Rivista elettronica del Centro di Documentazione Europea dell’Università Kore di Enna www.koreuropa.eu O MODELO EUROPEU E A QUESTÃO DA CIDADANIA Janaína Rigo Santin Pós Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa e Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo RESUMO: A pesquisa problematiza a questão da cidadania europeia e do déficit democrático das instituições supranacionais. A situação de crise por que passam as instituições nacionais em face do processo de globalização traz consigo um déficit democrático, o que provoca uma série de gravames sociais. E essa problemática torna-se mais evidente na União Europeia, que se encontra em um momento crucial sobre quais competências que deve assumir para tomar as decisões fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar mecanismos ágeis e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias, a qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o déficit democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como também de democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos europeus devem ter o poder de efetivamente participar dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia participativa em âmbito supranacional PALAVRAS-CHAVE: Cidadania europeia, Participação, Constitucionalismo europeu 1. Considerações Iniciais Em face da evolução do Estado Moderno, o conceito de Cidadania obteve diversas conotações, todas elas voltadas de acordo com o momento histórico que a humanidade passava, e naturalmente com o modelo social imposto pela forma estatal da época. Os Estados na ordem mundial atual são, em sua maioria, estruturas sociais democráticas. Diante disso, a noção de cidadania, que remonta a épocas primitivas da sociedade, se faz de suma importância, visto que sem a participação da população nos desígnios do Estado, a democracia perde seu foco, destoando dos objetivos a que se propõe. É a cidadania, enquanto fundamento da democracia, que deve promover a participação, fazendo com que os cidadãos, através do poder originário que possuem, cobrem e também ajudem seus governantes a tomar decisões que sejam benéficas a todos. Todavia, frente ao contexto social apresentado hodiernamente, relevante se faz uma análise mais profunda nos aspectos que tangenciam a questões da cidadania e da democracia. A crise que se abate sobre a sociedade, demonstra a fraqueza de estruturas até então consideradas inabaláveis,
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Rigo Santin Janaina, O modelo europeu e a questão da cidadania
A pesquisa problematiza a questão da cidadania europeia e do déficit democrático das instituições supranacionais. A situação de crise por que passam as instituições nacionais em face do processo de globalização traz consigo um déficit democrático, o que provoca uma série de gravames sociais. E essa problemática torna-se mais evidente na União Europeia, que se encontra em um momento crucial sobre quais competências que deve assumir para tomar as decisões fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar mecanismos ágeis e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias, a qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o déficit democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como também de democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos europeus devem ter o poder de efetivamente participar dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia participativa em âmbito supranacional
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O MODELO EUROPEU E A QUESTÃO DA CIDADANIA
Janaína Rigo Santin Pós Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa e Professora da Faculdade de Direito da
Universidade de Passo Fundo
RESUMO: A pesquisa problematiza a questão da cidadania europeia e do déficit democrático das instituições
supranacionais. A situação de crise por que passam as instituições nacionais em face do processo de globalização
traz consigo um déficit democrático, o que provoca uma série de gravames sociais. E essa problemática torna-se
mais evidente na União Europeia, que se encontra em um momento crucial sobre quais competências que deve
assumir para tomar as decisões fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar
mecanismos ágeis e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias,
a qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o déficit
democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como
também de democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos europeus devem ter o poder de efetivamente
participar dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia participativa
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Em meio a todas estas transformações por que passava a humanidade, o homem começou a
ter um papel crucial dentro do desenvolvimento da sociedade, passando a ser qualificado como
cidadão. A origem da palavra remonta a Roma e Grécia, nas antigas Polis (cidades-estados) que
foram as precursoras de uma sociedade estatalmente organizada. Polites ou Cives eram para os
romanos os sócios da Polis ou Civitas. Cidadãos eram, portanto, todos os homens que
participavam do funcionamento da cidade-estado, os titulares de direitos políticos3.
A participação desses cidadãos era efetuada da forma direta, sem a existência de
representantes, visto que este instituto da representação privada só teve origem no mundo
moderno. Essa participação dava-se através da votação das leis e no exercício de funções
públicas, especialmente a judiciária. A participação dos cidadãos era tão importante que sem ela,
a Polis não existiria4.
