-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 185
O paradoxo na histria do poder punitivo moderno:entre a pretenso
sistematizadora e a manifestao
usurpadora e totalitria
Jackson da Silva Leal*
The paradox in the history of modern power punitive: between
thesystematizing pretension and the expression totalitarian
usurper
Resumo: Analisa-se a questo dasubtrao do conflito por parte do
Estadona modernidade burguesa ocidental.Assim, busca-se entender
como se deuesse processo histrico de construo e,sobretudo,
legitimao do Estado comogrande guardio da ordem e principalofendido
nos casos de conflito etransgresso das regras estabelecidas
peloprprio paradigma de governabilidadeliberal. Para isso se
analisa contribuiesespecficas ao processo de construodeste
paradigma societrio e, em especial,a problemtica da resoluo de
conflitose do ius puniendi do Estado, como JohnLocke e Cesare
Beccaria que, entredistanciamentos e aproximaes,permitiram que
fosse se estruturando oque se conhece contemporaneamente porEstado
moderno burgus e punitivo.Frisa-se o esforo em tentar no
atribuirsignificados histria, de forma arbitrria
* Graduado em Direito pela Universidade Catlica de Pelotas
(UCPel); advogado inscrito naOAB/RS; mestre em Poltica Social
(UCPel); doutorando em Direito na Universidade Federalde Santa
Catarina (UFSC), bolsista pesquisador CNPq; pesquisa na rea de
Sociedade, Sistemade Justia e Controle Social, na perspectiva da
Criminologia Crtica. Membro do projetoUniversidade Sem Muros
(UsM-UFSC); professor de Direitos Humanos na Universidade doExtremo
Sul Catarinense (Unesc). E-mail: [email protected]
Abstract: In this paper we analyze theissue of subtraction of
the conflict by thestate in modern Western bourgeois.Thus, we seek
to understand how wasthis historical process and, above
all,legitimacy of the state as guardian of orderand large main
victim in cases of conflictand transgression of the rules
establishedby the paradigm of liberal governance.For this we
analyze specific contributionsthat are dear to the construction of
thiscorporate paradigm and in particular theissue of conflict
resolution and the iuspuniendi the state, such as John Lockeand
Cesare Beccaria between distancesand approaches that have enabled
withthat was being structured what is knowncontemporaneously by
modernbourgeois state and punitive. Stresses upthe effort in trying
not to assign meaningsthe story so arbitrary and in light
ofcontemporary modernity, but rather to
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014186
IntroduoO presente trabalho prope-se analisar a questo moderna
do
monoplio da violncia legitimada pelo Direito, o que se denomina
deius puniendi; sendo, sobretudo esta a forma que o Estado moderno
seutiliza para resolver os conflitos, em oposio a uma suposta
guerra detodos contra todos (vingana privada) e, tambm,
estandardizando odiscurso humanitrio em face da suposta brutalidade
do antigo regime ao menos esses so os argumentos legitimantes.
Entretanto, a partir do momento em que se centraliza, no
Estado,o que um resultado das instituies e dessa construo
scio-histricamoderna, as estruturas de governabilidade, e incluso a
resoluo dosconflitos a partir da ideia de punio/pena que se
verifica uma totalsubtrao do conflito por parte do Estado, que
passa a ser o grandeofendido em sua potestade, apresentando-se a
infrao mais como umaofensa ao paradigma de organizao social baseada
na legalidade, doque propriamente uma preocupao com o todo social,
e com acomunidade politicamente organizada. A essa questo, em
especfico, que se d ateno no presente trabalho.
e luz da modernidade contempornea,mas sim, analisar a
contemporaneidade esuas estruturas materiais e simblicas, apartir
da herana e dos ensinamentospermitidos com o estudo histrico.
Opresente trabalho se constri a partir deanlise eminentemente
bibliogrfica,buscando-se agregar, com o arcabouoterico-emprico da
criminologia crtica,com uma abordagem adensada doprocesso histrico
em relao s questesque influenciam na conformao dasinstituies de
poder punitivo, naperspectiva de compreender, desvelar
edesconstru-las.
Palavras-chave: poder de punir;modernidade burguesa;
criminologiacrtica; confiscao do conflito;
analyze the contemporary structures andtheir symbolic and
material from thelegacy and teachings allowed to historicalstudy.
This paper builds on analysiseminently literature, seeking to add,
withthe theoretical and empirical critique ofcriminology, with a
dense approach ofthe historical process regarding issues
thatinfluence in shaping the institutionspunitive power in
perspectiveunderstand, deconstruct and revealthem.
Keywords: power to punish; bourgeoismodernity, critical
criminology;confiscation of the conflict;
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 187
Em termos de organizao do trabalho, no primeiro ponto se
analisao processo de formao do sistema penal como se o conhece
atualmente.E isso passa por uma abordagem do contexto
sociopoltico-jurdico, aofinal do antigo regime e princpio da
modernidade quando da difusoinicial da filosofia liberal
positivista e como vinha se constituindo ecorroendo o antigo
regime, implodindo-o por dentro. Constituindoum rompimento
(liberal-positivista) e uma total mudana societal, oque tem efeitos
diretos na questo criminal e na resoluo de conflitos,que so
totalmente expropriados dos direta e indiretamente
envolvidos(ofensor-ofendido-comunidade). Muda tambm totalmente de
foco,passando de uma ideia de justia (composio/restaurao) para
umaideia de disciplina que se fazia necessria ao novo paradigma
desociabilidade marcadamente classista (uma classe em processo
dehegemonizao). E, como esse processo passa por um discurso
estratgicode deslegitimao e desqualificao da estrutura anterior,
qualificando-a como brutal e desumana, arvorando-se em um discurso
humanizantepela tcnica (igualitarista).
No segundo ponto, analisa-se de forma mais detida essa questo
domonoplio da violncia e da transmutao da resoluo de conflitos e
asdinmicas punitivas e disciplinadoras de uma massa de indivduos
queprecisavam ser reeducados para a vida da fbrica (e depois da
indstria)e da produo capitalista, incorporando no apenas a
ideologia dotrabalho, mas tambm a nova hierarquia social e a
condiosubalternizante atribuda/reservada a certos grupos/classes de
indivduose a naturalidade (artificial) dessa estrutura.
Um importante apontamento, e na linha proposta por Paolo
Grossi(2010), no se pretende analisar o passado ou a histria luz
daexperincia presente acumulada, o que seria uma verdadeira
arbitrariedadee uma atribuio leviana de significados, mas, sim,
compreender asestruturas presentes luz ou, a partir das
experincias, dos ensinamentose da herana histrica.
Assim, este trabalho se constri como abordagem
eminentementebibliogrfica: partir de uma interface entre a
criminologia e a histriado direito, mas especificamente
trabalhando-se com histria do direito,em especial a filosofia
liberal constituidora da modernidade e,principalmente, no que
influncia da estrutura de poder punitivo; leiturade alguns e
especiais clssicos que orientam essa filosofia, como CesareBeccaria
(1764 [traduo e edio 2013]), como pai do direito penal
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014188
moderno, e John Locke e a filosofia liberal clssica; e,
orientado porcontribuies de historiadores como Antonio Manuel
Hespanha (2009;1993) e Paolo Grossi (2009; 10); ainda, a partir do
acmulo tericoproporcionado pela Criminologia Crtica e sua leitura
do sistema penalburgus, classista e sexista, em especial Dario
Melossi e Massimo Pavarini(2006), Georg Rusche e Otto Kirchheimer
(2004) e a histria daestrutura punitiva moderno-burgus.
1 Resgate terico-contextual, e poltico ideolgico liberal e o
poderpunitivo classista
Prope-se a difcil tarefa de tentar reconstituir o mapa cognitivo
e aestrutura material e simblica que transformaram o sistema penal
nainstituio pretensa e falaciosamente resolutora de conflitos, e
tambma priso como pena universal e generalizada. Assim, neste
primeiro ponto,analisa-se o contexto sociopoltico-jurdico e
ideolgico de matriz liberalque, discursivamente, se preconiza como
racionalista e empirista, pautadopor um humanismo utilitarista, a
fim de legitimar sua construo eestruturao institucional e poltica,
em oposio frontal ao paradigmasocietal e organizativo do antigo
regime, que passa-se a qualificar comobrutal e desumano.
