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Griot Revista de Filosofia v.8, n.2, dezembro/2013 ISSN
2178-1036
Sacrifcio, rivalidade mimtica e bode expiatrio em R.Girard Mrcio
Meruje; Jos Maria Silva Rosa Griot Revista de Filosofia, Amargosa,
Bahia Brasil, v.8, n.2, dezembro/2013/www.ufrb.edu.br/griot 151
SACRIFCIO, RIVALIDADE MIMTICA E BODE EXPIATRIO EM R. GIRARD
Mrcio Meruje1 Universidade da Beira Interior (UBI/FCT)
Jos Maria Silva Rosa Universidade da Beira Interior (UBI)
RESUMO: Tendo como ponto de partida a obra de Ren Girard, o
presente artigo pretende apresentar a dimenso antropolgica presente
na obra deste autor, destacando a sua originalidade e novidade ao
pensar o homem como animal socialmente desejante. A teoria mimtica,
como Girard a formula, pretende ser uma teoria que, colocando no
centro da sua reflexo o desejo e a imitao, permita compreender como
se estruturam as sociedades arcaicas e actuais, partindo de
mecanismos marcadamente antropolgicos, para afirmar que as
sociedades se estruturam a partir do desejo, do sacrifcio e da
necessidade de existncia de bodes expiatrios. A partir deste
pressuposto, o sacrifcio a primeira instituio humana, com a
capacidade farmacolgica de preservar a sociedade e de permitir a
sua subsistncia no tempo. A cultura, por seu lado, emerge a partir
do desejo mimtico; e o mecanismo do bode expiatrio, mecanismo
vitimrio por excelncia, regula a sociedade ao solucionar as suas
tenses internas. Considerando estes trs conceitos sacrifcio, desejo
mimtico e mecanismo do bode expiatrio este artigo expe o modo como
se relacionam estes conceitos. Apesar de constatar a sua presena e
eficcia na histria, Girard no os legitima de jure, desvelando o
segredo da sua eficcia a ignorncia inocente das vtimas que,
paradoxalmente, persiste mesmo depois de denunciada nas suas
escusas razes. Posto isto, perguntemo-nos: como proteger o homem da
sua prpria violncia?
PALAVRAS CHAVE: Ren Girard; Teoria Mimtica; Sacrifcio; Bode
Expiatrio; Desejo; Imitao.
1Bolsista da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT) desde
2012; doutorando e pesquisador integrado do Instituto de Filosofia
Prtica da Universidade da Beira Interior (UBI), Covilh Portugal.
E-mail: [email protected]
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SACRIFICE, MIMETIC RIVALRY AND SCAPEGOAT IN R. GIRARD
ABSTRACT: Taking as starting point the work of Ren Girard this
article aims to present the anthropological dimension present in
the work of this author, highlighting its originality and novelty
when thinking man as a social desiring animal. The mimetic theory,
as Girard formules, intended to be a theory, placing in the center
of its reflection desire and imitation. To understand how to
structure the current and archaic societies, starting from
anthropological mechanisms to assert that societies structure from
the desire of the sacrifices, and the necessity of always being the
mechanism of the scapegoat It is from this premise that sacrifice
is the first human institution, with the ability to preserve the
pharmacological society and enable their subsistence over time.
Culture, in turn, is created from the mimetic desire, and the
mechanism of the scapegoat mechanism victimizer par excellence that
structure society. Considering these three concepts - sacrifice,
mimetic desire and the scapegoat mechanism - the article shows how
these concepts are related and how they can enrich previous studies
on these topics. Unlike other ideas about mimesis, Girard
recognizes her role essentially harmful and assigns it along with
the desire, the main motive of the subject to violence. That said,
let us ask ourselves, how to protect man from his own violence?
KEYWORDS: Ren Girard; Mimetic Theory; Sacrifice; Scapegoat
Mechanism; Desire; Imitation.
A teoria mimtica de Ren Girard, iniciada com a obra La Violence
et le Sacr, evidencia uma estrutura trilgica fundamental do agir
humano, ficando o desejo mimtico como figura central em todas as
restantes anlises, trilogia que aqui pretendemos evidenciar. Em
primeiro lugar, mostrar o desejo mimtico como estrutura actante
fundamental do ser humano; em segundo lugar, perspectivar de que
modo as origens do sagrado podem ser remetidas para uma violncia
fundadora presente em todas as culturas e, por ltimo, compreender
de que modo a leitura girardiana dos evangelhos e da figura de
Cristo pode iniciar uma fora de denncia singular que permita o
(re)comear de uma nova histria ou odisseia antropolgica do
homem.
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O Sacrifcio: Primeira Instituio Humana
Ren Girard define o sacrifcio, na sua obra La Violence et le
Sacr2, como o instrumento de preveno contra a violncia emergente
nas sociedades, isto , o mecanismo que se apresenta como o meio
pelo qual toda a comunidade protegida da sua prpria violncia.
O sacrifcio apresenta-se como uma estrutura simblica que, ao
envolver um elemento de mistrio em aco tem a funo de impedir que a
violncia, tida como interna sociedade, atinja repercusses tais
todos contra todos - que coloque em causa a sobrevivncia da prpria
sociedade, levando-a a uma situao de colapso. A funo do sacrifcio,
enquanto ritual (ELIADE, 2002, p. 31), nem mais nem menos que
purificar a violncia. (GIRARD, 1979, p.18). Assim, este efeito
catrtico do sacrifcio coloca uma fronteira prpria violncia acabando
apenas por se manifestar num processo ritual, levando a que todas
as pulses e tenses que existiam na sociedade sejam transferidas
para esse ritual, o qual envolve sempre uma vtima expiatria
permitindo assim a subsistncia da sociedade, j que mediante tal
transfert a violncia foi satisfeita, pelo menos por algum
tempo.
Girard apresenta o sacrifcio como a primeira instituio humana
que permite justificar a existncia em sociedade. Ou seja, o
sacrifcio ritual constitui o vnculo ou essa arcaica cola que
permite passar do eu ao ns. Assim, o ritual para Girard a origem de
todas as outras instituies sociais e, por isso, a primeira
instituio humana. Em que consiste ento o sacrifcio? O sacrifcio
consiste em descarregar sobre uma vtima (o bode expiatrio) todas as
tenses existentes na sociedade as quais ameaam romper a ordem que a
mantm. O sacrifcio o regulador da homeostase do corpo social. Por
outras palavras, o sacrifcio permite expulsar do meio social toda a
forma de violncia que ameaa a sociedade. Essa violncia resulta
muitas vezes de dissdios que se acumulam entre os membros da
sociedade, pois tais tenses surgem da incapacidade dos homens
conseguirem conciliar os seus desejos, desenvolvendo uma rivalidade
mimtica, assunto que retomaremos no prximo ponto desta parte.
A noo de sacrifcio remonta, qui, ao mito da queda e encontra-se
to difundida na cultura humana3 que, na actualidade, falar em
sacrifcio parece remeter para uma recuperao do passado. Vejamos,
por exemplo, o rito de iniciao do Cristianismo, designado Baptismo,
que teve especial significao no Apstolo Paulo, e aparece no sexto
captulo da Epstola aos
2 Ren Girard, Violence and the Sacred (Traduo inglesa de Patrick
Gregory), The John
Hopkins University Press, Baltimore, 1979. 3 Cf. George Steiner,
No Castelo do Barba Azul. Algumas notas para uma redefinio de
cultura, Lisboa, Relgio dgua, 1992, pp. 13 e ss. Este texto,
especialmente o captulo segundo, importante para a reflexo sobre a
condio de bode expiatrio dos judeus, no Ocidente.
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Romanos (Rm 6, 3-4) e escrito por volta do ano de 54 d.C (cf.
BRANDON, 2003, p.102). Aqui o sacrifcio, tido como forma ritual
religiosa, neste caso rito primeiro de iniciao vida crist, no
implica uma morte fsica ou qualquer substituio para retomar a paz
no seio da comunidade. Poderemos dizer que os ritos iniciticos, bem
como os ritos de comemorao, se apresentam como rituais com um
contedo profilctico. A vtima do Baptismo no vtima fsica mas
espiritual - agora parte da comunidade e identifica-se com esta,
melhor dizendo, identifica-se nesta.
Noutro contexto paralelo, os tragedigrafos gregos squilo,
Sfocles e Eurpides so exemplares na representao do sacrifcio.
