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Edição 167 • Julho 2014
68

Revista Justiça & Cidadania

Apr 01, 2016

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EDITORA JC

Edição 167 - JuLho 2014
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Judiciário e América Latina: feridas democráticas

TJMT inicia sua trilha decenal rumo ao sesquicentenário

S umário

6 Capa – Gestão pautada no diálogo

Foto: Paulo Rosemberg

Foto: TJMT

Foto: João Andrade

Editorial – Desrespeito à ordem republicana

Poder Judiciário: culpado ou inocente?

O fenômeno do superendividamento

A competência para processar e julgar ações civis públicas que contenham pedido de perda de cargo de agente político

Tempo, ironia e linguagem forense

Greve de dissidentes

Em foco – O peso da magistratura

A indisponibilidade dos direitos da personalidade e as redes sociais

O mito da eleição direta para presidente dos tribunais

Testamento: prevalência e obediência da vontade, em vida, do de cujus

A Constituição de 1934: 80 anos depois

Princípio da colaboração no projeto de CPC brasileiro

Dom Quixote – Uma alternativa ao sistema carcerário

Prateleira – Influências para toda a vida

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Apoio

Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça

Associação dos Magistrados Brasileiros

Especial: Um

a Hom

enagem a

SÁLVIO D

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EDO

4

Ano II - nº 4 - Outubro 2007

Edição 167 • Julho de 2014 • Capa: SCO/STJ

facebook.com/editorajc twitter.com/editorajc

Av. Rio Branco, 14 / 18o andar Rio de Janeiro – RJ CEP: 20090-000 Tel./Fax (21) 2240-0429 [email protected] www.editorajc.com.br

ISSN 1807-779X

Orpheu Santos Salles Editor

Tiago Salles Editor-Executivo

Erika Branco Diretora de Redação

Giselle Souza (MTB: 27748 / RJ) Jornalista Responsável

Carmem Cecília Camatari Revisora

Mariana Fróes Coordenadora de Arte

Diogo Tomaz Coordenador de Produção

Thales Pontes Analista de Artes e Produção

Amanda Nóbrega Expedição e Assinaturas

Correspondentes:

Brasília Arnaldo Gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 Edifício Central Park Brasília – DF CEP: 70711-903 Tel.: (61) 3327-1228/29

ManausJulio Antonio LopesAv. André Araújo, 1924-A – AleixoManaus – AM CEP: 69060-001Tel.: (92) 3643-1200

CTP, Impressão e AcabamentoEdigráfica

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ERRAMOS

Informamos que o texto de apresentação da entrevista do ministro José Antonio Dias Toffoli, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, publicado na capa da edição de junho, sob o título O Grande Desafio, conteve um erro. O último parágrafo da abertura da entrevista (página 9) afirmava que o voto com a biometria seria realizado em 15 cidades nas eleições de outubro próximo. O sistema, na realidade, estará presente em 790 municípios e em 14 capitais do País.

Conselho Editorial

Adilson Vieira MacabuAndré Fontes Antonio Carlos Martins SoaresAntônio Augusto de Souza CoelhoAntônio Souza PrudenteAri PargendlerArnaldo Esteves LimaAurélio Wander BastosBenedito GonçalvesCarlos Antônio NavegaCarlos Ayres BrittoCarlos Mário VellosoCláudio dell’OrtoDalmo de Abreu Dallari Darci Norte RebeloEdson Carvalho VidigalEliana CalmonEnrique Ricardo LewandowskiErika Siebler BrancoErnane GalvêasFábio de Salles MeirellesGilmar Ferreira MendesHenrique Nelson CalandraHumberto MartinsIves Gandra Martins

Julio Antonio LopesJosé Geraldo da FonsecaJosé Renato NaliniLélis Marcos TeixeiraLuis Felipe Salomão Luiz Fernando Ribeiro de CarvalhoLuís Inácio Lucena AdamsLuís Roberto BarrosoLuiz FuxMarco Aurélio MelloMarcus FaverMassami UyedaMaurício DinepiMauro CampbellMaximino Gonçalves Fontes Nelson Tomaz BragaNey PradoRoberto RosasSergio Cavalieri FilhoSidnei BenetiSiro DarlanSylvio Capanema de SouzaThiers MontebelloTiago Salles

Bernardo CabralPresidente

Orpheu Santos SallesSecretário

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Editorial

Desrespeito à ordem republicana

Ao encerrar de moto próprio sua brilhante carreira na mais alta corte do País, marcada pela minuciosa instrução processual e relatoria perfeccionista da Ação Penal 470 (mensaleiros), o ministro Joaquim Barbosa dá mais um exemplo de defesa tranquila, impessoal, isenta, firme, às vezes combativa, das instituições brasileiras. Sua presença engrandece o Judiciário Brasileiro. Já antecipara isso em seu discurso de posse: “O Judiciário a que aspiramos é sem firulas, sem floreios, sem rapapés. Buscamos um Judiciário célere, efetivo e justo”.

O exercício da presidência do STF, é verdade, rendeu-lhe críticas de arrogância, destempero e intolerância. Mesmo assim, não há notícia de que um ministro do STF seja aplaudido em restaurantes, por transeuntes e até moradores de rua e instigado a candidatar-se a presidente, como exemplo de probidade e de que, pela educação adequada, unida a esforço e determinação, um cidadão brasileiro de origem pobre pode triunfar e servir de exemplo a seus compatriotas. E é em respeito aos princípios que a Revista Justiça & Cidadania se arrogou na defesa do Poder Judiciário e da Magistratura, que deixamos a ele as sinceras saudações.

Orpheu Santos SallesEditor

Os tristes e despropositados acontecimentos ocorridos na abertura da Copa do Mundo de futebol, com desrespeito e desprezíveis ofensas de calão contra a presidente Dilma Rousseff,

quando se encontrava na tribuna do estádio em companhia de altos dignitários estrangeiros, constituem vergonhoso e lamentável atentado contra a instituição da Presidência da República e as mais elementares normas de civilidade.

De há muito vimos nos batendo contra a tolerância diante de uma horda de baderneiros que vem depredan-do bens públicos e privados com uso abusivo de liber-dades asseguradas em lei, contando com a omissão con-templativa das autoridades responsáveis para desmandos criminosos. Isso causa inequivocamente desmoralização do governo e prejuízos muitas vezes irrecuperáveis a estabelecimentos comerciais.

Torna-se incompreensível a vista grossa da Polícia que permite a delinquentes mascarados o porte de barras de ferro para danificar vitrines e bens públicos e privados.

A permissividade, a omissão e a tolerância diante de atentados contra a ordem pública geram a anarquia que se está instalando no País, propiciando que a desordem se propague em detrimento da ordem e do interesse público.

A ofensa pessoal à Presidente da República, muito mais que o desrespeito cívico, representa também ato indigno contra uma mulher e mãe, independentemente de sua posição política ou social, e deixa claro o caráter infamante do ato.

Um registro indispensávelA lembrança desse episódio de desrespeito à Presidente

da República evoca, por semelhança, outro atentado recente à normalidade democrática e republicana do País: um advogado, ao que se diz alcoolizado, rompeu não apenas os ritos jurídicos necessários ao funcionamento do aparato judicial, como também as mais elementares normas de urbanidade, ao usar a tribuna da mais alta corte de justiça do País como picadeiro para um comício político evidentemente faccioso e ofensivo; seguido por impropérios e ameaças, após o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, ser forçado pelas circunstâncias a mandar retirar do plenário o destemperado causídico.

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racionais e de planejamento estra-tégico para diminuir esses aspectos negativos”, afirmou.

Por isso, explicou, a importância de estreitar a relação com a magis-tratura do primeiro grau. “Só com o conhecimento da realidade do juiz é que se pode dar soluções para as ca-rências de um modelo de jurisdição especializada como é o brasileiro, único no mundo em sua extensão, capilaridade e importância para a vida cotidiana das pessoas”.

Martins também quer se apro-ximar da sociedade. Nesse sentido, destacou que pretende estabelecer uma relação direta e transparente com a imprensa, com as associa-ções, com a universidade e com os jurisdicionados. “Nossa gestão será marcada pelo caráter participati-vo e pela abertura à sociedade, que será ouvida sempre que possível nos principais projetos do Conselho da Justiça Federal”, ressaltou.

O ministro falou também sobre os planos que tem para o Centro de Estudos Judiciários do CJF, que também está sob o comando dele. Martins informou que uma de suas primeiras ações foi determinar a

À frente da Corregedoria--Geral do Conselho da Justiça Federal (CJF), o ministro Humberto

Martins, do Superior Tribunal de Jus-tiça (STJ), quer intensificar o diálogo com quem está na base da prestação jurisdicional, ou seja, os magistrados federais que atuam na primeira ins-tância e a população que busca esse ramo do Poder Judiciário. Martins tomou posse como corre-gedor-geral da Justiça Federal no último dia 23 de abril. Para alcan-çar a meta que estipulou para si, ele afirmou que vai desenvolver um modelo de gestão “mais preventivo e pedagógico”.

De acordo com o ministro, a Corregedoria-Geral do órgão de planejamento da Justiça Federal de-tém os meios necessários para iden-tificar os problemas e as barreiras existentes à atividade jurisdicional e à celeridade processual. “A Corre-gedoria é o órgão que primeiro tem a oportunidade de se deparar com as causas desses embaraços à atua-ção eficaz da Justiça Federal e pode, por meio de estudos e planejamento, oferecer sugestões normativas, ope-

Gestão pautada no diálogoHá três meses à frente da Corregedoria-Geral do Conselho da Justiça Federal, o ministro Humberto Martins relata as ações que pretende desenvolver para tornar o órgão mais aberto. Objetivo é entender as necessidades dos juízes de 1o grau e do cidadão

constituição de uma comissão cien-tífica para assessorá-lo na análise dos projetos de eventos e na defini-ção do planejamento do órgão.

O corregedor-geral relatou ain-da os planos que tem para a Turma Nacional de Uniformização dos Jui-zados Especiais Federais (TNU), da qual se tornou presidente. Ele con-tou que o volume de processos nos juizados especiais tem aumentado substancialmente, o que reforça a importância do aprimoramento do órgão, por onde, na opinião dele, passa “o futuro da Justiça Federal”. Confira a íntegra da entrevista.

Revista Justiça & Cidadania – Como o senhor vê o Conselho da Justiça Federal e quais as suas ex-pectativas ao integrar o quadro de corregedores dessa instituição?– O Conselho da Justiça Federal é um órgão importantíssimo para o funcionamento e para as atividades da judicatura federal brasileira. O órgão possui três missões de grande relevo: zelar pelo aperfeiçoamento técnico e científico da magistratu-ra, por meio do Centro de Estudos Judiciários; exercer a atividade cor-

C apa, da Redação

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reicional; e uniformizar a jurispru-dência dos juizados especiais fede-rais no Brasil, por meio da Turma Nacional de Uniformização. Per-passando essas três funções, há uma atividade de caráter normativo e de planejamento estratégico da magis-tratura federal que se verifica em todos esses níveis, seja com a parti-cipação em projetos de resoluções, portarias e leis que interferem na Justiça Federal, seja com a formula-ção de ideias e planos que visem ao aperfeiçoamento da Justiça Federal e de seus plexos. Como em todas as outras funções que tive a honra de ocupar, a maior parte delas pela generosidade de meus colegas mi-nistros, encaro a nova missão como uma forma de servir. Sim, de servir ao jurisdicionado, que é cidadão e um dos milhares de brasileiros que precisa e acredita na Justiça como meio de pacificação social. Nesse as-pecto, tenho muito a aprender com a experiência de meus antecessores, que exerceram com dignidade e dis-crição essa impor tante função.

JC – Qual será a marca da sua ges-tão à frente da Corregedoria-Geral da Justiça Federal?– Nossa gestão será marcada pelo caráter participativo e pela aber-tura à sociedade, que será ouvida sempre que possível nos principais projetos do Conselho da Justiça Federal. Especificamente quanto à Corregedoria-Geral da Justiça Fe-deral, é nosso objetivo maior dotar o órgão de um perfil mais pedagó-gico e preventivo. A magistratura hoje é exigida e demandada pela sociedade, pelos órgãos de controle externo e pelo jurisdicionado, sem que as condições reais para exercí-cio da judicatura tenham sido me-lhoradas substancialmente. Há uma assimetria entre o que é demanda-do ao juiz e o que lhe oferecem de condições para seu mister. Martins: “Nossa gestão será marcada pelo caráter participativo e pela abertura à sociedade”

Foto: ACS/CJF

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Foto: Rosane Naylor/TJRJ

JC – O que o senhor pensa em fazer para aprimorar o diálogo com a magistratura federal? – Eu considero o diálogo como um elemento central para qualquer atividade de gestão. Eu estarei permanentemen-te de portas abertas para a magistratura federal e suas representações associativas. É nossa pretensão visitar as seções judiciárias, acompanhar as atividades correicio-nais e os eventos que serão promovidos pelo Centro de Estudos Judiciários, de modo a que possamos conhecer de perto os problemas e a realidade dos juízes federais brasileiros.

JC – Em que sentido, na sua opinião, a Corregedoria pode contribuir para o aperfeiçoamento da Justiça Fe-deral? – A Corregedoria, especialmente quando assume a função preventiva e pedagógica, tem condições de identificar os problemas e os óbices à atividade jurisdicional e à pronta e célebre oferta de justiça aos cidadãos. Não existe uma realidade ideal, muito menos é possível imaginar que nossa Justiça Federal seja isenta de defeitos e de desvios. A Corregedoria, porém, é o órgão que primeiro tem a oportunidade de se deparar com as causas desses embaraços à atuação eficaz da Justiça Federal e pode, por meio de estudos e planejamento, oferecer sugestões

Ministro Humberto Martins quer intensificar visitas a seções judiciárias durante o mandato na Corregedoria da Justiça Federal

Foto: ACS/CJF

“Ser transparente é

administrar com participação

da sociedade e permitir a

todos a fiscalização dos atos

de gestão. Trata-se de uma

visão moderna da coisa

pública, que se inspira nos

modelos de accountability”

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normativas, operacionais e de planejamento estratégico para diminuir esses aspectos negativos. Só com o conhecimento da realidade do juiz é que se pode dar soluções para as carências de um modelo de jurisdição especializada como é o brasileiro, único no mundo em sua extensão, capilaridade e importância para a vida cotidiana das pessoas.

JC – O senhor afirmou, quando da posse como corregedor, que a função da Corregedoria deve ser marcada pela difusão de um valor que, nas suas palavras, é incontornável: a transparência. Como garantir maior transparência, no âmbito do Conselho da Justiça Federal e também no âmbito da Justiça Federal? – A transparência é hoje uma política de Estado no Brasil. A Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, a famosa Lei de Acesso à Informação, tem como uma de suas diretrizes, que se conectam com os princípios constitucionais da administração pública, o fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência nos órgãos públicos. Antes mesmo da transparência, a impessoalidade e a publicidade dos atos são imperativos que a ela se ligam para fornecer uma tríade de pautas à atuação do gestor público, do magistrado e do parlamentar. Ser transparente é administrar com participação da sociedade e permitir a todos a fiscalização dos atos de gestão. Trata-se de uma visão moderna da coisa pública, que se inspira nos modelos de accountability, que conjugam os mecanismos clássicos de controle interno e externo às formas de controle popular e social dos Três Poderes. Nesse ponto, criar uma relação direta e transparente com a imprensa, com as associações, com a universidade e com os jurisdicionados é a forma mais eficiente de implementar esse objetivo.

JC – Que diretrizes o senhor pretende imprimir à direção do Centro de Estudos Judiciários? – A magistratura federal é conhecida pela excelência de seus quadros e por permanente busca dos juízes pelo desenvolvimento de suas competências e habilidades nos campos profissional e acadêmico. O Centro de Estudos Judiciários (CEJ) tem a missão precípua de planejar e executar seminários, congressos, encontros e cursos de extensão voltados para os magistrados e serventuários da Justiça Federal. Além disso, cabe ao CEJ a ação proativa de pesquisar os problemas da Justiça Federal e oferecer soluções racionais e eficazes. A tudo isso soma-se papel preponderante de organização da informação jurídica e de difusão de seu conteúdo para a comunidade. O CEJ vem desempenhando seu papel com grande eficiência e é nosso objetivo contribuir para o excelente trabalho já levado a efeito pelos meus ilustres antecessores. Nesse

aspecto, determinei a constituição de uma comissão científica para o CEJ, formada pelos professores Roberto Rosas (UnB), José Rogério Tucci (USP) e Otavio Luiz Rodrigues Junior (USP), que vai me assessorar na análise dos projetos de eventos e na definição do planejamento do CEJ. Trata-se de uma vertente de minha gestão ligada à transparência e à participação da comunidade universitária. Queremos que o diálogo Judiciário-Academia seja intensificado. Ademais, pretendo contar com a colaboração dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, valorizando suas experiências e suas ligações com as diferentes seções judiciárias federais brasileiras.

Na sua avaliação, o que deve ser priorizado pelo CEJ no que diz respeito a temas para o desenvolvimento de pesquisas e realização de eventos de capacitação? Que temas devem ser eleitos para discussão no âmbito do CEJ? – Alguns pontos eu reputo importantes nesse campo, os quais se ligam aos movimentos de reforma legislativa em curso no Poder Legislativo e à necessidade de debate público das grandes controvérsias e dos conflitos que são levados ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça e da Justiça Federal. Assim, temas como a improbidade administrativa, a reforma processual, o processo eletrônico e os direitos da personalidade devem receber especial atenção do CEJ. A pesquisa é algo que deve ser permanente e ocupar posição de preeminência no âmbito do CEJ. O aperfeiçoamento técnico-profissional, a pesquisa e o diálogo com os atores que formam a comunidade jurídica estão na linha de frente de minha gestão.

Com relação à Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, como o senhor vê o papel desse colegiado no âmbito da Justiça Federal? – Na Justiça Federal, em razão das reformas processuais dos últimos 20 anos e, especialmente agora, com a iminência da aprovação de um novo Código de Processo Civil, houve deslocamento do volume de processos para os juizados especiais. A estrutura física da Justiça, o modelo processual e o desenvolvimento das tecnologias da informação ainda não conseguiram corrigir esse gap entre a realidade da vida cotidiana nos juizados especiais e as previsões abstratas da legislação. A Turma Nacional de Uniformização (TNU) é, nesse sentido, um órgão cuja importância real ainda não foi descoberta pela universidade, pelos pesquisadores e pela sociedade. É preciso que a TNU seja aprimorada e que ela ganhe a relevância que seu papel no contexto contemporâneo da jurisdição brasileira exige. O futuro da Justiça Federal, dito de outro modo, passa pela TNU.

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Neste 1o de maio, o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso completa seus 140 anos de instalado, após ter sido criado pelo Decreto n. 2342, de 6 de agosto de 1873, sob a égide do

Brasil Império. Naquela oportunidade, chamado de Tribunal da

Relação da Província de Mato Grosso, era composto por quatro desembargadores e constituía-se de cinco comarcas, a saber: Cuiabá, Corumbá, Cáceres, Diamantino e Sant’Ana de Paranaíba.

Hoje, com a estrutura tripartite da República, sendo o Ju-diciário uma das pilastras do Estado Democrático de Direito, a estrutura e a organização dos Tribunais, entre os quais o de Mato Grosso, passaram por grandes transformações, para atender às demandas crescentes e mais complexas.

Dessa sorte, nos tempos hodiernos, o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, após a Carta Política de 1988, alcançou o total de 30 desembargadores, dos quais 24 provêm da Carreira da Magistratura Estadual e seis do Quinto Constitucional (três do Ministério Público Estadual e três da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Mato Grosso), para dar conta da prestação jurisdicional demandada nas 79 comarcas, e, com isso, registra mais de um milhão de processos em tramitação.

De lá para cá, embora os números de sua organização tenham crescido, não é demais lembrar que o salto que

Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso inicia sua trilha decenal rumo ao sesquicentenário

Márcio Vidal Vice-Presidente do TJMT

se verificou no país, como um todo, e em Mato Grosso em particular, em quase um século e meio, não guarda termos de comparação, porque a sociedade, moderna e contemporânea, mudou radicalmente não só em termos quantitativos, mas, sobretudo, em termos de exigências, próprias dos novos tempos, da modernidade, dos avanços sociais, políticos, culturais, científicos e tecnológicos. Enfim, tem-se, hoje, uma realidade sociocultural inimaginável há 140 anos. Portanto, os idos de 1874 representam os primeiros passos do Judiciário neste estado, então Província de Mato Grosso, abrangendo, então, o atual estado de Mato Grosso do Sul e o de Rondônia, antes Território do Guaporé.

A preocupação com números e estatísticas sociais constitui ênfase da sociedade contemporânea, em que os interesses marcados pela subjetividade misturam-se e disfarçam-se entre os interesses coletivos. É a hegemonia dos dados estatísticos, pelos quais os indivíduos compõem um todo, traduzido em termos percentuais. Essa é uma mudança de perspectiva, ou de paradigma, que marcou e marca a sociedade globalizada.

Por essa razão, os números não permitem comparar, grosso modo, o quantitativo de feitos enfrentado pelo Tribunal da Relação da Província de Mato Grosso, proporcionalmente, em face do quantitativo das demandas que percorrem o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, na atualidade.

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Esses números preliminares (cinco comarcas) do Tribunal da Relação e quatro desembargadores contra 79 comarcas, 30 desembargadores e mais de um milhão de feitos em tramitação, na atualidade, permitem evidenciar o descompasso entre as duas situações, em que, sem dúvida, em que pese a toda a contribuição do emprego da tecnologia informacional moderna, ao que parece, a prestação jurisdicional, paradoxalmente, tornou-se mais precária, ao longo da República.

É de considerar, contudo, que os reflexos da Revolução Francesa que trouxeram à tona o universo das reivindicações que marcam, nos dias de hoje, o exercício da cidadania sobre a coisa pública (res publicae), no Estado Republicano Moderno, gradativamente, abriram espaço a que a prestação jurisdicional, antes só reivindicada por classes sociais mais favorecidas economicamente, passasse a constituir a pauta das classes sociais ditas despossuídas.

Logo, a ampliação do exercício da cidadania, ainda que não tenha atingido a maioria da população, em termos da prestação jurisdicional, sem dúvida, deu gigantesco salto quantitativo, sem que, proporcionalmente, tenham sua estrutura e a organização judiciárias acompanhado a demanda.

Aliás, pode-se afirmar que esse não é um “privilégio” do Judiciário. Nada obstante a todos os avanços e conquistas sociais, o fato é que, inegavelmente, essa constatação estende-

se, de forma lamentável, a todas as atividades essenciais do Serviço Público deste país, quais sejam: Educação, Saúde, Segurança e Justiça, seja esta a institucional, seja a social, sobretudo porque as políticas públicas só emergem para nefastos fins eleitoreiros.

Infelizmente, o crescimento quantitativo, em todos os seus aspectos, não foi devidamente acompanhado pelo desenvolvimento socioeconômico que teria levado este país ao concerto das nações consideradas desenvolvidas.

Resistente às intempéries, o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso completa seus 140 anos, e, como já destaquei em texto anterior a ele dedicado, mais do que centenário, mantém-se sujeito e, ao mesmo tempo, testemunha de sua história, conforme registram seus arquivos, vivos ou mortos, antigos ou modernos, e guardam, silentes, discretos, recolhidos, histórias gloriosas, por vezes e, por outras, nem tanto.

Apenas dez anos – que, na linha do tempo histórico da humanidade, é quase nada – separam-no de seu sesquicentenário! Por seus corredores, quanta história, em tão pouco e em tanto tempo que a locomotiva deixou para trás, mas tem pela frente o infinito!

