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Religare, ISSN: 19826605, v.12, n.2, dezembro de 2015, p.244-259. 244 Rota da seda: trânsitos culturais e sagrados nos caminhos da China Silk Road: cultural transits and paths sacred in China Maria Lucia Abaurre Gnerre 1 Resumo Neste artigo de caráter introdutório, vamos tecer uma análise histórica de alguns aspectos da famosa Rota da Seda enquanto espaço de trocas religiosas e culturais, sobretudo entre Índia e China. Neste sentido, analisaremos a formação histórica da rota da seda e os frutos de cruzamentos culturais que nela se desdobram, como a famosa escola de Gandhara de arte Greco-budista, e também o próprio budismo Chinês, enquanto fruto destes trânsitos religiosos e culturais pelos múltiplos caminhos que passam a compor a chamada Rota da Seda. Palavras-Chave: Rota da Seda, China, Índia, Budismo, Arte. Abstract In this introductory paper, we will develop a historical analysis of some aspects of the famous Silk Road as a network of religious and cultural exchanges, especially between India and China. In this sense, we will analyze the historical development of the Silk Road and the results of importante cultural intersections that occur in it, like the famous Gandhara school of Greco- Buddhist art, and also the Chinese Buddhism itself, wich can be considered a result of these religious and cultural transits by the multiple paths that comprise the so-called Silk Road. Keywords: Silk Road, China, India, Buddhism, Art. 1 Doutora em História pela Unicamp, professora do Departamento de Ciências das Religiões e do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB. Membro do Grupo Padma (CNPq/UFPB) de pesquisas em religiões e filosofias orientais. E-mail: [email protected]
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Rota da seda: trânsitos culturais e sagrados nos caminhos da ...

Mar 17, 2023

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Rota da seda: trânsitos culturais e sagrados nos caminhos

da China

Silk Road: cultural transits and paths sacred in China

Maria Lucia Abaurre Gnerre1

Resumo

Neste artigo de caráter introdutório, vamos tecer uma análise histórica de

alguns aspectos da famosa Rota da Seda enquanto espaço de trocas religiosas e

culturais, sobretudo entre Índia e China. Neste sentido, analisaremos a

formação histórica da rota da seda e os frutos de cruzamentos culturais que nela

se desdobram, como a famosa escola de Gandhara de arte Greco-budista, e

também o próprio budismo Chinês, enquanto fruto destes trânsitos religiosos e

culturais pelos múltiplos caminhos que passam a compor a chamada Rota da

Seda.

Palavras-Chave: Rota da Seda, China, Índia, Budismo, Arte.

Abstract

In this introductory paper, we will develop a historical analysis of some aspects

of the famous Silk Road as a network of religious and cultural exchanges,

especially between India and China. In this sense, we will analyze the historical

development of the Silk Road and the results of importante cultural

intersections that occur in it, like the famous Gandhara school of Greco-

Buddhist art, and also the Chinese Buddhism itself, wich can be considered a

result of these religious and cultural transits by the multiple paths that

comprise the so-called Silk Road.

Keywords: Silk Road, China, India, Buddhism, Art.

1 Doutora em História pela Unicamp, professora do Departamento de Ciências das Religiões e

do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB. Membro do Grupo Padma

(CNPq/UFPB) de pesquisas em religiões e filosofias orientais. E-mail:

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1. As rotas, os roteiros de viagem e o oriente: uma introdução

Nossa proposta neste artigo de caráter introdutório, é a tessitura de uma

análise histórica de alguns aspectos da famosa Rota da Seda enquanto espaço

de trocas religiosas e culturais, sobretudo entre Índia e China. Antes de

adentrarmos na análise desta rota específica bem como dos trânsitos religiosos

que nela se desdobram, faremos um breve preambulo sobre os conceitos de

“rota” e “roteiro de viagem” – conceito este, que se inaugura no ocidente,

justamente a partir do roteiro das viagens de Marcopolo através da rota da

seda.