Aristteles testemunhou (cf. LEBEAU, 1999, p. 13) que a tragdia o
resultado do poder catrtico que esta tem na audincia, ainda que
algumas das tragdias no resultem num verdadeiro final catrtico,
podendo ter finais neutros ou mesmo com um certo grau de
felicidade4. Contudo, devemos notar que o poder catrtico que a
tragdia gera na audincia explica o motivo de o espectador apreciar
um sofrimento que dramatizado: assistir a um sofrimento que no seu,
mas que o liberta. O verdadeiro sacrifcio no era contudo simulado,
dramatizado: era real. O sacrifcio, fora das portas da cidade, de
um animal, geralmente um bode era um exemplo desta prtica catrtica
como purificao pessoal ou da comunidade (plis)5. Persona, que em
latim significa mscara (no grego prspon, aquilo que se pe diante
dos olhos) significa a personagem que na representao dramtica
encarna outrem. Aquele que vestia a pele do bode encarnava com essa
mscara o verdadeiro bode. J o significado de tragdia, do grego
tragos e odos, tem na sua gnese o poder catrtico que dela resulta
pois tragdia significa literalmente canto do bode, mas,
curiosamente, significa tambm caminho do bode (BAILLY, 1969)6. este
caminho, autntico beco sem sada, que o bode tem at sua morte que
constitui a tragdia. A tragdia , assim, de entre todas as formas
literrias a que apresenta uma estrutura mais sacrificial (GANS,
2000).
Como instituio humana o sacrifcio representa, enquanto forma
simblica, a aco que em si mesma desencadeia um rol de outras aces.
Passemos agora anlise da estrutura
4 Esta classificao no unnime. Seguimos a este propsito a
classificao aristotlica da
tragdia (cf. Les Tragiques Grecs, p. 15). 5 No Livro do Gnesis
(Gn 22, 1-2) evidenciada a substituio de uma vtima humana por
uma vtima animal. 6 O canto do bode que se expressa nos dois
termos que constituem a palavra tragdia,
respectivamente tragos e odos, estava associado ao caminho do
bode. Literalmente, como nos diz Bailly, tragdia significa o canto
do bode, canto religioso que acompanha o sacrifcio de um bode nas
festas do Deus Baco, equivalente ao Deus Dionsio, na mitologia
romana. graas a este acompanhamento, a esta cerimnia de despedida,
que, por derivao, tragdia significa igualmente o caminho que o bode
realiza at sua morte, ao mesmo tempo que o seu caminho era
acompanhado por cnticos de cariz religioso (Cf. BAILLY, 1969, p.
878 - 879)
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sacrificial. O sacrifcio tem muitas vezes, seno na sua
totalidade, um cariz religioso e um poder catrtico para a religio.
Afirmamos aqui, com Girard, que religio e sociedade so
indissociveis e uma no poderia existir sem a outra; uma depende da
outra. (GIRARD, GOUNELLE, 2007, p.55)
A estrutura sacrificial tem trs dimenses que, acima de tudo,
envolvem os actores principais do sacrifcio Deus/deuses (enquanto
formas simblicas religiosas), o social e a vtima. Estas trs
dimenses, enquanto constituidoras do horizonte humano, fazem do
sacrifcio a estrutura antropolgica fundamental que possibilita por
um fim vingana sem que esta seja devolvida sociedade (TEIXEIRA,
1995, p. 32).
Deus , no contexto sacrificial humano, a entidade suprema que
recebe os sacrifcios, animais ou humanos, de um certo ritual e do
qual se espera que uma aco no futuro seja a recompensa desse
sacrifcio, p.ex.: uma boa cultura, fertilidade das mulheres, etc..
este rito, esta sinalizao evidente do religioso, que torna
inseparvel a religio da segunda dimenso, o social. O social,
enquanto criao de cultura, tem como seu pressuposto uma violncia
fundadora (TEIXEIRA, 1995, p. 27), e atravs dela que a sociedade se
cria, se estrutura. A originalidade de Girard , a este propsito,
notria visto que apresenta a violncia como um meio para a
estruturao da sociedade, mas que aps cumprir essa tarefa tem de ser
expulsa da sociedade. E como? Precisamente pelo sacrifcio, pela
imolao de uma vtima substituda que representa todo o grupo
(social).
A vtima, terceira dimenso sacrificial, a que apresenta um maior
papel performativo e simultaneamente onde recai toda a aco do
social. Ao analisarmos o papel da vtima testemunhamos o papel das
sociedades humanas como fazedoras de vtimas e a maneira
extremamente criativa e multiforme como as inventa. As histrias do
patinho feio ou do Calimero so coisas que remontam criao do mundo.
E no somos todos ns, afinal, como afirmou Sartre, metade vtimas e
metade cmplices (SARTRE, 2002)? Ao analisarmos a vtima cingimo-nos
neste primeiro momento ao processo sacrificial primordial, no
denominando aqui o significado actual de vtima, com especial
conotao jurdica.
O sacrifcio, como constituinte da sociedade, consiste em
transferir para outro objecto, uma vtima arbitrria, todas as tenses
e dios que criam mal-estar na sociedade. O carcter teraputico da
vtima leva a que esta tenha de fazer parte da sociedade que suposto
purificar, para que esta se identifique com ela, mas contudo no
pode ser uma parte ou um elemento fundamental desta. Se a vtima
sacrificial fosse uma parte fundamental na nossa sociedade, por
exemplo, uma figura poltica esta geraria uma violncia de vingana,
de retorno, no meio da sociedade e levava igualmente ao seu
colapso. A vtima escolhida entre o todo da sociedade e tem de
pertencer, digamos, a um grupo desprezado. Na impossibilidade de
esta ser um ser humano, a simblica sacrificial transfere esta vtima
para uma vtima
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animal: um bode, um carneiro, um cordeiro7. O animal, em
substituio de uma vtima humana, passa a ser durante algum tempo
alvo de culto e adorao estabelecendo por um processo de transfert
psicolgico uma paz provisria que liberta o todo social das tenses
que este sofria anteriormente.
A vtima sacrificada, que pertencia inicialmente a um grupo
desprezado da sociedade, mas que possua ainda assim alguma
similitude com a sociedade, adquire, com o seu sacrifcio, um papel
fundamental e de superioridade em relao aos restantes. Quer falemos
de uma vtima humana quer falemos de uma vtima animal, notamos que
ao serem vtimas sacrificiais adquirem uma conotao religiosa. A
vtima, que at ser sacrificada objecto odioso em razo da
transferncia para ela da violncia que desestabiliza a sociedade,
adquire com o sacrifcio uma venerao, um estatuto parte8. esta
violncia que a alma secreta do sagrado9 em que o rito uma expresso
evidente de indissolubilidade entre sociedade e religio (GIRARD,
1979, p. 31).
Sabemos, atravs das dinmicas de grupo que nos chegam da
psicologia, que criar um bode expiatrio no tarefa difcil. Mas de
que modo, na actualidade, se geram estes bodes expiatrios? Falar de
sacrifcio como estrutura perene e eficaz de um ritual
reconhecer-lhe, na actualidade, estruturas que se metamorfosearam.
Ainda que existam na nossa sociedade bodes expiatrios, de algum
modo, com a complexificao social ao longo da histria, parece que
perderam a sua funo catrtica e chegamos ao que Girard denomina, em
vrias das suas obras, de crise sacrificial: isto , quando as vtimas
que deveriam expulsar a violncia da sociedade deixam de possuir
este papel e a violncia se perpetua na sociedade, na medida em que,
instintivamente, para superar essa ineficcia se tendem a
multiplicar ainda mais as vtimas. Tem sempre de haver bodes
expiatrios.
O sacrifcio, que em sociedades antigas era a ltima palavra da
violncia e que ciclicamente, por um certo tempo, at novas tenses se
acumularem, era capaz de manter a paz na sociedade, possua um modo
prprio de existir, pois era devido vtima sacrificial ser escolhida
aleatoriamente, mas no irracionalmente, que ela, ou os da sua
estirpe, no podiam jamais devolver a violncia sociedade atravs do
acto de vingana (TEIXEIRA, 1995, p. 31, 32). Em dipo Rei, de
Sfocles, vemos exactamente este papel catrtico do sacrifcio onde a
vtima se determina por si mesma, desconhecedora da tragdia que cada
gesto seu arrasta,
7 Relembremos a este propsito uma vez mais a passagem do Livro
do Gnesis onde
Abrao substitudo pelo cordeiro provido por Deus. Cf. Gen: 22;
1-9. 8O homo sacer representa uma estrutura fundamental no plano
social (MERUJE, 2009). O exemplo mais notrio na literatura clssica
o dipo em Colono, de Sfocles. E o processo de paixo e morte de
Cristo pode ser visto pelo mesmo prisma. 9 Para Girard, a alma
secreta do sagrado a violncia. uma violncia organizada para
que a vida seja possvel. (TEIXEIRA, 1995, p.34)
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operando aqui Girard uma anlise distante da psicanlise de Freud
(FREUD, 1990).