Quantos por seus corredores transitaram, ou ainda transitarão, julgados ou não? Pelo sim, pelo não, merece este Tribunal comemorar o tempo que já venceu e investir no tempo que já vem, como bem o disse o cantor e poeta da MPB, Chico Buarque, “desde o ano passado para o mês que vem, que já vem, que já vem...”, a exemplo de Pedro pedreiro que espera o trem...

Em honra da importância de seu papel junto ao corpo social, gostaria de prestar-lhe breve reverência, sobretudo pela independência que deve ter, notadamente nesses tempos conturbados, de tanta violência e de disputas políticas acirradas e, não raro, pouco, ou nada, éticas.

Em que pese tão lamentáveis circunstâncias históricas, que cercam não apenas a sociedade brasileira, mas grande parte da ordem política internacional, e ainda que alguns países conservem-se monárquicos, como é o caso da Ingla-terra, o Estado Moderno, fruto do processo civilizatório, sustenta-se no equilíbrio dos poderes constituídos.

Com lastro nessas rápidas digressões, assevero que, por este Tribunal, já passaram muitos homens honrados e de grande cultura, como aqueles que ainda integram suas hostes, símbolos que são de independência, defensores da lei e da justiça, e que dedicam, ou dedicaram, sua vida em prol da construção e do aperfeiçoamento deste Judiciário, a serviço da sociedade e da prestação jurisdicional. Confundem-se eles com a tradição histórica desta instituição, dignos que são da liturgia do cargo que ocupam, ou ocuparam.

Por tudo isso, em honra dessa tradição e da liturgia da Justiça, cabe às gerações que ora se formam suceder-

Foto: TJMT

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lhes na condução do bastão, a ser levado rumo ao desconhecido, ao imprevisível. Se por mais não fora, urge que se preparem os magistrados do presente para o futuro, imediato e o remoto, na certeza de que os modelos de hoje poderão ser inadequados e insuficientes para a sociedade do porvir.

A história do conhecimento tem mostrado que toda evolução experimenta o antes, o agora e o depois, em uma sequência cujo presente constitui o elo de ligação, necessário, imprescindível, entre o passado e o futuro; sem essa integração, não há evolução possível. A novidade de hoje será o ultrapassado de amanhã, assim como os modelos se renovam, mas jamais se perpetuam como novos, porque, tão logo se atualizam, estão superados no momento seguinte. É assim que caminha a produção do conhecimento através do tempo, atravessando toda a história da humanidade.

Diante disso, a Justiça, como instituição, integra e acompanha essa realidade, cumprindo-lhe administrar as relações sociais no mundo jurídico, em consonância com o contexto sócio-situacional, em cada época, e segundo suas circunstâncias sociojurídicas. Não só por isso, a instituição judiciária precisa aparelhar-se com novos instrumentos tecnológicos e com novos modelos de recrutamento de seus quadros, que se devem dotar da capacitação necessária e exigida para jurisdicionar nas novas realidades, em que são gestados problemas cada vez mais inusitados, por vias cada vez mais exóticas.

Basta considerar, por exemplo, a reação que se vem forjando, para se destacarem os indivíduos nas chamadas redes sociais, advindas da globalização das comunicações. Assim, vias como Facebook, blogues etc., enfim, todas aquelas que utilizam a rede mundial de computadores, têm constituído ambientes não só desse processo neoliberal subjetivista global, como também de práticas delituosas ou criminosas, muitas vezes, de difícil solução, porque os aparatos, repressivo, policial e judicial dos estados não estão suficientemente preparados para combater nessa frente de batalha, além do que não há orçamento público possível que possa suprir as necessidades ilimitadas de atualização tecnológica permanente, em geral sustentada pelo grande capital privado, nas mãos de poderosos grupos financeiros.

Diante desse quadro dramático, mas não só por isso, os poderes do Estado Moderno e Contemporâneo estão em crise. As imagens televisivas dão a dimensão do desaparelhamento dos Estados para debelar as ações aparentemente desordenadas para estabelecer o caos pela intensa mobilização, por tudo e por nada, contra a atuação estatal, ao que parece.

É nesse contexto social que a Justiça hodierna deve dizer a que veio e qual o seu papel. Por tudo isso, in-

discutível o mérito da magistratura, em seu mister de guardiã da democracia, dos direitos, das garantias so-ciais, enfim, do exercício da cidadania, neste momento especialmente crítico da história da humanidade, quan-do, ao invés de evoluir, muitos indivíduos insistem em regredir à barbárie.

Não apenas por isso, que já é bastante, estendo a todos os Colegas da Magistratura a homenagem que ora presto ao insigne Desembargador José Barnabé de Mesquita, imortalizado no busto que representa sua imagem de homem íntegro, figura impoluta e valorosa que tantos anos de sua não longa existência – diga-se de passagem – dedicou, como timoneiro, a este Tribunal.

Permanece seu busto, tal sentinela perene, firme, desperta, indormida e consagrada que, incansavelmente, guarda este Tribunal, como se sobre ele estendesse sua toga, qual manto protetor, recobrindo e preenchendo, com sua lembrança, todos os espaços deste Sodalício que jamais o relegou ao esquecimento... Tanto é assim que ostenta seu busto, como um troféu de todos que integram esta Corte de Justiça, enlaçados pelo Colar do Mérito Judiciário e condecorados com a Medalha do Mérito Judiciário José Barnabé de Mesquita.

Encerro esta mensagem com os comoventes e preciosos versos no magistral soneto de poeta parnasiano retardatário, que o insigne e ínclito Desembargador José Barnabé de Mesquita o era e, por não mais que isso, caprichosamente os urdiu, com a delicadeza de joalheiro das palavras, para homenagear a querida Cuiabá:

CIVITAS MATER

Meu carinho filial e meu sonho de poetaVeem-te, ó doce cidade ideal dos meus amoresEm teu plácido vale, entre colinas, quieta,Como um Éden terreal de encantos sedutores.

Tuas várzeas gentis estreladas de floresSagram-te do sertão a Princesa diletaE o sol te elege, quando, em íris multicoresNa esmeralda dos teus palmares se projeta.

Nenhuma outra cidade assim à alma nos fala,Dos teus muros senis a tradição se exalaE a nossa História inteira em teu brasão reluz.

Ainda hoje em teu ambiente, ó minha urbe querida,Paira dos teus heróis a sombra estremecida– Nobre Vila Real do Senhor Bom Jesus!

Cuiabá, outono de 2014.

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Poder Judiciário: culpado ou inocente?Márcio Flávio Salem Vidigal Desembargador do TRT 3ª Região

as instituições estatais e as pessoas jurídicas de direito privado e de direito público, que tanto concorrem para o desconfortável e volumoso número de ações e litígios em curso perante as distintas jurisdições (civil, penal, trabalhista, ambiental, consumerista, tributária etc.).

Não é difícil verificar quantos acorrem ao Poder Judiciário com a visão individualista e exclusivista, própria de uma ideologia irresponsável, de que podem utilizá-lo sem preocupação alguma com os resultados institucionais ou sociais que tal atitude possa causar. Bem por isso é que qualquer plano que se pretenda elaborar para o alcance da almejada duração razoável do processo e da efetiva prestação jurisdicional será tão inútil quanto for o seu desprezo pelo sentimento de que um só, e apenas um, processo tem reflexos de toda ordem sobre toda a sociedade.

A visão elástica de que o Estado – logo, a sociedade – está sempre a serviço de interesses individuais ou de grupos (de casta privilegiada, no mais das vezes), com a possibilidade de manutenção indevida e onerosa de processos inacabáveis, é própria de uma era já ultrapassada e de mentalidade obtusa que se instaurou, desde longa data, sobretudo nos países em que quase tudo é possível em nome de uma equivocada concepção de democracia. A análise, por isso mesmo, não pode se resumir a uma suposta cultura demandista nacional, conquanto se deva admitir que tal estado de ânimo tenha se agravado na sociedade brasileira por força de uma interpretação equivocada da garantia constitucional do acesso à justiça, que se presta à variada espécie de abuso. Por isso, muitas vezes processa-se e se é processado por vingança, por pirraça, por inveja, por se tratar de um bom negócio, por tentativa, por tudo.

É preciso lembrar, ainda, a bem de todos, que “direitos são serviços públicos que o Governo presta em troca de tributos”, como assinalam Stephen Holmes e Cass Sunstein em seu precioso The cost of rights: why liberty depends on taxes (New York and London: W. M. Norton, 1999, p. 151). E concluir que a sociedade não pode arcar com a reprovável postura de um ou de alguns (incontáveis, na verdade) que, por capricho ou conveniência, mantêm abarrotado o sistema judiciário.

As discussões sobre as dificuldades do Poder Judiciário brasileiro têm revelado que o tempo excessivo na administração da justiça constitui grave perigo para o Estado Democrático,

conduzindo à negação dos direitos previstos pela Constituição e pela legislação, muitas vezes com reflexo na dignidade da pessoa, princípio universal consagrado no ordenamento jurídico brasileiro e alçado a valor supremo. A situação, é claro, está a exigir imediata e urgente tomada de posição na busca da solução de um problema estrutural da duração do processo, o que requer forte empenho de toda a sociedade.

Na verdade, a contínua produção de leis, as sucessivas alterações que se fazem no ordenamento processual, as novidades que se imaginam, a construção de um aparato unicamente jurídico, destituído de consciência social, são medidas tão inócuas quanto o ritmo e a corpulência que se lhes são conferidas. O mundo atual indica, ao contrário, e com rigor, a impostergável necessidade da adoção de novo espírito e de nova postura de solidariedade e respeito sociais, o respeito a valores culturais, com o consequente exercício consciente de responsabilidade por parte de todos os segmentos da sociedade. Entre eles, evidentemente,

Foto: Leonardo Andrade

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Passados anos e anos de regimes autoritários e sangrentos, com a perda de inúmeras vidas de diversos militantes políticos, estudantes, pro-fessores, jovens, juízes etc., a América Latina

esperava, ansiosa, pela vinda de novos ares democráticos, distanciados das políticas populistas.

Nós, latino-americanos, aguardávamos pelos dias da concretização da democracia plena e comprometida com a real vontade popular e não com projetos políticos de grupos setorizados e seus interesses. Esperávamos a igualdade concreta de oportunidades, o resguardo dos direitos fundamentais, um Estado pautado pela liberdade de expressão e por um Judiciário livre de influências externas ou castrações políticas, verdadeiramente independente.

Este é ponto central e que merece nossa reflexão, ou seja, quais são as limitações das mais diversas ordens que vêm sendo impostas aos povos latinos, despertando nossa curiosidade para indagações como: até que ponto a América Latina possui um Judiciário livre de amarras? Os juízes latinos são livres e independentes de verdade? Os povos latinos percebem o grau de independência do seu Judiciário ou tal fato parte de um enredo político que soa como uma reforma natural e necessária por um judiciário “dito” melhor?

Aqui não pretendo encontrar respostas objetivas, mas aguçar a reflexão acerca do nosso papel e do nosso estágio

atual, bem como do que está ao nosso redor e, por vezes, não percebemos.

Testemunhamos todos os dias, quer pelos jornais, quer por artigos técnicos publicados em toda parte do mundo, quer pelos diversos meios de comunicação, referências de que alguns países latinos adotam discursos constitucionais para justificar suas democracias em franco e radical processo de cerceamento das atividades judiciais e dos meios de comunicação. O Judiciário tem sofrido severas limitações em sua independência como poder e na atuação de seus membros, sofrendo franca manipulação na sua atuação e limites.

Para que nossa reflexão tenha a medida exata da situação imposta aos juízes pelo mundo, em que pese tratarmos da América Latina, vale a reflexão com relação à situação vivida pelos magistrados na Espanha.

Naquele país, os julgadores não percebem tipo algum de aumento desde 2010; ou seja, persistem por mais de quatro anos sem qualquer forma direta ou indireta de reajuste, em condições econômicas concretamente desfavoráveis. Ao contrário, no ano de 2012, impuseram aos nossos colegas espanhóis uma redução em seus vencimentos de 9%, fato da mais relevante gravidade. Com isso, além de não desfrutarem de qualquer forma de reajuste, tiveram seus salários reduzidos.

Diante de um quadro tão comprometedor, os magis-trados da Espanha promoveram a primeira greve instada

Judiciário e América Latina:Feridas democráticas

Antonio Aurélio Abi Ramia Duarte Juiz de Direito do TJRJ

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pela classe, com alcance de 1.025 juízes, dos cerca de 4,5 mil que atuam no país ibérico. Ganha relevância o fato de o movimento em questão ter sido subscrito pelos julgadores decanos, estes insatisfeitos com as constantes interferências sofridas no seu âmbito de atuação, portanto, fruto da madura reflexão e experiência daqueles que ocupam o ápice da pirâmide. Não estamos tratando de um movimento nascido do ímpeto juvenil.

Notícias dão conta de que a paralisação teve início devido a uma punição de 1.500 euros imposta a um magistrado, além de outros itens, como se percebe detalhadamente no trecho transcrito abaixo, que culminou no ato conhecido como Movimiento 8 de octubre (Greve da Magistratura):

El detonante del paro de hoy ha sido el caso del juez de Sevilla Rafael Tirado, multado con 1.500 euros por no ejecutar la sentencia que condenaba por abusos al presunto asesino de Mari Luz. La sanción no satisfizo al Gobierno y así lo hicieron saber la vicepresidenta Primera, Mª Teresa Fernández de la Vega, y el propio Bermejo. El pasado 8 de octubre, los jueces decanos firmaron un documento en el que rechazaban las “constantes injerencias” políticas en el CGPJ, lo que dio nombre al Movimiento 8 de octubre. El 21 de octubre, los tribunales se paralizaron en toda España durante tres horas al coincidir el paro de los secretarios judiciales en protesta por la sanción a Juana Gálvez, secretaria de Tirado, con las juntas de jueces convocadas para denunciar las “presiones políticas.

Foto: João Andrade

Tal movimento culminou com a demissão do ministro da Justiça, sendo nomeado novo, que retomou o diálogo com as associações de juízes para uma solução comum. Ademais, a questão da greve foi submetida ao Tribunal Supremo da Espanha, com resultados altamente proveitosos para os magistrados daquele país, sendo absolvidos os juízes que dela participaram, reconhecido o direito de manifestação dos julgadores, e, por fim, confeccionado documento com reinvindicações da classe.

Não resta dúvida de que o Judiciário, em toda parte do mundo, sofre tensões de poder em sua atuação e seu espaço; contudo, vivenciamos um quadro mais acentuado no nosso continente, uma realidade altamente comprometida em alguns países, com a consequente e clara violação da independência e liberdade de atuação do Judiciário (quer do poder em si, quer de seus membros), sob o crivo legitimador dos regimes populistas e democráticos radicais. Algo preocupante, eis que tratamos de nossos vizinhos-irmãos, a nossa porta ao lado...

Como bem destaca o Prof. Javier Couso, em importante estudo realizado pela Universidade de Yale, países como Bolívia, Equador e Venezuela debilitaram gravemente a separação dos poderes, em franco prejuízo ao Poder Judiciário e à sua endógena independência.

Leciona Couso que a magistratura na Bolívia e Equador

está sob o controle popular e do Executivo, mediante o aval do parlamento e do conselho judicial; já na situação

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específica da Venezuela, sob o controle governamental encarregado da nomeação dos julgadores.

Notem que estamos tratando de eleição “populares” em países de democracias tardias e populistas, com um déficit moral e educacional gritantes, para composição de órgãos julgadores, com todas as especificidades políticas inerentes a tal processo eleitoral, em franco processo de degradação da independência do nosso Judiciário.

Mais uma vez, Javier Couso, no importante estudo apresentado à Universidade de Yale, conclui que o “novo constitucionalismo” latino-americano tem muito pouco de constitucional devido à sua hostilidade à separação dos poderes e à independência da magistratura, entendendo pela intromissão de fatores pouco democráticos nos diversos mecanismos judiciais de preservação de valores essencialmente legítimos e na composição do próprio poder em si. Reitero, esta é a conclusão do trabalho apresentado a uma das mais renomadas universidades do mundo, fato demonstrado cientificamente.

Passando para o caso particular da Venezuela, podemos constatar tal intromissão em diversos campos de atuação política, em regra, promovidos por regimes “democráticos” e “populares”.

A ONG Human Right Watch denunciou, em subs-tancial estudo com mais de 200 páginas, que o máxi-mo tribunal venezuelano converteu-se em um fantoche do governo. Tal fator é desencadeado a partir de 2004, quando havia um equilíbrio entre os 20 membros da Suprema Corte (10 favoráveis a Húgo Chávez e 10 con-trários). Diante da necessidade de maior controle das decisões, foi promovida uma reforma pelo governo de Chávez, ingressando novos 12 juristas com tendências Pró-Chavismo. Consequentemente, com a nomeação dos novos 12 juristas pelo Poder Executivo venezuela-no, o governo passou a ter situação altamente favorável aos seus interesses, alcançando a maioria dos votos ne-cessários.

José Miguel Vivanco, da ONG Human Right Watch, nos faz lembrar: “De entre todas las medidas de recortes de libertades y derechos humanos, la ONG destaca una especialmente grave: la ley que reformó el Tribunal Supremo en mayo de 2004. ‘Con la reforma, Chávez incorporó a 12 jueces chavistas, se hizo con la mayoría y convirtió al tribunal en un apéndice del Ejecutivo’”.

Após apresentar tal relatório crítico ao governo e suas reformas, o diretor da Human Right VIVANCO (chileno) foi expulso daquele país, sendo sumariamente conduzido para o aeroporto Simón Bolívar com destino a São Paulo. Notem: a mesma democracia que expulsa escolhe os julgadores e dita as reformas judiciais.

Tal situação é tão gravosa que, em pesquisa feita em 1998 pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento, somente 0,8% da população confiava no Judiciário venezuelano.

Outro exemplo tópico decorre do ano de 1999, quando a assembleia nacional declarou que o Poder Judiciário da Venezuela encontrava-se em estado de emergência, criando uma comissão para reformá-lo. Com o início dos trabalhos desta comissão, ocorreu a destituição, da noite para o dia, de centenas de juízes. Basta recordar que três dos magistrados mais independentes e atuantes, que proferiram as decisões mais criticadas por Chávez, foram destituídos de suas funções sumariamente.

Adiante, as demissões chegaram a mais de 400 juízes, chegando ao ponto de 80% dos juízes venezuelanos ocuparem cargos temporários e provisórios, logo, podendo ser destituídos sumariamente.

Em outro vizinho do Brasil não temos situação diversa. No Equador, o parlamento dissolveu o Tribunal

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As notas de rodapé foram suprimidas para composição do texto com autorização do autor. A íntegra do artigo encontra-se disponível pelo link: http://bit.ly/1qsdRwv

Constitucional e nomeou nova Corte Constitucional em substituição à anterior, com o especial encargo de solver uma questão relativa à destituição de 57 deputados opositores ao governo, deputados que foram sumariamente destituídos.

Na Argentina, o governo de Cristina Kirchner ofertou proposta de retirada da Suprema Corte do poder de administrar e gerir seu próprio orçamento, sendo tal transferido para o Conselho da Magistratura (órgão que nomeia, sanciona e destitui juízes), em clara reação a decisões contrárias aos interesses do Executivo argentino. E mais: tal proposta é ofertada em um pacote que o governo denominou de “democratização da Justiça”.

Tal quadro nos reporta a uma situação de “quase-de mocracia”, na qual os líderes latinos pretendem questionar a legitimidade dos tribunais, além de outros fatos mais atentatórios à liberdade humana, algo da mais

perversa gravidade. Tal constatação foi objeto de atenção do Ph.D. por Harvard e professor das Universidades de Hamburgo e Connecticut School of Law Ángel Ricardo Oquendo, em publicação feita pela Universidade de Yale, cujo trecho merece nossa profunda reflexão:

After evolving into a quasi-constitutional regime that boasts virtually universal recognition and a respectable compliance record in Latin America, the Inter-American Human Rights System presently faces a life-threatening crisis. Several countries, under the leadership of the self-styled Bolivarian Axis of Venezuela, Ecuador, Bolivia, and Nicaragua, have questioned the legitimacy of the key institutions, i.e., the Commission and Court. Not surprisingly, high-profile actors have intervened in this interfamilial war. Ecuador’s President, Rafael Correa, for instance, has urged the sponsoring Organization of American States, in the face of the ongoing dispute, to “revolutionize itself or disappear.” 3 Bolivian President Evo Morales, in turn, has proclaimed that the entity must either “die at the service of the empire or be born again to serve the peoples of the Americas.

Não resta a menor dúvida de que todas as medidas acima descritas e uma centena de outras que ocorrem nos países latinos evidenciam clara violação ao art. 8o da Convenção Americana de Direitos Humanos, que estabelece julgamentos por juízes competentes, imparciais e acima de tudo independentes. A relevância da independência e imparcialidade também é exigida pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, em seu artigo 6o, fator a reforçar o zelo de todos pela independência e liberdade do Judiciário.

Quanto mais castrado e limitado o Judiciário, seja interna ou externamente, mais prejudicado é seu povo, de menos liberdade usufrui, mais massacrado é pelo Estado, mais atrasado cultural e socialmente se revela.

Uma certeza nos resta: não há democracia com um Judiciário controlado e tolhido, com juízes amedrontados. Não é esta a verdade democrática que o povo espera da Justiça.

Dezenas de outros exemplos nos reportam à reflexão relativa ao tema da independência do Judiciário, restando claro que os poucos casos ora transcritos renovam a necessidade de máxima vigilância e a percepção crítica do que está ao nosso redor. Lutemos para que nossa casa persista sempre livre, lembrando a observação de Oscar Wilde de que “a verdade raras vezes é pura e nunca é simples”.

Foto: Depositphotos

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1. Introdução

O endividamento de consumidores é, de fato, um dos temas mais instigantes e socialmente relevantes que dizem respeito à autoproteção dos consumidores. Endividamento é um fato

inerente à vida social, comum na sociedade moderna, pois mesmo os consumidores que não se endividam ou pagam à vista têm à sua disposição infinitas possibilidades de contrair crédito e fazer empréstimos. Essa é a lógica que move o mundo capitalista no ocidente. Assim, quase sempre, para ter acesso a bens e serviços, os consumidores se endividam constantemente.

O tema tem sua relevância tanto no aspecto social, quanto do indivíduo e ainda em suas decorrências jurídicas. O aumento do consumo atrai as pessoas, que se veem atônitas diante de tanta oferta de crédito facilitado. Na sociedade moderna, o consumo passou a ter o papel de satisfazer as necessidades e realizar desejos, para muito além das necessidades e desejos considerados básicos ou necessários para a sobrevivência.

Desse modo, os consumidores contemporâneos não buscam apenas o bem-estar material, mas também o bem-estar psíquico, que é promovido pela aquisição desenfreada dos mais variados itens de consumo, o que acaba por modificar o conceito de necessidade.

O fenômeno do superendividamento: uma resposta ao desamparo na sociedade moderna

Alexandre Chini

Diógenes Faria de Carvalho

Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro

Professor Universitário

2. A concessão de crédito como estímulo para o endividamento

O endividamento e o consumo de produtos e serviços específicos estão relacionados à necessidade que temos de aprovação de outros. E o capital, então, determina a receptividade e adesão a um grupo social, até mesmo determinando as amizades.

Nota-se que a substituição do desejo de ser amado pelo desejo de aprovação, de se destacar, de ser melhor que outros, de impressionar e de ser importante agravou o problema do endividamento dos consumidores.

O problema do endividamento está associado não somente ao estilo de vida urbano, em que o acesso a diferentes tipos de bens e serviços é acompanhado de forte pressão social para adquirir estes, mas também à compulsão do homem moderno por aprovação.

