Top Banner
Um limite tenso : La c an entre a filosofía e a psi c análise Organizador Vladimir Safatle ora <£dii NESP
369

Safatle - Um Limite Tenso

Dec 16, 2015

Download

Documents

Carlos Inacio

O livro traça uma cartografia diversificada que mostra a riqueza das questões e promessas postas pela experiência intelectual de Jacques Lacan.
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • Um limite tenso :Laca n e n tre a f iloso fa

    e a psica n lise

    Organizador Vladimir Safatle

    ora

  • 20 02 Editora UNESP

    Direitos de publicao reservados :

    Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Praa da S, 108

    0 1 0 0 1 -9 0 0 - S o P a u lo -S P

    Tel.: (Oxxl 1) 3242-7171

    Fax: (Oxxl 1) 3 2 4 2 -7 1 7 2

    Home page: w w w .edito ra.unesp.br

    E-mail: feu@ edito ra .unesp.br

    Dados Internacionais de C ata logao na Publicao (CIP) (Cm ara Brasileira do Livro, SF^ Brasil)

    Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise / o rgan izador V lad im ir Safatle. - So Paulo: Editora UNESFJ 2003.

    Vrios autores.ISBN 8 5 -7 1 3 9 -4 4 9 -0

    1. Lacan, Jacques, 1901-1981 2. Psicanlise 3. Psicanlise e filoso fia I. Safatle, V ladim ir.

    0 3 -1 0 5 7 ________________________________________C D D -1 50 .19501

    Indice para ca t logo sistemtico:

    1. Lacan, Jacques: Psicanlise e filosofia :Teorias psicanalticas 150.19501

    Editora a filiada :

    Asociacin de Editoriales Universitrias de Amrica Latina y el Caribe

    Associao Brasileira das Editoras Universitrias

  • Sumrio

    Introduo 7

    Conexes

    Lacan e Plato: o m atem a um a idia? 13 Alain Badiou

    Hegel no espelho do Dr. Lacan 43 Paulo Eduardo Arantes

    A verdade do sujeito: linguagem, validade e transcendncia em Lacan e Habermas 75 Peter Dews

    Dialtica e psicanlise 107 Ruy Fausto

    Psicanlise e filosofia aps Lacan 147 Monique David-Mnard

    O Real da iluso crist: notas sobre Lacan e a religio 169 Slavoj Zizek

    5

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    O ato para alm da lei: Kant com Sadecomo ponto de viragem do pensam ento lacaniano 189Vladimir Safatle

    Interiores

    Lacan: biologia e narcisismo ou A costura entre o real e o imaginrio 235 Bento Prado Junior

    O n no quadro ou O estilo de/em Lacan 255 Antonia Soulez

    A letra e o sentido do retorno a Freud de Lacan: a teoria como m etfora 277 Richard Theisen Simanke

    Lacan e companhia 305 Clio Garcia

    Subverso da imagem: contribuio a um a leitura de Para alm do princpio de realidade (1936) 331Jean-Pierre Marcos

    Sobre os autores 367

    6

  • Introduo

    Muito j se falou sobre a diferena entre Freud e Lacan no que diz respeito s suas relaes com a filosofia. Uma diferena que indica concepes distintas da geografia do saber analtico. Freud, como todos aqueles animados pela descoberta de novos territ rios, procura estabelecer fronteiras estritas entre a psicanlise e tudo aquilo que a circunda. Nesse sentido, nada pode existir de litigioso entre filosofia e psicanlise. Estratgia de defesa que no impediu, por exemplo, que Empdocles, Schopenhauer, Kant e Plato passassem para o outro lado aparecendo no corpo do texto freudiano como fiadores das elaboraes metapsicolgicas.

    O caso de Lacan totalm ente diferente e m uito mais am b guo, j que a superfcie de seus textos e seminrios sempre se mostrou permevel a debates transversais com a filosofia. Por meio de Lacan, a filosofia tornou-se o limite privilegiado da psicanlise. E certo que, como nos lembra Badiou no ensaio que abre esta cole tnea, Lacan finalmente posicionou sua experincia sob a ban deira da antifilosofia Este ponto essencial: Lacan um antifi- lsofo. Mas essa antifilosofia lacaniana nunca deixou de ser marcada pelo movimento duplo e pelas provocaes seguidas de

    7

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    recuos. A filosofia um discurso acabado, dir esse psicanalista que nunca deixou de recorrer a Hegel, Parmnides, Plato, Kant, Kierkegaard, Heidegger, a fim de esclarecer a especificidade da me- tapsicologia. Um recurso m eram ente diddico, diro alguns. Mas ns sabemos que nenhum recurso didtico inocente. Ele fruto da deciso de inaugurar um a tenso entre discursos diferentes. Uma deciso que nos indica um a estratgia epistmica maior. Pois talvez certos objetos do pensam ento s possam ser devidamen te apreendidos no ponto de cruzam ento entre um a prxis e um a elaborao conceituai que lhe independente e autnom a.

    Hoje, este parece ser o grande ensinam ento de Lacan. Sua escrita nos m ostra como no possvel falar do sujeito, de seus desejos, suas iluses e seus atos sem se colocar no cruzam ento entre um a clnica que sem pre se reinventa e um a tradio filos fica que nunca foi surda a desafios. Como diz M onique David- Mnard em seu texto, essa geografia de quiasmas que nos explica por que a apreenso conceituai das modalidades da interveno psicanaltica traz conseqncias para as pretenses ontolgicas da filosofia, assim como para nossa compreenso da universalidade do pensam ento conceituai, das lgicas e retricas da negao ou da problemtica do contingente e do necessrio. Resta ainda m ostrar como.

    A idia deste livro nasceu inicialm ente do desejo de apro veitar um a data cheia de significado, 2001, o centenrio do nas cim ento de Jacques Lacan. A fim de m ostrar a am plitude dos estudos lacanianos, pedimos artigos a alguns dos principais n o mes da filosofia e da psicanlise, brasileira e internacional. N o mes vindos de tradies m uitas vezes antagnicas, mas que tm ao m enos um a coisa em comum: sensibilidade para os novos desafios postos pela experincia intelectual lacaniana.

    Essa m utiplicidade de tradies produziu, necessariamente, um a diversidade de programas de estilo e de m todos de abor dagem. Ela foi respeitada. Assim, alguns artigos foram cons trudos claramente a partir de questes trazidas pelos novos desa

  • fios da clnica analtica (Clio Garcia); outros no temeram adotar um tom de crtica a certas articulaes do pensam ento lacania- no, como o uso da m etfora (Richard Sim anke). A interrogao do lugar de Lacan na histria das idias foi um tem a dominante. Comparaes foram feitas. Peter Dews explorou as articulaes possveis entre Lacan e Habermas; Alain Badiou aproximou Lacan e Plato; M onique David-Mnard convocou Kant e Aristteles. Por fim, Paulo Arantes e Ruy Fausto exploraram o campo m ina do que sempre foi a relao entre psicanlise e tradio dialtica. Mas no faltou aqui um movimento inverso: a explorao siste mtica de certas elaboraes do percurso de Lacan. Bento Prado Junior eJean-Pierre Marcos analisam a construo do conceito de Imaginrio nos prim eiros textos de Lacan. Vladimir Safatle ques tiona o lugar e o sentido de Kant com Sade no interior da experin cia intelectual de Lacan. Outras articulaes encontraram tam bm seu lugar. Slavoj Zizek m ostra que, em um a perspectiva lacaniana, o destino da religio no se reduz apenas ao futuro de um a iluso, j que ela pode nos fornecer coordenadas para pensar o problem a da experincia trgica na anlise. Por fim, Antonia Soulez utiliza-se de Lacan para perguntar sobre o lugar do estilo na teoria e sobre a possibilidade de um a linguagem terica que no seja desafetada.

    Antes de iniciarmos, vale lem brar que, atualm ente, vemos a psicanlise entrar novam ente na cena do debate intelectual con tem porneo. No so poucos os que afirmam existir um a crise da psicanlise motivada pelo desenvolvimento das neurocin- cias. Dentro desse panorama, a leitura filosoficamente adverti da de Lacan serve tam bm para m ostrar a fora de um pensa m ento que soube crescer por meio da explorao sistem tica de seus prprios impasses. Um pensam ento desafiador que no te m eu inscrever a psicanlise na tradio do racionalismo m oderno a fim de defender a irredutibilidade ontolgica da subjetividade. Talvez um a das estratgias mais peculiares que o sculo XX pro duziu na sustentao de um projeto possvel de emancipao.

    Introduo

    9

  • C o n e x es

  • Laca n e Pla to : o m a tern a u m a id ia?1

    A la in Ba d io u

    Lacan no filsofo e no h, no poderia haver, um a filosofia de Lacan. Lacan insiste claramente que o essencial de seu pen sam ento provm de sua experincia clnica. Essa experincia radicalmente exterior e estrangeira filosofia.

    Lacan deve ser visto como um analista. Talvez ele tenha sido durante certo tem po o analista. Talvez, m esm o morto, ele conti nue sendo o analista. Pois em m atria de anlise, tal como em m atria de capital, perm itam -m e dizer que constatamos a que ponto o m orto apreende o vivo. Lacan certam ente atravessou, leu, deslocou e com entou grandes filsofos. Na verdade, prin-

    1 Traduo de Vladimir Safatle.

    13

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    cipalmente sete: Plato, Aristteles, Descartes, Kant, Hegel, Kier- kegaard e Heidegger. Mas Lacan finalmente posicionou sua expe rincia sob a bandeira da antifilosofia. Este ponto essencial: Lacan um antifilsofo. Vamos hom ologar sem exame prvio a reinte grao, entre ns, de um antifilsofo declarado? Reunir-se sob o emblema sarcstico da antifilosofia no seria um julgam ento a respeito de nossa prpria falncia filosfica?

    Esta a nica questo realm ente im portante.Ela dem onstra a gravidade de nosso propsito. O que est em

    jogo a conscincia que podem os ter (ou, ao contrrio, denegar) a respeito da possibilidade da filosofia, desta filosofia que Plato articula ao imperativo socrtico do philosophein e que consiste em no aceitar um a opinio sem antes esclarecer seu porqu e seu princpio. Enfim, o que est em jogo a possibilidade de a filo sofia ainda existir, poder existir, dever existir sem confuso nem fuso com a arte, a cincia, a poltica ou a psicanlise. E tam bm sem se dissipar neste agregado inconsistente, por meio do qual ela se enquadra no que Lacan chama de discurso da universidade, discurso que pretende justapor regies prescritas pela aparncia de um objeto: filosofia da cincia ou epistemologia, filosofia da arte ou esttica, filosofia da poltica ou do poltico, filosofia das paixes e das virtudes.

    Ora, ou a filosofia , atualm ente, capaz de persistir, recom e ar, dar um passo a mais nesse caminho singular que a faz arti cular o ser, o sujeito e a verdade ou, ao contrrio, devemos pens- la a p a rtir de sua extino, de seu despedaam ento , de sua im pureza sem critrios. Eis o que realm ente nos importa, eis o que traz um julgam ento sobre nossa poca e sobre aquilo que ela nos prescreve a respeito do campo do possvel. Pois, se Pndaro tem razo em nos intim ar a esgotar este campo, ainda devemos saber como. E quanto ao imperativo negativo do qual Pndaro deriva sua regra de esgotam ento - e que : no aspire, m inha alma, vida imortal -, ele praticamente no nos distancia de nosso propsito. E certo que a filosofia pode abrir mo do recurso

    14

  • Lacan e Plato: o materna um a idia?

    imortalidade, um a fico religiosa, mas isso no significa que ela possa dispensar a eternidade, que o predicado absolutam ente necessrio de toda verdade, j que h ao m enos um a verdade.

