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verve
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A servido voluntria revisitada...
a servido voluntria revisitada: a poltica radical e o problema
da
auto-dominao
saul newman
IntroduoNesse artigo, irei explorar a genealogia de um
discurso
poltico contra-soberano que parte da questo por que obedecemos?.
Esta questo, inicialmente colocada pelo filsofo Etienne de La Botie
em suas investigaes acer-ca da tirania e da nossa servido voluntria
a ela, parte da posio oposta problemtica da soberania demarcada por
Bodin e Hobbes. Alm disso, permanece um proble-ma central e ainda
no resolvido no pensamento poltico que trabalha necessariamente
dentro do horizonte tico da emancipao do poder poltico. Acredito
que para en-frentar o problema da servido voluntria seja necessrio
explorar novas formas de subjetividade, tica e prticas polticas
pelas quais nossos vnculos subjetivos ao poder sejam interrogados;
e investigo essas possibilidades pela tradio revolucionria do
anarquismo, e por um compro-misso com a teoria psicanaltica. Minha
argumentao
Saul Newman professor no Departamento de Poltica do Goldsmiths
College, da Universidade de Londres.
verve, 20: 23-48, 2011
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aqui que no podemos enfrentar o problema da servido voluntria
sem uma crtica da idealizao e identificao, e aqui volto-me a
pensadores como Max Stirner, Gustav Landauer e Michel Foucault, que
desenvolveram, de ma-neiras diferentes, uma micropoltica e uma tica
da liber-dade que visa desfazer os vnculos entre o sujeito e o
poder.
A Impotncia do PoderA questo colocada por Etienne de La Botie em
mea-
dos do sculo XVI no Discurso da Servido Voluntria, ou O Contra
Um segue atual e pode, ainda, ser considerada como uma questo
poltica fundamental: No momento, gosta-ria apenas que me fizessem
compreender como possvel que tantos homens, tantas cidades, tantas
naes, s vezes suportem tudo de um Tirano s, que tem apenas o
poderio que lhe do, que no tem o poder de prejudic-los seno
enquanto aceitam suport-lo, e que no poderia fazer-lhes mal algum
se no preferissem, a contradiz-lo, suportar tudo dele. 1
La Botie observa o vnculo subjetivo que nos amarra ao poder, que
nos domina, encanta e seduz, cega e hip-notiza. A lio fundamental
que o poder no depende da coero, mas, na realidade, se apia no
nosso poder. o nosso consentimento ativo ao poder que constitui, ao
mesmo tempo, esse poder. Portanto, para La Botie, para resistir ao
tirano basta que o ignoremos, que deixemos de apoi-lo e percebamos
que pelo encantamento ilusrio que o poder se articula para lanar
sobre ns uma ilu-so da qual participamos sua fraqueza e
vulnerabilida-de. Por isso, a servido uma condio produzida por ns
ela inteiramente voluntria; e basta o desejo de no
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mais ser subjugado, a vontade de ser livre, para que nos
liberemos desta condio.
O problema da servido voluntria exatamente oposto quele
levantado por Hobbes um sculo depois. Se para La Botie no natural
que sejamos sujeitados ao poder abso-luto, para Hobbes no natural
que vivamos em qualquer outra condio; para Hobbes, a anarquia do
estado de natu-reza precisamente uma situao no natural e
intolervel. Deste modo, a problemtica da auto-dominao de La Bo-tie
inverte toda uma tradio da teoria poltica baseada na legitimao da
soberania uma tradio que ainda est muito presente nos dias de hoje.
La Botie parte de uma posio oposta, que a da primazia da liberdade,
auto-de-terminao e vnculos naturais de famlia e companheiris-mo,
como opostos aos vnculos artificiais e no-naturais de dominao
poltica. A liberdade [liberty] algo que deve ser protegido no tanto
daqueles que impem suas vonta-des sobre ns, mas da nossa prpria
tentao de renunciar a ela, de sermos deslumbrados pela autoridade,
de trocarmos nossa liberdade por riquezas, cargos, favores, e assim
por diante. Por isso, o que deve ser explicado a ligao pato-lgica
ao poder que afasta o desejo natural pela liberdade [liberty] e os
enlaces livres que existem entre as pessoas.
No entanto, as explicaes de La Botie para a servido voluntria no
so inteiramente adequadas ou convincen-tes: ele a atribui a algo
como uma degenerao, pela qual os homens livres se tornam afeminados
ou covardes, o que permite que outro os domine. Contudo, acredito
que ele levante uma das questes fundamentais para a poltica e
especialmente para a poltica radical a saber, por que as pessoas de
alguma maneira desejam sua prpria domina-o? Essa questo inaugura
uma teoria poltica contra-so-
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berana, uma linha de investigao libertria que tomada por muitos
pensadores. Wilhelm Reich, por exemplo, em sua anlise
freudiano-marxista da psicologia de massas do fascismo, apontou
para um desejo de dominao e de auto-ridade que no poderia ser
adequadamente explicado pela categoria marxista de falsa conscincia
ideolgica.2 Pierre Clastres, o antroplogo da liberdade [liberty],
notou o valor de La Botie ao mostrar a possibilidade da dominao no
ser algo inevitvel; que a servido voluntria resultado de um
infortnio histrico (ou pr-histrico), uma certa queda original, um
lapso da condio primitiva de liberdade e sem Estado para uma
sociedade dividida entre dominantes e dominados. Aqui, o homem
ocupa a posio de inominvel (nem homem, nem animal): to alienado da
sua liberdade natural que escolhe livremente, deseja, a servido um
de-sejo que era completamente desconhecido nas sociedades
primitivas.3 Acompanhando as consideraes de Clastres, Gilles
Deleuze e Flix Guattari investigaram a emergncia do Estado e o modo
pelo qual ela no depende tanto, ou no inteiramente, da dominao
violenta e da captura, mas da auto-dominao do sujeito no nvel do
seu desejo uma represso que em si mesma desejada. O Estado age
conduzindo o desejo dos sujeitos por meio de estruturas de
pensamento autoritrias e hierrquicas e modos de indivi-duao.4
Alm disso, o situciacionista Raoul Vanegeim mostrou, em uma
anlise que se assemelha muito de La Botie, que a nossa obedincia
comprada e sustentada por pe-quenas compensaes, um pouco de poder
como paga-mento pela humilhao da nossa prpria dominao: Os escravos
no querem ser escravos por muito tempo se no so compensados por sua
submisso com um fragmen-
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to de poder: toda submisso implica no direito de uma quantia de
poder, e no h poder que no enseje um grau de submisso. por isso que
alguns aceitam to facilmen-te serem governados.5
Outra Poltica...?O problema da auto-dominao nos mostra que a
cone-
xo entre poltica e subjetivao deve ser minuciosamente
investigada. Criar novas formas de poltica que a tarefa terica
fundamental nos dias de hoje exige novas formas de subjetividade,
novos modos de subjetivao. Alm disso, enfrentar a servido voluntria
implicar novas estratgias polticas e certamente uma maneira
diferente de entender a prpria poltica. Com razo, La Botie
reconhece o po-tencial para dominao em qualquer democracia: o lder
democrtico, eleito pelo povo, se intoxica com seu prprio poder e
oscila cada vez mais em direo tirania. De fato, podemos analisar a
prpria democracia moderna como um exemplo de servido voluntria em
nvel de massa. No tanto porque participamos de uma iluso pela qual
somos enganados pelas elites para pensar que ns temos voz ativa nas
tomadas de decises. Ao contrrio, a prpria democra-cia estimulou um
massivo contentamento com a impotn-cia e o amor geral submisso.
