e em outros espaos da
cidade, especialmente no prestigiado Teatro Aquarius. Dentre os
eventos de lanamento e promoo do primeiro LP, o grupo fez uma breve
turn no Teatro Itlia, no centro de So Paulo, com enorme sucesso. O
depoimento do jornalista e crtico Joo Nunes nos d uma idia do
impacto que aquele espetculo provocava no pblico: Eu era
seminarista, com crise vocacional, de um respeitoso seminrio
presbiteriano de Campinas, quando assisti a um dos shows da
histrica temporada de duas sema-nas dos Secos & Molhados no
Teatro Itlia, em So Paulo. Sara do casamento de um irmo, em So
Paulo, regado a cerveja e ao incansvel rodar do disco do Secos
& Molhados na vitrola. Na noite daquele sbado, em vez de
retornar ao seminrio, como bem deveria fazer um bom seminarista
mesmo em crise de vocao -, rumei para o Teatro Itlia. Apliquei mal
o dinheiro dado por meu pai, porque se fosse um seminarista de bom
comportamento compraria livros teolgicos ou o gastaria em causas
mais nobres, mais teis e, claro, menos
mundanas....................................................................................................................................Na
minha memria, o palco e a platia do Teatro Itlia so pequenos. O
suciente para ver Ney Matogrosso rebolar feito cobra mal matada
muito perto de mim. E, no papel de seminarista presbiteriano, minha
reao foi de incmodo, de espanto e... de
deslumbre.Issofoiemsetembro.Emdezembro,abandoneioseminrio.Eaculpadeveser
creditada ao Secos & Molhados, pois desviou meus pensamentos
sos para desejos e sonhos demonacos.7O lbum que surpreendeu o
mercado fonogrcoEm maio de 1973, foram gravadas 13 canes que compem
o LP Secos & Molhados, sob o patrocnio da gravadora
Continental. O trabalho contou com a produo de Moracy do Val, a
direo musical de Joo Ricardo e direo artstica de Jlio Nagib. Os
arranjos foram assinados pela prpria banda, com exceo da faixa
Fala, cuja tarefa coube ao msico Z Rodrix.
OreforonosacompanhamentoscoubeainstrumentistascomoSrgio Rosadas nas
autas, John Flavin na guitarra e violo de 12 cordas, Willi
Verdaguer no baixo, Emilio Carreira ao piano e Marcelo Frias na
bateria e percusso. O produtor Moracy do Val, que dirigia um jornal
da Continen-tal e, portanto, tinha acesso a membros da diretoria da
empresa, foi quem encaminhou as negociaes para a produo do disco.
As gravaes foram
feitasnoEstdioPROVA,equipadocomquatrocanais,durantequinze dias, sem
grandes interferncias da equipe de produtores da empresa. A capa do
LP, composta a partir da arte fotogrca de Antonio Carlos
Rodri-gues, com lay-out de Dcio Duarte Ambrsio, mostra as cabeas
dos quatro msicos sobre bandejas dispostas numa mesa ao lado de
pes, garrafas de bebida, cebola, gros e lingias como se tudo
estivesse preparado para 7 NUNES, Joo. Quando o Brasil
sedescobriu.2003.Dispon-velem.Acesso em 10 jan. 2006.8 Na capa do
primeiro LP apa-recem as fotos de Joo Ricardo,
GersonConrad,NeyMato-grossoedobateristaMarcelo
Friasqueforaconvidadoase integrar ao grupo. Pouco tempo depois ele
abdicou do convite, deixou o conjunto e o Secos & Molhados
permaneceram como um trio. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p.
7-27, jul.-dez. 2013 12um banquete antropofgico8. O trabalho grco
cuidadoso e a riqueza de signicados da composio zeram com que mais
tarde o jornal Folha de S. Paulo a elegesse como a melhor capa de
LP de toda a histria da msica popular brasileira.9
Oinvestimentonaproduododiscoerapartedaestratgiada gravadora, at
ento fortemente identicada com os segmentos regional e sertanejo,
de atingir outras faixas de pblico, especialmente a de jovens
universitriosdeclassemdia. AlmdoSecos,outrosgruposeartistas
individuais como O Tero, Novos Baianos, Walter Franco e o Pessoal
do Cear, portadores de repertrios que transitavam pelas cenas do
rock e da
MPBprogressiva(adjetivousadopeloprodutorCarlosAlbertoSion) guravam
na lista de novos contratados.10 O disco foi lanado em agosto de
1973 no Teatro Aquarius, situado no mesmo bairro em que a banda se
formou, e vendeu mais de 300 mil cpias nos primeiros 60 dias.
Aparentemente a gravadora no estava preparada para atender a uma
demanda to grande. As mil e quinhentas cpias tiradas inicialmente
se esgotaram em poucos dias. Com a avalanche de pedidos das lojas,
a maior parte das prensas da fbrica foi ocupada exclusivamente para
a reproduo do LP e muitos discos de outros artistas que estavam
encalhados nas prateleiras foram recolhidos e derretidos para
suprir a falta de matria prima. Coube a Moracy do Val a organizao
dos eventos de lanamento do disco. Na condio de diretor do Teatro
Aquarius, garantiu o espao para os shows e, em seguida, promoveu a
breve, porm memorvel temporada no Teatro Itlia. Ao mesmo tempo,
agendou apresentaes do grupo em canais televisivos, especialmente
na Globo, que se projetava como a primei-ra grande rede nacional de
televiso. Em agosto daquele ano, a emissora inaugurava o programa
Fantstico o show da vida que ainda hoje obtm elevados ndices de
audincia no chamado horrio nobre das noites de domingo. Com o
formato de revista de variedades, o programa tornou-se um espao
estratgico e, portanto, altamente disputado para a promoo de
artistas da msica popular, o que exigia investimentos volumosos de
recursos das gravadoras para a divulgao dos novos lanamentos.
OsucessodoLPnofoipuxadoporumamsicaemparticular. Vrias das suas
canes tiveram presena constante nas programaes de
rdio.Mastalvezaquetenhaconquistadomaiorpopularidadefora,de fato, a
segunda faixa do lado A, uma composio de Joo Ricardo e Luli,
intitulada O vira. uma cano de melodia simples, apoiada nos trs
acordes fundamentais (tnica, dominante e subdominante) com
andamento de rock nroll. A guitarra eltrica, explorando timbres
agudos e distorcidos, faz um lick de blues na introduo, acompanhada
por bateria, piano e con-trabaixo eltrico em walking bass. A msica
faz aluso ao gnero popular
portugusdecantoedanaconhecidopelomesmonome,associado coreograa na
qual os pares, dispostos em las opostas, giram os corpos em 360
evitando mostrar as costas ao companheiro. Originalmente uma msica
em compasso 6/8 e acompanhada por cavaquinho, guitarra por-tuguesa
e tambor.11 Na composio do Secos & Molhados, a referncia ao
gnero folclrico ocorre na repetio da melodia aps o solo, quando h
uma mudana no padro rtmico e o acompanhamento incorpora o
acor-deom, criando uma sonoridade que lembra a de estilos musicais
regionais brasileiros, especialmente sulinos.9
VerRIBEIRO,LucioeSAN-CHES, Pedro Alexandre. Secos & Molhados
vence enquete da melhor capa de disco brasileira. Disponvel em .
Acesso em 08-09-2006.10VerBAIANA,AnaMariae SOUZA, Tarik de. Os ps
caeta-nistas. Jornal Opinio, n. 37, Rio de Janeiro: Enbia Ltda,
23-30 jul.de1973eMORELLI,Rita. Indstria fonogrca: um estudo
antropolgico. Campinas: Edi-tora da Unicamp, 1991, p.