    Eis a verdadeira questo. O adversrio imemorial do filso fo chama-se sofista, e, apesar de assem elhar-se ao filsofo em todos os pontos, apesar de armar-se com a m esm a retrica e de utilizar as mesmas referncias, ele especifica-se por organizar seus propsitos a partir do enunciado no h verdade. O sofista absolutam ente idntico ao filsofo, salvo pelo efeito dessa ne gao surda, em que se encontra em jogo a existncia da verda de. E a essa negao que o filsofo, m esm o o ctico, no pode dar seu assentim ento. O ctico filsofo, j que seu dram a con siste em susten tar que nenhum a verdade se deixa reconhecer enquanto tal. No entanto, o sofista garante a paz de sua alma e a atividade febril em busca do servio dos bens graas convico tranqila de que a inexistncia de toda verdade transform a o to r m ento filosfico, e mesmo o torm ento ctico, em um pathos va zio. Pois, para ele, s h jogos de linguagem, e o pensamento, diz o sofista, no encontra nenhum obstculo que lhe impea de deslizar por entre tais jogos.

    De fato, podem os definir a filosofia como o m odo de pensa m ento que reconhece, sob o nom e de Ereignis,2 de acontecim en to (vnement) ,3 um obstculo (point d arrt) ao pensam ento, irredutvel s regras da lngua, e que indica o m om ento no qual um a verdade nos coloca em suspenso.

    Qual a posio de Lacan? Ns vemos aqui como ela im por ta. Trata-se de saber, de um a vez por todas, se a antifilosofia de fendida por Lacan necessariamente um a figura sofista. Se esse o caso, ele nos obriga, independentem ente do grau de adm ira o por aquilo que o m estre trouxe ao campo da psicanlise, a

    2 Em alemo, no original. (N. T.)3 O conceito de vnement, central na filosofia de Alain Badiou, tambm foi

    traduzido em portugus por evento. (N. T.)

    15

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanlise

    nos oporm os sua antifilosofia atravs da fria argum entativa anti-sofista. Uma fria que, desde sua origem, constitui o turnos, o ncleo de clera e de polmica da filosofia.

    H trs teses maiores de Lacan a respeito da verdade:

    1. H verdade; tese pela qual Lacan recusa os sofistas.2. Uma verdade sempre , de um a parte, devedora do dizer

    mas, de outra, ela pode apenas ser m eio-dita (mi-dite). De onde se segue que Lacan, para alm da im portncia que reconhece linguagem , recusa toda equivalncia en tre o pensam ento e o recurso linguageiro (langagier) enquanto tal.

    3. No h critrio de verdade. Pois a verdade no exata m ente um julgam ento, mas um a operao. Ela do re gistro da causa do sujeito e pode ser causa do sofrim en to. Por sinal, esta a razo da existncia da psicanlise. A falta de qualquer critrio, que exclui a verdade tanto do princpio de adequao quanto do princpio de certe za, d ao pensam ento lacaniano seu carter ctico. Mas diremos tambm que, representando a verdade como pro cesso estruturado e no como revelao originria, Lacan garante a seu pensam ento um carter dialtico.

    Assim, se as teses de Lacan sobre a verdade so anti-sofis- tas; se elas adm item que um a verdade deixa um resto em rela o quilo que o enunciado pode capturar; se, enfim, elas orga nizam um a tenso clssica entre a dialtica do vir-a-ser-verdade (idevenir-vrai) e o ceticismo do resultado, por que no declarar Lacan homogneo e inteiramente compatvel com a proposta, que a minha, de um a clera contra os sofistas linguageiros m oder nos graas qual a filosofia realizaria o passo suplem entar que suas condies ordenam?

    At porque nada nos impede de chamar de ser esse resto atra vs do qual a verdade assinala seu excesso sobre os recursos do dizer, o ser enquanto ser e que Lacan distingue constantem ente

    16

  • Lacan e Plato: o materna um a idia?

    do real. Haveria um a articulao do real ao desejo, e da verdade ao ser. O amor seria, no registro subjetivo de Lacan, aquilo que cruza e separa, na sua intensidade reconhecvel, a lei real do de sejo, que tram a seu fracasso (ratage), e a lei do ser de um a verda de, que insiste para alm do reencontro. Afinal, Lacan no disse desde 1954 que apenas na dim enso do ser, e no na dim en so do real, que podem inscrever-se as trs paixes fundam en tais (1986, p .308-9) - trs paixes fundamentais que sooam or, o dio e a ignorncia? E ele no indicou em 1973 que saberia variar sobre esse ponto ao afirmar que o amor visa o ser, a sa ber, aquilo que, na linguagem, mais se esquiva - o ser que, por mais um pouco, iria ser ou o ser que, exatamente por ser, nos surpreende? (1982, p.55).

    Como no reconhecer, nesse ser que, por ser, surpreende, aquilo que eu chamo de acontecimento, lugar originrio de toda verdade sobre o ser singular, ou sim plesmente ser em situao? Lacan no temer, no m esm o ano, dizer que o ser o amor que nos aborda atravs do encontro. Est claro que encontro o nom e adequado de todo acontecim ento amoroso. E por que no traduzir o enunciado o am or visa o se r em m inha linguagem, reconhecendo nele um procedim ento genrico, ou seja, aquilo que permite, atravs da fidelidade a um encontro, o advento de um a verdade a respeito da qual nada podemos predicar, genrica precisam ente por ser indiscernvel? Lacan no afirma que ela aquilo que mais se esquiva na linguagem? O carter indecidvel (iindcidable) do encon tro , o acon tecim en to com o su rp resa extranumerria (surnumraire) do ser, o processo de verdade como efeito fiel dessa surpresa, a verdade como articulada ao ser, como resultado no definido e indiscernvel dessa fidelidade: a partir de tudo isso, como no dizer que Lacan homogneo s ten tati vas de ultrapassar o interdito que a filosofia coloca a si mesma, exatam ente por ele ser, em boa parte, a fonte de tais tentativas?

    Mas, ento, o que significa antifilosofia? Devemos ignorar com pletam ente o vocbulo? Afinal, Lacan no cessa de dizer que

    17

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    a filosofia apenas um a instncia do discurso do m estre, contra a qual a tica do discurso do analista se impe. No que concerne ao pensam ento do ser que tentam os identificar em Lacan, faz-se necessrio lem brar que, desde 1955, ele o ope form alm ente ao em preendim ento freudiano: O m undo freudiano no um m undo de coisas, no um m undo do ser, um m undo do dese jo enquanto tal (1985a, p .280). Enunciado com pletado mais tarde e em um estilo mais ontolgico: O eu (je) no um ser, ele suposto quele que fala, solido que deixa trao de um a ruptura do ser (1982, p.163).4 Notem os tam bm que o recur so aos paradigmas m atem ticos expressam ente dirigido con tra o estilo do discurso filosfico. Por exemplo, ele dir, em 1973: Em comparao com um a filosofia cujo pice o discurso de Hegel, a formalizao da lgica m atem tica no poderia nos ser vir no processo analtico? (ibidem, p .125).5 Poderamos m ulti plicar os exemplos. Tudo indica que, para Lacan, no basta dis tinguir psicanlise e filosofia, o que estaria de acordo com m inha vontade de delimitao da filosofia. A psicanlise deve ser capaz de julgar a iluso da qual a filosofia portadora e nada indica que tal iluso tenha, na perspectiva de Lacan, um futuro brilhante. Em todo caso, ele bem m enor que o futuro de outra iluso, infi nitam ente mais tenaz por razes de estrutura, ou seja, a iluso religiosa.

    Para elucidar o teor da antifilosofia de Lacan, faz-se necess rio convocar o sintom a Plato.

    O sintom a Plato vale universalm ente na anlise da posio de nossos contem porneos a respeito da filosofia.

    Se colocarmos Nietzsche na aurora do contemporneo, de vemos lem brar que, para ele, o sculo deve se curar, e ele come a a se curar, da doena-Plato. Esse diagnstico , no final das contas, antifilosfico. O ns, espritos livres de N ietzsche

    4 Citao modificada no original. (N. T.)5 Citao modificada no original. (N. T.)

    18

  • Lacan e Plato: o m atema um a idia?

    designa aqueles que se livraram da jurisdio filosfico-crist tra mada originalm ente por Plato.

    Vamos adm itir que nosso sculo conheceu trs fenmenos poltico-histricos cruciais: o comunismo, o fascismo e o parla mentarismo. Ou ainda, trs lugares ocidentais: a Rssia, a Ale m anha e a Amrica. Vamos adm itir que o sculo conheceu trs tipos de filosofias fortes, interventoras, conectadas a tais reali dades poltico-histricas e situadas nesses lugares: o marxismo comunista, o nacional-socialismo de Heidegger e o empirismo lgico derivado do crculo de Viena e transform ado na filosofia acadmica hegemnica nos EUA.

    significativo que esses trs pensam entos se definam como antiplatnicos. Heidegger v em Plato o ponto de viragem gra as ao qual o pensam ento se desvia do Ser como desvelamento e oferenda a fim de submeter-se, atravs da Idia, ao esquem a m e tafsico que ser, a partir de ento, nosso destino. Como se trata de um sintoma, no devemos estar atentos apenas ao tema, mas tam bm ao estilo, quilo que h de rancor distante e de m-f dificilmente dissim ulada na herm enutica de Heidegger quan do o assunto Plato. Vejam, por exemplo, a ironia abstrata que vela o texto de Plato e o problem a da verdade.

    Por outro lado, sem pre me surpreendi com os lgicos anglo- saxes. Quando eles querem designar a posio realista a res peito do fundam ento das matemticas, ou seja, a convico de que a matem tica trata de um real no ponto de seu impasse, a palavra empregada platonismo. Na Amrica, Gdel sentiu-se constantem ente perseguido por sustentar tal platonism o. Ele tinha o sentim ento de ser silenciado pelo imprio de um a con cepo estritam ente gramatical e analtica. Aqui tambm, e at no significante, o antiplatonism o a bandeira de ataque contra aquilo que os filsofos analticos, neste ponto em acordo com Heidegger, chamam de metafsica.

    Enfim, se nos voltarmos ao marxismo stalinista, as coisas so, como sempre, mais brutais e mais francas. No dicionrio filos

    19

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanlise

    fico da Academia de Cincias da URSS, encontramos, no verbete Plato, o enunciado idelogo de proprietrios de escravos. E isso em contraste com as precaues oratrias que circundam o nom e de A ristteles, o que inusitado se lem brarm os que Aristteles aquele que defende a doutrina do escravo como instrum ento animado, enquanto Plato, no Menon, sustenta que as Idias m atem ticas so inatas tanto ao escravo quanto a todo homem. Mais um a vez, a diatribe contra Plato diz mais do que supe, pois ela m ostra que o sculo inteiro antiplatnico.

    E qual a viso de Lacan sobre esse sintoma? E aqui que se decide o sentido, no sculo XX, da antifilosofia.

    E necessrio dizer que a presena do sintom a Plato no pen sam ento lacaniano m uito extensa.

    Como todos aqueles que se propem a julgar a filosofia, ou a metafsica, Lacan d ao significante Plato o peso da origem. Entenda-se, a origem de um campo de pensam ento do qual no se devem poupar esforos para sair.