Como alternativa, La Botie afirma a ideia de uma re-pblica
livre. No entanto, indica que o inverso da servi-do voluntria no
seja a repblica livre, mas uma forma completamente diferente de
poltica. As repblicas livres tm sua prpria forma de dominao, no
apenas em suas leis, mas nas regras das classes ricas e
proprietrias sobre as pobres. Ao contrrio, quando consideramos
formas al-
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ternativas de poltica, quando pensamos em meios para ordenar e
maximizar possibilidades de no dominao, penso que devemos
considerar a poltica do anarquismo que uma poltica da anti-poltica,
uma poltica que busca a abolio das estruturas de poder poltico e da
au-toridade centralizada no Estado.
O anarquismo, a filosofia poltica radical mais hertica, tem h
muito tempo uma existncia marginalizada. Isso se deve, em parte,
sua natureza heterodoxa, pelo fato de no poder ser englobado em um
nico sistema de ideias ou estrutura de pensamento, mas, ao
contrrio, refere-se a um conjunto diverso de ideias, a abordagens
filosficas, prticas revolucionrias e movimentos e identidades
histricas. No entanto, o pensamento anarquista deve ser
reconsiderado dentre todas as tradies radicais, pois o mais sensvel
aos perigos do poder poltico, ao potencial de autoritarismo e
dominao contido em qualquer programa poltico ou insti-tuio. Nesse
sentido, particularmente atento aos vnculos pelos quais as pessoas
esto ligadas ao poder. por isso que, diferente dos
marxista-leninistas, os anarquistas sustentam que o Estado deve ser
abolido nos primeiros estgios da re-voluo: se, por um lado, o poder
do Estado for apreendido por uma vanguarda e exercido sob a
ditadura do pro-letariado para revolucionar a sociedade, ele, em
vez de definhar, vai expandir em escala e em poder, engendrando
novas contradies de classes e antagonismos. Em outras palavras,
pensar que o Estado seja algo como um meca-nismo neutro que poderia
ser usado como ferramenta de libertao caso a classe correta o
controlasse seria, de acordo com os anarquistas clssicos do sculo
XIX envolvidos como estavam em grandes debates com Marx , uma pura
fantasia que ignoraria a emaranhada lgica da dominao
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de Estado e as tentaes e sedues do poder poltico. Foi por isso
que o anarquista russo Piotr Kropotkin insistiu para que o Estado
seja examinado como uma estrutura de poder especfica que no pode
ser reduzida aos interesses de uma classe particular. E em sua
prpria essncia dominador: E h aqueles que, como ns, vem no Estado
no apenas na sua forma efetiva e em todas as formas de dominao que
ele possa assumir, mas em sua prpria es-sncia, um obstculo para a
revoluo social.6 Alm disso, o poder do Estado se perpetua pelo
vnculo subjetivo que ele forma com aqueles que pretendem
control-lo, pela influncia corrupta que exerce sobre eles. Nas
palavras de outro anarquista, Mikhail Bakunin, ns obviamente so-mos
socialistas e revolucionrios sinceros e ainda assim, se estivssemos
dotados de poder [...] no estaramos onde estamos agora. 7
Essa crtica inflexvel ao poder poltico, e convico de que a
liberdade no pode ser concebida dentro da es-trutura do Estado,
distingue o anarquismo das outras fi-losofias polticas. Ele
contrasta com o liberalismo, que na realidade uma poltica da
segurana, na qual o Estado se torna necessrio para proteger a
liberdade individual da liberdade alheia: de fato, a atual
securitizao do Es-tado por meio do estado de exceo permanente
revela a verdadeira face do liberalismo. A esse respeito, difere-se
tambm do socialismo, que v o Estado como fundamen-tal para tornar a
sociedade mais igualitria e cujo decl-nio final pode ser
testemunhado pelo triste destino dos partidos social-democratas de
hoje com seu centralismo autoritrio, seu fetiche com a lei e a
ordem e sua absoluta cumplicidade com o neoliberalismo global. Alm
disso, o anarquismo deve ser distinguido do leninismo revolu-
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cionrio, que hoje representa um modelo completamen-te
ultrapassado de poltica radical. Ento, o que define o anarquismo
sua recusa ao poder de Estado, mesmo o da estratgia revolucionaria
de tomada do poder de Estado. Em vez disso, o foco do anarquismo
est na auto-eman-cipao e na autonomia, algo que no pode ser
alcanado por vias parlamentares democrticas ou por vanguardas
revolucionrias, mas sim pelo desenvolvimento de pr-ticas
alternativas e relaes baseadas na associao livre, liberdade
equitativa e cooperao voluntria.
pela sua alteridade ou exterioridade a qualquer mo-delo de
poltica centrada no Estado que o anarquismo tem sido amplamente
menosprezado na tradio poltica radical. Ainda assim, diria que
atualmente nos encontra-mos em um momento politicamente anarquista.