A crise sacrificial, que tomou o lugar do sacrifcio nas
sociedades modernas, a expresso de que, aquilo que antes se
apresentava como obrigao sagrada, se tornou agora numa actividade
quase-criminal, que engloba riscos de similar amplitude aos que
esto envolvidos nessa obrigao sacrificante. O poder jurdico que se
afirma na modernidade condena o sacrifcio como actividade criminal,
a menos que seja legitimado atravs da criao de outras instituies
humanas substitutas e legitimadoras por exemplo o direito penal da
primeira instituio humana, que era o sacrifcio. O sacrifcio toma
como meio a utilizao da violncia, sobretudo fsica numa primeira
instncia, que ao longo da histria se foi transformando cada vez
mais em formas dissimuladas e muito mais subtis. Essa subtilizao
exprime tambm, a seu modo, a crise sacrificial de que falamos.
Actualmente, a interposio de muitas mediaes tcnicas e de discursos
entre as vtimas e os seus sacerdotes/carrascos, visam muitas vezes
negar essa violncia e camuflar tal registo, levando a uma disfuno
do acto sacrificial. Contudo, negar a violncia, quer num registo
primitivo ou moderno, afirmar o seu poder metamrfico pelo qual ela
vai sempre encontrando uma ou outra vtima sobre quem se exerce
(GIRARD, 1979, p.2), porque para a boa conscincia do todo social so
sempre precisas vtimas. A conduta sacrificial, que nas sociedades
antigas permitia expulsar a violncia atravs do bode expiatrio, como
ser a seguir demonstrado, impossibilitada qua talis pelo sistema
jurdico racional presente nas sociedades modernas que se apresenta
como substituto racional daquela. O sacrifcio j no um instrumento
de preveno contra a violncia, em virtude da sua impossibilidade de
se apresentar como um ritual sacrificial, pelo menos de modo claro,
sem mediaes tcnicas. A que se deve ento esta impossibilidade? Em
especial porque o sistema jurdico compete directamente contra o
sistema sacrificial por aquele ser exactamente um outro modo
sacrificial metamorfoseado (RICOEUR, 2000, p. 347). O sistema
jurdico, em grande medida, funciona na actualidade como um filtro
da violncia fsica directa que fazia o sistema sacrificial do bode
expiatrio funcionar. O sistema jurdico-penal substitui o sistema
sacrificial por este ser mais efectivo como legitimador da
violncia. O sistema jurdico-penal ao actuar de modo legtimo no
plano social ir colocar o mecanismo sacrificial como ilegtimo de
modo a legitimar-se a si prprio racionalmente, mesmo se no cria
menos vtimas. Existe uma desmistificao do sacrifcio e este passa
apenas a ser possvel pelo sistema jurdico-penal v.g., a justia
pelas prprias mos, o linchamento colectivo, legitimados pelo
mecanismo sacrificial quando a multido tinha uma posio unnime, no
so permitidos mas punidos neste novo sistema de gesto da
violncia.
Resulta assim, desta crise sacrificial, a sua proliferao (da
violncia) em formas dissimuladas as quais invadem a sociedade ao
serem
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legitimadas pelos diferentes modos de poder (poder poltico,
econmico, social, cientfico, tecnolgico, etc.): onde quer que a
violncia esteja presente a impureza sacrificial estar presente.
(GIRARD, 1979, p.34)
Importa assim formular uma questo: de que modo passamos de um
registo sacrificial para a crise sacrificial? No vale a pensa
tentar relaes do tipo causa-efeito, mas devemos sublinhar alguns
acontecimentos que decorrem desta alterao: quando ficamos privados
da realizao do sacrifcio e o bode expiatrio deixa de funcionar, que
mais facilmente a violncia do todos contra todos retorna como forma
de regulao homeosttica da sociedade. Esta violncia totalizante, ou
a sua possibilidade iminente10 , instaura a crise sacrificial e a
sociedade torna-se incapaz de recuperar a anterior eficcia do
sacrifcio ritual. O sistema sacrificial anterior metamorfoseia-se,
assim, nas sociedades modernas, em legitimao das leis do poder
poltico-jurdico e as suas formas prprias de violncia, no sentido
weberiano11.
O sacrifcio, ao apresentar uma duplicidade na sua expresso
transfere a violncia que se acumula na sociedade para uma vtima
expiatria e confere vtima um poder transcendental d violncia
sacrificial uma eficcia mais imediata que a violncia jurdica pois
esta, afinal, mostra no ter efeitos farmacolgicos anlogos aos que a
violncia sacrificial tinha.
As instituies racionais da sociedade moderna Estado, leis,
trabalho, educao, economia, etc. tornam presente o processo
sacrificial atravs de uma dissimulao da violncia que o re-vela,
i.e., o mostra e simultaneamente o esconde. O sacrifcio deixa de
ter a sua forma primordial, pura, e torna-se numa justia legtima
que manifestado por outras suas instituies obedienciais: por
exemplo penais, prisionais, escolares, hospitais psiquitricos,
sanatrios, etc..
Para alm do sacrifcio cruento que se torna ilegtimo com o
desenvolvimento das instituies sociais a primeira forma de
instituio humana fundamental, especialmente na modernidade, o
interdito legal, o qual, na modernidade, segundo Girard, tende a
substituir o sacrifcio. Entende Girard que a funo do interdito a
regulao e proibio do mimetismo que, caso no tenha qualquer controlo
social, acabaria por levar aniquilao da prpria sociedade em causa.
Deste modo, sustentvel afirmar que os interditos se opem e combatem
a rivalidade mimtica, reprimindo, por conseguinte, as condutas que
em funo da obteno do mesmo objecto tendem a proliferar o mimetismo
e a violncia12. Para tal, 10
Que a Europa conheceu ciclicamente; e remetemos de novo para a j
referida obra de G. Steiner. Mas talvez o esquema se possa
verificar noutras latitudes, v.g.. na ndia do Mahabharata. 11
O estado reclama para si o monoplio da violncia fsica legtima []
ele a nica forma do direito violncia. Cf. Max Weber, s/d. 12
V.g., pelo roubo; pelo que uma das funes principais da lei
proteger a propriedade dos bens, a segurana, etc..
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necessrio que a sociedade no repita as suas prprias palavras, no
use os seus nomes (interdito do dizer) nem as suas prprias aces
(interdito da aco) (GIRARD, 1978, p.19). Assim, a comunidade
procurar livrar-se deles com o menor grau de violncia possvel para
no responder seduo mimtica. (TEIXEIRA, 1995, p.36).
A funo dos interditos criar zonas protegidas na sociedade,
esferas onde exista ncleos fundamentais protegidos, em princpio,
contra a violncia. Girard reconhece existir a possibilidade de um
ncleo de no-violncia no seio da sociedade moderna13 e este, por sua
vez, o regulador que permite desempenhar funes essenciais como a
educao cultural, a sobrevivncia das geraes, etc.. (GIRARD, 1979, p.
301-302)
Se como instituio primacial o interdito visa eliminar a imitao
(a apropriao do alheio) no seio da comunidade, os ritos visam, como
Girard sustenta, a utilizao da violncia em doses pequenas (GIRARD,
1979, pp. 37-48). Perante os males, optar-se- por uma padronizao do
mal a lei do mal menor , isto , no se substitui a violncia por
qualquer outra forma de violncia equivalente, mas legtimo us-la
como um medicamento, em doses o quanto baste: o rito
fundamentalmente um sacrifcio ritualizado que encontra a sua gnese
e estrutura no mecanismo fundador; ele reproduz todos os estdios da
crise mimtica incluindo a sua resoluo. (TEIXEIRA, 1995, p. 38).
Por conseguinte, a fundao e estruturao da cultura humana sobre o
mecanismo vitimrio a exaltao de uma das instituies mais importante:
o mythos. O mito no ser, pois, mais do que a inveno narrativa da
vtima, apesar de esta ser uma qualquer vtima arbitrria. Esse poder
fabulador liberta os sacrificadores das suas recriminaes recprocas.
