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DOSSI
Cultura poltica, cidadania e representao na urbs sem civitas: a
metrpole do Rio de Janeiro1
Luiz Cesar de Queiroz ribeiro*
FiLipe souza Corra**
Resumo
O objetivo deste artigo trazer elementos tericos e empricos que
nos permitam refletir sobre a cultura poltica como uma condio para
o exerccio de uma cidadania ativa num contexto metropolitano
marcado por uma dinmica histrica de segregao socioespacial. Com
isso, buscamos destacar a importncia de se considerar a dimenso das
desigualdades urbanas no entendimento das diferentes culturas
polticas entre os cidados metropolitanos. Para tal, utilizamos os
dados de um survey sobre cultura poltica aplicado em 2006 na Regio
Metro-politana do Rio de Janeiro e, a ttulo de ilustrao do impacto
da diferenciao socioespacial metropolitana sobre o comportamento
poltico dos cidados metro-politanos, utilizamos os dados
espacializados da disputa eleitoral para deputado estadual em 2006,
na RMRJ. Os dados analisados indicam uma diferenciao interna
significativa de acordo com os indicadores de cultura poltica
utilizados,
1 Este texto retoma e desdobra questes apresentadas no captulo
Cultura Poltica na Me-trpole Fluminense: cidadania na metrpole
desigual do livro Cultura Poltica, Cidadania e Voto nas Metrpoles:
desafios e impasses, Rio de Janeiro, Carta Capital, no prelo,
organizado por Azevedo, Ribeiro e Santos Junior. Os autores
agradecem os comentrios dos pareceristas annimos que muito
contriburam para a clareza do texto e assumem inteira
responsabilidade pelo contedo apresentado.* Professor Titular do
Instituto de Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ.
Coordena-dor do Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia
INCT-Observatrio das Metrpoles/CNPq-FAPERJ.(Brasil). E-mail:
[email protected]** Doutorando em Cincia Poltica (UFMG) e
Pesquisador do Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia
INCT-Observatrio das Metrpoles/CNPq-FAPERJ (Brasil).
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e que esta diferenciao corresponde em grande medida diferenciao
socio-espacial da metrpole analisada. Portanto, em primeiro lugar,
se confirmou a im-portncia da considerao da dimenso urbana nas
anlises de cultura poltica no espao metropolitano, em segundo, a
anlise dos resultados eleitorais apontou para as possveis conexes
entre a dimenso da cultura poltica, entendida a partir da sua
diferenciao socioespacial, e a dinmica da representao poltica.
Palavras-chave: Cidadania. Cultura poltica. Segregao
socioespacial. Desigual-dades sociais. Metrpoles.
Political culture, citizenship and representation in the urbs
without civitas: the metropolis of Rio de Janeiro
Abstract
The aim of this paper is to provide theoretical and empirical
elements that allow us to reflect on the political culture as a
condition for the exercise of active citizenship in a metropolitan
context marked by a historical dynamics of segrega-tion. Therefore,
we sought to highlight the importance of taking into account the
dimension of urban inequalities in order to understand the distinct
political cultures hold by metropolitan citizens. For this purpose,
we used data collected in a survey on political culture applied in
2006 in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro. Also, aiming to
illustrate the impact of socio-spatial differentiation on the
political behavior of metropolitan citizens, we used spatialized
information from the results elections for state legislature, in
2006, in the metropolitan area of Rio de Janeiro. The data analysis
indicate a significant internal differentiation according to the
in-dicators of political culture used, and that this distinction
largely corresponds to the socio-spatial differentiation of the
metropolis. So, first, we confirmed the importan-ce of taking into
account the urban dimension in the analysis of political culture in
metropolitan areas, and, secondly, the analysis of election results
indicated possible connections between the political culture
dimension, understood in its socio-spatial differentiation, and the
dynamics of political representation.
Keywords: Citizenship. Political culture. Socio-spatial
segregation. Social inequa-lity. Metropolises.
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OIntroduo
presente artigo se insere na linha de vrias investigaes que, em
diferentes disciplinas e a partir de enfoques tericos distintos, vm
buscando entender o compor-tamento poltico do brasileiro e sua
relao com a cons-truo da cidadania. Mais especificamente,
buscamos
refletir sobre os desafios impostos pela prpria organizao
sociespacial das metrpoles brasileiras para a consolidao de uma
cidadania plena no Brasil a partir da experincia da metrpole do Rio
de Janeiro.
Artigos e livros publicados nos campos da sociologia poltica e
da cincia poltica no Brasil tm convergido na focalizao da anlise da
re-lao entre os cidados e as instituies, na compreenso dos valores
que fundamentam as suas atitudes e suas disposies cvicas para o
compor-tamento poltico. Tais anlises tm tambm convergido na
identificao da desconfiana interpessoal e nas instituies
democrticas como o trao marcante destes valores e atitudes,
portanto, fundamento da constituio de um ethos semelhante ao
familismo amoral (Reis, 1995) e da consti-tuio de um comportamento
caracterizado pelo hobbesianismo social (Santos, 1993). Estes
autores identificam, no ambiente social e cultural brasileiro e no
funcionamento das nossas instituies polticas, os funda-mentos da
racionalidade de um comportamento poltico orientado pelo egosmo,
pelo individualismo e pela recusa ao coletiva fora do crculo
restrito pelas relaes pessoais. E, segundo Renn Jr. (1999, p. 107),
a partir de uma abordagem denominada de racionalidade cultural
adapta-tiva, podemos considerar que a forma como se constitui a
cultura polti-ca do cidado brasileiro apresenta interferncia sobre
o clculo racional imediato para o comportamento poltico. Ou seja,
de acordo com essa
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perspectiva, a lgica da desconfiana2 surge como uma resposta
racional-adaptativa aos constrangimentos e incentivos gerados por
contextos so-ciais e institucionais caracterizados: (i) pela
existncia de elevados ndices de violncia nas relaes interpessoais e
mesmo na relao entre os indi-vduos e as instituies de segurana
pblica; (ii) por fortes desconfianas da populao quanto a real
capacidade do Estado para administrar a Justia; (iii) pelo baixo
grau de efetividade das polticas pblicas no aten-dimento das
demandas bsicas da populao; e (iv) pelas desigualdades sociais
objetivas e subjetivas persistentes na sociedade que geram uma
percepo coletiva de mundos sociais hierarquizados e distanciados.
Por conseguinte, estes elementos convergem na criao e difuso de um
sen-timento de insegurana e incerteza que gera um ambiente cultural
domi-nado pela desconfiana, seja nas relaes interpessoais, seja em
relao s instituies, elevando consideravelmente os custos da
participao so-ciopoltica. Desse modo, causas estruturais, culturais
e institucionais so identificadas por estes autores como
fundamentos da constituio de uma lgica da desconfiana, guiando o
comportamento poltico do brasileiro, bloqueando a constituio de uma
cidadania ativa, e, por consequncia, criando impasses para a
consolidao de uma democracia plena no Brasil.
1. Cidade, Cidadania e Cultura Poltica no Brasil
O objetivo central do presente artigo o de contribuir para o
apro-fundamento do debate sobre a relao entre cidadania e cultura
poltica,
2 O cidado no encontra, cultural e institucionalmente,
incentivos seletivos para buscar solucionar seus conflitos dirios
na esfera pblica. O ambiente cotidiano desestimula a busca de rgos
estatais para resolver seus problemas, assim como o envolvimento em
comunidades com fins comuns, porque prevalece uma sensao
generalizada de desconfiana quanto ao prximo, s leis e s organizaes
pblicas. A essncia da lgica da desconfiana a imprevi-sibilidade dos
comportamentos alheios. (Renn Jr., 2000).