Com o ocaso do projeto socialista de Estado e do leninismo
re-volucionrio, e com a democracia liberal resumindo-se a uma mera
poltica de segurana, a poltica radical atual tende a se situar cada
vez mais fora do Estado. O ativis-mo radical contemporneo parece
refletir certas orien-taes anarquistas em sua nfase nas redes
descentrali-zadas e na ao direta, ao invs de lideranas partidrias e
representao poltica. H certo descomprometimento com o poder de
Estado, um desejo de pensar e agir alm de suas estruturas, na direo
a uma maior autonomia. Essas tendncias esto se tornando mais
pronunciadas na atual crise econmica, algo que aponta para os
prprios limites do capitalismo, e certamente para o fim do mo-delo
econmico neoliberal. A resposta para as falhas do neoliberalismo
mais interveno estatal. um absurdo falar no retorno do Estado
regulador: na verdade, o Esta-do nunca se retirou do neoliberalismo
e toda a ideologia
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do libertarismo econmico ocultou um desdobramento muito mais
intenso do poder de Estado no domnio da segurana e na regulao,
disciplinarizao e vigilncia da vida social. Alm disso, est claro
que o Estado no ir nos ajudar na atual situao; no h porque buscar
por sua proteo. De fato, o que est emergindo algo como um
afastamento do Estado; as futuras insurreies desa-fiaro a hegemonia
do Estado, que nos governa cada vez mais pela lgica da exceo.
Ademais, a relevncia do anarquismo tambm refle-tida em nvel
terico. Muitas questes e preocupaes dos pensadores contemporneos
continentais,8 por exemplo a ideia de formas de poltica
no-estatais, no-partidrias e ps-classistas; o aparecimento de
multides e assim por diante parecem evocar uma poltica anarquista.
De fato, particularmente evidente na busca por um novo sujeito
poltico: as multides de Michael Hardt e Antonio Negri, o povo para
Ernesto Laclau, a excluda parte-da-no-par-te para Jacques Rancire,
a figura do militante para Alain Badiou; tudo isso reflete uma
tentativa de pensar novos modos de subjetividade que talvez sejam
mais amplos e menos restritivos do que a categoria de proletariado
tal como foi politicamente constituda pela vanguarda
mar-xista-leninista. Uma abordagem similar subjetividade poltica
foi colocada pelos anarquistas no sculo XIX, afirmando que a noo
marxista de classe revolucionria era exclusivista e que buscaram
incluir o campesinato e o lmpen-proletariado como identidades
revolucionrias.9 No meu ponto de vista, o anarquismo a ponta solta
no pensamento poltico contemporneo ocidental uma presena espectral
que nunca foi verdadeiramente reco-nhecida. 10
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O sujeito anarquistaO anarquismo uma poltica e tica na qual o
poder
continuamente interrogado em nome da liberdade [free-dom]
humana, e na qual a existncia humana firmada na ausncia de
autoridade. No entanto, isso levanta a questo se h um sujeito
anarquista como tal. Aqui, gostaria de re-considerar o anarquismo a
partir do problema da servido voluntria. Embora os anarquistas
clssicos no fossem des-conhecedores da vontade de poder que reina
no corao do ser humano que o motivo pelo qual eles eram to
pers-picazes na abolio das estruturas de poder que incitariam tais
desejos o problema da auto-dominao, o desejo pela sua prpria
dominao, permaneceu insuficientemente teorizado no anarquismo. 11
Para os anarquistas dos scu-los XVIII e XIX como William Godwin,
Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin e Piotr Kropotkin , condi-
cionados como estavam pelos discursos racionalistas do hu-manismo
iluminista, o ser humano deseja naturalmente a liberdade [freedom];
por isso, a revoluo contra o poder do Estado fez parte da narrativa
racional da emancipao humana. Os constrangimentos externos e
artificiais do po-der de Estado seriam descartados para que as
propriedades morais e racionais fundamentais do homem pudessem ser
expressas e para que a sociedade pudesse ficar em harmo-nia consigo
mesma. H uma certa oposio maniquesta pressuposta no pensamento
anarquista clssico, entre a so-ciedade humana governada pelas leis
naturais, e o poder poltico e as leis feitas pelo homem, expressas
no Estado, que so artificiais, irracionais e impedem o livre
desenvolvi-mento das foras sociais. H, alm disso, uma sociabilidade
inata ao homem uma tendncia natural, como analisou Kropotkin, em
direo ajuda mtua e cooperao que
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foi distorcida pelo Estado, mas que se caso fosse livre para se
desenvolver produziria uma harmonia social na qual o Estado se
tornaria desnecessrio.12
Enquanto a ideia de uma sociedade sem Estado, sem soberania e
sem leis for desejvel, e digo mais, for o hori-zonte final da
poltica radical, e enquanto no houver d-vidas de que a autoridade
poltica e legal um estorvo na vida social e na existncia humana em
geral, o que tende a ficar obscuro na separao ontolgica entre
sujeito e poder o problema da servido voluntria que indica a
cum-plicidade mais problemtica entre o sujeito e o poder que o
domina. Levando isso em considerao, para explicar a vontade pela
auto-dominao e para desenvolver estrat-gias ticas e polticas para
enfrent-la, seria preciso propor uma teoria anarquista da
subjetividade, ou pelo menos uma teoria mais desenvolvida que a
encontrada no pensamento anarquista clssico. Isso tambm implicaria
em um movimento para alm das categorias essencialis-tas e
racionalistas do anarquismo clssico, um movimen-to que em outro
lugar chamei de ps-anarquismo.13 No quero dizer com isso que os
anarquistas clssicos foram necessariamente ingnuos a respeito da
natureza humana ou da poltica; ao contrrio, afirmo que o seu
humanismo e racionalismo resultaram em algo como que um ponto-cego
em torno da questo do desejo, cuja natureza escura, con-vulsionada
e autodestrutiva seria posteriormente revelada pela psicanlise.