Em linhas gerais, as rotas podem ser consideradas como caminhos ou

vias terrestres, marítimas, e mais recentemente aéreas. Não correspondem

sempre a estradas fisicamente demarcadas. São muitas vezes percursos

imaginários, compostos de lugares ou referenciais que devem ser descritos para

que possam ser percorridos por viajantes futuros. Para cumprir esta missão, de

descrição das rotas, surgem os roteiros de viagem que se constituem enquanto

gênero textual que fundamenta toda uma tradição de “literatura de viagens”2

Os roteiros servem tanto para descrever caminhos já percorridos por

viajantes quanto para sinalizar o percurso aos viajantes em pleno movimento,

ou mesmo para sugerir caminhos em viagens futuras. E, quer no passado, quer

no futuro, estão intrinsecamente relacionadas ao próprio conceito de viagem,

sobre o qual nos fala Todorov

O que não é uma viagem? Por menos que se dê um sentido

figurado a esse termo – e jamais pudemos deixar de fazê-lo – a

viagem coincide com a vida, nem mais, nem menos: o que é

esta, além de uma passagem do nascimento à morte? O

deslocamento no espaço é o indício primeiro, o mais óbvio, da

mudança; ora, quem diz, diz mudança. O relato também se

2 GNERRE, Maria Lucia A. Uma viagem às engrenagens da Máquina Mercante: O texto

anônimo do Roteiro do Maranhão a Goiaz. Tese de Doutorado. Unicamp, Campinas, 2006, p. 48.

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alimenta da mudança; nesse sentido, viagem e relato aplicam-se

mutuamente3.

Assim, a viagem pode carregar este sentido figurado, relacionado à

própria vida: é sempre uma passagem, uma jornada, uma travessia. E como tal,

reveste-se de mistérios e elementos ainda desconhecidos. Somente ao percorrer

o caminho o viajante passa efetivamente pelas experiências que aquele caminho

guarda para a sua passagem. E, justamente para auxiliar nesse processo de

percorrer caminhos desconhecidos, surgem os famosos roteiros de viagem:

textos que passam a servir como faróis, sinalizando trajetos desconhecidos e

oferecendo ao viajante uma promessa de familiaridade com seu percurso.

O texto que pode ser considerado como “fundador” dessa categoria é

justamente a descrição da viagem feita por Marco Polo em sua obra Il miglione

(ou o Livro das Maravilhas) datada do fim do século XIII. O famoso mercador e

viajante italiano era originário da Dalmácia (atual Croácia), que, na época

província veneziana. Suas aventuras no oriente se iniciam com a tenra idade de

dezessete anos, quando embarca em sua jornada ao extremo oriente

acompanhando o pai e o tio, ambos mercadores. Grande parte do trajeto e feito

pela rota da seda. Assim, após cruzar a Turquia, atravessa o golfo da Pérsia, o

Afeganistão e o Paquistão, até chegar à capital do Império Mongol, em 12754.

Marco Polo teria permanecido por 17 anos na China (então dominada

pelos Mongóis) exercendo funções administrativas e diplomáticas na corte do

soberano Kublai Khan, neto de Gengis Khan. Consta em seu relato que em 1295

os viajantes da família Polo teriam acompanhado uma princesa mongol até a

Pérsia, e então voltam a Veneza, com riquezas e especiarias. Após seu retorno

Marco Polo é feito prisioneiro em uma batalha entre venezianos e genoveses,

antigos rivais. E, teria sido justamente na prisão, em Gênova, que o mercador

3 TODOROV, Tzvetan. “A viagem e seu relato”. Revista de Letras, São Paulo, v.46, n.1, p.231-244,

jan./jun. 2006, p. 231. 4 LANZA, Giorgio (org.) Marco Polo: Il Milione. Pavia (Itália): L'Unità - Editori Riuniti,1982.