J a, a palavra substitui eficazmente a violncia. Assim, essa
contaminao, ao ser erradicada, volve-se simultaneamente poder
salvfico, pelo benefcio social que capaz de gerar (a cruz revela-se
graa, no caso da narrativa crist). Nas palavras de Alfredo
Teixeira, os mitos narram, de facto, crises mimticas e processos
vitimrios bem-sucedidos, concretizados, frequentemente, na morte de
um heri divinizado, rejeitado pela comunidade. (TEIXEIRA, 1995,
p.30)
Estas instituies, que nada mais so que o fundamento do mecanismo
vitimrio, esto longe ainda das instituies sociais nas pretendemos
encontrar uma ligao com o mecanismo sacrificial.
De entre as mais diversificadas instituies, a que melhor afirma
a existncia de um mecanismo sacrificial, destitudo de qualquer
forma mtica ou religiosa, ainda que nele seja fundado, o sistema
jurdico-penal existente nas sociedades modernas, como j referimos.
Para Girard, no existe no sistema penal qualquer princpio de justia
diferente de um princpio de vingana existente na reciprocidade
violenta aquando do 13
Talvez se possa esclarecer melhor este ncleo que distinguirmos
violncia fundadora e violncia conservadora do direito: esta segunda
protege da primeira.
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colapso do mecanismo sacrificial, ou crise sacrificial: o
princpio das reciprocidades violentas e da retribuio est presente
[]. No h diferena essencial entre a vingana pblica e vingana
privada, mas sobre o plano social existe uma diferena enorme.
(TEIXEIRA, 1995, p.38) Que diferena se d no plano social? A
violncia aparece nos nossos sistemas judiciais com uma autonomia
conceptual que permite isolar o crime da pena devido transcendncia
social dos sistemas judiciais. Alfredo Teixeira reitera que se esta
transcendncia judiciria perder a sua eficcia, encontrar por baixo o
carcter imitativo da violncia tal como se concretiza nas sociedades
primitivas. Deste modo, possvel sustentar que a crise sacrificial
que deu lugar ao encobrimento do mecanismo vitimrio (TEIXEIRA,
1995, p.40), que nas sociedades modernas se outorga pelo
politicamente correcto (BENTO, 2009), essa mesma crise sacrificial
que est em risco de colapsar caso as instituies onde esta se apoia
perderem a sua eficcia. Em primeiro lugar, perder a sua
transcendncia significa que o carcter imitativo da violncia acabar
por ressurgir, agora fora de um contexto sacrificial que o
reinstitua como bom remdio, protector, etc..
Como referido atrs, Paul Ricoeur, na obra O Conflito das
Interpretaes, denuncia, mediante a interpretao, o que chama o mito
da pena, realando um conjunto de aporias que tm especial interesse
analisar a este propsito. Diz-nos Ricoeur que no h uma lei mais
forte do que a lei da pena pela qual o mito foi quebrado. (RICOEUR,
2000, p. 347) e a sua anlise dirige-se sobretudo tomada de
conscincia (e racional) deste processo mtico. Crime e pena, crime e
castigo, inscrevem-se em dois lugares antropolgicos diferentes: o
do padecer e do agir. Ricoeur, ao reconhecer, para denunciar, a
relao entre o religioso e o jurdico adianta que o sagrado sacraliza
incessantemente o jurdico e, por outro lado, o jurdico juridiciza
incessantemente o sagrado, dialctica onde notamos uma vez mais a
relao que se estabelece entre sociedade e religio agora no tocante
ao poder poltico-jurdico, no qual o registo sacrificial se
testemunha de modo diferente, por exemplo, atravs da razo de estado
(RICOEUR, 2000, p. 346-350). Interpretar assim o mito da pena
denunciar a associao arcaica, mtica e narrativa entre crime e
castigo, sobretudo quando se pretendeu racionalizar no direito
moderno.
A palavra sacrifcio significa tornar sagrado e o sacrifcio
exprime, assim, o mecanismo social para produz o prprio sagrado,
especialmente quando a sua carestia deixa adivinhar o caos. A vtima
expiatria que ritualmente sacrificada produz a unio da comunidade
como um todo e, ao mesmo tempo, manifesta uma dimenso sagrada
(i.e., separada do resto): a vtima passa de maldita a bendita, a
violncia sobre ela santifica-a; nasce da indiferenciao e produz a
diferenciao; funda a cultura. Ela tem poder malfico por condensar a
maldade social enquanto bode expiatrio, mas tem poder redentor ao
libertar os perseguidores de suas recriminaes recprocas e, ao mesmo
tempo, trazer benefcios sociais.
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Em que medida o sistema jurdico-penal moderno ocupa o lugar da
estrutura sacrificial primitiva? Por um lado, como dissemos, o
sistema judicial apresenta uma estrutura similar sacrificial, mas
substitui-a na medida em no funciona. Apresenta a violncia
sacrificial dissimulada pelas suas justificaes racionais, tarefa
dos penalistas. O sistema jurdico-penal pretende, tal como a
estrutura sacrificial, inibir a violncia recproca, no permitir a
vingana e pretende ser inquestionvel, isto , arroga-se o poder
inquestionvel de ministrar a justia e assim, em ltima instncia,
deter o exerccio legtimo da violncia sob todas as suas formas.
O Desejo Mimtico: A Origem Cultural
Aristteles, na Potica, acerca da imitao, diz que imitar congnito
no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, ele o
mais imitador e, por imitao, apreende as primeiras noes), e os
homens se comprazem no imitado. (ARISTTELES, 1448 b 4 - 1448 b 33)
, pois, evidente para o Estagirita a tendncia originria e natural
do homem no respeitante imitao e, importa notar, ao contrrio de
Girard, onde tem conotao sobretudo negativa, a mimsis evidenciada
por Aristteles patenteia comprazimento humano (v.g., na repetio das
boas sensaes), determinando-lhe assim um importantssimo papel
pedaggico. No excluindo esta capacidade noutros animais, o homem
aprende especialmente pela imitao, no apenas devido sua
racionalidade, mas sobretudo ao seu fraco apetrechamento natural,
sento assim fundamental no processo da paidia (latu senso), desde a
criana ao estado adulto, onde a mimsis, no termina mas se requinta
(vg., na arte, na tragdia, ). na relao com o outro que a criana
comea o processo imitativo que a leva a apreender as primeiras noes
e nesta evoluo so vrios os modelos a seguir: os pais, os colegas da
escola, a televiso, etc. O outro que se coloca diante de mim pode
ser um modelo para mim e os artigos de psicologia abundam nesta
temtica, ligando-a aos vrios processos de aquisies cognitivas14.
Vemos mesmo que esta mimsis, presente no reino animal (e talvez at
vegetal, no fototropismo), uma poderosa arma dissimuladora e leva,
atravs da seleco natural, a uma vantagem na luta pela sobrevivncia.
Assim, se o homem a espcie mais imitativa de todas, esta ento a que
detm a maior vantagem na luta pela sobrevivncia, mecanismo que a
racionalidade ainda apurou mais, como Nietzsche no deixou de notar
com feroz ironia. A imitao prpria ao Homem desencadeou no seio da
sociedade o que Girard designa origem cultural da espcie humana e
que o leva a afirmar um novo processo de hominizao e humanizao.
14
Os estudos de Melanie Klein, na psicologia, e os de Konrad
Lorenz, na etologia, so ptimas fontes de pesquisa para aprofundar
esta linha de pensamento.
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A mimsis, para Girard, uma estrutura dinmica na qual o que se
imita pode numa fase seguinte ser obstculo e rival atravs do que o
autor denomina como double bind (GIRARD, GOUNELLE, 2007, p. 59),
i.e., duplo vnculo ou vinculao recproca, no sentido de recolher a
anfibologia profunda que perpassa o processo imitativo. A mimsis do
homem poder ser ento representada por este esquema:
Entre o sujeito e o objecto (de desejo) estabelece-se um outro
sujeito que pode, numa primeira fase, ser modelo do sujeito mas
que, numa segunda, um obstculo para a conquista do objecto. Numa
terceira fase, o sujeito e o obstculo apenas esto interessados no
objecto uma possvel quarta fase seria a extino do objecto e a
perpetuao de uma rivalidade subtilizada, transcendente, infinita,
entre sujeito e o rival imitado. J no se quer nada que o outro tem,
mas quer-se ser o outro. Mas recuemos: quando estamos perante
aquela trade fundamental, originria na filosofia de Girard,
apresenta-se o que o autor denomina tecnicamente como rivalidade
mimtica. esta concepo que nos permite falar da triangularidade do
desejo, pois a mimsis liga-se intimamente a esta noo. atravs da
mimsis que o sujeito deseja o objecto (pois copia o outro no seu
desejo), mas pelo desejo que o sujeito entra em conflito e
rivalidade (GIRARD, 2007, p. 50-60).