    Tal origem de m todo e, de certa forma, esquadrinha nos so pensam ento. Em 1954, Lacan declara que devemos tom ar Plato como a origem, no sentido de que falamos da origem de um a coordenada. Em 1960, ele dir que o amigo Plato que nos fornece a miragem do Soberano Bem. Uma amizade suspeita. A partir de um a perspectiva mais neutra, mas trata-se desta vez de Scrates (como veremos, essa nuana conta m uito), Lacan diz, em 1954, que Scrates inaugura este novo ser-no-m undo que eu chamo um a subjetividade (1985a, p .11). Vamos parar por aqui, pois j suficiente que Scrates-Plato seja fundador da ordem na qual sustentam os nossos problem as sobre a tica e sobre o tem a do Sujeito. Isto m uito, isto chega m esm o a ser um pouco demais.

    Pois, assim que essa posio invejvel assegurada, desco brimos rapidam ente que ela exatam ente aquilo contra a qual a inveno freudiana se ope, criao que suspende a jurisdio platnica.

    20

  • Lacan e Plato: o materna um a idia?

    Lacan no hesita (no que ele partilha o sintoma da m oderni dade) em formular um a oposio global, um a oposio que se para orientaes fundam entais no pensam ento. De um lado, Plato (assim como todo pensam ento cuja origem encontra-se em Plato) e, de outro, o verdadeiro sentido da inveno freudia na. Citemos um a frmula exemplar de 1957. Trata-se de opor a rememorao psicanaltica reminiscncia platnica. Lacan de clara: Este um dos modos atravs dos quais a teoria platnica se distingue da teoria freudiana (1998, p.523). Um dos modos: eis aqui um posicionamento de teoria contra teoria, de Freud con tra Plato.

    Uma anlise detalhada m ostra que as censuras de Lacan con tra o platonism o estendem -se, na verdade, a todo o campo filo sfico, e isso basta para que tal campo seja identificado quilo que, desde sua origem, foi balizado por Plato. O que nos d o sentido da noo de antifilosofia. Tais censuras dizem respeito:

    ao processo do saber, vam os cham -las de censuras gno- seolgicas;

    questo do bem -dizer do Bem, vamos cham-las de censu ras ticas;

    enfim, relao entre saber e ser na linha de continuao do p roblem a da verdade, vam os cham -las de censuras o n tolgicas.

    Vamos comear examinando o que est em jogo nessas trs ordens.

    Sabemos o bastante sobre o que Lacan deve a Saussure e sobre sua idia de que s podem os e lu c id ar a d esco b erta freudiana se colocarmos em evidncia a inexistncia de relao entre significante e significado. Pois essa no-relao indica que algo do sujeito da enunciao escapa tentativa do enunciado em disp-lo como um -que- (lun-quil-est) . Ora, Plato aparece como exemplo privilegiado de um desprezo radical por tal p ro blema. Em 1973, Lacan diz:

    21

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanlise

    O Crtilo de Plato constitudo pelo esforo em mostrar que deve haver uma relao, e que o significante quer dizer algo por si mesmo. Essa tentativa, que podemos chamar, graas posio em que estamos, de desesperada, marcada pelo fracasso, j que, de um outro discurso, do discurso cientfico ... vem a constatao de que o significante s se articula sem relao alguma com o signifi cado. (1982, p.42)6

    Encontrarem os outras ocorrncias dessa idia de um descr dito cientfico, ou mais especificamente galilaico, que marcaria Plato de m aneira irreversvel.

    Mas esse processo se desenrola sem ambigidade alguma? Lacan o prim eiro a reconhecer o gnio propriam ente cmico que brilha nos dilogos de Plato. Devemos levar ao p da letra as etimologias im pressionantes do Crtilo? A estratgia de Plato consistiria em garantir, a qualquer custo, a significao do signi ficante? Na verdade, o enunciado central desse dilogo aparece quando Scrates declara que ns, ns os filsofos, partim os das coisas e no das palavras. Ver a etimologia apenas como vetor de um a comdia intelectual um a tese profunda sobre a seriedade da lngua, tese oposta tentativa, feita pelos sofistas de todos os tempos, de reduzir a lngua a um a superfcie ldica. Que a lngua possa apreender a coisa mesma, e que o pensamento filosfico deva situar-se no ponto dessa apreenso: eis o que apaixona Plato.

    Ora, Lacan, em outro lugar, aceita essa paixo de Plato, m esm o que sob o nom e de Scrates. Ele o faz atravs de um du plo vis.

    O prim eiro consiste em validar aquilo que se decifra, no de sejo do filsofo, como cientificidade ao m enos ideal.

    Vejamos esta declarao de 1960:

    Scrates exigia que no nos contentemos com isto a que te mos uma relao inocente chamada doxa, mas que perguntemos o

    6 Traduo modificada. (N. T.)

    22

  • Lacan e Plato: o m aterna um a idia?

    porqu, que s aceitemos nos satisfazer com esta verdade chama da pistm, cincia, ou seja, aquilo que presta contas de suas razes. Segundo Plato, este era o philosophein de Scrates. (1992, p.51)7

    A cincia, diz Lacan, o que agrada a Scrates. Ou seja, ao menos na figura de seu desejo, o filsofo instaura a cientificidade que o futuro, atravs do patrocnio de Ferdinand de Saussure, parece querer recursar-lhe.

    O outro vis concerne quilo que eu disse sobre o enuncia do do Crtilo, ou seja, a paixo filosfica pela coisa mesma. Lacan v a o ponto central do que est em jogo na relao do Sujeito pressuposio terrvel do gozo, Coisa, das Ding. Eu cito, ainda no texto de 1960:

    Em uma curta digresso da Carta VII, Plato nos diz aquilo que procurado por toda operao dialtica: trata-se simplesmen te da mesma coisa que indiquei no ano passado em nossa proposi o sobre a tica e que chamei de "a Coisa, to pragma no caso de Plato. Se vocs quiserem, entendam isto como a grande questo, a realidade ltima, aquela da qual depende o pensamento que a afronta, que a discute e que apenas uma das maneiras de pratic- la. Trata-se de to pragma, da Coisa, da prxis essencial. A teoria ela mesma o exerccio do poder de to pragma. (ibidem, p.85)8

    Uma fora de origem reconhecida e de potncia de antecipa o vem contrabalanar o veredicto propriam ente positivista se gundo o qual Plato desconheceria os avatares possveis do dis curso da cincia.

    A condenao da doutrina platnica da reminiscncia mais rigorosa, assim como a condenao daquilo que constitui sua arm adura ontolgica, ou seja, o tem a da participao dos entes no ser supra-sensvel das Idias. Em suma, Lacan v na rem inis cncia um jogo de espelhos que reconduz o pensam ento ao infi

    7 Citao modificada no original. (N. T.)8 Citao modificada no original. (N. T.)

    23

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    nito das dobras do imaginrio e que deve supor um sempre-j-a (toujours-dj-l) para nom ear a vertigem de suas sim ilitudes. Vejamos o que ele diz em 1955:

    Plato s pode conceber a encarnao das idias como uma srie de reflexos indefinidos. Tudo o que se produz e reconhecido imagem da idia. A imagem existente em si no outra coisa que imagem de uma idia existente em si, no outra coisa que uma imagem de uma outra imagem. S h reminiscncia. (1985a, p.50)

    Esse estatu to propriam ente imaginrio da reminiscncia a bloqueia, sim ultaneam ente, em um para-alm da verdadeira re petio e em um para-aqum do poder criador do simblico. De um lado, isso autoriza Lacan a opor Plato a Kierkegaard ao fa lar, em 1953, da distncia existente entre a reminiscncia que Plato levado a supor a todo advento da idia e o esgotam ento (exhaustion) do ser que se consome na repetio de Kierkeggard (1998, p.294). De outro, ele ope a esterilidade imaginria das sim ilitudes da reminiscncia verdadeira capacidade de criao prpria ao smbolo. Ns estam os novam ente em 1953; Lacan declara, logo aps suas consideraes sobre a reminiscncia: Quando ns nos referimos ordem simblica, h comeos ab solutos, h criao (ibidem, p.296).

    A ssim , a d o u trin a p latnica da rem iniscncia, cativa do reenvio infinito prprio ao imaginrio e de um a doao origin ria ilusria, destituda sim ultaneam ente por um conceito ver dadeiro de autom atism o de repetio e pela fora de criao im a nente ao smbolo.

    Como pano de fundo, e isto ainda mais grave (mesmo que latente), h a identificao dos arqutipos de Jung Idia plat nica pensada como esquem a recapitulativo dos cam inhos er rticos do imaginrio, o que est longe de ser um a aproximao agradvel.

    Podemos nos perguntar se o reenvio infinito criticado por Lacan no estaria j indicado por Plato graas ao argum ento do

    24

  • Lacan e Plato: o materna um a idia?

    terceiro hom em e a todas as aporias que acompanham a teoria da reminiscncia. No final das contas, em sua apresentao com pleta, a rem iniscncia apresenta-se no exatam ente como um conceito cuja operao determ inada, m as como um m ito ar ticulado aos ciclos da existncia. A im ensa construo que A Repblica faz economia de toda meno reminiscncia, isto at o m ito terminal de Er, o Panflio, no qual s h aluses rem i niscncia porque Er aquele que retornou dentre os mortos.

    Certam ente, poderamos sustentar que a ocorrncia do m ito em Plato exatam ente o signo de que o imaginrio sustenta o pensam ento atravs de sem elhanas puras, de analogias sem conceito. O arqutipo jungiano no constantem ente articula do aos mitos? Sim, poderamos susten tar isso. Mas tal no a opinio de Lacan a respeito do recurso de Plato aos mitos. Para ele, a ocorrncia do m ito nos dilogos sempre o resultado de um clculo que localiza com preciso o ponto onde o envio de todo efeito de verdade simples consistncia do significante aparece como aventureiro. Ele diz em 1960: Atravs de toda a obra plat nica vemos surgir m itos no m om ento necessrio para suprir a hincia daquilo que pode ser assegurado dialeticam ente (1992, p. 123). Assim, para Lacan, mais do que signo do imaginrio, o m ito o com plem ento necessrio ao estilo argumentativo, isso quando a com preenso conceituai abre-se falha de sua in- completude.

    Por sinal, essa seria um a boa m aneira de abordar a obra de Lacan, ou seja, levando em conta no exatam ente os mitos, mas as fbulas que, tal como em Plato, vm preencher, em pontos precisos do discurso, as falhas do encadeamento significante.

    Mas o que me parece um a limitao mais grave da crtica lacaniana reminiscncia o fato de ela no levar em conta, ao supor o reenvio infinito do existente s idias ou das idias en tre si, o papel central deste ponto de basta que Plato chama o Bem. Se livrarmos o Bem de Plato da ganga teolgica na qual ele foi submergido durante sculos, veremos que sua funo resu-

    25

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    me-se a designar o ponto de alteridade radical a partir do qual todo reenvio e toda relao encontram-se em suspenso. Em Plato, o Bem funciona como o lugar do Outro, ou seja, como aquilo que, excntrico, subm ete a palavra lei da verdade. Por isso, Plato afirma que o Bem no um a Idia, que ele no sequer ousia, a ousia que no pode ser traduzida nem por substncia nem por es sncia, j que seria m elhor defini-la como aquilo que, do ente, exposto Idia. O Bem o lugar do qual a idia procede para o que a ela se expe. Ele est, assim, para alm tanto da idia quanto da exposio e, por conseqncia, da ousia. Nesse sentido, Plato pode dizer que o que transm ite a verdade aos objetos cognos- cveis e d ao sujeito que conhece esse poder, a idia do bem (1993, 508c). Mas quem transm ite no quem recebe. Para Lacan, isso significa: no h O utro do O utro. Para Plato, isso significa: o Bem no nem Idia nem aquilo que, do ente, ex pe-se Idia.