78.11VerANDRADE,Mrio.Di-cionriomusicalbrasileiro.Belo
Horizonte/Braslia/SoPaulo: EditoraItatiaia,Ministrioda Cultura e
Edusp, 1989, p. 564.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27,
jul.-dez. 2013
13ArtigoAletracitagurasmticasdaculturapopularefaladesituaes
associadas a supersties como o gato preto cruzando a estrada ou o
risco depassardebaixodeescadas.Arefernciaaessascrendices,reforada
pelas citaes de personagens mitolgicos notvagos como sacis e fadas,
bem como a descrio do cenrio atravs dos versos: l no fundo azul/na
noite da oresta/a lua iluminou, constri um cenrio que prepara o
ou-vinte para o tema principal da composio que a metamorfose do
homem emlobisomem.Nesseponto,ocancionistajogacomaduplaconotao da
palavra vira: a de girar (girar o corpo de acordo com a coreograa
do gnero portugus) e a de transformao - Vira, vira ,vira homem
[...],vira, vira lobisomem. Mas a composio adquiriu signicados mais
amplos. As caractersticas musicais, com redundncias e clichs, e o
contedo aparen-temente brincalho e fantasioso da letra contriburam
para a comunicao fcil com um pblico amplo, at mesmo com o segmento
infantil. Porm, possivelmente em funo da performance do grupo, a
msica ganhou ou-tras conotaes. Para o jornalista e crtico Joo
Nunes, tratava-se de uma
espciederefernciametafricahomossexualidade,umaelegiagay
bem-humorada.12EJooSilvrioTrevisanfoimaisenfticoaoarmar que o
lobisomem, no caso, poderia ser, facilmente, uma irnica referncia a
esses annimos habitantes da grande cidade, os quais, passada a
meia-noite, deixam seu cansativo papel de abboras para se
transformarem em atrevidas cinderelas; nas boates gueis (sic), esse
sentido cou evidente: a cano se tornou quase um debochado hino das
bichas.13Essa dubiedade fez com que para alm da aparente de
ingenuidade
dacomposiohouvessealgomaiscontundente.Naquelesanos,osno-vos
movimentos sociais ensaiavam seus primeiros passos, reivindicando
direitos especcos de determinados grupos que se deniam a partir da
identicao tnica e de gnero. Neste caso, incluam-se as mobilizaes
pelosdireitosdoshomossexuais.Ora,numasociedadeimpregnadade valores
machistas e num contexto marcado pela vigncia do regime dita-torial
militar que, de dentre outras coisas, se respaldava numa moralidade
anacrnica, as bandeiras de luta dos homossexuais adquiriam um
sentido transgressor. De um modo geral, as faixas do LP apresentam
caractersticas mu-sicais muito prximas dos estilos das baladas pop
e do rock. So canes
commelodiassimples,compostasapartirdeencadeamentosrotineiros de
acordes naturais com instrumentao base de violes, guitarra,
con-trabaixoeltricoebateria.Flautas,tecladoseletrnicos,pianoepercus-so
complementam os acompanhamentos em algumas faixas. No canto,
destaca-seaatuaodeNeyMatogrosso,comseutimbrecaracterstico, que se
integra, em alguns momentos, a breves arranjos vocais. As letras,
muitas das quais so poemas musicados, contriburam para que o disco
semostrassepalatvelatmesmoparaopblicodosegmentocrticoe engajado
representado naquele perodo pela MPB. Oprimeirofonogramadolado
AacomposiodeJooRicardo e Paulinho Mendona, intitulada Sangue
Latino, que se soma a outras quatro canes com conotaes polticas e
sociais mais acentuadas. Aps a introduo de oito compassos com um ri
de baixo acompanhado por percusso de pandeiro (ou meia lua),
marcando o ritmo em 4/4, o violo de doze cordas prepara o canto. A
melodia simples e o arranjo tem caracters-ticas da msica pop da
poca, especialmente da folk music norte americana. 12 NUNES, Joo,
op.cit.13TREVISAN,JooSilvrio. Devassosnoparaso.SoPaulo:
EditoraMaxLimonad,1986, p. 171.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27,
p. 7-27, jul.-dez. 2013 14O acompanhamento discreto com poucos
instrumentos permite que a voz de Ney Matogrosso se destaque, numa
entoao ligeiramente passional. A letra, poeticamente bem construda,
faz aluso condio dos povos latino-americanos submetidos ao um
doloroso processo de dominao colonial e imperialista. Os versos os
ventos do norte no movem moinhos/e o que me resta s um gemido/minha
vida, meus mortos, meus caminhos tortos/Meu sangue latino/Minha
alma cativa do a chave do signicado mais geral da composio. Ao
mesmo tempo, o cancionista, numa imagem um tanto alegrica, ressalta
a fora com a qual essa gente resiste dominao: Rompi tratados, tra
os ritos/Quebrei a lana, lancei no espao: um grito, um desabafo/E o
que me importa e no estar vencido.
Seguindoessalinhapolitizada,destaca-seobluesPrimaveranos dentes, de
Joo Ricardo e Joo Apolinrio (5. faixa do lado A). Uma lon-ga
introduo em dois acordes (Em7 e A7), na qual o piano e a guitarra
dialogamemimprovisossutissobreabasedebaixoebateria,criauma ambincia
que nos remete a uma temporalidade cclica, repetitiva, prepa-rando
a entrada das vozes em unssono. A letra, de cunho marcadamente
poltico, fala da condio humana sob um sistema opressivo e da
coragem de certos indivduos que se mantm conscientes, resistem e
lutam. Quem tem conscincia para ter coragem/Quem tem a fora de
saber que existe/e no centro da prpria engrenagem/inventa a
contra-mola que resiste. Os ltimos versos, de intenso contedo
dramtico, enaltecem a fora herica daquele que mesmo em situaes
extremamente adversas, matem viva a esperana; daquele que mesmo
envolto em tempestade, decepado/entre os dentes segura a primavera.
Aps o canto das duas estrofes, os instru-mentos retornam aos
improvisos e alternncia de acordes do incio da composio, reduzindo
a intensidade lentamente at o nal da faixa.El Rey (3. faixa do lado
B), composio de Conrad e Joo Ricardo, tem caractersticas de canes
folclricas portuguesas, lembrando cantigas de roda. Acompanhado
apenas por violo e auta, Ney Matogrosso a in-terpreta com
delicadeza, acentuando o ritmo dos versos que fazem aluso, um tanto
debochada, personicao do poder monrquico e absoluto:
EuviElReyandardequatro/dequatrocarasdiferentes/[...]dequatro
patasreluzentes/[...]dequatroposesatraente/.Aomesmotempo,em
contraposio ao exibicionismo pattico de El Rey, a letra expe o
sofri-mento da populao: quatrocentas celas/cheias de gente/[...]
quatrocentas mortes/[...]quatrocentasvelas/feitasduendes.
Acano,caracterizada por certo contraste entre o contedo crtico da
letra e a leveza da melodia e do arranjo, pode ser entendida como
uma referncia alegrica aos regimes totalitrios modernos. Na faixa
Assim assado (1. faixa do lado B), composio de Joo Ricardo, a
exposio crua da violncia do poder parece destoar com a le-veza do
arranjo. uma composio ao estilo pop rock em tonalidade maior com
acompanhamento de guitarra eltrica, baixo, autas de bambu, ba-teria
e percusso. A melodia, com tessitura restrita, inferior a uma
oitava, permiteaocantorumainterpretaodiscreta,delicadaesemarroubos
passionais,intercaladaquatrovezesporrefresemtrsvozes.Aletra,
cujanarrativalembraadastirasemquadrinhospublicadasemjornais,
construda a partir da expresso popular que contrape duas palavras
assonantes,assimeassado,cujosignicadoapontaraalternativa entre uma
coisa ou outra, ou sugerir que algo seja feito desta ou daquela
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
15Artigomaneira. Os primeiros versos descrevem os personagens e o
cenrio onde a trama acontece: So duas horas/da madrugada/ de um dia
assim/Um velho anda/ de terno velho/assim assim/Quando aparece o
guarda belo. Estabelece-se, ento, uma relao assimtrica entre o
velho, gura anni-ma e frgil, e o guarda, agente pblico dotado de
autoridade que posto
emcena/fazendocena/umtrecoassim.Nestemomento,ocompasso
marcadoapenaspelosomdasbaquetasdobaterista,sugerindoqueo policial
ostenta o cassetete com gestos intimidadores. Ameaado, o velho
perde a cor, supostamente empalidece, mas o guarda belo/no acredita
na cor assim e partindo para aes mais agressivas, ele decide/no
terno velho/assim assim. Vulnervel, o velho acaba morrendo, embora
mat-lo talvez no fosse a prioridade do guarda que queria um velho
assado/Mas mesmo assim/o velho morre/assim assim. Ao nal, o ato
arbitrrio ecovardesetornamagnnimo,praticadoporalgumquecumpreseu
dever: e o guarda belo/ o heri/ assim assim/Porque preciso ser
assim assado. evidente o contraste entre a leveza ou o carter
despretensioso da cano no plano formal plano que envolve a
articulao entre letra, melodia, pulsao, arranjo e canto - e o
contedo contundente e dramtico que denuncia o abuso de poder e o
exerccio da violncia como prticas inerentes a um estado
policial.Esse contraste tambm caracteriza o Rond do capito (6.
faixa do lado B), outra composio que criou forte identicao com o
pblico infantil. Originalmente, um poema de Manuel Bandeira escrito
em 1940, inspirado numa cantiga de ninar bastante conhecida
intitulada Bo-Bala-lo; uma tpica parlenda, um tipo de poesia para
criana, cantada ou no, repleta de onomatopias e com ritmo
cadenciado. Bandeira utiliza-se da forma da cantiga, mas introduz
um contedo existencial, falando do peso de se ter esperana num
mundo opressivo e suplica ao senhor capito, num tom de prece, que o
livre desse peso. Bo balalo,/Senhor capito/Tirai este peso/Do meu
corao/No de tristeza,/no de aio:/ s esperana,/Senhorcapito!/
Aleveesperana,/Areaesperana.../Area,poisno!/- Peso mais pesado/No
existe no/Ah, livrai-me dele,/Senhor capito!. A melodia de Joo
Ricardo, com andamento moderado e compasso 3/4, uma espcie de
pardia da cano de ninar. Entoada por Ney Matogrosso com
acompanhamento de violo e auta, a composio ressignica o poema no
contexto brasileiro dos anos 70, acentuando o contraste entre a
forma singela da melodia, envolta em certa aura de inocncia, e o
contedo da letra que agora parece fazer aluso ao carter opressivo
do regime militar. Um segundo bloco temtico de composies toca em
temas ligados guerra como Rosa de Hiroshima (4. faixa do lado B),
poema de Vincius de Moraes que recebeu melodia de Gerson Conrad e
se tornou uma das canes mais populares do grupo. Escrito um ano aps
o lanamento das bombas atmicas nas cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki, evento que ps m Segunda Guerra Mundial, o poema convoca
as pessoas para que pensem e no se esqueam dos efeitos catastrcos
das armas nucleares. A referncia a crianas, meninas e mulheres nos
primeiros versos chama a ateno para tais efeitos que no se
limitaram ao momento em que foi detonada a bomba, mas se estenderam
a geraes futuras em funo de alteraes genticas: Pensem nas
crianas/Mudas telepticas/Pensem nas
meninas/Cegasinexatas/Pensemnasmulheres/Rotasalteradas. Arosa,
smbolo de vida, beleza e lirismo transmuta-se em metfora do
aterrorizan-ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez.