Nos dias de hoje, diferentemente do que ocorria nas décadas passadas, a disseminação do crédito faz que grande parte dos bens seja acessível a todas as camadas sociais, sendo a sua aquisição o fator que viabiliza inclusão ou pertença a essa sociedade de consumo. Como bem frisa Lipovetsky: “o consumo para si suplantou o consumo para o outro” (LIPOVETSKY, 2010, p. 42). Todo mundo busca a aprovação e a admiração nos olhos dos outros. E bem

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Alexandre Chini

observa Bauman: “as bases para a autoestima fornecida pela aprovação e admiração de outro são notoriamente frágeis” (BAUMAN, 2009, p. 59).

Na sociedade contemporânea, há verdadeira mania pelas marcas, que trazem intrinsecamente a ideia de qualidade para si, surgindo compulsão pela aprovação, fazendo que o indivíduo da sociedade moderna substitua valores morais pelo desejo de brilhar, de ser melhor que os outros, de impressionar, ou de ser importante.

O esforço pela aprovação, para provar uma coisa ou para se sentir incluído torna-se uma luta constante e totalmente inútil. Nada que não seja autêntico pode trazer satisfação. Mesmo que experimentando “vitórias temporárias” – admiração, aprovação, seja o que for – a sensação final será de insatisfação e desamparo.

O processo de consumo traz questões acerca da subjeti-vidade dos sujeitos e, nas concepções freudianas de sujeito e constituição, Freud (1895) desenvolveu um conceito funda-mental para a análise da constituição do sujeito: o desampa-ro. Dessa feita, para esse autor, o desamparo é uma condição inerente ao ser humano, considerando-a como a dimensão a partir da qual se desenvolverá a vida psíquica do sujeito.

Nesse diapasão, verifica-se que, na sociedade moderna, os indivíduos são submetidos aos seus desejos e os fornece-dores apresentam seus produtos com a promessa de grati-

ficação total. E esse desejo, sensorial e ilusório, passa a ser realizável. Daí observa-se uma cultura em torno da imagem, da aparência, da boa forma, da juventude, que encontra suporte na demanda desse sujeito, e a subjetividade torna-se, então, uma peça fundamental para o sucesso desses forne-cedores, pois o sujeito tem a sua demanda satisfeita, iluso-riamente, pelos produtos ofertados.

A partir dessa leitura do sujeito observado por Freud (1895), podemos pensar a cultura do consumo nessa socie-dade moderna. Segundo o autor psicanalítico, o nascimen-to é a primeira experiência de ansiedade e desamparo pela qual passa o indivíduo, pois, com o corte do cordão umbi-lical, dá-se início a um irreversível processo de adaptação e luta pela sobrevivência. A criança quando abandona o mun-do uterino inicia um processo de desenvolvimento rumo à realidade concreta: simbolicamente, marca a passagem da gratificação completa à permanente falta.

Segundo Freud (1895), essa primeira experiência de ansiedade do ser humano, ou seja, a criança anteriormente fundida com a mãe, ao deixar seu casulo da vida uterina, entra em contato com a realidade que, de início, é uma fonte intensa de ansiedade. À medida que a criança começa a perceber a mãe como objeto externo, surge o receio de perdê-la, pois é a fonte do alimento, do cuidado e do carinho. E sempre o afastamento da mãe é visto como uma ansiedade para a criança.

Com o passar do tempo, a mãe tem outros interesses e necessidades, não podendo estar disponível na totalidade. A partir daí, a criança começa sentir uma perda e, para recuperar o suposto amor perdido da mãe, quer obter o reconhecimento e a sua aprovação.

No texto Projeto para a Psicologia Científica, Freud (1895) desenvolve o conceito de desamparo, apontando-o como uma característica diferencial e constitutiva do ser humano, que nunca poderá ser superada pelo sujeito, pois este buscará sempre meios que possam, ainda que ilusoriamente, suprimi-lo.

Então, esse desamparo ou vazio não é somente consti-tutivo do sujeito, como é também constituinte. O ser humano sempre terá um busca constante do que possa satisfazer-lhe, preenchendo um vazio inaugural e, em uma repetição pela busca de aprovação, de questões observadas anteriormente em relação à sociedade de consumidores.

Assim, a sociedade de consumo só prospera quando perpetua essa sensação de desamparo dos seus membros, e sua insatisfação é agravada ainda mais pela frustração e pela infelicidade de uma total e inútil batalha, observando-se que nada que não é autêntico pode gerar a felicidade. E de modo superficial, esconder um desejo original jamais é autêntico.

Para Bauman (2008), a sociedade de consumo utiliza como seu alicerce a promessa de satisfazer os desejos humanos em um nível que nenhuma sociedade no

Foto: Mariana Bueno

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passado poderia imaginar em alcançar ou, menos ainda, tenha alcançado, mas a promessa de satisfação somente permanece sedutora enquanto o desejo siga insatisfeito. A decepção do sujeito moderno é inevitável na medida em que jamais esses indivíduos poderão atingir a posição que desejam; a vitória é sempre momentânea e jamais inclui tudo aquilo que eles gostariam de ver como satisfeitos.

A cultura de consumo é marcada pela constante pressão sobre o consumidor para ser alguém diferente. O mercado de consumo se foca na imediata desvalorização de suas ofertas anteriores. Promove a insatisfação com a identidade adquirida e com o conjunto de necessidades pelas quais essa identidade é definida. Somos seres humanos sincrônicos, ou seja, que vivem somente para o presente, fruto de uma cultura imediatista que privilegia pressa e eficácia em detrimento da paciência e perseverança.

O superendividamento está ligado à relação complexa entre o indivíduo e a sociedade ou, isto é, consumo como forma de relação social entre pessoas e instituições ou como mecanismo de reprodução social. O fenômeno do superendividamento é extremamente complexo e tem produzido impactos e consequências de várias ordens, na sociedade, na vida familiar, nos relacionamentos interpessoais e nos conflitos intrapsíquicos. Todas essas

consequências indicam grande desestruturação na vida de consumidores, causados pelo inútil esforço de receber aprovação, fruto de uma programação mental ou como supõe Hofstede (1994) “software of the mind”.

Vários autores têm abordado o tema; entre eles, pode-se citar Lipovetsky (2010), Hofstede (1994), Featherstone (1995) e Bauman (2008). Das primeiras concepções de consumo, este tem sido visto no seu significado de relação entre pessoas, que leva à reprodução de um sistema social desigual ou relacionado intimamente à criação do indivíduo como agente social e ao desenvolvimento dessa identidade, da mesma forma que a tradição associada ao individualismo expressivo. O consumo também tem sido visto como meio de estabelecer uma espécie de relação vertical entre indivíduos e sociedade, entre estruturas sociais e pessoas, que agora são reconhecidas como agentes sociais. Aliás, para entender o consumo, sem excluir elementos importantes, deve-se admitir que o consumo integre valores sociais e representações, práticas individuais, estruturas sociais e o sistema cultural e econômico.

Bauman, na sua obra Modernidade e Ambivalência, afirma que o mercado nos impõe “identikits”.

Os reclames comerciais se esforçam em mostrar seu contexto social às mercadorias que tentam vender, isto é, como parte de um estilo de vida especial, de modo que o consumidor em perspectiva possa conscientemente adquirir símbolos da autoidentidade que gostaria possuir. O mercado também oferece instrumentos para “construir identidade” que podem ser usados diferencialmente, isto é, que produzem resultados algo diferentes uns dos outros e que são assim “personalizados”, feitos “sob medida”, melhor, atendendo às exigências da individualidade. Por meio do mercado, podem-se colocar juntos vários elementos do “identikit” completo de um eu [...] A atração das identidades promovidas pelo mercado reside nos tormentos da autoconstrução e da subsequente busca de aprovação social (BAUMAN, 1999, p.216).

Nesse sentido, os fornecedores não vendem produtos ou serviços, mas identidades aos consumidores, que vêm acompanhadas do rótulo de felicidade e aprovação social, segundo Bauman (2009). Nesse percurso, a mídia encontra formas de seduzir os consumidores: criando ideias, comportamentos, imagens como ideais de perfeição, e ao consumidor só cabe realizá-los, da única forma que a mídia mostra ser possível, por meio de alto consumo. Porém, nenhum produto ou serviço pode interpor-se entre o sujeito e sua condição humana, a condição de desamparo.

De fato, o ato de “comprar” passou a ser um ato complexo e necessário da vida moderna. Assim, em um ambiente de compra extremamente incentivada e facilitada,

“O problema do

endividamento está

associado não somente ao

estilo de vida urbano, em

que o acesso a diferentes

tipos de bens e serviços

é acompanhado de forte

pressão social para adquirir

estes, mas também à

compulsão do homem

moderno por aprovação”

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o processo decisório do consumidor sempre é formado pelo conjunto de muitas variáveis. Desse modo, a formação do consentimento do consumidor no ato da compra é o seu ponto fraco, alvo dos fornecedores para estimular a aquisição de produtos e serviços. Assim, o Direito do Consumidor deve voltar os olhos a esse aspecto de maneira bastante efetiva, com objetivo de evitar o surgimento de novos problemas nessa sociedade de crédito.

Nesse sentido, o superendividamento está vinculado a uma identificação do sujeito como pertencente a determinada classe social (CARPENA, 2006). Nas palavras do sociólogo Mike Featherstone1, “no âmbito da cultura de consumo, o indivíduo moderno tem consciência de que se comunica não apenas por meio de suas roupas, mas também por meio de sua casa, mobiliários, decoração, carro e outras atividades, que serão interpretadas e classificadas em termos da presença ou falta de gosto” (FEATHERSTONE, 1995, p. 123). O autor acrescenta, ainda, que “a preocupação em convencionar um estilo de vida e uma consciência de si estilizada não se encontra apenas entre os jovens e os abastados; a publicidade da cultura de consumo sugere que cada um de nós tem a oportunidade de aperfeiçoar e exprimir a si próprio, seja qual for a idade ou a origem de classe” (FEATHERSTONE, 1995, p.123).

O acesso ao crédito destaca-se como elemento indispensável para que o indivíduo participe dessa cultura de consumo. Afinal, opera no mercado de consumo tão somente aquele que dispõe de recursos financeiros, constituindo o crédito condição essenciais para a aquisição de produtos e fruição de serviços. Não raro obter-se uma concessão de crédito, apresenta-se como única forma de acesso ao consumo (CARPENA, 2006).

O crédito concedido aos consumidores não apenas atende como também cria necessidades, vinculado que está o padrão de consumo a uma identificação do sujeito como pertencente a certa classe social. Desse modo, o endividamento tornou-se fato inerente à atividade econômica, servindo como meio de financiá-la (COSTA, 2002). Numerosos consumidores estão se endividando para consumir produtos e serviços, sejam essenciais ou não (MARQUES, 2006). Vive-se verdadeira economia ou cultura de endividamento.

Vale dizer que o superendividamento do consumidor é um fato inerente à atividade econômica e social, pois, na economia atual, o crédito deixou de ser concebido como um mal necessário, para ser concebido como uma força que se impõe no desenvolvimento econômico e social do país (LIMA, 2010). A emergência de nova cultura de

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Experiência e tradiçãode mais de 80 anos

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endividamento fez do crédito um elemento normal e aceito na vida dos particulares, sendo visto até mesmo como uma manifestação de liberdade e autonomia.

3. Considerações finaisAssim, após a discussão, percebe-se que, de fato, o

endividamento é um fenômeno intrínseco à sociedade moderna, na qual o cidadão adquire status na sua comu-nidade proporcionalmente ao número de bens consumi-dos: quanto mais você tem, mais você é.

E a busca por status é parte integrante da condição humana, a condição de desamparo, que alguns mais, outros menos, têm como acompanhante ao longo de sua existência (SCHWERINER, 2006).

Para o estudo do superendividamento do consumidor, os conhecimentos de natureza sociológica, ética, política, de psicologia, de economia e direito são essenciais, pois expõem o indivíduo no interior de seu contexto sociocultural. Da mesma forma, o ser humano, quando nasce, carrega consigo um comportamento natural determinante, ligado a sua estrutura biológica, o qual, todavia, durante o seu crescimento, é moldado pelas atividades culturais dos outros com que ele se relaciona.

Segundo Hofstede (1994), todas as pessoas têm padrões de pensamento, sentimento e ações potenciais internas, que foram aprendidas durante a vida, na maioria das vezes adquiridas durante a infância, quando somos mais suscetíveis ao aprendizado e à assimilação. Hofstede (1994) faz uma analogia com computadores, quando ele afirma que pessoas são programadas, ou seja, que o comportamento é predeterminado por um programa-mental (um software da mente), o qual pode ser encontrado no meio social em que cada um coleta suas experiências de vida.

Neste aspecto, para Hofstede (1994), tal software é a cultura, que é aprendida e não herdada, derivada de um meio social. Assim, pode-se associar a cultura de endividamento a essa programação mental da sociedade pós-moderna, em que os seres humanos estão envolvidos, visto que suas atitudes são semelhantes a um software, como se estivéssemos programados para ser ainda mais um consumidor, condicionado por tal cultura. Isto torna a questão do superendividamento ainda mais pertinente, perturbante e provocante: se podemos ser programados, seríamos, então, culpados ou vítimas do sistema?

Assim, os consumidores endividados são, na realidade, vítimas de um sistema cultural imposto pela sociedade, na qual o consumo se tornou a medida de uma vida bem-sucedida. Consumir e possuir determinados objetos e adotar determinados estilos de vida é a condição necessária para a felicidade e dignidade humana, perseguida por todos nós consumidores.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.____. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008b. ____. A arte da vida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. In: MARQUES. Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006.COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: RT, 2002.FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernidade. São Paulo: Studio Nobel, 1995.FREUD, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, com comentários e notas de James Strachey e Alan Tyson. Tradução de Jayme Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986a. ____. (1926) Além do princípio do prazer. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, com comentários e notas de James Strachey e Alan Tyson. Tradução de Jayme Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986b.____. (1930) O mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, com comentários e notas de James Strachey e Alan Tyson. Tradução de Jayme Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1986c. HOFSTEDE, G. Cultures and organizations: cultural cooperation and its importance for survival. London: McGrawHill International, 1994.LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiências do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: GZ, 2010.LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Tradução de Patrícia Xavier. Lisboa: Edições70, 2010. MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES. Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006.SCHWERINER, Mário Ernesto René. Comportamento do consumidor: identificando ensejos e supérfluos essenciais. São Paulo: Saraiva, 2006.

Referências bibliográficas

1 Segundo Mike Featherstone, para a compreensão da sociedade contemporânea, seria necessário o estudo da cultura de consumo dando ênfase ao mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação. Observe-se que o autor identifica três perspectivas fundamentais para o desenvolvimento do seu estudo. Em primeiro lugar, “[...] a cultura de consumo tem como premissa a expansão da produção capitalista de mercadorias, que deu origem a uma vasta acumulação material na forma de bens e locais de compra de consumo. [...] Em segundo lugar, há a concepção mais estritamente sociológica de que a relação entre a satisfação proporcionada pelos bens e seu acesso socialmente estruturado é um jogo de soma zero, no qual a satisfação e o status dependem da exibição e conservação das diferenças em condições de inflação. Nesse caso, focaliza-se o fato de que as pessoas usam as mercadorias de forma a criar vínculos e estabelecer distinções sociais. Em terceiro lugar, há a questão dos prazeres emocionais do consumo, os sonhos e desejos celebrados no imaginário cultural consumista e em locais específicos de consumo que produzem diversos tipos de excitação física e prazeres estéticos”. In: FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernidade. São Paulo: Studio Nobel, 1995. p.121-123.

Nota

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O presente artigo discorrerá sobre a compe-tência para se processar e julgar ação civil pública por cometimento de ato de impro-bidade administrativa em que se pede a

perda de cargo da autoridade ré. Terá ela a prerrogativa de se ver julgado por foro diferenciado e não pelas vias ordinárias da primeira instância?

A doutrina não é unânime quanto ao tema.Ferreira (1998) é radical e, atribuindo às sanções

previstas na Lei de Improbidade Administrativa “forte conteúdo penal”, afirma que os agentes ditos políticos sequer se encontrariam sob o manto de tal legislação.

Carvalho Filho (2008) traz um temperamento, de forma que a competência somente seria afastada do juízo de primeiro grau quando o pedido da ação civil pública envolvesse a perda do cargo de agentes que gozem de vitaliciedade:

A questão da perda de função pública merece acurada análise quanto à sua aplicabilidade a agentes dotados de vitaliciedade [...]. No que tange aos membros do Ministério Público, dispõem seus diplomas reguladores que tais agentes também só podem perder seus cargos em ação civil processada perante os Tribunais a que estejam vinculados. Trata-se, pois, de agentes sujeitos a regime jurídico especial. [...] constituiu escopo da Constituição e das leis reguladoras dispensar-lhes regime próprio, como qual se afigura incompatível a aplicação da referida sanção por juízo de primeira instância.

A competência para processar e julgar ações civis públicas que contenham pedido de perda de cargo de agente político

Nilza Bitar 3ª Vice-Presidente do TJRJ

Por seu turno, Mazzilli (2011) sustenta que, de fato, há agentes políticos cujo cargo não pode ser objeto de pedido de perda por meio de ação civil pública. Porém, tal distinção de tratamento somente se fará quando expressamente previsto na própria Constituição da República um regime específico de responsabilidade, como é o caso do impeachment por crime de responsabilidade do Presidente da República:

De nossa parte, concordamos com que os agente políticos não possam perder o cargo ou a função por meio de ação civil pública proposta com base nessa lei, quando estejam submetidos a forma própria de responsabilidade, prevista diretamente na Constituição. Contudo, nada impede que lhes seja movida ação civil pública com causa de pedir fundada na mesma lei, desde que o pedido se limite a sanções pecuniárias (como eventual perda de bens ilicitamente adquiridos ou ressarcimento integral do dano), assim como já podiam e continuam podendo ser processados sem foro especial por meio de ação popular.

Por fim, tem-se a posição de Garcia e Alves (2004), para quem a legislação não traz qualquer óbice à decretação da sanção de perda de cargo aos servidores públicos, ainda que estes gozem da prerrogativa da vitaliciedade.

Por constituir a Lei n. 8.429/1992 um microssistema de combate à improbidade, com peculiaridades próprias e que comina sanções de natureza cível, também em relação

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aos membros do Ministério Público Estadual inexiste prerrogativa de foto, devendo ser fixada a competência do juízo monocrático. Em que pese o fato de o art. 38, § 2o, da Lei n. 8.625/1993 ser claro ao estatuir “a ação civil pública para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local”, tal preceito somente será aplicável às hipóteses previstas no diploma legal em que está inserido, não alcançando a disciplina específica da Lei de Improbidade.[...]

Sintetizando o que foi dito neste item, conclui-se que referidos agentes sempre estarão sujeitos às sanções cominados pela prática de atos de improbidade, devendo ser processados e julgados, a exemplo dos demais agentes públicos, pelo juízo monocrático, inexistindo qualquer óbice à decretação da perda do cargo por este.

Sopesando todos os argumentos usados pelos defensores das mais distintas correntes de pensamento, creio assistir razão à corrente dos que entendem que o foro por prerrogativa de função não alcança as ações civis públicas, ainda que ela contenha pedido de perda de cargo do agente.

A primeira premissa a ser fixada para o deslinde da questão é no sentido de que as ações de improbidade administrativa possuem natureza civil, e não penal. Isso se extrai do comando expresso contido no § 4o do art. 37 da

Constituição da República, que estabelece que os atos de improbidade administrativa implicarão sanções próprias, na forma da lei, sem prejuízo de eventual ação penal. Confira-se:

Art. 37. [...]§ 4o – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. (grifei)

Por conseguinte, sendo cível a ação em questão, não se estende às ações de improbidade administrativa a prerrogativa de foro prevista para as ações penais e para as ações civis de nulidade de atos de autoridade – como, por exemplo, os mandados de segurança.

Assim, é forçoso inferir pela competência originária do juízo singular de primeiro grau, seja federal ou estadual, conforme o caso, não prevalecendo qualquer foro por prerrogativa de função.

Tal conclusão decorre, ainda, de uma interpretação da norma específica em sintonia com os fundamentos primordiais do Brasil inseridos no art. 1o da Constituição, a saber, o princípio republicano, a democracia e a cidadania, bem como dos valores da igualdade e da justiça, consagrados pelo legislador constituinte originário no preâmbulo da Carta Magna.

Foto: Flavius Fotografias

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Portanto, à vista do princípio da igualdade, erigido à condição de direito fundamental dos cidadãos no texto constitucional, todos devem ter, a princípio, o mesmo tratamento, somente se justificando alguma desigualdade na exata medida em que sejam desiguais.

Por conta disso, o próprio constituinte originário trouxe situações em que, em virtude do cargo exercido por alguns (e não em função da pessoa de seu ocupante) e em situações fáticas especiais (causas criminais e cíveis em que se impugna a validade de atos de ofício), a competência originária para processar e julgar as demandas não seria da primeira instância.

Tais exceções são taxativas, não se admitindo nem interpretação extensiva, nem ampliação do rol por meio de legislação ordinária, haja vista que somente a própria Constituição pode se excepcionar. Confira-se, por supedâneo, a brilhante lição de Comparato (1999):

Neste sentido, é à luz do princípio da isonomia que deve ser interpretada a disposição constante do art. 5o, inciso LIII, da Constituição de 1988: “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; vale dizer, pela autoridade cuja competência tenha sido determinada de acordo com o sistema constitucional [...] Ora, no regime constitucional brasileiro em vigor, seguindo a linha diretriz de todas as nossas Constituições republicanas, mas diversamente do que dispunha a Carta Imperial, o sistema é de reserva exclusivamente constitucional para a criação de privilégios de foro [...] Quanto ao Poder Judiciário, cujos membros não são eleitos pelo povo, ele exorbitaria claramente de suas funções, se, sob pretexto de interpretar a Constituição e as leis, decidisse criar ponte própria direito novo. Não é mister grande esforço de raciocínio para perceber que, se o Poder Judiciário se arrogasse competência para dizer como e por intermédio de que órgão iria decidir um litígio sobre a aplicação da Constituição e das leis, os jurisdicionados já não estariam submetidos a elas, mas sim aos próprios tribunais. Por conseguinte, nesse aleijão de democracia, todo poder emanaria não do povo, mas dos juízes que o povo não escolheu [...] É preciso salientar, ademais, que a vedação de prerrogativa de foro costuma, com muito boa razão, vir expressa juntamente com a proibição de se criarem tribunais de exceção. E a razão é intuitiva. A livre instituição de privilégios jurisdicionais, se levada às suas últimas e naturais consequências, acabaria por revogar todo o ordenamento da competência judiciária e, por eliminar, em consequência, juntamente com a submissão de todos, sem discriminações, aos mesmos juízes e tribunais, a regra de que os órgãos do Poder Judiciário devem ser, pela sua própria natureza, permanentes e não circunstanciais. (grifei)

Deveras, somente a Constituição poderia se excepcio-nar e criar competência originária para os tribunais, tal como previsto, por exemplo, no artigo 102, inciso I, alí-neas “b”, “c” e “d”; artigo 105, inciso I, alíneas “a”, “b” e “c”; e artigo 108, inciso I, alíneas “a” e “c”, todos da Carta da República.

No âmbito do estado do Rio de Janeiro, a competência originária do Tribunal de Justiça também é excepcional, taxativamente descrita e adstrita às hipóteses de crimes comuns e de responsabilidade, ex vi artigo 161, inciso IV, alíneas “c” e “d” e “e”, da Carta Estadual.

Logo, se o constituinte afirmou que a responsabilização por atos de improbidade administrativa independe da responsabilização penal, e, quando tratou do foro por prerrogativa de função, expressamente aludiu a crimes comuns e de responsabilidade, bem como a mandados de segurança, conclui-se que, para os atos de improbidade, não há falar em foro por prerrogativa de função.

