Top Banner
20

Revista Educacional

Mar 22, 2016

Download

Documents

Revista da Gerência Educacional da PMBCN
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: Revista Educacional
Page 2: Revista Educacional

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Nesta edição, a Revista Educacional mostra o quanto os educadores das Unidades Educacionais Maristas estão em busca de contínua formação e de respostas para uma Educação inclusiva, que traga equilíbrio para as relações entre a escola, a família e o processo de aprendizagem. As três autoras fazem parte das equipes pedagógicas dos Colégios em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

A professora Elânia Duarte escolheu como desafio analisar o papel da avaliação escolar na interação entre família-escola, no contexto da proposta de ciclos da capital mineira. Essa política educacional propõe o grupamento dos anos de estudo, sem possibilidade de reprovação. A iniciativa, criada com a proposta de promover o sucesso escolar, traz na avaliação da aprendizagem seu ponto mais polêmico, por propor alterações na dinâmica pedagógica e causar, assim, insegurança da família quanto a sua efetividade.

As diferenças no processo de aprender foi o tema escolhido pela educadora Ana Paula Maletta, que expõe a sua inquietude de pesquisadora em forma de questionamentos ao leitor: “As dificuldades no aprender que o aluno apresenta no seu percurso escolar seria um problema de quem? Do aluno que não aprende? Da escola que não sabe ensinar? Ou seria uma prática educativa guiada por princípios homogeneizadores? As conclusões são reveladoras e nos fazem refletir sobre o respeito à diversidade e em alternativas para a inflexibilização das relações tempo x espaço escolar.

O texto sobre a contribuição da oralidade no ensino da Língua Portuguesa encerra a nossa publicação, com um chamado à escola para a responsabilidade de possibilitar o acesso aos usos da linguagem. O domínio da palavra pública, segundo Simone Lesiko, tem importância significativa no exercício da cidadania.

Que possamos inovar nossas práticas educativas a partir dessas experiências.

Boa leitura!

EDITORIAL

Amanda RibeiroAnalista de Comunicação

Educacional

Page 3: Revista Educacional

Resumo

Este artigo analisa a relação das famílias populares com a escola, focalizando as práticas e concepções dessas duas instâncias de socialização em torno da avaliação escolar no contexto específico da política educacional dos ciclos. Os dados da pesquisa1, colhidos junto às famílias da cidade de Belo Horizonte e os profissionais de um estabelecimento de ensino da rede estadual mineira, revelam que a avaliação escolar é, sem dúvida, uma das fontes de conflitos - implícitos ou explícitos - no quadro das interações entre pais e professores, confirmando-se a hipótese de que há uma forte contradição entre as lógicas que orientam as práticas das famílias populares e as lógicas escolares naquilo que se refere à avaliação na proposta de ciclos.

Palavras-chave: Relação família-escola, ciclos, avaliação escolar.

Introdução

A proposta de ensino em ciclos é uma realidade nas escolas públicas de todo o Brasil e traz, em seus fundamentos, alterações que perpassam por múltiplas variáveis da organização pedagógica. Como não poderia deixar de ser, uma política educacional com pressupostos ousados e sofisticados toca no âmago da avaliação escolar, alterando as concepções que educadores e pais de alunos assumem em relação a ela.

1 DissertaçãodeMestradointituladaRelaçãofamília-escolaeavaliaçãoescolar:umestudonocontextodosciclos-UniversidadeFederaldeMinasGerais.

Sendo assim, há que se reconhecer que a avaliação escolar torna-se um meio privilegiado para investigar a relação entre duas instâncias de socialização que, de acordo com diversos estudos sociológicos, apresentam constantes manifestações de tensão: famílias populares e escola.

Neste texto, propomo-nos, à luz do referencial sociológico das relações família-escola, examinar os dados provenientes da pesquisa de mestrado que investigou de que forma e em que medida as lógicas e padrões de socialização das famílias populares e da escola se influenciam mutuamente, configurando condutas, concepções e estratégias de ambas as instituições em relação à avaliação na proposta de ciclos, em uma escola da rede estadual de ensino em Minas Gerais.

A Proposta de Ciclos

O termo “escola em ciclos” como designação de políticas que visam combater o fracasso escolar surgiu, no Brasil, com a implementação do Ciclo Básico de Alfabetização (CBA) no estado de São Paulo, em 1984, estendendo-se, em seguida para diversos outros estados brasileiros. No entanto, o termo “ciclo” já havia figurado na Reforma Francisco Campos (década de 1930) e na Reforma Capanema (Leis Orgânicas do ensino, 1942/1946) e fora utilizado para designar o agrupamento dos anos de estudo, sem a possibilidade de reprovação entre eles. A idéia de eliminação da reprovação não é, portanto, recente. As evidências históricas mostram que o debate em torno da

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

criação de políticas de não-retenção teve início no final da década de 1910, e que as experiências pioneiras foram introduzidas no final da década de 1950 (Mainardes, 2007).

No entanto, foi a partir da atual LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 939496 - que tal modo de organização do ensino manifestou tendência crescente de expansão, como uma das formas alternativas de estruturação escolar. Entretanto, embora tenha ocorrido um incremento expressivo das redes de ensino funcionando com o sistema de ciclos, e a introdução desse sistema tenha sido valorizada nos planos do discurso pedagógico e da gestão escolar, essa forma de organização da escola ainda constitui uma opção minoritária no país.

Em geral, as escolas que adotam esse sistema são públicas (estaduais e municipais) e se localizam nos centros urbanos mais populosos da região Sudeste, exatamente onde se encontram os extremos de pobreza e riqueza. É o caso da Grande São Paulo, uma das maiores concentrações urbanas do mundo, da Grande Rio de Janeiro e da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Nas demais regiões, o percentual de matrículas em escolas com esse tipo de organização é muito reduzido (Barreto e Sousa, 2005).

Sobre as alterações que essa política pressupõe no cotidiano escolar, estas não são poucas e podem contribuir para que mudanças estruturais ocorram nos aspectos político-pedagógicos das instituições de ensino que aderiram

REVISTA EDUCACION@L

ELânia Duarte DinizMestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Colégio Marista Dom Silvério | Belo Horizonte/MG

A RELAção fAmíLIA-EsCoLA no ContExto DA PRoPostA DE CICLos: o PAPEL DA AvALIAção EsCoLAR

Page 4: Revista Educacional

ao sistema de ciclos. Nesse tipo de organização, o tempo escolar geralmente é estruturado em blocos que unificam um número de anos não específico, o qual varia de região para região, não havendo reprovação de um ano para outro, dentro do mesmo “bloco” ou ciclo. Para aqueles que os propõem, os ciclos representam uma tentativa de superar a excessiva fragmentação e desarticulação do currículo durante o processo de escolarização.

No que se refere ao Estado de Minas Gerais - lócus da pesquisa que ora alicerça as análises deste trabalho -, os anos iniciais têm dois ciclos de alfabetização: Ciclo Inicial, com duração de 3 anos e Ciclo Complementar, com duração de 2 anos (MINAS GERAIS, 2004). De acordo com a resolução SEE/MG2 nº 430/2003, a partir do 6º ano (equivalente à 5ª série), o ensino volta a ser seriado, ou seja, nos anos iniciais do Ensino Fundamental privilegia-se o trabalho com ciclos e nos anos finais, a seriação define a organização do ensino. Como informa a SEE/MG, essa organização tem como meta propiciar, principalmente às crianças das camadas populares, possibilidades de alcançar níveis mais elevados de escolaridade. No entanto, para que tal meta seja alcançada, é necessário, ainda de acordo com a SEE/MG, que a escola: desdobre o espaço da aula numa perspectiva ampliada; possibilite a diversidade de agrupamentos e reagrupamentos entre os alunos; recorra a diferentes recursos didáticos, entre outros aspectos.