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explorando a dimenso urbana dos mecanismos explicativos das
desigual-dades polticas entre os cidados metropolitanos. O nosso
ponto de partida a constatao emprica de um baixo grau de confiana
interpessoal e poltica na populao da metrpole do Rio de Janeiro a
partir de anlise dos dados de um survey sobre cultura poltica e
cidadania que utilizou os indicadores do International Social
SurveyProgramme (ISSP)(http://www.issp.org). Esta pesquisa foi
realizada no ano de 2006 pelo Observatrio das Metrpoles em parceria
com o Instituto Universitrio de Pesquisa do Es-tado do Rio de
Janeiro (IUPERJ) e o Instituto de Cincias Sociais (ICS) de Lisboa.
O objetivo desta pesquisa foi identificar a percepo, os valores e
as prticas vinculadas ao exerccio da cidadania e a dinmica
democrtica nas duas metrpoles. Na metrpole do Rio de Janeiro,
pudemos aplicar o questionrio em uma amostra excedente que nos
permitiu no apenas explorar os indicadores para o conjunto desta
regio, como tambm de-sagregar os dados em grandes reas, visando
explorar eventuais diferen-ciaes na cultura cvico-poltica
fluminense, tendo em vista a diversidade social e urbana da
metrpole. Foram entrevistadas um mil e dez pessoas na Regio
Metropolitana do Rio de Janeiro, que foram selecionadas segundo um
sorteio probabilstico sistemtico dos setores censitrios levando-se
em considerao o total de domiclios de cada setor selecionado. A
amostra foi estruturada por cotas para sexo, idade e escolaridade,
mantendo-se uma margem de erro de cinco pontos percentuais. No que
se refere ao perfil da amostra, temos 52,7% de mulheres e 47,3% de
homens, todos maiores de 18 anos, distribudos entre as seguintes
faixas etrias: 31,1% entre 18 e 29 anos; 32% entre 30 e 44 anos;
21,7% entre 45 e 59 anos; 12,7% entre 60 e 74 anos; e 1,7% com mais
75 anos. Em geral, o nvel de escolaridade dos entrevistados baixo,
prevalecendo pessoas que cursaram at o nvel mdio incompleto (68,5%
da amostra). Tomando como referncia o mo-delo terico da cultura
cvica, no se identificou nesta pesquisa a conexo
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esperada entre a confiana (interpessoal ou poltica), a cultura
cvica e a mobilizao poltica dos indivduos metropolitanos. Este
resultado nos in-centivou a refletir sobre os fundamentos urbanos
desta conexo truncada da cultura poltica na metrpole do Rio de
Janeiro.
No entanto, esse sentimento de desconfiana generalizado em
re-lao s instituies no um fenmeno recente, como nos mostra Jos
Murilo de Carvalho (1987) ao refletir sobre as condies histricas da
instalao da Repblica no Brasil. Segundo Carvalho, esta profunda
trans-formao social resultou num divrcio entre a sociedade poltica
e a so-ciedade urbana da cidade do Rio de Janeiro, gerando uma
cultura poltica empobrecida em termos de virtudes cvicas,
caracterizada pela descon-fiana interpessoal e nas instituies, pelo
distanciamento dos governan-tes em relao ao povo, e pela fragmentao
das formas associativas. No entanto, considera-se que este elemento
histrico transformou-se em rea-lidade social ao gerar uma cultura
poltica e desenhar instituies polticas que reproduzem essa
dissociao, entre a sociedade poltica e a socieda-de urbana no Rio
de Janeiro, com base na reproduo de uma escassez de cidade, metfora
criada por Maria Alice de Carvalho (1995).
Antes de prosseguirmos, importante destacar a relevncia da
cidade para a consolidao das bases da cidadania em contraponto
submisso pessoal. Segundo Weber (2009, p. 427), a cidade ocidental
se caracteri-zou pela substituio da solidariedade hierrquica
baseada nos laos de pertencimento aos grupos de cl por uma
solidariedade horizontal base-ada nas associaes contratuais de
bases territoriais. Essa perda de privil-gios estatutrios gerou,
portanto, um relativo nivelamento social. Ou seja, a cidade
ocidental teria constitudo uma experincia coletiva centrada na
valorizao de indivduos livres e iguais, assim como na existncia de
insti-tuies sociais e polticas geradoras de um sentimento de
autonomia e de integrao a uma comunidade citadina. Como fundamentos
destas trans-
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formaes esto: o surgimento do mercado, da diviso social do
trabalho e um amplo processo de racionalizao cultural, que vai da
instaurao das relaes contratuais adoo de cdigos legais
institucionalizados, passan-do pela reorganizao da dimenso
espao-temporal da vida social.
A leitura atenta deste famoso escrito de Max Weber nos adverte,
po-rm, para o carter histrico dessa relao. Com efeito, nem sempre e
nem em todos os lugares o processo de urbanizao, acompanhado por
uma expanso das relaes mercantis, transformou a cidade em comunas;
isto , numa experincia coletiva fundamentada em instituies que
asseguraram a liberdade e a igualdade moral e ligaram
estruturalmente as dimenses urbes e civitas do fenmeno urbano.
Portanto, imprescindvel considerar a historicidade das trajetrias
de construo das relaes entre a cidade, a emergncia do mercado, e o
surgimento de instituies polticas. Ao longo da histria social e
poltica iniciada com o advento do fenmeno urbano na idade mdia, a
cidade na sua essncia vem sendo produtora das formas mais
significativas de sociedade civil (Ansay, P.; Shoonbrodt, R.
1989).
Porm, no caso das cidades latino-americanas, as investigaes de
Fernando Henrique Cardoso (1975) e Richard Morse (1975) convergiram
para a constatao de que o fenmeno da urbanizao experimentado na
Amrica Latina no realizou as mudanas sociais descritas por Weber;
ou seja, a experincia urbana apesar de ter produzido um ambiente
cultural favorvel disseminao dos valores da liberdade e da
igualdade moral, no conseguiu gerar instituies sociais e polticas
baseadas num sentimen-to de comunidade cvica. com base nesta
constatao que Cardoso cunha a interessante expresso cidade sem
cidadania (Cardoso, 1975, p. 162).
Portanto, frisamos aqui a importncia da insero da dimenso
ur-bana na reflexo sobre os comportamentos polticos orientados para
uma cidadania ativa. Neste ponto incorporamos a metfora da cidade
escas-sa, cunhada por M. A. de Carvalho (1995). Essa metfora
pretende dar
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conta da manifestao no espao das condies sociopolticas que
repro-duzem uma tica que orienta e legitima o comportamento social
baseado na atitude privatista em busca da realizao de interesses
particulares a qualquer custo, nas interaes entre grupos sociais,
na interao entre os indivduos e os grupos, e na interao entre estes
grupos e o poder pblico. Com base nesse raciocnio, entendemos que a
marginalizao de grande parte da populao em relao aos direitos de
cidade ou direitos de cidadania (em latim, civitas) tem como
fundamento a manuteno de fortes desigualdades sociais em termos do
direito cidade. Cidadania aqui entendida enquanto o gozo pleno dos
direitos civis, que garantem a vida em sociedade, dos direitos
polticos, que garantem a participao no go-verno da sociedade, e dos
direitos sociais, que garantem a participao dos indivduos na
riqueza produzida coletivamente (Carvalho, 2001, p. 9-10). Ou seja,
podemos dizer que so as desigualdades de acesso aos elementos que
compem o bem-estar urbano (transportes, saneamento, habitao, etc.)
e de acesso s oportunidades de melhoria das condies de vida
(edu-cao e trabalho) que fundamentam os diferenciais de cidadania
entre os indivduos no espao metropolitano. A hiptese que buscaremos
construir e sedimentar neste trabalho de que o bloqueio ao acesso a
estes recur-sos implica na insero de grande parte da populao
metropolitana nas inmeras redes de subordinao pessoal presentes na
base da sociedade carioca, o que favoreceria a manuteno no tempo de
instituies polticas que reproduzem essa dissociao (das mquinas
partidrias clientelsticas s entidades assistencialistas mantidas
por parlamentares).