Nesse sentido já decidiu a c. Corte Especial do e. Superior Tribunal de Justiça, como se pode observar da ementa de acórdão a seguir:

Improbidade administrativa (Constituição, art. 37, § 4o, Cód. Civil, arts. 159 e 1.518, Leis n. 7.347/1985 e n. 8.429/1992). Inquérito civil, ação cautelar inominada e ação civil pública. Foro por prerrogativa de função (membro de TRT). Competência. Reclamação. 1. Segundo disposições constitucional, legal e regimental, cabe a reclamação da parte interessada para preservar

“Os crimes de responsabilidade

possuem natureza distinta

não só dos crimes comuns,

mas também de outros atos

ilícitos de natureza extrapenal,

pelo que não há de falar

que a previsão de foro por

prerrogativa de função para

os crimes de responsabilidade

englobe os casos de

improbidade administrativa”

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a competência do STJ. 2. Competência não se presume (Maximiliano, Hermenêutica, 265), é indisponível e típica (Canotilho, in REsp-28.848, DJ de 02.08.93). Admite-se, porém, competência por força de compreensão, ou por interpretação lógico-extensiva. 3. Conquanto caiba ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho (Constituição, art. 105, I, “a”), não lhe compete, porém, explicitamente, processá-los e julgá-los por atos de improbidade administrativa. Implicitamente, sequer, admite-se tal competência, porquanto, aqui, trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil. Competência, portanto, de juiz de primeiro grau. 4. De lege ferenda, impõe-se a urgente revisão das competências jurisdicionais. 5. À míngua de competência explícita e expressa do STJ, a Corte Especial, por maioria de votos, julgou improcedente a reclamação. (grifei)(Rcl 591/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/12/1999, DJ 15/05/2000, p. 112)

Não se desconhece, por certo, que há decisões mais recentes do STJ inclinando-se pela aplicação das regras do foro diferenciado (cf. AgRg no AREsp 184.147/RN, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/08/2012, DJe 20/08/2012; AgRg na MC 18.692/RN, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/03/2012, DJe 20/03/2012), embora não de modo unânime e pacificado (cf. AgRg no REsp 1331229/SE, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 05/12/2012).

Emblemática, entretanto, para elucidar a contro-vérsia posta, é a decisão tomada pelo e. Supremo Tri-bunal Federal no julgamento da ADIN n. 2797/DF. Nessa oportunidade, a Corte constitucional brasilei-ra declarou a inconstitucionalidade do § 2o do art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei n. 10.628/2002, o qual previa que “a ação de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública”.

Abaixo, transcreve-se elucidativo trecho da ementa do acórdão da referida Ação:

EMENTA: I. [...]. III. Foro especial por prerrogativa de função: extensão, no tempo, ao momento posterior à cessação da investidura na função dele determinante. Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal). Lei n. 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1o e 2o ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária

e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada. 1. [...]. IV. Ação de improbidade administrativa: extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2o do art. 84 do C Pr Penal, introduzido pela L. n. 10.628/2002): declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4o), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal – salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X, e 96, III –, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária. V. Ação de improbidade administrativa e competência constitucional para o julgamento dos crimes de responsabilidade. 1. O eventual acolhimento da tese de que a competência constitucional para julgar os crimes de responsabilidade haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação de improbidade, agitada na Rcl 2138, ora pendente de julgamento no Supremo Tribunal, não prejudica nem é prejudicada pela inconstitucionalidade do novo § 2o do art. 84 do C Pr Penal. 2. A competência originária dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo – cujo impeachment é da competência dos órgãos políticos – a cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer por integração analógica, os membros do Congresso

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Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes de responsabilidade. 3. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o termo da investidura do dignitário acusado”.(ADI 2797, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-02 PP-00250)

Cabe asseverar, nesse diapasão, que a decisão do e. STF, tomada em sede de controle abstrato de constitucionalidade, possui eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário (art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/1999). Consequentemente, não é lícito aos demais órgãos do Poder Judiciário decidir em sentido oposto ao naquela Corte assentado, pena de violação à autoridade de suas decisões (art. 102, inc. I, al. “l”, da CRFB).

Nem se diga que os atos de improbidade adminis-trativa sejam crimes de responsabilidade. Isso porque, considerando que a natureza das sanções a serem apli-cadas no âmbito das ações por improbidade administra-tiva seja cível, as regras para atribuição de competência de tais ações devem seguir o disposto para o processo civil.

Por conseguinte, impõe-se concluir que tal competência recai sobre o juízo monocrático de primeiro grau, não havendo falar, nessas hipóteses, em foro especial por prerrogativa de função concedido a determinadas pessoas na esfera criminal.

Reproduz-se, por absoluta pertinência, o seguinte escrito de Miranda (2011):

Com efeito, os atos de improbidade administrativa não se confundem com os impropriamente denominados crimes de responsabilidade, uma vez que os primeiros configuram ilícitos de natureza civil (extrapenal) – muito embora tenha consequências na esfera administrativa –, enquanto os segundos são infrações político-administrativas.Daí porque os primeiros – os atos de improbidade ad-ministrativa – estão sujeitos a um processo e julgamento realizado exclusivamente pelo Poder Judiciário, isto é, na esfera jurisdicional, valendo-se de um rito próprio sem qualquer aspecto político, enquanto os segundos – os cri-mes de responsabilidade –, conforme destacado, estão su-jeitos em relação a alguns agentes a processo e julgamento pelo Legislativo (Senado Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais), tendo, assim, forte carga política em sua condução.

Tem-se, portanto, que os crimes de responsabilidade possuem natureza distinta não só dos crimes comuns, mas

também de outros atos ilícitos de natureza extrapenal, pelo que não há falar que a previsão de foro por prerrogativa de função para os crimes de responsabilidade englobe os casos de improbidade administrativa.

Desse modo, resta afastada peremptoriamente qual-quer tentativa de se dar foro por prerrogativa de função nas ações civis públicas para apuração de atos de improbi-dade administrativa.

Não é demais lembrar, ainda, que as normas procedi-mentais para os processos em tramitação perante os Tribu-nais estão previstos na Lei n. 8.038/1990.

Essa, em seu Título I, traz a disciplina para os feitos de competência originária perante os Tribunais, ali elencando, expressamente, a ação penal originária (arts. 1o ao 12), a reclamação (arts. 13 a 18), a intervenção federal (arts. 19 a 22), o habeas corpus (art. 23), a ação rescisória, o conflito de competência, de jurisdição e de atribuições, a revisão criminal e o mandado de segurança (art. 24), o mandado de injunção e o habeas data (art. 24, parágrafo único) e a suspensão de segurança (art. 25, caput). Perceba-se que, em momento algum, é mencionada a ação civil pública, nem mesmo quando for para a perda de cargo daqueles agentes públicos que gozam de prerrogativa de serem processados e julgados perante o STJ ou o STF.

Isso denota a toda evidência que a competência, em tais hipóteses, não será de órgão colegiado, mas sim, como já dito, de juízos de primeira instância.

Eventual legislação infraconstitucional que estabeleça competência originária para os Tribunais além do já previsto nas Constituições Federal e Estaduais não pode prevalecer, pois vai de encontro ao primado da taxatividade.

Tampouco merece guarida o argumento de que, considerando o princípio de hierarquia e para evitar incongruências no sistema jurídico vigente, as autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função para crimes comuns e de responsabilidade também teriam direito ao julgamento por atos de improbidade administrativa em órgão colegiado das instâncias superiores.

Como já dito, as exceções foram criadas pelas Consti-tuições, em rol fechado, não cabendo nem ao legislador, nem ao intérprete, ampliá-lo. Veja-se, a esse respeito, o en-sinamento da doutrina de Fazzio Junior (2011):

Pergunta-se: qual é o problema de um Juiz de primeiro grau julgar a ação civil impetrada contra qualquer execu-tivo municipal por atos de improbidade? Se condenado em primeira instância, o prefeito poderá recorrer ao Tribunal de Justiça, cumprindo-se a garantia processual do duplo grau de jurisdição.

A fim de se ilustrar a polêmica apresentada, apresento dois casos emblemáticos havidos no Judiciário do estado

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do Rio de Janeiro, um envolvendo um Procurador de Justiça e o outro um Desembargador.

Na primeira situação, quis o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro que um seu membro fosse processado e julgado perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado. Arvorou-se, para tanto, basicamente, em dois preceitos legais, a saber:

Lei n. 8.625/93Art. 38. [...].§ 2o. A ação civil para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica.Lei Complementar Estadual n. 106/03Art. 134 [...].§ 1..o – A ação civil para decretação da perda do cargo do membro vitalício do Ministério Público será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça, perante o Tribunal de Justiça deste Estado, após autorização do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça, por maioria simples.

À época, o colegiado, por maioria, encampou a tese ministerial e reconheceu do foro por prerrogativa de função quando a propositura de ação civil pública puder ensejar a perda do cargo de agente que goze de vitaliciedade.

Relatora originária que era da ação em cotejo, fiquei vencida ao filiar-me à melhor doutrina e ao entendimento assente da Corte Maior.

Fundamentei minha posição ao emprestar aos dispo-sitivos supratranscritos interpretação conforme a Cons-tituição, de forma que a expressão “Tribunal de Justiça” neles contida deva ser tomada em seu sentido amplo, como sinônimo do gênero da Justiça estadual, e não em sentido estrito, como sendo o seu órgão colegiado de se-gunda instância.

Afirmei, ainda, que, na esfera estadual, a Lei Comple-mentar n. 113/06, acresceu o parágrafo 6o ao artigo 134, esclarecendo que:

§ 6o – A atribuição prevista no § 1o aplica-se a todas as ações civis de que possa resultar a perda do cargo do membro vitalício do Ministério Público, qualquer que seja o foro competente para o respectivo processo e julgamento.

Tal norma vem espancar qualquer dúvida que pudesse haver quanto à competência do juízo de primeiro grau para processar e julgar ação civil pública objetivando a perda de cargo de membro vitalício do Ministério Público, haja vista que esclarece que a atribuição do Procurador-Geral para propor a referida ação vale para qualquer foro.

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Referências bibliográficas

Pouco tempo depois, foi objeto de julgamento perante o Órgão Especial outra ação civil pública, dessa feita com pedido de perda de cargo de Desembargador. Esse processo tramitava originalmente perante o e. STF, o qual decidiu por remetê-lo para o Tribunal de Justiça.

Ora, se o Supremo tivesse entendido que, em sede de ação civil pública, prevaleceria o foro por prerrogativa de função, teria encaminhado a ação diretamente para o Superior Tribunal de Justiça, e não para o Tribunal de Justiça estadual. Não soa lógico. Tampouco se avista coerente que, nas ações civis públicas em face de Procuradores de Justiça, o Órgão Especial se julgue competente com base no foro por prerrogativa de função, e nas em face de Desembargadores, não reconheça o mesmo foro por prerrogativa de função (no caso, do Superior Tribunal de Justiça).

Repise-se que, para respeitar o comando do excelso Pretório, faz-se necessário perquirir a diferença entre Tri-bunal de Justiça strictu sensu, isto é, o colegiado de Desem-bargadores, e Tribunal de Justiça lato sensu, vale dizer, o Judiciário estadual. E, no caso, é evidente que se trata desta última acepção.

Destarte, tem-se que deve ser reconhecida a com-petência dos juízes de primeira instância para proces-sar e julgar as ações de improbidade administrativa, não importando o grau hierárquico do agente que fi-gure como réu, visto que as sanções correspondentes têm natureza jurídica cível e a competência originária dos tribunais não pode ser alterada por norma infra-constitucional.

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30 Justiça & Cidadania | Julho 2014

Confesso meu aborrecimento com os tais em-bargos. Não pelo resultado. Vivo desde cedo as divergências dos tribunais, recordando tio Dario a esbravejar contra os votos desfavorá-

veis. Para meus alunos, achei um bordão: “Terra boa de criar morcegos!”. A classe relaxava, a lição prosseguia. Meu aborrecimento é outro: as mais de duas horas de erudição em linguagem rebuscada e rebarbativa. Lamentei não falar javanês. Acudiu-me à memória comentário de Mário Hen-rique Simonsen, feito à saída de uma audiência em que fi-gurara como testemunha:

– Essa gente ignora que tempo é dinheiro! – ironizou, zangado.

Sua contrariedade era com o juiz do processo que quis saber o significado de muitas expressões do mercado financeiro. Para ele, economista e professor, o melhor seria trocar o depoimento por um glossário de termos usuais. Não digam que o grave da hora exigia a profundidade de razões bem argumentadas. O problema é que o voto visava mais ao interesse geral da sociedade e menos aos colegas de plenário arraigados às suas convicções. Nem creio que o eminente decano, culto e educado, aprovaria Nelson Rodrigues na irreverência que alardeava que “de gente burra só quero vaias”.

Lógico que apreciamos o debate ao vivo pela televi-são. A questão é a eficiência e a racionalidade do mé-todo. Ganharíamos todos se a decisão vitoriosa fosse proclamada em tópicos fundamentados, destacando as

Tempo, ironia e linguagem forense

Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo Presidente do IRTDPJ-RJ Diretor da Anoreg-RJ

contrarrazões dos vencidos. Adotada essa prática, have-ríamos de combater a linguagem prolixa e vaidosa, sen-do obrigatório o uso do vernáculo, evitando estrangei-rismos. Combater, de mais, o “juridiquês” e o “legalês”. Repensar, enfim, como exortou Pasquale Neto, na Folha de S. Paulo de 18/9/2013, a impertinência de pérolas do gênero “com supedâneo no artigo...” e não “com base...”, que todos entendem.

Não nego valor à tecnicidade e ao ritualismo. O que prego é a simplificação da linguagem para ganharmos

“Não nego valor à tecnicidade

e ao ritualismo. O que prego é a

simplificação da linguagem para

ganharmos em sentido e clareza

narrativa. Nas decisões judiciais, de

qualquer instância, o excesso verbal

gera contradições ou obscuridade,

motivando embargos de declaração

para esclarecimentos”

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2014 Julho | Justiça & Cidadania 31

em sentido e clareza narrativa. Nas decisões judiciais, de qualquer instância, o excesso verbal gera contradições ou obscuridade, motivando embargos de declaração para esclarecimentos. Tampouco cogito de vulgarização para facilitar a compreensão dos processos. Expressões consa-gradas permanecem. Por exemplo, desacato, arrolamento, prevaricação. Proponho é o fim do risível e a consciência do ridículo. Óbvio que os agora célebres embargos infrin-gentes continuam até que o legislador resolva eliminá-los das cartilhas recursais.

A par disso, parece-me já intolerável, hoje, o requinte burlesco de termos como “decisão objurgada”, “sodalício”, “digesto processual”, “novel diploma”, “idade provecta”, “disposição contumeliosa”. Toda linguagem deve ser pertinente e adequada. Soa pedante formular frases rocambolescas para externar o cotidiano da vida de relações. Empregar teorias, como a do domínio do fato, exige explicações antes de aplicá-la à trama criminosa. O objetivo final é o bem da Justiça, reduzindo desinteligências, o peso das críticas, as hostilidades, e mesmo, curiosamente, anedotas e picardias como catarses sociais.

Sei da verborragia do nosso bacharelismo atávico. Em 1920, Sinhô, em Fala, meu Louro, fez piada com a loquacidade de Ruy Barbosa. Custa-nos encerrar discurso ou qualquer escrito. No entanto, urge sepultar os panegíricos da medieva idade; chegamos ao terceiro milênio. O homem faz o estilo. Devia haver censura retórica para cortar palavras, as repetições e o apreço

narcísico à erudição. Se acusarem que a sentença é coloquial e pobre, responder com Nelson Rodrigues: “Só eu sei o trabalho que me dá empobrecer meus textos”. Na história de cada processo, a esperança maior é atingir a essência das controvérsias e decidir do modo mais simples, sem “perfumar a flor”, diria João Cabral de Melo Neto.

Há nisso tudo grande ironia. As montanhas de ações correntes e a teimosia da judicialização dos conflitos deveriam estimular a criatividade para otimizar o princípio da razoável duração dos processos. Há ainda o dado jurídico-normativo. As pessoas pensam em termos de normas claras e unívocas, sobretudo no Direito Penal, de sorte a confiarem que o Direito tem a última regra do jogo. O resultado, muitas vezes, é frustrante, e a maioria recebe as decisões como ultraje e prevaricação. Não são os juízes; é a lei que permite sucessivos embargos de embargos, declaratórios ou infringentes. Para piorar, sobram casos de omissão legislativa.

Nesse cenário, é provável que a crítica de Simonsen tenha sido empírica e sumamente injusta. A verdade nua e crua é que a legislação em vigor surge lacunosa, desconexa e caótica, amiúde carecida das luzes doutrinais, com reflexos nos atos do Poder Judiciário a quem incumbe consolidar, a exemplo da antiga Roma, uma nova fase na construção do jurídico brasileiro. Encontrar o meio termo das virtudes possíveis – para afirmar a efetividade dos direitos com justiça real – é o desafio de todos que exibem o belo nome de jurisprudentes.

Foto: Arquivo pessoal

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32 Justiça & Cidadania | Julho 2014

No início de maio de 2014, a população carioca sofreu com uma greve movida por uma par-cela dos trabalhadores rodoviários, marcada por situações de extrema gravidade, como

depredação de ônibus e fechamento de vias públicas.Essa greve ficou caracterizada pelo fato de ter sido

deflagrada por uma dissidência de trabalhadores que não concordou com a convenção coletiva de trabalho celebrada pelo sindicato da categoria profissional, e, por conta disso, passou a exigir novos benefícios.

A aludida paralisação dos serviços trouxe insegurança jurídica quanto à utilização da negociação coletiva para resolver tais conflitos, situação que conduz aos seguintes questionamentos: a greve é um direito ilimitado? Quem é o titular do direito de greve? Quem pode conduzir uma greve? A greve deflagrada após assinatura de convenção coletiva de trabalho está adequada com o ordenamento jurídico brasileiro? Quais são as suas consequências jurídicas?

Essas são as questões que serão abordadas neste artigo jurídico que, decerto, não possui a intenção de esgotar o tema ou expor verdades absolutas, mas, sim, propor reflexão jurídica sobre esse recente fenômeno social, que merece maior atenção da comunidade jurídica e dos movimentos dos trabalhadores.

1. Do direito de greve. Tratamento constitucional e legalA greve deve ser compreendida como instrumento de

pressão dos trabalhadores, quiçá o mais importante, de profunda relevância histórica e social.

Trata-se, nos dizeres de Vólia Bomfim Cassar (2014), da “exteriorização do conflito existente entre a classe trabalha-

Greve de dissidentes:breve análise do movimento dos rodoviários na cidade do Rio de Janeiro em 2014

Henrique da Silva Louro Advogado

dora e o patrão acerca de questões pendentes que, apesar das tentativas de negociação, persistem. Sua finalidade é de pressionar o empregador para ceder em alguns pontos”.1

No Brasil, o direito de greve foi previsto, inicialmente, como um ilícito penal pelo Código Penal de 1930. Posteriormente, o direito de greve foi seguindo o modelo de liberdade que era estabelecido pelo momento histórico vigente no país.2

Assim, se durante o período de 1964/1985, a greve era regida por legislação significativamente restritiva,3 com a promulgação da Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição cidadã”, a greve passou a ser reconhecida como um direito social.

Dessa forma, o art. 9o da Constituição Federal de 1988 assegura a realização “do direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.”

Embora se trate de um direito social, de titularidade dos trabalhadores, expressamente reconhecido pela Carta Magna, a greve está longe de ser um direito ilimitado, irrestrito ou absoluto.4

Isso porque, como a greve se trata de uma forma de expressão coletiva que, por sua natureza, causa reflexos sociais na esfera jurídica de terceiros, a ordem jurídica brasileira limita o direito de greve, ao determinar o atendimento dos requisitos formais e materiais previstos na Lei n. 7.783/1989, que regulamenta o exercício desse direito no plano infraconstitucional.

Nesse ensejo, o art. 1o da Lei n. 7.783/1989, em seu caput, repete o disposto no art. 9o da Constituição Federal, ao assegurar o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo,

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enquanto o parágrafo único restringe o exercício do direito de greve à forma estabelecida no referido diploma legal.5

Válido destacar que a Lei n. 7.783/1989 estipula diver-sos requisitos para a deflagração do movimento grevis-ta, que visam civilizar o exercício desse direito, podendo ser elencados na seguinte ordem: tentativa de negociação prévia, aprovação pela assembleia de trabalhadores, aviso prévio à parte adversa e, em se tratando de atividades ou serviços essenciais, que sejam respeitadas as necessidades inadiáveis da comunidade.

Caso não sejam atendidos os requisitos previstos nesse diploma legal, ou se a paralisação for mantida após a celebra-ção de um acordo, convenção ou decisão da Justiça do traba-lho, o exercício do direito de greve será considerado abusivo, consoante dispõe o art. 14 da Lei n. 7.783/1989,6 salvo nas poucas exceções estabelecidas no citado dispositivo.

Ressalta-se que o exercício desse direito deve ser conduzido inicialmente pelos sindicatos, entidades de base7 que possuem legitimação constitucional para representar esses trabalhadores e para realizar a negociação coletiva (art. 8o, incisos III e VI, da Constituição Federal de 1988).8

Tanto é que a própria Lei n. 7.783/1989, no art. 4o, determina que caberá à entidade sindical convocar a assembleia geral, na forma do seu estatuto, para definir as reivindicações da categoria profissional e deliberar sobre a paralisação coletiva dos serviços. Nos termos do § 2o do aludido dispositivo, somente no caso de inexistir entidade sindical, a assembleia geral de trabalhadores deliberará

sobre a paralisação coletiva dos serviços, constituindo comissão de negociação.9

Acresça-se, nesse passo, que a forma de organização sindical no Brasil é baseada no princípio da unicidade sindical. Previsto no art. 8o, inciso II,10 da Constituição Federal, o referido princípio impede a criação de mais de uma organização sindical, representativa da mesma categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que não poderá ser inferior à área de um Município.

Portanto, com base na interpretação do art. 8o, incisos II e VII da Constituição Federal combinado com art. 4o da Lei no 7.783/1989, somente existirá uma entidade sindical legitimada para conduzir o movimento de greve em determinada base territorial.

2. Da greve movida pela dissidência dos rodoviários do município do Rio de Janeiro

Com relação aos rodoviários, o Sindicato Municipal dos Empregados em Empresas de Transporte Urbano do Município do Rio de janeiro (SMTEETUPM-RJ), representante da categoria profissional, celebrou convenção coletiva de trabalho com o sindicato das empresas de ônibus do Rio de Janeiro – RIO ÔNIBUS – com vigência entre 1o de abril de 2014 a 31 de maio de 2015, a qual estabeleceu reajuste salarial de 10%, bem como elevou o valor do vale-refeição em 40%.

Ocorre que uma parcela dos trabalhadores não aceitou a referida convenção coletiva de trabalho e, sob o pretexto

Foto: João Andrade

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34 Justiça & Cidadania | Julho 2014

de estarem realizando novas reivindicações, resolveu deflagrar uma greve sem atender aos requisitos da Lei n. 7.783/1989 e em desacordo com o sindicato profissional.

Tal fato levou o sindicato patronal – RIO ÔNIBUS – a propor um dissídio coletivo de greve (0010477-45.2014.5. 01.0000) perante a Seção Especializada em Dissídios Coleti-vos do Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região, visando a reconhecer a abusividade do movimento grevista.