Psicanlise e ligaes apaixonadas importante, ento, analisar a
ligao subjetiva ao po-
der no nvel da psique.14 Uma dependncia psicolgica do
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poder, investigada por freudiano-marxistas como Marcuse e
Reich,15 mostrou que as possibilidades de uma poltica emancipatria
so, s vezes, comprometidas por desejos autoritrios ocultos; que h
sempre um risco da emergn-cia de prticas autoritrias e hierrquicas
e de instituies nas sociedades ps-revolucionrias. O lugar central
do sujeito na poltica, e na filosofia no abandona-do aqui, mas
ampliado. Projetos polticos radicais, por exemplo, tem que lutar
contra as ambiguidades do desejo humano, contra comportamentos
sociais irracionais, con-tra motivaes violentas e agressivas, e at
mesmo contra desejos inconscientes de autoridade e dominao.
No estou sugerindo que a psicanlise seja necessaria-mente,
poltica ou socialmente, conservadora. Ao contrrio, sustento que
seja central psicanlise um ethos libertrio pelo qual o sujeito
busca obter maior autonomia, e pelo qual o sujeito estimulado,
pelas regras da livre associa-o, a dizer a verdade do
inconsciente.16 Insistir no lado negro da psique humana em sua
dependncia do poder, sua identificao com figuras autoritrias, seus
impulsos agressivos pode servir como um alerta a qualquer pro-jeto
revolucionrio que busque transcender a autoridade poltica. Esta foi
a mesma questo colocada por Jacques Lacan em resposta ao
radicalismo do Maio de 68: a aspi-rao revolucionria tem apenas um
efeito possvel de acabar como um discurso mestre. isso que a
experin-cia provou. O que voc aspira como revolucionrio um mestre.
Voc ter um.17 O que Lacan est sugerindo com este sinistro
prognstico que poderia ser superfi-cialmente, embora, no meu ponto
de vista, incorretamen-te, interpretado como politicamente
conservador a conexo oculta, at mesmo a dependncia entre o
sujeito
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revolucionrio e a autoridade; e o modo pelo qual os mo-vimentos
de resistncia e at de revoluo podem, de fato, sustentar a eficincia
simblica do Estado, reafirmando ou reinventando a posio da
autoridade.
A psicanlise no retira, de maneira alguma, a pos-sibilidade da
emancipao humana, de sociabilidade e cooperao voluntria: de fato,
ela mostra as tendncias conflitantes no sujeito entre desejos
agressivos de poder e dominao, e o desejo de liberdade [freedom] e
coe-xistncia harmoniosa. Como afirma Judith Butler, alm disso, a
psique como uma dimenso do sujeito que no redutvel ao discurso e ao
poder, e que o excede algo que pode ser explicado no s pelas nossas
ligaes apaixonadas pelo poder e (referindo-se a Foucault) a mo-dos
de subjetivao e comportamentos regulatrios que o poder nos impe,
mas tambm a nossa resistncia a eles.18
Identificao do EgoUm dos insights da psicanlise, algo que foi
revelado, por
exemplo, no estudo de Freud sobre a psicodinmica de gru-pos, foi
o papel da identificao na constituio de relaes hierrquicas e
autoritrias. Na relao entre o membro de um grupo e a figura do
lder, h um processo de identifica-o, semelhante ao amor, no qual o
indivduo tanto idealiza quanto se identifica com o lder como um
tipo ideal, ao ponto que o objeto de devoo chega a suplantar o
ide-al de ego do indivduo.19 essa idealizao que constitui o vnculo
subjetivo no apenas entre o indivduo e o lder do grupo, mas tambm
com os outros membros do grupo. Ento, a idealizao se torna uma
maneira de entender a submisso voluntria vontade de lderes
autoritrios.
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No entanto, ns tambm precisamos entender o lugar da idealizao na
poltica no sentido mais amplo, e aqui que afirmaria que o
pensamento do filsofo jovem hegeliano Max Stirner torna-se
importante. A crtica de Stirner ao humanismo de Ludwig Feuerbach
permite-nos confrontar o problema da auto-dominao. Stirner mostra
que o pro-jeto feuerbachiano de substituir Deus pelo Homem de
inverter o sujeito e o predicado para que o humano se torne a
medida do divino ao invs do divino a do humano20 apenas reafirmou a
autoridade e a hierarquia religiosa ao invs de afast-la. Portanto,
a insurreio humanista de Feuerbach apenas teve xito em criar uma
nova religio o Humanismo que Stirner associa a uma certa
escravi-zao de si. O ego individual est agora dividido entre ele
mesmo e uma forma idealizada de si agora consagrada na ideia de
essncia humana um ideal que est ao mesmo tempo fora do indivduo,
tornando-se uma moral abstrata e um espectro racional pelo qual ele
mede a si mesmo e se su-bordina. Segundo Stirner: Homem, tens a
cabea cheia de fantasmas [...] Imaginas coisas grandiosas e
inventas todo um mundo de deuses tua disposio, um reino de espritos
que te chama, um ideal que te acena.21
Para Stirner, a subordinao de si a esses ideais abstratos
(ideias fixas) tem implicaes polticas. Em sua anlise, humanismo e
racionalismo se tornam os princpios discur-sivos pelos quais o
desejo do indivduo est vinculado ao Estado. Isso ocorre, por
exemplo, pela identificao com os papis de cidadania definidos pelo
Estado. Alm disso, para Stirner, em uma linha de pensamento que
aproxima paralelos com La Botie, o prprio Estado uma abstrao
ideolgica que s existe porque permitimos que ele exista, porque
abdicamos do nosso poder sobre ns mesmos ao
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que ele chama de princpio de domnio. Em outras pala-vras, a
ideia de Estado, de soberania, que nos domina. O poder do Estado na
realidade baseado no nosso poder, e s porque o indivduo no
reconhece esse poder, porque ele se humilha diante de uma
autoridade poltica externa, que o Estado continua a existir. Como
Stirner corretamente su-ps, o Estado no pode funcionar apenas pela
represso e coero; ao contrrio, o Estado depende da nossa permisso
para sermos dominados. Stirner quer mostrar que os dis-positivos
ideolgicos no esto preocupados apenas com questes econmicas ou
polticas eles tambm se firmam em necessidades psicolgicas. A
dominao do Estado, diz Stirner, depende da nossa vontade de deix-lo
dominar: de que te servem as suas leis se ningum as segue? E as
suas ordens, se ningum lhes obedece? [...] O Estado no imaginvel
sem dominao [Herrschaft] e opresso [Kne-chtschaft] (sujeio); [...]