Na relao dual que existia entre sujeito que deseja e objecto
desejado interpe-se agora um mediador, um outro. atravs deste outro
que nasce o desejo. O sujeito deseja o objecto de desejo de um
outro sujeito; deseja porque o outro deseja, e no um objecto
indesejado. S interessa o objecto porque ele de um outro, ou porque
o outro tambm o deseja. O desejo do outro excita e mediador do
desejo prprio. Girard denomina este processo de mimsis de apropriao
ou imitao da apropriao (cf. GIRARD, 1987, p. 7-10). E, por
conseguinte, a rivalidade mimtica a rivalidade que se gera entre os
sujeitos devido aquisio, posse e fruio
2. Fase
1. Fase
Sujeito Objecto
Sujeito Modelo
Sujeito Obstculo
Sujeito Objecto
Sujeito Obstculo
Sujeito Objecto
3. Fase
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de um objecto. Os dois sujeitos tornam-se rivais devido disputa
do mesmo objecto, podendo este deixar de interessar, se o que move
ambos os rivais desejar o desejo (liquidando-o) do outro sujeito. O
objecto pode deixar de existir, pode desaparecer, mas a rivalidade
continua, como se disse.
pela rivalidade do desejo que a violncia nasce e se desenvolve
nas sociedades. O que acabmos de reconhecer entre dois sujeitos,
acontece de modo semelhante entre todos os sujeitos num registo
societal, gerando-se assim um conflito generalizado de todos contra
todos pela posse do objecto A, objecto B, etc.., numa espiral
infinda e exponenciada. Quando um sujeito quer imitar o desejo do
outro, mas verifica que tal impossvel (nem quanto ao objecto nem
quanto ao desejo), essoutro passa de modelo a obstculo, passa a ser
o rival: dune rive au rivage rival, diria M. Serres. Girard
denomina esta noo double bind, conforme j referimos. Girard mostra
de forma exemplar, ao longo das suas obras, que este double bind
que se encontra em aco nos romances de Stendhal, Flaubert, Proust
ou Dostoievsk15. O desaparecimento do objecto, devido ao desejo
recproco de ambos os sujeitos, conduz a violncia a um segundo grau
mais intenso: espiritualiza-se, radicaliza-se16. Objecto, sujeito e
modelo no apresentam agora qualquer diferenciao, mas so antes um
todo indiferenciado que permutam as suas posies, processo onde se
perde a conscincia de quem rival de quem, porque cada um um misto
de tudo. Certamente se se questionar algum sobre o porqu da
rivalidade, ser dada uma longa lista de razes; mas so razes
tardias, pensadas, de m-f no sentido sartriano, ou demodo
inconsciente, relembrando Freud; nesse fundo involuntrio que esse
double bind tem origem, podendo contudo autojustificar-se de forma
quase transcendente quando chega conscincia e s razes. Reside aqui
a gnese da imprevisvel escalada da violncia, at aniquilao de um
rival. ros e thnatos danam, desde sempre enlaados, uma dana
perigosa. Na filosofia hobbesiana est bem presente a afirmao desta
competio mortfera na luta pelo mesmo objecto, que acaba por
legitimar o Estado (e a sua violncia): se dois homens desejam a
mesma coisa, ao mesmo tempo que impossvel ela ser gozada por ambos,
eles tornam-se inimigos. E no caminho para o seu fim [] esforam-se
por se destruir ou subjugar um ao outro. (HOBBES, 2002, p.111).
De toda a histria da violncia mimtica, de que nos fala Girard,
esclarecedora a histria bblica de Caim e Abel17 pois os mitos
presentes na 15
Outros exemplos mtico-lendrios ou histricos seriam Osris e Seth,
Caim e Abel, Esa e Jacob, Rmulo e Remo, etc.. Ou talvez mesmo
pudssemos recuar ao mito de Lcifer. 16
Nesta violncia de segundo grau apenas interessa a aniquilao do
outro. Podemos inferir da psicanlise freudiana a rivalidade que se
gera no seio desta estrutura tridica familiar: pai, me e filho/a.
17
Presente em Gn 4, 1-16, o mito de Caim e Abel mostra o
nascimento de uma sociedade com base na violncia e na rivalidade
pastores e agricultores (os segundos detestam os rebanhos
depredadores dos primeiros, porque lhes atacam as hortas, as
vinhas, etc., pelo que se vingam no dono do rebanho, levando a que
Deus vingue Abel, etc., etc., at hoje!),
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Bblia so para Girard uma das estruturas fundamentais que
des-velam a violncia e desocultam o segredo de uma lgica
sacrificial e vitimria. E por a apresentarem como lgica sacrificial
que irrompem nesta significao e a alteram. tambm atravs de outras
passagens da Bblia, mormente neotestamentrias, que Girard reconhece
a inverso sacrificial, pois esta no prope qualquer vingana, mas
antes um perdo e uma dignificao da vtima como tal.
Caim e Abel18 revelam o perigo do nascimento de uma sociedade
atravs da violncia. Abel morre para que seja possvel a sociedade
agrria, o povo sedentrio (no sentido tambm de povoao); o gesto
homicida de Caim apresentado por Girard como clmax e crise mimtica,
pois Caim no desparece no grupo annimo dos agricultores;
identificado, declarado culpado, deveria morrer segundo Talio, mas
acaba por ser poupado, ainda que marcado. Se o mecanismo do bode
expiatrio fora desvelado, o culpado teria de morrer para garantir o
efeito catrtico e farmacolgico do primeiro sacrifcio, o de Abel;
mas permanece vivo e esta inverso sacrificial que cria um novo
modelo na histria, segundo Girard. Ningum pode vingar Abel, fazendo
correr o sangue de Caim, pois tambm este foi sacrificado para que a
sociedade fundada possa prosseguir fora do crculo infernal da
violncia que gera violncia; existe aqui uma hetero-regulao
(mandamento divino que vem de fora) da sociedade que impede essa
vingana. A vtima sacrificada agora vtima santificada, i.e.,
separada, ermada, posta parte.
Foi, pois, o mimetismo da inveja que introduziu o mal no mundo,
segundo a perspectiva bblica e crist. A fundao da Humanidade revela
a rivalidade nica no seio da sociedade e, de modo contra-exemplar,
pretende fundar a fraternidade na sociedade, onde os sujeitos se
alegram com a presena e os bens do outro, permitindo a comunho e
graa futuras, em ordem a uma comunidade escatolgica de todos os
bens.
Tambm no Novo Testamento, o episdio do apedrejamento da mulher
adltera (Jo 8, 1-11) tem toda a estrutura da crise mimtica: o grupo
est em crise (ou crise fingida para questionar Jesus) porque a
presena de uma adltera face Lei afecta toda a sociedade, pelo que a
mesma deveria ser apedrejada (Lv 20, 10; Dt 22, 22). A soluo
expiatria requer sangue, uma vtima cruenta. Esta, no caso uma
mulher adltera, ipso facto marginal sociedade que se reconhece
(farisaicamente?) na Lei. Acontece que Jesus no entrou na lgica do
todos contra um, a lgica da violncia annima do linchamento
colectivo, onde cada um se esconde por detrs do outro; pelo que
face pergunta: Moiss manda esta mulher. E tu que
o que partida se revela como parte de um mecanismo sacrificial;
mas este revelado, permitindo a inverso sacrificial, isto a revelao
das estruturas fundamentais da sociedade. 18
Ainda que Girard no escreva directamente sobre o mito de Caim e
Abel, vide a este propsito Teixeira, 1995, p. 64.
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dizes? Jesus no responde como se esperaria, entrando na
armadilha de dizer uma coisa diferente, contra Moiss; ou confirmar
o apedrejamento, contra si a sua lgica de amor e perdo. Jesus deixa
a exegese, do discurso e vira-se para a aco: escreve na areia, ao
mesmo tempo que lana um enunciado performativo. Quem no tiver
pecado atire a primeira pedra deixa-os perplexos, perdidos, destri
o grupo, a violncia annima e individualiza cada um,
responsabilizando-o pelos seus prprios actos. desmontando o
mecanismo do linchamento colectivo da vtima, que Jesus acaba
propondo o perdo. S o perdo pode terminar a violncia sem a mediao
da violncia. Os evangelhos so o maior exemplo de desvelamento do
segredo presente na estrutura vitimria do sacrifcio (de que o
prprio Cristo ser vtima consciente) e nele que Girard v a novidade
crist que irrompe contra todas as lgicas sacrificiais presentes nas
sociedades ontem, hoje e sempre(?). O episdio de Caim e Abel, tal
como o da mulher adltera, mesmo que diferentes entre si, indicam
uma reconciliao social na qual a violncia sacrificial mortfera no
ocupa j qualquer lugar. Ainda que de incio estes episdios tenham
tudo para serem episdios sacrificiais, no seu desenvolvimento e,
consequentemente, no seu fim, que revelada e recusada a mediao
sacrificial. Os evangelhos revelam a mensagem do perdo e
reconciliao como capazes de fundar a convivncia entre os homens
fora do circuito da violncia, e pretendem colocar assim um fim
crise mimtica sem recorrer utilizao ao sacrifcio de um por todos.