2013 16te cogumelo de fogo que devastou a cidade: A rosa
radioativa/Estpida invlida/A rosa com cirrose/A anti-rosa atmica/
Sem cor sem perfume/Sem rosa sem nada. A bela melodia, uma espcie
de toada, simples, um tanto repetitiva e de fcil memorizao,
articula-se com delicadeza aos versos. O arranjo de violo, com
pequenas incurses de auta no incio e no nal da composio, permite
que a voz do cantor se destaque numa entoao um tanto melanclica e
solene. Em 1973, momento que o mundo vivia o auge da corrida
armamentista e a parania de um confronto nuclear entre as potncias
militares, o poema cano teve seus signicados reforados, soando como
uma espcie de manifesto pacista. Com temtica semelhante, embora
distinta quanto ao aspecto formal, ouve-se Mulher barriguda (2.
faixa do lado B), poema de Solano Ribeiro com msica de Joo Ricardo.
Trata-se de uma reexo sobre a natalidade e o destino das geraes
futuras frente iminncia de guerras: Mulher barriguda que vai ter
menino/qual o destino que ele vai ter?/[...] Haver guerra?/tomara
que no. uma composio de andamento rpido com ritmo de pop rock bem
marcado. O arranjo base de piano, guitarra eltri-ca, gaita, baixo e
bateria, d suporte ao canto em trs vozes com solos de Ney
Matogrosso em alguns versos. A entoao estridente e vibrante dos
cantores cria um clima eufrico e brincalho, contrastando com o
contedo um tanto dramtico da letra.
Prececsmica(5.faixadoladoB),poemadeCassianoRicardo
publicadoem1971,perodoemqueopoetaassume,dopontodevista formal,
procedimentos da poesia prxis e traduz em seus versos a
perple-xidade frente ao um mundo conturbado e na iminncia de um
confronto nuclear. Com melodia de Joo Ricardo, a cano recebeu um
tratamento instrumental ao estilo country rock com guitarra
eltrica, baixo e bateria. Os versos expressam a esperana de que a
sensibilidade se sobreponha racionalidade fria dos detentores do
poder: Que os 4/como num
teatro/conservemamo/semnenhumgesto/queovinhoquentedocorao, suba
cabea espessa/e que do bolso de cada um dos 4/como num teatro/voem
pombas/ (pombas brancas) ...e amanhea. Cantada em trs vozes com
despojamento e graa, a cano soa tambm como uma pea pacista. Um
terceiro conjunto de composies apresenta aspectos mais inti-mistas
e certo lirismo. A composio de Joo Ricardo, intitulada O patro
nossodecadadia(3.faixadolado A),podeserincludanessegrupo. Trs
batidas compassadas de sino anunciam o incio da cano, criando um
clima solene e melanclico. O narrador fala do seu sofrimento pelo
amor no correspondido e a sua dependncia em relao pessoa amada: Eu
quero amor/da or de cactus/ela no quis/Eu dei-lhe a or/de minha
vida/vivo agitado/[...]Eu vivo preso/ sua senha/ sou enganado. Na
quinta e na stima (e ltima) estrofes, o cancionista estabelece
certa analogia, um tanto inusitada, entre a dolorosa dependncia
amorosa e o cotidiano opressivo, numa provvel aluso ao mundo do
trabalho e relao patronal, paro-diando a orao Pai nosso: Eu solto o
ar/no m do dia/ perdi a vida. [...]/ o patro nosso/ de cada dia/
dia aps dia. A melodia, de andamento lento, construda em tonalidade
maior a partir de trs acordes bsicos, e com arranjo leve e sutil,
feito base de violo, baixo e breves incurses de auta, permitem o
destaque das vozes. A passionalizao ocorre logo no incio da cano
com o amplo intervalo de doze semitons (uma oitava) entre o
pro-nome eu e o verbo quero, reforada pela entoao de Ney
Matogrosso. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez.
2013 17ArtigoEsse salto intervalar se repete ao incio de cinco
estrofes, operando como uma espcie de motivo meldico que d unidade
composio. O refro, em que o narrador expressa suas dvidas
existenciais: Eu j no sei se sei/de tudo ou quase tudo/eu s sei de
mim..., tem melodia construda num campo de tessitura mais restrito
(sete semitons) e cantado em trs vozes. Ao nal, retornam as batidas
sucessivas do sino que vo se distanciando lentamente criando uma
atmosfera um tanto soturna. A composio Amor (4. faixa do lado A),
versos de Joo Apolinrio como melodia de Joo Ricardo, ganhou
tratamento roqueiro e cantada em trs vozes com uma base
instrumental de violo de 12 cordas, baixo
eltricoebateria,comumbreveimprovisodegaitaao nal. Aletrafaz aluso
dialtica do amor, sentimento ao mesmo tempo leve [...] suave coisa
[...] suave coisa nenhuma.
OpenltimofonogramadoladoBdolbumumavinhetacom menos de um minuto de
durao composta a partir do poema de Cassia-no Ricardo, escrito em
homenagem ao poeta portugus Antonio Nobre, intitulado As andorinhas
de Antonio Nobre. Os versos, com contedo
acentuadamentemetafrico,-Nos/os/ten/sos/da/pauta/deme/tal/as/an/do/ri/nhas/
gri/tam/por/fal/ta/de u/ma/cla/ve/de/ sol -, so compostos por
slabas e fragmentos das palavras, parecendo representar visualmente
os pequenos pssaros pousados nos os. O gorjeio catico do bando de
andorinhassobreopentagramametlicoparecesoarcomoumclamor para que
uma clave que venha organiz-lo e convert-lo em msica. Os
instrumentos piano, baixo e violo fazem ataques em bloco, apoiados
por rufos de tambor, numa sequencia descendente de acordes (Am/G/F)
e sem marcao rtmica denida. Sobre essa base harmnica a melodia
silbica acompanha a estrutura formal do poema e entoada por Ney
Matogrosso como um aboio. Com essa cano o grupo fazia a abertura
dos shows. A ltima faixa do LP a balada romntica de Joo Ricardo e
Luhli, intitulada Fala. a nica cano que recebeu um arranjo de Z
Rodrix feito base de piano, contrabaixo, bateria e pandeiro (meia
lua). No de-correr da composio entram outros instrumentos como
naipes de cordas (violinos e viola) e o improviso de sintetizador
Moog, ampliando a massa sonora de maneira crescente at o nal da
faixa. Na letra, o eu lrico pede supostamente pessoa amada que fale
algo, uma vez que ele nada tem a dizer. Aparentando resignao, se
dispe apenas a ouvir, mesmo que no entenda o que dito. Ao nal,
promete falar somente na hora de falar. As quatro estrofes, cada
uma com trs versos, so distribudas em duplas entre as quais se
interpe o estribilho com o verbo falar no imperativo Fala. A
interpretao suave e melanclica de Ney Matogrosso acentua o clima
intimista da composio, mas, ao entoar o estribilho com melodia
descendentes, intercalado pelo vocalize l-l-l.... , parece criar
certa am-biguidade entre a splica e o desao. Vale lembrar que em
1973 o formato LP reinava absoluto na indstria musical. Reunindo
algo em torno de uma dzia de fonogramas, o lbum, alm de atender a
objetivos estratgicos
dasgravadoras,seconverteranumobjetoartsticonoqualtantoa disposio
das faixas como a converso das capas em espaos de interveno visual
traduziam projetos de msicos, artistas plsticos e produtores,
expandindo, de certa forma, o conceito de obra fono-grca. Desse
modo, levando em conta o contexto scio histrico daquele perodo,
pode se dizer que essa cano funcionava como o ArtCultura,
Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 18eplogo do LP
Secos & Molhados, adquirindo signicados mais amplos. Tal-vez o
eu lrico desta ltima cano no se dirigisse apenas pessoa amada, mas
tambm ao pblico ouvinte, aos crticos ou at mesmo aos censores.Turn,
crise e o segundo lbumSob o efeito do sucesso do primeiro disco o
grupo realizou uma s-rie de shows pelo interior paulista, em
cidades mineiras, Braslia e Recife. No nal do ano, desembarcou no
Rio de Janeiro para uma temporada no Teatro Tereza Raquel, situado
no bairro de Copacabana, sempre com casa cheia e la de espera.