Mas quem tem de contar com a ausncia de vontade em outros para
subsistir apenas um produto imperfeito deles, tal como o senhor um
produto imperfeito do escravo. Se acabasse a sujeio, a dominao
teria os dias contados. 22
Stirner foi impiedosa e implacavelmente criticado por Marx e
Engels como So Max em A Ideologia Alem: eles o acusaram do pior
tipo de idealismo, de ignorar a econo-mia e as relaes de classes
que formam a base material do Estado, o que lhe permitiria deixar
de existir por um sim-ples desejo. No entanto, o que falta nessa
crtica valorizar a anlise de Stirner ao destacar o vnculo subjetivo
da servi-do voluntria que sustenta o poder de Estado. No que ele
afirme que o Estado no exista no senso material, mas que a sua
existncia sustentada e suplementada por um vnculo psquico e uma
dependncia desse poder, assim como o re-
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conhecimento e a idealizao da sua autoridade. Qualquer crtica ao
Estado que ignore essa dimenso da idealizao subjetiva est sujeita a
perpetuar esse poder. O Estado deve primeiro ser superado como uma
ideia para que depois pos-sa ser superado na realidade; ou, mais
precisamente, esses so os dois lados do mesmo processo.
A importncia da anlise de Stirner que se ajusta muito bem tradio
anarquista, embora rompa com o essencialismo humanista de modo
relevante23 consiste em explorar esta auto-sujeio voluntria que
forma o ou-tro lado da poltica, a qual a poltica radical deve
encontrar estratgias para combater. Para Stirner, o indivduo apenas
pode se libertar da servido voluntria se ele abandonar to-das as
identidades essenciais e se enxergar como um vazio radicalmente
auto-criador: Quanto a mim, parto de um pressuposto, que sou eu
proprietrio; mas este meu pres-suposto no aspira perfeio, como o
homem que luta pela sua perfeio, mas serve-me simplesmente para
dele desfrutar e para o consumir [...] Eu no me pressuponho, porque
me ponho, ou crio, a cada momento. 24
Enquanto a abordagem de Stirner direcionada ideia da
auto-liberao individual de essncias, identidades fi-xas ele levanta
a possibilidade de uma poltica coletiva a partir da noo de associao
de egostas, embora, no meu ponto de vista, ela seja
insuficientemente desenvolvida. A quebra com os vnculos da servido
voluntria no pode ser uma simples iniciativa individual. De fato,
como suge-re La Botie, ela sempre implica em uma poltica coletiva,
em uma rejeio coletiva ao poder tirnico pelo povo. No estou dizendo
que Stirner nos fornece uma teoria da ao poltica e tica completa ou
vivel. No entanto, a importn-cia do pensamento de Stirner consiste
na inveno de uma
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micropoltica, na nfase na mirade de modos pelos quais somos
atados ao poder no nvel da nossa subjetividade, e s maneiras pelas
quais podemos nos libertar dele. aqui que devemos prestar muita
ateno distino feita por ele entre Revoluo e insurreio: No se devem
tomar como sinnimos Revoluo e insurreio. A primeira consiste numa
transformao radical do estado das coisas, do esta-do de coisas
(status) vigente, do Estado ou da sociedade; , assim, um ato
poltico ou social. A segunda tem como con-sequncia inevitvel a
transformao do estado das coisas, que no parte dela prpria, mas da
insatisfao do homem consigo mesmo; no um levante concertado, mas
uma re-belio do indivduo, um emergir sem pensar nos arranjos de
fora que da possam brotar. A Revoluo objetiva novos ar-ranjos; a
insurreio leva a que no nos deixemos ser arran-jados,
organizando-nos antes ns prprios, e no deposita grandes esperanas
nas instituies. No uma luta contra o status quo, uma vez que, desde
que ela vingue, o status quo entra em colapso por si mesmo; apenas
um meio ativo que permite ao eu emancipar-se da situao vigente.
25
Podemos extrair da que a poltica radical no deve ser
simplesmente voltada transformao radical das ins-tituies
estabelecidas, como o Estado, mas tambm ao ataque relao muito mais
problemtica pela qual o su-jeito encantado e dependente do poder.
Desse modo, a insurreio contra a opresso externa, porm, mais
fun-damentalmente, contra a represso auto-internalizada. Isso
envolve, assim, uma transformao do sujeito, uma micropoltica e tica
que visa o aumento da autonomia do indivduo em relao ao poder.
Aqui, podemos tambm recorrer ao anarquismo espiri-tual de Gustav
Landauer, que afirmou que no pode haver
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uma revoluo poltica e nenhuma possibilidade de so-cialismo sem
que haja, ao mesmo tempo, uma transfor-mao na subjetividade das
pessoas, uma certa renovao no esprito e na vontade de desenvolver
novas relaes com os outros. As relaes existentes entre as pessoas
ape-nas reproduzem e reafirmam a autoridade do Estado de fato, o
prprio Estado uma certa relao, um certo modo de se comportar e de
interagir, uma certa marca na nossa subjetividade e conscincia (e
diria no nosso incons-ciente) e desse modo apenas pode ser
transcendental por meio de uma transformao espiritual das relaes.