Jesus mostra que o mal comea na esfera do desejo (Mt 27), mas no
coloca um fim definitivo ao mimetismo intrnseco do homem;
apresenta-lhe outras possibilidades. Pretende antes que a violncia
seja ultrapassada pela no-violncia, desencadeando um novo par
mimtico onde as imagens de Joo Baptista e dele prprio so exemplos
vtimas da violncia, mas mansos e humildes corao de um novo crculo
onde no exista rivalidade, inveja ou vingana reparadora. As figuras
de Joo Baptista e Jesus so, a este propsito, as precursoras de um
novo modelo no-violento de relao entre os homens.
Segundo Eric Auerbach, a grande diferena do homem actual o
carcter dinmico ou histrico que possui, ao contrrio do homem antigo
que era visto numa situao esttica (AUERBACH, 1974, p. 32). O homem
da sociedade actual mostra as constantes mudanas do meio em que est
inserido. Este autor afirma que a literatura da antiguidade no
revela as condies do homem, mas antes condies da f e da interpretao
da vontade divina. Plato introduz a noo de mimsis como emulao,
transformao ou ainda como criao de similitudes, produtores da
aparncia e da iluso e nesta mimsis platnica que Gebauer e Wulf
(AUERBARCH, 1974, p.32) no vem qualquer unidade. O ponto mais
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importante da anlise realizada por Plato acerca da mimsis19 ,
para o contexto girardiano, a noo de apropriao, visto que Plato
nunca desenvolveu aprofundadamente na sua filosofia ao carcter
conflitual da mimsis em mbito religioso ou poltico, como gerador da
violncia. V.g., no Banquete at o contrrio: a mimsis se relaciona-se
com o desejo conduzindo este, graduadamente, do amor dos belos
corpos ao amor das belas almas e, da, ao amor da Ideia de Belo e de
Bem. Neste sentido, a mimsis ertica at pode ser vista em Plato um
phrmakon 20 , e reconhecemos at aqui que Girard afirma essa mimsis
fundamental para a fundao da cultura. Se a mimsis um phrmakon e,
simultaneamente, fundamento da cultura, poderemos defend-la aqui,
tal como parece faz-lo Girard, j que ao mesmo tempo transporta um
potencial de violncia? Por outras palavras: ainda que a mimsis
detenha, como j referimos, um carcter pedaggico, no ser ela
responsvel pela proliferao da violncia nas sociedades demonstrando
assim o seu carcter negativo a partir do qual se desenvolve um
mimetismo violento? Se sim, de que forma poder a sociedade reprimir
esse mimetismo violento? Perguntamos ns: ter sido a instituio
escolar a grande descoberta para o transfert da violncia destrutiva
para uma violncia (disciplina) criativa, se verdade, como quer
Aristteles, que aprendemos (tudo?) pela imitao e que isso congnito
em ns? Quanto a Girard fala-nos de dois tipos de mediadores no
desejo21 : um interno e outro externo: no caso da mediao externa, a
distncia entre sujeito e modelo previne que estes sejam
competidores um do outro []. Mediao interna, por outro lado, surge
quando a distncia para com o modelo diminui. (DEPOORTERE, 2008,
p.36). Inferimos desta citao, o que Girard mostra em Deceit, Desire
and the Novel: o objecto apenas um meio para chegar ao mediador
(DEPOORTERE, 2008, p. 37). 19
Plato atribui nos seus textos (v.g., na Repblica ou no Mnon) um
duplo sentido mimsis, tendo em considerao os diferentes planos do
seu uso. Do ponto de vista gnosiolgico, a mimsis importante na
medida em que nos ajuda a remorar a Ideia, patente no tpos
inteligvel mimsis evidenciada como positiva no processo de
anamnese. Alm do exemplo do escravo, no Mnon, veja-se tambm a
mimsis positiva apreciada no Fdon, no Fedro, ou no Crton. Por outro
lado, Plato refere tambm a mimsis como negativa, no mbito da teoria
da participao, que se compara a Ideia com as suas materializaes
objectivas em actos ou objectos. No Livro X, da Repblica Plato, o
clebre mito dos trs leitos refere-se mimsis negativamente, como um
processo de degradao ontolgica, onde o marceneiro e, depois, o
pintor, agravam cada vez mais a distncia dos seus produtos (um
leito e a pintura de um leito, respectivamente) em relao ao
original. Copiar, imitar degradar. A mimsis apresenta-se, pois,
neste aspecto, e segundo um ponto de vista ontolgico, como qualquer
coisas a no imitar, sobretudo porque destri a inteligncia, tendo
por conseguinte as piores consequncias tico-polticas. 20
A reflexo da mimsis como phrmakon pode ser encontrada na obra de
Lacoe-Labarthe (LACOE-LABARTHE, 1998, pp. 248 265). 21
O desejo liga-se pois noo de mimsis e desenvolve o que Girard
afirma de rivalidade mimtica.
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precisamente na chegada ao mediador que se realiza a rivalidade
mimtica, pois o sujeito que at ento era modelo e possua o segredo
de o ser desvelado: O homem deseja ser algo que ele prprio e
[simultaneamente] algo que outra pessoa possui [ou ] e ele carece
de ter. (DEPOORTERE, 2008, p. 37)
A rivalidade mimtica de que nos fala Girard , assim, um ponto
paradoxal: porque aglutinador da sociedade onde objecto, sujeito e
desejo deixam de estar diferenciados; e porque transporta j os
conflitos. A rivalidade mimtica a passagem do todos contra todos
para o todos contra um que apazigua a crise e, por conseguinte, a
violncia inventando um bode expiatrio que previne (phrmakon) a
generalizao da violncia e o colapso. A diferenciao que se cria
permite a seleco da vtima a sacrificar, a santificar. Que
caractersticas dever ento possuir tal vtima? Veremos isso a seguir,
mas queremos desde j sublinhar-lhe a importncia.
Girard afirma, numa conferncia ao Le Monde (GIRARD, 2001), que a
situao que se vive na actualidade (refere-se em geral s relaes
internacionais, polticas, econmicas, sociais, culturais, etc.) a de
uma rivalidade mimtica instalada a nvel mundial, que visvel atravs
da crise que enfrentamos actualmente. Girard diz-nos que o problema
no reside concretamente na diferenciao, na difference, mas antes na
competio:
A competio o desejo de imitar o outro em ordem a obter a mesma
coisa que ele ou ela possui atravs da violncia, se assim for
preciso. Sem dvida alguma, o territrio a barreira para um mundo
diferente do nosso, mas o que permite o terrorismo no reside nessa
diferena que o remove para longe e que o torna inconcebvel. Antes
pelo contrrio, reside num desejo para a igualdade e semelhana. As
relaes humanas so essencialmente relaes de imitao, de rivalidade.
(GIRARD, 2001).
curiosa esta incurso pelo terrorismo actual, vendo nele no a
afirmao extremista de uma diferena identitria que quer exterminar a
outra diferena, mas antes um desejo do mesmo, ao contrrio de outras
teorias actuais sobre o assunto (v.g., Samuel Huntington). Talvez a
psicologia do terrorista suporte parcialmente a tese de Girard
(v.g., comportamentos de consumo dos mesmos smbolos que dizem
odiar) se bem que por outro lado parea infirm-la (v.g., as clulas
terroristas camalenicas, totalmente mimetizadas, que vivem nas
sociedades ocidentais e que um dia acordam). A actualidade , pois,
como as sociedades arcaicas, produtora de vtimas sacrificiais, de
bodes expiatrios, mas de um modo mais dissimulado como ser a seguir
apresentado. A padronizao glocal dos comportamentos nas sociedades
actuais, impulsionados pelo consumo mimtico planetarizado (v.g.
pela Amazon; ou no recente
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lanamento da PS4) no estranha a Girard. Da ele referir, na
entrevista, que o problema da rivalidade mimtica , sobretudo, o
caminhar para um desejo de igualdade e de semelhana
indiferenciadoras. Sem dvida que a homogeneizao massiva de
comportamentos e de produtos idnticos comporta algo de muito
violento, no s mas tambm do ponto de vista simblico, para a
diferenciao cultural das sociedades tradicionais (especialmente
minorias que, apesar de resistirem, depois desaparecem simplesmente
na enxurrada), bodes expiatrios atrasados de um progresso cuja
finalidade no se vislumbra no fog que avana.