Inicia-se, em uma perspectiva periodizada, com a baixa Idade
Mdia,que, a partir de Antonio Manuel Hespanha (1993), se pode
dividir emdois momentos, como o prprio autor aponta a Idade Mdia
pluralistae a Idade Mdia centralizadora/unificadora e seu poder
punitivoexacerbado.
Esse perodo em que Hespanha (1993) chama de Idade Mdiapluralista
e que ajuda a desmitificar a ideia de guerra de todos contratodos,
em que se funda a concepo de governabilidade centrada nafigura do
Estado, e se produz a legitimao e necessidade do poderpunitivo de
carter pblico e monopolista da violncia.
Nesta linha, verifica-se que a inexistncia de uma
estruturacentralizada de governabilidade se dava pela construo
sociopoltica-cultural e jurdico-plural pautada pela ramificao de
poder e orientadapela ideia de comunidade. Assim, a resoluo de
conflitos se pautavapor esse iderio da recomposio social, e no pela
manuteno ourestaurao de poder. No se fazendo comprovvel, para alm
dosdiscursos retricos liberais, o apontamento da guerra de todos
contra
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 189
todos e as acusaes de brutalidade ou incivilidade ideia que se
vincula,eminentemente, estrutura societria liberal. Sobre a dinmica
daspenas, no antigo regime, Rusche e Kirchheimer escrevem:
Os diferentes sistemas penais e suas variaes esto
intimamenterelacionados s fases do desenvolvimento econmico. Na
Alta IdadeMdia no havia muito espao para um sistema de punio
estatal.Tanto a lei do feudo quanto a pena pecuniria (penance)
constituamessencialmente um direito que regulava as relaes entre os
iguais emstatus e em bens. Pressupunham a existncia de terra
suficiente paraatender ao crescimento constante da populao sem
baixar o nvel devida. (2004, p. 23).
Perodo que se estende at o sculo XVI, quando se iniciam
osesforos de reconfigurao do antigo regime (em srio processo
dedesgaste), acredita-se que a partir de um processo de corroso
orquestradaa partir da dentro pela nascente filosofia liberal e sua
classe. Assim,complementa Antonio Manuel Hespanha:
Do ponto de vista dos sistemas regulativos e de resoluo de
conflitos,esta extenso s periferias do paradigma legalista no se
deixa, no entanto,descrever como um processo de harmnico progresso
de uma situaode anomia, em que as relaes sociais seriam dominadas
pelo caos epelo abuso, para uma outra de primado do direito. Na
verdade, ecomo j vimos, o mundo perifrico era um mundo regulado,
emborapor tecnologias disciplinares totalmente diferentes da
lei,correspondentes s condies sociais a vigentes. A imposio do
direitooficial, escrito e legislativo, significou, assim, uma
estratgia de dissoluoda ordem perifrica e a sua substituio por
mecanismos disciplinarescujas condies de eficincia ano estavam a
verificados. Emcontrapartida, os mecanismos tradicionais de regulao
e de composiodeixam de poder ser invocados perante os rgos do
Estado. (HESPANHA,1993, p. 19).
Nessa nova configurao, a que Hespanha denomina de Idade
Mdiacentralizadora/unificadora, que, paralelamente, constitua todo
umaparato cultural, ideolgico, poltico e social, como a produo do
ensino,do iderio do trabalho, da centralizao do controle social e
da Justia,
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014190
dos controles de polcia focalizando o monoplio do poder, do
direitoe da poltica em mos do Estado no projeto de governabilidade
liberal.
Essa construo social se d a partir do discurso do
jusnaturalismo,que se prope a subverter a ideia do teocentrismo;
substituir a instituioreligiosa e colocar a figura do homem como
centro do processo histrico,tendo na figura do Estado a instituio
centralizadora do novo projetode governabilidade. O projeto
jusnaturalista era pautado por um discursoque se sustentava em
questes como a centralidade do Estado (na figurada monarquia e do
rei), no obstante buscasse romper com a deificaoreligiosa, que
ainda mantinha os privilgios e a diviso social porestamentos, os
quais separavam e naturalizavam (artificiosamente) aorganizao
social.
Com a centralizao estatal comea a ser necessria uma srie
deoutras instituies conexas e interdependentes, que proporcionam
asustentabilidade deste paradigma de sociabilidade, como a escola
(oensino e as universidades); a famlia, como importante instncia
deideologizao; o direito, que passa a ser organizado em torno
dainstituio legal, e resumido a aplicao e interpretao desta o
queMichel Miaille (2005) chama de reduo do direito instncia
judicial.E, tambm, na centralizao estatal do poder de punir e do
monoplioda violncia, surgem as instncias policiais e a dinmica da
punio quepreconiza mais a restaurao do poder do monarca e do status
de podercentral, do que a estrutura social; quando, ento, a resoluo
de conflitos que se faz totalmente expropriados dos direta e
indiretamenteenvolvidos no conflito passa a infligir sofrimento e
torna as penas umespetculo com funo de exemplaridade.
O jusnaturalismo cumpriu importante funo nesse processohistrico,
na esteira proposta por Michel Miaille (2005) de (a) ocultaoque diz
respeito, em um primeiro ponto, (i) aos privilgios
estamentaisexistentes no antigo regime, contra os quais a burguesia
se insurge,exaltando a libertao desses (privilgios), que se faziam
amarras para ocrescimento e que faziam dos estamentos privilegiados
parasitasalimentados (luxuosamente) pela burguesia produtora,
industriosa eem ascenso de poder; e em um segundo ponto (ii)
esconder a passagemde uma estrutura organizada em estamentos
baseados em um podersupra-humano de orientao declaradamente
religiosa, para passar a umdiscurso naturalizante e universalista
(com pretenses de igualdade eliberdade), mas que, na realidade, no
informa a quem beneficia (a
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 191
ascendente burguesia como classe no poder). Como resume
Miaille(2005, p. 273) sobre a nova estrutura de governabilidade que
saiexclusivamente, mas tem como o epicentro e formatao mais
acabadana Revoluo Francesa, o direito do homem egosta, da
sociedadeburguesa fechada sobre seus interesses. Esquecendo os
homens concretos,ele limita-se a proclamar princpios que no tem,
excepto para aburguesia, qualquer espcie de realidade. Estrutura
jurdica da qualresulta a institucionalidade de controle social, que
se prope neutrapela tecnicidade (generalidade e abstrao), e que
redunda em totaldistanciamento da realidade social desigual e
opressora legitimando-se e naturalizando-a.
E, ainda, como (b) arma de combate que se refere ao
discursojusnaturalista, como sendo a articulao que visava subverter
a ordemestamental do antigo regime (de privilgios), no qual a
burguesia no seencontrava contemplada e que, atravs de uma
estratgia naturalistaque se propunha como captao de uma realidade
dada (os supostosdireitos naturais), contrapunha a ontologia de uma
ordem definida pelosmitos-deuses, mas que, no fundo, segundo
Miaille (2005), no passavada projeo de um novo paradigma de
sociabilidade marcadamenteclassista e operacionalizado por
argumentos (liberdade e igualdade),sobretudo de matiz ideolgico e
utilitrios pauta liberal, na construode sua nova ordem burguesa
capitalista.
Paolo Grossi analisa esse processo de transformao societal,
dairrupo da sociedade burguesa, ainda que se tenha constitudo
pordentro, corroendo a antiga estrutura e que na passagem do
medievalismopara a modernidade, atravs do discurso jusnaturalista,
produz onascimento do indivduo atomizado e sujeito burgus
individualista:
Para essa acepo de individualista, Grossi escreve: a nova
visoantropolgica que emerge j de um modo claro nas grandes
disputasteolgico-filosficas do tardo sculo XIII e das primeiras
dcadas dosculo XIV representa a tentativa de isolar o mundo e sobre
o mundoum indivduo que encontrou a fora (ou assim ao menos presume)
dese libertar de antigas prises; sujeito presunoso, que quer
encontrarsomente no interior de si mesmo o modelo interpretador da
realidadecsmica e social. (GROSSI, 2010, p. 60).