Como diz Landauer, ns as destrumos [as relaes] ao estabe-lecemos
novas relaes, ao agirmos diferente. 26
Uma micro-poltica da liberdadeSuperar o problema da servido
voluntria, que se mos-
trou um obstculo para os projetos de poltica radical no passado,
implica, portanto, esse tipo de questionamento ti-co de si, uma
interrogao quanto ao envolvimento subje-tivo e cumplicidade com o
poder. Isso se baseia na inven-o de estratgias micropolticas que
visam o rompimento com poder de Estado, uma certa poltica de
desidentificao na qual possvel libertar-se das identidades e papis
sociais estabelecidos, desenvolvendo novas prticas, modos de
exis-tncia e formas polticas que no mais sejam condiciona-das pela
soberania do Estado. Isso significaria pensar sobre o que a
liberdade para alm da ideologia da segurana (ao invs de
simplesmente entender a liberdade como algo con-dicionado ou
necessariamente limitado pela segurana). Pre-cisamos pensar, tambm,
no que significa democracia para alm do Estado, o que significa
poltica para alm do partido,
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organizao econmica para alm do capitalismo, globaliza-o para alm
das fronteiras e vida para alm da biopoltica.
O foco aqui tem que ser, por exemplo, o questionamento crtico do
desejo por segurana. Segurana, na sociedade contempornea, tornou-se
uma forma de metafsica, um fundamentalismo, que no apenas o mpeto
por trs de uma expanso e intensificao sem precedentes do poder de
Estado, mas que, tambm, torna-se um tipo de condio para a vida: a
vida deve estar segura das ameaas seja uma ameaa nossa proteo,
segurana financeira, etc. mas isso significa que a prpria
possibilidade existencial no apenas da liberdade humana, mas da
prpria poltica est sendo negada. Podem a lei e os marcos
institucio-nais liberais nos protegerem da segurana; podem opor-se
ao movimento implacvel em direo securitizao da vida? Devemos nos
lembrar que, como mostraram Gior-gio Agamben e outros, a
biopoltica, a violncia soberana e a securitizao so apenas o outro
lado da lei, e que no passa de uma iluso liberal imaginar que a lei
possa limi-tar o poder. Devemos inventar uma nova relao com a lei e
com as instituies, no mais como sujeitos obedientes, nem como
sujeitos que simplesmente transgridem (que apenas o outro lado da
obedincia em outras palavras, a transgresso, assim como a
entendemos por Lacan, con-tinua a afirmar a lei27). Ao contrrio,
devemos transcender esse binrio obedincia/transgresso. O anarquismo
mais que transgresso; um aprender a viver para alm da lei e do
Estado, por meio da inveno de novos espaos e de novas prticas de
liberdade e autonomia que sero, por na-tureza, um tanto frgeis e
experimentais.
Assumir tais riscos exige disciplina, mas essa pode ser um tipo
de disciplina tica que impomos a ns mesmos.
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Precisamos ser disciplinados para nos tornar indisciplina-dos. A
obedincia autoridade parece vir facilmente, at mesmo naturalmente,
como observou La Botie; ento, a revolta contra a autoridade requer
uma elaborao discipli-nada e paciente de novas prticas de
liberdade. Isso algo que Foucault talvez estivesse buscando com sua
noo de askesis, exerccios ticos que eram parte do cuidado de si,
para ele inseparveis da prtica de liberdade. 28 O alvo de tais
estratgias era, para Foucault, inventar modos de vida nos quais se
menos governado ou no se governado de maneira alguma. De fato, a
prtica da crtica em si, de acor-do com Foucault, visa no apenas
questionar a reivindica-o do poder por legitimidade e verdade,
porm, mais im-portante, questionar os diferentes modos pelos quais
somos vinculados ao poder e aos regimes de governamentalidade
atravs de certos desdobramentos da verdade pela insis-tncia do
poder de que nos conformemos a certas verdades e normas. Desse
modo, para Foucault: A crtica ser a arte da no-servido voluntria,
ou da indocilidade reflexiva.29 Portanto, Foucault fala de um
questionamento dos limites da nossa subjetividade que requer um
trabalho paciente para dar forma impacincia da liberdade.30 Ento,
talvez possamos enfrentar o problema da servido voluntria por meio
de uma disciplina da indisciplina.
Concluso: uma poltica da recusa A servido voluntria a recusa
dominao do poder
sobre ns no deve ser confundida com uma negao da poltica. Ao
contrrio, deve ser entendida como a construo de uma forma
alternativa de poltica, e como intensificao da ao poltica; podemos
chamar isso de uma poltica de
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afastamento do poder, uma poltica de no-dominao. No h nada de
apoltico em tal poltica da recusa: ela no uma negao da poltica como
tal, mas uma recusa das formas estabelecidas e prticas polticas
imobilizadas no Estado, e o desejo de criar novas formas de poltica
fora do Estado o desejo, em outras palavras, de uma poltica da
autonomia. De fato, a noo de autonomia do poltico trazida por Carl
Schmitt para afirmar a soberania do Estado a prerrogativa do Estado
para definir a oposio amigo/inimigo 31 deve ser entendida, na minha
leitura alternativa, como a sugesto de uma poltica da autonomia. O
momento da poltica, pro-priamente, fora do Estado e busca engendrar
novas relaes e modos de vida no-autoritrios.
Uma srie de pensadores contemporneos, como Giorgio Agamben,
Michael Hardt e Antonio Negri, pro-ps uma noo similar de recusa ou
afastamento como modo de pensar a poltica radical hoje. De fato, o
interesse recente na figura de Bartleby (do Bartleby, o escrivo, de
Herman Melville) como paradigma de resistncia ao po-der, aponta
para uma percepo dos limites dos modelos existentes de poltica
radical e revolucionria, e, alm disso, um reconhecimento da
necessidade de ultrapassar a sujei-o voluntria ao poder. O
impassvel gesto de Bartleby de desafio autoridade acho melhor no
pode ser analisado como um afastamento ativo da participao em
prticas e atividades que reafirmam o poder, e sem a qual o poder
entraria em colapso. Nas palavras de Hardt e Negri, Esses simples
homens [Bartleby e Michael K, um per-sonagem de um romance de J. M.