Em Atenas, na Grécia, o principal privilégio dos então denominados cidadãos era a igual
liberdade da palavra nas assembléias do povo. Assim sendo, o grau de participação do povo
ateniense foi bem maior que o do povo romano. No campo Legislativo, as leis eram votadas pelo
povo reunido em comícios, por proposta de um magistrado. No campo judiciário, o juiz era
alguém do povo, e existiam regulamentos que permitiam ao condenado a penas graves de
recorrer diretamente ao julgamento popular5.
Vale enfatizar que, por cidadania, entendia-se a qualidade de o indivíduo pertencer a uma
sociedade, e estar adstrito a todas as implicações decorrentes da vida em sociedade. Logo,
cidadão era aquele que morava na cidade e participava dos seus negócios. Assim sendo, era
caracterizada por uma minoria, aqueles que podiam acessar cargos públicos, visto que os
estrangeiros, os escravos, as mulheres, os artesãos e os comerciantes eram discriminados e não
eram considerados cidadãos6.
3 COMPARATO, A Nova Cidadania, São Paulo, 1993, n. 28/29, p. 85-106, p. 23. 4 SILVEIRA, Cidadania. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=78. Acesso mar. 2012. 5 COMPARATO, op. cit., p. 24. 6 SILVEIRA, op. cit..
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Indubitavelmente, a civilização Greco-Romana tinha em seu ápice um extraordinário
desenvolvimento político. Porém, contrastando a isso, os indivíduos pertencentes a estas
sociedades não gozavam de liberdade privada alguma. Encontravam-se totalmente submetidos à
cidade-estado a qual pertenciam. Toda e qualquer atividade existente na Polis era controlada, das
roupas ao corte de cabelo, da religião à educação. Isso se explicava na medida em que se tratava
de moldar o caráter dos cidadãos para servir a Polis. Conforme ensina FÁBIO KONDER
COMPARATO, “o mundo greco-romano, matriz da civilização ocidental, era o espaço social da
sujeição e do poder absoluto, em contraste com a liberdade ativa que prevalecia na esfera
política”7.
Todavia, com o passar do tempo, entra em decadência o chamado “Império Romano”,
desaparecendo o modelo constituído pela civilização greco-romana, acarretando em séculos de
supressão da cidadania.
Roma, com seu império, esfacelou-se com a invasão dos bárbaros, e conseqüentemente o
seu poder central desapareceu. Os territórios passaram a ser divididos em feudos, para que assim
pudessem ser controlados autonomamente por seus senhores feudais. O poder passa, assim, de
uma centralização para uma descentralização, pois esta era a melhor forma de dominar os
territórios, em vista da imensidão de terras a serem conquistadas, o que contrastava com os meios
de dominação existentes, que eram mínimos8.
Esta nova forma de organização social foi denominada, na Europa, de Feudalismo, e pôs
um fim ao chamado Estado Medieval. Esse período caracterizou-se pela íntima ligação entre
Igreja e Estado. O Feudalismo criou uma hierarquização política, não sendo contra o Estado, mas
sim se fazendo como um meio propulsor para o seu advento9. Este modelo de organização social
7 COMPARATO, op. cit., p. 24. 8 BERUTTI-FARIA-MARQUES, História, Vol. 3, Belo Horizonte, 1993, p. 13. 9 MELLO, Curso de Direito Internacional Público, Vol. I, 11ª ed., Rio de Janeiro, 1997, p. 330.
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implantado era articulado “a partir do poder fragmentado de cada Senhor Feudal, e que se
alicerçava em uma relação indissolúvel entre o poder religioso e o poder político”10.
Com o novo quadro social que se desenhava na época, o chamado status civitatis, tão
presente na antiga civilização, foi suprimido, passando a existir um complexo sistema de relações
hierárquicas de dominação privada. Isso se explica pelo poder fragmentado, no qual cada senhor
feudal possuía sua quota-parte de poder, fazendo com que os indivíduos presentes nos feudos não
tivessem uma identidade própria, sendo nada mais do que servos do senhor feudal11.
