TRANSPOSIÇÃO X REVITALIZAÇÃO DO VELHO CHICO INTRODUÇÃO 1. A IMPORTÂNCIA DO RIO SÃO FRANCISCO O rio São Francisco possui características que podem ser vinculadas desde o séc. XVI, de propiciar a união de diferentes locais. De acordo com Lins, o papel desempenhado pelo rio está vinculado a garantia de uma unicidade do Estado. 1 Considerando que no Império se observou uma consonância das elites quanto ao objetivo de manutenção da unidade territorial, explica-se a reiterada afirmação e veiculação desta construção do rio São Francisco em diversos textos referentes à história brasileira. Quando são efetuadas análises sobre questões relacionadas a unidade territorial nacional torna-se inevitável a associação com o “Velho Chico” . É um rio autenticamente brasileiro, unindo cinco estados e percorrendo um total de 3.161 km do país, e com um forte apelo de unicidade em consonância com a construção da 1 LINS, Wilson. O Médio São Francisco - uma sociedade de pastores e guerreiros, 3ª ed, São Paulo: Ed.Nacional, 1983.
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Rio São Francisco referencial sobre a questão da transposição e revitalização
Trata-se de um referencial teórico, com inserção de diversos autores, sobre o tema proposto. Tendo por finalidade proporcionar um alicerce para uma pesquisa aprofundada sobre o tema.
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TRANSPOSIÇÃO X REVITALIZAÇÃO DO VELHO CHICO
INTRODUÇÃO
1. A IMPORTÂNCIA DO RIO SÃO FRANCISCO
O rio São Francisco possui características que podem ser vinculadas
desde o séc. XVI, de propiciar a união de diferentes locais. De acordo com
Lins, o papel desempenhado pelo rio está vinculado a garantia de uma
unicidade do Estado. 1 Considerando que no Império se observou uma
consonância das elites quanto ao objetivo de manutenção da unidade territorial,
explica-se a reiterada afirmação e veiculação desta construção do rio São
Francisco em diversos textos referentes à história brasileira. Quando são
efetuadas análises sobre questões relacionadas a unidade territorial nacional
torna-se inevitável a associação com o “Velho Chico” . É um rio autenticamente
brasileiro, unindo cinco estados e percorrendo um total de 3.161 km do país, e
com um forte apelo de unicidade em consonância com a construção da própria
trajetória do rio. Sob um prisma de concepção de sua importância e relevância
na construção do Brasil, enquanto Estado, o rio São Francisco é lembrado
como “aquele que une, liga e aproxima”.2
O rio São Francisco nasce no estado de Minas Gerais, na serra da
Canastra a uma altitude de 1.600 metros e desloca-se 2.700 km para o
Nordeste. O rio desloca-se, em grande parte no semi-árido do Nordeste, tendo
uma grande importância regional dos pontos de vista ecológico, econômico e
1 LINS, Wilson. O Médio São Francisco - uma sociedade de pastores e guerreiros, 3ª ed, São Paulo: Ed.Nacional, 1983.2 BRASIL, Vanessa M. O Rio São Francisco: a base física da unidade do Império. Revista Mosaico, v.1, n.2, p.133-142, jul./dez., 2008. Disponível em: http://seer.ucg.br/index.php/mosaico/article/view/572/456. Acesso: 10/jun/2011
social. Atualmente, os grandes aproveitamentos hidrelétricos, a irrigação,
navegação, suprimento de água, pesca e aquicultura constituem os principais
usos deste rio e de suas barragens. A bacia hidrográfica do São Francisco tem,
aproximadamente 640.000 km, estende-se por regiões com climas úmidos,
semi-árido, e árido; a bacia pode ser subdividida em quatro principais sub-
bacias Alto, Médio, Sub-Médio e Baixo São Francisco. Muitos tributários do rio
São Francisco são perenes, bem como o próprio São Francisco. No Médio São
Francisco há tributários temporários na margem direita, onde predomina
também a caatinga como vegetação. Na parte mais baixa do médio São
Francisco a agricultura irrigada é predominantemente com fruticultura de
exportação e produção hortícola.
Os principais reservatórios do rio São Francisco, Sobradinho,
Itaparica, Paulo Afonso e Xingó produzem energia hidrelétrica e se
transformam em pólos regionais de desenvolvimento, com a intensificação de
usos múltiplos nos últimos 10 anos: aquacultura, irrigação, suprimento de água,
turismo e recreação, pesca comercial e pesca esportiva. Os dados para a
represa de Xingó, indicam um reservatório pouco eutrofizado, mas com
evidências claras de efeitos ambientais resultantes dos usos das bacias
hidrográficas, principalmente na qualidade da água.
A vegetação da bacia do baixo São Francisco é predominantemente
cerrado e Floresta Atlântica. O baixo São Francisco tem clima úmido, porém
com tributários que provêm do semi-árido. A descarga anual do rio São
Francisco é de 94.000.000 mil m3. O fluxo varia de 2.100 a 2.800 m3/s com
cerca de 3.000 m3/s próximo à foz. Estes fluxos são naturais, ocorrendo
atualmente regularizações através dos reservatórios, para otimização dos usos
das cheias.
O rio São Francisco tem uma enorme importância regional, e pode
ser considerado como um dos principais fatores de desenvolvimento no
Nordeste. Através de inúmeros planos de desenvolvimento, um conjunto de
idéias de grande porte foi sendo construído, de tal forma que um plano
integrado de desenvolvimento, envolvendo agências de governo federal,
governos estaduais, iniciativa privada foi gerado. Este plano, que incorpora
várias idéias e projetos anteriores, de acordo com Rebouças e Braga, essas
medidas propõem:
avaliação permanente dos impactos;
monitoramento e controle da qualidade das
águas;
preparação de diagnósticos adequados;
recuperação das matas de galeria;
disciplinamento os usos da água;
proteção ambiental da bacia;
implementação de parques, reservas
florestais e áreas de proteção ambiental;
articulação das atividades ambientais e
integração com os usos do sistema;
ampliação do banco de dados hidrológico,
meteorológico, ecológico, sociólogo, geomorfológico e
econômico da bacia hidrográfica;
estabelecimento de uma autoridade de
bacia hidrográfica para implantar os projetos;
estudos detalhados integrados sobre o
projeto de transposição das águas do rio São Francisco,
e seu impacto na bacia e em outras bacias hidrográficas.3
3 REBOUÇAS, Aldo da C. e BRAGA, Benedito (Org.). Águas Doces no Brasil - Capital Ecológico, Uso e Conservação. Escrituras: São Paulo - 2002.
2. TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
2.1 Histórico da Transposição
No século XIX, os engenheiros do imperador Dom Pedro II já
sonhavam em utilizar as águas do São Francisco para combater os efeitos da
seca no sertão. Após a grande seca que vitimou 1,7 milhão de pessoas entre
1877 e 1879, os republicanos criaram uma inspetoria que produziu o mapa de
um canal que interligaria o rio São Francisco ao Jaguaribe. O assunto voltou à
tona em 1943, no Governo de Getúlio Vargas, com a criação do Departamento
Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS). Em 1980, os técnicos do DNOCS
chegaram a elaborar um projeto de transposição em parceria com um
organismo norte-americano especializado em agricultura, irrigação, solos e
recursos hídricos. A idéia era captar 15% da vazão do Velho Chico.
A proposta mais consistente foi apresentada em 1983 pelo ministro
do Interior do Governo João Figueiredo, Mário Andreazza. Dez anos depois, no
Governo de Itamar Franco, o ministro da Integração Regional Aloísio Alves
tentou implantar o projeto. Esse estudo foi retomado em 1994 no primeiro
mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Foi grande o choque das entidades ambientalistas, de ribeirinhos,
pescadores e a comunidade científica ao ver o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, oriundo do movimento popular sindical e eleito com sustentação dos
movimentos sociais e ambientalista ressuscitar esse Projeto, amplamente
rejeitado, com nova maquiagem e nomenclatura.
2.2 Aspectos conflitantes sobre a transposição
O rio São Francisco é o único rio perene do semi-árido.
O Projeto de Transposição tem dimensões gigantescas. A
transposição do São Francisco, com seus 2.200 quilômetros de canais – o que
dá um pouco mais que a distância de Aracaju a São Paulo – e oito grandes
barragens, tem todo o enredo para se transformar na “Transamazônica
Hídrica”. O impacto nocivo ao meio ambiente, ao invés de transformar o sertão
em mar, como propaga o Governo Federal, poderá nos deixar um grande
deserto, com milhares de quilômetros de canais de cimento espalhados pela
caatinga e a população necessitada sem uma gota sequer de água. E uma
gigantesca conta para ser paga por muitas gerações.
Essa obra cara e desnecessária é tecnicamente incapaz de resolver
a problemática da seca. Ela não beneficiará a população que mais sofre com o
período da estiagem. Da água que o governo quer transpor, 70% irá para
irrigação e 26% para o abastecimento de grandes cidades, restando 4% para o
consumo humano difuso, os incontáveis sertanejos que passam sede no meio
da caatinga.
A população potencialmente beneficiada não ultrapassaria 0,28% de
todos os habitantes do Semi-árido Brasileiro, em não mais que 5% dessa sub-
região. E a água será levada para onde mais tem, pois é a segunda região
mais açudada do mundo – o Ceará é suprido por açudes em toda a sua
extensão.
Segundo o hidrólogo João Abner, professor da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, a água da transposição seria das mais caras do
mundo, inviabilizando qualquer projeto econômico que nela se baseasse, pois
chegaria entre o dobro e o quádruplo do que custa hoje às margens do São
Francisco – R$ 0,023 por m³ –, nos projetos de irrigação de Juazeiro e
Petrolina. No EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto
Ambiental) o custo estimado é de R$ 0,11 por m³. “Mas esse valor não
contempla os gastos com bombeamento das fontes de abastecimento até as
propriedades: se computados, podem chegar ao seu destino final a uma cifra
entre 4 a 7 centavos de real o m³”, calcula o professor.
“Contornar o problema só será possível com o sistema de subsídio
cruzado, mediante a conexão das águas transpostas em uma única rede de
distribuição, pelo que se cobrará de todos os consumidores, inclusive o
doméstico, a mesma taxa pelo serviço”, avalia João Abner. O Professor
esclarece que, inicialmente, caberá aos Governos Estaduais arcar com tais
subsídios – por exemplo, cerca de 20 milhões de reais por ano só do governo
do Rio Grande do Norte.
O professor acredita que se água e irrigação fossem soluções, não
haveria seca nem fome a poucos quilômetros do rio São Francisco, nem tanta
insegurança em Juazeiro e Petrolina, “Mecas da irrigação”, com índices de
violência entre os piores do interior do Nordeste. “Ou repensamos o modelo de
Agricultura, de Desenvolvimento e de Sociedade, ou todas as tentativas de
solução serão, ao cabo, agravamento do problema”, diz.
2.3 Sobre a disponibilidade de recursos hídricos e energéticos
No Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do São
Francisco, aprovado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco,
consta que, de um total alocável de 360 m³/s, 335 m³/s já se encontram
outorgados, restando apenas 25 m³/s para os múltiplos usos, tanto na bacia
como externamente. Mas o Governo insiste em fazer o projeto para uma vazão
de 63 m3/s. Para isto, terá que cancelar as outorgas existentes e outros
investimentos que demandem água na Bacia.
O planejamento e a avaliação de disponibilidade hídrica deverão ser
feitos com dados reais de toda a bacia, computando-se os usos das águas
superficiais e subterrâneas. Nos estudos apresentados pelo Governo Federal
estão computadas apenas as captações outorgadas na calha do rio, tidas como
grandes consumos.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco – composto por 60
representantes dos governos nas três esferas, grandes usuários de água e
sociedade civil, reunido em 27 de outubro de 2004, em Salvador, Bahia,
aprovou o uso externo das águas, exclusivamente para abastecimento humano
e dessedentação animal, desde que seja comprovada a escassez nas regiões
receptoras, no entanto, vale ressaltar que o Projeto de Transposição foi
rejeitado por todas as audiências públicas e plenárias realizadas pelo Comitê
da Bacia Hidrográfica do São Francisco.