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veneziano se encontra com o escritor toscano Rustichello di Pisa, responsável

pela redação do Livro das Maravilhas - A Descrição do Mundo. No decorrer dos

séculos, o Livro das Maravilhas transforma-se num clássico da chamada

“literatura de viagens”, ganhando versões em diversas línguas. As informações

geográficas nele contidas também passam a ser utilizadas nas viagens

marítimas dos séculos XV e XVI. Mas o elemento mais relevante sobre o texto

atribuído a Marco Polo, é, a nosso ver, a forma como esta obra institui a

descrição das terras do oriente, bem como a descrição do percurso em “dias de

viagem” ou “jornadas”. Esta medida, embora vaga para nossos padrões atuais,

tornar-se ia padrão para diversos textos de roteiros terrestres escritos nos

séculos seguintes5.

A passagem a seguir nos dá um exemplo claro desta dinâmica descritiva

do texto de Marco Polo:

Sobre a grande China: Quando o homem parte desta província

sobre a qual já relatei, o homem desce pela Grande China, que

fica distante duas jornadas e meia da China. E nestas duas

jornadas ( e meia) não há coisas de se contar, salvo que há uma

grande praça na qual se faz uma feira em certos dias do ano.

Nela comparecem muitos mercadores carregados de ouro e pra

e outras mercadorias, e é uma grandíssima feira (...) Quando o

homem passa estas duas jornadas, o homem encontra uma

província por volta do meio dia que está nos confins da Índia,

que é chamada de Amien. Quando o homem passa estas duas

jornadas, o homem encontra uma província por volta de meio

dia, nos confins da Índia, que é chamada de Amien. Depois

disso segue o homem durante 15 dias por lugares desabitados

sujos, com muitas florestas e bosques, e onde há elefantes,

unicórnios e muitos animais diferentes; porém não há homens

nem habitações.6

5 GNERRE, Maria Lucia A. Op. Cit., p.48.

6 POLO, Marco. Tradução nossa com base na versão italiana de: LANZA, Giorgio (org.) Op. Cit.,

p. 38. Texto original: De la grande china. Quando l'uomo si parte di questa provincia ch'i' v'ò

contato, l'uomo discende per una grande china, ch'è bene due giornate e mezzo pur a china. E in

quelle 2 giornate (e mezzo) no àe cosa da contare, salvo che v'à una grande piazza, ove si fa

certa fiera certi dí de l'anno. E quine vegnono molti mercatanti, che recano oro e ariento

e altre mercatantie assai, ed è grandissima fiera. E quelli che recano l'oro quie, neuno

puote andare in loro contrada, salvo eglino, tanta è contrada rea e divisata da l'altre;né neuno

può sapere ov'elli istanno, perché neuno vi puote andare. Quando l'uomo à passate queste 2

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Justamente neste texto de Marco Polo temos uma descrição inaugural

sobre a China aos olhos ocidentais. E, nesta descrição, vemos a presença

marcante de elementos “maravilhosos” como os unicórnios que, junto de

elefantes, povoam as florestas do oriente. É importante notarmos que, se por

um lado o texto busca narrar as jornadas de viagem de forma relativamente

precisa, por outro incorpora elementos fantásticos em sua descrição. Ao nosso

ver, o fantástico, o maravilhoso, não desqualificam o texto como fundador deste

gênero dos “Roteiros de viagem”, que se tornaria cada vez mais

geograficamente preciso nos anos seguintes, pelo contrário: no texto de

Marcopolo, o maravilhoso é parte integrante do roteiro da viagem, e qualquer

questionamento sobre a sua “realidade” teria um caráter anacrônico. Além

disso, a grande relevância da obra no contexto deste artigo é justamente sua

descrição inauguração das terras da China e outras terras do levante que seriam

alcançadas justamente através da rota da Seda. Por isso a rota da seda tem um

papel fundamental no imaginário ocidental dos descobrimentos que se

desenvolvem nos séculos seguintes, e serve como base para uma conexão

imaginária com animais fantásticos e desconhecidos, povos, religiões e culturas

daquilo que historicamente denominamos “oriente”.