Esta cultura poltica estaria, portanto, na base dos
comportamentos dos agentes que controlam os circuitos da contraveno
e do crime, na permanente subordinao pessoal daqueles desprovidos
de recursos para o exerccio do poder, por meio de mecanismos e
condies que repro-duzem relaes de hierarquia e patronagem que
integram de maneira
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subordinada e seletiva aqueles que esto na margem da cidade
escassa. Contudo, tais relaes seriam necessrias na medida em que os
margi-nalizados da cidade, sendo portadores de direitos polticos
formais, so chamados a validar um sistema representativo incapaz de
universalizar os interesses particulares. Em outras palavras,
atravs da manuteno da hierarquia e por meio da patronagem que os
marginalizados passam a fazer parte da cidade escassa; porm, essa
integrao se d de forma subordinada aos donos do poder, e por meio
de dinmicas fragmenta-doras da coeso social, j que a escassez de
cidade proporciona chances desiguais para que os indivduos
desprovidos de poder tenham seus inte-resses e demandas atendidos.
Com isso, fecha-se o circuito: os que esto na margem da cidade
devem tambm estabelecer entre si um diferencial de poder a fim de
assegurar uma parcela da acumulao dos escassos recursos urbanos
(transporte, saneamento, pavimentao, habitao, es-cola, etc.), mesmo
que isso signifique a ilegalidade.
Na constituio e reproduo da cidade escassa, trs elementos tm
importncia e atuam reforando-se mutuamente. O primeiro relaciona-se
formao histrico-geogrfica da cidade. O stio acidentado em que a
ci-dade est fundada, associado a sua histria social, facilitou a
constituio de mundos sociais distanciados do ponto de vista
territorial com a separao das elites e as camadas populares,
especialmente com a exploso demogr-fica do final do sculo XIX. O
segundo tem a ver com a geografia social da cidade que alimentou,
durante muitos anos, intensas desigualdades sociais expressas
especialmente nas desigualdades urbanas. Essa geografia social teve
como base o modelo de poltica de tolerncia total com a ilegalidade
da propriedade da terra, atravs da aceitao tcita pelo poder pblico
dos processos de favelizao e de construo de loteamentos ilegais e
clandes-tinos nas reas perifricas. A precariedade das condies
urbanas a que foi submetida grande parte da populao da metrpole do
Rio de Janeiro
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expressa a no universalizao de direitos bsicos de cidadania
necessrios proteo e autonomizao dos indivduos perante aqueles que
detm o poder. Os efeitos dessa geografia social na reproduo do
poder so catas-trficos. Tomando como referncia o citado trabalho de
Reinhard Bendix (1996), podemos dizer que a legitimidade da
autoridade pblica na cidade do Rio de Janeiro no se fundou na
permuta entre o consentimento da subordinao ao Estado e a proteo
dos direitos pblicos neste caso os direitos urbanos que colocasse
os indivduos (e grupos) ao abrigo das re-laes de poder. A
importncia da manuteno da ilegalidade e mesmo da irregularidade da
posse da terra na constituio de frgil cultura cvica das nossas
cidades no foi objeto de merecidas reflexes aprofundadas por par-te
da sociologia poltica3. Por cultura cvica frgil estamos nos
referindo ao baixo grau de conscincia de deveres e direitos com
relao aos interesses gerais da sociedade, encarnados pelo Estado.
Ao contrrio, o Estado teve que buscar outras formas de legitimao
baseadas no binmio submisso-favor entre as camadas populares e os
agentes do poder pblico. Por fim, O terceiro elemento seria a
violncia como forma de sociabilidade que, segundo Maria Alice
Rezende de Carvalho (1995), decorrente da frgil legitimidade do
Estado. Neste sentido, o texto abaixo transcrito sintetiza bem o
pensamento da autora:
3 Em parte, a pouca ateno concedida a este tema pela sociologia
deve-se associao abu-siva entre os direitos de propriedade privada
e a ideologia do individualismo possessivo. Em texto relativamente
recente, Robert Castel, fazendo uma reflexo sobre a insegurana
social contempornea, a partir de atenta leitura de clssicos da
sociologia poltica (como Locke), nos brinda com interessantes e
instigantes pginas sobre como foi necessrio a disseminao da concepo
do direito de propriedade privada como proteo dos indivduos contra
os arbtrios da dominao pessoal para que, posteriormente, se
institusse na sociedade a noo de pro-priedade social que funda o
contrato social do Estado do Bem-Estar (Castel, 2003).
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Com base, ento, nesse quadro de referncia, sublinharei uma
dimenso poltica do problema da violncia, chamando a ateno menos
para os riscos conjunturais que um fen-meno dessa extenso pode
introduzir na conduo demo-crtica do governo, e mais para o problema
da autonomiza-o crescente da organizao social em relao ao quadro
poltico-institucional. Quero dizer que a violncia nas gran-des
cidades brasileiras est associada baixa legitimao da autoridade
poltica do Estado, cujo privatismo congnito estreitou
excessivamente a dimenso da polis, condenando praticamente toda a
sociedade condio de brbaros. A ex-presso cidade escassa refere-se a
isto, ou seja, dimenso residual da cidadania e, portanto, sua parca
competncia para articular os apetites sociais vida poltica
organizada isto que, no mundo das ideias polticas, caracteriza a
cidade liberal-democrtica. (Carvalho, 1995, p. 4)
Em resumo, no contexto da cidade escassa, o Estado no se
orien-ta para o uso da autoridade consentida com vistas generalizao
de um pacto social estvel e universalista, pelo contrrio, a
experincia social passa a se organizar com base em intensa
fragmentao de juzos. Nesse sentido, a evoluo poltica carioca e o
padro de tica social que de-riva dela podem ser apresentados como
uma histria de variados tipos de nexo entre indivduos, grupos, e a
esfera estatal, que, embora mais recentemente tenha propiciado
alguma integrao social, no inscreveu a poltica representativa como
a arena privilegiada para a resoluo de demandas por parte dos
marginalizados. Como aponta Carvalho (1995, p. 4), o resultado
desse processo se traduziria, hoje, em duas prticas facilmente
identificveis: de um lado, a apatia da sociedade em re-lao atuao na
esfera pblica; e de outro, no comportamento da parcela mais pobre
da populao que espera ser capturada pela malha do clientelismo
urbano, agora exercido no apenas pelos seus agentes tradicionais,
mas tambm por segmentos da burocracia estatal, igrejas e organizaes
no-governamentais, cuja ao em meio carncia tende a
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confirmar estratgias de uma racionalidade perversa, pois so
orientadas para a manuteno dos vnculos de clientela. com base nesse
quadro de referncia que buscamos refletir sobre alguns indicadores
relativos s desigualdades das pr-condies do exerccio da cidadania e
aos diferen-ciais de intensidade de modalidades do exerccio da
cidadania no interior da metrpole fluminense.
2. Cultura Poltica Escassa na Metrpole Fragmentada
Uma das dimenses explicativas da hiptese da escassez de cida-de
enunciada por Maria Alice de Carvalho o surgimento de uma orien-tao
poltica voltada mais para a resoluo individualista dos conflitos do
que pela resoluo compartilhada destes, destacando o fato de que
esta orientao poltica predatria estaria fundamentada na organizao
socioespacial da metrpole fluminense. Com base nesta perspectiva,
con-sideramos que uma anlise mais profunda das possveis variaes
internas da cultura poltica na metrpole fluminense poderia nos
ajudar a pensar os efeitos dessa organizao socioespacial
fragmentada sobre a confor-mao dos padres de comportamento, crenas,
valores e atitudes em relao poltica. A hiptese que as reas
segregadas da metrpole so propcias para o surgimento de uma cultura
da desconfiana, seja nas interaes sociais, seja na interao com as
instituies polticas; assim como, para a manuteno de prticas
polticas orientadas menos para a representao poltica formal e mais
para a resoluo negociada das suas necessidades e carncias, de
infraestrutura e/ou de bem-estar urbano.