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014192
A partir de John Locke (1978), verifica-se que ele diferencia o
estadode natureza da sociedade civil e poltica, pela constituio de
umaorganizao oficializada e centralizada e erigida
(operacionalizada), apartir da imprescindvel instituio da lei,1
como centro do Direito etendo no Poder Judicirio, a estrutura
institucional nuclear. Estaincumbida da resoluo de conflitos e da
proteo, mormente dapropriedade como o prprio autor refere, sendo
esse direito (depropriedade) um direito no inato, mas natural, em
que odesenvolvimento se faz como obrigao divina para a organizao e
oaprimoramento social e comunitrio.
Na mesma linha, se faz relevante a ideia de Locke, relativa
propriedade privada, que se constitui a partir da ideia de
trabalhohumano, que altera a coisa em estado natural, melhorando-a,
e a partirde ento o agente modificante alcana o direito de
propriedade sobre acoisa (e tambm sobre a terra) que, segundo o
autor, sem as modificaese os aprimoramentos, no proporcionam o
bem-estar a que esto aptase oferecidas em quantidade abundante na
natureza. E ainda, a funode produzir e evoluir se constituiria como
uma obrigao divina, impostapela ddiva da vida e da abundncia
natural (em estado bruto)proporcionada pela divindade.
Acrescenta-se, ainda, que na proposta de Locke (1978),
apropriedade tambm encontra fundamento, na medida em que os
bensexistem em quantidade e abundncia, que no seria prejuzo para
qualqueroutro indivduo que, com a mesma diligncia e aplicao, no
conseguiria.E assim, a propriedade da terra, da mesma forma, que se
encontrampassvel de frutificao para qualquer homem que assim
desejasse etrabalhasse para tanto. Se fazendo como um discurso
profundamenteretrico, e quase como nefelibata, distante da
realidade, de expropriaese pilhagens por parte dos grandes
produtores e proprietrios de terras ede homens (escravos), que eram
feitos mquinas bpedes de produoburguesa extenuante.
John Locke fala sobre a sociedade poltica:
Os que esto unidos em um corpo, tendo lei comum estabelecida
ejudicatura para a qual apelar com autoridade para
decidircontrovrsias e punir os ofensores, esto em sociedade civil
um com osoutros; mas os que no tem essa apelao em comum, quero
dizer,sobre a Terra, ainda se encontram no estado de natureza,
sendo cada
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 193
um, onde no h outro, juiz para si e executor, e que
constitui,conforme mostrei anteriormente, o estado perfeito de
natureza. E poressa maneira a comunidade consegue, por meio de um
poder julgador,estabelecer que castigo cabe s varias transgresses
quando cometidasentre os membros dessa sociedade que o poder de
fazer leis , bemcomo possui o poder de castigar qualquer dano
praticado contraqualquer dos membros por algum que no pertence a
ela que opoder de guerra e de paz , e tudo isso para preservao da
propriedadede todos os membros dessa sociedade, tanto quanto
possvel. (LOCKE,1978, p. 67).
Assim, se estrutura tambm a concepo de igualdade de Locke,
naqual, todos os indivduos seriam iguais, sendo resultado da
aplicao decada um o sucesso individual, e o insucesso ocasionado
pelo vcio, pelapreguia, pela ociosidade.
Nesta linha, tendo-se o sistema penal como o grande protetor
dapropriedade e esta como sendo o resultado do trabalho e do
potencialhumano transformador. Diante disso, dos anseios de
igualdade, em umasociedade em que a desigualdade resultado de
patologias individuais,que devem ser definidos como crime, e assim
combatidos seus autores.Escreve Cesare Beccaria:
Impossvel evitar todas as desordens, no universal combate das
paixeshumanas. Crescem elas na proporo geomtrica da populao e
doentrelaamento dos interesses particulares, que no possvel
dirigiremgeometricamente para a utilidade publica [...] por esse
motivo, anecessidade de ampliar as penas vai sempre aumentando.
[...] Essafora semelhante a da gravidade, que nos impele ao
bem-estar, s serefreia, na medida dos obstculos que lhe so
levantados. Os efeitosdesta fora so a confusa serie de aes humanas.
Se estas de chocam ese ferem, umas com as outras, as penas, a que
eu chamaria de obstculospolticos, impedem-lhe o efeito nocivo sem
destruir a fora motriz, que a prpria sensibilidade inseparvel do
homem. E o legislador comohbil arquiteto, cujo oficio e opor-se s
diretrizes ruinosas da gravidadee pedir a colaborao das que
contribuem para a firmeza do edifcio.(BECCARIA, 2013, p. 42).
Assiste-se elevao do patrimnio e da propriedade privada (esta a
categoria conceitual-chave para compreender o nascimento da
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014194
modernidade), como grande bem a ser tutelado e protegido
pelanovssima construo institucional (organizada), definida como
sistemapenal e sua muito prxima relao entre o delito que se
manifesta comoao (delituosa) e como condio (de ser miservel) e,
tambm como,faz a relao entre classe e a governabilidade burguesa em
torno dopatrimnio como estrutura material e simblica fundante. Na
mesmalinha escreve Domnico Losurdo, em sntese precisa reportando-se
aJohn Locke:
Repetidamente o Segundo Tratado faz referencia ao ndio selvagem
(wildIndian), que ronda ameaador e letal nas florestas da Amrica ou
nasflorestas virgens e incultos campos da Amrica [...] Alm do
trabalho e dapropriedade privada, os ndios ignoravam tambm o
dinheiro: de modoque eles resultam no apenas alheios civilizao, mas
tambm noassociados ao resto da humanidade. Pelo seu prprio
comportamento,tornam-se objeto de uma condenao que no deriva s dos
homens:sem duvida, Deus prescreve o trabalho e a propriedade
privada, nopode certamente querer o mundo por ele criado permanea
para sempreinforme e inculto (LOSURDO, 2006, p. 36).
Pode-se inferir que a instituio da nova estrutura do sistema
penalvolta-se menos para a resoluo de conflitos (como o discurso
gostariade fazer crer), a partir de uma pretenso humanizadora e
garantidora, emais sobre a manuteno das relaes de poder, e em
defesa do sistemae da sua estrutura jurdico-poltica e
socioeconmica.
Verifica-se que os sentidos primordiais atribudos proposta
dosistema penal como maquina de resoluo de conflitos como
formapreponderante e como pretensa empreitada humanizadora so
ocultados,e pode ser apontados como - monopolizao do poder de punir
e gerira pobreza e a desigualdade; produzir utilitariamente um
processo dedocilizao da mo de obra de que tanto se necessitava; e,
inculcar aideologia do trabalho sob a tica da sociabilidade e
governabilidadeburgus capitalista. Assim escreve John Locke, sobre
a lei da assistncia:
A soluo mais eficaz que somos capazes de conceber para isso
[...] quesejam construdas escolas a operarias em cada paroquia, s
quais osfilhos de todos esse que pedem auxilio paroquia, acima de
trs eabaixo de catorze anos de idade, enquanto viverem em casa com
os paise no sejam tampouco empregados para seu sustento pela penso
do
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 195
supervisor de pobres, sero obrigados a frequentar. Ser assim que
ame se desembaraar de grande parte do incomodo de cuidar deles
eprover-lhes a subsistncia em casa, tendo ento mais liberdade
paratrabalhar; as crianas sero mantidas numa ordem muito
melhor,recebero melhor subsistncia e desde a infncia se habituaro
atrabalhar, coisa de extrema importncia para torna-las ajuizadas
eindustriosas por toda a vida. (Locke, 2007, p. 236).
A pobreza passa a ser vista como um delito2 no novo paradigma
desociabilidade que se institui a partir da filosofia (pseudo)
humanitrialiberal e, ainda, que nela se encontram planos para cada
um dosindivduos que fazem parte dessa estrutura social, desde a
criana principalmente quando resultado da unio de dois pobres
infratores daordem burguesa , a mulher e o homem.