Assim, para promover o sucesso escolar, a proposta de ciclos baseia-se em pressupostos que, por propor alterações substanciais na prática pedagógica, podem causar transtornos, medo e insegurança nos sujeitos envolvidos no cotidiano escolar.

Entretanto, a avaliação da aprendizagem é o ponto mais polêmico quando o assunto são as mudanças ocorridas nas escolas em ciclos, tendo em vista que ela passa a ser entendida como um instrumento diagnóstico e não mais como uma ferramenta seletiva e controladora por parte do professor. Dalben (2000) explicita que a Proposta requer, entre outros aspectos que a avaliação: sirva como registro do desenvolvimento processual do discente; ofereça uma visão das aquisições e necessidades em curso e esteja sustentada, sobretudo, em instrumentos de natureza qualitativa,

2SecretariadeEstadodaEducaçãodeMinasGerais

as estratégias avaliativas utilizadas e a participação dos alunos nesse contexto. A escolha pela referida Fase justifica-se porque é nesse momento da escolarização que se torna possível observar: a passagem dos alunos de um ciclo ao outro; o papel da avaliação nesse contexto; o envolvimento dos alunos, dos profissionais e familiares nesse momento de transição de ciclos; e as estratégias utilizadas pela família e pela escola no que se refere à progressão do aluno.

Entrevistou-se as 3 professoras que ministravam aulas nas turmas da Fase IV, a coordenadora pedagógica e a diretora do estabelecimento. Todas as profissionais investigadas possuem nível superior em educação e 3 delas têm pós graduação lato sensu.

As educadoras alegam que utilizam de vários instrumentos avaliativos com os alunos, além da prova escrita, e esclarecem que os resultados da avaliação são expressos por meio dos conceitos A, B e C, representando, respectivamente, se o aluno alcançou, alcançou parcialmente ou não alcançou os objetivos propostos para o nível de ensino.

As famílias investigadas foram escolhidas segundo a indicação dos profissionais do estabelecimento, aos quais se pediu que indicassem tanto pais que apresentavam questionamentos e críticas em relação à avaliação na proposta de ciclos, quanto famílias que, ao contrário, eram favoráveis a ela. Mas, um segundo critério também foi estipulado: o desempenho dos alunos - avaliado segundo o julgamento docente. Selecionou-se, assim, pais cujos filhos apresentavam, à época da pesquisa, uma boa avaliação escolar, bem como pais cujos filhos mostravam resultados insatisfatórios. Isso porque pretendia-se estabelecer uma relação entre as concepções e práticas das famílias e das escolas - no que tange à avaliação na nova organização de ensino - e os resultados escolares das crianças. Dessa forma, 12 famílias foram escolhidas e entrevistadas em suas moradias.3

As entrevistas ocorreram com as mães dos alunos que declararam, entre outros aspectos, possuir ocupações pouco qualificadas (copeira, auxiliar de serviços gerais, costureira, atendente de enfermagem, dona de casa, etc.), apesar de grande parte delas possuir o Ensino Médio; fato este que se repete com seus

3Comexceçãodeumamãequesomentepôdedaraentrevistaemseulocaldetrabalho.

como fichas descritivas, relatos individuais e coletivos.

Tais alterações permitem que os vários atores sociais - pais, estudantes, professores, imprensa - assumam posições diferenciadas, no que se refere à proposta de ciclos. Uns a defendem sob o argumento de que os alunos tornam-se mais aptos a aprender, evadem menos e apresentam maiores possibilidades de concluir os estudos. Outros a advogam por acreditar que a avaliação pedagógica e as oportunidades de aprendizagem oferecidas têm maior qualidade. No entanto, aqueles que a criticam dizem que apesar da evasão e repetência terem diminuído, a qualidade do ensino também caiu, a indisciplina aumentou e o corpo docente relaxou o controle do trabalho em sala de aula. O debate em torno dessa política educacional é, portanto, complexo e abrange posicionamentos variados.

Os elementos elencados não esgotam todos os pontos que, reunidos, compõem a Proposta de Ciclos. Eles foram selecionados para oferecer, ao leitor, um embasamento para as discussões que se farão a seguir.

os sujeitos investigados

Investigar as concepções e práticas das famílias de camadas populares frente à avaliação escolar na proposta de ciclos implicou selecionar, para estudo, um estabelecimento que atendesse a essa camada social e que pautasse a sua organização escolar segundo os pressupostos da Proposta.

Nesse sentindo, o estabelecimento escolhido para a realização da pesquisa foi indicado pela SEE/MG que sugeriu, entre os estabelecimentos da rede estadual de ensino em Belo Horizonte, aquele que apresenta uma implementação mais adiantada no que se refere à proposta de ciclos e cuja participação familiar é mais efetiva na escolarização dos filhos. Tal estabelecimento atende, exclusivamente, a alunos que cursam os 5 primeiros anos do Ensino Fundamental, os quais são divididos em fases, a saber: Fases Introdutória, I e II do Ciclo Inicial de Alfabetização e Fases III e IV do Ciclo Complementar de Alfabetização.

A investigação deu-se nas 3 únicas turmas da Fase IV (antiga 4ª série), nas quais se observou a dinâmica pedagógica,

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Page 5: Revista Educacional

REVISTA EDUCACION@L

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

cônjuges ( serralheiro, eletricista, porteiro, bombeiro hidráulico, pedreiro, auxiliar de jardinagem, lanterneiro, etc.). As baixas condições materiais, a pouca qualificação profissional e a ausência de perspectiva em relação ao alcance de níveis mais altos de escolarização são traços característicos das famílias entrevistadas.

No tópico seguinte lançaremos mão da literatura sociológica das relações família-escola, a qual contribuirá para reflexões que se farão no último item deste trabalho, quando da análise da avaliação escolar como mediadora entre essas duas instâncias de socialização.

A relação das famílias populares com a escola, na ótica dos estudos sociológicos contemporâneos

No Brasil, pode-se afirmar que, nas duas últimas décadas, os pesquisadores começaram a situar a família como instância central na pesquisa em educação, interessando-se por questões como suas lógicas e dinâmicas internas, seu universo sociocultural e suas interações com o mundo escolar (Nogueira, Romanelli e Zago, 2000).

Os estudos sociológicos mostram também, uma interdependência entre as condições sociais de origem das famílias e as formas de relação que estas estabelecem com a instituição de ensino. Entretanto, busca-se atualmente fugir das análises deterministas - que atribuíam o sucesso escolar do aluno unicamente à sua classe social - e investiga-se, com base no pressuposto da capacidade de ação dos atores sociais, as práticas e estratégias cotidianas dos indivíduos e seu significado para as famílias.