    Em suma, a reminiscncia no o que Lacan diz, j que o in finito da captao imaginria encontra-se refreado em um pon to de excesso chamado Bem, cuja funo consiste em indicar a inexistncia de um a verdade da verdade.

    Podemos levantar a m esm a objeo contra a crtica severa fei ta por Lacan ao tem a da participao. Essa crtica m arcada por um trao cujo peso ser explicitado mais adiante. Lacan age como se Plato no acreditasse, em instante algum, naquilo que ele ex pe, como se o desenvolvimento a respeito da participao do sensvel no inteligvel fosse apenas um a espcie de gracejo pla tnico, um a farsa feita para discpulos limitados. Vejamos esta declarao de 1961:

    A idia de participao do que quer que seja de existente nes sa essncia incorprea que a idia platnica revela sua fico e seu logro. E se d a tal ponto, neste Fdon, que impossvel no se dizer que no tenhamos razo alguma para supor que Plato veja menos esse logro do que ns. (1992, p.79)

    26

  • Locan e Plato: o materna uma idia?

    S podemos afirmar que a participao um engodo se no a com preendermos como o modo de determ inar o preo que o pensam ento deve pagar para introduzir, juntam ente com o sim blico, a tese "H U m l onde m anifestam ente s o m ltiplo apresenta-se para mim. Que todos os cavalos participem (relevent) do Cavalo, eis algo que devemos nom ear de participao ou de outro termo.

    Conhecemos a histria do cnico que dizia ver o cavalo, mas nunca ter visto a cavalidade. No se vai m uito longe com esse raciocnio, e certam ente no por a que Lacan se engaja. Pois, para que a verdade seja salva, faz-se necessria nada mais do que a transcendncia radical do Grande O utro, um a transcendncia da qual todo desejo hum ano participa, j que os desejos encon tram no Grande O utro os significantes que os articulam e o ob jeto que os causa.

    Podemos afirmar, tal como sugere Robin, que Plato tenha abandonado progressivamente a participao ou, tal como o diz Festugire, que ele tenha apenas completado seu aparelho. Mas no podemos sustentar que essa designao do modo pelo qual o Um advm ao mltiplo seja sua ltima palavra. Devemos procurar essa palavra final principalmente na doutrina dos gneros supre mos e de seus m istos, desenvolvida no Sofista, no Filebo e no Parmnides, este manual definitivo dos caminhos tortuosos do Um.

    No fundo, Lacan sabe que, em Plato, os paradoxos do Um no poderiam ser resolvidos atravs desta prim eira im agem fornecida pela participao. Tais paradoxos so dois no total, to dos eles mencionados por Lacan.

    Primeiramente, o Um platnico fragmenta-se no apenas no m ltiplo sensvel que ele deveria unir, mas em si mesmo, o que o livra dialeticam ente da unidade de seu prprio Um. Lacan n o tar, em 1973, que h tantos Um quanto quiserm os - que eles caracterizam-se por no assemelharem -se em absoluto entre si; basta ver a prim eira hiptese do Parmnides (1982, p .65).

    27

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    Em seguida, assim como o Bem, o Um platnico est para- alm da ousia. Segundo Plato, por ultrapass-la totalm ente em prestgio e potncia, o Um est para-alm do ser, ele incompat vel com o ser. Para falar como Lacan, certo que H Um, mas da no se segue que o Um . Esse no-ser do Um o separa de si e o une ao O utro atravs de um a toro constitutiva que apenas o acontecim ento pode suportar. A respeito desse Um paradoxal, o Um que no , o Um que O utro enquanto tal, Lacan afirma que devemos procurar sua origem no pensam ento de Plato. Ele o diz claramente em O aturdito: a lgica do Eteros que deve par tir da, sendo surpreendente que nisto que o Parmnides desem boca em razo da incompatibilidade entre Um e Ser (2001, p.467).

    Isso nos explica por que Lacan, na prim eira hora, fornece a seus alunos alguns comentrios do Parmnides que deveriam ser vir de guia para o que h de mais interno anlise. Sabemos que ele foi ouvido, basta 1er o magnfico texto que Franois Regnault publicou nos Cahiers pour lanalyse, assim como m eus prprios ensaios na M editao Trs do Ser e o Evento e as exegeses la- canianas audaciosas de neoplatnicos que encontram os em Christian Jam bet e Guy Lardreau.

    O que devemos concluir disso tudo? Digamos que, a esse respeito, a antifilosofia levada a cabo por Lacan com a conscin cia lcida e a perptua inveno aberta ao que a suscita coloca em posio delicada, volens nolens, o antiplatonism o a propsito do qual o sculo XX acreditou fornecer a evidncia atravs de suas novidades sombrias.

    No toa que Lacan proclama, no seminrio Ou pire, que Plato lacaniano. Um enunciado completado pela afirmao de que Lacan no platnico, assim como pelo reconhecim ento de sua afinidade com a doutrina do Um. Afinidade que nos lem bra como, m esm o com 24 sculos de distncia, a discusso en tre os dois nunca poderia cessar, a no ser em razo da morte.

    Mas, j que somos convocados por todos os lados tica, situao talvez resultante dos horrores do sculo XX, e j que

    28

  • Lacan e Plato: o materna um a idia?

    Lacan, em 1955, coloca o vocbulo em posio privilegiada an tes de todo m undo e com fins m enos aleatrios, vejamos o que ele tem a dizer sobre Plato neste ponto.

    Como era de esperar, aos olhos de Lacan, Plato encarna a postura obrigatria ao filsofo, que a im postura dos que se sustentam atravs do discurso do mestre. A esse respeito, h um a frmula pitoresca no seminrio de 1960: Plato um m estre, diz Lacan, um verdadeiro, um m estre do tem po em que a cida de se decompe, arrebatada pelas rajadas democrticas, prel dio das grandes confluncias imperiais - um a espcie de Sade mais engraado (1992, p .89). Posso im aginar que, caso Plato tivesse os parm etros anacrnicos para com preender esse Sade mais engraado, ele teria achado tudo isso um pouco estranho.

    No entanto, a posio do m estre no univocamente con testvel, ao contrrio. a partir de sua potncia que Lacan pro cura explicitar a diferena entre a cincia moderna, galilaica, e a cincia que os gregos chamavam de epistem e. Assim, em 1964, Lacan afirma que o que distingue a cincia m oderna da cincia em sua aurora, de que tanto se discute no Teeteto, que quando a cincia se levanta, sem pre est presente um m estre. E Lacan conclui, aproximando no final das contas Freud e Plato: Sem dvida alguma, Freud um m estre (1985b, p .49).

    Poderamos nos perguntar pela diferena entre a cincia que se levanta e a cincia na sua aurora. Eudxio e Arquimedes no eram, eles tam bm , m estres incontestveis? No por acaso que o exemplo m aior do Teeteto a questo das razes quadra das irracionais. Um m estre em filosofia prim eiram ente aquele que reconhece a existncia de outros m estres, em especial nas m atemticas.

    De qualquer forma, a polmica continua contra o Sade apre endido pelo gnio cmico. Mas trao mais im portante de tal po lm ica encontra-se no contraste estabelecido entre Plato e Scrates. Uma grande parte da crtica lacaniana a Plato s pos svel em razo dessa diviso prvia radical entre o filsofo e sua

    29

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    fico central: o personagem (ou a persona, eis a todo o problema) de Scrates. Lacan certam ente no o prim eiro a adotar tal ope rao de partilha. Hegel, Kierkegaard, Nietzsche e vrios outros o precederam. Mas, com Lacan, a partilha obedece a um a tpica de discursos. Discurso do m estre para Plato, e, atravs de um a toro histrica im pressionante, discurso do analista para S crates. Entre parnteses, isso indica a que ponto, para Lacan, a capacidade de sustentar o discurso do analista independe de toda referncia s instituies, s profisses e m esm o inveno te rica de Freud, pois, parte Freud, creio que o nico analista com o qual Lacan poderia identificar-se era Scrates.

    Lacan chega a pedir, desde 1953, que vejamos em Scrates e em seu desejo o enigma intacto do psicanalista. A frmula sua. E em 1960, resultado de seu desejo quase ingnuo de nos con vencer que o Banquete no um a fico de Plato mas um a espcie de narrativa real, ele enuncia, como imperativo de leitura, a neces sidade de tom ar o Banquete como um a espcie de relatrio de sesses analticas.

    Enuncio que, refratrio partilha, creditarei a Plato, de quem Scrates , a m eu ver, um a fico elucidativa, todas as razes que fazem de Scrates o prim eiro analista da histria.

    Essas razes so principalm ente duas.Primeiro, Scrates apresenta-se como sujeito-suposto-saber

    sobre o amor. Lacan m artela que o que o autoriza um a ignorn cia sobre todas as coisas, salvo sobre Eros. Essa suposio pri m eira de um saber sobre o am or faz que todos desenvolvam um amor de transferncia por Scrates. Em algumas sesses extraordi nrias do sem inrio sobre a transferncia, Lacan m ostra como a relao transferencial de Alcebades a Scrates, relao transferen cial a este tesouro, agalma, do qual Scrates detentor e que con siste naquilo que ele sabe sobre o amor, interpretada e desvia da em direo a Agato. A impassibilidade analtica de Scrates produz algo surpreendente. Ela capaz de m ostrar que Alcebades

    30

  • Lacan e Plato: o materna um a idia?

    s encontrar aquilo que dem anda ao reconhecer, em Agato, o brilho de sua falta.

    A segunda razo que fundam enta a capacidade de anlise de Scrates - e, neste ponto, no h dvidas de que se trata de Plato - a im plicao e s tr ita da verdade no universo do d iscurso . Scrates-Plato aquele que inaugura na histria, para alm e contra os sofistas, a defesa de que a lgica do significante est ligada posio da verdade. Dentre vrias citaes, sublinhem os este desenvolvimento de 1961: O que Scrates chama de cin cia o que se impe necessariamente a toda interlocuo devido a um a certa manipulao, a um a certa coerncia interna ligada, ou que ele cr ligada, nica, pu ra e sim ples referncia ao significante (1992, p .105). Lacan indica que Scrates, aqui em um a posio originria, no um hum anista, ele no reconduz o hom em ao homem. Ele sublinha de m aneira pertinente que a frmula o hom em a m edida de todas as coisas sofista, e no socrtica. A verdadeira frmula de Scrates, afirma Lacan, con siste em reconduzir a verdade ao discurso.

    Nota-se a que ponto a separao entre Scrates e Plato, as sim como a distino entre a fico operatria e o tecido filosfico no qual ela opera, aparece como nica m aneira de m anter Plato na distncia irnica que o discurso do m estre impe.

    A verdade que Plato est apto a ocupar tanto a posio do discurso do analista, quando ele se refere ao amor e consistn cia significante, quanto a posio do mestre. A partir do momento em que unim os aquilo que Lacan separa, vemos que a filosofia sempre diagonal aos quatro discursos. Ela sustenta sim ulta neam ente, ela to rna possvel como exerccio do pensam ento, tanto a injuno do m estre quanto a interrupo proferidora da histrica, o raciocnio professoral da Universidade e a subtrao prpria ao analista. Nesse sentido, os dilogos de Plato fundam a filosofia graas ao livre jogo que estabelecem, abrigados pela forma literria, entre regimes distintos de discurso.