No julgamento do referido dissídio coletivo de greve, os membros da Seção Especializada em Dissídios Coletivos reconheceram, no v. acórdão, que, embora o movimento tenha sido deflagrado de forma espontânea pelos próprios rodoviários, tal fato não “retira a responsabilidade do sindicato de classe, já que este é o legítimo representante da categoria e, efetivamente assumiu as rédeas da negociação, sendo o acordo aceito pela maioria, que é absoluta”.

Restou mencionado no v. acórdão que as “partes firmaram a Convenção Coletiva de Trabalho em 22/04/2014 e, logo em seguida, os trabalhadores entenderam por bem criar novas reivindicações, sem aviso prévio ao suscitante e sem tentativa de solução pacífica do conflito”.

Dessa forma, o movimento grevista seria abusivo, haja vista não terem sido observados os requisitos contidos na Lei n. 7.783/1989, conforme se observa pelo v. acórdão abaixo colacionado:

DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. ABUSIVIDADE. Ilegal a greve deflagrada, por configurado, nos termos dispostos no art. 14, da Lei n. 7.783/1989, o abuso de direito, haja vista não terem sido observadas as normas contidas nos artigos 3o, 4o e parágrafo único do art. 14 do citado diploma legal.11

3. ConclusãoPelo exposto, conclui-se que a greve, embora seja

um direito social previsto na Constituição Federal, não pode ser exercido de forma absoluta ou irrestrita pelos trabalhadores, ante o reflexos que causa na esfera jurídica de terceiros.

Em função disso, a Lei n. 7.783/1989 estabelece diversos requisitos que devem ser adotados para o exercício do direito de greve, bem como impede a continuidade da paralisação após a celebração do acordo, convenção coletiva ou decisão da Justiça do Trabalho, salvo em raras exceções, como forma de conferir estabilidade às relações jurídicas, sob pena de o exercício do direito ser considerado abusivo.

Apesar de os trabalhadores terem competência para decidir sobre a oportunidade de exercer a greve, cabe ao sindicato conduzir o movimento, como legítimo representante da categoria profissional e por ter participação indispensável nas negociações coletivas de trabalho.

Em consequência, deve ser considerada abusiva, a greve movida por uma dissidência de trabalhadores, após a assinatura da convenção coletiva de trabalho, sem atender aos requisitos da Lei n. 7.783/1989 e, ainda, sem a intervenção do sindicato de classe.

Nesse sentido, a decisão proferida pela Seção Espe-cializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 1.ª Região apresenta-se irretocável, quando reconheceu, pelos argumentos acima expostos, a abusivi-dade da paralisação deflagrada por uma parcela dos traba-lhadores rodoviários do Rio de Janeiro.

Foto: Jaime Batista da Silva / Jornalism

o participativo

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2014 Julho | Justiça & Cidadania 35

1 Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: Método, 2014, p. 620.2 Nessa linha, vale consultar a obra do professor Raimundo Simão de Melo. A greve no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 2008. p. 23.3 Na época, o exercício do direito de greve era regulamentado pela Lei n. 4.330/1964, cujas características foram analisadas por Melo (2008, p. 23):“A Lei n. 4.330/64 permitia a greve em atividades normais, embora com muitas restrições que, na prática, tornavam quase impossível o seu exercício. [...] Essa lei, como se sabe, foi promulgada logo após a decretação do golpe militar de 1964 e representou a real filosofia do regime ditatorial, consubstanciado, no âmbito das relações de trabalho, em muitas ocupações e intervenções em sindicatos, cassações e punições de dirigentes sindicais e ativistas, como represálias aos movimentos trabalhistas.”4 A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, de forma iterativa, reconhece que o direito de greve não é absoluto, conforme se observa pelo recentíssimo julgado: RECURSO ORDINÁRIO. DISSÍDIO DE GREVE. NOMEAÇÃO PARA REITOR DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC. CANDIDATA MENOS VOTADA EM LISTA TRÍPLICE. OBSERVÂNCIA DO REGULAMENTO. PROTESTO COM MOTIVAÇÃO POLÍTICA. ABUSIVIDADE DA PARALISAÇÃO.1. A Constituição da República de 1988, em seu art. 9o, assegura o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e os interesses que devam por meio dele defender.2. Todavia, embora o direito de greve não seja condicionado à previsão em lei, a própria Constituição (art. 114, § 1o) e a Lei n. 7.783/1989 (art. 3o) fixaram requisitos para o exercício do direito de greve (formais e materiais), sendo que a inobservância de tais requisitos constitui abuso do direito de greve (art. 14 da Lei n. 7.783).3. Em tal contexto, os interesses suscetíveis de serem defendidos por meio da greve dizem respeito a condições contratuais e ambientais de trabalho, ainda que já estipuladas, mas não cumpridas; em outras palavras, o objeto da greve está limitado a postulações capazes de serem atendidas por convenção ou acordo coletivo, laudo arbitral ou sentença normativa da Justiça do Trabalho, conforme lição do saudoso Ministro Arnaldo Süssekind, em conhecida obra.4. Na hipótese vertente, os professores e os auxiliares administrativos da PUC se utilizaram da greve como meio de protesto pela não nomeação para o cargo de reitor do candidato que figurou no topo da lista tríplice, embora admitam que a escolha do candidato menos votado tenha observado as normas regulamentares. Portanto, a greve não teve por objeto a criação de normas ou condições contratuais ou ambientais de trabalho, mas se tratou de movimento de protesto, com caráter político, extrapolando o âmbito laboral e denotando a abusividade material da paralisação. Recurso ordinário conhecido e provido, no tema. (RO 51534-84.2012.5.02.0000, data de julgamento: 9/6/2014, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 20/6/2014).5 Art. 1o – É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. Parágrafo único. O direito de greve será exercido na forma estabelecida nesta Lei.6 Art. 14 – Constitui abuso do direito de greve a inobservância das normas contidas na presente Lei, bem como a manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho.Parágrafo único. Na vigência de acordo, convenção ou sentença normativa não constitui abuso do exercício do direito de greve a paralisação que:I – tenha por objetivo exigir o cumprimento de cláusula ou condição;II – seja motivada pela superveniência de fatos novos ou acontecimento imprevisto que modifique substancialmente a relação de trabalho.7 Enquanto os sindicatos são entidades de base, as federações e confederações são entidades sindicais de grau superior, conforme o disposto no art. 535 da Consolidação das Leis do Trabalho:“Art. 533 – Constituem associações sindicais de grau superior as federações e confederações organizadas nos termos desta Lei.”8 Art. 8o – É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;VI – é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho;9  Art. 4o – Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu estatuto, assembleia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços.§ 1o – O estatuto da entidade sindical deverá prever as formalidades de convocação e o quórum para a deliberação, tanto da deflagração quanto da cessação da greve.§ 2o – Na falta de entidade sindical, a assembleia geral dos trabalhadores interessados deliberará para os fins previstos no caput, constituindo comissão de negociação.10 Art. 8o – É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: II – é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município;11 Publicado no DJe do dia 5/6/2014.

CASSAR. Vólia Bomfim. Direito do trabalho. São Paulo: Método, 2014. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A greve como direito fundamental. Curitiba: Juruá, 2000.MELO, Raimundo Simão. A greve no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006.TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Disponível em <http://www.tst.jus.br>. Acesso em: 28 jun. 2014.

Notas

Referências bibliográficas

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36 Justiça & Cidadania | Julho 2014

Em foco, Giselle Souza

O peso da magistratura

das magistradas que já são mães e 56,1% das que ainda não tiveram filhos. As integrantes da Justiça com faixa etária entre 36 e 40 anos foram as que mais consideraram ter a vida pessoal afetada pela carreira (72,1%), seguidas daquelas que têm entre 31 e 35 anos (70,2%) e entre 41 e 45 anos (68,1%).

Também acham que a magistratura afeta mais a vida pessoal das mulheres que a dos homens aquelas que ocupam o cargo de juíza substituta (69,2%). Na sequência, estão as magistradas que ocupam a função de juíza eleitoral da classe dos advogados (66,7%), juíza titular (64,6%),

Administrar as rotinas da família e da profissão requereu jogo de cintura por parte da desem-bargadora Cilene Ferreira Amaro Santos, do Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região.

Designada para atuar nas comarcas do Distrito Federal após passar no concurso público de ingresso na carreira, em 1992, a magistrada – que é mãe de dois filhos – teve, por um período de 15 anos, de morar em uma casa dife-rente da do marido, que advogava em Goiás.

Cilene em nenhum momento se arrependeu da escolha profissional que fez, mas reconhece que a magistratura lhe exigiu alguns sacrifícios. Assim como também reconhecem 64,5% das juízas ouvidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Censo do Poder Judiciário. Dados preliminares da pesquisa, divulgados no fim de junho, revelaram que, na opinião dessas magistradas, a carreira afeta mais a vida pessoal das mulheres que a dos homens que optaram pela carreira.

O Censo foi realizado entre novembro e dezembro do ano passado e foi respondido por 64% dos 16.812 magistrados em atividade no País. De acordo com a pesquisa, o Poder Judiciário é composto por 64,1% de homens e 35,9% de mulheres. No estudo, elas puderam dizer o que pensam sobre uma série de questões de gênero ligadas, por exemplo, ao exercício da profissão, a eventuais reações preconceituosas por parte dos jurisdicionados ou colegas de profissão, assim como ao acesso a oportunidades de promoção na carreira.

Ainda no que se refere à vida pessoal, afirmaram que o impacto da profissão é maior para as mulheres: 68%

Mulheres representam 35% da magistratura, revela o Censo do Poder Judiciário, divulgado pelo CNJ. Pesquisa também mostra o que elas pensam da carreira. A maioria acha que a profissão afeta mais a vida pessoal delas que a dos seus colegas juízes

Foto: NUCOM

/TRT10

Cilene Santos: magistratura exige sacrifícios, mas profissão é gratificante

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2014 Julho | Justiça & Cidadania 37

juíza substituta de segundo grau (63,5%), ministra de Tribunal Superior e do Supremo Tribunal Federal (57,1%) e desembargadora (48%).

Para a juíza Amini Haddad, diretora da Secretaria de Gênero da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a percepção do peso da carreira pelas magistradas ratifica diversos estudos, principalmente os que são produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontam que as atribuições domésticas ainda continuam circunscritas e impingidas como deveres quase que exclusivos das mulheres.

“Isso, realmente, é uma desigualdade grandiosa que gera desgastes. Ainda, o fato de a magistratura comumente exigir muitas mudanças de domicílio, para os devidos fins de alcançar a titularidade de varas nas capitais ou grandes centros, acaba gerando custo maior à mulher, em razão das dificuldades culturais do homem de acompanhar a esposa ou parceira, colocando em ‘risco’ o casamento. É mais uma das dificuldades alicerçadas nas concepções de gênero: a mulher acompanha o marido. O inverso, comumente, por delimitação cultural, é quase uma exceção”, explicou.

ParticiPação de homens e mulheres no Poder Judiciário

Percentual de magistradas segundo a identificação dos efeitos da carreira na vida Pessoal em comParação com os magistrados

de 1951 a 1981

21,4%

78,6%

de 1982 a 1991

25,6%

74,4%

de 1992 a 2001

38%

62%

de 2002 a 2011

38,9%

61,1%

de 2012 a 2013

35,9%

64,1%

0,4%

35,1%

64,5%

É afetada em menor medida que os juízes

É afetada na mesma medida que os juízes

É afetada em maior medida que os juízes

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38 Justiça & Cidadania | Julho 2014

Na avaliação da desembargadora Cilene, o impacto é grande, mas não é exclusivo da carreira de magistrada. “Isso não é algo que ocorre apenas na magistratura, mas em qualquer cargo mais alto, que seja ocupado por uma mulher. A profissão sempre cobra mais das mulheres”, afirmou a desembargadora, cuja rotina de trabalho, não raro, chega a 12 horas diárias.

Apesar da dedicação à magistratura, Cilene conta que não deixou de acompanhar o crescimento dos filhos ou de viver seu casamento. “Óbvio, houve renúncias e dificuldades. Mas faria tudo de novo. É muito gratificante a profissão que escolhi”, disse a desembargadora, endossando o grupo de 91,8% de magistrados – homens e mulheres – que declararam ao Censo estarem satisfeitos com a escolha profissional que fizeram.

ParticipaçãoO Censo do CNJ mostra que a presença das mulheres

é maior na Justiça do Trabalho (47%). Depois na Justiça Estadual (34,5%), na Justiça Eleitoral (28,1%), nos Tribunais Superiores (27,8%), na Justiça Federal (26,2%), nos Conse-lhos Superiores (26,1%) e na Justiça Militar (16,2%).

A constatação do estudo é que a participação feminina nos tribunais e demais órgãos judiciais vem crescendo a passos ainda tímidos. De 1951 a 1981, por exemplo, o percentual de pessoas do sexo feminino na carreira era apenas de 21,4%. De 1982 a 1991 houve acréscimo, porém não muito expressivo, quando o índice passou para 25,6%. De 1992 a 2001, o número de magistradas aumentou para 38%, taxa que praticamente se manteve até 2011. Entretanto, de 2012 a 2013, houve decréscimo e o número de magistradas caiu para os atuais 35,9%.

De acordo com a diretora da AMB, o número atual de magistradas não é o fator mais preocupante. “Devemos destacar que esse percentual é o geral. Se observarmos a inserção recente de magistradas no Judiciário, para o cargo de juízes substitutos, ainda não vitalícios, nos primeiros dois anos da carreira, os percentuais são próximos (ao de magistrados). A problemática, portanto, está na continui-dade da carreira, ou seja, na ascensão às cortes. Poucas alcançam os Tribunais Superiores”, destacou.

Na avaliação do coordenador do Censo produzido pelo CNJ, conselheiro Paulo Teixeira, o número de mulheres no Poder Judiciário tende a aumentar. “Temos um contingente masculino maior que o feminino. A gente crê que o número tende a se elevar. Para que se possa ter segmento significativo é preciso diversidade. O Judiciário historicamente é conservador, mas com tendência de modificação”, afirmou.

O Censo também aferiu o que as magistradas pensam sobre uma série de questões relacionadas à temática gênero. Uma delas foi a reação das pessoas ao fato de elas serem

magistradas. Das juízas, desembargadoras e ministras ouvidas, 30,2% afirmaram já ter identificado alguma reação negativa de outros profissionais do sistema de Justiça.

No que se refere aos jurisdicionados, a percepção das magistradas é a de que eles não parecem se impressionar pelo fato de elas serem mulheres e integrantes da Justiça. Apenas 24,7% das juízas, desembargadoras e ministras afirmaram ter identificado reações negativas por parte daqueles que buscam o Poder Judiciário.

No que tange aos processos de remoção e promoção na carreira, 86,1% também afirmaram que as dificuldades que enfrentam são as mesmas das dos seus colegas magistrados. E no que diz respeito ao exercício da magistratura, outra ques-tão também indagada, 70,7% das magistradas disseram não sentir diferença com relação aos seus colegas juízes.

Outro tema questionado foi o ingresso na carreira. A maioria das magistradas (86,6%) ouvidas no Censo afirmou considerar o concurso para a magistratura como imparcial para todos os candidatos, sejam eles homens ou mulheres. Empossada como desembargadora do TRT10 em outubro do ano passado, pelo critério da antiguidade, Cilene Santos está de acordo com o pensamento demonstrado pela maior parte das magistradas ouvidas pela pesquisa. “Não encontrei dificuldades para ascender na profissão”, relatou.

Perfil conservadorO Censo do Poder Judiciário resulta de uma decisão

no Pedido de Providências 0002248-46.2012.2.00.000, analisado pelo CNJ. O procedimento visava à fixação de políticas públicas para o preenchimento de cargos no Poder Judiciário, inclusive com o estabelecimento de percentuais para negros e indígenas. A pesquisa também foi feita junto aos mais de 285 mil servidores atualmente em atividade na Justiça.

No que se refere à magistratura, de um modo geral, o Censo constatou um perfil mais conservador, com a composição dos quadros dos tribunais e órgãos judiciais, predominantemente, por pessoas do sexo masculino, da cor branca e heterossexuais. Também de acordo com a pesquisa, 78,4% dos membros da Justiça são casados ou vivem em união estável, e 75,7% deles possuem filhos. Apenas 19,1% dos magistrados são negros e 0,9% é portador de alguma necessidade especial.

Para o conselheiro Paulo Teixeira os resultados obtidos pelo Censo do Poder Judiciário foram alvissareiros e certamente contribuirão não apenas para aprimorar a prestação jurisdicional, como para a identificação mais precisa daqueles que compõem os quadros do Poder Judiciário. “Foi uma oportunidade inédita para os participantes contribuírem, partilhando de suas opiniões e informações, para um trabalho indispensável para os planos de futuro da Justiça brasileira”, destacou.

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A busca pela fama e notoriedade não é um fenômeno recente. Ao contrário, é inerente ao ser humano o desejo de ver os seus atos conhecidos e reconhecidos pelos demais in-

divíduos. Isso, hoje, é facilitado pelo assombroso cresci-mento dos veículos de comunicação, em que a Internet se insere como poderosa ferramenta de divulgação e in-formação. E, dentro desse mar em que navegam milhões de internautas, estão as redes sociais, as quais permitem às pessoas ampla divulgação e exposição da sua imagem, intimidade e privacidade.

A imagem, a intimidade e a privacidade estão compre-endidas, sem sobra de dúvidas, no conjunto de atributos que compõem o rol dos direitos da personalidade, que nada mais são do que direitos inatos à pessoa, isto é, são direitos titularizados pelo sujeito pelo simples fato de ser ele uma pessoa, tendo como objetivo a realização da esfera íntima do indivíduo.

São os direitos da personalidade corolários da dignidade da pessoa humana, a qual consiste no reconhecimento de que todas as pessoas têm o direito a uma vida digna e ao mínimo essencial para a realização dos seus projetos. E para a realização da pessoa, especialmente na sua esfera íntima, é preciso se reconhecer a existência e a necessidade de proteção dos direitos da personalidade.

Por isso, não há outra conclusão do que aquela em que se reconhece que esses direitos possuem status constitu-cional, integrando verdadeiramente o bloco de constitu-cionalidade. Pelo bloco de constitucionalidade, integram

A indisponibilidade dos direitos da personalidade e as redes sociais

Thiago Ferreira Cardoso Neves Professor da Emerj

a Constituição não apenas as normas formalmente inseri-das em seu texto, mas também aquelas que tenham conte-údo de Constituição, chamadas de normas materialmente constitucionais, especialmente aquelas que dizem respeito aos direitos fundamentais.

Assim, amplia-se o conceito de Constituição para além das normas incluídas apenas em seu texto, de modo a compreender, dentro da noção de Constituição, também normas infraconstitucionais, “desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da ideia de ordem constitucional global”.1

No caso dos direitos da personalidade, a sua integração ao bloco de constitucionalidade se impõe por serem eles uma exteriorização da dignidade da pessoa humana, caracterizando-se, induvidosamente, como direitos fundamentais.

Como prova do que aqui se disse, basta simples leitura dos incisos V e X do art. 5o da Constituição Federal, os quais preveem expressamente tutela específica para esses direitos, de modo a assegurar a plena proteção e realização do indivíduo como pessoa humana. Além da Constituição, os direitos da personalidade também têm previsão infraconstitucional, mais especificamente no Código Civil em seus arts. 11 a 21.

Dada essa estatura constitucional e também os objeti-vos a que esses direitos visam, têm os direitos da persona-

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lidade algumas características marcantes. Entre elas estão a indisponibilidade e a irrenunciabilidade, que estão asse-guradas no Código Civil especificamente em seu art. 11.

Por essas mencionadas características, não é possível à pessoa dispor livremente dos seus direitos inatos, e tampouco renunciar a eles e à sua tutela. Essa disposição do Código Civil é alvo de diversas críticas por parte da doutrina, e quase já se chegou ao consenso de que essa indisponibilidade e irrenunciabilidade não são absolutas, ou seja, há um limite para elas, pois caso contrário haveria violação à autonomia privada, que nada mais é que o direito da pessoa de se autodeterminar, de escolher os seus projetos de vida e tomar as decisões sobre os rumos que ela deverá tomar.

Então, a indisponibilidade e irrenunciabilidade têm li-mites. Mas, essa limitação à indisponibilidade e irrenuncia-bilidade decorrente da autonomia privada é absoluta? Por conta da autonomia privada, qualquer um pode fazer o que quiser da sua vida, do seu corpo, da sua intimidade e priva-cidade? Há um limite do limite? Aqui a resposta também nos parece ser positiva, e isso porque a liberdade ampla e total do indivíduo pode levá-lo à violação e à degradação da sua própria dignidade. A dificuldade aqui, entretanto, pare-ce ser a definição da exata medida desse limite.

E essa questão ganha contornos cada vez mais dramáticos quando falamos das redes sociais. Nas redes sociais há cada vez mais casos de renúncia e disposição quase irrestrita da intimidade, da imagem e da vida privada. Inúmeros são os exemplos de pessoas que

tiveram a sua intimidade violada, exposta, sem qualquer restrição. E, em muitos desses casos, as consequências dessa superexposição são traumáticas, havendo, inclusive, algumas situações noticiadas na mídia de suicídio de meninas que tiveram momentos de grande intimidade expostos na rede e, por conta da imensa vergonha e constrangimento que sentiram pelo que foi divulgado, acabaram dando fim a própria vida.

E, isso é importante frisar, muitas dessas situações são provocadas pela própria vítima que, ou diretamente expõe as informações e fotografias nos ambientes virtuais, ou tão somente aguça a curiosidade de terceiros que, na busca para descobrir aquilo que foi insinuado, acabam descobrindo e expondo o que não deveriam.

Diante disso, questiona-se como fica a questão da proteção dos direitos da personalidade nesses casos, especialmente quando a própria lei prevê a indisponi-bilidade e irrenunciabilidade desses direitos. É possível impor restrições às redes sociais para a proteção das próprias pessoas? É legítimo ao Estado intervir na es-fera íntima, na autonomia do indivíduo e impedir que ele veicule essas informações, ou publique determina-das fotos?

Imaginem se amanhã um usuário da rede receber um e-mail de um desses provedores de conteúdo solicitando que as suas fotos íntimas, publicadas pela própria pessoa, vestindo uma sunga ou um microbiquíni, ou simplesmente de roupas íntimas ou, ainda, completamente despida, sejam retiradas do ar por determinação das autoridades. Cremos

Foto: Arquivo pessoal

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“Nas redes sociais há cada

vez mais casos de renúncia

e disposição quase irrestrita

da intimidade, da imagem

e da vida privada. Inúmeros

são os exemplos de pessoas

que tiveram a sua intimidade

violada, exposta, sem

qualquer restrição”

1 Trecho extraído do voto do eminente Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADI 595/ES, divulgado no Informativo 258 do Su-premo Tribunal Federal, e disponível em http://www.stf.jus.br//ar-quivo/informativo/documento/informativo258.htm. #ADIn: Bloco de Constitucionalidade (Transcrições). O Ministro Celso de Mello voltou a enfrentar a questão no julgamento da ADI 514/PI, divulgada no Informativo 499 do Supremo Tribunal Federal, e disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informati-vo499.htm#transcricao1.

as redes sociais devem ser examinadas com cautela. É certo que não é possível impor às pessoas uma censura, impedindo absolutamente a veiculação de dados, informações e fotografias, como já foi vivido nesse país um dia. Como costuma afirmar o Professor e Ministro Luís Roberto Barroso, só quem nunca viu a sombra não sabe reconhecer a luz. Esses são tempos que, se Deus quiser, jamais voltarão. Mas isso não significa que não se deva repensar o alcance da proteção aos direitos da personalidade, a fim de se evitar que essa liberdade que hoje existe não seja uma armadilha feita, por nós mesmos, para nós mesmos cairmos nela.

que a maioria dos envolvidos, senão a unanimidade, não irá gostar, e buscará o Judiciário para ver o seu direito de liberdade, sua autonomia privada, resguardada.