No que se refere à relação das famílias das camadas populares com a escola, o traço que talvez designe melhor essa interação poderia, segundo Nogueira (1991: 90), ser definido pelo termo contradição. A autora aponta que, por um lado, os pais das classes populares expressam sentimentos e atitudes de rejeição e de distanciamento em relação à escola, mas, por outro, a reconhecem como fonte legítima de aquisição do conhecimento e nela depositam suas expectativas de promoção social. Essa “contradição” aparece de forma clara nos depoimentos de algumas das famílias pesquisadas:

...A escola é tudo, né? Porque igual eu falo com ela [ com a filha], que eu parei de estudar há muito tempo Ela está indo lá

social (Charlot, 2005; Perrenoud, 1995). Sobre isso, Charlot (2005) afirma que aproximadamente de 75 a 80% dos alunos estudam para mais tarde ter um bom emprego. É uma questão de realismo o qual se torna ainda mais realista se pensando na lógica de que, para se ter um bom emprego, se deve ter um diploma e, para se ter um diploma, se deve passar de uma série para outra. Deve-se ter diploma para ter emprego, deve-se ter emprego para se ter dinheiro, deve-se ter dinheiro para ter uma vida normal (p.67).

A seguir, é apresentada a fala de uma das entrevistadas na qual ficam nítidas as estratégias de que ela se serve para assegurar um capital escolar que propicie à filha maiores chances de galgar níveis mais altos na carreira escolar e em um mercado de trabalho dominado pela competição:

... Tem que estudar sempre (...) Se eles [os filhos] precisam de pesquisa, eu procuro, eu vou atrás, eu tiro na Internet. Nossa... Eu corro atrás mesmo, peço emprestado, porque na vida hoje, não está fácil de arrumar emprego. (Mãe de aluna).

Procurando identificar certas características comuns entre as famílias populares, Viana (2005) indica que elas tendem a expressar um ethos muito diferente - quando não divergente – do ethos da cultura da escola, na medida em que seus modos de pensar, de perceber, de sentir, de falar e de um modo geral, não convergem com aqueles que fundamentam e regem a vida escolar.

Segundo apontam pesquisas disponíveis (Abreu, 2002; Glória, 2002; Lahire, 1997; Nogueira e Abreu, 2004; Silva, 2002; Terrail, 1997; Thin, 2006; Viana, 2000), esses diferentes “estilos” de conduta, de linguagem, de posturas corporais, de vestuário, entre outros, parecem implicar numa distância entre família e escola, no que diz respeito aos modos de conceber e atuar face à educação escolar.

No que diz respeito à apreciação que a instituição de ensino emite em relação às famílias dessa camada social, há um certo juízo de valor do corpo docente que, muitas vezes, caracteriza os pais, tanto como “invisíveis na escola”, quanto como alheados da escolaridade de seus filhos (Silva, 2002; p. 119). Entretanto, alguns autores argumentam que o não comparecimento do pai à escola ou os maus resultados avaliativos da criança não significam, inevitavelmente, desinteresse pela escolarização do filho,

[para escola] para ser alguém na vida, né? [ter um bom emprego] Isso que eu acho. Para não ficar trabalhando igual eu, não ganhando nem um salário mínimo. Então, ela tem que ter uma profissão melhor, né? (Mãe de aluna).

... A escola precisa conhecer melhor os alunos, os pais dos alunos (...) Os pais hoje não dão conta sozinhos, não tem jeito (...) Meu marido trabalha de dia e eu trabalho à noite (...) Às vezes, o pai e a mãe não têm aquele tempo ou aquela disposição ou mesmo um preparo para ajudar os filhos e a escola só sabe cobrar da gente, mas não ajuda em nada... (Mãe de aluno).

Thin (2006) esclarece que trata-se de dissonâncias e tensões entre lógicas socializadoras divergentes e de uma confrontação desigual entre dois modos de socialização: um, escolar e dominante; o outro, popular e dominado. Para o autor, as famílias de classes populares tendem a atribuir sentido à prática pedagógica, a partir do que julgam como a vida verdadeira: a vida laboriosa, horários rígidos e extensos, vigilância severa, entre outros, o que é caracterizado por Thin como “lógica do trabalho braçal”.

Isso torna compreensível o fato de certas famílias apresentarem dificuldades em perceber o sentido pedagógico de grande número de atividades escolares contempladas na proposta de ciclos (jogos, dinâmicas, contação de histórias, etc.). Muitos pais consideram que esses tipos de atividades exigem pouco do filho e lamentam o fato de as professoras terem “afrouxado” a forma de ensinar, deixando os alunos atrasados, menos estudiosos e mal preparados:

... Antes eu achava que era mais apertado... Os meninos tinham que estudar mais. No 2º ano... no 1º ano, o menino já lia. [Os professores] ensinavam os meninos a ler de qualquer jeito. No 2º ano, já entrava com os meninos, a multiplicação, a divisão. E hoje não é isso, não. Está mais lento o processo. Não está tão rápido, igualzinho era antes, não, sabe? (...) Os meninos na 4ª série estão muito mal preparados. Chega menino na 5ª série que não sabe fazer fato! Quer dizer, como é que o menino passa da 4ª pra 5ª série sem saber fazer fatos? (Mãe de aluno).

Fato concreto é que os pais se preocupam se a escola está propiciando aos filhos melhores condições de progressão social. Para a maior parte das famílias de camadas populares, o domínio, pelos filhos, dos saberes escolares é definido, antes de tudo, como um passaporte para o emprego que garanta o sucesso

Page 6: Revista Educacional

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

nem ausência de incentivo e de apoio em casa (Montandon, 1996; Lahire, 1997, Silva e Lima 2002; Terrail 1997; Van Zanten 1996; Charlot, 2005 ), como veremos no próximo tópico.

A partir do exposto, conclui-se que a discussão das relações entre famílias de camadas populares e a escola exige pensar em termos de lógicas e padrões de socialização próprios de cada uma dessas instituições, muitas vezes conflitantes. Implica, também, analisar interações diversificadas que se desenvolvem a partir de pressupostos nem sempre explicitados ou conhecidos pelos educadores.

A avaliação escolar como mediadora na relação das famílias com a escola

Philippe Perrenoud - autor do campo da sociologia da educação que se interessou pela discussão das relações que a família estabelece com a escola por meio da avaliação escolar - afirma em sua obra Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens, entre duas lógicas (1999) que a avaliação escolar constitui um importante mecanismo de conexão entre a família e a instituição escolar. Os pais são, com regularidade, solicitados a assinarem boletins escolares, verificarem provas e notas e tomarem conhecimento do nível de aprendizado do filho. Nota-se que a avaliação tranqüiliza a família sobre as chances de êxito da criança ou prepara os pais para um possível fracasso, ao final do ano. Funciona, portanto, como um “termômetro” e um sistema de comunicação entre escola e família.

Ainda de acordo com o autor, as práticas tradicionais de avaliação, baseadas em indicações numéricas ou “notas”, são tomadas como naturais pelos pais, que já vivenciaram o mesmo sistema em sua própria escolaridade. Para eles, esse sistema parece eqüitativo, racional e preciso, simples e convincente. Portanto, mudar o sistema de avaliação leva necessariamente a privar uma boa parte dos pais de seus pontos de referência habituais, criando ao mesmo tempo incertezas e angústias (Perrenoud, 1999: 148).

De fato, os dados obtidos junto às famílias investigadas confirmam os argumentos de Perrenoud, no que se refere à preferência pela notação numérica ao uso de conceitos. De acordo com Nogueira e Abreu (2004) isso acontece porque essas famílias conferem à nota, como medida e não como conceito, uma importância

primordial porque ela constitui o ponto de referência que lhes permite avaliar as flutuações na escolaridade do filho. Foi possível perceber que sem as notas, a maioria das famílias entrevistadas se mostrou “perdida”, em meio a conceitos4 que dizem pouco, para elas, sobre o desempenho dos filhos.