Na metade do séc. XV, o Feudalismo tem sua força exaurida. Abate-se sobre o modo de
produção feudal uma profunda crise, enfraquecendo as bases sociais da época. Com o advento
desta grave crise, necessitava-se uma nova ordem que pudesse reorganizar a sociedade
desarticulada12.
Florescia, na época, movimentos com vistas à centralização do poder político e à expansão
territorial, o que culmina com a instauração do Regime do Absolutismo Monárquico, enterrando
de vez o espaço já limitado das liberdades. Com isso, passa a vigorar a ordem política Moderna -
a partir do séc. XVI - procurando desvencilhar a religião do Estado e fortalecer o vínculo político
do Estado para com os cidadãos. A centralização do poder deu-se nas mãos do Rei, sendo que o
Estado era visto na própria pessoa do Rei, perdendo a concepção de impessoalidade da
administração13.
Esse novo protótipo de Estado perdurou entre os séculos XVI e XVII, consolidando no
período a idéia de Estado-Nação, lastreado em uma regulamentação jurídica dos conflitos sociais
existentes. Esse Estado continua sendo “a expressão da hegemonia da nobreza que através da
reorganização estatal reforça sua dominação sobre a massa camponesa”14.
10 BEDIN, Estado, Cidadania e Globalização do Mundo: Algumas Reflexões e Possíveis Desdobramentos, in
OLIVEIRA (coord.), Relações Internacionais e Globalização, Ijuí, 1997, p. 126. 11 GOULART, Sociedade e Estado, in ROCHA (org), Teoria do Direito e do Estado, Porto Alegre, 1994, p. 26. 12 BERUTTI-FARIA-MARQUES, op. cit., p. 25. 13 BOBBIO, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, 3ª ed, São Paulo, 2000, p. 17. 14 BERUTTI-FARIA-MARQUES, op. cit., p. 25.
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meio das referidas entidades, como condição para conceder cooperação financeira externa,
bilateral ou multilateral”25.
As propostas do Consenso de Washington nas 10 áreas a que se dedicou convergem para dois objetivos
básicos: por um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação; por outro lado, o máximo de
abertura à importação de bens e serviços e à entrada de capitais de risco. Tudo em nome de um grande princípio: o da
soberania absoluta do mercado auto-regulável nas relações econômicas tanto internas quanto externas26.
Segundo CHOSSUDOVSCKY, inaugura-se uma “nova divisão de autoridade”, agora nas mãos
de instituições que agem em caráter supranacional, operando dentro do sistema capitalista global
como órgãos reguladores da política econômica dos países em desenvolvimento. Assim, o
próprio sistema democrático desses países é colocado a prova, já que “os eleitos para altos cargos
públicos atuam cada vez mais como burocratas e os credores do Estado tornaram-se depositários
do poder político real, agindo discretamente nos bastidores”27.
O mesmo cardápio de austeridade orçamentária, desvalorização, liberalização do comércio e privatização é
aplicado simultaneamente em mais de cem países devedores. Estes perdem a soberania econômica e o controle sobre
a política monetária e fiscal; seu Banco Central e Ministério da Fazenda são reorganizados (freqüentemente com a
cumplicidade das burocracias locais); suas instituições são anuladas e é instalada uma ‘tutela econômica’. Um
‘governo paralelo’ que passa por cima da sociedade civil é estabelecido pelas instituições financeiras internacionais
(IFIs). Os países que não aceitam as ‘metas de desempenho’ do FMI são colocados na lista negra. (...)A
reestruturação da economia mundial sob a orientação das instituições financeiras sediadas em Washington nega cada
vez mais aos países em desenvolvimento a possibilidade de construir uma economia nacional: a internacionalização
da política macroeconômica transforma países em territórios econômicos abertos e economias nacionais em
‘reservas’ de mão-de-obra barata e de recursos naturais28.