A respeito da gesto dos miserveis/transgressores centralizada
noEstado e, atravs do poder punitivo em meio a um discurso
legitimantede matiz garantidora positiva e tcnica, e ainda a partir
de um discurso/estratgia contextualizado com a nova ordem burguesa
e que necessitavade corpos dceis e aptos ou pelo menos submissos
ideia de trabalho,Cesare Beccaria propunha:
Quem procura enriquecer a custa alheia deve ser privado dos
prpriosbens, mas como habitualmente esse o delito da misria e do
desespero,o delito daquela parte infeliz de homens a quem o direito
de propriedade(direito terrvel e talvez desnecessrio) no deixou
seno uma existnciade privaes; mas como as penas pecunirias aumentam
o numero dosrus mais do que o numero dos delitos, pois que, ao
atirar o po doscriminosos, acabam tirando-o tambm dos inocentes, a
pena maisoportuna ser ento a nica forma de escravido que se pode
chamarjusta, ou seja, a escravido temporria dos trabalhos e da
pessoa aservio da sociedade comum, para ressarci-la, com a prpria e
totaldependncia do injusto despotismo exercido sobre o pacto
social.(BECCARIA, 2013, p. 83).
Essa questo, que engloba em uma mesma discusso a retirada
doconflito da comunidade e dos prprios envolvidos direta e
indiretamente,sob o discurso da brutalidade e desregulamentao
causadora dainsegurana, se processa a organizao de uma estrutura
utilitria para o
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014196
novo projeto de governabilidade e sociabilidade e que entrelaa
aassistncia social e o poder punitivo, no qual a miserabilidade
umdelito e do qual apenas o sujeito individualizado
responsvel,naturalizando a estrutura social burguesa-capitalista, o
que objeto deanlise mais detida no prximo ponto.
2 Da sistematizao decodificadora e pretensamente humanitria
usurpao do conflito e controle dos indesejveis
Neste ponto a anlise se centra especificamente na questo
dasubtrao do conflito a partir do discurso da humanizao pela
tcnicae como isso se traduz e processa como uma dinmica de
controlecentralizado estatal de uma massa de indivduos indesejveis,
que soobjeto de um processo de disciplinamento para o novo
paradigma degovernabilidade voltada ao mercado capitalista, no qual
eles s faziamparte, qui, como mo de obra barata.
Nesta estrutura, como o discurso humanizante tinha de
serdesqualificador das estruturas materiais e simblicas de resoluo
deconflitos do modelo predecessor, e, ainda, como o
tecnicismo-cientificista, ao qual resumido o direito (direito penal
e polticacriminal-assistencial), orientados pela generalidade e
abstrao (seletivas), funcional a esse processo de distanciamento
dos indivduos e produzlegitimao para o prprio sistema que se prope
neutro. Nesse sentido,escreve Cesare Beccaria como grande
organizador da ideologia penalmoderno-burguesa:
Eis o dogma poltico em que os povos deveriam acreditar e que
ossupremos magistrados deveriam apregoar coma incorruptvel
proteodas leis, dogma sagrado sem o qual no pode haver sociedade
legitima,certa recompensa pelo sacrifcio, por parte dos homens,
daquela aouniversal sobre todas as coisas, que comum a cada ser
sensvel elimitada apenas pela prpria fora. (BECCARIA, 2013, p.
48).
E, assim, como a mquina de assistncia-controle
social,monopolizadora de conflitos que eram resultados da prpria
estruturasocial , eram transformados em contingncia patolgica
individualizada.
Trabalha-se em uma perspectiva de que a constituio de
umamaquinaria de controle-assistncia social se fazia como resultado
do
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 197
contexto histrico em que esto inseridos, e assim orientados por
estadinmica que os animava e justificava como afirma Miaille
(2005),decorrem e servem ao modo de produo da vida social e
material dasociedade burguesa. Para tanto, traz-se alguns elementos
que demonstrama falcia do discurso desenvolvimentista, de humanizao
e civilizaoda resoluo de conflitos, que se apresentam materialmente
comodinmicas punitivas comprometidas com seu tempo e com a classe
aqual essas dinmicas serviam e davam suporte de
sustentabilidadematerial e simblica ao longo da histria
moderna.
Assim, apresenta-se o paradoxo das dinmicas punitivas
modernas,entre as tantas incongruncias que apresenta, mas que, para
efeito destetrabalho, se analisa a partir dos seguintes elementos:
(a) os indivduossobre os quais se projeta a desigual distribuio dos
bens negativos dapena; (b) a quantificao do sofrimento humano; (c)
(de)formao corpoe esprito na nova estrutura social; (d)
incapacidade tcnico-mecnicado direito reduzido e a sua
funcionalidade legitimante-naturalizante.
O primeiro elemento de anlise, os indivduos sobre os quais se
projetao sistema penal, trata da desigual distribuio dos bens
negativos (BARATTA,2011), que so os processos de criminalizao
primria (tipificao) esecundria (punio), tendo em vista que o
sistema penal, em sua acepomoderna, dirige-se, mormente, sobre
determinados tipos de indivduose classes e tutela especialmente
certos tipos de crimes (patrimnio).Como se verificou acima,
passa-se de uma preocupao com a organizaocomunitria ofendida por
uma transgresso, tutela de um bomfuncionamento do sistema e
estrutura social, que elege e d primazia aofuncionamento do mercado
e, no qual, a ofensa ao direito de propriedadeocupa a maior
preocupao e merece a enftica resposta/represso.
Nesta linha, como os bens positivos do sistema de
sociabilidadecapitalista so desigualmente distribudos, e de acordo
com ascaractersticas (eleitas como positivas) para distribuio, tais
como:produtor, industrioso, honrado, proprietrio, homem, branco;
tambmos efeitos da lei penal so distribudos de forma desigual,
sendo portanto,uma distribuio desigual de bens negativos, e que se
distribui, de acordocom os valores antagonistas do ethos burgus;
como Vera Regina Pereirade Andrade formula, a criminalidade o exato
oposto dos bens positivos(do privilegio). E, como tal, submetida a
mecanismos de distribuioanlogos, porem em sentido inverso
distribuio destes. (ANDRADE,2003, p. 278).
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014198
Indivduos esses que eram definidos como anormais, quando,
emrealidade, eram constitutivos de uma classe, que no comps a
construodo dogmtico contrato social e do paradigma de sociabilidade
liberal,retoricamente igualitrio, e utilitariamente
(pseudo)humanitrio. Assim,no poderia ser melhor descrito, do que
por um dos entusiastas dessaconcepo.
Os homens escravos so mais voluptuosos, mais libertinos e mais
cruisdo que os homens livres. Estes meditam sobre as cincias e
sobre osinteresses da nao, veem os grandes objetos, e os imitam,
mas naqueles,satisfeitos com o dia presente, procuram, no tumulto
da libertinagem,uma distrao para o aniquilamento em que se
encontram. Afeitos incerteza em tudo, o xito dos seus crimes
torna-se-lhes problemtico,favorecendo a paixo que os determina. Se
a incerteza das leis incidesobre uma noo indolente pelo clima,
mantem e aumenta a indolnciae a estupidez. (BECCARIA, 2013, p.
137).