Agora, imaginem se essas fotos publicadas pelo próprio usuário no provedor da rede social forem utilizadas indevi-damente por um terceiro, que as coloque em sites de conte-údo pornográfico, induzindo, por exemplo, à prostituição. Aqui, temos a certeza de que ninguém irá gostar.

Como é possível perceber, essa situação não é sim-ples, revelando-se como verdadeiro conflito de direitos fundamentais, especificamente a autonomia privada e a privacidade e intimidade. Dada a natureza dos direitos en-volvidos, não é fácil resolver esse imbróglio e decidir por criar restrições ou manter a quase irrestrita liberdade dos usuários, não havendo resposta pronta no ordenamento para isso.

A solução, caso seja levada ao Judiciário, deverá ser construída pelo juiz, utilizando-se do critério da pon-deração para decidir qual é a resposta adequada ao caso concreto.

Diante do que dissemos, é possível perceber que essas questões que envolvem os direitos da personalidade e

Nota

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1. Introdução

É da tradição de nossos Tribunais – tradição esta muito anterior ao advento do Regime Militar (1964-1985) – o critério da antiguidade para o acesso e exercício de sua presidência, por meio

de referendo ratificador por parte de seus membros. Ainda que seja cediço reconhecer que esta tradição já vem sendo, de certa forma, rompida, haja vista o que vem ocorrendo em alguns Tribunais Estaduais (nos quais a escolha para a presidência acontece por intermédio da eleição de uma chapa composta por parte de seus membros, não necessariamente os mais antigos, mas com um colégio eleitoral composto apenas pelos desembargadores que compõem a Corte), é lícito concluir, todavia, que os resultados colhidos até a presente data indubitavelmente nos dão conta, em maior ou menor medida, de elevado grau de criticável politização do Poder Judiciário local, além de relativo comprometimento da recomendável isenção (corolário do princípio basilar da eficiência) na administração desses tribunais.

Ainda assim, salta aos olhos a tramitação, no Congresso Nacional, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 187/2012, que propõe, simplesmente, alterar a Constituição para permitir, de forma muito mais elástica, a eleição livre para os órgãos diretores de todos os tribunais de segundo grau.

O mito da eleição direta para presidente dos tribunais

Reis Friede Desembargador do TRF 2ª Região

Em linhas gerais, a chamada PEC de Democratização do Judiciário estabelece que os Tribunais Intermediários deverão passar a eleger os integrantes dos seus cargos de direção (à exceção do cargo de Corregedor) por maioria absoluta de todos os magistrados vitalícios, e não apenas de seus membros.

O argumento central repousa no frágil entendimento de que a Administração dos Tribunais “mantém suas decisões concentradas nas mãos de poucos, sem a devida justiça, e que sua concepção é baseada na hierarquia militar, reflexo dos tempos de regime militar, e que, por esta razão, sua escolha não deveria pertencer à Corte” (BOLLMANN, 2013).

2. Breve análise da PEC n. 187/2012As mudanças propostas pela PEC1 em análise

resumem-se em prover nova redação às alíneas “a” e “b” do inciso I do artigo 96 da Constituição Federal, renominar as alíneas subsequentes e acrescentar ao artigo um parágrafo único, dispondo sobre a eleição dos órgãos diretivos dos Tribunais de segundo grau. Destarte, o texto do artigo 96 passaria a ostentar a seguinte redação, verbis:

Art. 96. Compete privativamente: I – aos Tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos, por maioria absoluta e voto direto e secreto, entre os membros do tribunal pleno,

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exceto os cargos de corregedoria, por todos os magistrados vitalícios em atividade, de primeiro e segundo grau, da respectiva jurisdição, para um mandato de dois anos, permitida uma recondução.b) elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a criação, a competência, a composição e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;c) .............................. (redação da atual alínea “b”);d) .............................. (redação da atual alínea “c”);e) .............................. (redação da atual alínea “d”)f) ............................. (redação da atual alínea “e”);g) ............................. (redação da atual alínea “f ”);Parágrafo único: Não se aplica ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais Regionais Eleitorais o disposto no inciso I, “a”, competindo-lhes eleger os seus órgãos diretivos na forma dos seus regimentos interno, observado o previsto no § 2o do artigo 120. (grifos nossos)

A par de toda a respeitável linha argumentativa, delineada pelos mais ardorosos defensores da presente tese, o mais interessante é que a referida PEC não se apresenta com o necessário dever de coerência argumentativa quando exclui, expressamente, os órgãos de cúpula do

Poder Judiciário, ou seja, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), bem como o próprio “tribunal da cidadania”, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) –, em que provavelmente o argumento pelo “clamor democrático” seria muito mais perceptível, apreciável e adequado.

Também vale ressaltar que a enfática defesa de que o atual Colégio Eleitoral para eleições nos órgãos diretivos dos Tribunais deveria ser ampliado para igualmente incluir juízes de primeiro grau – “justamente os que têm no dia a dia contato direto com o cidadão que demanda justiça” (BOLLMANN, 2013) –, resta, no mínimo, contraditória, visto que, por essa mesma linha de raciocínio, seria necessário incluir os demais operadores do Direito (membros do Ministério Público e advogados) pelas mesmas razões apontadas.

É curioso observar que ninguém se preocupou em estudar mais aprofundadamente e, sobretudo, entender, com maior atenção, as razões históricas de o consagrado critério de antiguidade ter se fixado no Poder Judiciário como uma salutar tradição que se iniciou após o fim do Estado Novo (1937 a 1945),2 exatamente como importante e necessária resposta ao clamor democrático que repudiou, de forma veemente, o anterior critério eletivo amplo que somente serviu aos interesses populistas daquele odioso e repulsivo momento histórico, que se caracterizou

Ilustração

Foto: SCO/STF

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pela centralização de poder, fortemente travestida de nacionalismo e exacerbado autoritarismo.

É importante registrar que todas as Constituições posteriores a este momento ditatorial3 outorgaram plena autonomia aos Tribunais para elegerem seus cargos de direção – exclusivamente por voto de seus membros e observado o critério de antiguidade –, o que acabou por consagrar o importantíssimo princípio do autogoverno da magistratura em nosso país.

Ademais, a razão de ter sido historicamente privile-giado o critério de antiguidade nos referidos processos de escolha dos órgãos diretivos de nossos Tribunais deve--se ao fato de que, não obstante o Poder Judiciário ser um reconhecido poder político, inerente ao Estado Demo-crático, sua função precípua (jurisdicional) é exercitada de forma predominantemente técnica, por meio de uma tríade indissociável a incluir a imparcialidade, a impesso-alidade e a independência, paradigmas que revelam um imperativo de necessário e saudá-vel distanciamento político e de ações políticas por parte de seus membros.

A prevalecer, data maxima venia, essa irrefletida, descabida (e pouco debatida) proposta de emenda à Constituição, passaría-mos a ter – de forma impositiva e desafiadora da própria autonomia judiciária –, nos Tribunais Estadu-ais e, em particular, nos Tribunais Regionais Federais – caracteriza-dos pelo número restrito de de-sembargadores – inéditas disputas político-eleitorais que não somen-te poderiam vir a paralisar o bom andamento de seus trabalhos, a envolver seus membros em intensas campanhas eleitorais por vários meses ante-riores ao pleito (se assemelhando, em muito, ao que ocorre nas Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB), mas também abrir verdadeiro leque de possibilidades ini-magináveis, como a de que desembargadores advindos do quinto constitucional e recém-empossados, sem qualquer conhecimento sobre o funcionamento administrativo de um tribunal – mas com excelente trânsito político – pos-sam ser eleitos para a alta administração do tribunal e, inclusive, para a sua presidência, pondo muitas vezes a perder, por seu conhecimento incipiente da função, uma organização eficiente construída ao longo de décadas e forjada em vigorosa experiência e maturidade que somen-te o tempo efetivamente propicia.

Igualmente, ao se excluir, dos novos critérios propostos, o cargo de Corregedor, poderia vir a ocorrer a

esdrúxula situação factual em que o cargo de Corregedor, eventualmente ocupado por desembargador mais antigo, teria certa ascendência sobre o Presidente, em sinérgica subversão hierárquica não somente da estrutura do próprio tribunal, mas também em relação à organização vertical do Poder Judiciário.4

Temerariamente, parece que tais situações pontuais encontram-se, ainda que de maneira implícita, na justificação para a propositura da PEC em comento, haja vista a atual realidade pátria, em que muito tem sido conseguido, lamentavelmente, por meio do “compadrio”.

Em necessária adição argumentativa, deve ser consig-nado, em tom de sublime advertência, que tal alteração, uma vez conduzida a efeito, seria de monta suficiente para causar graves danos à imagem de imparcialidade do Poder Judiciário, com o consequente e eventual sur-gimento de possíveis lobbies de empresários e políticos por trás das chapas concorrentes aos cargos diretivos dos

Tribunais, tudo com vistas a verem seus interesses privile-giados.

Dessa feita, verifica-se, a toda evidência – especialmente pelas várias possíveis consequ-ências derivadas –, que a pro-posta sub examen é por demais complexa para ser reduzida a uma simples identidade demo-crática; afinal, entre os vários poderes de um presidente de tribunal, encontra-se não so-mente a prerrogativa de esta-belecer a pauta de julgamento,5 como ainda a própria ordem dos trabalhos, influenciando,

sobremaneira, o destino temporal dos julgamentos.

3. Critérios para o acesso e exercício da presidência de tribunais em outros países

A título comparativo, vale, nesse momento, trazer à baila como funcionam o acesso e o exercício da presidên-cia nos Tribunais em alguns países com governo reconhe-cidamente democrático.

Na Índia, a maior democracia do mundo, o presidente da Suprema Corte é nomeado pelo presidente do país, recaindo essa designação, geralmente, sobre o juiz mais antigo da Corte naquele momento, ou seja, é seguido o critério de antiguidade, assim como ocorre no Brasil.6

No Chile, país de raízes culturais também ibéricas, com sistema legal próximo ao nosso e reconhecida recuperação democrática após os duros anos da Ditadura Pinochet, a eleição para a presidência de sua Corte Suprema segue

“É muito mais o princípio do amplo

acesso – ainda que por critérios distintos

da eleição, tais como o concurso

público –, o caminho que se revela mais

democrático para o preenchimento

dos cargos e das funções do Estado,

em praticamente todos os seus níveis,

notadamente nos que se exercem à

margem da política e que se afirmam

por desempenho técnico”

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a tradição de os magistrados elegerem o ministro mais antigo,7 assim como ocorre com os demais Tribunais inferiores, como nas chamadas Cortes de Apelação.

Por outro lado, na Espanha, país no qual a Constituição, promulgada em 1978, é contemporânea à nossa e que também foi redigida após vários anos de regime ditatorial, a designação para a presidência dos Tribunais Superiores de Justiça das comunidades autônomas se dá, em efetiva contraposição, por meio da realização de criticáveis acordos políticos, o que tem gerado grandes problemas, em especial nas regiões tradicionalmente avessas ao poder central emanado de Madri, tais como a Catalunha e o País Basco, apenas para citar algumas. Ademais, a própria categoria dos magistrados daquela nação tem visto com grande apreensão esta politização da Justiça, que não seria de forma alguma reflexo de maior democracia, mas apenas a certeza de que verdadeiros “conchavos políticos” conseguem melhores resultados na hora de se buscar a posição de presidente, o que, de forma alguma, é o que se espera que ocorra em uma instituição que pugna pela necessária imparcialidade.

4. A situação atual das eleições para a presidência dos tribunais brasileiros

Voltando os olhos à nossa situação fática, insta salien-tar que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) vigente expressamente prevê, em seu artigo 102, que “Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão entre seus juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a re-eleição” (grifo nosso).

Referido fato nunca preocupou os Tribunais com pou-cos desembargadores. Salvo raras exceções, neles vem sen-do seguida a antiguidade nos cargos de direção, sendo que todos, ou quase todos, chegam à presidência, vice-presi-dência ou corregedoria.

A situação, contudo, apresenta-se diferente nos Tribu-nais maiores, e por um motivo muito simples: quem entra em um tribunal com 30 (trinta) juízes ou mais provavel-mente nunca chegará aos cargos de direção. Ainda que 15 (quinze) de seus colegas já tenham presidido a Corte, mor-ram ou se aposentem, os 15 (quinze) restantes significarão 30 (trinta) anos de espera. Isto obviamente desagrada aos mais novos, alguns com enorme vontade (e mesmo voca-ção) de atuar como presidentes.

Assim, são os Tribunais de porte médio (20 a 49 de-sembargadores) e os de grande porte (50 ou mais de-sembargadores, caso do TJSC, TJPR, TJMG, TJRJ, TJRS e TJSP) que não têm aceitado a antiguidade como crité-rio único de escolha,8 ainda que não a tenham renegado por completo.

De Freitas (2011), desembargador federal aposentado do TRF 4a Região, onde foi presidente, e consagrado professor universitário, entende que “o anseio de presidir um tribunal é uma aspiração legítima e nada tem de errado. Pelo contrário, é ótimo que quem assuma tão difícil posição esteja preparado e disposto, física e psicologicamente, a dedicar dois anos de sua existência à causa pública”.

Aduz o douto colega, ademais, que a presidência de um Tribunal Intermediário (TJ, TRF ou TRT) é onde se pode fazer mais pela efetividade da Justiça, visto ser o presidente desses Tribunais quem dá a política da gestão judiciária no estado ou na região, que pode incentivar os juízes e servidores, instalar Varas, realizar concursos, conduzir a construção de Fóruns, implementar o processo eletrônico, estimular a conciliação e pôr em prática tantas outras importantíssimas medidas.

De Freitas menciona também, contrariamente ao pensamento dos defensores da PEC 187/2012, que não tem qualquer cabimento a pretensão de que todos os juízes votem para presidente, pois isto culminaria em campanhas pelo interior, promessas de favores, animosidade entre facções em disputa e outros tantos problemas.

Nessa linha, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, cujo Tribunal de Justiça possui 180 desembargadores, com 25 fazendo parte do Órgão Especial. A escolha da presidência se dá por votação secreta pela maioria dos membros do Tribunal, podendo concorrer apenas os membros efetivos do Órgão Especial, cuja metade é provida pelo critério de antiguidade. Assim, constata-se, neste ente federativo, a adoção de um critério de eleição que poderia ser considerado misto, haja vista o fato de, entre os desembargadores elegíveis, metade ser composta dos membros mais antigos do Tribunal, mas, ainda assim, excluídos, em qualquer hipótese, os juízes de primeiro grau como sujeitos eleitorais ativos.

Analisando a questão no âmbito da Justiça Federal, cabe salientar que o Tribunal Regional Federal da 2a Região, em seu Regimento Interno, deixa claro que a eleição para sua Presidência dar-se-á por votação de seus 27 desembargadores, recaindo a escolha, preferencialmente, sobre os desembargadores federais mais antigos, ou seja, utiliza-se do critério de antiguidade.

Tal critério é o que também é utilizado, tradicional-mente, por nossa Corte máxima, o STF. Assim, nem to-dos os ministros chegam à Presidência do Supremo. Nas eleições, atualmente feitas a cada dois anos, é respeitada a antiguidade, tendo prioridade o ministro que entrou há mais tempo na Corte, com o presidente sendo eleito por seus pares em Plenário, por voto secreto.9

Igualmente, é o critério adotado pelo STJ, desde a sua criação e instalação em 1989, em repetição ao idêntico cri-

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tério aplicado historicamente, desde sempre,10 ao Tribunal Federal de Recursos (TFR), quando de sua criação, em 1946, durante o importantíssimo processo de redemocra-tização do Brasil.

Uma das anunciadas temeridades no caso de uma eventual aprovação da PEC n. 187/2012 recai exatamente no fato de que, como a base da pirâmide hierárquica do Judiciário é muito maior do que a sua Cúpula, na prática, seriam os juízes vitalícios com menos de cinco anos na carreira, muitos com menos de 30 anos de idade e pouquíssima experiência judicante, quem, de fato, decidiriam as eleições. E ainda – o que é mais grave –, para que estes, em um segundo “momento democratizante”, passem de simples eleitores (sujeitos eleitorais ativos) a membros elegíveis (sujeitos eleitorais passivos),11 seria relativamente simples, do ponto de vista político, permitindo o risco de começarmos a ver Tribunais espalhados pelo país inteiro presididos por juízes de primeiro grau com menos de cinco anos de carreira, ou seja, com pouquíssima experiência no que pertine à administração complexa que envolve a estrutura

Foto: Depositphotos

“Quem entra em um tribunal

com 30 juízes ou mais

provavelmente nunca chegará

aos cargos de direção. Ainda que

15 de seus colegas já tenham

presidido a Corte, morram ou

se aposentem, os 15 restantes

significarão 30 anos de espera.

Isto obviamente desagrada aos

mais novos, alguns com enorme

vontade (e mesmo vocação) de

atuar como presidentes”

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de um tribunal, além de uma idade cronológica em que a própria maturidade humana, – essencial à função judicante e administrativa –, ainda não se encontra plenamente assentada.

5. A esfera do Poder Legislativo: as eleições para a presidência das casas do Congresso Nacional

É interessante destacar que, no âmbito do Poder Legislativo – no que pertine ao fato de não recair na massa da população com capacidade eleitoral ativa a escolha de seus cargos diretivos –, a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados igualmente não inclui os senadores, que também são congressistas, sendo certo que, inclusive, para eleição da Mesa Diretora do Senado Federal – incluindo o cargo de presidente do Senado e de todo o Congresso Nacional –, não votam os deputados federais,12 mesmo sendo fato que, nos trabalhos conjuntos englobando ambas as Casas Legislativas, a presidência recai sobre um senador, escolhido exclusivamente por seus pares.

6. O clamor pela democratização do Poder JudiciárioResta incontestável que uma das naturais aspirações

de um juiz de carreira – que por meio de seus reconhe-cidos méritos logrou aprovação em dificílimo concurso público de acesso –, é não somente ser promovido ao res-pectivo tribunal a que se encontra adstrito, na medida em que avança temporalmente na carreira, como também participar mais ativamente das decisões que, em grande medida, alteram os rumos do Poder Judiciário.

É exatamente dentro desse contexto que não somente se faz imperativa, como, igualmente, se almeja, – como um autêntico clamor de seus membros –, uma verdadeira “democratização do Poder Judiciário”. Tal pretensão, legítima em sua origem e em sua intenção – resta lícito concluir –, passa, necessariamente, por amplas e profundas mudanças estruturais que afastem definitivamente o conservadorismo predominante, sobretudo aquele ditado pelo poder político a que, reconhecidamente, o Judiciário se encontra criticamente subordinado.

Assim, é de se registrar que, essencialmente, as legítimas aspirações dos magistrados de primeiro grau, em última análise, não são satisfeitas pelo simples fato de que eles não possuem o direito de eleger (ou serem eleitos para) os cargos de direção dos Tribunais, mas, muito mais acertadamente, porque dificilmente chegarão a esses importantes cargos pelo isento critério de antiguidade em razão da própria carreira não permitir esta natural evolução gradualística, em razão, sobretudo, de antidemocráticas intervenções políticas externas que permitem admitir, de forma ampla e gradual, nas instâncias superiores, o ingresso de juízes oriundos

de outras carreiras ou funções, como a advocacia ou o Ministério Público, e que – além de simplesmente não se submeterem ao concurso público de acesso à magistratura nacional –, subvertem a natural ordem hierárquica implícita em todas as carreiras do serviço público (situação em que a carreira da magistratura não pode ser apontada como exceção), em efetivo prejuízo das mais corriqueiras aspirações daqueles que continuam a aguardar, ano após ano, por uma ansiada promoção aos Tribunais dos mais variados graus e, porque não, à última instância, ou seja, ao STF.

Este é exatamente o cerne da questão democrática que precisa ser verdadeiramente enfrentada, sem os “desvios de atenção” que se pretende, ainda que inconscientemen-te, impor, camuflando os verdadeiros caminhos a serem trilhados para efetivamente se avançar no processo demo-crático, rompendo com as últimas amarras da herança au-toritária do período getulista.

Senão, vejamos: 100% das vagas de Juízes de primeiro grau são, atualmente, providas exclusivamente por candidatos que, unicamente pelo critério meritório do concurso público de provas e títulos, lograram aprovação nele, revelando grande avanço democrático, na exata medida em que, no período compreendido entre 1966 e 1973, os cargos de juízes federais de primeiro grau eram providos por simples indicação política do Poder Executivo.13

Todavia, nos Tribunais Intermediários, por uma herança da Era Vargas14 (até hoje não objeto de necessária correção democratizante), apenas 80% das vagas de desembargadores (Juízes de segundo grau) são destinadas aos magistrados de carreira e, ainda assim, apenas metade destas, ou seja, 40% do total são reservadas aos juízes de primeiro grau pelo critério de antiguidade, sem qualquer ingerência política.15

Nos Tribunais Superiores a situação é ainda mais desafiadora, visto que, no Tribunal da Cidadania, o STJ, órgão de cúpula das justiças comum local (estadual e distrital) e federal, o quinto constitucional é transformado em terço constitucional, ou seja, o percentual de 80% de acesso de juízes de carreira é reduzido para 67%, sendo certo que todas as vagas são providas por critérios políticos de formação da lista tríplice com posterior escolha discricionária e soberana pelo Chefe do Poder Executivo.16

No Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula de todo o Poder Judiciário, todas as vagas (11 no total), insta salientar, são exclusivamente providas por livre escolha do Chefe do Executivo, excluída qualquer vinculação à necessária nomeação de juízes de carreira.17

O clamor por mais democracia no Poder Judiciário, portanto, preconiza, em tom sublime, maior defesa pelo

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fortalecimento da carreira, o que se traduz pelo reforço dos critérios meritórios e, consequentemente, por cada vez menos ingerências políticas de outros Poderes e, so-bretudo, menor politização interna corporis, reafirmando o preceito democrático de amplo acesso de seus mem-bros exclusivamente por critérios de antiguidade que melhor traduzem os esforços naturais de desempenho na carreira judicante.

7. ConclusõesÉ importante salientar que, nos últimos tempos, o

verbo “democratizar” ganhou notável importância que, entretanto, não tem sido acompanhada de sua correspon-dente e correta interpretação.

Democratizar não significa, necessariamente, tornar todas as funções do Estado elegíveis e, de igual forma, ampliar irrestritamente o Colégio Eleitoral daquelas em que se faz pertinente o critério de escolha.

Em verdade, é muito mais o princípio do amplo acesso – ainda que por critérios dis-tintos da eleição, tais como o concurso público –, o caminho que se revela mais democrático para o preenchimento dos car-gos e das funções do Estado, em praticamente todos os seus níveis, notadamente nos que se exercem à margem da política e que se afirmam por desempe-nho técnico.

No caso específico da fun-ção judicante, não é possível deixar de reconhecer que, hodiernamente, esta se perfaz por meio de um viés no qual a experiência de vida permite interpretação cres-centemente mais justa das leis, tornando-se cada vez melhor quanto maior for o tempo em atividade. Relem-bre-se, nesse sentido, que, na antiguidade, os julgamen-tos eram efetuados por conselhos de anciãos, ou seja, a “justiça” era proporcionada pelos indivíduos mais ex-perientes no seio social, reconhecendo-se a maturidade, a experiência de vida e o conhecimento prático e teórico acumulado ao longo do tempo como essenciais ao mis-ter da função jurisdicional e administrativa correlata.