Coetzee] e sua recusa absoluta s podem apelar ao nosso dio
autoridade. A recusa ao trabalho e autoridade, a recusa servido
vo-luntria, o comeo da poltica libertadora. 32
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Nesse artigo, coloquei o problema da servido volunt-ria
diagnosticado h tempos por La Botie no cer-ne do pensamento poltico
radical. A servido voluntria, cujos contornos foram lapidados pela
teoria psicanaltica, pode ser entendida como um limite pelo qual o
sujeito vinculado ao poder no nvel do seu desejo. Ao mesmo tempo, a
ideia da servido voluntria tambm aponta para a prpria fragilidade e
reticncia da dominao, e o caminho pelo qual, por meio da inveno de
estratgias micropolticas e ticas de subjetivao uma poltica anrquica
de no-servido voluntria pode-se afrouxar e desatar este lao e criar
espaos alternativos de poltica para alm da sombra do soberano.
Traduo do ingls por Anamaria Salles
Notas1 Etienne de La Botie. La Servitude Volontaire, or the
Anti-Dictato [Slaves by Choice]. Egham, Runnymede Books, 1988. [Em
portugus: Etienne de La Botie. Discurso da servido voluntaria.
Traduo de Laymert Garcia dos Santos. So Paulo, Brasiliense, 1982.]2
Wilhelm Reich. The Mass Psychology of Fascism. Nova Iorque, Farrar,
Straus and Giroux, 1980. [Em portugus: Wilhelm Reich. Psicologia de
massas do fascismo. Traduo de Maria da Graca M. Macedo. So Paulo,
Martins Fon-tes, 1988.]3 Pierre Clastres. Freedom, Misfortune, the
Unnameable in Archaeology of Violence. Traduo de Jeanine Herman.
Nova Iorque, Semiotext(e), 1994, pp. 93-104. [Em portugus: Pierre
Clastres. Liberdade, Mau encontro, In-ominvel in Arqueologia da
violncia: pesquisas de antropologia poltica. Tra-duo de Paulo
Neves. So Paulo, Cosac & Naify, 2004, pp.153-171.]4 Deleuze e
Guatarri apontam para a maneira misteriosa pela qual somos atados
ao poder de Estado, algo que o termo servido voluntria tanto
ilu-mina quanto obscurece: Seguramente, o Estado no o lugar da
liberdade,
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nem o agente da servido forada ou da captura. Deveramos ento
falar de uma servido voluntria?. Gilles Deleuze e Felix Guattari. A
Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Traduo de Brian
Massumi. Min-nesota, University of Minnesota Press, 2004, p.460.
[Em portugus: Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mil plats
capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Traduo de Peter Pl Pelbart e
Janice Caiafa. So Paulo, Editora 34, 1997.]5 Raoul Vaneigem. The
Revolution of Everyday Life. Traduo de Donald Nicholson-Smith.
Londres, Rebel Press, 1994, p.132.6 Piotr Kropotkin. The State: Its
Historic Role. Londres, Freedom Press, 1943. [Em portugus: Piotr
Kropotkin. O Estado e seu papel histrico. Traduo de Alfredo Guerra.
So Paulo, Nu-Sol/Imaginrio/SOMA, Centro Anarquis-ta Brancaleone,
2000.]7 Mikhail Bakunin. Political Philosophy: Scientific
Anarchism. Londres, The Free Press, 1953, p. 249.8 A partir da
segunda metade do sculo XX, difundiu-se entre os filsofos
anglo-saxnicos a designao pensamento continental para fazer
refern-cia produo dos pases da Europa continental (principalmente
Frana, Alemanha e Itlia), em contraposio aos britnicos e
estudunidenses (N.E.)9 Ver a noo de Bakunin de massa revolucionria
oposta categoria marxis-ta de classe em Mikhail Bakunin. Marxism,
Freedom and the State. Traduo de K. J. Kenafick. London, Freedom
Press, 1984, p. 47.10 Para uma discusso acerca da relevncia do
anarquismo clssico e da filoso- fia poltica radical contempornea,
ver meu artigo: Saul Newman. Anarchism, Poststructuralism and the
Future of Radical Politics Today in Substance. Issue 113, vol. 36,
n. 2, 2007, pp. 3-19.11 Esse reconhecimento da vontade por poder no
corao da subjetividade hu-mana no endossa a posio hobbesiana que
afirma a necessidade de uma for-te soberania. Ao contrrio, torna o
objetivo de fragmentar e abolir estruturas centralizadas de poder e
autoridades mais necessrio. Certamente se, em outras palavras, a
natureza humana est inclinada s tentaes do poder e da vontade por
dominao, a ltima coisa que deveramos fazer confiar em um sobe-rano
com poder absoluto sobre ns. Um ponto similar colocado por Paolo
Virno (ver o ensaio Multitude and Evil), que sugere que se
aceitarmos a afirmao realista de que temos como humanos uma
capacidade para o mal, ento, ao invs disso justificar a autoridade
de Estado centralizado, devera-mos ser ainda mais cautelosos acerca
da concentrao de poder e violncia nas
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mos do Estado. Cf. Paolo Virno. Multitude: Between Innovation
and Nega-tion. Nova Iorque, Semiotext(e), 2008.12 Cf. Piotr
Kropotkin. Mutual Aid, A Factor of Evolution. Reino Unido, Dodo
Press, 2007.13 Saul Newman. The Politics of Postanarchism.
Edinburgh, Edinburgh Uni-versity Press, 2010. [Ver tambm: Saul
Newman. A poltica do ps-anar-quismo in Revista Verve. vol. 9. So
Paulo, Nu-Sol, 2006, pp. 30-50.]14 Isso prximo ao que Jason Glynos
se refere como o problema da auto-trans- gresso (ver: Jason Glynos.