O Mecanismo Vitimrio: O Bode Expiatrio
A vtima expiatria que se produz no seio da sociedade a vtima
expiatria que funda a cultura (i.e., o valor, o princpio de
valorizao de tudo, do que deve ser feito, prescrito; e do que deve
ser proibido, proscrito). A sua morte sacralizadora. A existncia de
uma vtima expiatria o desaparecimento da diferenciao entre sujeito,
objecto e desejo, mas simultaneamente ela representa o medo da
sociedade: os indivduos em luta, j que cada um o rival, duplo e
modelo do outro, um pouco por acaso, vo dar-se conta que esto todos
do mesmo lado (unanimidade violenta) contra um s. (LOPES, 200, p.
149). Toda a sociedade acusa, exprobra essa vtima, arbitrariamente,
de todos os males que enfrenta e a nica forma de garantir futuro
sociedade santificar a vtima (sancire, santificar, quer dizer
separar) pois uma determinada violncia, para que possa estancar
acaba sempre por encontrar uma vtima-objecto de descarga. (LOPES,
2000, p. 150). Segundo esta teoria, se no existissem bodes
expiatrios, as sociedades acabariam destrudas pela violncia de que
elas prprias so produtoras. As vtimas propiciatrias geram uma dupla
transferncia pela representao do seu (prprio) sacrifcio (homo
sacer); por outras palavras, a vtima que foi escolhida
arbitrariamente no seio social era acusada de todos os males da
sociedade e essa vtima malfica que tinha de ser aniquilada; aps ser
sacrificada, ela reencarna renasce! como vtima que instaura a paz,
que permite sociedade subsistir: o facto de se terem reconciliado
entre si, por causa da mesma vtima, vai criar a iluso de que ela,
tendo sido responsvel por todos os males malficos, tambm responsvel
pela sua prpria reconciliao (duplo transfert) e por isso tem uma
natureza diferente de poderes sobrenaturais que tanto podem
desencadear a violncia e o castigo, como a paz e a reconciliao (da
tambm o seu carcter monstruoso) (LOPES, 2000, p. 149)22. pelo seu
papel facilitador da dupla transferncia, mas simultaneamente 22
O carcter monstruoso do bode expiatrio, da vtima, expresso na
sua dupla funcionalidade pois a vtima simultaneamente benfica e
malfica. A sua monstruosidade reside na bifidez que se produz
naturalmente na sociedade quando reconhecida por todos (violncia
unnime).
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farmacolgico, que a vtima possui um rol de caractersticas
essenciais para o correcto funcionamento da sociedade no processo
sacrificial, pelo qual a violncia se aniquila a si prpria pela
morte dela e permite vida do todo social prosseguir. Uma vtima
expiatria no pode, de modo algum, ter um papel central no seio
dessa sociedade. Deve ser do meio social, devendo apresentar um
carcter marginal, parte facilmente sacrificvel, de algum modo
transgressora, e que por isso gera e refora a unanimidade quando
apresentada como bode expiatrio da sociedade. Por outras palavras,
tem de ser j algum marginalizvel, excluvel e portanto excluda,
Estas caractersticas permitem uma inverso paradoxal: o maldito vira
bendito quando a vtima sacrificada: a ambiguidade gera-se
precisamente porque a vtima que, supostamente, encerra nela os
males da sociedade, ao ser sacrificada santifica-se e santifica,
transcende assim a sociedade. Adquire um papel diferenciador e
permite a reconstituio dos sistemas diferenciadores no meio social
em especial dos meios diferenciadores entre sujeito, objecto e
modelo. Como enfrentar este carcter monstruoso, este double bind,
esta ambiguidade que faz da vtima um sub-ser social para depois o
colocar como transcendente sociedade (super-ser social)?
Mircea Eliade, na obra O Sagrado e o Profano, referiu a
importncia da morte fundadora de todas as formas culturais e
importa relembrar aqui o que ele nos diz do carcter mimtico, do
imitatio dei: o homem s se reconhece verdadeiramente homem na
medida em que imita os Deuses (ELIADE, 2000, p. 112), os seus
gestos arquetpicos e exemplares. No que respeita morte integrada na
vida, diz que ela, enquanto fundadora, que muda a existncia humana:
este primeiro assassnio mudou radicalmente o modo de ser da
existncia humana. (ELIADE, 2000, p. 113).
Ningum pode vingar-se do sacrifcio do bode expiatrio, mesmo que
tivesse uma relao prxima e directa com este (v.g., filho, pai ou
irmo). Aqueles objectos, ou indivduos, que tiveram uma relao mais
directa com a vtima sacrificada so agora tambm objecto de
interdito. Importa notar que uma outra forma de instituio, como
anteriormente referimos, intimamente associada ao sacrifcio, o
interdito. E por ser uma instituio fulcral da sociedade que esta
necessita de impedir a vingana daqueles que viveram perto do bode
expiatrio23.
Interrogvamo-nos anteriormente como poderia a sociedade ser
criadora de vtimas e de que modo esta criava as suas prprias
vtimas. Importa perguntar tambm: de que modo o bode expiatrio
escolhido na aleatoriedade do todo? Vimos h instantes que esta
vtima tem de apresentar alguma marginalidade. atravs dos estudos
das dinmicas de grupo, que nos chegam da psicologia, que se torna
mais claro o modo como estas 23
Ainda que a morte seja, para Girard e Eliade, idntica, Zeferino
Lopes lembra-nos, por seu lado, que se para Eliade a morte mais
simblica (inicitica) que real, esta apresenta-se em Girard como bem
real. (LOPES, 2000, p. 150).
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dinmicas se desenvolvem. A psicologia interdividual de que nos
fala Maria da Graa Silva Lopes (SILVA LOPES, 2000, p. 161-180), num
artigo sobre Girard, faz-nos entender melhor o modo como este autor
contribuiu e continua contribuir para uma matizada concepo tica e
antropolgica do humano: a escolha da vtima o alfa (comeo mimtico) e
o mega (concluso vitimria) do desejo; separar desejo e mimetismo
significaria mutilar. De onde se segue a no existncia de um desejo
espontneo bem como uma forte reduo nas possibilidades inerentes noo
de Eu autnomo no final de contas, todo o desejo metafsico (SILVA
LOPES, 2000, p. 179).
O bode expiatrio, no como realidade (a um coisa escondida desde
a criao do mundo), mas como noo operatria, mostra-se presente j em
registos mticos antigos, pr-bblicos, bblicos, nas literaturas
poticas e sapienciais, etc., por exemplo na tragdia grega. Na
Bblia, o livro do Levtico apresenta-no-lo concretamente: Aaro entra
no santurio com um bezerro para o sacrifcio pelo cordeiro e um
cordeiro para o holocausto. (Lev 16, 3). O processo de expiao
consiste em transferir, mediante improprios, os pecados da
comunidade para o cordeiro exposto em pblico e que de seguida
sacrificado. A existncia de dois animais no sacrifcio demonstra
sobretudo a dialctica do puro-impuro mas, modernamente, os dois
animais foram interpretados tambm como a representao da tenso
pblico-privado. Enquanto o primeiro era sacrificado aps ser alvo de
expiao pelos prprios pecados de Aaro e pelos de sua famlia (esfera
privada), o segundo no era imediatamente morto. Eram-lhe
transferidos os pecados da comunidade e abandonado no deserto
(esfera pblica). Este processo de expiao exalta a lei de Santidade:
Ser para vs uma lei perptua: uma vez por ano ser feita a expiao de
todos os pecados dos filhos de Israel (Lev 16, 34). O bode
expiatrio depois transferido do domnio propriamente religioso e uma
expresso utilizada em diversos contextos: os judeus sero acusados
no regime nazi do colapso poltico, e por isso tem de ser
sacrificados, de modo a limpar a sociedade alem da sua contaminao,
etc.. Constatamos na histria que certos grupos que as vtimas do
mecanismo vitimrio, que servem de bode expiatrio, podem variar.
Mas, importa diz-lo, so geralmente de minorias reconhecidas e
marginalizadas: leprosos, bruxas, negros, ciganos, prias,
deficientes, estrangeiros, pobres so exemplos de bodes expiatrios
existentes nas sociedades ao longo da histria. preciso haver sempre
repositrios para a violncia potencial.