É exatamente por essa razão que não é possível que se cogite faltar democracia no fato de continuarmos a seguir o consagrado critério de antiguidade na eleição de presidentes dos Tribunais pátrios, como medida de salutar equilíbrio e não politização do Poder Judiciário nacional, seguindo os melhores e mais diversos exemplos presentes nos países mais

democráticos da atualidade, bem como do próprio processo de democratização do Judiciário, inaugurado a partir de 1946, que buscou sepultar, em definitivo, o “populismo” da Ditadura Vargas, que permitiu curvar todos os Tribunais sobreviventes (é importante lembrar que a Constituição de 1937 simplesmente extinguiu a Justiça Federal) às suas ordens e interesses, por meio, e sobretudo, da aplicação do amplo critério eletivo (e eleitoreiro) de seus Presidentes.

Não é por outra sorte de considerações, portanto, que devemos sempre ter em mente que o verdadeiro caminho para a democratização do Judiciário passa não pela politi-zação tanto de sua estrutura como de seus membros, mas sim (e principalmente) pelo fortalecimento da própria car-reira (exclusivamente composta de magistrados concursa-dos), como ainda e fundamentalmente, pela sinérgica efe-tividade do poder jurisdicional inerente aos magistrados

de primeiro grau, o que implica dizer restringir os inúmeros re-cursos e a ampla gama de nefas-tos efeitos suspensivos que vêm transformando, na prática, os juízos monocráticos em simples juízos de instrução, como bem assim seus respectivos julgadores em meros magistrados de inicia-ção processual.18

Por efeito conclusivo, é exa-tamente a despolitização e o afastamento do caráter populista e eleitoreiro nos Tribunais que, historicamente, – ao reverso do que preconizam os mais desavi-

sados –, se constituem na grande e verdadeira conquista democrática pós-ditadura Vargas, sendo certo que ainda resta o desafio de ver sepultada a última herança daque-le sombrio regime, ou seja, a extinção da figura política do quinto constitucional, a permitir, por derradeiro, a prevalência do critério meritocrático de acesso a todos os Tribunais, com a consequente promoção de seus mem-bros circundada exclusivamente aos juízes de carreira, afastando-se, desta feita, qualquer ingerência política de outros poderes ou mesmo de politizações indesejadas, em efetiva consagração da democracia (e dos valores democráticos) que preconiza a existência de um Poder Judiciário realmente independente. Afinal, não é do inte-resse do povo brasileiro que o Poder Judiciário venha a se transformar em simples Serviço Judiciário.

“É muito mais o princípio do amplo

acesso – ainda que por critérios distintos

da eleição, tais como o concurso

público –, o caminho que se revela mais

democrático para o preenchimento

dos cargos e das funções do Estado,

em praticamente todos os seus níveis,

notadamente nos que se exercem à

margem da política e que se afirmam

por desempenho técnico”

As notas de rodapé foram suprimidas para composição do texto com autorização do autor. A íntegra do artigo encontra-se disponível pelo link: http://bit.ly/1lRdvcK

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Chamou a atenção do longevo jornalista, afeito às morosas, extensas e complicadas questões judiciais, a sucinta decisão prolatada pelo desembargador Marcelo Lima Buhatem, em processo de Família e Sucessões, que nos levou a publicar o respectivo Acórdão.

Em si não há nada diferente, a não ser a forma prática como o ilustre e culto magistrado deslinda o feito, de forma a esgotar a lide sem delongas e argumentos estéreis e dispensá-veis – o que a prática e experiência judicante ensina e impõe.

Vem de longe, herança das culturas latinas, o costume das longas e enormes dissertações literárias jurídicas, re-pletas e intermináveis citações que às vezes se contradizem nos argumentos, tanto nas petições, recursos infindos e finalmente com sentenças monumentais que chegam nor-malmente à conclusão com dezenas e dezenas de páginas.

Os tempos atuais e a celeridade alcançada através dos meios de comunicação, trazendo e motivando a difusão cultural em todos os sentidos, trouxe como implicação da rapidez e modernidade a exigência da praticidade na solução de todos os assuntos e questões nos vários e extensos ramos da atividade humana.

Os exemplos que vêm sendo dados nos últimos tempos em vários setores do Poder Judiciário por magistrados que se despem da demonstração da cultura-jurídica que são detentores e buscam, nas decisões que prolatam na distribuição do direito que lhes cabe, a síntese da questão com objetividade, isenta de divagações e firulas jurídicas, é merecedor dos encômios que o editor lhe transmite.

Testamento: prevalência e obediência da vontade, em vida, do de cujus

AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIREITO CIVIL – FAMÍLIA E SUCESSÕES – INVENTÁRIO E PARTILHA – DECISÃO QUE ADJUDICOU OS BENS DEIXADOS PELA FALECIDA EM FAVOR DE CÔNJUGE SOBREVIVENTE – INSURGÊNCIA DOS COLATERAIS – CÔNJUGE SOBREVIVENTE CASADO PELO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – TESTAMENTO QUE IMPÔS CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE APOSTA À LEGÍTIMA – SUBSISTÊNCIA DO GRAVAME APÓS A MORTE DA BENEFICIÁRIA – OBSERVÂNCIA DA ÚLTIMA VONTADE DO TESTADOR – PREVALÊNCIA. DECISÃO QUE SE REFORMA.1. Decisão agravada que reconheceu ser o cônjuge supérstite da inventariada seu legítimo sucessor, uma vez que faleceu sem deixar descendentes e ascendentes. Afastou da sucessão os colaterais, que somente herdariam na ausência do cônjuge da falecida. Afirmou que a cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz desaparecer a restrição, visto que os bens gravados com cláusula de incomunicabilidade só manterão este efeito enquanto viver o seu beneficiário.2. Agravo interposto pelos tios e primos da inventariada Eliane. Argumentam que fazem jus aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.3. A cláusula de incomunicabilidade impede que o bem entre na comunhão em razão de casamento, união estável ou união homoafetiva.

Nota do editor

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Marcelo Lima Buhatem, desembargador do TJRJ

4. Dessa forma, ao testador são asseguradas medidas conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros necessários.5. Por conseguinte, deve-se interpretar o testamento, de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando a vontade do testador, que, no caso concreto, foi de salvaguardar os bens deixados à inventariada.6. Reconhece-se a incomunicabilidade dos bens entre a filha falecida do testador e seu esposo, em respeito à vontade do testador de manter o patrimônio no seio familiar.7. Provimento do recurso, para deferir as habilitações dos agravantes na qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade. DÁ-SE PROVIMENTO AO RECURSO.

ACÓRDÃOVISTOS, relatados e discutidos estes autos de agravo

de instrumento n. xxx, em que são AGRAVANTE 1: A. F. N., AGRAVANTE 2: N. F. N., AGRAVANTE 3: C. N. M., AGRAVANTE 4: J. N. M., AGRAVANTE 5: L. M. H. M., AGRAVANTE 6: A. N. M., AGRAVANTE 7: C. F. N. AGRAVANTE 8: K. H. N. e AGRAVADO 1: ESPÓLIO DE E. A. M. REP/P/S/INV P. M. M. e AGRAVADO 2: ESPÓLIO DE O. J. A. REP/P/S/INV P. M. M.

ACORDAM os ilustres Desembargadores que compõem a 22a Câmara Cível deste E. Tribunal, por unanimidade de votos, em conhecer e dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.

RELATÓRIOTrata-se de agravo de instrumento, interposto por A.

F. N. e outros, nos autos da ação de inventário, almejando a reforma da decisão assim exarada, ipsis litteris:

Fls. 174/176 – Com razão o requerente. Na forma do artigo 1.829 do Código Civil, o requente, cônjuge supérstite da inventariada que faleceu sem deixar descendentes e ascendentes, é seu legítimo sucessor. Dessa forma, os colaterais somente herdariam na ausência do cônjuge da falecida, conforme inciso IV do artigo acima citado. Impende esclarecer que a cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz desaparecer a restrição, uma vez que a cláusula de incomunicabilidade impede que o bem se comunique na comunhão em razão de casamento, independentemente do regime adotado para a união, ou seja, o bem integrará sempre o patrimônio particular do beneficiário. No entanto, os bens gravados com cláusula de incomunicabilidade só manterão este efeito enquanto viver o seu beneficiário. Neste sentido, o cônjuge supérstite herdará, com ou sem concorrência, todos os bens do falecido gravados com cláusula de incomunicabilidade, posto que tais bens se transmitem aos herdeiros sem qualquer ônus. Indefiro, pois, as habilitações requeridas às fls. 153/155. Restando preclusa a presente decisão, voltem para sentença.

Insurgem-se contra o decisum, narrando os Agravantes que são tios e primos de E. A. M. Esclarecem

Foto: Arquivo pessoal

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que a mãe de E., de nome O. J. A., faleceu em 30/6/2012, enquanto aquela faleceu em 9/11/2012, sem descendentes ou ascendentes. Dessa forma, informam que o cônjuge sobrevivente de E. requereu a adjudicação de todos os bens do monte, inclusive aqueles gravados com cláusula de incomunicabilidade.

Dessa forma, os Agravantes, na qualidade de herdei-ros colaterais de E., afirmam que fazem jus aos bens gra-vados com cláusula de incomunicabilidade, visto que o cônjuge sobrevivente não tem direito a estes, até porque casaram-se sob o regime da comunhão parcial de bens, devendo ser observada a vocação hereditária. Requerem sejam deferidas as habilitações na qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.

Petição de fl. 19, apresentando os agravantes compro-vante de interposição do recurso, em cumprimento ao art. 526 do CPC.

Contrarrazões de fls. 28/32, argumentando os agra-vados que:

A primeira inventariada, O. J. A., viúva de H. N. A., faleceu em 30.6.2012, tendo deixado testamento, gravando os seus bens com as cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade vitalícias. Foi aberto o inventário, tendo sido requerida a adjudicação dos bens a sua única filha, E. J. A., que faleceu em 9.11.2012, não tendo deixado descendentes ou testamento, sendo casada com o inventariante, sob o regime da comunhão parcial de bens.O inventário da segunda inventariada foi aberto, com o requerimento de adjudicação dos bens ao inventariante, na qualidade de herdeiro, uma vez que a de cujus não possuía descendentes e ascendentes, tendo o douto Juízo a quo deferido a inventariança ao cônjuge supérstite.Ocorre que A. F. N. e C. F. N., irmãos do pai da segunda inventariada, e C. N. M., J. N. M. e A. N. M., filhos da irmã do pai da segunda inventariada, falecida em 18.6.1995, portanto, tios e primos da segunda inventariada, respectivamente, ingressaram nos autos requerendo a habilitação no inventário e avaliação dos bens. Apesar das habilitações requeridas, o douto Juízo a quo indeferiu o pedido dos Agravantes, dando integral cumprimento ao art. 1.829, I a IV, do Código Civil.

Ofício do Juízo a quo de fl. 34, afirmando que manteve a decisão agravada.

A d. Procuradoria de Justiça, às fl. 37/39, opinou no sentido de inexistir interesse público primário a justificar sua intervenção.

Passo ao VOTO.Conheço do recurso por tempestivo e por estarem

satisfeitos os demais requisitos de sua admissibilidade.O Juízo a quo reconheceu que o cônjuge supérstite

da inventariada E., que faleceu sem deixar descendentes

e ascendentes, é seu legítimo sucessor, afastando, assim, os colaterais, que somente herdariam na ausência do cônjuge da falecida, conforme incisos III e IV do artigo 1.829 do Código Civil.

Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:(...)III – ao cônjuge sobrevivente;IV – aos colaterais.

Ressaltou o magistrado de piso que a cláusula de incomunicabilidade não retira a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite, sendo certo que o óbito da beneficiária do testamento automaticamente faz desaparecer a restrição, uma vez que a cláusula de incomunicabilidade impede que o bem se comunique na comunhão em razão de casamento.

O ponto nodal da questão situa-se em definir se o cônjuge sobrevivente, que fora casado com a autora da herança sob o regime da separação convencional de bens, participa ou não da sucessão como herdeiro necessário, na medida em que os bens deixados estão gravados com cláusula de incomunicabilidade por testamento deixado pelos genitores já falecidos de sua esposa.

O agravante P., inventariante dos espólios de O. e E. (agravados 1 e 2), casou-se com E. em 25/9/1993, sob o regime da comunhão parcial de bens.

O sogro do inventariante dos agravados, H. N. A., faleceu em 15/9/1994, deixando testamento, no qual gravou os bens que seriam transmitidos à sua única filha E. com as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade.

Posteriormente, O., a sogra do inventariante dos espólios, faleceu em 30/6/2012, deixando testamento, gravando seus bens com cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade vitalícias.

Dessa forma, ocorreu a transmissão causa mortis do falecido Sr. H. e, posteriormente, da falecida Sr.ª O., para a filha Sr.ª E..

No entanto, poucos meses após, em 9/11/2012, faleceu E., sem deixar descendentes ou ascendentes.

Assim, o inventariante dos espólios agravados, na qualidade de cônjuge sobrevivente de E., requereu a adjudicação de todos os bens do monte.

Importa esclarecer que o 1o agravante é casado com a 2a agravante e a 7a agravante é casada com o 8o agravante, tios de E., enquanto o 3o agravante, o 4o agravante, que é casado com a 5a agravante, e o 6o agravante eram primos da falecida E.

Dessa forma, os agravantes, na qualidade de herdeiros colaterais de E, alegam fazer jus aos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade, pedindo que sejam

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deferidas as suas habilitações como herdeiros, afastando-se o cônjuge sobrevivente Paulo.

No caso em comento, como dito acima, os bens estão gravados com a cláusula de incomunicabilidade, que é um gravame imposto pelo testador ou doador como forma de impedir que o bem recebido em doação, herança ou legado integre o patrimônio que irá se comunicar com o do cônjuge (meação).

Nesta esteira, prevê o Código Civil, em seu artigo 1.668, no inciso I, que são excluídos da comunhão os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar.

Do Regime de Bens entre os CônjugesArt. 1.668. São excluídos da comunhão:I – os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;

Já no artigo 1.661, está disposto que automaticamente será incomunicável o bem cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento, quando se tratar do regime de comunhão parcial.

Do Regime de Bens entre os CônjugesArt. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.

Observa-se, assim, que o bem gravado com a cláusula de incomunicabilidade torna-se um bem patrimonial do beneficiário.

Dessa forma, ao testador são asseguradas medidas conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros necessários, sendo que, na interpretação das cláusulas testamentárias, deve-se preferir a inteligência que faz valer o ato.

Por conseguinte, deve-se interpretar o testamento, de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando a vontade do testador, que, no caso concreto, foi de salvaguardar os bens deixados a E.

Em hipótese em que se discutia a qualidade de herdeiro necessário do cônjuge sobrevivente, que fora casado com o autor da herança sob o regime da separação convencional de bens, entendi, nos autos do Agravo de Instrumento n. xxx, não remanescer para o cônjuge casado mediante tal regime de bens direito à meação, tampouco à concorrência sucessória.

Isso porque, se os nubentes escolheram voluntaria-mente casar pelo regime da separação convencional, op-tando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escri-tura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos, essa ampla liberdade advinda da pactua-ção quanto ao regime matrimonial de bens, não poderia ser tolhida pelo Direito das Sucessões, fazendo-se assim

prevalecer a vontade do cônjuge em vida, para após a sua morte.

Mutatis mutandis, este é o caso do testador que, em vida, gravou o bem deixado para a filha com a cláusula de incomunicabilidade, devendo assim permanecer o bem gravado mesmo para após a morte daquela, sob pena de se vilipendiar a vontade do testador que deve sofrer proteção legal, já que ato de última vontade instituidor de atribuição de propriedade, em que ele se despe dos seus imóveis em prol de alguém que entende capaz de geri-lo ou por afinidade tal que não deseja ver outro fruir.

Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

REsp246693/SP-RECURSOESPECIAL-2000/0007811-5Relator(a)Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR (1102) Órgão JulgadorT4 – QUARTA TURMAData do Julgamento4/12/2001Data da Publicação/FonteDJ 17/5/2004 p. 228

Ementa CIVIL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. INVENTÁRIO. TESTAMENTO. QUI-NHÃO DE FILHA GRAVADO COM CLÁUSULA RES-TRITIVA DE INCOMUNICABILIDADE. HABILITA-ÇÃO DE SOBRINHOS E NETOS. DISCUSSÃO SOBRE A SUA EXTINÇÃO EM FACE DA CLÁUSULA, PELO ÓBITO, ANTERIOR, DA HERDEIRA, A BENEFICIAR O CÔNJUGE SUPÉRSTITE. PREVALÊNCIA DA DIS-POSIÇÃO TESTAMENTÁRIA. CC, ARTS. 1676 E 1666.I. A interpretação da cláusula testamentária deve, o quanto possível, harmonizar-se com a real vontade do testador, em consonância com o art. 1.666 do Código Civil anterior.II. Estabelecida, pelo testador, cláusula restritiva sobre o quinhão da herdeira, de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, o falecimento dela não afasta a eficácia da disposição testamentária, de sorte que procede o pedido de habilitação, no inventário em questão, dos sobrinhos da de cujus.III. Recurso especial conhecido e provido.

Ex positis, voto para conhecer e DAR PROVIMENTO ao recurso, para deferir as habilitações dos agravantes na qualidade de herdeiros dos bens gravados com cláusula de incomunicabilidade.

Desembargador MARCELO BUHATEMRelator

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1. Apresentação

E ste texto, comemorativo dos Oitenta Anos da Constituição da República dos Estados Uni-dos do Brasil de 16 de julho de 1934, é parte dos estudos que estamos desenvolvendo sobre

as nossas Constituições no contexto político do estado brasileiro. O seu objetivo é analisar os fatores que in-fluíram no processo de modernização institucional do Brasil iniciado em 1889-1891, os principais fatores que conduziram àquela Constituição e a perenidade dos institutos inaugurados naquele período. Assim, abor-daremos o contexto do seu surgimento e vigência e a sua atualidade para o estado democrático de direito da Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.

2. A Nova Ordem Constitucional Republicana de 1934A Constituição de 1934, que agora completa oitenta

anos, é a única Constituição brasileira que evoluiu de uma revolução – a Revolução de 1930 – que pôs fim à Velha República e, consequentemente, à Constituição de 1891. Ela não propriamente desprezou os ideais republicanos, mas procurou compatibilizar as expectativas da nova realidade político-social da época com a necessária renovação institucional. Nesse propósito, traduziu a definitiva ruptura com o sistema unitário e centralizado de estado que predominou no período constitucional anterior à Proclamação da República e o de dominação oligárquica que sobressaiu na Velha República.

A Revolução de 1930 foi o principal movimento político que tornou possível apressar o fim da Velha República, sujeitando a legalidade anterior à nova legitimidade revolucionária. No bojo de sua vitória,

A Constituição de 1934:80 anos depois

Rosalina Corrêa de Araujo Professora Associada de Direito Constitucional e Administrativo da UFRJProcuradora Federal – PRF 2ª Região

formaram-se alianças para combater a ditadura e o Governo Provisório, que culminaram com o movimento constitucionalista paulista de 1932, que exigia do governo revolucionário nova Constituição. Antes, porém, pelo Decreto no 21.067, de 1932, o governo de Getúlio Vargas editou o Código Eleitoral, criou a Justiça Eleitoral, instituiu o voto proporcional e suspendeu o voto distrital

Foto: Ana Wander Bastos

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de 1891, base do domínio oligárquico. A nova legislação eleitoral pós-revolução também instituiu o voto feminino, pretendeu dar segurança ao sigilo do sufrágio e confiou a apuração dos votos, o reconhecimento e a proclamação dos eleitos à Justiça Eleitoral. Foi na vigência desse novo marco eleitoral que se elegeu a representação popular e profissional da Constituinte Republicana de 1934, instalada em 1933, posteriormente transportada para o texto constitucional de 1934 e para a nova Lei Eleitoral no 48, de 1935.

Somado a esses fatores de ordem interna, é importante considerar que a origem da Constituição de 1934 foi marcada pela ascensão dos movimentos internacionais sociais-democratas que tiveram como referencial as revoluções sociais que sucederam à Primeira Guerra Mundial, externados, principalmente, na Declaração de Direitos da Revolução Russa de 1917, na Constituição Mexicana de 1917, na Constituição de Weimar de 1919 e no movimento fascista de 1920 que avançou como um sindicalismo corporativista na Itália. Ademais, a partir de 1929, instalou-se a crise econômica, principalmente nos Estados Unidos da América, dando início às políticas do Welfare State consagradas no New Deal, impregnadas pelo liberalismo social que àquela época já se confrontava com os ideais sociais democratas da fase anterior com repercussões de cunho mais radical, como o ascendente bolchevismo soviético e o fascismo ítalo-germânico. Contudo, o liberalismo do New Deal não conseguiu impedir o fortalecimento dos movimentos europeus de natureza corporativista, como a ascensão do nazismo alemão. Esses movimentos exerceram influência no Brasil, principalmente sobre as forças que se articularam para retirar do poder os grupos oligárquicos que viabilizaram as políticas dos governadores, que revezavam o exercício do poder central entre os estados de São Paulo e Minas Gerais.

Apesar de tantos percalços, a Constituição de 1934, ao lado dos direitos individuais, privilegiou os direitos sociais e abriu espaço para a introdução de matérias como ordem econômica, proteção da família e justiça social. Vinculado ao Poder Executivo, criou a Justiça do Trabalho para dirimir questões originárias de conflitos trabalhistas individuais e dissídios coletivos entre empre-gados e empregadores, traçou as linhas gerais de divisão entre o trabalho urbano e o rural, previu a regulamen-tação das profissões e a composição do salário, o reco-nhecimento das convenções coletivas de trabalho, dos sindicatos e associações profissionais e os princípios de seguridade do trabalhador, proibiu a discriminação por idade, sexo, cor, nacionalidade e estado civil. Também vinculados ao Poder Executivo criou os Juízes de Paz ele-tivos e os temporários não togados, o Tribunal Marítimo

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56 Justiça & Cidadania | Julho 2014

e, ainda, durante a sua vigência, em 1936, por força da Lei no 244, acresceu entre os órgãos da Justiça Militar o Tribunal de Segurança Nacional, para funcionar quando declarado o estado de guerra. Esse tribunal foi efetiva-mente instituído e serviu no processo de repressão ideo-lógica tanto de esquerda (comunistas em 1935) como de direita (integralistas rebelados em 1938). Embora extinto em 1945, a Lei de Segurança Nacional de 1935 foi man-tida e, mais adiante, marcou profundamente o período constitu cional que sucedeu o ano de 1964.

Cumprindo a sua promessa modernizadora, criou o tão aguardado mandado de segurança, que absorveu o espaço de alcance jurisprudencial atribuído anterior-mente ao habeas corpus, sem as restrições impostas pela Reforma Constitucional de 1926 que pôs fim a reconhe-cida “doutrina brasileira do habeas corpus”. Também aperfeiçoou o sistema brasileiro de controle de constitucionali-dade das leis deixando expressa a supremacia do Poder Judici-ário a partir da introdução, em seu texto, dos pressupostos da ação direta de inconstituciona-lidade, formalizada em 1965, pela Emenda Constitucional no 16. A supremacia do Poder Judiciário no Brasil era tema decisivo para a implantação da República, sua base legal era o Decreto no 848/1890, que re-formou o Poder Judiciário e revogou a legislação vigente no Império. Os documentos jurí-dicos elaborados entre o fim do Império e início da República demonstram claramente a contribuição de Ruy Barbosa na consolidação da supremacia do Poder Judiciário.