Desta forma, tanto a viagem de Marco Polo, quanto a própria rota da

seda desempenharam ao longo do tempo um importante papel no

desenvolvimento da categoria de “oriente” enquanto invenção cultural e

política do próprio “Ocidente”. Justamente este é o argumento de Edward W.

Said em sua obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Nesta obra,

Said mostra que o “Oriente” não é apenas mais uma denominação geográfica

entre outras (como os pontos cardeais do leste, oeste, norte ou sul). Mas sim, é

uma categoria que resulta de um processo histórico de formação de um

giornate, l'uomo truova una provincia verso mezzodie, ed è a le confini de l'India, ch'è chiamata

Amien. Poscia va l'uomo 15 giornate per luogo disabitato (e) sozzo, ov'à molte selve e boschi,

ov'à leofanti e lunicorni assai e altre diverse bestie assai; uomini né abitagioni non v'à. (Polo, in:

Lanza, 1982, p. 38)

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imaginário social e cultural que concebe o oriente como sendo o lugar do outro,

da diferença, embora este imaginário do outro, muitas vezes seja fabricado a

partir de ficções7. Nessa perspectiva, o unicórnio que segundo Marco Polo

habitava as florestas entre Índia e China pode ser compreendido como uma

destas narrativas ficcionais que colaboram para este imaginário do oriente

pautado por diferenças em diversos níveis – inclusive na fauna e na flora.

Assim, os encontros e desencontros proporcionados pela rota da seda teriam

desenvolvido um papel crucial nessa construção do oriente pelo olhar

ocidental.

2. Uma rota, muitos caminhos: trânsitos e trocas na(s) rota(s) da

seda

A Rota da Seda era uma rede de rotas de comércio, formalmente

estabelecidas durante a dinastia Han da China, que interligava regiões do

mundo antigo. A rede de estradas teria sido regularmente utilizada a partir de

130 a.C., quando a dinastia Han abriu oficialmente o comércio com o Oeste, até

1453 d.C., quando o Império Otomano passa a boicotar o comércio com o Oeste

e fecha as rotas8.

O termo “Rota da Seda” para designar esta rede de estradas foi criado

pelo geógrafo alemão, Ferdinand von Richthofen, em 1877. É oportuno

mencionarmos aqui que, justamente o fim do século XIX, é considerado por

Said9 como um período de grande vigor nos estudos acadêmicos sobre o

oriente, sobretudo entre alemães, britânicos e franceses. Afinal, é neste

momento histórico que se consolida o “orientalismo” enquanto campo do saber

que envolve múltiplas disciplinas a serviço da compreensão, e consequente

7 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996, p. 19. 8 MARK, Joshua J. “Silk Road” In: Ancient History Encyclopedia. London, 2014. Versão online:

http://www.ancient.eu/Silk_Road/. Acesso em 20/10/2015 9 SAID, Edward. Op. cit.,p.20.

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domínio, do oriente pelas potências ocidentais. A geografia é uma das

disciplinas que fazem parte deste contexto orientalista. Por isso, é significativo o

fato de que justamente um geógrafo alemão tenha produzido a denominação

através da qual esta famosa rota ficaria conhecida no ocidente. Afinal, o

estabelecimento de uma nomenclatura para o caminho é também uma forma de

domínio sobre o mesmo. No entanto, o nome “Rota da seda” traz alguns

problemas em si mesmo:

1) Em primeiro lugar estamos tratando de uma “teia” de caminhos e não

de uma rota única. No entanto, todos esses caminhos começavam na capital

Changang (Xi´an), subiam pelo corredor de Gansu e atingiam as bordas do

Taklamakan, de onde se bifurcavam com diferentes caminhos para o norte e o

sul.