Neste sentido, verifica-se que o sistema volta-se contra
essesindivduos, que so, assim como a burguesia, uma classe nova que
sefazia antagonista no novo paradigma de sociabilidade, assim como
elaprpria era no antigo regime, em relao aos estamentos nobres, e
comoesse tratamento pautado pela igualdade e liberdade, to
difundidosretoricamente, no alcanam esses indivduos que careciam
dospressupostos bsicos da pertena ao mundo burgus, a humanidade
ecivilidade o ethos burgus do proprietrio carecendo, assim,
deinterveno forada do sistema que oferece o crcere, e o trabalho
foradocomo processo de ensinamento da disciplina protestante e da
filosofialiberal. Sendo o perodo de tempo de subtrao da liberdade a
potencialporta de entrada no contrato social moderno-burgus, como
escreveLosurdo: graas a este gigantesco universo concentrado, onde
chega-sea ser internado sem ter cometido crime algum e sem ter
controle algumda magistratura, ser possvel operar o milagre da
transformao emdinheiro daquele material descartado. (LOSURDO, 2006,
p. 86). EscrevemRusche e Kirchheimer sobre o pblico-alvo:
A fora de trabalho que o Estado podia controlar melhor era
compostapor pessoas que exercitam profisses ilegais, como mendigos
eprostitutas, e tantas outras pessoas que estavam sujeitas sua
supervisoe dependiam de sua assistncia por lei e por tradio, como
vivas,
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 199
loucos e rfos. A histria da poltica pblica para mendigos e
pobressomente pode ser compreendida se relacionamos a caridade com
odireito penal. (2004, p. 58).
A partir de ento, e por necessidade de uma justificativa
legitimante,surge o iderio da ressocializao, da reeducao, que, em
realidade, oprocesso de convencimento, pela imposio da sujeio, da
condio desubalternidade do indivduo foradamente integrado ao novo
mundoocidental regulado pelo contrato burgus. Esta espiritualidade
novade ordem e de represso, [...] devia ser ensinada e inculcada
desde ainfncia, mais particularmente na infncia. (MELOSSI;
PAVARINI, 2006,p. 53).
Complementam Dario Melossi e Massimo Pavarini, sobre o iderioda
recuperao, ressocializao que se faz, sobretudo, utilitria para
ofuncionamento e a manuteno da nova estrutura social:
Os pobres, os jovens, as mulheres prostitutas enchem, no sculo
XVII,as casa de correo. So eles as categorias sociais que devem ser
educadasou reeducadas na laboriosa vida burguesa, nos bons
costumes. Elesno devem aprender, mas sim ser convencidos. Desde o
inicio, indispensvel ao sistema capitalista substituir a velha
ideologia religiosapor novos valores, por novos instrumentos de
submisso. A espadano pode ser usada contra as multides e o temor de
que uma novasolidariedade, uma nova comunho surja para romper com o
isolamentodas classes subalternas j, desde o incio, uma realidade
concreta(MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 55).
Outro ponto a quantificao do sofrimento humano. Demonstra-sea
instituio do sistema penal em sua relao gregria com a
caridadeestatal no processo de usurpao do conflito e na manuteno
daestrutura social, que a passagem da resposta infrao como ofensa
acomunidade. Passa-se a uma ideia de fato, definida como crime, que
amanifestao de uma afronta ao poder Estatal (como imprio-monopliodo
direito e da poltica restritos lei e participao classista). Esteato
de insubordinao passa a ser respondido no corpo (no meramentefsico)
mas social, que esse indivduo infrator representa; e
estacorporificao do inimigo se presta a representar os valores
burguesesque devem ser introjetados.
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014200
Em um perodo (mormente do sculo XVIII em diante) em que
aliberdade e o capital eram os bens maiores exaltados (e tutelados)
peloEstado burgus, e quando o tempo livre, assim como todas as
coisaseram quantificadas pelo novo mercado capitalista, a pena
passa a serquantificada em tempo de privao e, sobretudo, em tempo
de trabalhoforado. Retirando desses pobres desgraados indivduos,
pois,destitudos dos meios de produo e expropriados da propriedade
privada,cuja nica propriedade que possuem a fora de trabalho a que
podiam(no totalmente livre) colocar no mercado.
A essncia da pena constituda, tambm no que diz respeito relaode
trabalho, pela privao da liberdade, entendida sobretudo comoprivao
da liberdade de poder contratar-se: o detido est sujeito a
ummonoplio da oferta de trabalho, condio que torna a utilizao
dafora de trabalho carcerria conveniente para o contratante [...]
oconceito de trabalho representa a ligao necessria entre o
contedoda instituio e a sua forma legal. O calculo, a medida de
pena emtermos de valor-trabalho por unidade de tempo s se torna
possvelquando a pena preenchida com esse significado, quando se
trabalhaou quando se adestra para o trabalho (trabalho assalariado,
trabalhocapitalista). (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 72, 91).
Nesse sentido, em que o discurso da segurana
jurdicaproporcionado e operacionalizado pela tcnica jurdica
acabaria com aincerteza e o arbtrio das penas, e que conformaria e
encerraria a culpanessa medida de tempo, dando assim um parmetro
(genrico e abstrato)para a resposta ao crime, e a resoluo de
conflitos que passam de umconflito intracomunitrio, para um
conflito com o prprio Estado, que erigido no grande e principal
atingido em seu Imprio.
Nessa esteira ainda, verifica-se a funcionalidade dessa
transformao,tendo em vista a necessidade de inculcao de uma
ideologia (docilizaoe aceitao) e, ainda, de aproveitamento desse
material humano que descartado da estrutura social e reutilizado
atravs da potencializao eeficientizao das estruturas
punitivo-caritativas, como extrativas de mais-valia, no somente
econmica, mas tambm simblica. Sobre asmudanas relativas ao sistema
penal, que acompanharam as mudanasdo paradigma de sociabilidade, na
passagem do antigo regime e dofeudalismo para a modernidade
capitalista e seu discurso
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 201
desenvolvimentista-humanista e caritativo-punitivo, Georg Rusche
eOtto Kirchheimer escrevem:
A essncia da casa de correo era uma combinao de princpios
dascasas de assistncia aos pobres (poorhouse), oficinas de
trabalho(workhouse) e instituies penais. Seu objetivo principal era
transformara fora de trabalho dos indesejveis, tornando-a
socialmente til. Atravsdo trabalho forado dentro da instituio, os
prisioneiros adquiriamhbitos industriosos e, ao mesmo tempo,
receberiam um treinamentoprofissional. Uma vez em liberdade,
esperava-se, eles procurariam omercado de trabalho voluntariamente.
(2004, p. 69).
E, ainda, como o controle da nova classe trabalhadora, que era
foradaao trabalho e produo, seno pela via (semi) livre aos mais
baixossalrios e na mais extenuante carga-horria e sem direito
organizaopor melhores condies de trabalho, visto como contrrio a
paz burguesae era severamente reprimida. Ou ainda, pela via do
trabalho forado nasworkhouses e das penas de confinamento, o que
forava os indivduos atrabalharem pelos mais baixos salrios, forando
ainda, o preo da mode obra (semi) livre, controlando o mercado e
mantendo a lucratividadea partir de mais-valia pura, visto que os
indivduos no podiam escolherentre trabalhar (se submeter), no
trabalhar (mendigar) ou exercer outraatividade que se fazia deveras
difcil, dada a monopolizao dasoportunidades restritas a produo
fabril, monopolizadas por umreduzido numero de proprietrios
empregadores.
A questo do controle social e sua relao com o controle/produode
mo de obra se faz de imensa importncia para compreender
ofuncionamento e a instituio/transformao do poder punitivo
namodernidade. Verifica-se que se pode dividir esse processo de
construodo sistema penal, a (de)formao corpo e esprito na nova
estrutura social a sua verso moderna como instituio-mquina burguesa
, em doismomentos.
Em um primeiro momento, (1) de extrao de mais-valia,
quecompreende o final do antigo regime com as penas nas gals e
adeportao, que foram de fundamental importncia para o processo
decolonizao das terras incivilizadas, levando o labor e a
industriosaideologia ocidental burguesa; e, no seu processo de
transio para amodernidade, se estendendo at a revoluo industrial,
que a partir do
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014202
discurso jusnaturalista exaltava os valores do trabalho forado
para osindivduos no integrados filosofia liberal , e marcado por um
perodode escassez de mo de obra, no qual o controle social, ou a
politica social(poorlaws) e a filantropia/caridade estatal
(exercida atravs das workhouses)cumpriram importante papel,
alargando esse exrcito da nova classeoperria que nascia, desprovida
dos meios de produo e alienado dosprodutos produzidos (dos quais no
tinha acesso). Nessa linha, escrevemMelossi e Pavarini:
Durante todo o sculo XVII e boa parte do XVIII, um dos
problemasmais graves enfrentados pelo capital foi o da escassez de
fora detrabalho, com o perigo continuamente subjacente do
possvelaumento do nvel de salrios. O problema no se apresenta,
contudo,com a mesma gravidade dos primeiros anos do sculo XVII,
querporque j estava comeando a ocorrer um certo
incrementodemogrfico, quer porque j estavam o processo de expulso e
deapropriao dos estratos camponeses estavam em pleno andamento.No
obstante, significativa a insistncia com que se pede o uso
dotrabalho forado. O modo de produo capitalista necessita de
umlongo perodo de tempo para terminar de destruir aquela
capacidaderesidual de resistncia do proletariado, que tinha origem
no velhomodo de produo. (2006, p. 61).