O São Francisco é responsável pela geração de mais 95% da
energia elétrica do Nordeste, mas seu potencial de uso já está no limite. Com a
implantação do projeto, provavelmente, haverá uma mudança na matriz
energética da região. Essa mudança, a princípio, visa atender as demandas
para funcionamento da infra-estrutura do projeto e das obras complementares,
as quais não poderão ser absorvidas pelo sistema hidrelétrico atual. Isto
resultará no aumento de custos, em grande impacto ambiental não apenas na
região do Nordeste Setentrional, mas em toda a bacia do São Francisco.
Segundo os especialistas João Abner, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, e João Suassuna, Hidrólogo da Fundação Joaquim
Nabuco de Pernambuco, ao se analisar o Estudo de Impacto Ambiental – EIA –
apresentado pelo Ministério da Integração e em tramitação no IBAMA, conclui-
se que não existem déficits hídricos globais nos Estados do Nordeste
Setentrional. Os consumos prioritários urbanos (humano e industrial) e difusos
rurais (humano e animal), desses Estados, de acordo com o estudo, somam
22,5 m³/s. Essa demanda é plenamente atendida pelas ofertas atuais e mesmo
para o futuro, pois a disponibilidade na região é de 220 m³/s”, garantem os
especialistas.
O Projeto não é necessário nem para atender a expansão da
agroindústria na região. O EIA apresenta uma “demanda potencial” para
irrigação no Nordeste Setentrional de 131 m³/s, que corresponde a uma área
irrigada de 226 mil hectares. “Como podemos constatar, não há déficit nem
para abastecimento humano e animal e nem para irrigação. O que há é
carência de uma política de gerenciamento dos recursos hídricos existentes e
infra-estrutura inadequada para suprimento dessas demandas”, afirmam.
2.4 Contexto geral sobre o tema transposição
Muito tem sido dito sobre a inviabilidade do projeto de Transposição
do rio São Francisco. O que se pode vislumbrar em meio à névoa que se
formou em torno do assunto são posições variadas, calcadas em argumentos
técnicos, sentimentalismos, denúncias de vantagens políticas e
beneficiamentos econômicos, entre outros. Antes de qualquer consideração
sobre os temas acima mencionados, é importante esclarecer que regiões
áridas não são próprias para incentivo de adensamento humano. Poucos são
os exemplos de regiões áridas com grande população residente ou grandes
metrópoles. O atual projeto, além de teoricamente melhorar a condição de vida
dos que lá já se encontram pode, por outro lado, incentivar o aumento de sua
população. Isso acarretaria novos problemas e necessidade de mais água no
futuro. Em ecologia, o conceito de capacidade suporte define que uma área
não comporta mais do que um número definido de organismos vivos, por serem
finitos os recursos disponíveis na mesma. Tais aspectos remetem à “Indústria
da Seca” em toda a história brasileira. O custo inicial estimado remonta a R$
4,5 bilhões, podendo alcançar US$ 10 bilhões em 15 anos. A grande maioria
dos empreendimentos de grande porte nesse país, senão todos, contaram com
recursos da iniciativa privada ou de financiamento externo (Banco Mundial,
Banco Interamericano de Desenvolvimento, Agências Internacionais Norte-
Americanas, Européias ou Japonesas). Mesmo que o atual governo pleiteasse
financiamento ou empréstimo, não conseguiria, pois esses organismos já se
posicionaram contra o projeto, face aos impactos ambientais que ele causará. 4
Também muito se ouve de especialistas, inclusive nordestinos, que
é possível aumentar a oferta de água para a população da região através da
interligação mais eficiente dos açudes existentes, coleta de água de chuva e
4 ALVES, Carlos B. M. Transposição do São Francisco: incoerências e os peixes. Disponível em: http://noticias.universia.com.br/ciencia-tecnologia/noticia/2005/10/14/460070/transposio-do-so-francisco-incoerncias-e-os-peixes.html. Acesso: 10/jun/2011.
armazenamento, e perfuração de poços artesianos. Diz-se que a água
armazenada atualmente é bastante para manter a população e que não é
utilizada para reservar para épocas de seca mais severa. Se isso é verdade,
então não se confirma que a capacidade suporte do ambiente está esgotada ou
próxima de seu limite. A água que atualmente flui pelo rio São Francisco,
abaixo do ponto de captação previsto, passa por 5 grandes usinas hidrelétricas.
Além de restringir a produção energética numa região ainda carente desse
insumo, a elevação da água por meio de potentes bombas (160 m no eixo
norte e de cerca de 300 m no eixo leste) consumirá, por outro lado, porção
relevante da energia produzida na região. Surgem também suspeitas de que o
equipamento a ser comprado para o bombeamento teria sido adquirido por
outro país e não foi utilizado. Será que essas bombas são dimensionadas para
o volume projetado para a nossa transposição ou para o projeto do outro país?
Ainda em relação ao volume a ser bombeado paira uma dúvida: será retirado
um volume constante de 26 m3/s, que passa a um volume médio de 63 m3/s,
caso a barragem de Sobradinho alcance seu NA (Nível de Água) máximo e
houver vertimento. A capacidade máxima das bombas é de 127 m3/s, caso
haja excesso de água. Se, por um lado, você utiliza apenas a quinta parte de
seu potencial há uma superestimação do equipamento, por outro, quem
acredita que não seriam utilizados os 127 m3/s da capacidade total. Em se
tratando de Brasil, pelos exemplos que temos, é difícil acreditar que a segunda
opção seria adotada, ou seja, as máquinas seriam utilizadas a todo vapor o
tempo todo. A despeito da “criação de empregos” que se apregoa na fase de
construção, há uma névoa densa pairando nos interesses escusos por trás do
Projeto. O Governo ressalta que o projeto visa exclusivamente o abastecimento
humano. Mas sabe-se que outros grandes grupos têm seus interesses: as
fazendas de camarões e de criação de tilápias em larga escala, hoje
incentivadas pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP) , os
grupos produtores de frutas irrigadas, as empreiteiras que conduzirão a obra e
os fornecedores de grandes volumes de cimento e ferro, entre outros.