2) Em segundo lugar, a rota não foi estabelecida com o simples propósito

de comerciar seda com o ocidente. Na verdade, a seda era apenas o item de

comércio que mais interessava do ponto de vista ocidental, mas muitos outros

bens foram sendo comercializados e trocados ao longo da rota. E, o mais

importante, a rota abre uma via de trocas culturais, religiosas e sociais na

região10.

Para compreendermos melhor as dinâmicas destes caminhos que

convergem em alguns pontos e se dividem ao longo do percurso, é importante

lançarmos um breve olhar sobre a geografia da região a leste da Índia. Uma boa

parte da região que separa a China da Ásia ocidental (e consequentemente da

Europa) é ocupada pelo deserto do Taklamakan - um deserto frio situado na

bacia do rio Tarim, na China. Este deserto (com cerca de mil km de extensão

Leste-Oeste) é considerado um dos ambientes mais hostis do planeta. Ao

contrário do deserto de Gobi (localizado ao norte), onde há um número

relativamente grande de oásis e a água pode ser encontrada não muito abaixo

10

WILD, Oliver. The Silk Route: The story of one of the world's oldest and most historically

important trade routes and its influences on the culture of China, Central Asia and the West.

Irvine: University of California, 1992, p.5.

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da superfície, o deserto de Taklamakan tem recursos muito mais esparsos. Para

completar o quadro, ao sul deste deserto encontram-se algumas das montanhas

mais altas do mundo: as cordilheiras do Himalaia, Karakorum e Kunlun.

Finamente, a Leste desta região temos o famoso Corredor de Gansu, uma faixa

relativamente fértil correndo ao longo da base das montanhas Qilian, que

separam o planalto mongol, o deserto de Gobi e o Platô Tibetano.

Assim, os caminhos que compõe a rota da seda, foram sendo compostos

para que caravanas de mercadores pudessem cruzar terras hostis da melhor

forma possível. Nem sempre tais empreitadas eram bem-sucedidas, e caravanas

inteiras poderiam sucumbir às poderosas tempestades de areia no deserto de

Taklamakan. Tais caravanas iam em direção a China levando ouro e outros

metais preciosos, marfim, pedras preciosas, e vidro (que não teria sido

fabricado na China até o quinto século). Na direção oposta, levavam cerâmica,

jade, objetos de bronze, laca, ferro e seda11.

Figura 1: Mapa ilustrativo da Rota da Seda12.

11

WILD, Oliver. Op. Cit., p.7. 12

Disponível em: <http://www.silk-road.com/maps/images/map01.gif>. Acesso em 25/10/2015.

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2.1 A formação da rota da seda e os cruzamentos culturais: a escola

de Gandhara

A área ao sul dos intervalos de Hindu Kush e Karakoram, agora o

Paquistão e o Afeganistão, é uma região de fronteiras movediças,

historicamente invadida por uma série de diferentes povos. Esta região é

composta por encruzilhada de caminhos e rotas comerciais anteriores ao

período de Alexandre o Grande, que já as utiliza em sua conquista de territórios

na Ásia, no século IV antes de Cristo. Após os gregos, as tribos de Palmyra, na

Síria, e, em seguida, os Partas, do leste do Mediterrâneo, tomaram a região.

Esses povos acabam adotando o sistema de língua e moeda grega nesta região,

introduzindo as suas próprias influências nas áreas da escultura e arte.

Nos calcanhares dos Partas vieram o povo Yuezhi a partir das fronteiras

do norte do Taklimakan. Eles haviam sido expulsos de sua terra natal pela tribo

Xiongnu (que mais tarde tornaram-se os hunos e transferem as suas atenções

para a Europa), e se estabeleceram no norte da Índia. Seus descendentes se

tornaram o povo Kushan, e no primeiro século d.C, que passam a governar esta

área de encruzilhada, trazendo a sua religião budista adotada com eles13 .