Para isso, veremos como se configura essa organizao
socioespacial da metrpole fluminense em termos do nvel de renda, de
acordo com a distribuio da mdia do rendimento familiar per capita
de acordo com as reas internas da metrpole; do nvel de
escolaridade, de acordo com
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a distribuio da mdia por rea da mdia dos anos de estudo dos
adultos nos domiclios que compem essas reas; e por meio da
distribuio das carncias de uma infraestrutura de servios pblicos
(Corra, 2011, p. 101).
Em primeiro lugar, calculamos a mdia dos diferentes nveis de
rendi-mento familiar per capita por rea de ponderao do Censo
Demogrfico de 2000, e em seguida, a fim de facilitar a visualizao
da distribuio da renda familiar per capita pelo espao metropolitano
dividimos esta distri-buio em quartis, o que nos permite
classificar essas reas em quatro nveis de renda (baixa, mdio-baixa,
mdio-alta, e alta). A espacializao dos quartis de renda familiar
per capita para as reas de ponderao da RMRJ indica que, apesar do
dinamismo econmico crescente de muni-cpios da baixada fluminense
como Nova Iguau e Duque de Caxias, a distribuio espacial da renda
ainda apresenta um marcado padro centro-periferia, com alguma
elevao na renda nas reas centrais dos municpios do entorno
metropolitano; porm, a grande maioria das reas dos munic-pios do
entorno apresentam um nvel de renda entre mdio-baixo e baixo.
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Figura 1. reas de ponderao da RMRJ segundo os nveis de renda
familiar per capitaFonte: Corra, 2011
Em seguida apresentamos a classificao das reas da metrpole
flu-minense de acordo com a mdia dos anos de estudo dos adultos
(indiv-duos acima de 25 anos) nos domiclios, essa varivel conhecida
como clima educativo domiciliar. Estudos recentes sobre segregao
residencial e desigualdades sociais tm destacado a capacidade desta
varivel em sintetizar as desigualdades sociais expressas no
territrio, pois apresenta resultados significativos sobre o
rendimento escolar de crianas e adoles-centes e sobre as chances de
jovens e adultos acessarem oportunidades de emprego de qualidade e
bem remunerados (Ribeiro e Koslinski, 2010; Ribeiro, Rodrigues e
Corra, 2010; Zuccarelli e Cid, 2010). A espacializa-
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o dos quartis do clima educativo domiciliar indica a assimetria
da dis-tribuio desta varivel entre as diferentes reas do espao
metropolitano j que a mdia do clima educativo no quartil mais baixo
(5,05 anos de estudo) praticamente a metade da mdia do clima
educativo no quartil mais elevado (10,17 anos de estudo).
Figura 2. reas de ponderao da RMRJ segundo os nveis do clima
educativo domiciliar mdio
Fonte: Corra, 2011
Para identificarmos a distribuio espacial das carncias de
servios de infraestrutura, criamos um ndice composto que tem como
objetivo discrimi-nar o percentual de pessoas nas reas de ponderao
vivendo em domiclios que apresentam carncia de pelo menos um servio
de infraestrutura como
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Figura 3. reas de ponderao da RMRJ segundo os quartis do ndice
de carncia de infraestrutura
Fonte: Corra, 2011
4 A construo deste ndice composto importante por dois motivos:
primeiro, porque nos permite identificar as reas da RMRJ que
apresentam as situaes mais crticas em termos do atendimento de
condies mnimas de infraestrutura; E, segundo, porque nos permite
identi-ficar a sobreposio de diferentes carncias em uma mesma rea,
j que algumas reas sofrem mais com um tipo de carncia do que
outras.
abastecimento de gua, esgotamento sanitrio, e coleta de lixo 4.
Constata-mos que 25% das reas de ponderao da RMRJ apresentavam em
2000 um ndice de carncia variando entre 24,02% e 79,35% de pessoas
residindo em domiclios com alguma das quatro situaes de carncia
(Figura 3). No-vamente, as reas mais carentes de infraestrutura na
RMRJ se localizam em grande parte nos municpios perifricos da RMRJ.
Em alguns municpios todas as reas de ponderao apresentaram 24,02%
ou mais de pessoas residindo em domiclios com alguma carncia de
servios de infraestrutura.
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SOCIOLOGIAS172
A partir desta caracterizao do espao metropolitano fluminense
com base em variveis socioeconmicas como renda e escolaridade,
as-sim como pelo nvel de carncia de servios de infraestrutura
possvel perceber que esta organizao socioespacial metropolitana se
caracteriza por uma marcada fragmentao social. Da mesma forma, de
acordo com Preteceille e Ribeiro (1999), Ribeiro (2000) e Ribeiro e
Lago (2001), uma anlise da estrutura social metropolitana baseada
em categorias scio-ocupacionais, revela que a regio metropolitana
fluminense um espao fortemente organizado de acordo com um sistema
de distncias e opo-sies sociais que fragmenta os diferentes grupos
do espao social pelo espao fsico da metrpole. De acordo com estes
autores, as classes su-periores ou seja, os grupos de indivduos que
compartilham de gran-des quantidades de capital econmico, social e
cultural da metrpole fluminense localizam-se quase que
exclusivamente nas reas da chamada zona sul da cidade do Rio de
Janeiro, enquanto que as classes popu-lares localizam-se
predominantemente nos espaos perifricos da regio metropolitana e em
parte da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro; e, ambas se
distanciam em alguma medida dos segmentos mdios da estru-tura
social que se localizam predominantemente nos espaos suburbanos
onde a configurao social , no entanto, menos definida. Ou seja, h
uma ntida projeo das linhas divisrias da sociedade fluminense no
seu espao fsico, de tal modo que morar em um lugar ou outro da
metr-pole demonstra a sua posio na estrutura. essa dinmica de
constante separao no espao de grupos sociais diferentes entre si, e
de agregao de grupos sociais parecidos que estes autores chamam de
segregao re-sidencial (ou segregao socioespacial). Segundo esses
autores, esses pro-cessos de auto-segregao ou segregao compulsria
dos grupos sociais no espao so tpicos do modelo de urbanizao das
grandes cidades e com consequncias ainda mais perversas no caso
brasileiro; j que, de
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SOCIOLOGIAS 173
acordo com Ribeiro (2004, p. 34), os resultados deste modelo de
se-gregao socioespacial refletem a nossa ordem social hbrida, na
qual, por um lado, existe uma lgica social que distribui recursos
de poder de acordo com uma escala de honra e prestgio social, ao
mesmo tempo em que uma lgica econmica, competitiva e
individualista, distribui recur-sos de poder de acordo com a
autonomia e capacidade dos indivduos. Portanto, essa ordem espacial
reflete os resultados de uma ordem social altamente hierrquica e
desigual que se entranha na prpria lgica de funcionamento do poder
pblico nas suas diversas esferas e rgos de atuao sobre o
ordenamento socioespacial. O resultado disso, ao que tudo indica, a
reproduo das desigualdades de poder pela reproduo das desigualdades
sociais, hiptese que retomaremos mais a frente. Antes, necessrio
retornarmos dimenso da cultura poltica agora pensada numa
perspectiva intrametropolitana.
Uma desagregao dos indicadores de cultura poltica o primeiro
passo para a busca de evidncia acerca da relao entre uma organiza-o
socioespacial fragmentada e a conformao dos padres diferencia-dos
de comportamento, crenas, valores e atitudes em relao poltica. Para
isso, dividimos os dados coletados pelo survey anteriormente citado
em trs reas, de acordo com os seguintes critrios: (a) a estrutura
social destas reas; (b) as formas predominantes de ocupao e uso do
solo e de produo da moradia; (c) a concentrao (ou carncia) de
bem-estar social urbano; e (d) as conexes com as reas centrais da
metrpole. O que resultou na identificao das seguintes reas: (1)
Ncleo: Composto pelos bairros da Zona Sul da Cidade do Rio de
Janeiro, e mais a Barra da Tijuca, a Grande Tijuca e Niteri, onde
se concentra a maior parte das camadas superiores da estrutura
social metropolitana, o que confere a esta rea um forte poder
social, exercido pela capacidade de conexo com o poder poltico
atravs de mecanismos como a presena na mdia e
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Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p.