Entusiasmado com o sucesso, o empresrio Moracy
doValorganizouahistricaapresentaodogruponoMaracanzinho em fevereiro
de 1974, quando mais de 20 mil pessoas lotaram as depen-dncias do
ginsio, deixando ainda uma multido do lado de fora. Era o pice da
consagrao do grupo em territrio brasileiro, o que motivou a
programao de lanamentos do disco no exterior, comeando por pases da
Amrica Latina. Os planos eram ambiciosos, prevendo ainda uma
ma-ratona de apresentaes nos Estados Unidos, Europa e Japo. No
entanto, no momento em que o grupo embarcava para o Mxico, os
primeiros de-sentendimentos em relao gerncia dos negcios e diviso
dos lucros comeavamasemanifestarentreseusintegrantes.Apsduassemanas
de shows e apresentaes num canal de TV na capital daquele pas, com
grande sucesso e repercusses promissoras no mercado norte
americano, o grupo retornou a So Paulo e iniciou os preparativos e
ensaios para a produo do segundo disco. As gravaes desse esperado
lbum foram feitas em junho de 1974 nos estdios SONIMA, em So Paulo,
sob a coordenao de produo de Julio Nagib. Joo Ricardo deniu o
repertrio sem ouvir os demais integrantes, o que contribuiu para
acirrar a animosidade entre eles. O disco contm treze faixas, das
quais seis so poemas musicados de Julio Cortzar, Fernando
Pessoa,Oswaldde AndradeeJoo Apolinrio. Algumasmsicasforam vetadas
pela censura, dentre elas, Tem gente com fome, versos do poeta
SolanoTrindadecommelodiadeJooRicardo,oqueobrigouogrupo a compor s
pressas outras canes para completar o lbum.14 A balada Delro.., de
Gerson Conrad e Paulinho Mendona, nica sem a partici-pao autoral do
lder, foi uma delas. A instrumentao manteve padres similares aos do
primeiro disco, com a atuao de msicos habilidosos em arranjos
compactos, oscilando entre as baladas pop e o rock progressivo. A
capa repete, em certos aspectos, as caractersticas conceituais do
primeiro disco. Produzida por Antonio Carlos Rodrigues, traz as
fotos dos rostos maquiados dos trs integrantes do grupo sobre um
fundo preto. Atravs da superposio de imagens, cabeas parecem
impressas sobre cestos de palha.
OdiscofoibemproduzidoeaContinentalelaborouumextenso plano de
divulgao e marketing, includo cartazes e lmes comerciais que
seriamexibidosemsalasdecinemadasprincipaiscidadesbrasileiras.15
Porm, no teve a receptividade esperada por parte do pblico e nem da
crtica.Naopiniode AnaMariaBaiana,numtextoescritologoapso lanamento,
tratava-se de um disco frio e distante da fora e de um certo
encanto mgico e ingnuo do lbum de estreia. A autora destacou ainda
a excessiva pretenso literria ao se trazer para o campo da cano os
poemas de Julio Cortzar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa, alm
14Ementrevistaconcedidaa TarikdeSouza,JooRicardo,
dissequeforamcensuradas trs canes por ele compostas
sobreospoemasBalada,de CarlosDrumonddeAndra-de,Passrgada,deManuel
BandeiraeTemgentecom fome, de Solano Trindade. Ver SOUZA, Tarik de.
A liquidao dosSecos&Molhados.Jornal Opinio,n.93,RiodeJaneiro:
Inbia Ltda, 19 ago. 1974, p. 16.15Cf.SILVA,ViniciusRangel
Berthoda.Odoce&oamargo doSecos&Molhados:poesia,
estticaepolticanamsica popular brasileira. Dissertao
(MestradoemLetras)UFF, Niteri, 2007, p. 305.ArtCultura, Uberlndia,
v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 19Artigode certa literatice
que caracterizava especialmente as letras de Paulinho Mendona.16 O
crescente clima de discrdia entre os membros do grupo impediu que
fossem cumpridos todos os compromissos previstos na
ex-tensaagendadeeventosdestinadosdivulgaoepromoomontada pela
gravadora, o que certamente prejudicou as vendas. Antes de o trio
anunciar a sua dissoluo no incio de agosto, foram produzidos na TV
Globo dois clips para o programa Fantstico, com as canes Flores
astrais e Tercer mundo. A primeira (2. faixa do lado A) uma tpica
balada pop de Joo Ricardo e Joo Apolinrio. O arranjo, base de
piano, guitarra eltrica, contrabaixo, auta e bateria, integra-se ao
canto em trs vozes. Na gravao para a TV, Ney Matogrosso usa uma
fantasia futurista feita pela escultora Mari Yoshimoto, composta
por um cocar de metal prateado, luvas com dedos longos e
pontiagudos confeccionadas com o mesmo material, e um grande braso
cintilante xado no centro do peito. Joo Ricardo e Gerson Conrad,
maquiados e com fantasias mais discretas,
atuamcomocoadjuvantes.Ocenrioformadopelaimagemampliada da capa do
LP, tendo ao fundo uma grande lua dourada. Essa foi a cano que se
tornou mais conhecida e que impulsionou a vendagem do
disco.AcomposioTercermundo,aprimeirafaixadolbum,um poema de Julio
Cortzar com melodia de Joo Ricardo composta a partir de clichs da
msica amenca. Ney Matogrosso se apresenta com o cabelo preso por
uma ta vermelha, formando um coque na altura da nuca, cos-teletas
longas, um grande brinco em forma de argola na orelha esquerda
ebraceletesdemetalnosbraos.Semmscaraepenachos,usaapenas
sobrasescurassobreosolhosebatomencarnado.Ovestidopreto,com amplo
decote, deixa expostos os ombros e o peito peludo. Esses adereos,
somados gestualidade ao estilo das divas do amenco e ao seu timbre
vocal caracterstico, acentuam a ambivalncia da performance. O grupo
se desfez em seguida. Joo Ricardo, que se manteve como detentor da
marca Secos & Molhados, recriou o grupo vrias vezes com outras
formaes e gravou vrios discos, obtendo relativo sucesso, porm numa
escala muito menor da fase anterior. Gerson Conrad tambm gra-vou um
lbum e passou a atuar discretamente como msico, produtor e
arquiteto. E Ney Matogrosso se projetou como um dos mais
importantes intrpretes da msica popular brasileira. Performance 1:
poesia e cano A produo do Secos & Molhados se deu num momento
em que a MPB (Msica Popular brasileira), segmento musical que
adquiriu identida-de e se consagrou a partir de meados dos 60,
ocupava posio hegemnica no interior do sistema cultural ento
vigente no pas. A legitimidade da sigla, que abarcava uma
multiplicidade de gneros, estilos e sonoridades, fora conquistada
em meio a lutas culturais associadas ao intenso debate esttico
ideolgico que marcou aquele decnio. A consagrao desse segmento
representou o ponto alto de um lon-go processo de renamento e
intelectualizao pelo qual passou a nossa msica popular desde os
anos 30; processo que envolveu tanto mudanas nos aspectos meldicos,
harmnicos e dos arranjos das composies re-sultantes da incorporao
de padres advindos da msica de concerto e do jazz , como a interseo
entre cano e poesia erudita. Nesse perodo, uma 16BAHIANA,
AnaMaria.Um salto no vazio. Jornal Opinio, n. 93, 19 de ago. 1974,
op. cit., p. 18. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27,
jul.-dez. 2013 20determinada parcela da msica popular atingiu alto
nvel de reexividade, conquistando o status de arte no interior do
sistema cultural. Foi o mo-mento da emergncia da cano crtica, como
bem deniu Naves; uma modalidade de cano reexiva que traduziu, num
primeiro momento, o iderio nacional popular que marcou a cultura
brasileira nos anos 60 e se converteu, aps o golpe civil militar de
1964, numa forma de resistncia ao regime ditatorial. A Tropiclia
ampliou o conceito de cano, descons-truindo em parte a sua
estrutura formal que se consolidara especialmente a partir da Bossa
Nova. Ao radicalizar o sentido crtico desse produto ar-tstico,
adotou, entre outras coisas, a esttica do excesso, incorporando o
rudo, o gesto, a performance, a visualidade das capas dos discos
tratados como objetos conceituais.17 Sob o impacto da crtica
tropicalista, a MPB se abriu para mltiplas dices.18
DeacordocomNapolitano,amsicapopularbrasileiraabrangia,
nosanos70,trsgrandescircuitosquesedelinearamnointeriordo campo
musical: o que ainda mantinha linhas de continuidade do nacional
popular, politicamente engajado e mantendo anidades com o iderio de
esquerda;oalternativo,herdeirodasincursesvanguardistaseassocia-doasubculturasjuvenisqueemergiramespecialmentenocontextops
AI5; e, por m, o massicado, representado por produes fortemente
orientadas pela lgica da indstria cultural.19 De certo modo, os
Secos & Molhados tangenciaram esses circuitos. Suas letras, por
exemplo, guardam certa proximidade com a MPB notadamente quanto ao
tratamento formal
eaocontedocrticoeengajadodeinmerascomposies.Porm,h diferenas entre
essa produo e a dos compositores e intrpretes que se dedicaram
chamada cano de protesto dos anos 60. No trabalho do trio,
prevalecem traos do que Romano de SantAnna deniu como uma poesia de
tradio simblica, isto , uma maneira de dizer certas coisas atravs
do envolvimento, do uso de metforas, e no de modo direto,
contrastando com a agressividade, a estridncia e o estilo
pico/dramtico dos artistas
engajados.Emmuitasdascomposiesobserva-secertaliberdadecom que o
grupo articula o contedo participante e politizado das letras com o
tratamento musical muitas vezes brincalho, aparentemente inocente
ou at mesmo infantil dado s canes. Nesse aspecto, ele parece se
aproximar do segundo circuito apontado por Napolitano, associado s
novas subculturas juvenis que emergiram no pas no perodo
ps-tropicalista. Do ponto de vista musical, como j foi destacado,
suas canes seguem certos padres das bandas de pop rock
internacional com melodias delineadas a partir de uma base harmnica
composta por sequncias elementares e rotineiras de
acordessustentadaporumainstrumentaosimplesecaractersticado
repertrio desse segmento. Outra peculiaridade da produo dos Secos
& Molhados a musi-calizao de poemas. Ao mesmo tempo em que se
mostraram capazes de fazer canes com letras esteticamente bem
elaboradas, criaram melodias
parapoemasdeautoresconsagrados.Comoressaltou AonsoRomano
deSantAnna,elesvo...resgatartextosliterriosdesuaimobilidade
livresca e traz-los para o espetculo vivo da srie musical.20 O
poeta e crticoreconhece,porexemplo,certaequivalncia,quantoqualidade
literria, entre a letra de El Rey, de Gerson Conrad e Joo Ricardo,
e o poema Prece csmica de Cassiano Ricardo, tambm musicado pelo
grupo. Desse modo, ao mesmo tempo em que promoveram o renamento
esttico 17 Para a autora, o carter crti-codacanosemanifestaem dois
nveis: primeiramente, no planotextual,internoobra,
quandoocancionistareflete muitasvezessobreoprprio processo de
criao, recorrendo
aousodemetalinguagem,in-tertextualidades,pardiasetc.