... Eu converso com ela [a filha], vejo os boletins dela e ela só tira A, né? Porque a nota agora é A. No caso, se fosse nota, era 100, né? Ela ia tirar só 100, 100, 100. Mas... se ela tirasse um bom, eu gostaria de saber que ‘Bom’ é esse? Que nota que é esse do ‘Bom’? Será que é um 6? Será que é um 7? Para ela poder saber se está bem, né? Isso me deixa muito na dúvida. (Mãe de aluna – ênfase da autora).

Os pais investigados reconhecem que há vários instrumentos avaliativos, além da avaliação escrita. No entanto, um fato que chama a atenção é a superioridade atribuída pelos pais à avaliação atitudinal dos filhos em relação a outras formas de avaliação.

...O comportamento da criança dentro de sala, o interesse da criança no estudo, (...) porque, às vezes, a criança não compreendeu bem a matéria, mas ela teve um interesse de estar participando, teve interesse de aprender, por mais que tenha tido aquela dificuldade, ela estava ali dentro da aula, estava presente o tempo todo, sabe? Se interessando por aquilo, tentando aprender. Eu acho que ela [a professora] vai... faz um apanhado de tudo. (Mãe de aluna).

No trabalho realizado por Paixão (2005), a autora mostra que, ao avaliar o trabalho realizado na escola, os pais de camadas populares se atêm pouco à dimensão cognitiva e enfatizam mais a dimensão afetiva e relacional, coincidindo com o que se constata no trecho acima. Percebe-se que os pais das camadas populares dão muita importância aos valores comportamentais transmitidos pela instituição de ensino.

Não há, pois como negar que uma mudança das práticas de avaliação, em um sentido mais formativo, qualitativo e interativo, passa, necessariamente, por uma mudança das representações e por uma reconstrução do contrato implícito entre a família e a escola.

4OsconceitosnaescolainvestigadasãorepresentadospelasletrasA,BeC,indicandoseoalunoalcançou-emrelaçãoaoníveldeensino-osobjetivospropostos,alcançouparcialmenteosobjetivospropostosounãoalcançouosobjetivospropostos,respectivamente.

Estudos realizados por Dalben et al. (2000) indicam que essas mudanças aparecem como um dos aspectos de maior visibilidade verificados em escolas organizadas por ciclos e afirmam que essas alterações são consideradas pelos professores e pela comunidade de pais o ponto nodal da escola de ciclos5, sendo ao mesmo tempo, a sua maior conquista e o seu ponto de estrangulamento (p.80). Há, nesse sentido, de acordo com os autores, um argumento de que as incertezas e angústias da família, no que se refere à organização da avaliação na proposta de ciclos, decorrem de seu desconhecimento e incompreensão do novo projeto educacional das escolas. Parte da insatisfação dos pais estaria, assim, radicada em sua incompreensão dos eixos norteadores da proposta, especialmente no que se refere à avaliação, à ausência das notas e à não retenção.

Nessa mesma direção, Glória (2002) aponta que há um desconhecimento e uma rejeição das famílias às mudanças avaliativas estabelecidas na escola e, principalmente, à não-retenção dos alunos. O estabelecimento de ensino dos filhos tem sido designado como sendo a escola dos que passam sem saber, onde, independentemente de seu nível de conhecimento e de envolvimento, os alunos são aparentemente alçados a uma nova categoria: a de diplomados excluídos, pois percebem que o diploma, em si, não lhes confere as competências e os saberes necessários à continuidade dos estudos ou à disputa por uma vaga no mercado de trabalho. De acordo com os dados apresentados pela autora, os professores avaliam que as relações entre a escola e a família tornaram-se mais conflituosas com a implementação da Proposta, e afirmam que a família tem sido omissa em seu papel educacional:

... Eles [os pais] têm a preocupação se tem prova, se não tem prova, se a escola dá prova. Têm uns que ainda colocam [o filho] para estudar, mas têm aqueles que deixam tudo por nossa conta... Estudar é só aqui [na escola] (...) Uma minoria acompanha, mas muitos, nem pelo resultado vêm. (Coordenadora Pedagógica).

É interessante notar que muitos professores relacionam o desempenho do aluno com a participação6 dos seus pais na escola. Há, muitas vezes, por 5Oestudoemquestãorefere-seàimplementaçãodosciclosnaRedeMunicipaldeEnsinodeBeloHorizonte(ProgramaEscolaPlural).6Aparticipaçãodospaisépercebidapeloseducado-resdainstituiçãoinvestigada,sobretudo,comopre-sençafísicanaescola,atravésdasfestasereuniões.

Page 7: Revista Educacional

parte dos professores, o argumento de que quando os pais são “participativos”, o aluno apresenta um desempenho escolar superior ao das crianças cujos pais são considerados menos “participativos”. Tal fato parece propiciar uma causalidade inevitável na concepção do educador que passa, paulatinamente, a estender os resultados escolares dos seus alunos às suas famílias. Entretanto, essa concepção é negada quando constatamos que tanto há alunos com bons resultados escolares provenientes de famílias consideradas “invisíveis” pela escola, quanto alunos com desempenho escolar insatisfatório em que as famílias são presentes em sua escola e escolarização.

Sem dúvida, estudos como os de Dalben (2000); Dalben et al. (2000) e de Glória (2002) apresentam uma contribuição importante ao alertar para o fato de que há dificuldades de aceitação por parte das famílias quanto aos pressupostos e eixos norteadores da proposta de ciclos. No entanto, outra forma de abordagem tenta dar conta dessa questão. Abreu (2002) argumenta que a reação das famílias às formas avaliativas da nova proposta implica em questões bem mais amplas e complexas do que problemas de falta de informação, entendimento ou compreensão dos seus eixos norteadores. Para esse autor, é preciso considerar que os pais de camadas populares constroem a “forma de ver” a instituição escolar a partir de suas próprias experiências sociais e de suas lógicas de socialização. De fato, as mães pesquisadas se consideram ativas no processo avaliativo dos filhos; ao contrário do que julgam as professoras:

... Acompanho o dever, peço para corrigir os erros, vou a palestras, festas, mando bilhete, vou a todas as reuniões e, então, as professoras me perguntam o que eu posso fazer para estar ajudando... (Mãe de aluno).

É importante salientar que as reuniões de pais convocadas pela escola representam o momento privilegiado pelos educadores, para o envolvimento da família no processo avaliativo dos filhos. No entanto, Silva (2003) argumenta que a escola tende a entender o estreitamento das relações com as famílias como sinônimo de reuniões. Para o autor, as reuniões de pais - muitas vezes encaradas como reuniões convocadas pelos docentes e/ou administração da escola - contribuem para reforçar ou até aumentar distâncias sociais e culturais entre essas duas instituições, em vez de diminuí-las.

Elas constituem modos de sujeição dos pais aos professores, sob o disfarce de conversa polida e cooperação madura ( idem, ibidem: 67). O autor constata ainda que a escola procura estreitar os laços com os pais, por meio do apoio destes aos filhos em casa. No entanto, esse apoio é definido pela escola, refletindo somente os seus pontos de vista. A esse respeito, Silva (2003) assinala que os professores tendem, através destes esquemas de apoio, a tornar os pais em “agentes dos professores” (p.68).