    31

  • Um lim ite tenso: Locan entre a filosofia e a psicanlise

    Mas essa plasticidade da filosofia tam bm aquilo que a ela perm ite ensinar por meio de impasses. A aporia platnica sus tenta a a-topia de seus discursos. Essa a-topia, Lacan a designa com o p rp ria a Scrates ao com entar o elogio que dele faz Alcebades. Sente-se que Lacan identifica-se com essa diagonal de lugares. Mas este no seria exatam ente o lugar do filsofo, tal como Plato nos m ostra em um texto singular do livro VI da Re pblica? Plato nos diz que, para existir filsofo, fazem-se necess rias certas circunstncias excntricas, eu diria deslocalizantes, que ele enum era assim: o exlio, o nascim ento em um a pequena cidade desconhecida, vir de um a profisso ordinria e passar filosofia graas a um movimento inexplicvel, ser doente ou ter sade precria ou, ainda, dispor de um signo demonaco interior. Nada m enos norm al do que o filsofo. Se ele m estre, ele o anorm alm ente, ele o na recusa e na negao da disposio ofi cial das coisas e dos discursos. isso que perm ite a ele operar a travessia subversiva dos registros do discurso e ser, sob a lei siste mtica do conceito, aquele que profere e que interrom pe, aque le que raciocina e que se cala.

    Isso quer dizer que reconheceremos, no filsofo, um a dis posio tica prvia? Sabemos que essa no a posio de Lacan. Sempre preso ao tem a da disjuno entre Scrates e Plato, ele im puta ao ltim o um a forma de sentim entalism o moral, um a Schwrmerei, que o faria ceder diante da exigncia pura da con sistncia significante, diante do face-a-face com o vazio que ela implica. C ontrariam ente a Scrates, Plato no susten taria a impassibilidade do analista e essa seria a razo da superioridade da tica de Aristteles. Vejamos estes enunciados de 1960:

    A Schwrmerei de Plato ter projetado, sobre aquilo a que chamo o vazio impenetrvel, a idia do Soberano Bem ... Para re tomar nossa experincia procedi em parte do que se pode chamar de converso aristotlica com relao a Plato ... que sem dvida alguma est superado no plano tico. (1992, p .13)

    32

  • Lacan e Plato: o m aterna um a idia?

    O que eu disse sobre funo do Bem fundam enta minha re ticncia em aceitar a constatao de um a obsolescncia irrem e divel da tica de Plato, pois a funo dupla do Bem, obstculo excntrico na recorrncia do real e interdio que marca toda verdade da verdade, no saberia nos levar a um sentimentalismo supersticioso. Na verdade, Plato coloca em circulao um apelo ao desprendimento, converso, ruptura com a dimenso serial de toda situao instalada: Ns chamamos de verdadeira filoso fia, diz ele no livro VII da Repblica, "a reviravolta da alma que passa do dia obscuro ao dia verdadeiro, ou a subida em direo quilo que, do ente, sua face exposta a Idia (1993, 497a). Para o sujeito, essa reviravolta deve ser com preendida como aquilo que Lacan excluiu da doutrina da reminiscncia, ou seja, a possi bilidade de um comeo absoluto. Certam ente, afastar-se dessa reviravolta, acomodar-se ao dia obscuro, prosperar na ordem es tabelecida ou no que Lacan chama de servio dos bens encontra-se no fundamento de toda canalhice. Se a tica recusa-se a consentir canalhice que consiste na simples apropriao daquilo que se apresenta, ento a verdadeira filosofia no sentido de Plato, a filosofia da reviravolta, necessariam ente um a proposio tica.

    O que com anda a possibilidade de tal reviravolta no o Soberano Bem concebido como projeo im aginria no vazio im penetrvel. Trata-se, antes, e Plato sabe perfeitam ente, ao menos aps a m orte de Scrates, das convocaes de tal vazio pelos paradoxos do Um, paradoxo que nom eei como paradoxos do Ultra-Um, ou seja, do acontecim ento, do encontro, da preci pitao no calculvel do que advm. Ora, foi Plato que em pre endeu a investigao sistem tica desse U ltra-U m que requer nossa converso, isto j na Repblica, quando sublinha que o Bem s se deixa pensar e nom ear atravs de um a lngua metafrica tirada do vazio diante do qual o pensam ento se afronta. Tal idia ainda mais presente no Sofista ou no Parmnides.

    Mas, neste ponto, Lacan identifica em demasia Plato e Par mnides, isso a despeito do parricdio do Sofista, um assassinato

    33

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    do pai que poderia t-lo retido. Isso nos leva dim enso propria m ente ontolgica do litgio.

    Em 1973, Lacan censura Parmnides por ter fundado a tradi o filosfica a partir da suposio de que o ser pensa. E verdade que um fragmento de Parmnides diz que o mesmo pensar e ser. Ora, Lacan percebe, na Idia platnica, o prosseguim ento da equivalncia entre saber e ser. Assim, ainda em 1973: Em Plato, a forma esse saber que preenche o ser. A forma no sabe mais do que ela diz. Ela real, no sentido de que m antm o ser na sua taa, mas cheia at a boca. Ela o saber do ser (19 82, p. 162). Para Lacan, a filosofia insiste em subm eter o ser ao saber, em desejar que o ser situe-se no nvel do saber a fim de poder domin-lo. E isso que a Idia platnica, o ser real de um saber hipostasiado, realizaria.

    Ora, para Lacan, a descoberta de Freud consiste em m ostrar que h ser fora do saber e que, entre o pensam ento e o ser, h um a discordncia, um a falha na qual se desdobra o efeito do su jeito enquanto tal. Ele dir tambm, e logo aps a passagem so bre Plato: H relao ao ser que no se pode saber. E dela que, em m eu ensino, interrogo a estru tu ra (ibidem).

    A oposio clara. Aparentem ente, ela exclui a possibilida de de a psicanlise estar sob o signo da Idia.

    Poderamos discutir mais um a vez a interpretao lacaniana, pois os gneros suprem os do Sofista, especialm ente a idia de Outro, dem onstram que a inteleco estabelece-se tam bm na posio do no-ser. As idias no podem ser o simples esquema de um a compleio do ser pelo saber, j que elas so m istos que dependem daquilo que, em razo de sua posio de Outro, afeta, infecta o ser com um a parte paradoxal de no-ser. Tal o sentido da concluso aportica do Parmnides: se quiserm os dobrar a fi gura decisiva do Um ao simples saber, chegaremos concluso niilista insustentvel de que nada , nem o Um, nem aquilo que outro do Um. Quer dizer, para Plato, um a outra via necess ria, um a via capaz de adm itir que h relao ao ser que no se

    34

  • Lacan e Plato: o materna uma idia?

    pode saber. Digamos que, para isso, faz-se necessria uma expe rincia, um a ocorrncia cujo acaso irredutvel quilo que se sabe. E no desprovido de importncia notar que, nesses dois dilogos fundamentais, no Scrates que fala, mas o Estran geiro de Elia, ou o velho P arm n ides, im provave lm en te ficcionado em razo da denegao de seu prprio pensam ento.

    Mas o que cham a m inha ateno a suposio de que o m atem a entra em cena no ponto em que Lacan se desvia da Idia.

    Em O aturdito, Lacan retom a o tem a de um a ultrapassagem de Plato pelo desenvolvimento do discurso da cincia. Trata-se dessa vez da descoberta, por Gdel, das frmulas da linguagem da aritm tica formalizada de prim eira ordem que, ainda que se manticamente verdadeiras, no podem ser decididas pelo clculo. Parece-lhe que a impossibilidade estrutural de deciso vai con tra o que Plato supe no Menon, a saber, que as idias m atem ticas so inatas, tal como Scrates m ostra atravs da experincia com um escravo que deve resolver o problem a da duplicao do quadrado. Pois, se a m atem tica encontra seu suporte na forma da Idia eterna inscrita enquanto tal na parte dianica da nossa alma, ento ela est decidida desde sempre, o que o teorem a de Gdel nos impediria, segundo Lacan, de sustentar. Haveria a pro gresso em relao quilo que deve ser questionado no Menon concernente ao que possvel ensinar.

    No entanto, o progresso vem acompanhado de um a perda. Ela indica o pouco valor que, no interior do discurso regulado pela cincia, podem os reconhecer opinio verdadeira. Pois, continua Lacan, a opinio verdadeira que d sentido ao Menon tem, para ns, apenas o sentido de ausncia de significao, o que se confirma pelo tipo de referncia que fazemos aos bem- pensantes (2001, p .481). Diga-se, de passagem, eis a um bom exemplo das declaraes violentas que Lacan, este m estre rebel de, sempre endereou pouca consistncia da nossa poca.

    Lacan prope-se a remediar tal perda, resultado do fato de a cincia no sustentar mais a Idia no sentido de Plato, atravs

    35

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    de um m aterna que nossa topologia nos fornece. Ao menos, esse recurso apresentado como um a tentativa.

    Ora, quem no sabe que a matemtica , para Plato, condio indispensvel para remediar, pelo vis da Idia, a perda de ver dade a que os sofistas nos expem? A dimenso mais platonizante de Lacan no seria exatam ente a referncia constante quilo que, por no ter relao alguma com a realidade, est mais apto a nos abrir ao real e que encontra na m atem tica seu nico paradigma disponvel?

    E verdade, aquilo que poderamos chamar de posicionamento da matemtica nestas duas estruturas de pensamento separa mais um a vez Plato e Lacan. Para Plato, o pensam ento matemtico, ou dianoia, apenas o vestbulo da dialtica. Ele metaxu, entre dois, no meio do caminho entre a doxa e a verdadeira episteme. Com Lacan, o tipo de acesso ao real aberto pelo lgico-m atem ti co , para o discurso analtico, um ideal improvvel e supremo. Ele o diz claramente no Seminrio XX, decididamente um texto inesgotvel: A formalizao m atem tica nosso objetivo, nos so ideal. Por qu? Porque apenas ela materna, ou seja, capaz de transm itir-se integralm ente (1982, p .161). Poderamos ento dizer que, para Plato, a m atem tica propedutica, enquanto para Lacan o m aterna normativo.

    Notem os tam bm as diferenas quanto ao que acentuado e aproveitado na matemtica.

    Para Lacan, a m atemtica recebida como formalizao, quer dizer, como potncia da letra. E a partir dessa perspectiva que podemos com preender o sentido do enunciado particularm ente radical que encontram os no m esm o seminrio: Apenas a mate- matizao alcana um real e, por isto, ela compatvel com nos so discurso, com o discurso analtico (ibidem, p .53). Apenas a matematizao. O term o forte. E vocs notaro que, se em re lao ao simblico e transm isso, as matem ticas ocupavam anteriorm ente um a posio de ideal, elas ocupam agora, em re lao ao real, um a posio de compatibilidade. A matematizao

    36

  • Lacan e Plato: o materna uma idia?

    , para o discurso analtico, ao m esm o tempo, ideal disponvel transm isso in tegral e real com o im passe da form alizao, impasse graas ao qual aquilo que advm do real em um a anlise pode e deve coexistir.

    Para Plato, a fora da m atematizao encontra-se tam bm no acesso ao real, um real que ele chama de inteligvel e que, tal como Lacan, aquilo que se distingue da realidade, chamada por Plato de sensvel. Mas no a formalizao que constitui tal po der de acesso ao real. Antes, a deciso axiomtica, ou aquilo que Plato chama de hipteses. Ora, esse funcionamento axiomtico violenta o pensamento, h a algo de cegueira e constrangimento. Eis por que a elevao dialtica em direo ao princpio pode dispor da m atem tica apenas para esclarecer seu prprio poder.