Outrossim, a possibilidade de perda da qualidade da água é iminente. Em se
falando dos canais, numa região de temperaturas médias elevadas, haverá
evaporação de grande quantidade da água originalmente bombeada. Esse
aspecto é abordado nos estudos, mas nem todos têm conhecimento dele. Dos
44 impactos listados no Relatório de Impacto Ambiental, somente 11 são
considerados positivos, e muitas incertezas ainda pairam inexplicadas nessa
discussão.5
2.1 Aspectos ambientais do Projeto de Transposição do Rio
Para poder propor ações revitalizadoras consistentes, eficazes e
eficientes, por primeiro é preciso analisar porque o Rio São Francisco precisa
de revitalização e quais as principais causas da degradação e da perda da
vitalidade, que seriam, forçosamente, as frentes principais da revitalização. Dos
indícios de degradação salta aos olhos o assoreamento. Calcula-se 18 milhões
de toneladas de arraste sólido carreados anualmente para a calha do rio até o
reservatório de Sobradinho. A erosão, fruto do desmatamento e do
5 ALVES, Carlos B. M. Transposição do São Francisco: incoerências e os peixes. Disponível em: http://noticias.universia.com.br/ciencia-tecnologia/noticia/2005/10/14/460070/transposio-do-so-francisco-incoerncias-e-os-peixes.html. Acesso: 10/jun/2011.
de agrotóxicos e outros tóxicos. Porém, a contaminação e confirmação da
presença de agrotóxicos na água é de difícil verificação. Considerando-se a
extensão da atividade agrícola na Bacia, recomenda-se um levantamento
detalhado do uso de agrotóxicos e épocas de aplicação, para que seus
impactos possam ser devidamente avaliados, o que não ocorre na freqüência e
regularidade necessárias (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 23).
A atual política de desenvolvimento agrário na Bacia do Rio São
Francisco estimula um modelo baseado na irrigação. O Plano de Aceleração do
Crescimento (PAC) prevê para o Nordeste um forte investimento público em
infra-estruturapara “Desenvolvimento Hidro-Agrícola” (cf. MI, 2007). Somente
para a Bacia do Rio São Francisco são previstos nove grandes financiamentos
para projetos de irrigação (vide Tabela I). Em total estão previstos 143.500 ha
de novos perímetros irrigados na Bacia, o que equivale a 42% a mais da área
irrigada hoje existente. Somente os projetos Baixio do Irecê e Salitre, na Bahia,
representam 60% das novas áreas planejadas. Esta política obsessiva de
priorização da agricultura irrigada numa região semi árida ignora os limites
objetivos impostos à irrigação nesta região, pois apenas 5% dos solos do Semi-
Árido são irrigáveis e há água apenas para irrigar 2% dos solos, segundo
dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (Malvezzi,
2007: 86-87). Um estudo do Banco Mundial (2004) revela que muitos dos
grandes projetos de irrigação no Semi-Árido, além dos graves impactos sociais
e ambientais, nem economicamente sustentáveis são. Segundo este relatório,
apenas 4 dos 11 perímetros irrigados estudados apresentam retorno positivo. É
de se perguntar se, diante de tantas obras inacabadas, mal aproveitadas ou
mesmo fracassadas, não seria conveniente ao erário público investigar melhor
em que condições realmente a agricultura irrigada pode se tornar viável.
Com este quadro de persistência do paradigma da agricultura
irrigada nas políticas públicas para o Nordeste, é fácil deduzir que os
problemas ambientais do Rio São Francisco acima descritos vão se agravar
muito. Com isso, as políticas públicas ignoram que a prevenção de uma
contínua diminuição da vazão do Rio está estreitamente ligada às questões de
políticas de desenvolvimento para as áreas de Caatinga e Cerrado dentro da
Bacia do Rio São Francisco.
É preciso um aprofundamento da discussão sobre os modelos de
desenvolvimento sustentável destes biomas. Pelas avaliações até agora
conhecidas, modelos unicamente baseados na expansão do agro-negócio,
especificamente na agricultura de irrigação, não podem ser considerados
sustentáveis.
Com o forte incentivo do governo à expansão das áreas irrigadas na
Bacia do Rio São Francisco, fica ainda mais clara a inversão perversa das
prioridades em relação ao uso da água nesta Bacia. Tendo em vista o último
Censo nacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca
de meio milhão de ribeirinhos que vivem em povoados perto da calha do Rio
São Francisco sofrem com a inexistência ou precariedade do abastecimento de
água (cf. Coelho, 2005: 130).
2.1.4. Produção de carvão vegetal
Além do avanço da agricultura intensiva, uma das maiores causas
do desmatamento na Bacia do Rio São Francisco é a carvoaria. O Brasil é o
maior produtor de carvão vegetal do mundo: em 2004 foram produzidos 7
milhões de toneladas, dos quais cerca de 60% provieram de florestas
plantadas e o restante de vegetação nativa da Caatinga e do Cerrado. O
grande impulsionados desta produção é a indústria siderúrgica de Minas
Gerais, que consome 95% da produção de carvão vegetal. Pelo fato de ser um
insumo para um setor industrial de grande importância econômica, essa
questão tornou-se um dos problemas ambientais muito complexos (Coelho,
2005: 134). A fiscalização da produção ilegal de carvão vegetal de matas
nativas é muito complicada, sobretudo numa região onde esta é uma das raras
fontes de renda para muita gente que não encontra outra forma de
sobrevivência.
E as alternativas são também muito problemáticas. Plantações de
eucalipto para carvão vegetal levam à degradação dos solos e a um
desequilíbrio hídrico.
O elevado consumo de água na plantação de eucalipto pode
contribuir para a diminuição das nascentes e da vazão dos corpos d’água
(Coelho, 2005: 136). Contudo, o Complexo Mínero-Siderúrgico-Madeireiro de
Minas Gerais — os três setores da mineração, siderurgia e monocultivo de
eucalipto interligados — traz impactos negativos diretos e indiretos em grande
parte da região do Alto e Médio São Francisco: rebaixamento de lençóis
freáticos, desmatamentoda vegetação natural, contaminação das águas, do
solo e do ar e desequilíbrio hídrico nas áreas plantadas com eucalipto.