O produto desta união de culturas foi a escola de Gandhara, baseada no

que hoje seria a região de Peshawar, no noroeste do Paquistão. Esta escola

promove a fusão da arte grega e budista, que pode ser vista em esculturas de

divindades budistas que carregam semelhanças fortes para a figura grega

Heracles. O povo Kushan teria sido o primeiro a mostrar Buddha em forma

humana. Antes deles, os artistas tinham preferido representar o Budha em sua

forma insubstanciada, através de símbolos como a pegada (representando o

vazio), as stupas ou árvore da iluminação. Assim, a escola de Gandhara,

influenciada pela arte grega, criou a chamada arte “grecobúdica” e foi também

13

WILD, Oliver. Op. Cit., p.5.

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responsável pela primeira representação figurativa do príncipe Sidharta,

sentado e com auréola.

Figura 2: O Buda representado segundo os padrões da arte grega14

Atentos à dinâmica de circulação do poder e de informações, os budistas

buscaram desenvolver formas plásticas que pudessem ser compreendidas

por outras culturas, vinculadas a estilos que fossem internacionalmente

difundidos. Por isso a escola de Ghandara começou a produzir uma série de

esculturas utilizando técnicas e representações de estilo helênico para

apresentar e difundir uma nova imagem de Buda até os confins do império

romano. Antes disso, os indianos já havia produzido os mais diversos tipos de

trabalhos com temáticas budistas, mas quase todos possuíam, ainda, uma forte

influência da arte hindu15.

A apropriação do elemento grego não advinha simplesmente da

proximidade dos reinos gregos que haviam se instalado na Ásia central após

14 Observar o tecido da vestimenta e suas pregas esculpidas de acordo com os padrões da

escultura Greco-romana. Disponível em: <https://pt.wikibooks.org/wiki/Budismo>. Acesso em

25/10/2015. 15 BUENO, Andre. Arte e Religião na Rota da Seda - as Transformações na Iconografia Budista.

In: Transoxiana, n. 12, Agosto de 2007. Artigo online. Disponível em:

<http://www.transoxiana.org/12/bueno-religion_silkroad.php>. Acesso em 25/10/2015.

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a morte de Alexandre, o Grande. O Helenismo, considerado um movimento

cultural aglutinador na Europa, Mediterrâneo e em parte do Oriente

Médio trazia uma estética e uma língua compreendida pelas mais diversas

culturas, o que o tornava extremamente atraente para a difusão de idéias

políticas, filosóficas e religiosas.16 Assim, a estética Greco-romana, colabora

para esta difusão do budismo primordial por toda a Ásia. Tanto a cultura

helenista quanto as imagens do Buda - que passam a transitar por diferentes

povos, podem ser entendidos como resultantes destes trânsitos culturais e

religiosos nos caminhos da rota da seda.

2.2. O lado oriental da Rota da Seda e a muralha da China

A extremidade oriental do percurso desenvolveu-se de forma mais lenta.

Na China, o período dos Estados Combatentes termina com a Dinastia Qin, que

unificou a China sob domínio do imperador Qin Shi Huangdi (por volta de 221

a.C). A partir disso temos um processo de unificação da linguagem e

padronização de sistemas, e a capital Changan evolui para uma cidade grande,

agora Xian. Qin Shi Huangdi é o responsável pelo famoso exército de terracota,

descoberto em 1947.

A tribo Xiongnu havia invadindo periodicamente as fronteiras do Norte

durante o período com uma frequência crescente durante o período dos Estados

Combatentes. A maioria dos estados do norte tinha tentado neutralizar essas

invasões construindo muralhas defensivas para impedir os invasores, e avisar

de sua abordagem. 17

Sob a dinastia Qin, em uma tentativa de subjugar o Xiongnu, uma

campanha para juntar essas seções da muralha foi iniciada e a “Grande

Muralha” nasceu. Quando a dinastia Qin termina em 206 a.C., depois de apenas

15 anos, a unidade da China foi preservada pela Dinastia Han do Oeste, que

16

Cf. BUENO, Andre.Op. cit. 17

WILD, Oliver. Op. Cit., p.6.