Taisprocedimentostornaram-semarcantesespecialmente com a Bossa
Nova. O segundo nvel o da crtica contextual, que atingiu a
plenitude com a cano engajada de orientao
cepecistaecomaMPB.Nes-secaso,aobrasevoltapara
questesdepolticaecultura
comointuito,emultimaan-lise,dearticulararteevidae
transformarasociedade.Ver NAVES,SantuzaCambraia.
CanopopularnoBrasil.Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira,
2010.18TATIT,Luiz.Osculoda cano.Cotia:AteliEditorial, 2004,
p.227.19NAPOLITANO,Marcos. MPB:Totem-Tabudavida musical brasileira.
In: RISRIO, Antonioet al. Anos 70: trajet-rias. So Paulo:
Iluminuras/Ita Cultural, 2005, p. 125.
20SANTANNA,AonsoRo-manode.Msicapopulare moderna poesia brasileira.
Petr-polis: Vozes, 1986, p. 265.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n.
27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 21Artigodas suas letras, fazendo com
que elas se aproximassem do status de obras
literrias,elestrouxeramospoemasparaocampodacanomiditica,
revestindo-os com o tratamento musical e outros adereos inerentes a
esse meio, preparando-os para a insero num plano de circulao e
consumo simblico muito mais amplo. Mas a articulao entre textos
literrios e cano de massa, produtos artsticos que alm de ocuparem
posies opostas e distantes na escala de valores do sistema
cultural, sendo, portanto, destinados a modos distintos de recepo,
nem sempre se mostra ecaz. Ao ser apropriado pela perfor-mance
cancionstica o poema tende, em algumas situaes, a sofrer certo
esvaziamento do seu signicado semntico. Zumthor ressalta que com o
impacto da vocalidade na entoao da obra literria o efeito textual
desa-pareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos efeitos
performticos, no textuais.21 Isso pode ter ocorrido com alguns
poemas musicados que compem o segundo lbum dos Secos &
Molhados, motivando objees por parte da crtica. A composio Tercer
mundo parece ser um desses casos. De fato, a letra no um poema,
stricto sensu, mas uma frase retirada do livro Prosa del
observatorio, de Julio Cortzar, publicado em 1972. Trata-se de um
texto concebido,dentreoutrascoisas,apartirdasimpressesdoautorsobre
asrunasdosobservatriosastronmicosdascidadesdeJaipureDelhi
edicadosporumsultodecadentedandiadosculoXVIIIfascinado por
estrelas, e de um artigo cientco publicado no jornal Le Monde que
descrevia o ciclo de vida e morte das enguias no seu eterno trnsito
sazonal entre as profundezas das guas tpidas do Atlntico Norte e os
esturios dos rios europeus. Numa narrativa fragmentada e imagtica,
denida do ponto de vista formal como prosa, mas repleta de recursos
da linguagem potica, o escritor argentino constri um universo mtico
que serve de base para uma aguda reexo crtica sobre o mundo atual.
Estrelas, enguias, mar de sargaos, anel de Moebius convertem-se em
metforas de um plano pul-sante da realidade encoberto pelo manto de
um cotidiano esquadrinhado, mensurado e classicado pela
racionalidade tcnico cientca do Ocidente. Em meio a um mosaico de
imagens surrealistas, retratos da catstrofe con-tempornea, uma
revoluo aguarda o seu momento. Certamente, no uma revoluo nos
padres tradicionais concebidos pela cincia poltica, mas um profundo
movimento transformador cujo sujeito o homem que no se aceita
cotidiano, que capaz de fazer a sua verdadeira revoluo de dentro
para fora e de fora para dentro.22 A frase retirada dessa obra pelo
Secos & Molhados e transformada em cano traduz, de certo modo,
essa
ideia.Ahi,nolejos,/lasanguilaslaten/suinmensopulso,/suplanetrio
giro,/todoesperaelingresso/enunadanza/queningunaIsadoradanz/nunca
de este lado del mundo,/tercer mundo global/del hombre sin
orillas,/chapoteador de histria,/vspera de si mismo.23O trecho
destacado faz referncia ao Terceiro mundo, bloco geoe-conmico que,
de acordo com novos critrios de regionalizao do espao
mundialdenidosporcientistassociaiseeconomistasapsasegunda grande
guerra, seria composto por pases subdesenvolvidos da Amrica Latina,
frica e sia. Cortzar no parecia um entusiasta de classicaes
dessetipo,emboracultivassesimpatiaecertaesperanaemrelaoao potencial
libertador de movimentos que ocorriam nesses continentes,
es-pecialmente os conitos do sudeste asitico e a revoluo cubana. De
certo 21 ZUMTHOR, Paul. Performan-ce, recepo e leitura. So Paulo:
Cosac Naify, 2007, p. 17 e 18.22CORTZAR,Julio.Prosado observatrio.
So Paulo: Perspec-tiva, 2005, p. 99.23 CORTZAR, Julio. Prosa del
obsertavatorio. Barcelona: Edito-rial Lumen, 1972, p. 67 e 68. Na
traduo de Davi Arrugucci Ju-nior: A, no longe, as enguias palpitam
seu imenso pulso, seu giroplanetrio,tudoesperao
ingressonumadanaquene-nhuma Isadora jamais danou deste lado do
mundo, terceiro mundo global do homem sem fronteiras,chapinhadorde
histria, vspera de si mesmo. CORTZAR,Julio.2005,op. cit., p.
99.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
22modo, o escritor compartilhava da perspectiva que circulava entre
intelec-tuais e ativistas de esquerda nos anos 60 segundo a qual as
mobilizaes de foras sociais que poderiam desestabilizar a nova
ordem internacional e abrir brechas para a ecloso de movimentos
libertadores viriam dessa regio do planeta, identicada por alguns
como o elo fraco do sistema
depodermundial.Porm,emseulivro,aexpressoterceiromundo global no tem
exatamente essa conotao geopoltica, mas parece soar como metfora
contra cultural de uma face invisvel da realidade; de um lugar
mtico a partir do qual o homem fora da ordem, movido pelo desejo,
poder romper a carapaa do institudo e bater contra a matria
rampante do fechado, de naes contra naes e blocos contra blocos.24
A esse fragmento da obra Prosa do observatrio, Joo Ricardo
incorpo-rou uma melodia composta a partir dos acordes da cadncia
andaluza na tonalidade de mi menor (Em/D/C/B), com padres
estilizados da msica amenca. O arranjo, base de trs violes e
castanholas, somado
gestu-alidadevocalcaractersticadeNeyMatogrosso,acentuaessesaspectos,
mobilizando elementos do imaginrio construdo e reproduzido no mbito
da cultura de massa que atribui latinidade, em especial cultura
hisp-nica,certasqualidadescomoexotismo,sensualidadeepassionalidade.
A entoao peculiar do cantor refora a autonomia da frase em relao
totalidade da narrativa, ao mesmo tempo em que desloca e expande
seus signicados.Ointrpretepareciaacionar,voluntariamenteouno,at
mesmo certa memria radiofnica ainda viva naqueles tempos. possvel
identicar alguns traos das suas inexes vocais que lembram cantoras
do rdio como ngela Maria e, especialmente, Gilda Lopes na memor-vel
gravao de O trovador de Toledo de 1962. Em sua breve carreira, a
cantora obteve enorme sucesso com essa cano, denida como valsa
fantasia, que falava das aventuras amorosas de um estranho
personagem num cenrio sedutor e misterioso de algum lugar da
Pennsula Ibrica. A melodia, tambm repleta de clichs da msica
espanhola, permitia que a cantora exibisse suas habilidades vocais,
numa combinao um tanto kitsch entre vocalizes, nos quais transitava
com surpreendente naturalidade por trs oitavas, e uma entoao
sensual e impetuosa.25 Provavelmente, grande parte dos ouvintes se
emocionava muito mais com a performance de Ney Matogrosso, com
inexes e timbre peculiares que mobilizavam facetas do imaginrio
popular como os atributos da cultura hispnica j xadas pela cano
massiva, do que com o contedo do texto de Cortzar. At mesmo as
diculdades impostas pelo idioma espanhol compreenso dos versos do
escritor argentino no comprometeram o de-sempenho da composio como
hit, pois o pblico muitas vezes se emociona com uma cano cuja letra
em lngua estrangeira lhe incompreensvel. Prevalecem, nesses casos,
apenas os efeitos fonticos da palavra cantada convertidos em pura
msica.26 A uma melodia simples e envolvente como
adeTercermundo,aadiodeoutraletraqualquerqueabordasseo mesmo tema no
faria grande diferena. A crtica Ana Maria Bahiana, num texto
escrito no calor da hora, faz um comentrio sutil e perspicaz sobre
isso. Ao mesmo tempo em que ressalta a beleza dos poemas de
Fernando Pessoa,OswalddeAndradeeCortzar,convertidosemcanesdesse
lbum, pergunta at que ponto eles eram realmente necessrios.27
possvel que nesses casos a escolha do trio (ou do lder Joo
Ricar-do) reita certo esnobismo de massa, expresso cunhada por
Roberto 24 Idem, ibidem, p. 103.25Acano,deautoriados franceses
Hubert Giraud e Jean Drjac,intituladaLArliquin
deTolde,foimuitoouvida no Brasil em 1962 e 1963.