    Estaramos, pois, vendo um a oposio entre um a concepo formalista m oderna e um a concepo hipottico-dedutiva cls sica? Afirmar isso significaria desconhecer a funo do axioma em Lacan, j que podem os sustentar que, para ele, o sujeito mais a conseqncia de um axioma do que o efeito de um a causa. Afirmar isso significaria tam bm desconhecer a funo da letra e do m atem a em Plato, funo que a nica sada para os para doxos do Um. Pois o Um extranum errio que contm em si o vazio que ele convoca, e que chamo de acontecimento, no seria redutvel letra que o nomeia? Em relao ao alfabeto estabele cido das situaes, ele no seria a letra a mais desprovida de toda significao, mas graas qual outras palavras e significaes imprevistas tornam -se possveis, isso ao preo de um a fidelida de im posta ao que advm? Letra cuja inscrio em excesso, e apenas ela, justifica que o filsofo possa ser, como Plato indica no livro V da Repblica, este para quem a vida um despertar, upar, e no um sonho, onar (1993, 476d).

    Distanciemo-nos um pouco da presso dos textos a fim de ver as coisas a distncia, mesmo que, como afirma Lucrcio, a ver dade vista a distncia seja sempre melanclica. Quem na histria de nosso pensam ento tentou unir em um a nica disposio a

    37

  • tensidade subjetiva prpria ao amor e severa transm isso do matema? Quem, seno Plato e Lacan, arriscou-se a sustentar ao m esm o tem po que o processo da verdade no pode realizar- se sem um a transferncia fundada na dem anda de am or e trans m itir-se sem um m atem a cuja forma nos dada pelo axioma? Quem pode escrever sobre a porta da sua Escola (j que todos os dois fundaram escolas e que, sob o nome de Escola da Causa Freu diana, a empresa lacaniana continua e devemos desejar, ao menos, a m esm a durao da Academia - sem poder prever quem far neste caso o papel de Damascio), sim, quem pode escrever a m xima dupla: que ningum entre aqui se no for gemetra, ou lgi co, ou toplogo, e que ningum entre aqui se hesitar a sustentar a intensidade a-tpica, a-social da no-relao (d-liaison) am o rosa? Plato e Lacan tentaram , em terrenos diferentes, designar esse complexo estranho de condies para o pensam ento, que une de m aneira obscura a loucura da paixo e a beatitude da demonstrao.

    A fim de concluir, parece-me que essa relao tortuosa e par tilhada entre Lacan e Plato, que ao menos livra Lacan da doxa filosfica antiplatnica, encontra seu sintom a na estranha con vico lacaniana vrias vezes repetida e segundo a qual Plato mais esconde do que revela o que pensa. J vimos que, a prop sito do Fedro, Lacan insinuava que Plato pregava um a pea em seus discpulos atravs do tem a vazio da participao. H um texto ainda mais singular no qual Lacan declara que toda a cons truo poltica da Repblica seria a exposio do horror absoluto de Plato. A cidade perfeita seria apenas a ironia vertida sobre aquilo que Plato abomina de m aneira evidente e que, diz Lacan, a abominao de todos. Trata-se de levar ao extrem o a imagem de um Plato que esconde seu pensam ento real atrs de seu pen sam ento explcito. Aps um a entrevista com Kojve, Lacan afir ma que os dois concordam a respeito de Plato esconder o que pensa. De onde se segue que Lacan se sinta autorizado a pedir um pouco de indulgncia: No devem, pois, se zangar comigo

    Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    38

  • Locan e Plato: o materna um a dia?

    se no lhes dou a ltim a palavra sobre Plato, porque Plato dod dium esm oque, esta ltima palavra, ele no nos diria (1992, p.67).

    O Plato dissim ulador no seria, aps a separao entre a fic- o-Scrates e seu m estre, um a segunda forma de sustentar p ro psitos ambguos em relao filosofia? Se a Repblica inteira um a im postura irnica, como saber se falamos do que pensa Plato ou do que ele pensa sem dizer (im-pense), se falamos da filosofia ou de seu contrrio sofstico? E no nos esqueamos de que, mesmo identificando apenas em Scrates a posio do discur so analtico, dizemos sem dizer que a filosofia soube antecip-lo.

    Diremos ento que a antifilosofia, ao ser comparada com o que dito sobre Plato, m ostra-se como um dispositivo de du plicidade. No se trata aqui de em itir um julgam ento, j que essa duplicidade um a operao. Ela deve constituir-se como figura independente do pensamento e do ato. A psicanlise, assim como a poltica, a poesia, o am or e a cincia, deve distanciar-se explici tam ente da filosofia. Por tocar o sujeito, o ser, a verdade e a ti ca, a psicanlise deve atravessar e abrir brechas na filosofia. Em sua disposio lacaniana, ela est sempre na diagonal ao m enos do amor e das m atemticas. E, enquanto procedim entos genri cos, todos os dois so condies da filosofia. Lacan no perde tudo o que se abre de acesso a tais condies atravs da filosofia, ou seja, do outro lado de tais procedim entos. O utro lado para quem, como ele repetia, extrai tudo de sua experincia clnica.

    A antifilosofia designa a ambigidade destas duas relaes, um a de distncia e outra de proxim idade (traverse) .9 Scrates e Plato; Plato, o dissimulador, e Plato, o sincero, partilham , na alternncia do elogio e da condenao, as duas funes imanentes antifilosofia. Funes que se contrariam e cuja contrariedade l-se l onde o prefixo anti, funo de distncia, sustenta tam bm a afirmao da filosofia, funo de proximidade.

    9 Nesse caso, outra traduo possvel seria funo de atalho (fonclion de traverse), mas ela no salienta bastante a funo polar estabelecida pelo texto. (N. T.)

    39

  • Um lim ite tenso: Lacon entre a filosofia e a psicanlise

    Tenho certeza de que Lacan diz em algum lugar, mas no consegui encontrar o local exato, que aquele que v a psicanlise como a continuao dos dilogos platnicos est enganado. No que estam os de acordo, j que tam bm procuro distinguir seve ram ente filosofia e psicanlise. Mas, por outro lado, ele se per gunta, e neste caso sei perfeitam ente onde - trata-se do semi nrio de 19 de maio de 1954 -, se deveramos levar a interveno analtica at dilogos fundam entais sobre a justia e a coragem, na grande tradio dialtica (1986, p.230). No que estamos tam bm de acordo. Dessa vez, so os dilogos platnicos que do continuidade anlise ou a completam. Deixo-os nessa toro do esquem a antifilosfico, salientando que a palavra coragem, entre seu exame em Lachs e sua discreta insistncia em Lacan, j nos fornece um a razo suficiente para tentarm os um a aproxi mao destes dois nomes: Plato e Lacan. Pois necessrio um pouco de coragem para sustentar, esta m inha tentativa, o cru zamento daquilo que esses dois nom es recobriram de essencial para mim. Cruzam ento em toro, sem unidade de plano, entre a antifilosofia e a filosofia. C ruzam ento que, no fundo, recobre apenas um im perativo: ten te susten tar-se no ponto onde ao m enos um a verdade advm. Voc ir tornar-se este sujeito cuja verdade o estofo do ser. Isso no quer dizer que voc venha do ser. Ao contrrio, voc vem daquilo que surgiu, acontecim ento ou trans-ser. Um surgir cujo ter-tido-lugar (lavoir-eu-lieu) s ser reconhecido na medida em que sua atividade fiel encontrar lugar.

    Ou ainda, e guisa de concluso: no ceda e aceite conti nuar, suspenso e laborioso, entre a indecidibilidade do aconteci m ento e a indiscernibilidade da verdade.

    Referncias bibliogrficas

    LACAN, J. O seminrio XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982._____ . O Seminrio II: o eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise.

    io de Janeiro: Jorge Zahar, 1985a.

    40

  • LACAN, J. O Seminrio XI: os quatro conceitos fundamentais da psica nlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985b.

    _____ . O Seminrio I: os escritos tcnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jor ge Zahar, 1986.

    _____ . O Seminrio VII: a tica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988.

    _____ . O Seminrio VIII: a transferncia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1992.

    _____ . Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998._____ . Autres crits. Paris: Seuil, 2001.PLATO. A repblica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993.

    Lacan e Plato: o materna uma Idia?

    41

  • H e g el no esp e lh o do Dr. Locan

    Pa ulo Ed u ard o A ra n t es

    No segredo para ningum que o Hegel de Lacan no de prim eira mo. Nem poderia ser: no d para imaginar, l pelos idos de 1930, um psiquiatra francs lendo a Fenomenologia do esprito por conta prpria, pelo menos com proveito. Como sabido, a revelao se deu de fato no Seminrio de Alexandre Kojve, pro- longando-se at os anos 50, quando Jean Hyppolite passou a fre qentar o Seminrio do prprio Lacan. Alm disso, bom deixar claro que sim plesm ente invocar em vo ou a propsito o nom e de Hegel no um argumento, nem ponto de apoio para a apre ciao crtica, at porque, fora da ro tina historiogrfica e da apologtica progressista, no sabemos direito que destino dar experincia intelectual cifrada na especulao hegeliana. Da o destino incerto e tateante das notas que se seguem.

    43

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanlise

    O problema da constituio

    Levado por Georges Bataille no inverno de 1933-1934, Lacan no chegou de improviso ao Seminrio de Alexandre Kojve. Em 1932 term inara um a tese sobre as relaes da parania com a personalidade, e, a julgar pela acolhida, sobretudo nos meios sur realistas e tam bm m arxistas de oposio (Nizan escreveu a res peito no Humanit), Lacan j no era mais qualquer um, sendo, entretanto, bizarra sua situao: um chefe de clnica em ascen so na vanguarda artstica da poca. Publica a seguir dois artigos na revista Minotaure, dos quais um sobre o crime das irms Papin, consolidando de vez sua reputao de dissidncia. Tambm con sulta Dali e especula sobre as relaes entre parania e conheci mento. Tudo isso conhecido e relem brado com freqncia, mas no explica o que exatam ente na verso kojeviana da Fenomenolo ga do esprito lhe acendeu a imaginao. No que ento concerne aos prim eiros passos sugeridos por tal curto-circuito, no vejo por que no nos apoiarmos de incio na sbria reconstruo de Bertrand Ogilvie (1987, p.85-95), um a raridade de conciso e clareza na habitualm ente prolixa literatura lacaniana. bem ver dade que continuaremos um pouco nela, pois trata-se basicamen te de um a apresentao retrospectiva daqueles passos, vistos, po rm, de textos posteriores exposio feita no Congresso de M arienbad em 1936, quando ento a incorporao dos tem as ko- jevianos j ocorrera. M esmo assim, acom panhem os o roteiro. Lacan teria chegado, portanto, com um problema mais ou menos armado, que poderem os chamar, com o autor, de problem a da constituio.1

    Ao longo da Tese, um a expresso recorrente anunciaria o program a vindouro: dependncia do sujeito, mais exatam ente

    1 Assinalo que o mesmo ponto de partida figura num estudo de Bento Prado Jr., no qual a seu tempo tambm nos apoiaremos; cf. Lacan: biologia e narcisismo ou A costura entre o real e o imaginrio, neste livro.