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continuou a construir a Muralha. Durante uma de suas campanhas contra os

Xiongnu, no reinado do imperador Wudi, o Hans foram informados por seus

prisioneiros que os Yuezhi haviam sido expulsos de suas terras mais a oeste. Os

hans tentaram estabelecer um vínculo com esses povos, a fim de formar uma

aliança contra o Xiongnu.

A primeira operação de inteligência nesse sentido foi em 138 a.C sob a

liderança de Zhang Qian, e trouxe de volta muito de interesse para a corte, com

informações sobre os estados até então desconhecidos para o oeste, e sobre uma

nova raça maior, de cavalo que poderia ser usado para equipar a cavalaria Han.

Neste ano, um grupo de “embaixadores chineses” a serviço da dinastia Han, faz

uma primeira expedição para a região dos Yuezhi no norte da Índia.

Estimulado por suas descobertas, as missões Han avançaram cada vez

mais para o oeste, podendo ter chegado até a Pérsia. Eles trouxeram de volta

muitos objetos a partir dessas regiões, em particular algumas das obras

religiosas de Gandhara, e também os famosos cavalos celestiais. Por este

processo, a rota para o oeste foi aberta, e Zhang Qian ainda é visto por muitos

como o pai da Rota da Seda18.

2.3 Trocas Religiosas: O Budismo na China e a Rota da Seda

Através da Rota da Seda, o Budismo (primeiro Theravada e depois

Mahayana) entrou na China trazido por monges e mercadores oriundos da

Índia. Pelas mesmas rotas entraram na china os textos budistas indianos que

foram traduzidos para o chinês por gerações de monges poliglotas - indianos,

18 SILKROAD FOUNDATION. Disponível em: <http://www.silk-

road.com/artl/buddhism.shtml>. Acesso em 21/10/2015.

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iranianos e chineses, que faziam peregrinações à Índia em busca de textos para

traduzir19.

Quando o budismo chega na China no século I d.C. dá-se início a um

longo processo de assimilação da doutrina pela cultura milenar chinesa, adepta

do confucionismo e do Taoísmo, que vai receber esta nova religiosidade pelo

prisma de seus conceitos anteriores. Talvez a história mais famosa deste

período de chegada do Budismo na China é aquela que diz respeito ao sonho

do imperador Han Mingdi sobre Buda. Em 68 d.C., Mingdi recebeu a visão de

uma figura dourada em um sonho. Na manhã seguinte, ele perguntou a seus

ministros que o sonho significava e foi dito que ele tinha visto o Buda - o deus

do Ocidente. Depois disso, o imperador teria enviado seu funcionário Cai Yin

para a Ásia Central para saber mais sobre o budismo.20

Cai Yin foi devolvido após 3 anos na Índia e trouxe de volta com ele não

apenas as imagens de Buda e escrituras budistas, mas também dois monges

budistas nomeados She-mo-teng e Chu-fa-lan para pregar na China. Esta foi a

primeira vez que a China tinha monges budistas e suas formas de adoração. 21

Em 166 dC o Imperador Huan ( da dinastia Han) anunciou formalmente

o budismo como religião de estado ao permitir taoistas e budistas nas

cerimônias realizadas no palácio. A agitação social na China no final da dinastia

Han era tão grande que as pessoas estariam em um “estado de espírito

receptivo para uma nova religião”.

Todas as escolas indianas teriam tentado penetrar na China, mas só as do

budismo Mahaiana tiveram popularidade. Após este período de chegada do

Budismo à China, conforme analisamos anteriormente, o império dos Han entra

em derrocada, e em 311 os invasores das tribos Xiongnu (depois conhecidos

como Hunos) instituem uma dinastia que passa a governar norte do país. O

poder imperial chinês migra todo para o sul – que continua sendo governado

19 CHENG, Anne. História do Pensamento chinês. Petrópolis: Vozes, 2008, p.402. 20 SILKROAD FOUNDATION. Op. Cit. 21 Idem, ibid.