2.1.5. Concentração de terra
Outro fator essencial comumente ignorado nas análises das causas
de degradação é o problema fundiário da Bacia do Rio São Francisco, a grande
e irrestrita concentração que possibilita o uso abusivo das terras e dos recursos
naturais, ao tempo em que leva a uma superexploração das áreas dos
pequenos agricultores, sem alternativas além do desmatamento total das suas
propriedades minúsculas. No Oeste da Bahia a concentração é extrema: dois
terços das propriedades rurais têm mais de 500 ha e correspondem a menos
de 5% do total de propriedades rurais (Brannstrom e Filippi, 2006: 277).
A falta de dados fundiários específicos da Bacia é sintomática. Uma
verdadeira revitalização deveria partir do seu mapeamento fundiário, a par da
iniciativa de um Zoneamento Econômico Ecológico (ZEE). Na falta de
indicadores específicos, usamos como referência dados do Semi-Árido, região
de elevada concentração fundiária: 90% das propriedades têm área inferior a
100 ha e detêm apenas 27% da área total dos estabelecimentos agrícolas. Boa
parte destas áreas é constituída de terras públicas. Dos quase 23 milhões de
hectares de terras estimadas como devolutas na Bahia, cerca de 60% estão na
Bacia do São Francisco, segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira
(cf. GeografAR, 2006).
2.1.5. Barragens e hidrelétricas
Uma das alterações mais visíveis e abruptas no ecossistema do São
Francisco diz respeito às hidrelétricas, primeiro grande e exclusivista uso
moderno das águas do Rio. São sete hidroelétricas que modificaram
profundamente e para sempre a vida de dezenas de milhares de famílias
atingidas e o ecossistema do Rio. Apenas com a construção da barragem de
Sobradinho, que por muito tempo foi o maior lago artificial do mundo em
espelho d’água (414 mil km2), ocorreu uma remoção forçada de 72 mil
pessoas, há 30 anos atrás (cf. Siqueira, 1994). Mais da metade destas pessoas
era constituída de camponeses pobres, que dependiam do Rio para viver.
Calcula-se em 160 mil pessoas os atingidos por todas essas barragens. Além
do imenso impacto social, as barragens tiveram sérios efeitos ambientais
negativos, alterando os ciclos de cheia e vazante do Rio e comprometendo a
reprodução das espécies ligada a esses ciclos. Porque o fluxo das águas
passou a ser determinado pelas usinas hidrelétricas, as represas trouxeram
uma diminuição drástica na agricultura de vazante, causando uma notável
redução das áreas que todos os anos eram fertilizadas pelas enchentes na
estação chuvosa. Estas terras eram usadas para lavouras de ciclo curto (como
milho, mandioca e feijão), produtos que abasteciam os centros urbanos do
Médio São Francisco. Tal modificação do fluxo do Rio foi um golpe arrasador
na chamada agricultura de vazante. Como a agricultura tradicional foi
inviabilizada, sobretudo no Sub-Médio e Baixo São Francisco, e com a falta de
atividades econômicas alternativas, houve impactos sociais muito graves
(Coelho, 2005: 124-125). Atualmente, o Rio São Francisco possui apenas dois
trechos de águas correntes: 1.100 km entre as barragens de Três Marias e
Sobradinho, com tributários de grande porte e lagoas marginais; e 280 km da
barragem de Sobradinho até a entrada do reservatório de Itaparica. Daí para
baixo transforma-se em uma cascata de reservatórios da Companhia Hidro-
Elétrica do São Francisco (CHESF). Um grave impacto sócio-ambiental das
represas se deu por impedir a inundação das lagoas marginais,
berçáriosmaiores da vida aquática do Rio. Além disso, as barragens
interromperam o ciclo migratório de várias espécies de peixes, entre elas o
piau, a matrinchã, o curimatá, o pacu e o pirá (Coelho, 2005: 126). Hoje, a
pesca artesanal, sobretudo no Baixo São Francisco, sofre grandes problemas
de sobrevivência. Um indicador do tamanho do impacto é a quase extinção
nesta região da espécie pirá, peixe exclusivo do Rio São Francisco e que, por
isso, o simbolizava.
2.1.6. Mineração e siderurgia
A Bacia do Rio São Francisco detém cerca de 20% do universo da
atividade mineral oficial do país. De um total de 11.600 títulos minerários ativos,
2.320 estão inseridos na Bacia e 1.600 são de projetos que efetivamente
exploram bens minerais e utilizam água nas suas operações. Isto embasa a
constatação de que o setor mineral é um dos grandes usuários de água na
Bacia do São Francisco. Por esta representatividade, faz-se necessário um
maior controle de seu consumo de água por meio do aumento das fiscalizações
nas mineradoras.
O tamanho deste desafio fica evidente quando se constata que,
segundo estimativas, cerca de 40% da atividade mineral funcionam de forma
clandestina. Além do alto gasto de água, a mineração tem fortes impactos,
como o rebaixamento de lençóis freáticos, assoreamento e contaminação das
águas, solo e ar.
Emblemático foi o caso do rompimento ocorrido na barragem de
contenção dos rejeitos de uma mina de ferro, em meados de 2001, localizada
na sub- Bacia do Córrego dos Macacos, na região das cabeceiras do Rio das
Velhas, causando uma poluição desastrosa. E os quarenta anos de
contaminação por metais pesados provocada pela industrialização de zinco à
beira do São Francisco pela Votorantim Metais, em Três Marias (MG),
responsável pela mortandade de dezenas de toneladas de peixes, em especial
surubins grandes.