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SOCIOLOGIAS174
acionamento das redes sociais; o (2) Subrbio: Onde se concentra
parte da classe mdia tradicional e da classe operria, misturada com
reas de favela; e a (3) Periferia que compreende a Zona Oeste do
Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense, ambas apresentam as maiores
concentraes das camadas populares na metrpole e se caracterizam
pela presena de di-nmicas localistas de exerccio do poder, como a
hegemonia de estruturas familsticas que controlam o poder local na
Baixada Fluminense.
Quando desagregamos os indicadores de confiana interpessoal de
acordo com as reas da metrpole, o sentimento de desconfiana aparece
com mais fora na Periferia do que no Ncleo e no Subrbio da
metrpo-le5. Na Periferia, mais da metade da populao acredita que
quase sem-pre as pessoas tentaro tirar vantagem de alguma situao. J
a dimenso mais abstrata da confiana apresenta uma diferena moderada
entre as reas, no entanto, mais da metade da populao da Periferia
tambm acredita que quase sempre todo cuidado pouco com as pessoas.
Ou seja, se a desconfiana nas interaes sociais algo predominante na
me-trpole, ela mais intensa nas reas mais perifricas, o que
corresponde a uma das principais evidncias no sentido da hiptese da
cidade escassa.
5 Importante ressaltar que as distribuies de frequncia dos
indicadores de cultura poltica apresentadas nesta seo apenas
ilustram as variaes nas respostas que compem os indica-dores quando
consideramos as divises internas da RMRJ. Para um maior controle
estatstico destas comparaes utilizamos as mdias dos indicadores e
os seus respectivos testes de An-lise de Varincia a fim de
identificar as variaes significativas entre os resultados
encontrados para as diferentes reas (Conferir o Anexo).
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SOCIOLOGIAS 175
Tabela 1. A confiana interpessoal nas reas da RMRJ
Pessoas tentaro tirar vantagem*
As pessoas so confiveis**
Ncleo Subrbio Periferia Ncleo Subrbio Periferia
Quase sempre 38,6 37,4 53,2 Quase sempre 7,0 2,4 4,5
Algumas vezes 34,6 32,3 22,7 Algumas vezes 20,0 10,6 17,1
Justas algumas vezes 16,7 23,2 16,6
Algumas vezes todo cuidado
pouco
30,4 40,8 25,5
Justas quase sempre 10,1 7,1 7,6
Quase sempre todo
cuidado pouco
42,6 46,3 52,9
Total 100 100 100 Total 100 100 100
(*) Acha que as pessoas tentaro tirar vantagem quando puderem,
ou acha que elas tentaro ser justas?(**) Acha que pode confiar nas
pessoas, ou, pelo contrrio, todo cuidado pouco?Fonte: Pesquisa
Observatrio das Metrpoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.
Quando especificamos a confiana em relao classe poltica, os
resultados indicam um sentimento generalizado de desconfiana acerca
de uma conduta tica e eficiente por parte dos governantes entre as
reas da RMRJ, principalmente quando consideramos as opinies acerca
da busca de vantagens pessoais por parte dos governantes. A anlise
mais detida dos dados indica que os moradores do Ncleo da RMRJ
tendem a ser mais crticos em relao a uma conduta eficiente por
parte da classe poltica do que os moradores do Subrbio e os da
Periferia, no entanto, a anlise das mdias das respostas no
apresentou diferenas significativas.
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SOCIOLOGIAS176
Tabela 2. A confiana poltica nas reas da RMRJ
As pessoas no governo faro o que certo* A maioria dos polticos
procura obter vantagens pessoais**
Ncleo Subrbio Periferia Ncleo Subrbio Periferia
Concorda totalmente 7,1 11,2 8,7 65,8 63,3 67,6
Concorda em parte 16,4 6,2 6,3 17,5 20,1 9,9
Nem concorda nem discorda 13,7 8,9 15,4 9,6 4,6 13,4
Discorda em parte 19,5 29,3 33,1 4,8 7,3 5,9
Discorda totalmente 43,4 44,4 36,6 2,2 4,6 3,2
Total 100 100 100 100 100 100
(*) Em geral,pode-se confiar que as pessoas no governo faro o
que certo,(**) A maior parte dos polticos est na poltica para obter
vantagens pessoais,Fonte: Pesquisa Observatrio das Metrpoles,
IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.
Apesar da existncia de indcios da lgica da desconfiana nas
atitu-des do morador da RMRJ, paradoxalmente ele tem internalizado
elevado grau do que a literatura chama de virtudes cvicas, ou seja,
tem como referncias os valores esperados de quem se sente integrado
a uma co-munidade poltica. O posicionamento dos cidados
metropolitanos em relao a comportamentos considerados cvicos indica
mais uma preocu-pao com os mais necessitados (do Brasil e do Mundo)
do que a valoriza-o de um posicionamento poltico mais consistente
como a participao em associaes, sindicatos ou partidos polticos, ou
mesmo o consumo consciente do ponto de vista tico e ambiental.
Porm, neste caso in-teressante perceber que h uma maior atribuio de
importncia cvica para esses comportamentos na Periferia do que no
Ncleo da RMRJ, o que relativiza a polarizao entre as duas reas, em
termos de cultura cvica. De certo modo, o que este resultado indica
a tendncia a uma menor valorizao de condutas cvicas no Ncleo da
RMRJ, principal-mente em relao ajuda aos mais necessitados, o que
indica em grande medida um comportamento mais individualista.
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SOCIOLOGIAS 177
Tabela 3. As virtudes cvicas nas reas da RMRJ
Escala de Importncia*
Ncleo Subrbio Periferia
Pouco Imp. Imp.
Muito Imp.
Pouco Imp. Imp.
Muito Imp.
Pouco Imp. Imp.
Muito Imp.
Ajudar as pessoas no Brasil que vivem pior que voc 5,7 17,0 77,3
3,1 14,7 82,2 4,9 10,1 85,0
Ajudar as pessoas no Mundo que vivem pior que voc 8,3 21,4 70,3
5,8 17,8 76,4 3,2 11,8 85,0
Obedecer sempre s leis e aos regulamentos 10,0 20,5 69,4 8,1
20,9 70,9 6,3 17,5 76,2
Tentar compreender a maneira de pensar das pessoas com opinies
diferentes das suas
8,8 18,5 72,7 11,3 27,2 61,5 7,6 18,2 74,1
Manter-se informado sobre as atividades de governo 17,1 16,7
66,2 10,1 31,9 58,0 9,6 17,7 72,7
Nunca sonegar impostos 11,0 18,4 70,6 15,9 21,3 62,8 9,0 19,5
71,5
Estar disposto a prestar o servio militar quando for preciso
24,1 25,9 50,0 23,4 21,9 54,7 15,4 16,4 68,1
Votar sempre nas eleies 18,3 20,4 61,3 13,1 25,0 61,9 16,8 20,2
63,0
Escolher produtos por razes polticas, ticas ou ambientais 21,2
34,1 44,7 32,9 34,5 32,5 14,8 32,5 52,7
Participar em associaes, sindicatos e partidos 23,3 30,8 45,8
25,1 42,7 32,2 18,3 34,1 47,7
(*) H muitas opinies diferentes sobre o que se deve fazer para
ser um bom cidado, numa escala de 1 a 7, em que 1 significa nada
importante e 7 muito importante, que importncia o(a) Sr.(a) atribui
pesso-almente a cada um dos seguintes aspectos?Fonte: Pesquisa
Observatrio das Metrpoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.