Em um segundo momento, (2) como simblico-docilizadora,quando, no
perodo de ouro do capitalismo, a partir da RevoluoIndustrial passou
a serem necessrios menos corpos para o trabalho, emais espritos
dceis para obedecer, se adequar a lgica e aceitar a suacondio
dentro dessa estrutura social capitalista desigual. Assim, a
penacomo medida de tempo de privao da liberdade, e como introjeo
dadisciplina da nova ordem social sintetizada nos cdigos e nas
normas dedireito, ou como denomina Melossi e Pavarini (2006) o
proletrio comoproduto da mquina carcerria.
Em resumo, trata-se de uma extrao de mais-valia, que no se
fazmeramente como produto econmico (financeiro-pecunirio), mas
simem um sentido econmico mais alargado, que insere a economia
dapena e da estrutura social em uma anlise mais abrangente e
quepermitem contextualizar as dinmicas punitivas como sendo o
veculode dominao e subordinao da grande maioria ao sistema que se
propecomo livre e igual, enquanto mantm o povo na condio de
classe
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 203
oprimida ainda que de forma juridicamente
oficial-legtima(legitimidade em uma acepo reduzida e restrita
legalidade-oficialidadeestatal burguesa).
A mais-valia assume um carter de produo de
sentidosmacrossociolgicos, material e simblicos que preconizam a
manutenoda estrutura social burguesa, desigualdade e opresso,
operacionalizadasde dentro (e por dentro) do prprio sistema, que
tem epicentro nainstituio do Estado moderno de carter eminentemente
classista:
Essas instituies se caracterizam por estar destinadas, pelo
Estado dasociedade burguesa, gesto dos diversos momentos da
formao,produo e reproduo do proletariado de fbrica. Elas
representamum dos instrumentos essenciais da politica social do
Estado, politicaque tem como meta garantir ao capital uma fora de
trabalho que poratitudes morais, sade fsica, capacidade
intelectual, conformidade sregras, hbito disciplina e obedincia
etc. , possa facilmente seadaptar ao regime de vida na fabrica em
seu conjunto e produzir,assim, a quota mxima de mais-valia passvel
de ser extrada emdeterminadas circunstancias. (MELOSSI; PAVARINI,
2006, p. 73).
Por ltimo, traz-se a anlise da estrutura institucional que
permitiu/contribuiu com todo esse processo, que, para alm de ser um
projetoeminentemente poltico, passa pela operacionalidade jurdica
comoferramenta legitimante, por isso se inclui na anlise a
incapacidade tcnico-mecnica do direito reduzido e a sua
funcionalidade legitimante-naturalizante.
Neste sentido, a partir do Poder Judicirio, como
instituioespecialista no fazer Justia e a constituio dela como uma
estrutura desmbolos e rituais de/para a aplicao da lei que
contribui (constitui/constitudo) sobremaneira com esse processo, na
medida em que foi apartir da ideia de Direito resumido aplicao da
lei, como sendo amanifestao da segurana jurdica a aplicao da lei
por uma entidadeneutra, alheia s partes (e aos interesses em
disputa) que se chegaria auma determinao desinteressada e uma
aplicao assptica (pura) doDireito Estatal. Essa ideia a que se faz
questo de se contrapor, como emtudo na historicidade moderna, s
dinmicas do antigo regime, que sepautava, intimamente, por decises
jurdico-politicas, que tinham imensarelao com o poder central da
monarquia e da religio e, portanto,no seriam neutras (impuras).
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014204
Nesta linha que a magistratura no direito estatal moderno deve
sereduzir tcnica jurdica o que Michel Miaille denomina de
instnciajudicial (2005), e a racionalidade formal como forma de
produo deuma segurana jurdica nas relaes conflituais que se
erigiria sobre ojulgamento neutro, e, assim, justo. Assim,
analisando a questo dacentralizao e do processo de tecnicizao do
poder disciplinador,Antnio Manuel Hespanha escreve:
Tambm neste plano, a punio da violncia publica completa a
garantiada nova ordem pblica Estatal, fundada, no j sobre a proteo
nomeadamente contra actos de fora dos equilbrios sociaisespontneos,
as sobre a existncia e impacto social de um aparelhoburocrtico e
administrativo encarregado da disciplina da sociedade,agora civil.
(Hespanha, 1993, p. 349).
Operacionalmente, essa estrutura institucional, se arvora
emconstruo jurdico-sociais que se fazem dogmas, a fim de
inserirelementos polticos (despolitizados) na tcnica jurdica, e
assim,privilegiar interesses da classe detentora do poder,
elementos conceituais,que Domenico Losurdo (2006) chama de inteiro
de caractersticassingulares, referindo-se concepes como bem comum;
interesse pblico,bem da nao, salvao do povo, preservao da
totalidade e se acrescentariasegurana pblica; que, em realidade,
permitem a insero, nessadinmica de juridicidade que se pauta pela
racionalidade tcnico-mecnico, dos elementos polticos de interesse
da classe dominante aburguesia e suas necessidades de controle.
Domenico Losurdo prope:
O que aqui esta sendo to apaixonadamente invocado um inteiroque
exige o sacrifcio no momentneo mas permanente da grandemaioria da
populao, cuja condio tanto mais trgica pelo fato deque aparece
muito remota qualquer perspectiva de melhora. [...] ocapital de
felicidade humana fortemente acrescido pela presena depobres
obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados e mais penosos.Os
pobres merecem plenamente a prpria sorte por serem gestadores
evagabundos, mas para a sociedade seria um desastre se porventura
eleschegassem a se emendar [...] todos menos idiotas, sabem que as
classesinferiores devem ser mantidas pobres, diversamente deixam de
serprodutivas. (LOSURDO, 2006, p. 101-102).
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 205
interessante trazer a contribuio da Thierry Pech e Fredric
Gros(2001) em conjuno analtica que orientam a presente anlise
econstruo terica sobre a juridicidade estatal centralizadora
moderna,que tem sua operacioalidade como resultado de trs dinmicas
paralelas:o (i) pacto humanitrio - a partir do qual se prope
construir umaestrutura material e simblica que preconize os
direitos humanos e orespeito a integridade (fsica e psquica) humana
ou, em uma acepoBeccariana a maior felicidade com o menor
sofrimento basta saberpara quem se dirige essa felicidade, e custa
do sofrimento de quem(no parece ser uma pergunta que necessite ser
respondida).
Ainda o (ii) consenso processual, ou o que se poderia dizer
aencampao jurdica do tecnicismo procedimental e formalista ou
damecnica operacional, buscando a neutralidade e imparcialidade
odescompromisso pela substncia - ou seja, em uma orientao Lockeana
a construo desta estrutura neutra e imparcial (terceira no
conflito)que tiraria a humanidade do Estado de Natureza, e
permitiria ainaugurao da sociedade civil e politica.
E, por ltimo, o apelo ao (iii) ethos do desempenho, quando
osdiscursos anteriores se confrontam com a necessidade de segurana,
quese resume/transmuta em atuao policial e judiciria cientfica e
eficientee ainda com a mudana de indivduos ou, em uma
orientaoautenticamente Benthamiana3, fazer com que esses indivduos
e essesprocessos, revertam em alguma coisa de positiva para a
sociedade,justificando-se com argumentos (pseudo) cientficos a
necessidadepoltica envolta em sua capa de pretenso humanitria de mo
deobra escravizadamente livre; e ainda, resumindo os indivduos
quelanuance caracterstica que interessa ao sistema e que
justifica/legitima asua interveno.