Como muitas minas ou garimpos estão localizados em regiões de
difícil acesso e os controles e fiscalizações são negligentes ou ineficientes,
ocorrências similares devem ser muito mais freqüentes do que chegam ao
conhecimento da opinião pública. A destruição da paisagem é outro impacto da
mineração pouco conhecido e menos ainda disciplinado e combatido. Do Pico
do Itabirito (MG), com 1.586 m de altitude, historicamente muito utilizado como
ponto de orientação, sobra apenas a ponta, o resto tendo sido levado pela
extração da hematita. A Serra do Curral, em Belo Horizonte, cujo perfil deu
origem ao nome da capital mineira, hoje está reduzida a uma casca,
escondendo todo o vazio deixado pela mineração. 2.6. Falta de saneamento
básico na Bacia
A avaliação da condição atual dos corpos d’água na Bacia do Rio
São Francisco mostrou que as principais fontes de poluição são os esgotos
domésticos, as atividades agropecuárias e a mineração. Os indicadores de
saneamento revelam um quadro preocupante na Bacia, com 49,90% de rede
de esgoto e apenas 3,20% de esgotos tratados. Observa-se o lançamento de
efluentes industriais e domésticos e a disposição inadequada de resíduos
sólidos, comprometendo a qualidade de Rios como Paraopeba, das Velhas,
Pará, Verde Grande, Paracatu, Jequitaí e Urucuia.
A situação mais crítica é a da Bacia do Rio das Velhas que, além da
grande contaminação das águas pelo lançamento de esgotos domésticos da
Região Metropolitana de Belo Horizonte, apresenta elevada carga inorgânica
poluidora proveniente da extração e beneficiamento de minérios. Somente 33
municípios (7% do total) da Bacia tratam seus esgotos. Igualmente precária é a
disposição final de resíduos sólidos realizada de forma inadequada por 93%
dos municípios da Bacia (ANA/OEA/GEF/PNUMA et al, 2004b: 23- 29). Na
região do Alto São Francisco, nas sub-Bacias dos Rios das Velhas e
Paraopeba, os problemas identificados têm origem na mineração e na alta
concentração populacional. Cerca de 30% da população da Bacia do Rio São
Francisco vive na Região Metropolitana de Belo Horizonte exercendo forte
pressão sobre os recursos hídricos.
2.1.7. Desigualdade social e pobreza: injustiça ambiental
Esta somatória de degradações acaba, em última instância,
impactando mais a parte mais fraca, qual seja, a população pobre da Bacia.
Configura-se, assim, uma situação de extrema injustiça ambiental, entendida
como a condição de existência coletiva própria a sociedades desiguais onde
operam mecanismos sócio-políticos que destinam a maior carga dos danos
ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, população
de baixa renda, segmentos discriminados pelo racismo ambiental, parcelas
marginalizadas e mais vulneráveis de cidadãos.
Os dados sócio-econômicos mostram que a Bacia Hidrográfica do
Rio São Francisco possui acentuados contrastes, abrangendo áreas de
acentuada ri-queza e alta densidade demográfica e áreas de pobreza crítica
(ANA/OEA/GEF/ PNUMA et al, 2004b: 16). Ela é caracterizada por densidades
demográficas altas em contraste com vazios demográficos, algumas áreas
altamente industrializadas e outras de predominância de agricultura de
subsistência6. Os indicadores comumente mais usados são a taxa de
mortalidade infantil, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Produto
Interno Bruto (PIB). Aplicados à Bacia do Rio São Francisco, temos, pela
primeira, que há variações entre 25,66 (MG) e 64,38 (AL) entre 1.000 nascidos
vivos; em sua maior parte, a Bacia apresenta valores superiores à média
nacional, que é de 33,55, conforme o Censo do IBGE de 2000. O IDH varia
entre 0,633 (AL) e 0,844 (DF). Existem municípios com IDH 0,343 (a média
6 ANA/OEA/GEF/PNUMA et al. Projeto de gerenciamento integrado das atividades desenvolvidasem terra na Bacia do Rio São Francisco. Programa de ações estratégicas para ogerenciamento integrado da Bacia do Rio São Francisco e da sua Zona Costeira (PAE).GEF São Francisco. Relatório final. Brasília, TDA Desenho & Arte Ltda, 2004a.
brasileira é de 0,769). Por fim, o PIB per capita contempla variações entre R$
2.275 e R$ 5.239, enquanto a média nacional é R$ 5.740.
Sobretudo no Médio, Sub-Médio e Baixo São Francisco, IDHs de
menos de 0,5 são comuns. Nestas regiões há poucas “ilhas de prosperidade”,
com um IDH acima de 0,62, como os municípios de Petrolina, Juazeiro e
Barreiras, onde o agro-negócio suscitou grande crescimento das economias
locais. Porém, o grande aumento do PIB destes municípios não produziu
efeitos de desenvolvimento social, como mostra o exemplo ilustrativo do Oeste
da Bahia, onde se situa o município de Barreiras. Nesta região, reconhecida
pelas safras recordes, a riqueza (PIB) aumentou em 245,6% de 1991 a 2000,
enquanto no mesmo período a miséria se agravou, a ponto de 71,78% dos
800.000 habitantes da região serem classificados como indigentes (isto é, com
renda inferior a meio salário mínimo). Na Bahia, estes são 55,30%; no Brasil,
32,34%. Os dados sugerem uma distorcida impressão de “Eldorado”: de fato, a
nova riqueza está ainda mais concentrada nas mãos de poucos. A situação de
concentração de renda na Bacia é sintomática para o Nordeste, onde o Índice
de Gini se elevou, passando de 0,596 para 0,61 entre 1970 e 2000. Uma
comparação entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres no Semi-Árido
brasileiro revela com maior nitidez a persistência das desigualdades sociais:
em 2000, o percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos chegava a
43,7%, enquanto a renda dos 40% mais pobres era de apenas 7,7%.
Com isso, fica óbvio que há alguma coisa errada com este modelo
econômico. A julgar pelos resultados sociais dos projetos de irrigação, eixo
continuado do modelo agrícola e de desenvolvimento, a despeito das iniciativa
de revitalização, esse quadro não deve melhorar. Tais projetos não melhoram a
vida dos ribeirinhos. A remuneração continua baixa e cresce a prática do
trabalho degradante (em 1998, as pessoas diretamente empregadas no
perímetro de irrigação tinham um salário médio equivalente a dois salários
mínimos). Também não se pergunta pela qualidade dos empregos gerados
pela irrigação. Nos perímetros de Juazeiro e Petrolina formaram-se bairros
inteiros miseráveis e insalubres, onde as populações empregadas na irrigação
aglomeram-se para sobreviver.