De acordo com essa hiptese clssica do comunitarismo cvico
(Pu-tnam, 1996), o sentimento de pertencimento a uma comunidade
cvica seria contraditrio com a existncia de elevados graus de
desconfiana interpessoal e poltica. Com base na constatao deste
paradoxo, pode-ramos ensaiar duas explicaes: a primeira seria de
que este paradoxo estaria confirmando a existncia da dissociao
entre sociedade civil e a sociedade poltica anteriormente citada
por J. M. de Carvalho (1987). A segunda explicao seria a
identificao de um cinismo cvico como
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SOCIOLOGIAS178
padro de comportamento predominante entre os cidados da
metrpo-le do Rio de Janeiro. A base deste comportamento seria a
valorizao de uma conduta condizente com os ideais democrticos, ao
mesmo tempo em que predomina um nvel bastante elevado de
desconfiana poltica resultado do funcionamento precrio das
instituies e a predominncia da luta de todos contra todos pelos
bens escassos, de acordo com a tese do hobesianismo social de
Santos(1993) , e um nvel elevado de des-confiana nas relaes
interpessoais por conta da difuso do compor-tamento social
individualista e predatrio que valoriza a dimenso fami-liar em
detrimento da esfera pblica, de acordo com a tese do familismo
amoral aplicado ao caso brasileiro por Reis (1995).
Uma maneira de testar essa primeira hiptese explicativa seria
verifi-car a relao entre a manifestao das virtudes cvicas e o
engajamento dos cidados em aes de participao sociopoltica. De
acordo com o previsto pela literatura, devemos esperar que quanto
mais intenso o sentimento de obrigaes do cidado com relao
comunidade poltica, maior seria o seu ativismo das esferas social
(associativismo) e poltica (mobilizao poltica)
A anlise da Tabela 4 indica, contudo, a baixa insero dos
moradores da metrpole em associaes cvicas clssicas que propiciam a
formao de um capital social constitudo pela insero em redes sociais
fundadas em la-os fortes (Granovetter, 1973). Apenas a participao
religiosa, modalidade dotada de altas doses de comunitarismo,
apresentou nveis considerveis, porm, esta modalidade de
associativismo apresenta dificuldades em con-ciliar essa integrao
social em comportamento poltico consistente com uma perspectiva
democrtica mais ampla. Por outro lado, h uma maior incidncia de
pertencimento s formas associativas de maior potencial po-ltico
(partidos polticos, sindicatos, grmios e associaes profissionais)
no Ncleo da RMRJ, ao passo que o pertencimento a organizaes
religiosas aumenta na Periferia, o que sugere a existncia de uma
clara segmentao intrametropolitana das formas associativas de
participao poltica.
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SOCIOLOGIAS 179
Tabela 4. O Associativismo nas reas da RMRJ
Pertencimento a associaes*
Ncleo Subrbio Periferia
Sim Alguma vez
Nunca Sim Alguma vez
Nunca Sim Alguma vez
Nunca
Partido poltico 5,4 11,2 83,5 3,8 9,2 86,9 3,3 5,3 91,4
Sindicato, grmio ou associao pro-
fissional
11,0 20,2 68,9 8,4 16,5 75,1 9,0 10,4 80,6
Igreja ou outra organi-zao religiosa
30,1 21,0 48,9 29,9 27,6 42,5 40,4 20,9 38,8
Grupo desportivo, cultural ou recreativo
14,8 19,1 66,1 6,5 18,8 74,6 8,8 7,6 83,6
Outra associao voluntria
10,8 9,9 79,3 4,9 12,2 82,9 4,6 4,6 90,8
(*) Por vezes as pessoas participam em grupos ou associaes. Para
cada um dos grupos (a) partido po-ltico, (b) sindicato, grmio ou
associao profissional, (c) igreja ou outra organizao religiosa, (d)
grupo desportivo, cultural ou recreativo, e (e) outra associao
voluntria, diga se (i) participa ativamente; (ii) pertence, mas no
participa ativamente; (iii) j pertenceu; ou (iv) nunca
pertenceu.Obs.: os percentuais referentes s respostas (i) e (ii)
foram agrupados na categoria Sim, j o percentual referentes
resposta (iii) corresponde categoria Alguma vez, e o percentual
referente resposta (iv) corresponde categoria Nunca.Fonte: Pesquisa
Observatrio das Metrpoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.
Os dados de mobilizao poltica tambm indicam um baixo nvel de
mobilizao para fins polticos por parte dos indivduos residentes na
RMRJ. As duas modalidades que apresentaram maior taxa de participao
foram assinatura de petio ou abaixo-assinado e participao em
comcios ou reunies poltica, que de acordo com Azevedo e outros
(2009, p. 710) caracterizam-se por um baixo custo de engajamento
por serem vistos como eventos efmeros no caso das assinaturas ou
pela perda considervel do significado poltico dos comcios a partir
da popularizao dos chamados showmcios, o que justificaria os
elevados percentuais para as duas moda-lidades. No entanto,
interessante notar que as trs ltimas modalidades de mobilizao
poltica (Dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa
pblica, Contatar ou aparecer na mdia para exprimir as suas opi-
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Sociologias, Porto Alegre, ano 14, no 30, mai./ago. 2012, p.
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SOCIOLOGIAS180
nies e Participar num frum ou grupo da internet) apresentam taxa
de participao significativamente maior no Ncleo da RMRJ do que nas
de-mais reas, assim como o boicote a produtos e a participao em
manifes-taes. Deste modo, podemos dizer que tambm h fortes indcios
de uma segmentao das formas de mobilizao poltica, principalmente
daquelas modalidades que exigem maior engajamento sociopoltico.
Tabela 5. O Associativismo nas reas da RMRJ
Participao em mobilizaes polticas nos ltimos anos*
Ncleo Subrbio Periferia
Sim No Sim No Sim No
Assinar uma petio ou fazer um abaixo-assinado 38,9 61,1 36,9
63,1 35,3 64,7
Boicotar ou comprar determinados produtos, por razes polticas,
ticas ou ambientais 20,9 79,1 15,0 85,0 14,4 85,6
Participar numa manifestao 26,3 73,7 19,5 80,5 14,9 85,1
Participar num comcio ou numa reunio poltica 24,6 75,4 20,8 79,2
22,0 78,0
Contatar, ou tentar contatar, um poltico ou um funcio-nrio do
governo para expressar seu ponto de vista 10,9 89,1 7,8 92,2 8,3
91,7
Dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa pblica
11,4 88,6 3,8 96,2 5,5 94,5
Contatar ou aparecer na mdia para exprimir as suas opinies 8,3
91,7 2,7 97,3 2,2 97,8
Participar num frum ou grupo de discusso atravs da internet 9,2
90,8 6,1 93,9 2,2 97,8
(*) Abaixo so listadas algumas formas de ao poltica e social que
as pessoas podem ter. Por favor, indi-que, para cada uma delas: a)
assinar uma petio ou fazer um abaixo-assinado, b) boicotar ou
comprar determinados produtos, por razes polticas, ticas ou
ambientais, c) participar numa manifestao, d) participar num comcio
ou numa reunio poltica, e) contatar, ou tentar contatar, um poltico
ou um funcionrio do governo para expressar seu ponto de vista, f)
dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa pblica, g)
contatar ou aparecer na mdia para exprimir as suas opinies, h)
participar num frum ou grupo de discusso atravs da internet, tendo
como opes: (i) fez no ltimo ano; (ii) fez nos anos anteriores;
(iii) nunca fez mas poderia fazer; e (iv) nunca o faria.Obs: os
percentuais referentes s respostas (i) e (ii) foram agrupados na
categoria Sim e os referentes s respostas (iii) e (iv) foram
agrupados na categoria NoFonte: Pesquisa Observatrio das Metrpoles,
IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.
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Portanto, resta saber como essas tendncias e contradies para o
surgimento de uma cultura cvica na RMRJ esto relacionadas com a
pre-disposio para a mobilizao poltica dos indivduos considerando-se
as reas da RMRJ. No Quadro 1 adiante, apresentamos os resultados
dos efeitos de algumas variveis condicionantes do nvel de mobilizao
po-ltica dos indivduos metropolitanos. Nosso objetivo, no entanto,
no esgotar as possibilidades explicativas da mobilizao poltica, o
que fugiria aos objetivos do presente artigo, mas sim, levantar
evidncias empricas da importncia da considerao da diversidade
socioespacial da RMRJ e seus impactos sobre o comportamento poltico
com vistas conforma-o de uma cultura cvica participativa. Ou seja,
conforme verificamos nas anlises descritivas anteriormente
apresentadas, no s os indicado-res de cultura poltica variam entre
os indivduos, como tambm, temos como hiptese que essas variveis se
articulam de maneira diferenciada de acordo com a origem espacial
destes.