... Os alunos não estão fazendo ainda bem os fatos, estão usando pauzinhos. Não estão sabendo dividir e erraram muito. Pode ter uma tabuada em casa, não para decorar porque fica mecânico e ele não aprende. Dêem objetos como pauzinhos, botões e outros para que eles aprendam a partir do material concreto. O material concreto é usado da Fase Introdutória até a II, mas infelizmente na IV vamos ter que fazer uso do material dourado. Então, se o filho recebeu C, use o material concreto (...) Os alunos devem interpretar tudo. Vocês podem perguntar o que eles entenderam. Isso é matemática também. Tudo o que lêem, até na rua, outdoor. Isso é o que chamamos de letramento. (Professora da Fase IV).

Podemos constatar que os critérios levados em conta na avaliação escolar da proposta de ciclos, bem como as formas de notação referentes aos resultados avaliativos dos alunos, se tornaram fontes de conflitos para a família, em decorrência de um novo universo escolar, no qual ela é “convidada” a se inserir - mas não a participar - distanciado daquele que ela conhecia como “pedagogicamente correto”.

ConsIDERAçÕEs fInAIs

A pesquisa foi profícua em nos oferecer subsídios para constatarmos que não se pode compreender a relação que os pais e a escola mantêm entre si, por meio da avaliação escolar, sem se levar em conta as mudanças ocorridas tanto no seio da família, quanto no âmbito dos processos escolares.

Por um lado, a escola contemporânea não mais se limita às tarefas de desenvolvimento intelectual do aluno, estendendo sua ação aos aspectos corporais, morais e emocionais de seu processo de desenvolvimento. Por outro lado, a família de hoje se arroga o direito de intervir no terreno das aprendizagens

e das questões de ordem pedagógica e disciplinar.

Nogueira (2005) conclui que não há mais uma clara definição de fronteiras entre essas duas instâncias. Os canais de comunicação entre elas se ampliaram para além da tradicional participação nas associações de pais e mestres e da presença em reuniões oficiais com professores. Hoje há projetos pedagógicos, palestras, cursos e jornadas envolvendo os pais; há festas da família, caderno de avisos do aluno, contatos telefônicos, conversas à entrada e na saída das aulas, etc.

Como exemplo da “nova zona de interação” entre as esferas escolar e familiar (Van-Zanten, 1998, p. 187, apud Nogueira, 1998, p. 96 ), os dados da pesquisa chamam a atenção para a posição de algumas mães que chegam até mesmo a desafiar a escola ao se decidirem pela retenção do filho numa dada fase ou ciclo escolar, e obtêm, para isso, o respaldo da equipe pedagógica. Alegam um prejuízo para o filho se ele passasse para o ano escolar subseqüente. Isso mostra que a família tem interferido em aspectos pedagógicos que antes eram reservados à instituição de ensino. Por seu turno, a escola investigada evidencia uma “imbricação” crescente (Terrail, 1997) com as famílias atendidas, quando avalia os alunos nos aspectos moral e comportamental, antes de responsabilidade, sobretudo, da família. Seria, porém, ingênuo pensar que a interação entre os estabelecimentos de ensino e as famílias ocorre sem tensões ou contradições.

Os dados da pesquisa evidenciam que a avaliação escolar é, sem dúvida, uma das fontes de conflitos - implícitos ou explícitos - no quadro das interações entre a família e escola. É preciso ter em vista que se trata de uma relação desigual (entre leigos e profissionais e entre grupos sociais diferentes), tensa e permeada de dificuldades para professores e famílias. Dificuldades que são estruturais - e não meros mal-entendidos - porque produto de uma oposição profunda entre duas lógicas sociais diferentes, e muitas vezes contraditórias (Thin, 2006).

Mais uma vez se confirma que há uma forte contradição entre as lógicas que orientam as práticas das famílias populares e as lógicas escolares. Podemos constatá-la naquilo que se refere à avaliação na proposta de ciclos.

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Page 8: Revista Educacional

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Ramon Corrêa de. Famílias de camadas populares e programa Escola Plural: as lógicas de uma relação. 2002. 171f. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte.

BARRETO, Elba Siqueira de Sá, SOUSA, Sandra Zákia. Reflexões sobre as políticas de ciclos no Brasil. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 126, p. 659-688, set./dez. 2005.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n° 9.394 de 20 dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.

CHARLOT, B. Relação com o saber, formação dos professores e globalização. Porto Alegre: Artmed. 2005. p. 35-72

DALBEN, Ângela Imaculada Loureiro de Freitas. Singular ou Plural?:eis a escola em questão. Belo Horizonte: GAME/FAE/UFMG, 2000.

DALBEN, Â. I. L. F. ; COSTA, A. C. V. B. R. ; AMARAL, A. L. ; CASTRO, Elza Vidal de ; BATISTA, J. R. ; HENRIQUES, M. S. ; MAZZILLI, M. A. ; CASTRO, M. A. O. ; JOÃO, M. H. S. ; CORRÊA, M. L. ; MARTINS, Pura Lúcia Oliver ; RODRIGUES, Sylvia Garcia . Avaliação da implementação do projeto político pedagógico Escola Plural. 1º. ed. Belo Horizonte: GAME/FAE/UFMG, 2000. 147 p.

GLÓRIA, Dília Maria Andrade. “A escola dos que passam sem saber”: a prática da não-retenção escolar na narrativa de professores, alunos e familiares. 237 f. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002.

LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. SP, Àtica, 1997.

MAINARDES, Jefferson. Reinterpretando os Ciclos de Aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2007.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Orientação SEE nº 01 de 05 de fevereiro de 2004. Ensino fundamental de 9 anos. Minas Gerais, Belo Horizonte, maio. 2004. p 15-26. p. 10-14.

MONTANDON, C. Lês relations dês parents avec l´école. Lien social et politiques – RIAC, 35, p. 63-73, 1996.

NOGUEIRA, Maria Alice. Trajetórias escolares, estratégias culturais e classes sociais: notas em vista da construção do objeto de pesquisa. Teoria e educação, n. 03, p. 89-112, 1991.

NOGUEIRA, Maria Alice. Relação família-escola: novo objeto na sociologia da educação. Paidéia. Ribeirão Preto, Fev/Ago.1998, p.90-103.

NOGUEIRA, Maria Alice, ROMANELLI, Geraldo, ZAGO, Nadir. Família & Escola: Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis, RJ: vozes, 2000.

NOGUEIRA, Maria Alice. ABREU, Ramón Corrêa de. Famílias Populares e escola pública: uma relação dissonante. Educação em Revista. Julho/2004.

PAIXÃO, Lea Pinheiro. Significado da Escolarização para um Grupo de Catadoras de um Lixão. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 141-170, jan./abr. 2005.

PERRENOUD, P. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto editora, 1995.

PERRENOUD, P. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens – entre duas lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

SILVA, Pedro. Escola-Família: tensões e potencialidades de uma relação. In: LIMA, Jorge Ávila de (Org) Pais e professores: um desafio à cooperação. Porto – Portugal: ASA Editores - julho, 2002, p. 97-131

SILVA, Pedro. Escola - Família, uma relação armadilhada - Interculturalidade e relações de poder. Porto – Portugal: Afrontamentos. 2003.

TERRAIL, J-P. La Sociologie dês interactions famille/école. Sociétés Contemporaines, nº 25, 1997, p. 67-83.