Ten-docomotemaasperipciase desventurasamorosasdeum trovador
solitrio de Extrema-dura, na Espanha, narradas em versos a partir
de uma melodia com padres esteriotipados da
msicaespanhola,acompo-sioseconverteunumhitda indstria fonogrca
europeia navozdeDalilaefoiadapta-daparaoportugusemduas
verses.Umadelas,feitapor Fernando Barreto, foi gravada
porngelaMarianaRCA Victor, e a outra, de autoria de
RomeuNunes,foiregistrada emdiscosOdeonnavozde GildaLopes,comottuloO
trovadordeToledo.Estal-timaobteveenormesucesso. A cantora, dotada
de recursos vocaisexcepcionais(soprano capazdeatingirnotasagudas
comnotvelpurezaebrilho), interpretaacanocomforte
expressividade,sensualidade e delicadeza. Por mais de dois meses
essa gravao gurou no topodaParadadeSucesso da Revista do Rdio. Ver
Revista doRdio,1962.AnoXIV,do nmero 681 ao 693. 26 Sobre esse
assunto diz Valver-de: ainda o canto que atrai o
ouvinte,emboranumalngua que s se deixa identicar por suas
articulaes, independen-temente de toda compreenso. E como a
solicitao semntica perde-se na ignorncia do cdi-go lingustico, a
cano torna-se pura msica e o seu sentido faz-se aqum das signicaes
nas texturasdeumasonoridade to indecifrvel quanto
irresis-tvel.VALVERDE,Monclar. Mistrios e encantos da cano. In:
MATOS, Claudia Neiva de, TRAVASSOS,ElizabetheME-DEIROS, Fernanda
Teixeira de (orgs.). Palavra cantada: ensaios
sobrepoesia,msicaevoz. RiodeJaneiro:7Letras,2008, p. 273.27 Neste
segundo LP diz a jor-nalista - as pretenses literrias
eexistenciaisdeJooRicardo deixam o repertrio num meio termo sem
sabor, alm do apelo primrio (e bem rock) e muito aqum do alcance
pretendido. exceo dos textos de Pessoa,
CortzareOswalddeAndra-de(belos,masatqueponto ArtCultura, Uberlndia,
v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 23ArtigoSchwarz para se
referir criticamente a determinados procedimentos dos tropicalistas
como submeter traos dos anacronismos inerentes sociedade brasileira
aos meios tcnicos mais avanados, citar obras artsticas da esfera
cultaapartirdecircuitomassicado,deslocarfragmentosdetradies
monumentalizadasparaosuxosdamoda,tudoissoresultandonuma construo
alegrica de um Brasil absurdo. No contexto ps-golpe, em que se
consolidava o processo de modernizao conservadora, a produo dos
baianos mostrava-se ambgua, tendendo tanto para a crtica aos
impasses scio polticos e culturais do pas naquele perodo como para
a integrao ao mercado28. Mas a produo dos Secos & Molhados
parecia orientada por uma inteno estratgica, ainda que amadora, na
busca de legitimidade no interior do campo artstico da poca. Nomes
de poetas consagrados como parceiros poderiam representar uma
espcie de chancela para a conquista de reconhecimento no interior
do sistema cultural no qual o crculo seleto
decancionistasdaMPBocupavaposiohegemnica.Portanto,aquela
ambiguidade atribuda por Schwarz aos tropicalistas no se aplica ao
trio, mesmo porque as apropriaes e citaes de obras literrias
presentes no
repertriodogrupoparecemdesprovidasdequalquersentidoparods-tico.
Parece prevalecer, neste caso, a perspectiva da insero no mercado
de bens culturais. Performance 2: gestusNum texto pioneiro sobre
estudos de msica popular, escrito em meados dos anos 60, o socilogo
Edgar Morin destaca o carter sincr-tico da cano cujas razes
remontam a manifestaes culturais como a pea musical, o music-hall,
o cabaret e prticas festivas diversas. Apontada pelo autor como o
mais cotidiano dos objetos de con-sumo da sociedade moderna, a
cano, que integra as substncias musical e verbal com todas as suas
derivaes, congura-se como
produtoartsticodotadodeumalinguagemmultidimensional.
Dessemodo,suamsicaarrasta-separaadana,sualetraparao teatro, e o
conjunto msica-letra mais que dana-teatro, algo que tem realidade
molecular.29 A cano, tal como a conhecemos hoje, se constituiu como
narrativa miditicaaolongodosculoXXdemodoindissociveldosseusmeios
tcnicosdeproduoereproduo.Noperodoemqueordioatuou como principal
canal de circulao de msica popular, a face sonora des-se produto
artstico ganhou supremacia. Os intrpretes se preocupavam
fundamentalmentecomastcnicasdeemissodasnotasmusicais,com a explorao
dos recursos dos estdios, com o uso dos microfones etc. O pblico
frua a visualidade nos programas de auditrio ou ao lado dos seus
aparelhos receptores atravs da imaginao. Foi uma poca, nos termos
de Krausche, da hegemonia do ouvido em que a capacidade de controle
da indstria sobre a recepo do produto musical pelo pblico
mostrava-serelativamenteincipiente.Natentativadepreencheraslacunasainda
presentes nessa relao, a indstria da cultura utilizou de outros
recursos como as publicaes voltadas para o mundo da msica popular,
suprindo com imagens os espaos vazios que as programaes radiofnicas
no eram capazes de ocupar.30 No Brasil, por exemplo, a famosa
Revista do Rdio divul-gava no s imagens, mas histrias da vida
privada de cantores e cantoras necessrios?)asletras,em
especialasdePaulinhoMen-dona,pecampelaliteratice.
BAHIANA,AnaMaria.Um saltonovazio.JornalOpinio, n. 93, 19 ago. 1974,
op. cit., p. 18. 28Cf.SCHWARZ,Roberto. Culturaepoltica:1964-1969.
In: SCHWARZ, Roberto. Pai de famliaeoutrosestudos.Riode Janeiro:
Paz e Terra, 1978, p.
76.29MORIN,Edgar.Noseco-nheceacano.In:Linguagem
daculturademassas:televiso ecano.Petrpolis:Vozes, 1973, p.
146.30Cf.KRAUSCHE,Valter.Na pistadacano:primeiros
passosdeumadanamaior. TrilhasRevistadoInstituto de Artes. Campinas:
Instituo de Artes da Unicamp, ano 1, no. 1, jan.abr., 1987, p. 77.
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013 24do
rdio, contribuindo para a construo da imagem pblica dos artistas. O
cinema e a televiso, cada um ao seu modo, potencializaram o lado
cnico e performtico dessa manifestao artstica. medida que
intera-giam com o mundo da msica popular, esses ramos da indstria
cultural proporcionaram a rearticulao entre as dimenses sonora e
imagtica da cano, dando maior relevncia ao papel do intrprete.