Self-Transgressive Enjoyment as a Freedom Fetter in Political
Studies, vol. 56, n. 3, 2008, pp. 679-704). O argumento aqui que a
conceituao e a prtica de liberdade sejam muito confundidas pelas
vrias formas de auto-transgresso, onde o sujeito se dedica a
ativi-dades que limitam sua liberdade que o previne de atingir seu
objeto de desejo, ou atingir um certo ideal que algum possa ter de
si por causa da satisfao inconsciente (gozo) derivada de sua
transgresso. Da, a limitao liberdade do sujeito no mais externa
(como no paradigma da liberdade negativa), mas interna. Essa pode
ser outra maneira de se pensar o problema da servido voluntria
pelas lentes da psicanlise.15 Ver tambm o estudo de Theodor Adorno.
The Authoritarian Personality. Nova Iorque, Wiley, 1964.16 De
acordo com Mikkel Borch-Jacobsen, a teoria psicanaltica de grupos
de Freud implica em algo como uma revolta ou insurreio contra o
poder injus-tificvel da hipntica. Mikkel Borch-Jacobsen. The
Freudian Subject. Transla-tion of Catherine Porter. Stanford,
Stanford University Press, 1988, p. 148.17 Jacques Lacan.
Analyticon in The Seminar of Jacques Lacan, Book XVII: The Other
Side of Psychoanalysis. Jacques-Alain Miller (org.). Traduo de
Russell Grigg. Nova Iorque/Londres, W.W. Norton & Co, 2007, p.
207.18 Judith Butler. The Psychic Life of Power: Theories in
Subjection. Stanford, Stanford University Press, 1997, p. 86.19
Sigmund Freud. Group Psychology and the Analysis of the Ego. The
Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund
Freud, Volume XVIII (1920-1922): Beyond the Pleasure Principle,
Group Psychology and Other works. Psychoanalytic Electronic
Publishing, 1955. 20 Ludwig Feuerbach. The Essence of Christianity.
Traduo de George El-iot. Nova Iorque/ Londres, Harper & Row,
1957. [Em portugus: Ludwig
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Feuerbach. A essncia do crisitanismo. Traduo de Jos da Silva
Brando Petrpolis. Vozes, 2009.]21 Max Stirner. The Ego and Its Own.
David Leopold (Org.). Cambridge, Cam-bridge University Press, 1995,
p. 43. [Em portugs: Max Stirner. O nico e sua propriedade. Traduo
de Joo Barrento. So Paulo, Martins Fontes, 2009.]22 Idem, pp.
174-175.23 Ver minha leitura de Stirner como um anarquismo
ps-estruturalista em Saul Newman. From Bakunin to Lacan:
Anti-authoritarianism and the Dislo-cation of Power. MA, Lexington
Books, 2001.24 Max Stirner, 1995, op. cit., p. 150.25 Idem, pp.
279-80. Os itlicos so de Stirner.26 Martin Buber apud Landauer.
Paths in Utopia. Nova Iorque, Syracuse University Press, 1996,
p.47.27 Ver a discusso de Lacan sobre a dialtica da lei e
transgresso em Jacques Lacan.Kant avec Sade. Critique , vol. 91,
Setembro, 1962, pp. 291-313. 28 Cf. Michel Foucault. The History of
Sexuality, Volume 3: The Care of the Self. Nova Iorque, Vintage,
1988. [Em portugus: Michel Foucault. Histria da se-xualidade 3 : o
cuidado de si. Traduo de Maria Thereza da Costa Albuquerque. So
Paulo, Graal, 2009.]29 Michel Foucault. What is Critique? in What
is Enlightenment: Eigh-teenth Century Answers and Twentieth Century
Questions. James Schmidt (Org.). Berkeley, University of California
Press, 1996, p. 386.30 Michel Foucault. What is Enlightenment? in
Essential Works of Michel Foucault 1954-1984: Volume 1, Ethics.
Paul Rabinow (Org.). Traduo de Robert Hurley. Londres, Penguin
Books, 2000, p. 319. [Em portugs: Michel Foucault. O que so as
luzes? in Arqueologia das Cincias e Histria dos Sistemas de
Pensamento. Ditos e escritos vol. II. Traduo de Elisa Monteiro.Rio
de Janeiro, Forense Universitria, 2005.]31 Carl Schmitt. The
Concept of the Political. Traduo de George Schwab. Chicago,
University of Chicago Press, 1996.32 Michael Hardt e Antonio Negri.
Empire. Cambridge, Harvard University Press, 2000, p. 204. [Em
portugus: Michael Hardt e Antonio Negri. Imp-rio. Traduo de Berilo
Vargas. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2003.]
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ResumoO artigo investiga o problema da servido voluntria e
explora suas implicaes na atual teoria poltica radical, assumindo
que o dese-jo pela prpria dominao mostrou-se um significativo
obstculo para os projetos revolucionrios de libertao humana. O foco
so os projetos micropoltico e tico que questionam o vnculo da
subje- tividade com o poder e a autoridade projetos elaborados por
pensadores to diversos quanto Max Stirner, Gustav Landauer e Michel
Foucault. A questo da servido voluntria traz tona uma tradio de
contra-soberania na poltica interessada no na legitimidade do poder
poltico, mas nas possibilidades de novas prticas de
liberdade.Palavras-chave: servido voluntria, subjetividade, teoria
poltica radical.
AbstractThis paper investigates the problem of voluntary
servitude and explores its implications for radical political
theory today, assum-ing that the desire for ones own domination has
proved a major hindrance to revolutionary projects of human
liberation. Central here are micropolitical and ethical projects of
interrogating ones own subjective attachment to power and authority
projects elaborated by thinkers as diverse as Max Stirner, Gustav
Lan-dauer and Michel Foucault. The question of voluntary servitude
brings to the surface a counter-sovereign tradition in politics in
which the central concern is not the legitimacy of political power,
but rather the possibilities for new practices of freedom.
Keywords: voluntary servitude, subjectivity, radical political
theory.Recebido para publicao em 15 de maro de 2011. Confirmado em
20 de maio de 2011.