THIN, Daniel. Para uma análise das relações entre famílias populares e escola: confrontação entre lógicas socializadoras. Revista Brasileira de Educação. v. 11, n. 32. Rio de Janeiro, maio/ago, 2006.

VAN-ZANTEN. A.H. Stratégies utilitaristes et stratégies identitaires dês parents vis-à-vis de l´école: une relecture critique dês analices sociologiques. Lien social et politiques – RIAC, 35, 1996, p. 125-135.

VAN-ZANTEN. A.H (1998). Lês familles face à l´école – rapportes institutionnels et relations sociales. Em P. Duming (Org) Education familiale: um panorama dês recherches internationales ( p 185-207) Paris: MIRE/Matrice apud NOGUEIRA, Maria Alice. Relação Família Escola: Novo Objeto na Sociologia da Educação. Cadernos de Psicologia e Educação. V. 8, n. 14/15. SP. 1998.

VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidades. In: NOGUEIRA, Maria Alice, ROMANELLI, Geraldo, ZAGO, Nadir (Orgs). Família & Escola: Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis, RJ: vozes, 2000, p. 45-60.

VIANA, M. J. B. As práticas socializatórias familiares como lócus de constituição de disposições facilitadores de longevidade escolar em meios populares. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 26, nº 90, p, 107-125, 2005, p. 107-125.

REVISTA EDUCACION@L

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

Page 9: Revista Educacional

REsUmo

Este texto tem a intenção de suscitar uma discussão em torno de um grande desafio que nos é posto hoje nas series iniciais do ensino fundamental: respeitar as diferenças no processo de aprender de cada aluno. Trata-se um recorte de uma pesquisa sobre a recontextualização do currículo na sala de aula das Séries Iniciais do Ensino Fundamental, onde a principal questão do estudo foi investigar como o currículo é posto em prática e se ele atende ou não às diferenças dos alunos no processo de ensino e aprendizagem. Objetivou-se avançar na compreensão das relações entre o currículo prescrito e o currículo que se desenvolve em sala de aula, compreendendo a lógica destas práticas e das alternativas sugeridas para o enfrentamento das diferenças que aparecem na sala de aula, chamando atenção para aquelas que exigem do professor uma atenção mais particularizada para efetivar o processo de ensino e aprendizagem. Para realização da pesquisa, os estudos da chamada Teoria Crítica do Currículo e suas bases na Sociologia da Educação foram fundamentais.

A investigação teve como foco as Séries Iniciais do Ensino Fundamental e a argumentação central da pesquisa é a de como o Currículo inclui e exclui aqueles alunos que apresentam ritmos de aprendizagem diferenciados, ou seja, que necessitam de um tempo diferente para aprender e que muitas vezes não encontram espaço dentro da escola ou a mesma nada flexibiliza para eles, quando as variáveis: tempo, aprendizagem e diferenças são tratadas como sendo

problema dos alunos. O trabalho conclui que a escola coloca seu enfoque na aprendizagem e não no ensino e esta conduta acaba desencadeando práticas de ensino excludentes.

Palavras-chave: ensino, aprendizagem, diferenças, currículo, série iniciais.

IntRoDUção

É cada vez mais comum, nos tempos atuais, nos depararmos com classes das séries iniciais do Ensino Fundamental, bastante heterogêneas, apresentando alunos com faixa etária e níveis de aprendizagem diferenciados. Na nossa realidade escolar, trabalhar com esta diversidade não é nada fácil. Mas com a certeza de que ela está aí, e como tal deve ser tratada, fica pra nós educadores o grande desafio de respeitar as diferenças no processo de aprender de cada criança, considerando-a como um ser único, capaz de aprender como qualquer outra criança, desde que a perspectiva do processo de ensinar, seja também, acessível a ela.

De um modo geral, dada as circunstâncias para a entrada no primeiro ano escolar do ensino fundamental, as séries iniciais apresentam classes heterogêneas, compostas por alunos com faixa etária e níveis de aprendizagem diferenciados, não importando o tipo de escola1. A grande questão é que enfrentar essa diversidade

1 Amaioriadaspesquisasnaáreadaeducaçãoqueobjetivadiscutiraspráticaspe-dagógicaseseusresultadostemcomoobjetoaescolapública.Aquiadiscussãosereferetantoaescolapública,quantoaparticular.

nos impõe o desafio de trabalhar as diferenças no processo de aprender de cada criança, num contexto curricular onde, tempo e espaço, ao determinarem o que o aluno pode e deve realizar e, ao mesmo tempo, o que não pode e o que não deve, é que definem seu percurso escolar. Segundo Lopes e Fabris (2005:01) “ tempo e espaço escolares são, entre outros elementos, determinantes das condições normais de uma aprendizagem considerada adequada e dentro dos níveis de desenvolvimento cognitivo apontados, a partir de diferentes pressupostos teóricos”. Algumas pesquisas2 no campo do currículo revelam que na programação curricular estabelecida na escola o tempo escolar é único, não existindo uma relação de atendimento temporal particularizado para alguns alunos que, dentro de um ano letivo, devido às suas particularidades, demandam ritmos diferenciados de aprendizagem ou necessidade de procedimentos pedagógicos especializados (ALVES et.al, 2002).

Perrenoud (1993), entretanto, reforça a importância da leitura das diferenças no trabalho pedagógico:

Seja qual for o grau de seleção prévia ensinar é confrontar-se com um

2 Este texto é frutodeumadisserta-çãodemestrado realizada em2007naLinhade Pesquisa Conhecimento Escolar, PráticasePolíticasCurriculares,doProgramadePós-GraduaçãoemeducaçãodaPUCMinasondeacentralidadedapesquisafoiinvestigarcomoocurrículoépostoempráticanasaladeaulaeseeleatendeounãoàsdiferençasdosalunosnoprocessodeensinoeaprendizagem.

REConHECER As “DIfEREnçAs no PRoCEsso DE APREnDER” Dos ALUnos nAs sÉRIEs InICIAIs Do EnsIno

fUnDAmEntAL É Um ImPERAtIvo PARA A EsCoLA DE HoJE!

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Ana Paula Braz malettaMestre em Educação pela pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Pós-Graduada em Gestão de Processos Educativos e Avaliação - Novas Tecnologias.Pedagoga e professora da Educação Básica e Superior.

Colégio Marista Dom Silvério | Belo Horizonte/MG

Page 10: Revista Educacional

grupo heterogêneo (do ponto de vista das atitudes, do capital escolar, do capital cultural, dos projetos, das personalidades, etc...). Ensinar é ignorar ou reconhecer estas diferenças, sancioná-las ou tentar neutralizá-las, fabricar o sucesso ou o insucesso através da avaliação formal e informal, construir identidades e trajectórias. Porém, regra geral, as didáticas nada dizem sobre as diferenças; falam de um aluno ‘médio’ ou de um sujeito epistêmico (PERRENOUD,1993, p.28).

Diante desse quadro, é recorrente nas escolas tratar-se as “dificuldades no aprender”3 que o aluno apresenta como sendo o problema dele. Além disso, esses alunos são, frequentemente, encaminhados para tratamentos e/ou acompanhamentos psicopedagógicos. Assim, a solução buscada para que eles possam dar conta de acompanhar o tempo e as exigências da escola regular é transferida para fora da escola, sendo considerada tarefa a ser assumida pela família. Isso fica evidente nas constantes observações das professoras das classes pesquisadas quando solicitada a esclarecer os motivos dos alunos não conseguirem desenvolver as tarefas ou sobre suas dificuldades para lidar com eles: “ele é difícil de aprender”; “a família não ajuda”; “ a família não olha direito o problema dele”; “a família não procurou tratamento especializado”.