Assim contribui Antonio Manuel Hespanha, sobre o
reducionismoproporcionado pelas dinmicas tcnico-mecnicas de
operacionalizaoda justia estatal liberal:
Os sentidos implcitos desta sistemtica assim como a compreensodo
direito penal que ela inculcava no devem ser
ignorados.Aparentemente, ela levava a eufemizar as dimenses
extra-judiciriasdo problema penal, arrumando-o entre as questes
puramentetcnicas do processo. As relaes da questo penal com
valorespolticos como as da defesa do Estado e da ordem publica, a
dos
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014206
interesses em jogo , eminentes no critrio romano de
ordenao,tendem a ser obliteradas, tornando-se objetos dificilmente
arrumveisno seio do discurso penal. Por outro lado, esta arrumao
processualistadas questes penais contribui para valorizar os
aspectos intra-individuais os conflitos de interesses privados das
questes criminais. (HESPANHA,1993, p. 333).
Transforma-se os indivduos considerados criminosos (cujo
maiorcrime a prpria existncia e condio social de classe) em
monstros,inimigos, que precisam ser exorcizados, purificados, e
ainda, que precisamdevolver a nao a eterna gratido por sua
humanidade e esforosdispensados com a educao e trabalho.
Nesta linha, a resoluo de conflitos e a restaurao do
tecidocomunitrio deixa de ser a pauta da institucionalidade
imbuda/detentora do monoplio da fora ou do ius puniendi, passando,
ento,de uma instituio de justia para uma instituio disciplinar,
projetando-se uma nova organizao social:
No plano das ideias-guia da aco poltica, justia substitui-se
adisciplina. A coroa vai pretender constituir-se em centro nico
dopoder e da ordenao social, esvaziando os centros polticos
perifricose pondo, com isto, fim constituio politica da monarquia
pluralista[...] todo este programa poltico a que aqui cabe apenas
fazer umareferencia genrica tem consequncias na politica penal,
agora postadiretamente ao servio destes intentos disciplinadores da
monarquia.Se, antes, a punio real cumpria uma funo quase
exclusivamentesimblica, agora ela passa a desempenhar um papel
normativo prtico.Ao punir, pretende-se, de facto, controlar os
comportamentos, dirigir,instituir uma ordem social e castigar as
violaes a esta ordem. Para isto,o direito penal da coroa tem que se
converter num instrumento efectivo,funcionando eficazmente e sendo,
por isso, crvel e temido (HESPANHA,1993, p. 321).
A partir da estandardizao do discurso humanista e da adoo deum
humanitarismo-garantista e de uma processualidade tcnicomecnica,
produz-se o que Thierry Pech chama da utopia carceral, ou, abusca
da neutralizao da pena que se apresenta como a (potencial)porta de
entrada para o contrato e para a cidadania liberal dentro
doslimites (aceitos) da subalternidade e de sua condio na estrutura
social.
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 207
Neste intento de compreender e desvelar essa
operacionalidadepunitiva que se faz a partir da pretensa
racionalidade utilitrio-regulatria moderna que no se d apenas no
plano macro esuperestrutural da epistemologia, mas que se
procedimentaliza de formamuito concreta a partir das agncias
estatais centralizadoras, interessantetrazer Antoine Garapon4
(1997) que contribui imensamente paracompreender o Poder Judicirio5
que uma figura central nesta estruturae como instituio
historicamente determinada em um projeto deengenharia social e de
um paradigma de sociabilidade opressora. Quetem nesta instituio a
figura do rbitro dos antagonismos sociais,mantendo-os em nveis
calculveis, por uma dinmica de clculo atuarialde riscos sociais e,
sobretudo, sistmicos, em uma clara perspectiva deeficincia
tecnolgica visando a manuteno ordeira do status quo.
O autor resgata o processo histrico e tambm uma anlise
tericaacerca das simbolizaes, estruturas conceituais com que
trabalha e asquais sustentam o Poder Judicirio como figura
centralizada e estatizadaresponsvel por uma suposta resoluo de
conflitos de forma cientfica(mecnica) e pretensamente neutra.
Antoine Garapon resume nosseguintes termos:
O acusado ento esmagado pelo cerimonial concebido para o
manterao abrigo da justia popular e a festa transforma-se numa
ordem paramatar simblica, visto que a paixo popular demasiado forte
e otemperamento dos juzes demasiado dbil. Nesse caso, dir-se-ia,
doque que estamos a espera para pr fim a esses ritos to perigosos!
Averdade que as emendas tentadas, quer se tratasse da justia
informalou da intruso dos meios de comunicao social, mostraram ser
maisnocivas do que o prprio soneto. (GARAPON, 1997, p. 20).
Interessante notar como o sistema de resoluo de conflitos,
oudiga-se mesmo de punio, utilizado no antigo regime
(maisapropriadamente como castigo ou expiao) a que se atribui uma
supostabrutalidade ou desumanidade encontrava-se intimamente
vinculado aoseu paradigma societal e como decorrente (quase) lgico
da sua estruturamaterial e simblica medieval; e que, a construo do
sistema monistatecnicista e centralizado na figura do Estado e seu
monoplio da forafsica e do poder de punir, que se apregoa como
sendo o resultado daracionalidade e pretensamente neutra, se
verifica a ntima vinculao ao
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014208
paradigma de sociabilidade e governabilidade do qual resultado
apositividade burguesa do modus vivendi ocidental moderno a
defesade seus interesses e a perpetuao de sua hegemonia de
poder.
Portanto, um sistema penal resultado do modo de produo davida
material (MIAILLE, 2005) que se alterou no decorrer da
prpriahistria (mantendo-se, estruturalmente, da mesma forma), para,
quandonecessitava de mquinas bpedes de trabalho no mar (embarcaes)
e,alm-mar nas colnias em seu processo de colonialismo que no
seriarealizado sem a pena da deportao, do degredo e das gals, foi o
quepermitiu efetivamente a colonizao e os indivduos expulsos
eescravizados que levaram a ideologia liberal. Ainda, quando
internamentenecessitou de mo de obra, encontrando elementos
justificadores dasua interveno, impulsionando a sua dinmica
societal at chegar aindustrializao. J na fase posterior a
industrializao, quando no maisse fazia to necessrio a mo de obra,
ao menos no um exercito tonumeroso, estrutura-se o controle social
mais como dinmica simblicareafirmadora e internalizadora da
ideologia liberal e do contrato social;sempre em uma relao gregria,
simblica e procedimental, com aspolticas de assistncia social, na
construo de indivduos,primeiramente hbeis e voltados para o
trabalho, e depois, como mentesdceis afeitas a sua condio de
subalternidade no novo paradigma desociabilidade e governabilidade
que se constri como naturalizado.
Consideraes finaisEm sede de consideraes finais, e no que as
questes encerrem as
possveis anlises que se faz possvel do processo histrico de
construoda priso como forma de punio privilegiada e generalizada e
todo seuaparato tcnico institucional e ideolgico, mas que ficam no
limite doflego e objetivos do presente trabalho.
Primeiramente, trazer o alerta de Antnio Manuel Hespanha
(1993),sobre esse processo histrico, que no se deu de forma
evolutiva, etampouco pacfica; mas sim permeada por constante tenso,
e que sequercontem marcos estanques de princpios e encerramentos de
perodos,de hegemonias e poderes que se criam e se esfacelam. Marcos
que foramcriaes cientficas e principalmente com fins didticos; so,
emrealidade, processos histricos que se permeiam, se
entrecruzam,interinfluenciam-se. Assim, o processo de transio de
poder e de todaa mudana na estrutura societria contou com grande
resistncia das
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 209
estruturas estamentais do antigo regime, tambm, com o
poderascendente e principalmente econmico da burguesia, e com a
grandemassa de servos e posteriormente proletrios, que em
significativamedida, foram utilizados como marcha de manobra pelas
estratgias ecooptados pelo sedutor discurso liberal da igualdade e
liberdade.