Apesar de, na actualidade, as nossas sociedades ocidentais,
pretensamente querem expulsar quaisquer revivescncias de ritos
sacrificiais, incontestvel a transferncia destes ritos para outras
esferas, hoje de modo particular na economia, que talvez ltimo
grande sistema sacrificial. Grandes instituies bancrias detm hoje o
poder de manejar, metamorfoseados, os mecanismos vitimrios
sacrificiais de outrora, gerindo
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especiosamente os princpios e os mecanismos do que vale (do que
deve valer, diria Nietzsche, piscando o olho) ou no vale na
sociedade.
A passagem do mecanismo vitimrio de um plano sacrificial, com
conotao religiosa, aos planos econmico, poltico, jurdico e social
(v.g. na moda), etc., ligado s instituies do valor, desligando-se
sucessivamente da conotao exclusivamente religiosa, deve-se
existncia do que Girard denomina crise sacrificial. Girard ao notar
que o sacrifcio, presente em todos os rituais, tem duas facetas
distintas este aparece certas vezes como obrigao sagrada e outras
como actividade criminal (GIRARD, 1979, Cap. I) tem plena noo da
dualidade do sacrifcio: se por um lado pode ser legtimo e
legitimvel, por outro pode torna-se ilegtimo. Tal dualidade, que se
manifesta nas sociedades primitivas onde os ritos sacrificiais se
apresentam como uma estrutura simblica e agregadora da prpria
disposio social, reside, na actualidade, na legitimao da violncia
pelo Estado e suas instituies-satlite24.
Merece especial ateno a relao que a vtima arbitrria no mecanismo
vitimrio apresenta quando sai do mecanismo sacrificial ritual, e
passa a ser vtima na sociedade sem qualquer conotao religiosa, ou
com uma conotao religiosa irrelevante. A vtima, outrora smbolo
(realizao) por excelncia do sacrifcio pela sobrevivncia da
sociedade, agora apenas um expediente para justificar outras
violncias (razo de Estado, manipulao dos mercados, etc.).
Como foi j esboado este texto, o sacrifcio pressupe sempre a
constituio clara de uma vtima arbitrria, contra os verdadeiros
culpados, uma vez que a culpa pode ser difusa. a substituio
vitimria que cria o bode expiatrio. Contudo, como se chega a uma
crise sacrificial, que Girard diz ser a condio do homem moderno e
contemporneo? A relao vtima-violncia e a sociedade-vtima alterou-se
ao longo do processo histrico; a sociedade arcaica apresentava
estruturas diferentes das relaes prprias das sociedades moderna e
contempornea. O carcter sagrado da vtima, presente no sacrifcio
ritual arcaico, perdeu-se na sociedade actual aquando da crise
sacrificial. J no h vtimas inocentes. neste sentido, nesta perda de
sentido simblico, que as sociedades so inundadas pela violncia
recproca metamorfoseada, transferida. Como diria Dostoievski, somos
todos culpados, e eu mais que todos. Num registo sacrificial a
vtima sacrificial uma criatura inocente que paga o dbito pela parte
culpada (GIRARD, 1979, p.4). Como j referimos esta vtima substituta
pertence geralmente a grupos minoritrios na
24
Estado aquela comunidade humana que, dentro de um determinado
territrio, reclama (com xito) para si o monoplio da violncia fsica
legtima. O especfico do nosso tempo que a todas as outras associaes
ou pessoas singulares s se lhes concede o direito violncia fsica na
medida em que o Estado permite; ele a nica fonte de direito
violncia. (WEBER, 2000).
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sociedade em questo e, num registo mais progressivo de suposta
civilizao, isto , menos ritualizante, onde algum assume
responsabilidades perante todos, tal aco j no se d com seres
humanos, mas antes com substitutos (animais) dos seres humanos25.
Reparamos que num registo sacrificial existe uma violentao da vtima
inocente que culpabilizada por actos que desconhece e pelos quais
no tem culpa26. A necessidade de tal acto reside na existncia de
uma aco profilctica essencialmente farmacolgica. A vtima ao ser
violentada, servindo de bode expiatrio, possibilita no apenas
afastar a violncia da sociedade como tambm expulsar dela a clera e
o desejo de vingana: o sacrifcio [da vtima substituta no mecanismo
do bode expiatrio] serve para proteger a inteira comunidade da sua
prpria violncia (GIRARD, 1979, p. 8). A vtima, sacrificada
apresenta nesta dimenso sacrificial uma identificao ambgua com a
sociedade: ter de se identificar com a comunidade envolvida e,
simultaneamente, no ser dela representativa em absoluto. Quando a
vtima sacrificial j no funciona como contentor da violncia entra-se
em crise sacrificial e a violncia perde as fronteiras, invadindo
toda a sociedade. A partir deste momento, o registo sacrificial
deixa de ter eficcia e de fazer sentido: onde quer que a violncia
se instale a impureza ritual est presente (GIRARD, 1979, p. 34).
Deste modo, o processo de sacrifcio no envolve apenas a completa
separao entre a vtima sacrificada daqueles de que ela prpria
substituta mas, tal processo implica, ainda assim, uma similitude
entre ambas as partes. Este processo possibilitado a partir de um
mecanismo de associaes entre os diversos elementos da sociedade: o
sacrifcio um acto social.. (GIRARD, 1979, p. 42)
A crise sacrificial, que o desaparecimento da eficcia dos ritos
sacrificiais por as vtimas j saberem que o so, coincide com o
desaparecimento da diferena entre violncia impura, que se d fora do
processo sacrificial, e violncia purificante, a qual se d no seio
do rito sacrificial. Por esta razo a violncia armadilha todos os
mecanismos da sociedade (GIRARD, 1979, p. 51). Face crise
sacrificial, que se situa entre outras instncias temporais tambm na
actualidade, a funo catrtica do sacrifcio d lugar crise sacrificial
e a violncia passa a ser recproca. Por no existir um bode
expiatrio, passa a existir a possibilidade, de novo, da violncia de
todos contra todos, que comea pelo acto de vingana e alastra
25
O sacrifcio de Isaac, pelo seu pai Abrao, e a sua substituio in
extremis por um carneiro, tido como exemplar deste processo de
substituio e, outrossim, de crtica bblica aos sacrifcios rituais de
seres humanos, prprios se sociedades coev, portanto a recusa
transcendental do mecanismo sacrificial humano. Jesus aparece como
o primeiro a conseguir romper, de facto, com a estrutura
sacrificial ao aceitar ele prprio uma morte no-sacrificial
(TEIXEIRA, 1995, p. 204). 26
Por exemplo, o caso de Job na Bblia.
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at justificaes de natureza teolgica (GIRARD, 1979, p. 135).
Repare-se que, do mesmo modo que a crise sacrificial se separa de
um registo religioso, a ltima palavra que fecha o ciclo da violncia
ter de se afirmar como divina, isto , a violncia transcendente ao
prprio homem: s um suposto ser superior encerra o ciclo da
violncia. Num mecanismo sacrificial a vtima detm um carcter
sagrado, ao passo que, numa crise sacrificial, a vtima, j sem
qualquer carcter sagrado e sem eficcia expiatria, aliena-se e d
lugar violncia recproca: a violncia recproca agora demoliu tudo que
a violncia unnime erigiu. (GIRARD, 1979, p. 143).
Em concluso, podemos referir que se nos referimos a aspectos
essenciais do pensamento de Ren Girard, procuramos inscrev-los em
estruturas histricas fundamentais, que nos permitam melhor
compreender o ser humano na sua complexidade cultural. A sociedade
actual europeia, ps-crist, encerrado o ciclo triunfal da religio
crist, iniciado com Constantino, em 313, se colheu dela, experincia
crist, a revelao e denncia de todos os sistemas sacrificiais
assentes em bodes expiatrios, est capaz de recuperar de novo
sacrifcios mais requintados. A prpria religio crist o reconhece, na
recente Exortao Evangelii Gaudium do Papa Francisco, na qual alerta
para o actual sistema econmico sacrificial, capitalismo de morte
que precisa de vtimas, hordas de vtimas da crise econmica e de
outras, e no apenas na Europa, mas um pouco por todo o Mundo. J
antes, na sua viagem a Cagliari (Itlia)27, Francisco chamara a
ateno e condenara veementemente a adorao do deus dinheiro
fundamento do capitalismo selvagem, o ltimo e planetrio avatar dos
grandes sistemas sacrificiais que a humanidade conheceu.
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