Efetivamente, a Constituição brasileira de 1934 reali-zou o seu propósito de reorganizar e modernizar o estado brasileiro. Mas a pressão ideológica internacional, como a ascensão dos movimentos autoritários de 1929 em Portu-gal e 1936 na Espanha, e a ebulição social brasileira, como o crescimento da Ação Integralista nos anos 1930, abriram margem para o crescimento dos movimentos populares com a ascensão da Aliança Nacional Libertadora, coorde-nada pelo Partido Comunista do Brasil. Nesse contexto, em 10 de novembro foi outorgada a Constituição de 1937 e implantado o Estado Novo, que sufocou as conquistas da Constituição de 1934 e, no movimento para a centraliza-ção do poder, aprofundou a força do Poder Executivo por meio da criação de instrumentos jurídicos excepcionais,

“Os movimentos que fizeram surgir a

Cons tituição de 1934, assim como os que

a sucederam, de ordem internacional

e nacional, é possível admitir que,

em seu curto período de vigência, o

estado brasileiro e suas instituições

conheceram grandes avanços em relação

à modernização, ao desenvolvimento

econômico e aos direitos de cidadania,

pois ela teve a força de suspender

a ordem revolucionária, visto que se

originou de uma Assembleia Constituinte”

concorrendo decisivamente para os retrocessos demo-cráticos e republicanos vividos pelo estado brasileiro por longo período. Não obstante a experiência de redemocra-tização ensaiada pela Constituição de 1946, os retrocessos democráticos somente foram desmontados pela Constitui-ção de 5 de outubro de 1988, que originariamente introdu-ziu mecanismos de limitação do poder de ação do Poder Executivo sobre os princípios democráticos e republicanos e sobre os direitos fundamentais e suas e garantias.

Finalmente podemos afirmar que a Constituição de 1934 foi uma referência no processo brasileiro de mo-dernização institucional e permitiu, inclusive, superar os entraves políticos oligárquicos da Velha República. Toda-via, ao institucionalizar no mesmo texto ideias políticas conflitantes entre si, como os princípios herdados do li-beralismo com as expectativas corporativistas que aquela

época se impunha, além da falta de clareza quanto às atribui-ções de cada um dos poderes, a criação inédita do poder co-ordenação atribuído ao Senado Federal que, na época, muito fazia recordar o modelo centra-lizador imperial representado pelo Poder Moderador, expôs sua fragilidade, principalmente em relação à força ditatorial que se apontava como forma de en-frentar as alianças comunistas responsáveis pelo surgimento da Intentona de 1935.

3. ConclusãoNão obstante os movimentos

que fizeram surgir a Cons-tituição de 1934, assim como os que a sucederam, de ordem internacional e nacional, é possível admitir que, em seu curto período de vigência, o estado brasileiro e suas instituições conheceram grandes avanços em relação à modernização, ao desenvolvimento econômico e aos direitos de cidadania, pois ela teve a força de suspender a ordem revolucionária, visto que se originou de uma Assembleia Constituinte. Suas conquistas são comparáveis no tempo apenas aos avanços da Constituição de 1988. Contudo as resistências ao seu modelo foram profundas, como o fortalecimento das oligarquias republicanas, os movimentos de reivindicação operária e socialistas e o avanço dos movimentos nacionalistas radicais de modelo fascista, que acabaram por inviabilizar o seu êxito e, consequentemente, sustentar a imposição da Constituição outorgada de 1937.

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Princípio da colaboração no projeto de CPC brasileiro

José Marcos Rodrigues Vieira Desembargador do TJMGProfessor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFMG

Avizinhamo-nos, presentemente, de um Código de Processo que irá prosseguir, desde a delimitação da res in iudicum deducta, o resultado de colaboração das partes com o juiz (Art. 8o , versão aprovada no Senado).

O Projeto pretende realizar a mitigação da velha impar-cialidade dogma ou princípio absoluto, para impedir que seja levada a ponto de, por falso escrúpulo, propiciar julga-mento com consciente desinformação do órgão judicante, quando já os debates orais em audiência não lhe permitam regresso aos trâmites em que verificada omissão de alguma das providências preliminares. Afortunadamente, o futuro Código repudia a posição do juiz au dessus de la melée.

Suposta a fixação da controvérsia, antecedente necessário da produção da prova, cabe discernir o que se busca de interação entre os princípios dispositivo e inquisitivo: a integral discussão da causa, que, como adverte Giuseppe de Stefano, consiste no atingir a fatos ulteriores, diversos daqueles da formulação imediata do problema – os motivos para uma atendível solução (Il Notorio nel Processo Civile. Milano: Giuffrè, 1947. p. 14). É que, sob pena de cognição insuficiente, a imediatidade (em audiência) tem sua eficácia – suporte remoto da eficácia da sentença – dependente de que a produção da prova seja dirigida ao esclarecimento da matéria de fundamento do pedido e da resposta e, pois, da seleção dos fatos relevantes da relação jurídica de ação, em que se traduz o processo.

O justo processo agora induz o aprofundamento do contraditório, o exercício da cognição até o plano da realidade pré-processual, isto é, dos interesses em

Desafio inarredável da elaboração de qualquer código de processo, há de ser obtida a har-monia entre as medidas de utilização dos princípios dispositivo e inquisitivo. É que o

direito a merecer in concreto a tutela jurisdicional pode distanciar-se da descrição empreendida pelo autor, tanto quanto da encetada pelo réu, na interinfluência dos ele-mentos objetivos da ação e da defesa.

Foto: Arquivo pessoal

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conflito. Volte-se a De Stefano (ob. e loc. cit.), em sua antevisão de que os fatos influentes sobre a solução dados pela formulação imediata da controvérsia, são uma porção mínima do plano do direito substancial, a ser trazido mediante aquisição processual.

A cognição, sem quebra da imparcialidade, há de descer, do confronto dos fatos constitutivo e impeditivo ou extintivo alegados, à exploração de suas respectivas circunstâncias, que restam vertidas em argumentos de prova. É ainda do jurista citado que o accertamento somente tem relevância jurídica se os aspectos interindividuais forem de estrutura socialmente apreciável e não puramente interiores, porque não se adverte menos a necessidade de tutela jurídica na vida social de quan-to o seja na vida individual (ob. cit., p. 15).

Desde quando, por reprováveis excessos embora, se degradou a sociológica a lide, perdeu-se contato com suas elementares objetivas – os bens e os interesses conflitantes – atributivos de profundidade aos habitualmente invocados pedido e causa de pedir. Em grau de recurso, todavia, fala-se, pacificamente, em extensão e profundidade do efeito devolutivo. Diga-se até mesmo que, a propósito, se cuidou de preferindo-se a proposição do art. 469, CPC, com que definidos por exclusão os limites objetivos da coisa julgada. Aos elementos da lide, como a recuperar-se, se refere o Código vigente, na regra, esta em proposição afirmativa, do art. 468, CPC, que devolve os referidos limites à lide e às questões decididas, tanto quanto o art. 128, CPC alude a lide proposta.

Faz-se, por isso, saliente, a consagração de regras-fins e regras- meio, tal sistema de colaboração-informação, introduzido no Projeto:

A solução da lide, integral, inclusiva da atividade satisfativa (art. 4o), dever do juiz atendível mediante a delimitação de todas as questões de fato e de direito (arts. 8o e 342). A abrangência das questões prejudiciais pela expressão conclusiva do mérito da causa – vale dizer que a serem expressamente decididas, já definidamente por determinação legal (art. 20), diretamente ou por remissão, no dispositivo sentencial (arts. 20 e 476, III) – atendível mediante injunção ao contraditório ou direto exercício do caráter dúplice da ação, reconvencional ou declaratório incidente (arts. 10 e 326).A qualificação da força de coisa julgada como autoridade, agora que deriva, quer para os pedidos quer para as prejudiciais expressamente decididas (art. 490), da preclusão exauriente de questões (art. 476, parágrafo único, IV).

Dir-se-á que o Projeto apostou em altas qualidades do julgador: só que dependentes, todas elas, de simétricas qualidades dos advogados, ao conferir-lhes o direito de participação ativa (art. 5o), a influir na fixação e solução dos pontos controvertidos.

Cumpre destacar, sobretudo, que o Projeto busca delimitar, em profundidade (e não mais só em extensão), o objeto litigioso – operando a (nunca empreendida) tarefa de determinação do interesse subjacente aos alegados direitos, no que superada, aliás, a atávica insuficiência conceitual do direito subjetivo.

Considere-se que, de sua vez, o Código Buzaid, apoiado instintivamente na imparcialidade do juiz – por isso que clássica (absoluta) – contenta-se com a imediatidade, princípio da audiência. Assim, ao exigir do Réu que se manifeste precisamente sobre os fatos alegados pelo autor, a ponto de fazer presumidos verdadeiros os fatos não impugnados, coerentemente deveria impor ao autor a formulação igualmente precisa das circunstâncias de fato. Mais grave a incoerência, depois de suprimida do rol do art. 17, CPC, a figura da litigância de má-fé por omissão de fato essencial ao julgamento da causa.

Ao falarmos, portanto, de fatos essenciais ao jul-gamento, dando como admissível, na sistemática legal vigente, que possam ter sido omitidos pela parte, con-vencemo-nos da admissibilidade atualmente implícita de o juiz julgar sem algum dos elementos essenciais a sua convicção. Eis a imparcialidade, d. v., parcimoniosa. Falaríamos, na tradição do Código de 1973, do cons-tante risco de apelo à verdade formal, como meio de se elidir a insuficiência argumentativa surpreendida no eixo interpretativo.

O Projeto (sem se esquecer das virtudes – outras – do Código Buzaid) quer abolir o misterioso escrúpulo de se distinguir entre livre convencimento do julgador e livre argumentação sentencial. A preclusão de questões dita a força da argumentação – a autoridade – agora convenientemente distinguida da eficácia sentencial. E nisso consiste a cognição, em extensão e profundidade.

A fim de que o julgamento não se desgarre do pedido, mas também para que não seja dado à parte, corifeu do princípio dispositivo, subtrair à cognição do juiz relevante circunstância interferente na etiologia do fato jurídico descrito nas alegações, loas sejam tecidas ao Projeto.

Vista a finalidade do processo como a atuação do direito (subjetivo); vista a lide como obstáculo (removível) à atuação do direito – no que, como de sabida lição, as proposições se identificam: o Projeto terá decifrado a polêmica dos processualistas, os da ação, e os da lide, para resolvê-la no concerto legislativo dos princípios dispositivo e inquisitivo. Bem definida a consciência do julgador, o objeto do processo se reconhece, afinal, como a lide nos limites do pedido. Tanto quanto a fundamentação da sentença alinha os motivos, resultantes sistemáticas das razões da pretensão e da resistência, definidas desde a totalidade dos pontos controvertidos.

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Dom Quixote, Giselle Souza

Uma alternativa ao sistema carcerário Método Apac tem crescido no Brasil. Modelo trabalha a reintegração dos condenados e apresenta índice de reincidência inferior a 10%. Nos presídios convencionais, taxa chega a 70%

Foto: Depositphotos

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Com índices de reincidência abaixo de 10%, o Método Apac – sigla para Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – começa a ser visto como alternativa viável

ao caótico sistema carcerário brasileiro. A metodologia atualmente é desenvolvida em 42 centros de reintegração social, presentes nos estados de Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Maranhão, Paraná e Espírito Santo. A estimativa é que 2,3 mil detentos cumpram pena com base nesse modelo alternativo.

O Brasil atualmente tem mais de 560 mil presos, de acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça. Também, segundo apontam as estimativas do órgão, pelo menos 70% desses presidiários acabam voltando ao crime. E, não raro, após cumprirem pena em condições desumanas, em presídios sem qualquer estrutura e superlotados. Com relação a esse último fator, aliás, cálculos indicam que o déficit nas penitenciárias chega a 200 mil vagas.

Nesse contexto, as Apacs se diferenciam. Nos centros onde a metodologia é desenvolvida, não há agentes penitenciários nem armas de fogo. Os detentos – ou recuperandos, como são chamados – são os que detêm as chaves da unidade e cuidam da segurança. Valdecir Antônio Ferreira, diretor-executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), entidade que reúne e fiscaliza as Apacs, explicou que o objetivo do método é a ressocialização dos presos a partir da assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pelas comunidades próximas aos centros de reintegração.

A primeira Apac foi criada em 1972 por um grupo de voluntários cristãos, em São José dos Campos, no estado de São Paulo. O método é ancorado em 12 pilares: participação da comunidade; ajuda mútua entre

“O método é desenvolvido

há mais de 40 anos e nunca

registrou um caso grave de

violência no interior de suas

unidades. Nunca houve um

homicídio. E motim ou rebelião

jamais foi registrado”

Luiz Carlos Rezende e Santos, juiz do CNJ

Foto: CNJ

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recuperandos; trabalho; religião; assistência jurídica; assistência à saúde; valorização humana; família; formação de voluntários; implantação de centros de integração social; observação minuciosa do comportamento do recuperando para fins de progressão do regime penal; e a participação na Jornada da Libertação com Cristo, considerada o ponto alto de toda a metodologia, por consistir em palestras, meditações e testemunhos dos recuperandos.

As Apacs contam com apoio do Poder Judiciário e do Poder Executivo. O método vale para o regime aberto, o semiaberto e o fechado e é desenvolvido em unidades de pequeno, médio e grande porte, sendo esta última

com a capacidade máxima de 200 vagas. Antes de serem designados para o centro de reintegração, os detentos têm de passar por rigoroso processo de avaliação, que atesta o comportamento. Presos indisciplinados, violentos ou líderes de facções criminosas raramente são acolhidos.

A Apac é uma entidade sem fins lucrativos instalada por iniciativa da população, geralmente das regiões onde funcionam os presídios tradicionais. “A sociedade não fica alheia aos problemas. Ao contrário: participa e se envolve, seja por meio do voluntariado ou ofertando trabalho (aos presos)”, afirmou o presidente da FBAC.

Ferreira explicou os passos necessários para a criação de uma Apac. O primeiro envolve a realização de uma audiência pública na comarca interessada. Há também a realização de um seminário que visa a explicar o método para a comunidade. Ao mesmo tempo, têm andamento os esforços para organização de uma equipe de voluntários e para a formação de parcerias. Também é nessa fase que ocorre a busca do local onde o centro de reintegração será construído.

Paralelamente às obras, ocorrem as tratativas para a formalização de convênios para o custeio da futura Apac. Geralmente a negociação é feita junto às secretarias de defesa social do estado onde o centro de reintegração será instalado. Nessa etapa é realizado também o treinamento dos futuros funcionários das Apacs.

Após a inauguração, há a transferência dos recu-perandos para a Apac e um Conselho de Sinceridade e Solidariedade, formado por detentos, é constituído. E o trabalho não para com a instalação da Apac. Cursos, au-diências públicas, criação de novos grupos de voluntários e a consolidação de novas parcerias têm andamento, em um ciclo constante.

Segundo Ferreira, todo o processo – desde a decisão de criar uma Apac à instalação definitiva dela – pode durar três anos. Ele conta que o tempo poderia ser menor se não fosse o preconceito. “Nossa maior barreira é romper as barreiras da sociedade e o preconceito arraigado de que bandido bom é bandido morto. Precisamos conscientizar a sociedade para assim podermos multiplicar a prática”, destacou.

De acordo com Ferreira, após a superação do desafio do preconceito e realizada a instalação da Apac, os benefícios se mostram inúmeros – principalmente para a comunidade. Ele destaca o custo do detento que cumpre pena pelo método, que chega a ser duas vezes menor em relação às penitenciárias convencionais. Além disso, nunca se verificou, nos centros de reintegração, problemas relacionados a motins. “Nunca registramos uma rebelião”, afirmou o diretor da FBAC.

Estimular o estudo é uma premissa do Método Apac. E os resultados são visíveis. Nada menos que 47 recuperandos de Minas Gerais foram aprovados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no ano passado. Eles agora cursam as faculdades de Administração, Turismo, Ciências Econômicas e Ciências Contábeis, na modalidade à distância.

Os recuperandos pertencem aos centros de reintegração social de Alfenas, Caratinga, Frutal, Itaúna, Ituiutaba, Lagoa da Prata, Manhuaçu, Minas Novas, Paracatu, Passos, Patrocínio, Pedra Azul, Perdões, Santa Bárbara, Santa Luzia, Santa Maria do Suaçuí, São João del Rei, Sete Lagoas e Viçosa, todas cidades de Minas Gerais. Ao todo, 308 pessoas assistidas por essas entidades prestaram o Enem.

A implantação dos cursos foi possível graças à Subsecretaria de Administração Prisional (SUAPI) que, por meio da Superintendência de Atendimento ao Preso (SAPE), firmou um Termo de Cooperação Técnica com a Faculdade FEAD, que disponibiliza, a cada semestre, 200 bolsas integrais para o sistema prisional do estado.

Recuperandos e universitários

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Trabalho, educação e – porque não – diversão e arte. Sim, este último item também integra o rol de atividades desenvolvidas nas Apacs. No centro de reintegração de Nova Lima, em Minas Gerais, por exemplo, são oferecidas oficinas circenses. As aulas começaram em fevereiro e são realizadas pelo Circo de Todo Mundo, por meio do patrocínio da Anglo Gold Ashanti, em parceria com o Programa Desenvolvimento e Cidadania da Petrobras e a Prefeitura Municipal.

As oficinas visam a contribuir para o processo de re-cuperação dos que cumprem pena de privação de liber-dade ao lhes possibilitar a chance de reinserção, inclu-sive no mercado de trabalho, em áreas como educação e entretenimento. É que as aulas abarcam a história do circo e atividades tais como malabarismo, equilibrismo, acrobacia de solo, performance, técnicas de segurança, montagem de espetáculo e metodologia de ensino.

O foco das oficinas é a educação na área cultural, através do desenvolvimento de oficinas circenses, ar-tísticas e pedagógicas. Trata-se da construção de co-nhecimentos e de uma prática inovadora, no campo da formação de Arte Educador Circense.

Apac oferece aulas de circo

ReconhecimentoAs vantagens do método vêm sendo reconhecidas

pelo Poder Judiciário. Diversos tribunais têm apoiado as Apacs. É o caso do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que lançou uma cartilha para as comarcas que já possuem ou têm interesse em instalar um centro de reintegração. “O objetivo da Apac é promover a humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade punitiva da pena. Seu propósito é evitar a reincidência no crime e oferecer alternativas para o condenado se recuperar”, diz a publicação.

O método também tem sido recomendado pelo Con-selho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de fiscalização e planejamento estratégico do Poder Judiciário, principal-mente nos mutirões carcerários que promove País afora. Luiz Carlos Rezende e Santos, juiz auxiliar do Depar-tamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execuções e Medidas Socioe-ducativas (DMF) do CNJ, afirmou que as Apacs têm mui-to a contribuir para a melhoria do sistema prisional. A declaração foi feita após participar como palestrante do seminário realizado no último dia 4 de maio, em Campo Maior, no Piauí. O evento discutiu a instalação da pri-meira Apac no estado.

A movimentação iniciada para a instalação da Apac no Piauí atende às recomendações do CNJ feitas durante um Mutirão Carcerário no estado, realizado no ano passado. Essas orientações também constam no relatório final da força-tarefa entregue pelo Conselho às autoridades piauienses. As mesmas sugestões também foram feitas, em 2013, nos mutirões promovidos pelo Conselho no Rio Grande do Norte, em Alagoas e no Amazonas.

“Acreditamos que o sistema prisional pode melhorar muito e que a Apac pode contribuir com essa melhora. O método é desenvolvido há mais de 40 anos e nunca registrou um caso grave de violência no interior de suas unidades. Nunca verificamos um homicídio. E motim ou rebelião jamais foi registrado. Além disso, a reincidência chega a ser 10 vezes inferior que no sistema convencional”, destacou.

Comunidade internacionalUma solução criada por brasileiros para os problemas

do cárcere no País, o método Apac passou a ser adotado também por outras nações. Países como Belize, Bulgária, Chile, Colômbia, Costa Rica, Alemanha, Hungria, Latvia, Singapura, Estados Unidos já desenvolvem a metodologia, ainda que parcialmente. Eles são assessorados pela Prison Fellowship International (PFI), entidade consultora das Nações Unidas para assuntos penitenciários, e à qual a FBAC é filiada.

O juiz auxiliar do CNJ conta que as Apacs têm cada vez mais recebido atenção das comunidades internacionais, principalmente da Europa. No ano passado, delegações com diversos embaixadores de países europeus visitaram a Apac de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

“A União Europeia, por meio de projeto do Eurosocial II, favoreceu o intercâmbio da metodologia Apac com a que é aplicada em uma unidade existente no norte da Itália, na cidade de Padova, onde se desenvolve com excelência o cooperativismo, em especial a Cooperativa Giotto, e isso poderá incrementar o elemento trabalho nas Apacs do Brasil”, relata o juiz Luiz Carlos.

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de se tornarem poetas. “Saulo vaticinava jocosamente e dizia ‘Ives, a advocacia será, para nós, o bico que sustentará a nossa verve poética’. E, na verdade, a obra desse grande vate foi uma das que mais influenciaram os meus escritos”.

Na universidade, os interesses se ampliaram. Gandra Martins apaixonou-se por outros gêneros da literatura. “Em Filosofia e Direito, os quatro diálogos de Platão, que cuidam da Justiça em Atenas, relatando o julgamento de Sócrates, parecem-me obras fundamentais para todo estudante de Direito e para a formação do jurista”, afirma.

“No primeiro, Etifron, seu amigo, é aconselhado por Sócrates a sujeitar-se ao julgamento de sua cidade, porque deveria crer na Justiça e nas leis de sua terra. No segundo, com lógica imbatível, Sócrates, ele próprio, submete-se a julgamento, podendo ir para outra cidade, defender-se de falsas acusações, mas, mesmo assim, é condenado à morte (Apologia). No terceiro, tem a oportunidade, oferecida por seus próprios julgadores, de fugir, recusando-a para dar exemplo à juventude de respeito às leis (Crito). E, no quarto, faz considerações serenas sobre a morte, para a qual diz estar preparado, por ser uma libertação (Fedon). Os quatro diálogos, indissociáveis, muito me influenciaram”, acrescenta.

O jurista também destaca a obra de Daniel Rops, A história da Igreja, em 10 volumes, publicado pela Editora Quadrante, como inspiradora. Os livros relatam a história do mundo nos últimos 2 mil anos à luz de uma perspectiva de valores. “Guilherme de Almeida, Platão e Rops foram, pois, os autores fundamentais na minha formação”, destaca.

A literatura sempre foi e continuará sendo ver-dadeira fonte de inspiração para o reconhe-cido jurista Ives Gandra da Silva Martins. A poesia, revelou ele à coluna, foi o primeiro

gênero a conquistá-lo e a guiá-lo. Era fã inconteste de Gui-lherme de Almeida, importante advogado, jornalista, crí-tico de cinema, ensaísta, tradutor e – sobretudo – poeta da primeira metade do século passado. Ives leu toda a obra do escritor.

Compartilhava da mesma admiração pelo autor Saulo Ramos – renomado jurista e também escritor brasileiro, infelizmente falecido em abril do ano passado, aos 83 anos de idade. Martins e Ramos eram amigos. Na juventude, tinham por hábito declamar poesias, inspirados – claro – no ídolo que tinham em comum.

A obra do poeta teve repercussão na vida pessoal de Gandra Martins. “Saulo Ramos e eu, quando jovens e estudantes, viajávamos pelo interior declamando nossos poemas, inspirados pelo príncipe dos poetas brasileiros, à época Guilherme de Almeida. Até hoje, desde Olavo Bilac até Paulo Bonfim, só seis poetas mereceram esse título. Em seu livro Código da Vida, Saulo relata nossas aventuras interioranas”, conta o jurista.

A mesma influência se deu também na vida profissional do jurista. Quase como profetizando, o amigo Saulo costumava dizer a Ives que a advocacia lhes seria um meio para não apenas ganharem a vida, mas realizarem o sonho

Influências para toda a vida

Prateleira, Giselle Souza

Foto: Arquivo pessoal

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2014 Julho | Justiça & Cidadania 67

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