O Estado Neoliberal nada mais é do que um resgate da visão Liberal do Estado Moderno, e
atua sob o lema “menos Estado, mais mercado”29. Veja-se que este fator passa a ser agravado em
épocas de crise financeira por que passa o modelo europeu de bem estar social. Os Estados se
25 BATISTA JÚNIOR, O Consenso de Washington: A Visão Neoliberal dos Problemas Latino-Americanos, 2. ed., São
Paulo, 1994, p. 5. 26 Idem, p. 26-27. 27 CHOSSUDOVSKY, A Globalização da Pobreza: Impactos das Reformas do FMI e do Banco Mundial, Tradução por
MARYLENE PINTO MICHAEL, 1. ed., São Paulo, [s.d.], p. 20. 28 CHOSSUDOVSKY, A Globalização da Pobreza: Impactos das Reformas do FMI e do Banco Mundial, Tradução por
MARYLENE PINTO MICHAEL, 1. ed. São Paulo, [s.d.], p. 28 e 30. 29 BEDIN, op. cit., p. 129.
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Os setores eurocéticos afirmam que ainda não está presente uma identidade, um povo
europeu. Falta, portanto, o sujeito do processo constituinte, o coletivo singular de um povo, capaz
de se definir a si próprio como uma nação democrática. E nessa senda o conceito de povo
também é bastante problemático. Autores entendem que é este conceito de povo que une os
países, e como não há um povo europeu, não é possível uma constituição europeia32. Porém,
povo não é um conceito coerente para a idéia de sociedade multicultural e pluralista, como a
europeia. A categoria povo dá a idéia de uniformidade, engloba e faz homogêneo um conjunto de
pessoas. Porém, na União Europeia não há uniformidade, singularidade, mas sim uma sociedade
pluralista e multicultural com uma identidade de interesses33.
Nas palavras de DIETER GRIMM34, a língua também é um elemento importante para se
construir um modelo político comum, não havendo essa característica na Europa. Logo, para o
autor, ainda não há um povo europeu nem estruturas identitárias comuns, como um espaço
público promotor de uma identidade coletiva. Logo, seria muito difícil criar um espaço
democrático comum, em que necessidades e interesses sociais pudessem ser debatidos por
amplos setores da sociedade. E os setores eurocéticos confirmam este pensamento, de que a falta
de uma língua comum dificultaria um debate público europeu. Da mesma forma, afirmam não
haver meios de comunicação nem partidos políticos europeus, componentes necessários para a
criação de um espaço público europeu35. Tudo isso complicaria a construção de uma comunidade
supranacional.
32 GRIMM, Constituição e Política, Tradução de GERALDO DE CARVALHO, Belo Horizonte, 2006. 33 HABERMAS, Por qué Europa necesita uma Constitución, in, Revista Bimestral de Pensamiento Social, La
Factoría, 2005, n. 25-26, p. 1-11. Disponível em:
http://www.revistalafactoria.eu/imprimir.php?tipo=articulo&id=274. Acesso em 05 nov. 2010, p. 6. 34 GRIMM, Constituição e Política, Tradução de GERALDO DE CARVALHO, Belo Horizonte, 2006. 35 A criação de um espaço público europeu passa necessariamente pela revisão das agendas dos meios de
comunicação de massa. O interesse dos cidadãos europeus nas questões que digam respeito a União Europeia é algo
que precisa ainda ser despertado. Nesse sentido são as conclusões do CES – Conselho Econômico e Social de
Portugal, conforme artigo 92 da Constituição Portuguesa. Veja-se: “O aparente desinteresse e a conseqüente
participação limitada dos cidadãos europeus no processo de construção europeia, podem estar também relacionados
com o facto de as problemáticas comunitárias estarem muitas vezes em plano secundário nas agendas dos meios de
comunicação de massa, que deverão ser sensibilizados para a necessidade e a importância de ajudarem ao
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Entretanto, para HABERMAS, a ideia de constituição europeia não exige necessariamente
uma língua oficial36. Por exemplo, na Suíça há quatro línguas oficiais, e isso não impede que haja
uma comunidade constitucional. Na Espanha a diversidade de línguas também não impede uma
constituição comum, com autonomia política para as regiões-autonômas.