    44

  • Hegel no espelho do Dr. Lacan

    o pressentim ento de um a deficincia primordial que se traduzi ria por um a ausncia de determinao natural. O carter social do indivduo no se acrescenta a nenhum solo positivo e primeiro, ele um ser social na medida em que no absolutam ente outra coisa na esfera biolgica ou outra, ocupando, por assim dizer, o lugar de um a carncia, de um a ausncia especfica. No seria necessrio rem eter desde j prim eira sntese de 193 8, o escrito sobre os Complexos Familiares, como faz nosso Autor. O artigo de 1936 sobre o princpio metapsicolgico de realidade tam bm assinala a fecundidade psquica dessa insuficincia vital, alm de se referir inadequao do estril conceito de instinto. Nesse mesmo artigo, como se h de recordar, Lacan repudiar mais um a vez (como o fizera na Tese) o substancialism o da metapsicologia freudiana em nom e de um a concepo relativista dos fatos psquicos, como ressalta no privilgio que conceder noo de complexo. No seria razovel presum ir2 que Lacan deva ao Hegel de Kojve a revelao de um a crtica neo-reducionista da cons cincia, quer dizer, um a m aneira de contornar o objetivismo da teoria freudiana conservando-lhe, porm, a descoberta crucial de que a existncia hum ana no est centrada num a conscincia essencialm ente cognitiva. Os prim eiros escritos de Politzer e o clima de opinio fenomenolgica da poca j iam nessa direo. No menos verdade, todavia, que o ativismo de Kojve - no prin cpio era a Ao, operao negativa de um ser vazio e vido -, rebaixando conhecim ento (m era contem plao) e substrato instintual (o desejo antropognico), oferecia um ponto de vis ta original sobre a estru tura da conscincia, entendida como pro cesso de socializao da instncia que diz Eu.

    Mas voltemos ao roteiro de Ogilvie, segundo o qual o ainda psiquiatra Jacques Lacan estaria instalando a psicanlise num ter reno inteiram ente novo: no a anlise da gnese objetiva do in divduo na sua dimenso psquica paralela ao seu desenvolvimento

    2 Como sugere Dews (1987, p.51-2).

    45

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    fsico, mas o estudo da discordncia e da oposio que separa este desenvolvimento da constituio do sujeito enquanto ele m an tm um a relao intrinsecam ente negativa com a sua prpria realidade. Nisto est dito tudo: a constituio do sujeito a rigor uma auto-afeco. No por acaso, perguntando-se por que as in terpretaes de Lacan nunca se referem estru tura interna do indivduo m as a sua experincia, um observador das idiossin crasias lacanianas, responde reparando que o indivduo lacaniano tpico reage a si mesmo ou ao seu prprio ser (cf. Wolheim, 1989, p.215). Acrescentemos que no artigo de 1936 a constituio se bifurca em duas vertentes: a constituio da realidade, atravs das imagens em que se condensam os objetos do interesse do indiv duo, a constituio do eu (je) atravs de identificaes tpicas do sujeito, nas quais ele se reconhece (cf. Lacan, 1998, p .91). N es sa formulao programtica, imago e identificao so sem dvida conceitos freudianos, mas no se pode dizer o mesmo do proble ma que ajudam a formular, a o tournant que anuncia a etapa subse qente. Ou melhor, a fase do espelho j est presente no enun ciado de nosso Autor: um a constituio por identificao, na qual o papel determ inante cabe forma ou imagem. E um a imagem de tal modo concebida que fica eliminado qualquer confronto exte rior a um sujeito que parece de fato reagir a si mesmo. Vem da a dependncia do sujeito: ele se expe (por exemplo: sociedade, famlia, linguagem etc.) como quem se abre transcen dncia por um a desigualdade interna - por um a deficincia nti ma ele institui a instncia que ir apanh-lo. V-se tam bm - em que pese a abstrao dessas indicaes apenas programticas - que a auto-afeco constitutiva do sujeito um a relao in terna e negativa.

    Se entendi bem um a aluso de Ogilvie, Lacan teria aprendi do com Kojve, mais do que a m anejar o vocabulrio da negativi- dade, tam bm a identificar essas relaes negativas, a comear pela m atriz delas, a mediao por uma alteridade interna - o que estam os chamando de auto-afeco. Digamos ento que Lacan

    46

  • Hegel no espelho do Dr. Lacan

    teria reconhecido na alienao recproca narrada por Kojve a estru tura reacional do sujeito, cuja descrio (at os confins da obscura origem do narcisismo) vinha tentando ao longo da Tese sobre a parania de autopunio. Mais exatamente, na fr m ula geral de nosso Autor:

    E Kojve le ito r de Hegel quem fornece a Lacan o m eio de fo rm u lar a idia de que a e s tru tu ra reacional do su jeito no est ligada a

    um a situao que a perm itiu , de m an e ira ocasional, m as de m a neira essencial, n a m ed ida em que ela j a con tm em si m esm a; o

    su jeito no an te rio r a esse m undo das fo rm as que o fascinam : ele se constitu i, an tes de tudo , nelas e graas a elas; o ex terio r no

    e s t fora, m as no in te rio r do sujeito , o o u tro ex iste nele, ou ainda: s h ex terio ridade ou sen tim en to de exterio ridade, p o rque an tes de m ais nada o sujeito recebe nele m esm o essa d im enso que co

    m anda em seguida a sua relao com toda exterioridade real. (Ogilve, 1987, p .110-1)

    Uma alteridade no mago do Sujeito hegeliano? S vendo.

    A lgica hegeliana do reconhecimento

    Comecemos pelo fim, isto , por um pequeno estudo de 1957 no qual Hyppolite aplica Lacan a Hegel com a naturalidade das evidncias que dispensam considerandos. Com isso, fechava o ciclo do nosso problema. No custa relembrar que dez anos antes lera a. Fenomenologia em chave existencial, mais exatamente sob o signo da infelicidade da conscincia separada da vida, solo posi tivo e imediato perdido para sempre (cf. Hyppolite, 1971b, p.218; 1971a, c). Ia ento nesse rum o (que no era bem o de Kojve, cujo ativismo belicoso no tinha parte com esse gnero de m e ditao sobre o irreparvel e a finitude) o com entrio do dito hegeliano acerca da vida do esprito enquanto doena do animal: ser-para-a-morte definidor da existncia - como diria Merleau- Ponty, basta pensar para perder a inocncia da vida unida consi

    47

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanlise

    go mesma. No que este tem a fcil no comparea em Hegel; pelo contrrio, depois de Hobbes, foi ele quem introduziu no discurso filosfico o motivo do medo da m orte violenta, s que agora como fonte prosaica de um a revelao: quem ingloriam ente trem eu diante da m orte aprendeu enfim o que a conscincia e a nega- tividade que a especifica, a saber, um a fluidificao absoluta de todo subsistir. Ainda naqueles textos de 1946/1947, Hyppolite se lem brar da nfase kojeviana posta no desejo, mas para abran- dar-lhe o carter operoso de consumo produtivo e realar a incom- pletude que nele se exprime: o fim supremo do desejo reen contrar-se no seio da vida. (Se fizesse esse impulso rodopiar sobre si mesmo, j seria Lacan.) Nele vai se desenrolar assim o drama de um a busca: no fundo dela m esm a, o que a conscincia desejante procura no o consumo bvio do objeto, mas a si m es ma. Como Hyppolite com enta um tanto livremente, o Outro, to aguardado naqueles tempos de embate entre Vtre-pour-soi e 1tre- pour-autrui, surgir um pouco ex abrupto como um a instncia que me afeta de um modo insuportvel. Esse era o trilho do ser- reconhecido. A conscincia se contem pla no outro onde se v, entretanto, como um ser exterior e determinado, quer dizer, um tre-pour-autrui. Esse tam bm era o trilho do desejo do desejo de um ou tro - esta definio do Desejo de Kojve e no se encontra em Hegel.

    Dez anos depois, Hyppolite introduzir o espelho lacaniano nesse quadro da intersubjetividade, como se falava na poca. Q uer dizer, apresentar a conscincia-de-si como um jogo de espelhos. A vida desconhece esse jogo, em que tudo uno com o desejo, no h lugar para a alteridade, cujo esquema justam en te um a relao em espelho. Seria o caso de ilustrar essa observa o evocando de sada um aspecto do jogo hegeliano do duplo sentido? De fato, como num espelho, cada conscincia v a ou tra fazer a m esm a coisa que ela faz: toda a sua operao de mo dupla, reproduzida por um a espcie de duplo de origem espe cular; no qualquer um que a conscincia v surgir ao seu en-

    48

  • Hegel no espelho do Dr. Lacan

    contro - vindo do exterior frisa Hegel -, mas um ssia perfeito. N um a palavra, a conscincia se duplica. Est claro que no h trao de fantasmagoria rom ntica nesta prim eira entrada em cena filo sfica do Duplo. Realidade ou simulacro? No fundo, pouco im porta se o efeito-constitutivo for o mesmo. Mas aqui quem res ponde j Lacan.

    E bem conhecida a exemplificao lacaniana - do com porta m ento animal aos fenmenos de apercepo situacional de um sujeito ainda infans - a respeito dos efeitos formativos da im a gem prpria ou do semelhante, indiferentem ente real ou sim u lada. Sem m uito esforo podemos pelo m enos imaginar, no em- parelham ento hegeliano das conscincias, algo como a gravitao a dois de um a dana recproca como nas descries de Lacan de com portam entos com plem entares desencadeados por um a Gestalt identificatria. Resta saber o que responderia Hegel: se o reconhecim ento m tuo poderia girar em torno de um a m atriz imagtica; se a outra conscincia, na qual a primeira se reconhece vendo-se espelhada, poderia ser um a imago. Desde que ela seja efetivamente encontrada e no forjada, diria Hyppolite nuanan- do, pois Hegel, como vimos, taxativo: o O utro aparece vindo de fora (es ist ausser sich gekommen) , os dois indivduos confron tados no limiar da luta de vida e m orte surgem de fato um diante do outro etc. Nada impede por certo que se entreguem ato cont nuo s sincronas das captaes especulares, como quer Lacan. O im portante que essa captao se d pela imagem, a qual, um a vez assum ida no processo de identificao, transform a o sujeito. Quando, no entanto, a imagem operante, o exterior m uda de figura, ele pode perfeitam ente ser Interno. Mas no limite, as sim o exige a hiptese lacaniana do espelho, como se sabe um a hiptese sobre os efeitos formativos do narcisismo. Seria difcil encontr-la na letra da operao hegeliana do Reconhecimento, m esm o interpretada como identificao pelo Outro, quer dizer, constituio da conscincia-de-si pelo reconhecimento recproco dos que se vem se vendo. Quem, todavia, concebe um a produo

    49

  • Um lim ite tenso: Locan entre a filoso fia e a psicanlise

    de identidade pela via da alteridade est elim inando a hiptese de um interior interpelado por um exterior. No parece que Hegel tenha tirado essa conseqncia extrema, a menos que recondu- zamos a reduplicao hegeliana das conscincias a um... jogo de espelhos, alm do mais na situao experimental imaginada por Lacan. E como Hegel tam bm insiste em vrios passos que o O utro da conscincia ela mesma, fica aberto o caminho para a imagem especular.