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por dinastias chinesas. Segue-se então um período de três séculos de divisão

entre norte e sul, e o Budismo acompanha inicialmente esta divisão:

desenvolve-se um tipo de Budismo no sul da China mais intelectualizado,

característico da classe letrada que havia migrado. A doutrina torna-se muito

intelectualizada, transformando-se muitas vezes em conversação pura. O

budismo torna-se a religião oficial do império quando o imperador Xiaowi (373-

396) adere oficialmente à doutrina. Os monges neste período já contavam com

grande prestígio na corte.

No norte, sob a égide dos reinados não chineses - que também fazem do

budismo a religião oficial – os governantes menos inclinados à literatura

também fazem do Budismo a religião oficial, mas neste caso utilizam os monges

como hábeis conselheiros políticos, muito valiosos em virtude de seus “poderes

ocultos”. Nesta China do norte, invadida por bárbaros e dilacerada pela guerra,

predomina um budismo devocional e meditativo. A estas duas distinções

essenciais do budismo chinês neste período, também corresponderiam dois

tipos distintos de tradução – um tipo mais simples e direto corresponde ao

norte, e um tipo mais refinado e literário que se adapta aos gostos do sul.

Este período em que a China está dividida, corresponde ao período que

Anne Cheng chama de primeira fase do Budismo na China (séc. III e IV)

quando a doutrina se vê completamente enredada pelos conceitos

confucionistas e controvérsias chinesas da época. Segundo Cheng:

Aos olhos de um público já formado nas exigências do taoísmo

religioso, para o qual o Budismo não era senão uma variante

que abria o caminho para a salvação, era inevitável ocorrer um

amalgama entre os dois.22

Essa fusão se dá de forma bastante incisiva nesta fase inicial em virtude

de um método de tradução desenvolvido no Sul, chamado de Geigi. Este

método buscava essencialmente fazer coincidir o sentido, acasalando noções

22

CHENG, Anne. Op. Cit., p. 406.

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chinesas de origem taoista com noções budistas. A Iluminação – Bodhi passaria

a ser traduzida como Tao, o nirvana como não-agir (wu-wei) e assim por diante.

Mas, enquanto no sul o Budismo rapidamente é amalgamado com a religião

original do local, no Norte, governado por uma dinastia estrangeira, o Budismo

mantém sua origem estrangeira, legitimando assim o poder real.

A partir da chegada do monge Kumarajiva a Changan (no início do

século V d. C), também pela Rota da Seda, inaugura-se uma segunda fase deste

processo de assimilação do Budismo na cultura chinesa. Este monge, que

dominava muitas línguas, aplica-se à tradução de textos que iriam se tornar

canônicos dentro do budismo chinês, como o Sutra da Terra Pura e o Sutra do

Lótus. Graças a este trabalho, o público chinês teria sido verdadeiramente

iniciado no Budismo Mahaiana de origem hindu, sem as adaptações anteriores.

E os sutras que chegam neste momento são justamente aqueles da escola

Mâdhyamika, fundada na Índia por Nagarjuna no século II d.C. A partir daí se

desenvolve a longa história do Budismo na China, e novas gerações de monges

chegam pelas rotas da seda.

Considerações finais

Conforme analisamos ao longo de nosso texto, a(s) rota(s) da seda

teria(m) desempenhado um papel profundamente relevante na formação

cultural e religiosa da China antiga, um papel que vai muito além das famosas

trocas comerciais de tecidos e especiarias. Trata-se de um percurso que

possibilitou, através de suas múltiplas vias, trânsitos religiosos e sociais

fundamentais para a formação de identidades culturais da região. Desta forma,

qualquer discussão acadêmica sobre o tema deve partir deste pressuposto da

multiplicidade do caminho - tanto em termos geográficos quanto em termos de

funções sociais, é impossível falarmos de uma rota da seda no singular.

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