Dessa forma, o autor defende os seguintes pré requisitos funcionais de um projeto de União
Europeia, constituída democraticamente: a) a necessidade de um espaço público conjunto,
construído a partir de elementos de identidade capazes de construir uma identidade comum, “una
red que dé a los ciudadanos de todos los Estados miembros la misma oportunidad de tomar parte
en un amplio proceso de comunicación política concreta”; b) a emergência de uma sociedade
civil europeia e, por fim; c) a formação de uma cultura política que possa ser compartilhada por
todos os cidadãos europeus. Tais elementos seriam diferentes daqueles da modernidade,
tradicionais, como a língua e o povo37.
Concorda-se com o argumento habermasiano. O conceito de cidadania precisa ser
atualizado, fugir daquela visão tradicional da modernidade. Fundar uma cidadania de caráter
multilateral, a qual, na opinião de BALDOMERO OLIVER LEÓN38, geraria uma relação direta dos
cidadãos com a União Europeia e com as instituições comunitárias. Uma cidadania a ser
reconhecida pelos ordenamentos jurídicos dos Estados Membros. Afinal, o cidadão deve ser o
sujeito e fim mesmo da existência da União.
A cidadania europeia é reconhecida hoje por algumas iniciativas como, por exemplo, o
princípio geral de não discriminação por razão de nacionalidade, o qual assegura, mesmo que em
âmbito muito limitado, a participação política nas eleições ao Parlamento Europeu39. Também
nos mecanismos de âmbito local para possibilitar a votação dos residentes nas eleições
autárquicas ou municipais, decorrência do estabelecido no artigo 8, B, n. 1 do Tratado da União
esclarecimento das opiniões públicas. SERRA (Relator), O Futuro da Europa (estudo), Série “Estudos e
Documentos”, Lisboa, 2005, p. 23. 36 HABERMAS, op. cit., p. 5-8. 37 HABERMAS, op. cit.. 38 LEÓN, El Derecho de Sufragio como Elemento Estructural de la Ciudadania Europea, in, Revista de Derecho
Constitucional Europeo, n. 4, 2005, p. 197-218. Disponível em: http://www.ugr.es/~redce/. Acesso em 05 nov. 2010.
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Europeia, o qual aponta para a capacidade eleitoral ativa nas eleições municipais (fenômeno que
já era concedido em alguns países europeus, como em Portugal)40. E, por sua vez, o direito de
votar e de ser eleito para representante do Parlamento Europeu do seu país de residência41. Mas
em eleições nacionais esse problema se agrava, eis que só os nacionais têm direito a voto, mesmo
residindo no estrangeiro. Porém, apenas estes mecanismos de democracia representativa são
poucos para constituir uma sociedade essencialmente democrática. É preciso avançar para uma
maior participação dos cidadãos nos processos políticos europeus.
A proposta é a ampliação do conceito de cidadania, para todos os que vivem na Europa,
independente de sua nacionalidade, possam participar das decisões comunitárias, sem suplantar a
cidadania de cada Europeu em seu país. É preciso manter a ideia de identidade nacional e, ao
mesmo tempo, fazer surgir a ideia de cidadania europeia, a partir dos estatutos jurídicos42.