Nesta linha que se prope neste trabalho uma postura
crtico-reflexiva, um esforo terico e, sobretudo desvelador dos
paradoxosproporcionados pela filosofia liberal e a sua dinmica
deoperacionalizao.
Paradoxos que se manifestam quando a filosofia liberal e seu
projetosocietrio calcado no discurso da liberdade se constitui
comoprodutora da liberdade de uns poucos (burguesia homem, branco
eproprietrio), custa da privao a liberdade de muitos que
sequertinham a possibilidade de ser (liberdade negativa), sem a
interveno doEstado regulador, qui de fazer e participar seno pela
via da condiopassiva do objeto de interveno, e escravizao da
maioria queutilitariamente, e servindo ao todo com caractersticas
singulares(LOSURDO, 2006) era submetida ao trabalho forado para o
bem danao e interesse pblico.
Assim como tambm, a igualdade, outro estandarte da luta contrao
antigo regime, e na qual a grande massa pensava estar includa,
edepositava suas esperanas de libertao, e atravs da qual, foi
definidacomo incivilizada, anormal, preguiosa, orgistica,
irracional, e por essavia justificada toda sorte (ou azar) de aes
institucionais para docilizar,controlar e reeducar esse contingente
de seres ignorantes, cujo nicoamparo se constitua na figura do
Estado e sua caridade-punitiva.Discurso de igualdade, que somente
serviu para desqualificar os privilgiosestamentais, nos quais a
burguesia no pertencia, e constituir os prpriosprivilgios,
assentados na propriedade como requisito fundamental epassar a
projetar uma nova naturalidade (artificial) que legitimava aposse
de uns seres por outros.
Por ltimo, a contrariedade liberal em relao a uma
supostabrutalidade do antigo regime no tratamento dos infratores,
que semanifesta na substituio de uma alegao de arbtrio decisrio
esubjetivista pelo imprio da lei e do encerramento da resoluo
deconflitos no tecnicismo cientificista, operacionalizado por um
PoderJudicirio eminentemente classista que resume os indivduos
consideradosinfratores na condio de criminoso como nica dimenso (ao
menos a
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014210
que importa para o funcionamento e legitimao do sistema e sua
atuao)deste, transformado em objeto de interveno normalizadora.
Ao fim e ao cabo, essas consideraes se prestam a reafirmar
umentendimento do paradigma de sociabilidade e governabilidade
liberalcomo um projeto de dominao, no qual o bem supremo capital e
apropriedade privada e no entorno dos quais giram todas as
instituiesmateriais e simblicas, desde o discurso humanitrio e da
seguranajurdica at o Estado e o Poder judicirio, que, servem nada
mais, quepara a manuteno da estrutura social, marcada pela
desigualdade eopresso, que se fazem naturalizadas, ontologizadas.
Subverte-se, assim,concepes de comunidade e solidariedade pela de
produtividade,competitividade e eficincia, produzindo-se
(pretenses) deautossuficincias e individualismos que permitem a
negao do outro, aconstruo de inimigos pblicos; o que para os
desforos de neutralizao,aniquilao e extermnio, so menos que um
passo a mais no processoevolutivo.
Sobre essas bases epistmicas materiais e simblicas pensa-seestar
assentada a dinmica da resoluo de conflitos na modernidadeburguesa,
e sua estrutura de desigualdade, permeada de perversosantagonismos
e, assim, se perpetua o ciclo vicioso e violento da
vinganaoficializada.
-
MTIS: histria & cultura LEAL, Jackson da Silva 211
Notas
1 Nesta linha tambm aponta Beccaria:eis o dogma poltico em que
os povosdeveriam acreditar e que os supremosmagistrados deveriam
apregoar com aincorruptvel proteo das leis, dogmasagrado sem o qual
no pode haversociedade legitima, certa recompensa pelosacrifcio,
por parte dos homens, daquelaao universal sobre todas as coisas,
que comum a cada ser sensvel e limitada pelaprpria fora. (Beccaria,
2013, p. 48).
2 Autor que no foi especificamentetratado no presente trabalho,
e quenecessitaria de um espao prprio paraaprofundamento de suas
contribuies,posturas e consequncias para opensamento criminolgico,
e as estruturasinstitucionais de controle social a partirdo
utilitarismo.
3 Antoine Garapon na obra Bem Julgar:Ensaio sobre o ritual
judicirio (1997)promove efetivamente uma dissecaodesta instituio,
revelando suasentranhas operacionais, e, sobretudo oseu processo
histrico de constituio eque se revelam em diversas questes
contemporaneamente ainda existentes analisando especificamente
questescomo: o espao judicirio; o tempojudicirio; a toga; os
actores; o gesto; odiscurso; o ritual; o drama da Justia; aencenao
do conflito [...] propondo,verdadeiramente, um desvelamento
daidentidade, do legado, e tambm, docomprometimento de classe que
marcamindelevelmente a atuao do PoderJudicirio.
4 No obstante os esforos liberais para seoporem ao antigo regime
v-se naconformao do Poder Judicirio, queseus membros eram
indicados, epermaneciam submissos ao Rei(HESPANHA, 1993; 2005);
enquanto quena modernidade, sob o comandoburgus, verifica-se que
somentemembros da burguesia doutos, letrados,racionais,
intelectual, humanistas ocupavam, no s os cargos damagistratura,
como tambm de todos osaltos cargos pblicos; verificando-se quea
direo social est submissa apenas aoutra classe de indivduos, mas
que alogica, continua a mesma
-
MTIS: histria & cultura v. 13, n. 26, p. 185-212, jul./dez.
2014212
Referncias
ANDRADE, Vera Regina Pereira. Pelas mosda criminologia: o
controle penal para almda (des)iluso. Rio de Janeiro: Revan,
2012.
______. A iluso da segurana jurdica: docontrole da violncia
violncia docontrole penal. Porto Alegre: Livraria doAdvogado,
2003.
BARATTA, Alessandro. Criminologia criticae critica do direito
penal: introduo sociologia do direito penal. Traduo deJuarez Cirino
dos Santos. Rio de Janeiro:Revan/ICC, 2011.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas.Trad. de J. Cretella
Jr. e Agnes Cretella. SoPaulo: Revista dos Tribunais, 2013.
GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaiosobre o ritual judicirio.
Lisboa: Inst.Piaget, 1997.
GROSSI, Paolo. Mitologias jurdicas damodernidade. Florianpolis:
FundaoBoiteux, 2009.
______. O direito entre poder e ordenamento.Trad. de Arno Dal Ri
Jr. Belo Horizonte:Del Rey, 2010.
GROS, Frdric. Os quatro centros desentido da pena. In: GARAPON,
Antoineet al. Punir em democracia: e a justia ser.Lisboa: Inst.
Piaget, 2001. p.11-138.
HESPANHA, Antnio Manoel. Culturajurdica europeia: sntese de um
milnio.Florianpolis: Fundao Boiteux, 2005.
______. Da Iustitia disciplina: textos,poder e poltica penal no
Antigo Regime.In: HESPANHA, Antonio Manuel. Justiae litigiosidade:
historia e perspectiva. Lisboa:Calouste Gulbenkian, 1993. p.
287-380.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre ogoverno. So Paulo: Abril
Cultural, 1978.
______. Ensaios polticos. So Paulo: MartinsFontes, 2007.
LOSURDO, Domenico. Contra-histria doliberalismo. Aparecida/SP:
Ideias & Letras,2006.
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo.Crcere e fbrica: as origens do
sistemapenitencirio (sculos XVI-XIX). Traduode Srgio Lamaro. Rio de
Janeiro: Revan,2006.
MIAILLE, Michel. Introduo crtica dodireito. Trad. de Ana Prata.
Lisboa: EditorialEstampa, 2005.
PECH, Thierry. Neutralizar a Pena. In:GARAPON, Antoine et al.
Punir emDemocracia: e a Justia Ser. Lisboa: Inst.Piaget, 2001. p.
139-247.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER,Otto. Punio e estrutura social. Trad.
deGizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan/ICC,2004.