Pode-se dizer que eles produziriam, ao longo de algumas dcadas, os
elementos da linguagem do vdeoclip que se constituiu nos anos 70,
momento em que a colagem de sons e imagens atingiu o seu
apogeu.31No Brasil, foi a partir de 1960 que a televiso se
transformou num
importantemeiodeveiculaodemsicapopularcomamultiplicao
dosprogramasmusicaisefestivaisemvriasemissoras,contribuindo para a
expanso das possibilidades estticas da cano. Nesses anos,
in-trpretes, cantores e instrumentistas, alm de porem em prtica as
tcnicas desenvolvidas a partir de suas experincias radiofnicas,
apuraram novas
habilidadesinterpretativasdenaturezacnico-expressiva.ElisRegina,
por exemplo, atravs de expresses faciais e movimentos corporais
pro-gramados, transitava com agilidade do clima eufrico, alegre e
vibrante para o excessivamente dramtico, realando a temtica das
composies. Os artistas da Jovem Guarda, tambm se revelaram
intrpretes perform-ticos bastante habilidosos, desenvolvendo
estilos compatveis tanto com o repertrio que produziam como as
expectativas do pblico juvenil junto ao qual buscavam
reconhecimento. Os tropicalistas, no nal dos anos 60, exploraram de
forma radical as novas linguagens at os limites possveis naquele
contexto. Eles adotaram, em diversas situaes, atitudes tpicas dos
happenings.32 Foram marcantes as apresentao de Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Gal Costa, Mutantes, Tom Z que se seguiram ao
Festival de MPB de 1967, da TV Record, evento que inaugurou a
Tropiclia. Roupas extravagantes, cabelos longos e arrepiados,
gestosereboladosexagerados,gritoselongosimprovisoseramalguns dos
procedimentos adotados por esses artistas que envolviam o pblico,
provocando, muitas vezes, reaes agressivas. A participao de Caetano
Veloso no Festival Internacional da Cano, promovido pela TV Globo,
em setembro de 1968, defendendo a cano proibido proibir, teve
grande impacto. Vestindo roupas de plstico, miangas e colares
exticos, o com-positor baiano foi acompanhado pelo conjunto Os
Mutantes que executava o arranjo repleto de sons metlicos e
estridentes, enquanto um jovem hippie norte americano caminhava
pelo palco gritando palavras sem sentido. Tudo
issoprovocoureaesviolentasdopblicopresentenoTuca(Teatroda Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo), que explodiu em vaias e
insultos. Impossibilitado de continuar a cantar, fez um discurso
emociona-do, comparando a plateia aos integrantes do CCC (Comando
de Caa aos Comunistas) que haviam espancado os atores durante a pea
Roda Viva e saudou Cacilda Becker, atriz que compunha o elenco. Em
seguida, disse que ele e Gil estavam ali para acabar com a
estrutura do festival e acusou o jri de incompetente, pedindo para
que o desclassicasse.33 Atitudes iconoclastas e ousadas dos
tropicalistas marcaram os sho-ws na Boate Sucata, no Rio de
Janeiro, realizados concomitantemente s sees nais do FIC no
Maracanzinho. No palco, duas bandeiras traziam
inscriesassociadasaomovimento:Yes,nstemosbananaseSeja marginal,
seja heri. Esta ltima compunha o estandarte do artista pls-31 Idem,
ibidem, p. 86.32 O happening um tipo de cria-o artstica que surgiu
nos Es-tados Unidos em ns dos anos 50etevegranderepercusso
nadcadaseguinteemoutros pases. Reunindo artes visuais,
corporais,cnicasemusicais, no se materializa em produtos
especficos,masconsisteem aes e eventos que se realizam
comintensaparticipaodo pblico.Elesnopodemser
adquiridos,nosoconsum-veis;spodemserfrudosno momentoemqueacontecem.
Aimprevisibilidadequanto aocontedo,durao,bem comoaausnciadeenredoe
denarrativasoalgumasdas caractersticasformaisdessa
modalidadeartstica.Semcl-maxeconcluses,asaesse contrapem noo
cotidiana de tempo. Os eventos se desen-rolam como se fossem
orienta-dos por uma lgica ou por uma temporalidade onrica. H certa
anidadeentreoshappenings eosurrealismoque,dentre outras coisas,
desmontam sig-nicadosconvencionais,pro-movendo o choque. um tipo de
arte que agride e incomoda o pblico, ao mesmo tempo em
quetensionaoprpriomeio.
Duranteosanos60,oshappe-ningsforamincorporadospor diversos
movimentos artsticos de vanguarda, repercutindo at
mesmonombitodacultura de massa. Sobre esse tema, ver: GOLDBERG,
RoseLee. A arte da performance:dofuturismoao
presente.SoPaulo:Martins Fontes, 2006 e SONTAG, Susan.
Contraainterpretao.Porto Alegre: L&PM, 1987.33 Ver CALADO,
Carlos. Tropi-clia: a histria de uma revolu-o musical. So Paulo:
Editora 34, 1997, p. 218-19 e VENTURA, Zuenir.1968,oanoqueno
terminou:aaventuradeuma gerao.RiodeJaneiro:Nova Fronteira, 1988, p.
201. ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
25Artigotico de vanguarda Hlio Oiticica feito em homenagem ao
bandido Cara de Cavalo, morto pela polcia.34 As reaes tanto do
pblico como da crtica
oscilavamentreeuforia,entusiasmo,decepoeagressividade. Acurta
temporada foi interrompida com a interdio da boate. O programa
Divino Maravilhoso, da TV Tupi, que foi ao ar nos dois ltimos meses
de 1968, tambm era concebido como happening. Gravado semanalmente
no auditrio da emissora, com a presena de pblico, era transmitido
ao vivo. No palco, com cenrios compostos por painis, dese-nhos
extravagantes e pichaes, as canes eram interpretadas de forma
livre, com longos improvisos, e encenadas de modo debochado e
parods-tico. A audcia dos tropicalistas provocava reaes de
telespectadores mais conservadores que enviavam cartas emissora
protestando contra o tom agressivo das apresentaes.35 Logo aps a
decretao de AI -5, Caetano se apresentou com um revolver apontado
para a prpria cabea, cantando capela, como um adgio, os versos eu
pensei de todo mundo fosse lho de Papai Noel, da composio Boas
Festas de Assis Valente. A emissora retirou o programa do ar e,
dias depois, Caetano e Gilberto Gil foram presos. De certo modo, o
happening tropicalista preparou a recepo do Secos & Molhados,
embora no seja correto pressupor uma linha de continuidade entre
essa duas experincias. Sob o clima poltico pesado que reinou no pas
no contexto ps AI-5, surgiram novos movimentos artsticos
perfor-mticos que exploravam a corporeidade e abordavam questes
relativas sexualidade, sintonizados, via de regra, com tendncias
internacionais e a cultura underground. O grupo de teatro e dana
Dzi Croquetes, foi um desses casos. Tendo frente o danarino e
cantor norte-americano Lennie Dale, se notabilizou por atuaes
arrojadas e obteve grande adeso de p-blico especialmente em salas
do Rio de Janeiro e de So Paulo. Inspirado no teatro musical de
revista e shows de cabar, o grupo, composto incial-mente apenas por
homens, fazia a crtica aos costumes convencionais e moralidade
retrgrada vigente nos tempos de ditadura, usando fantasias,
maquiagem, silos postios, plumas, paets, purpurina, tudo combinando
com uma gestualidade ambgua. Com adereos e gestos femininos,
exibiam longas barbas e corpos msculos no depilados, criando um
ambiente de jogo ldico e transgressor dos cdigos de classicao dos
gneros sexuais. O nome soava como uma pardia ao do grupo
californiano The Cockets, uma das manifestaes do gay power,
notabilizado por suas apresentaes marcadas pela sexualidade
polimorfa e drags extravagantes. A repercusso do espetculo Dzi
Croquetes contribuiu para a propagao entre o pblico brasileiro da
moda andrgina que j circulava em contextos internacionais.36 Moda
que tambm ressoava no Brasil a partir de uma nova cena que emer-giu
no campo da msica popular do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Identicada como Glam Rock ou Gliter Rock, essa tendncia representou
ao mesmo tempo ruptura e continuidade em relao ao rock progressivo
e contracultura. Seus intrpretes, dentre os quais se destacavam
Gary Gliter, Perry Farrell, Iggy Pop, Alice Cooper e David Bowie,
se apresentavam com
cabeloscoloridos,trajesescandalosos,maquiagempesada,purpurinae com
nfase no desempenho cnico e na androginia.37 Os Secos &
Molhados foram contemporneos dessas experincias, embora seus
integrantes no admitissem que fossem elas suas principais
referncias. Para Ney Matogrosso, suas fantasias no eram inuenciadas
pelo Glam, mas inspiradas principalmente na lembrana que tinha da
vedete 34Sobreessesshows,Caetano faz o seguinte relato: Eu usa-va
[na Boate Sucata] o mesmo traje plstico verde e negro das
apresentaesdoTucacreio que Gil e os Mutantes tambm mantinham o
gurino e leva-va s ltimas consequncias o comportamento de palco
esbo-adodesde`Alegria,alegria, estirando-me deitado no cho,
plantandobananeiraeenri-quecendooreboladocubano baiano do `
proibido proibir. Mas o mais forte do espetculo
eraoqueoGileosMutantes faziammusicalmentecomo material escolhido.
VELOSO, Caetano.Verdadetropical.So Paulo:CompanhiadasLetras, 1997,
p. 306 e 307.35 Fizemos diz Caetano um programaatrsdegradese dentro
de gaiolas (o proscnio era tomado por uma grade de
madeiraimitandoferro;ou-tras jaulas menores, dentro da
grandejaulaqueeraopalco, guardavamosMutantes,Gal, Tom Z etc.; Jorge
Ben cantava dentrodeumajaulaquepen-dia do teto): no nal eu vinha do
fundo do palco berrando o sucesso de Roberto Carlos `Um leo est
solto nas ruas e que-bravaasgrades,convidando todo o elenco de
participantes a colaborar comigo nessa destrui-o. [...] Num outro
programa, nosdistribumosumpouco maneira de Cristo e os apsto-los na
Santa Ceia lembrando o Bruel de Viridiana -, mas sobre a mesa havia
apenas bananas. Cantvamosecomamosba-nanas.OsMutantesfizeram
o`enterrodotropicalismo. Idem,ibidem, p. 342. Ver tambm
CALADO,Carlos,op.cit.,p. 235 e 236.36VerLOBERT,Rosemary.A palavra
mgica: a vida cotidiana do Dzi Croquetes. Campinas: Editora
Unicamp, 2010, p.
244.37VerSHUKER,Roy.Vocabu-lriodemsicapop.SoPaulo: Edra: 1999, p.