Por melhor que sejam as intenções, a complexidade de procedimentos que envolvem o cotidiano da sala de aula reflete parte das dificuldades que os professores enfrentam para lidar com a diversidade. Além disso, sabemos da importância que tem o rendimento escolar do aluno ao longo do ano e que ele é pré-requisito para que ele passe de uma série para outra, ou que demonstre condições para avançar nas etapas dentro de um ciclo escolar 3O termo“dificuldadesnoaprender”pode ser en-contradonosestudosdeCorrêa(2001)comaseguin-tedefinição:Dificuldadedeaprendizagemouograudedificuldadeparaaprender,dependendodotipodeobstáculoasersuperadoparaqueosujeitoaprenda.Podeserumproblemadedesenvolvimento,emquefaltamasestruturascognitivasnecessáriasparacom-preender,ouumproblemadeaprendizagem,emqueexistem os esquemas necessários e a compreensãodependedo funcionamentodosmecanismos cogni-tivos.(CORRÊA,2001,p.36).

e de um ciclo escolar para outro4. De certa forma, a seriação não deixa de ser um mecanismo de exclusão e um dificultador para a gestão da diversidade na sala de aula, mas a progressão dentro do sistema de ciclos também seleciona e exclui.

Então eu pergunto: As dificuldades no aprender que o aluno apresenta no seu percurso escolar seria um problema de quem? Do aluno que não aprende? Da escola que não sabe ensinar? Ou seria de uma prática educativa guiada por princípios homogeneizadores?

Não há interesse aqui em julgar a prática escolar, o currículo e até mesmo a escola e/ou sua equipe docente, porém discutir o que acontece no interior da sala de aula em relação à aprendizagem, nos permite uma tentativa de compreender como a escola situa e lida com o aluno que apresenta diferenças no processo de aprender.

Em várias pesquisas na área, o que se evidencia em é um ensino voltado para práticas homogeneizadoras, com atividades comuns a todos, ofertadas da mesma forma para todos os sujeitos. Sendo, a maneira como cada sujeito adquire o conhecimento, pouco considerada. O princípio da homogeneização faz constituir práticas de ensino centradas no coletivo. Dessa forma, torna-se viável apenas um único modelo: um modelo padrão de práticas educativas e um modelo padrão para aferir o que os alunos aprendem.

O professor, na verdade, não sabe o que fazer com a diversidade presente em sua sala de aula, mesmo que muitas vezes declare sua intenção em atendê-las. Desta forma, as diferenças dos sujeitos que, ao entrarem na escola se encontram na condição 4A organização escolar em ciclos visa adequar otempoescolaraodesenvolvimentoglobaldoaluno,considerandosuascaracterísticasindividuaisecultu-rais,suasindividualidades,potencialidadesedificul-dades,diferentementedaidéiasimplistadequeseria,apenas, um processo onde os alunos consideradosmaisfracosteriamumtempomaiorparaaprenderouumainovaçãoparaacabarcomarepetênciaescolar.Éumaconcepçãodeensinoondeaaprendizagemdoalunodeveriaocorrersemasrupturasexistentesnaorganização escolar em séries. Mas pesquisas têmmostradoqueissonãoocorre(LAGES,2001;GLÓ-RIA,2002).

de alunos, emergem como que em ebulição, na forma de um leite que se põe a derramar. Os professores, ao tentarem buscar alternativas para o descompasso entre o seu modelo de ensino e o modelo de aprendizagem do aluno, se deparam com práticas excludentes, em primeiro lugar por causa da própria inflexibilização das relações tempo X espaço escolar. As práticas curriculares muitas vezes são pautadas num modelo fixo de aluno, de ensino e de aprendizagem; desta forma, tudo que foge a este modelo é visto como diferente, sendo o diferente, neste caso, sinônimo de inadequado, de dificuldade ou até mesmo de incapacidade.

Essa situação encontrada nas escolas merecia uma discussão no contexto do direito à educação, uma vez que implica a realização de práticas que, longe de incluir os diferentes no processo escolar, resultam em exclusão daqueles que apresentam dificuldades. Neste sentido retomo algumas reflexões de Adorno.

As contribuições de Adorno para o debate sobre o sentido e possibilidades da educação, pensadas no início da segunda metade do século passado, continuam atuais. Uma delas é a indicação da necessidade de novas práticas pedagógicas e da defesa de outro conhecimento, que sejam capazes de capacitar as pessoas para uma vida social plena e com dignidade, que resgate condições de vida social plena. Para Adorno, a sociedade se esqueceu ou se afastou da “doutrina da vida reta” (ADORNO, 1993:7) e, para ele, não há possibilidade de vida correta num mundo onde as relações sociais, também, estariam danificadas. Essas dimensões da obra adorniana sugerem a necessidade de reflexão sobre a complexidade da trama que se passa dentro da escola, quando o assunto é currículo e relações de poder. Essa reflexão aponta para a necessidade uma série de mudanças, e uma das mais fundamentais é que os educadores tomem consciência das relações de dominação e de massificação presentes no ato pedagógico, como condição para que possam compreender as conexões

REVISTA EDUCACION@L

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

Page 11: Revista Educacional

entre o que se passa na sala de aula (entre o que se ensina e as relações que são estabelecidas entre os pares) e o que é produzido fora da escola, isto é, com as relações de poder da sociedade.

“Essa tomada de consciência por parte dos educadores é exigência de uma proposta de Educação que se oriente por criar as possibilidades de uma sociedade emancipada da opressão e da injustiça, tal como postulada por Theodor Adorno”. (VILELA, 2005:91).

Nos estudos sobre Indústria Cultural e Semiformação (HORKHEIMER E ADORNO, 1985 B; ADORNO,1996) Adorno discute dilemas da sociedade que também continuam atuais, visivelmente presentes em nossa realidade educacional. Entre esses dilemas encontra-se a necessidade de superar o processo de massificação, dilema que tem uma forte aproximação com a discussão sobre uma Educação que seja inclusiva, que atente para as particularidades e diferenças. A questão central está no que para o teórico é o objetivo mais importante da educação para emancipação: a promoção da autonomia e da reflexão crítica como criadoras de uma precondição para a transformação. Transformação no sentido de produzir relações sociais dignas para a vida de todos. Adorno já defendia que nossa sociedade necessita desenvolver relações sociais que não naturalizem as diferenças, mas que reconheçam o direito de todos os diferentes. Com isso, ele não almeja uma sociedade consensual, o que ele defende é o direito à pluralidade. Para ele “ uma sociedade emancipada não seria nenhum Estado unitário, mas a realização efetiva do universal na reconciliação das diferenças” (ADORNO, 2003:89). Nesse sentido, a escola inclusiva deve ser um universo de igualdade onde todos desfrutem dos mesmos direitos e que reconheçam os direitos dos outros.

A educação escolar tem sido um veículo de legitimação da segregação, pois conta com um saber que se presta a correção e ao controle, intensificando a estigmatização e a

discriminação. Além disso, a escola vê e avalia as diferenças atribuindo ao aluno a responsabilidade naquilo que o distancia dos outros e dos padrões esperados; assim, ela confirma as diferenças como situações de desigualdades e de inferioridade.