Tornaram-se mão-de-obra sazonal e barata na irrigação, ora
morando nos bairros periféricos, ora morando do lado de fora das cercas e
muros que rodeiam os perímetros irrigados, como estranhos, alguns em terras
que já foram suas. São aí altíssimos os índices de criminalidade, prostituição e
violência.7
7 ZELLHUBER, Andrea, SIQUEIRA, Ruben. Rio São Francisco em descaminho: degradação e revitalização. Caderno do CEAS. Salvador Julho/Setembro 2007 no 227. Disponível em: http://www.cptba.org.br/download/artigos/sf_em_descaminho_ceas.pdf. Acesso: 10/jun/2011.
3. PROJETO DA REVITALIZAÇÃO DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO
As transformações do Estado e o incremento da ação coletiva nesta
gestão concordam com o novo papel do mercado, o qual entende como
provedor alternativo potencial da qualidade ambiental esperada. Como o Brasil
não foge à regra, defende a sua tese em dois argumentos. Primeiro, os
recursos naturais tendem a ser definidos, consumidos e gerenciados como
bens públicos, envolvendo várias formas de ação coletiva governamental ou
não. Segundo, a legislação ambiental brasileira tradicionalmente tutela os
recursos naturais ao Estado, à comunidade e/ou ao poder público, não
conseguindo evitar, em muitos casos, a omissão dos órgãos responsáveis por
sua implantação. Assim, cabe cada vez mais à sociedade civil mobilizar-se
para influenciar o processo de gestão, e cabe ao mercado, punir o mau gestor,
que no caso dos recursos hídricos deixa de ser aquele que extrai água de
forma desordenada ou destrutiva e passa a ser aquele que está fadado à
falência. Mas como compreender todos os mecanismos de poder inseridos
nessa nova gestão que se forma? Como estabelecer relação entre a escassez
hídrica, as políticas de uso restritivo, e os conflitos socioambientais que se
estabelecem num cenário como o do Projeto de Integração, em que o número
de atores sociais e de interesses é muito grande?
Ter o direito de uso da água sempre foi instrumento de poder,
principalmente em regiões muito secas, como o sertão nordestino. Ao inspirar
conflitos e demonstração de poder, tornou-se um bem imprescindível
enfatizando seu caráter político. Esse potencial promoveu e promove
importantes tentativas de conviver com a escassez hídrica e de combater à
miséria da população, tornando-se o argumento principal de campanhas
políticas, técnicas, religiosas, humanitárias, assistencialistas etc. Configuram-
se, desde os tempos de colônia até os tempos atuais, na principal preocupação
política do Nordeste brasileiro.
A idéia de poder do homem sobre a natureza e os seus elementos
implica não só na transformação da paisagem, mas na transformação dos usos
e valores dos recursos naturais pelos homens. No caso da água, essa relação
chegou ao seu extremo e assumiu um caráter emocional fundado no medo da
seca. No caso do Projeto de Integração, discursos contrários e favoráveis
revelam que ambos utilizam-se do medo da seca, seja para justificar uma obra
de tamanho porte físico e financeiro como única solução viável em médio
prazo, seja para entender que tamanha obra provocaria a escassez na bacia
doadora e nos recursos financeiros para obras locais. Compreender como se
formou este terror é fundamental à análise dos discursos proposta neste
trabalho e, portanto, deve ser melhor detalhada nos aspectos histórico e
cultural.
Como citado, a ocorrência de secas cíclicas no Nordeste brasileiro
configura, desde que se tem registro, conflitos armados, pobreza, miséria,
fome, morte. Muitos autores fazem referência a esta situação de risco.
Constituiu-se assim o clima de terror e insegurança no imaginário coletivo
nordestino, no qual o simbolismo social e a mística da seca se consolidam
através dos anos.
Como o simbolismo social da seca é imediatamente e, muitas vezes,
irresponsavelmente absorvido pelas elites governantes, inúmeras ações
governamentais foram tomadas para a melhoria da convivência com a seca,
mas nenhuma delas foi suficientemente impactante para mudar a crença das
populações do sertão nordestino de que o convívio com a seca pode ser
amenizado e de que os governos estão trabalhando verdadeiramente pra isso.
Erros constantes são a falta de sensibilização e mobilização das populações
para as ações governamentais e a falta de continuidade nas políticas e nos
projetos públicos.
Sobre isso, nada mais emblemático do que a relação de
desconfiança estabelecida entre governos municipais e estadual e a população
cearense. Um dos estados que mais sofre com a escassez hídrica, o Ceará é
hoje o único estado implantou todos os instrumentos de gestão de recursos
hídricos previstos na PNRH, é sede de órgãos como o Departamento Nacional
deObras Contra as Secas (DNOCS). Foi também palco de inúmeras ações de
engenharia, como a construção de grandes açudes e canais de irrigação, como
o açude Castanhão e o Canal do Trabalhador. No entanto, a desconfiança está
pautada exatamente na forma como estas ações foram estabelecidas, na
tentativa de combate e não de convívio com o fenômeno da seca. Os erros e
desmandos institucionais da chamada indústria da seca resultaram numa
relação personificada entre governos, políticas e instituições governamentais e
sociedade civil. Estabeleceu-se a confiança pessoal na figura dos técnicos e
não nas instituições. Isso marca profundamente as relações sociedade
civil/governo na região até hoje.
Essa relação personificada e indireta pode ser inserida mais uma
vez no contexto weberiano de Estado e poder.
Tal como todos os agrupamentos políticos que historicamente o
procederam, o Estado consiste em uma relação de dominação do homem
sobre o homem, fundada no instrumento da violência legítima (isto é, da
violência considerada como legítima). O Estado só pode existir, portanto, sob
condição de que os homens dominados se submetam à autoridade
continuamente reivindicada pelos dominadores.
Na gestão de águas e, em especial, do Projeto de Integração, pode-
se perceber duas esferas de carisma. No setor público governamental o
carisma é normalmente exercido por técnicos de suas instituições que
desenvolvem trabalhos de campo, enquanto que na sociedade civil o papel que
cabia tradicionalmente aos líderes comunitários locais começa a ser
direcionado também aos técnicos das instituições não-governamentais
ambientais, transformando o cenário relacional entre os atores. Por fim,
trabalha a autoridade em razão da legalidade, que representa a obediência
fundamentada numa crença que valida e legitima um estatuto legal e que
concebe uma competência positiva.