A formação dos Estados modernos do século XIX permitiu a construção de identidades
nacionais, não tanto a partir da vontade dos indivíduos, mas de uma ação do poder político
dirigida a esse sentido, voltada à formação de uma Nação. Porém, na União Europeia, a
construção de uma identidade comum não pode ser dada da mesma forma, pois não pode
39 LEÓN, op. cit., p. 197-218. 40 A aplicação deste artigo não tem sido muito pacífica nos países europeus. Conforme MARCELO REBELO DE SOUSA,
como por exemplo o caso dos cidadãos portugueses residentes em Luxemburgo, os quais não puderam exercer o
direito de participação nas eleições locais e mesmo nas eleições para o Parlamento Europeu. SOUSA, A Cidadania
Europeia – Nível de Concretização dos Direitos, Possibilidade de Alargamento e suas Implicações, in PEREIRA et al,
Em Torno da Revisão do Tratado da União Europeia, Coimbra, 1997, p. 123. 41 SÓNIA GODINHO ressalta que o Parlamento Europeu, órgão com funções legislativas, orçamentais, consultivas e de
controle político, “é o único que goza de legitimidade democrática directa, na medida em que é eleito por sufrágio
universal e directo dos cidadãos europeus. A representação dos cidadãos é feita com base num princípio de
proporcionalidade degressiva com um limite mínimo de 6 deputados e um limite máximo de 96 por cada Estado,
sendo que a composição máxima do PE será de 750 deputados.” Para a autora, “o reforço dos seus poderes,
resultante da sua equiparação ao Conselho como órgão legislativo e orçamental (art. I-20, n. 1) e principalmente do
estabelecimento do procedimento de co-decisão (processo legislativo ordinário nos termos adoptados no art. I-34, n.
1) como regra na aprovação dos actos legislativos europeus constitui um avanço indiscutível de democracia no seio
da União.” Porém, a mesma autora alerta que, apesar disso, ainda subsistem decisões legislativas europeias que
prescindem do acordo do Parlamento Europeu, ou que tem sua participação meramente consultiva. GODINHO,
Federalismo e Constituição Europeia: será a Constituição Europeia uma Constituição Federal?, in MARTINS
(Coord.), Constitucionalismo Europeu em Crise? Estudos sobre a Constituição Europeia, Lisboa, 2006. p. 54-55. 42 BALAGUER CALLEJÓN, Los Tribunales Constitucionales en el Processo de Integración Europea, in, Revista de
Derecho Constitucional Europeo, 2007, n. 7. Disponível em: http://www.ugr.es/~redce/. Acesso em 05 nov. 2010.
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sempre conflitantes internos de cada país, de seus diversos grupos sociais, regiões e etnias, como
também os interesses heterogêneos das nações. Aumentar o espaço de participação dos cidadãos
europeus na gestão e no controle dos órgãos e instituições supranacionais. Ou seja, é preciso
manter o modelo europeu de democracia, de accountability e de respeito aos direitos
fundamentais, adequando-o agora para o âmbito supranacional.
Há uma transformação, em que não se pode mais aplicar no processo de integração europeia
modelos antigos. É preciso criar novas categorias, porque se está frente de uma nova realidade. E
é necessário compreendê-la para, a partir daí elaborar estas novas categorias.
Alguns afirmam que a, a partir da crise fiscal deste início de século, a Europa está em parte
estagnada, e precisa encontrar formas criativas de avançar. Para PETER SLOTERDIK, está em voga
a forma de transição neste novo milênio da modernidade, capaz de se chegar a “uma nova criação
de forma política, para lá do Império – acima do Império – acima dos Estados-nação -, e então
uma coisa se torna clara: a política do futuro depende em larga medida de uma modernização da
função visionária ou profética da inteligência”47.
Para fazer frente às novas demandas, é preciso aumentar o poder político, o âmbito de
competência da União Europeia, bem como encontrar novas formas de participação cidadã e
accountability de seus representantes, com vistas a superar o déficit democrático dos órgãos
comunitários. Esta é a única saída para os Estados europeus manterem seu sistema de vida e sua
cultura constitucional e política, com a garantia dos direitos fundamentais, em especial dos
direitos sociais.
Nesse contexto há de interpretar-se a cidadania europeia paralela à cidadania dos Estados-
membros e desta dependente, pois os direitos que a integram serão reconhecidos
automaticamente a quem for nacional de um Estado-membro. Nas palavras de MARCELO REBELO
DE SOUSA, “o acolhimento dos direitos políticos dos cidadãos europeus, bem como do próprio
46 PEREIRA, A reforma do estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle, Brasília, 1997, p. 45-46. 47 SLOTERDIK, Se a Europa Acordar. Reflexões sobre o programa duma potência mundial no termo de sua ausência
política, Trad. de MANUEL RESENDE, Lisboa, 2008, p. 51.