145.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
26Elvira Pag que vira, quando ainda criana, se apresentando numa
emissora de rdio com o corpo coberto apenas por uma pele de ona e
miangas.38
CarmemMirandafoioutradassuasfontesinspiradorastantoparaas fantasias
como para os gestos e a maneira de danar. Por m, dizia que Caetano
Veloso fora o principal precursor do seu estilo. Graas a Caetano
Veloso eu hoje posso fazer o que fao armou Ney. Ele deu abertura na
cabea das pessoas, que me permitiu, alguns anos depois, vir a dar
outra... Ele foi at um ponto e no pode ir adiante. Me passou o
basto.39 Dopontodevistadaperformance,osSecos&Molhadosnoeram
propriamente uma banda nos padres daquela formao que se xou no
universo da msica pop a partir dos anos 60, comportando uma diviso
de trabalho ou de papeis entre cantores e instrumentistas de modo
razo-avelmenteequilibrado.Agrandeforadogruporesidianaatuaode Ney
Matogrosso. Se por um lado era notria certa fragilidade dos demais
integrantesdotriocomoinstrumentistas,oqueexigiaaconvocaode
msicosmaisexperientesparaasgravaeseosshows,poroutroNey era o foco
das atenes, exibindo grande domnio tcnico tanto em relao ao canto
como gestualidade. No momento em que o desenvolvimento tecnolgico
que se anunciava apontava para um novo ajuste entre sons e imagens
no campo da cano, que culminaria no formato do videoclipe, o grupo
parecia antecipar essa articulao no palco. Com ele, o gestus, termo
aqui usado na acepo de Zumthor, mostrava toda a sua potncia
comoelementoarticuladordamelodia,doritmo,bemcomodetodaa
sonoridaderesultantedainstrumentaoedosarranjoscomapalavra cantada,
de tal modo que as inexes vocais tornavam-se indissociveis da
atitude corporal.40 A performance de Ney, sempre acompanhada pela
atuao secund-ria e discreta de Gerson Conrad e Joo Ricardo,
compunha um amplo campo de ambivalncias. Aos adornos, roupas,
missangas, penachos e maquiagens
comcaractersticasfemininas,contrapunham-seaslongascosteletas,o
corpo desnudo, no depilado e msculo. Gestos bruscos, expresses
faciais
agressivas,movimentosplvicosereboladosexageradoscontrastavam,
muitas vezes, com a delicadeza do canto. O exotismo dos adereos
pare-cia problematizar no apenas as identidades masculina e
feminina, mas as fronteiras entre homem e animal, entre o primitivo
e o futurista. Como destacou Eduardo Mascarenhas, no palco, Ney
mostrava-se de uma outra raa, com uma identidade extraterrena e um
aspecto hipertransgressivo: um ser estranho e marginal cultura.41
As maquiagens e as fantasias, quase todas confeccionados pelo
prprio cantor, eram refeitas e modicadas a
cadaespetculo,oquecontribuaparaaconstruodeumaidentidade
uda,mutvel,emcontraposioaumapersonaxa,confundindo, assim, os
limites entre a imagem pblica de artista e a da vida
pessoal.42Surpreendentemente,agestualidadeexageradaecertasbizarrices
do grupo no provocavam reaes agressivas. Salvo incidentes pontuais
registrados em alguns shows, o pblico mantinha-se atento e
extasiado com o espetculo. Para o psicanalista Eduardo Mascarenhas,
especialmente Ney Matogrosso atingia uma distncia tima em relao
plateia de modo a evitar ao mesmo tempo a indiferena e a rejeio. Se
viesse humanizado demais diz ele , fatalmente ocasionaria conitos
na alma conservadora [...]. Mas, como ele se encontrava quase no
mundo do desenho animado, os conitos se
atenuaram.4338Cf.VAZ,DenisePires,op. cit., p.
109.39MATOGROSSO,Neyapud QUEIROZ, Nico Pereira e PRA-TA, Leonel.
Ney Matogrosso: mocinhoebandido.Msica: a nova impresso do som, ano
I, n. 7, So Paulo: Imprima Co-municaoeEditoraoLtda. 1979, p.
27.40Zumthorseapoiananoo degestusdeBertoldBrecht
segundoaqualomodode dizer um texto no se dissocia de todo um jogo
fsico do ator. Transpondoessaideiaparao
campodaliteratura,omedie-valista arma que na fronteira entre dois
domnios semiticos, o gestus d conta do fato de que uma atitude
corporal encontra seu equivalente numa inexo de voz, e vice-versa,
continua-mente.ZUMTHOR,Paul.A letraeavoz.SoPaulo:Com-panhia das
Letras, 2001, p. 244. 41MASCARENHAS,Eduardo apudVAZ,DenisePires,op.
cit., p. 293.42 Cf. VARGAS, Heron. Secos &
Molhados:experimentalismo, mdiaeperformance.Riode
Janeiro:Anaisdo19.Encontro AnualdaCOMPS,PUC/RJ,
2010.43MASCARENHAS,Eduardo apudVAZ,DenisePires,op. cit., p.
293.ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
27ArtigoPode-sedizerqueosSecos&Molhadosoperavam,dentreoutras
coisas,comelementosdeumaestticaqueSontagdeniucomouma sensibilidade
Camp; um tipo de gosto e de produo artstica que guar-da forte apreo
pelo excesso, pelo estilo e pelo artifcio em detrimento do contedo.
Trata-se de uma arte de cunho decorativo que valoriza muito mais a
textura, a aparncia, a representao do que qualquer substncia mais
profunda das coisas. E at mesmo a imagem do andrgino especial-mente
cultivada por essa esttica que tende a exacerbar as caractersticas
sexuais e os maneirismos de certas personalidades. Camp diz a
autora representa a vitria do estilo sobre o contedo, da esttica
sobre a moralidade, da ironia sobre a tragdia.44 Vista de outro
ngulo, a atuao do grupo guardava alguma identi-dade com o
music-hall, um tipo de espetculo popular cuja inteno primor-dial,
nos termos de Barthes, extrair o gesto de sua poupa adocicada de
durao, apresent-lo num estado superlativo, denitivo, dar-lhe o
carter de uma visualidade pura, desembara-lo de toda a causa,
esgot-lo como espetculo e no como signicao.45 Desse modo, o corpo
parcialmente desnudo e os requebros ousados eram revestidos por um
certo exotismo codicado46, tornando a cena intangvel e, de alguma
maneira, neutrali-zando o seu potencial transgressor e seu efeito
de choque. Todo o desempenho do trio era ordenado e planejado para
o espao cnico recomposto aps os abalos sofridos pelos happenings
dos anos 60. Os Secos procuraram restabelecer a distino e os
limites entre palco e plateia
nosmoldesdoteatrotradicionalnoqualoartistaassumeocontroleda cena.47
Atuavam na direo do que RoseLee Goldberg deniu como a nova
performance que se congurou em meio a transformaes que ocorreram no
campo da cultura e da arte no incio dos anos 70. Em contraposio
arte conceitual e aos happenings que oresceram nas dcadas
anteriores, a nova performance vai rearmar as instituies
tradicionais do campo artstico e o mercado, passando a valorizar o
estilo, a extravagncia e bom humor.48 Os Secos estavam em sintonia
com o seu tempo. Ao contrario dos tropi-calistas que atuavam num
ambiente marcado por meios massivos ainda dotados de certa
artesanalidade, contendo brechas que permitiam incurses ousadas e
anrquicas, provocando reaes muitas vezes imprevisveis do
pblico,ogrupodeJooRicardo,MatogrossoeConradestavainserido num
contexto distinto. Alm das restries impostas pelo regime poltico
ditatorial, o campo artstico apresentava outra conformao,
sustentado por uma nova base tcnica e por uma indstria cultural
muito mais integrada e racionalizada que em dcadas anteriores. Uma
nova congurao na qual as aberturas para experimentalismos, criao
livre e improvisaes eram innitamente menores. Numa escala mais
ampla, era um tempo em que no apenas nos pases mais desenvolvidos,
mas em grande parte do mundo, a radicalidade e a irreverncia no
plano da cultura e da arte davam sinais de esgotamento e as
incurses de vanguarda eram suplantadas por produes bem acabadas,
comprometidas com o embelezamento e o entretenimento. Como apontou
Jameson, era o retorno do belo e do decorativo no lugar do antigo
sublime moderno.49 Artigo recebido e aprovado em novembro de
2013.44SONTAG,Susan,op.cit., p.
332.45BARTHES,Roland.Mitolo-gias.RiodeJaneiro:Editora Bertrad
Brasil S.A., p. 116. 46 Idem, ibidem, p.
94.47Sobreesseaspecto,Caetano Veloso arma que Ney adotou apagar a
distino entre mascu-lino e feminino, mas no entre palco e plateia.
Nos anos 60, a ideia era de que, quando Mick
Jaggerentravanopalco,todo mundo na plateia se sentia mais ou menos
igual a ele, partilhan-do o mesmo tipo de
experin-cia;jnosanos70,ocorreum movimentocompletamente oposto nesse
sentido (e David Bowie o artista mais
marcan-te),restaurandoumateatrali-dadeclssicadoespetculo.
VELOSO,CaetanoapudVAZ, Denise Pires, op. cit., p.
266.48GOLDBERG,RoseLee,op. cit., p. 144.49 JAMESON, Fredric. Fim da
arte ou m da histria? In: JAMESON,Fredric.Acultura
dodinheiro:ensaiossobrea globalizao. Petrpolis: Vozes, 2001, p.
86.