    A certa altura, Hegel afirma que a conscincia est perdida para si m esm a ao se reconhecer como outra. Nesse momento, Hyppo- lite recorda a bscula freudiana do fort-da, mas contrariando o repertrio lacaniano, no qual esse esquema da alternncia binria visto como o m om ento em que o indivduo nasce para a lingua gem ao ingressar na ordem simblica. Lembra ento nosso Au tor que, nesse jogo da presena e da ausncia, a criana se perde a si m esm a colocando-se abaixo da linha do espelho, para tirar dessa variante da hiptese do espelho um a concluso em lingua gem hegeliana: fazendo desaparecer o outro, eu m esm o desapa reo, mas fazendo reaparecer o outro eu tam bm me perco, me vejo fora de mim, pois m e vejo como outro. E isso Hegel m es mo, m enos o que vem antes e depois, e assim tam bm poderia ser Sartre ou qualquer outro fenomenlogo da intersubjetividade. Quer dizer, mais singelamente, que Lacan deixou que a Fenome nologa lhe falasse livremente imaginao porque Sartre ainda no publicara O ser e o nada, em que no por acaso se pode ler um extenso com entrio da intuio genial de Hegel a respeito da verdadeira natureza da intersubjetividade. Assim, quando em 1946, por exemplo, nos Propos sobre a Causalidade Psquica, Lacan sustenta que no outro que o sujeito se identifica (e m es mo posto prova), poderia referir-se autoridade de qualquer filsofo do m om ento. Kojve no dizia exatam ente isso, mas to dos estavam convencidos de ter ouvido exatam ente isso. De fato, interpretara a lgica hegeliana do Reconhecimento em term os de Desejo e Satisfao do desejo - nada que implicasse a alteri-

    50

  • Hegel no espelho do Dr. Lacan

    dade como negao interna, quando m uito um a relao tridica em que estavam em cena dois desejos e um objeto imaginrio em disputa, o prestgio, como veremos a seu tem po nos term os em que Lacan glosou esse dispositivo.

    Reparemos na ousadia de outro passo de Hyppolite, em que define a dim enso em que se desloca a conscincia-de-si por um certo gro de... loucura, justam ente a loucura que consiste em dever sua identidade alteridade. Isso posto, depois de vincular loucura e constituio da conscincia em espelho, Hyppolite con sidera paranica apenas a figura hegeliana bvia dita delrio da presuno, deixando de lado, sem emprego, a concepo la- caniana mais abrangente de conhecim ento paranico. Ou m e lhor, sem aproximar, como seria de esperar, conhecimento e pa rania, Hyppolite, no obstante, tam bm vai longe, ao fazer depender a histria que se reconstri na Fenomenologa de um a relao especular originria que no hesita em chamar de louca. Da em diante, acrescenta, o caminho percorrido pela conscin cia um a histria de alienaes (sem especificar, joga com a acep o clnica do term o), cuja base o objeto imaginrio da conscin- cia-de-si, isto , ela mesma. Q uanto a Hegel, intil lembrar, a evoluo subseqente constitui de fato um sistem a da iluso, ou se preferirmos, um a exposio completa das formas da falsa cons cincia, est claro que com um desfecho positivo. Causalidade psquica parte, Kojve tam bm narrava um a histria da aliena o, porm social em sentido estrito, sujeio includa: como, entretanto, o impulso dessa peripcia que culminava na Revoluo Francesa provinha do desejo de reconhecimento, socialmente in terpretado, estava aberto o cam inho para a livre fantasia dos ouvintes. Voltando ao Dr. Lacan dos anos 30 e 40, sabe-se que a sua concepo da dialtica social que estru tu ra como paranico o conhecimento hum ano foi exposta num a srie de conferncias mdicas contemporneas da redao de sua Tese. Desconhecemos o exato teor delas, salvo as poucas indicaes nos escritos da dcada de 1940, suficientemente heterodoxas, de qualquer modo

    51

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanlise

    a ponto de incorporar as cogitaes de um Salvador Dali a prop sito de um possvel mtodo paranico-crtico atuante nas m onta gens surrealistas. Na comunicao de 1949 sobre a Fase do Espe lho, para assinalar a ruptura entre o organismo hum ano e seu Umwelt, ainda evocar o discurso surrealista sobre o peu de ra- lit. Digamos que tenha reconhecido alguns elem entos do co nhecim ento que chamou de paranico no processo hegeliano de constituio da certeza de si da conscincia. De Dali veio-lhe, quem sabe, a idia da percepo no deform ante da imagem du pla (cf. Roudinesco, 1988, v.2, p.128). Em Kojve deve ter nota do que um a fase sui generis se encerrava com a introduo, assi nalada h pouco, de um a relao a trs - o Sujeito, o O utro e o Objeto do seu desejo - e que, portanto, na relao dual anterior haveria alguma coisa da identificao objetivante definidora de um reconhecim ento paranico, o fato primordial que reside na conjuno de identificao e alienao, a ambivalncia primitiva que se exprime num sujeito que se identifica no seu sentim ento de si com a imagem do outro e que a imagem do outro vem apri sionar neste sentim ento. A partir da, como se sabe, toda a intersubjetividade, onde impera a relao dual do Olhar, que ir bascular no dom nio do imaginrio. Nesse sentido, a lgica he- geliana do reconhecimento, devidam ente filtrada, um a lgica do imaginrio, que precisar, no entanto, esperar por Sartre para ser exposta.

    Ainda a hiptese do espelho

    Hegel convocado duas vezes pelos espelhos do Dr. Lacan. Alusivamente, sempre que vem baila nos escritos dos anos 40 e 50 o assim chamado estdio do espelho. Diretam ente, por ocasio da apresentao de um a verso ampliada do experim en to do buqu invertido (Seminrio de 7 de abril de 1954). Nem por ser direta esta ltim a meno deixa de ser m enos alusiva e

    52

  • Hegel no espelho do Dr. Lacan

    herm tica - para variar. Como se h de recordar, o referido expe rim ento - montagem de prestidigitador como o chama o prprio Lacan, no qual se m anipula graas a um espelho cncavo a com posio de um a figura hbrida de ilusionista, metade objeto real, m etade imagem - destina-se a ilustrar um m undo em que o im a ginrio pode incluir o real e, ao mesmo tempo, form-lo. O acrs cimo do espelho plano, onde o sujeito (mtico) se v em efigie ao lado da imagem virtual daquela figura compsita, traz de volta a frmula do escrito princeps de 1949, e com ela, desempenhando as mesm as funes, Hegel. Em todas as suas verses, a metfora tica de Lacan diz o mesmo, a saber, a constituio da identidade atravs da alteridade por duplicao de um a imagem prpria que o indivduo carregaria consigo. Fenmeno imaginrio atestado pela operao - cujos exemplos Lacan encontra na etologia - que no animal faz coincidir um objeto real com a imagem que est nele (Lacan, 1986, p.162).

    So essas convergncias que sugerem a Bento Prado Junior (no estudo citado) a presena no pensam ento de Lacan de urna espcie de narcisism o m ais abrangente, nada ortodoxo, mais especificamente um a relao narcsica primordial, sem a qual no haveria relao com o m undo transcendente do objeto. Um breve apanhado do roteiro cum prido pelo A utor nos perm itir voltar a Hegel por outro ngulo. E bom lem brar que a excurso lacaniana de Bento Prado Junior um a sondagem de carter local, interessada sobretudo na vocao filosfica da obra de Lacan, mais exatamen te num captulo da filosofia francesa da psicanlise, gnero sin gular identificado pelo mesmo Bento Prado Junior ao estudar-lhe os prim ordios na obra de Georges Politzer. (Seja dito de passa gem, estam os vendo, tam bm num a investigao de detalhe, de que modo, na sua evoluo, esse gnero cruzou o caminho da aclimatao francesa do hegelianismo.) Estaramos assim s vol tas com um a crtica original, obviamente de inspirao analtica, da iluso objetivista: ao lado de um a denncia da confuso entre realidade e objetividade, um a teoria correlata justam ente da cons

    53

  • Um lim ite tenso: Lacan entre a filoso fia e a psicanlise

    tituio centrpeta do sujeito e da correspondente formao do objeto. A certa altura do escrito de 1949, para ilustrar o efeito formativo de um a Gestalt, recorrendo a exemplos da etologia do instinto animal, Lacan lem bra como a vista de um a simples im a gem especular de um congnere suficiente para desencadear o processo de maturao de um indivduo; cinco anos depois, no prim eiro livro do Seminrio, volta ao tem a etolgico do sujeito essencialmente logrvel: essa a pista explorada por Bento Prado Junior, revelada pelo peso do imaginrio na emisso do compor tam ento, como diz o Autor. Um roteiro que por via comparativa (articulando etologia do instin to animal e teoria freudiana das pulses) alcana finalm ente a condio prim ordial de qualquer objetivao do m undo exterior, a saber, a relao narcsica do eu ao outro, sem a qual no h estruturao da esfera objetai. Nar cisismo sem dvida paradoxal, para alm do Solus Ipse do prim iti vo enclausuram ento do Eu, na juno do Ipse e do Alter. Mas isso no tudo; para nosso Autor interessa sublinhar quanto a consti tuio do exterior depende da imagem pretendida e no da percebida, quanto pesa a irrealidade na instituio da objetivida de, quanto o no-ser da pura imagem condiciona a emergncia do existente. Voltamos assim apresentao da constituio como um a auto-afeco: se o imaginrio no instncia segunda mas fundante, porque a fantasia originria que abre o acesso realidade se confunde no limite com a finitude de um a ipseidade que se institui na forma da auto-afeco, no caso pela imagem unificadora de si mesma. N a base da relao narcsica, h a auto- afeco pelo espelham ento do M esmo num a imagem que implica desdobram ento.

    Compreende-se que neste ponto os lacanianos se sintam ten tados a rebater esse m ecanismo da constituio na reflexo du plicadora da conscincia-de-si hegeliana. Tanto mais que, pginas antes, Hegel j se desvencilhara da tautologia sem m ovimento do Eu = Eu. Mas por a no passa a possvel analogia. Ocorre que o tem a transcendental da constituio (esta a sua rvore genea-

    54

  • Hegel no espelho do Dr. Locan

    lgica, como reconhece o mesmo Bento Prado Jr.) foi substituido em Hegel por um problema deformao, onde no h mais lugar para nenhum a instncia originria: estam os desde o inicio no terreno da mediao, no qual os novos objetos vo surgindo por reflexo interna de constelaes que tm a idade histrica do m undo cujo processo de socializao a Fenomenologa reconstri. A dialtica sim plesmente desconhece qualquer configurao pri m eira e irredutvel, como parece ser o dram a da alienao refle tido no espelho de Lacan: esse m om ento de um a relao prim or dial consigo m esm o que irremediavelmente (o pthos vem da literatura lacaniana) e para sempre um a relao com um outro (cf. Ogilvie, 1987, p .107). Em Hegel justam ente isso: apenas um m om ento, em bora conscincia e alienao tam bm sejam coextensivos. Havendo em contrapartida constituio originria em Lacan, e constituio no m bito da finitude, constituio e perda so simultneas, e da ordem do irreparvel.

    No gostaria de passar adiante sem antes registrar outro efeito do espelho de Lacan, referido por ele nos seguintes termos: O outro que somos est fora de ns, a forma humana; esta forma est fora de ns, no enquanto feita para captar um com porta m ento sexual, mas enquanto fundam entalm ente ligada im po tncia primitiva; o ser hum ano no v sua forma realizada, total, a miragem de si mesmo, a no ser fora de si (Lacan, 1986, p. 164). Ora, a essa imagem especular, a um tem po instituinte e alienante, corresponde ponto por ponto, porm sim etricam ente invertida no que concerne s relaes de interior e exterior, a voz no grava dor ouvida na abertura da Condio Humana, e assim interpre tada pelo mesmo Bento Prado Junior: Malraux comea um de seus romances com u