Sendo assim, no Quadro 1 vemos que a confiana poltica
invaria-velmente no significativa no seu efeito sobre a mobilizao
poltica, mui-to em parte pelo fato de que essa experincia de
desconfiana em relao classe poltica perpassa toda a sociedade em
nveis bastante elevados, por outro lado, a confiana interpessoal no
Subrbio e na Periferia apre-senta correlao significativa e inversa
com a mobilizao poltica. Outro exemplo, no Ncleo da RMRJ
identificamos um peso maior do nvel de escolaridade e da experincia
associativa para a explicao do grau de mobilizao dos indivduos,
enquanto que na Periferia os indicadores de socializao primria e
interesse na poltica apresentam ganhos explica-tivos maiores do que
o nvel de escolaridade dos indivduos. Em resumo, os dados indicam
que se a desconfiana um elemento desmobilizador, por outro lado
existem outras variveis de cultura poltica que podem compensar este
efeito. Disso decorre que, caso estas variveis tambm es-
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tejam distribudas de maneira desigual no territrio, como a
escolaridade, o grau de interesse na poltica, o grau de socializao
primria e o nvel de associativismo, ento devemos considerar que o
efeito desmobilizador da cultura da desconfiana ser mediado em
alguma medida pelo lugar de origem dos indivduos na metrpole, ou
seja, pelos diferentes nveis de cultura cvica que essa relao com o
territrio proporciona.
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Quadro 1. Condicionantes6 da mobilizao poltica nas reas da
RMRJ
Ncleo Subrbio Periferia
1 bloco: 0,201*** 0,138* 0,102**
Escolaridade (0,024) (0,024) (0,021)
2 bloco 0,141* n.s. 0,215***
Socializao primria (0,042) (0,036) (0,024)
3 bloco n.s. 0,210** n.s.
Socializao secundria (0,049) (0,047) (0,032)
4 bloco 0,129* n.s. 0,161***
Interesse na poltica (0,037) (0,036) (0,024)
5 bloco: 0,140* n.s. 0,150***
Virtude cvica (0,029) (0,025) (0,017)
6 bloco: n.s. -0,155** -0,099*
Confiana interpessoal (0,052) (0,043) (0,029)
7 bloco: n.s. n.s. n.s.
Confiana poltica (0,037) (0,029) (0,021)
8 bloco: 0,291*** 0,307*** 0,272***
Associativismo (0,062) (0,064) (0,045)
R Ajustado 35% 32% 29%
Nmero de casos 1.010 1.010 1.010
Acrscimo no R
Ajustado
1 bloco 12% 9% 5%
2 bloco 11% 7% 10%
3 bloco 2% 7% 2%
4 bloco 1% 0% 2%
5 bloco 4% 0% 3%
6 bloco 1% 4% 1%
7 bloco 1% 0% 1%
8 bloco 7% 8% 7%
6 Alm das variveis anteriormente apresentadas, acrescentamos as
seguintes condicionantes da mobilizao poltica: a (1) escolaridade
que foi construda a partir do nvel de escolaridade declarado pelo
respondente, considerando as seguintes faixas: (i) sem instruo,
(ii) baixo n-
Nota: Os valores so coeficientes de regresso padronizados
(betas) estatisticamente significativos. * p 0,05; ** p 0,01; *** p
0,001; n.s. = p > 0,05.Fonte: Pesquisa Observatrio das
Metrpoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.
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SOCIOLOGIAS184
vel de instruo, (iii) acima do baixo nvel de instruo, (iv) nvel
secundrio de instruo, (v) acima do nvel secundrio de instruo, (iv)
superior completo; a (2) a socializao primria, composta pela mdia
das respostas s perguntas: Quando o Sr.(a) tinha 14/15 anos, com
que frequncia se falava de poltica em sua casa e E na
escola/universidade, com que frequncia se fala, ou se falava, de
poltica, tendo como opes: (i) frequentemente, (ii) algumas vezes,
(iii) raramente, e (iv) nunca; a (3) a socializao secundria
composta pela mdia das respostas s perguntas: hoje em dia, fora dos
meios de comunicao (televiso, rdio e jornais), com que frequncia
ouve falar de assuntos polticos em cada um dos seguintes locais: a)
no local de trabalho, b) nos encontros com os amigos, c) em sua
casa ou de seus familiares, d) em reuni-es associativas, e) em
conversas com vizinhos, tendo como opes: (i) frequentemente; (ii)
algumas vezes; (iii) raramente; e (iv) nunca; e (4) o interesse na
poltica composto pela mdia das respostas pergunta: O Sr(a) diria
que interessado em poltica, tendo como opes: (i) muito interessado;
(ii) interessado; (iii) no muito interessado; e (iv) no tem
interesse nenhum.7 A partir dos locais de votao geocodificados na
RMRJ, construiu-se o ndice do nmero efetivo de candidatos (Ncand)
por locais de votaopara cada local, cujo objetivo ter uma
estimativa do nmero mdio de candidatos que adquirem votao
expressiva que os torna competitivos naquele local de votao,
portanto, permite a identificao do grau de competi-
Alm desta fragmentao da confiana interpessoal e das virtudes
cvicas tidas pela literatura como base para um comportamento mais
ativo politicamente orientado por uma cultura cvica consistente,
evidncias recentes apontam para algo que pode ser considerado um
dos resultados mais diretos desse diferencial na conformao da
cultura poltica na me-trpole. Na sequncia, buscaremos levantar
evidncias empricas que nos ajudem a ilustrar os impactos dessa
configurao diferenciada da cultura poltica dos cidados
metropolitanos fluminenses sobre o comportamento poltico, neste
caso, o voto. Tomamos como hiptese que as escolhas de voto em
eleies proporcionais levam em considerao no seu clculo imediato a
cultura poltica dos indivduos mediada pela sua experincia com o
territrio, o que proporcionaria diferentes maneiras de se
relacio-nar com as formas representativas do poder.
A ttulo de exemplo, uma anlise desagregada sobre os resultados
eleitorais para deputado estadual, considerando-se o recorte
metropolita-no, aponta para uma diferena significativa no nmero de
competidores por votos entre as diferentes reas da metrpole. A
partir da distribuio territorial do grau de competitividade por
votos7 nos locais de votao da
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RMRJ, Corra (2011, p. 99) realizou uma classificao das reas
intraurba-nas8 da metrpole do Rio de Janeiro. Essa classificao teve
como resul-tado quatro tipos de reas, sendo a varincia intragrupos
de 38% e uma varincia intergrupos de 62%. A partir do resultado
espacializado dessa classificao do grau de competitividade na
disputa eleitoral na metrpo-le (Figura 4), pode-se perceber que h
uma desigualdade na distribuio dessa competio por votos entre as
reas da RMRJ, quando considerados os candidatos a deputado estadual
no pleito de 2006. O que chama aten-o neste resultado que as reas
classificadas como de mercado eleitoral altamente concentrado
correspondem, em grande medida, periferia da RMRJ, enquanto que as
reas classificadas como de disperso alta esto circunscritas apenas
ao municpio polo da regio metropolitana.
tividade por votos em cada local. O ndice calculado de acordo
com a seguinte frmula: ,onde pij a proporo de votos de um candidato
j no local de votao
i; e n o nmero de candidatos que receberam pelo menos 1 voto no
local de votao i.
8 reas de ponderao do Censo Demogrfico de 2000 (IBGE).
Nicand = 1/
nj= 1
p2ij
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Figura 4. reas de ponderao da RMRJ segundo o grau de
competitividade da disputa eleitoral para deputado estadual
Fonte: Corra, 2011.