Somadas, estas características representam a dominação e a
dificuldade de legitimação participativa da sociedade civil na gestão pública da
água. Trabalhadas individualmente, percebe-se o papel relevante da crença
religiosa e das elites oligárquicas que se revezaram no poder durante décadas.
Traços marcantes da cultura nordestina, os coronéis e as igrejas, em especial a
Igreja Católica, são atores fundamentais para o processo em curso e serão
abordados detalhadamente no próximo capítulo. Por ora, o foco permanece
nos conceitos envolvidos, e não nos discursos. Então, os coronéis representam
o vértice da força coercitiva direta e a Igreja representa o misticismo religioso
acentuado da região. Ambos implicam em ações assistencialistas que
respondem a interesses próprios. Aos coronéis importava a pobreza do
nordestino e a sua dependência e submissão absoluta, para manter o seu
poder político. À Igreja interessava a crença numa solução divina para
fortalecer a fé irrestrita na instituição e, portanto, a rejeição a explicações laicas
para o fenômeno da seca. Ambos, coronéis e Igreja, remetem ao simbólico
para manter-se no poder.
Se o simbolismo social ultrapassa os limites do lúdico e representa
um conjunto de códigos sociais de comunicação, ele necessariamente contribui
para a formação do imaginário popular coletivo. Quanto a esse imaginário,
nada mais real do que a mística e a crença de que a seca não oferece
possibilidade de resistência e de sobrevivência. Toda e qualquer ação
governamental é entendida como pontual, eleitoral e limitada no tempo e no
espaço. “O jeito é entregar a Deus”. Estabelecido num contexto de
desconfiança da sociedade civil e de grande interferência de lideranças locais
políticas e religiosas, o poder relacionado à seca e à gestão dos recursos
hídricos no Nordeste brasileiro supera as barreiras do simplesmente político e
econômico e torna-se, acima de tudo, emocional.
Em conclusão, entende-se que os conflitos sócio-ambientais
relacionados ao Projeto de Integração do rio São Francisco constituem disputa
por poder.8
Rio da integração nacional, o São Francisco, descoberto em 1502,
tem esse título por ser o caminho de ligação do Sudeste e do Centro-Oeste
com o Nordeste. Desde as suas nascentes, na Serra da Canastra, em Minas
Gerais, até sua foz, na divisa de Sergipe e Alagoas, ele percorre 2.700 km. Ao
longo desse percurso, que banha cinco Estados, o rio se divide em quatro
8 VIANA, Cristiane F. G. Conflitos socioambientais do Projeto de Integração do Rio São Francisco. UnB-CDS, Mestre, Política e Gestão Ambiental, 2005. Disponível em: http://www.unbcds.pro.br/publicacoes/cristineFerreira.pdf. Acesso: 11/jun/2011.
trechos: o Alto São Francisco, que vai de suas cabeceiras até Pirapora, em
Minas Gerais; o Médio, de Pirapora, onde começa o trecho navegável, até
Remanso, na Bahia; o Sub-médio, de Remanso até Paulo Afonso, também na
Bahia; e o Baixo, de Paulo Afonso até a foz.
O rio São Francisco recebe água de 168 afluentes, dos quais 99 são
perenes, 90 estão na sua margem direita e 78 na esquerda. A produção de
água de sua Bacia concentra-se nos cerrados do Brasil Central e em Minas
Gerais e a grande variação do porte dos seus afluentes é consequência das
diferenças climáticas entre as regiões drenadas. O Velho Chico – como
carinhosamente o rio também é chamado – banha os Estados de Minas Gerais,
Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Sua Bacia hidrográafica também
envolve parte do Estado de Goiás e o Distrito Federal.
Os índices pluviais da Bacia do São Francisco variam entre sua
nascente e sua foz. A poluviometria média vai de 1.900 milímetros na área da
Serra da Canastra a 350 milímetros no semi-árido nordestino. Por sua vez, os
índices relativos à evaporação mudam inversamente e crescem de acordo com
a distância das nascentes: vão de 500 milímetros anuais, na cabeceira, a 2.200
milímetros anuais em Petrolina (PE).
Embora o maior volume de água do rio seja ofertado pelos cerrados
do Brasil Central e pelo Estado de Minas Gerais, é a represa de Sobradinho
que garante a regularidade de vazão do São Francisco, mesmo durante a
estação seca, de maio a outubro. Essa barragem, que é citada como o pulmão
do rio, foi planejada para garantir o fluxo de água regular e contínuo à geração
de energia elétrica da cascata de usinas operadas pela Companhia Hidrelétrica
do São Francisco (Chesf) – Paulo Afonso, Itaparica, Moxotó, Xingó e
Sobradinho.
Depois de movimentarem os gigantescos geradores daquelas cinco
hidrelétricas, as águas do São Francisco correm para o mar. Atualmente, 95%
do volume médio liberado pela barragem de Sobradinho – 1.850 metros
cúbicos por segundo – são despejados na foz e apenas 5% são consumidos no
Vale. Nos anos chuvosos, a vazão de Sobradinho chega a ultrapassar 15 mil
metros cúbicos por segundo, e todo esse excedente também vai para o mar.
A irrigação no Vale do São Francisco, especialmente no semi-árido,
é uma atividade social e econômica dinâmica, geradora de emprego e renda na
região e de divisas para o País – suas frutas são exportadas para os EUA e
Europa. A área irrigada poderá ser expandida para até 800 mil hectares, nos
próximos anos, o que será possível pela participação crescente da iniciativa
privada.
O Programa de Revitalização do São Francisco, cujas ações já se
iniciaram, contempla, no curto prazo, a melhoria da navegação no rio,
providência que permitirá a otimização do transporte de grãos (soja, algodão e
milho, essencialmente) do Oeste da Bahia para o porto de Juazeiro (BA) e daí,
por ferrovia, para os principais portos nordestinos.9
CONCLUSÃO
9 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. São Francisco. Disponível em: http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/rio/index.asp. Acesso: 09/jun/2011.