Anlises multivariadas a partir dos dados do Censo Demogrfico de
2000 (Corra, 2011, p. 114) indicaram uma forte correlao entre essas
diferenas no grau de competitividade e a distribuio de
caractersticas socioeconmicas da populao da regio metropolitana do
Rio de Janei-ro. Em resumo, os resultados indicam haver uma
significativa e consider-vel relao entre a hierarquizao das reas
intraurbanas identificadas a partir da distribuio desigual de
indivduos no espao metropolitano com elevada concentrao de recursos
como renda e escolaridade, e pela
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distribuio desigual dos servios pblicos de infraestrutura9 e a
com-petitividade eleitoral na disputa por cargos proporcionais.
Segundo a perspectiva terica da geografia do voto (Ames, 2003;
Carvalho, 2003), quanto mais concentrada territorialmente a votao
de um candidato, maiores sero os incentivos para que assuma uma
con-duta parlamentar orientada pelo atendimento de interesses
paroquiais e, inversamente, quanto mais dispersa, maiores so os
incentivos para uma conduta parlamentar que seja guiada por
interesses universalistas. De acordo com a classificao dos
deputados realizada por Corra (2011), considerando-se somente os
deputados metropolitanos, ou seja, aqueles que obtiveram mais de
50% de sua votao no interior do espao metro-politano, 31 dos 50
assim caracterizados apresentaram perfil de votao identificado como
um incentivo para o que Nelson de Carvalho (2009) tem denominado de
paroquialismo metropolitano, isto , a manuten-o de redutos
eleitorais mesmo no interior da metrpole.
A fora da votao concentrada no interior da Capital fluminense j
foi destacada anteriormente no trabalho de Kuschnir (2000). De
acordo com a autora, com base em levantamento feito desde a dcada
de 1980, pelo menos um tero da Cmara de Vereadores do Rio de
Janeiro eleito com base em uma votao concentrada geograficamente.
No entanto, o que se tem destacado no trabalho de Kuschinir a
conexo existente entre a concentrao geogrfica das votaes dos
vereadores e deputados no Rio de Janeiro e a existncia de centros
de assistncia populao que so mantidos por parlamentares, os
chamados centros sociais (Kuschnir,
9 A concentrao de recursos medida a partir do percentual por rea
dos indivduos cuja renda familiar per capita acima de cinco salrios
mnimos e cuja mdia da escolaridade dos adultos do domiclio acima de
onze anos de estudo. J a carncia de infraestrutura medida a partir
do percentual por rea de pessoas vivendo em domiclios onde no h
abastecimento de gua por meio de rede pblica ou fonte prpria no
terreno; ou em domiclios que no tenham acesso rede de esgotamento
sanitrio por rede geral ou por meio de fossa sptica; ou ainda, em
domiclios cujo lixo no seja coletado por servio pblico de limpeza
(Corra, 2011, p. 114).
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2008). Nesses locais, so oferecidos diversos servios pblicos de
inte-resse da populao e o seu financiamento se d por meio da
arrecadao de recursos pblicos. De acordo com Kuschnir:
fundamental destacar que os Centros Sociais muitas vezes tm
estreitas relaes com o poder constitudo, recebendo o ttulo de
utilidade pblica por indicao das casas le-gislativas e sano do
prefeito ou do governador. Isso lhes garante iseno de impostos e
eventualmente contratos em convnios com os governos estadual e
municipal, prestando servios como creches, atendimento mdico e
centros de ca-pacitao profissional. H denncias de que vrios Centros
funcionam como entidades que propiciam a arrecadao de dinheiro
pblico atravs de superfaturamento em com-pras de equipamentos,
remdios e outros servios (Campos, 2004). Embora sofram algumas
sanes no perodo eleitoral em funo da legislao, notrio que operam
abertamente nas demais pocas do ano. (Kuschnir, 2008, p. 7)
Neste caso, fica clara a interferncia do exerccio do mandato em
relao manuteno dos centros sociais, j que a concesso de ttulo de
utilidade pblica pelas casas legislativas o principal mecanismo de
legitimao destas entidades. Por outro lado, no podemos deixar de
destacar a relao existente entre as votaes dos deputados e a
presena dos seus centros sociais, como podemos conferir no exemplo
disponibi-lizado por Kuschnir (2008, p. 5), onde se verificou essa
correspondncia entre as reas de predominncia de votao de um
deputado estadual e a distribuio geogrfica dos frequentadores do
seu centro social.
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Figura 5. Distribuio espacial da votao de um deputado e dos
usurios de um centro social mantido pelo parlamentar
Fonte: Kuschnir, 2008.
Consideraes finais
guisa de concluso, com base nas evidncias empricas elencadas na
seo anterior podemos dizer que se mostra plausvel a hiptese de que
o espao metropolitano fluminense se organiza de forma a repro-duzir
fortes desigualdades urbanas, e que os diferenciais de condies
sociais destas reas serviriam de base para o desenvolvimento de
condi-es sociopolticas diferenciadas entre os cidados
metropolitanos. Neste sentido, a forma como os indivduos
experimentam o territrio na vida cotidiana, com destaque aos
diferentes nveis de ateno do poder pbli-co s necessidades imediatas
das reas da cidade, fomentam diferentes formas de se configurar a
cultura poltica dos indivduos, o que impacta posteriormente no seu
comportamento poltico, sobretudo, no grau de engajamento
cvico-poltico e nas maneiras como esse comportamento se manifesta.
Mais do que oferecer elementos explicativos da manuteno da lgica da
desconfiana na metrpole fluminense, objetivo que extra-polaria o
escopo do presente artigo, buscamos evidenciar a importncia de se
considerar a dimenso das desigualdades urbanas no entendimento
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das diferentes culturas polticas entre os cidados
metropolitanos. Dito de outra maneira, possvel considerar que a
manuteno, no interior do espao metropolitano, de fortes
desigualdades com relao ao acesso ao bem-estar urbano o que se
confirma com base na distribuio dos nveis de carncia de
infraestrutura de servios pblicos e, com relao ao acesso s
oportunidades de melhoria das condies de vida mais ime-diatas, pode
ser visualizado a partir das distribuies de renda familiar per
capita e de clima educativo domiciliar no espao metropolitano
coloca grande parte dos cidados metropolitanos na margem do direito
cidade. Ou seja, o resultado direto dessa lgica de organizao
metropolitana segregadora e excludente a marginalizao de grande
parte da popula-o metropolitana em relao aos seus direitos enquanto
moradores da cidade (ser atendido por uma rede de transporte
eficiente, ter acesso s redes de abastecimento de gua potvel,
esgotamento sanitrio e coleta de lixo, o acesso a condies dignas de
habitao, o acesso a equipamen-tos de sade, educao, lazer e cultura,
e etc.) que fortalece e legitima a desigualdade de condies do
exerccio da cidadania (civitas), relao que bem captada pelas
metforas de cidade escassa ou escassez de cidade de M. A. de
Carvalho. Por fim, ao conectarmos essas condies desiguais de
bem-estar urbano com o funcionamento do nosso sistema poltico
democrtico-representativo, o que se percebe a utilizao da instncia
poltica representativa como forma de barganha da subordina-o
pessoal dos grupos em situao de carncias urbanas, garantindo a
reproduo no poder de determinados grupos polticos por meio das
m-quinas partidrias clientelsticas at s entidades assistencialistas
mantidas por alguns parlamentares. O caso da cassao do mandato do
Deputado Estadual Natalino (eleito em 2006 com votao concentrada na
regio da Zona Oeste carioca) por conta do seu envolvimento com um
grupo mili-ciano da regio levanta srias questes sobre os resultados
perversos que
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essa dupla carncia de direitos (do direito cidade e do direito
de cidade) sobre a qualidade da democracia nas grandes metrpoles
que apresen-tam uma lgica de organizao socioespacial parecida.
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Recebido em: 20/12/2011Aceite final: 11/04/2012