A escola é o local onde circulam hierarquias e valores nas suas formas evidente e ocultas, aspectos muito bem pontuados pelos teóricos críticos do campo do currículo (APPLE, 1982). Para compreender como essa escola lida com a diversidade de seu alunado, consideramos pertinente resgatar aqui um pouco da concepção de educação defendida por Adorno, baseada na crença da produção de uma consciência verdadeira. No diálogo entre Adorno e Becker (ADORNO, 2003 B) Adorno reforça o quanto o desenvolvimento da consciência , como subjetivação da autonomia, deve se dar desde a primeira infância porque isso é imperativo para que o indivíduo possa conquistar a sua emancipação. Uma vez que o conceito de emancipação para Adorno significa o mesmo que conscientização, racionalidade, nos deparamos com um movimento contraditório de adaptação, e Adorno tem consciência disso. Por isso, ele considera a presença da relação dialética da educação como um mecanismo de orientação do sujeito para o mundo, e nele os dois componentes estão em tensão permanente:

De certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade. Mas a realidade sempre é simultaneamente uma comprovação da realidade, e esta envolve continuamente um movimento de adaptação. A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo da adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além do well adjustede people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente impõe precisamente o que tem de pior” ( ADORNO, 2003 B:143).

Parece-nos, então, que para Adorno e Becker, a adaptação é um processo

que deve permitir o indivíduo “ser ele” e ser o “ser social”, sem que um sobreponha-se ao outro.

Para Adorno, os conceitos de racionalidade e de consciência são, em geral, apreendidos como a capacidade formal de pensar. Mas o que realmente caracteriza a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo efetivo do mundo. Ele diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Neste sentido, a educação para a experiência seria idêntica à educação para a emancipação. Entretanto, na escola, o processo de adaptação forçado por todo um contexto socialmente construído pode acarretar num realismo supervalorizado. “Seria preciso estudar o que as crianças hoje em dia não conseguem mais aprender” para saber se a escola consegue assumir esta tarefa ou não. (ADORNO, 2003 B, p.146). Isso significa, também, desvendar porque não aprendem.

Finalmente, a Teoria Crítica nos revela que a escola não é neutra e que as escolhas do que se realiza no interior da escola se dão a partir de relações de poder. A seleção dos conhecimentos é feita tendo em vista a lógica da dominação reinante na sociedade capitalista. Mas, a escola, enquanto um espaço de reprodução é, também, espaço de resistência às formas dominantes de controle social. Aqui, mais uma vez, fica evidente como Adorno antecipou questões e dimensões de crítica à escola, presentes na teorização crítica do currículo nos anos 1970. Também antecipa a questão central posta para o campo do currículo na atualidade: que a escola deve abarcar todas as particularidades dos sujeitos, ou seja, na escola devem caber todas as diferenças. Na perspectiva sinalizada por Adorno,

A educação inclusiva deve ter como perspectiva que a educação para a inclusão é aquela que não naturaliza as diferenças, uma educação para a inclusão sabe que a acolhida das diferenças no espaço escolar não é a mesma coisa que reconhecer o direito de todos os diferentes (VILELA

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Page 12: Revista Educacional

2005:97).

Partindo do pressuposto acima estabelecido, a escola inclusiva, que se propõe atender todos os alunos respeitando suas singularidades, deve entender o que faz as pessoas afirmarem com tanta freqüência a diferença, sem realmente admiti-la nas suas relações sociais. Refletir sobre os sentidos que as diferenças se apresentam e como tal são tratadas em nossa sociedade é de extrema importância para a compreensão da constante negação e desqualificação do outro, do diferente. Para isso, a escola deve considerar como princípio básico que esta Educação, que se predispõe a ser inclusiva, não pode se efetivar sem a plenitude do desenvolvimento do processo de subjetivação e individualização, que é para Adorno um imperativo para se poder abarcar, na experiência educacional, todas as pessoas, independentemente de seu lugar em extratos sociais ou a grupos de pertencimento por condições de gênero, de etnias ou outras singularidades.

Se para Adorno a primeira de todas as exigências para a educação é a de que Auschwitz não se repita, fica evidente que a escola deve educar para a tolerância, para a solidariedade, para o reconhecimento do direito de todos a serem reconhecidos e aceitos com suas particularidades. Segundo ele, “Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a esta meta: que Auschwitz jamais se repita. Ela foi uma barbárie contra a qual se dirige toda a educação” (ADORNO, 2003 C: 119.) Sua preocupação é a de que apesar da não-visibilidade dos infortúnios, a pressão social continuava se impondo. Se Adorno assim pensava em 19655, ainda hoje a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica . Da mesma forma deve se reforçar a importância da educação na primeira infância, onde, segundo Adorno (2003

5 Odia18deabrilde1965éadatadapalestralevadaaoarnaRadiodeHessen,quedeuorigemaotextopublicado,pelaprimeiravezem1969.NacoletâneaorganizadaporKadelbachem1971.

B) o caráter do sujeito começa a ser constituído e os pré-conceitos ainda não foram tomados como verdade.

A escola, hoje, mais do que nunca é chamada a desempenhar novas funções, ao mesmo tempo em que, no desempenho deste novo papel social, ajuda a forjar o modelo de sociedade no qual está inserida. Assim, essa escola precisa ser analisada e estudada, considerando suas múltiplas demandas. Na redefinição de sua função social, a tão falada crise educacional parece nada mais ser do que uma adequação necessária para o contínuo exercício de sua tarefa institucional. Mas, em todas as situações que a desafia, a escola deve considerar a necessidade de reorientar suas propostas e suas práticas para formar pessoas. Neste sentido, o pensamento de Adorno

“(...) pode ajudar a amparar os desafios da escola atual na sua tarefa ímpar de ter que entender o desenvolvimento histórico das novas posições acerca do papel da escola no mundo contemporâneo e a desenvolver uma educação plural como a mais coerente perspectiva de inclusão”. (VILELA, 2005, p.97).

Ao assumir o direito da pessoa à educação, assumimos uma obrigação de constituí-la, o que implica considerar as aptidões que distinguem cada sujeito. Percebe-se, por vezes, que a escola, na sua tarefa de ensinar, não se dá conta da particularidade das construções do conhecimento elaborado pelos alunos e, muito menos, não reconhece sua complexidade. Os estudos de Corrêa (2001) corroboram essa reflexão:

“Aprender é atribuir significado e construímos significados integrando ou assimilando o que desejamos aprender... O que o aluno aprende não coincide inteiramente com aquilo que o professor ensina: ambos têm percepções diferentes da vida concreta e tem objetivos, intenções e motivações diferentes. Antes de qualquer coisa é preciso ter em mente que a educação escolar se dá num contexto específico e com objetivos determinados.” (CORRÊA, 2001, p.59).

Considerar a “dificuldade de

aprendizagem”, como sendo um problema do sujeito isenta a escola de agir para revertê-la e, ao mesmo tempo, torna legítima a proliferação de serviços e clínicas que se encarregam de minimizar, sanar ou recuperar alunos com dificuldades para que estes possam estar acompanhando o ensino chamado regular, e no tempo escolar pré-estabelecido para a aprendizagem. Isto apresenta-se como um limite para a efetivação da política de inclusão, porque impede o reconhecimento da situação de desigualdade e do direto as diferenças.

Uma escola que privilegia o ensino em detrimento da aprendizagem, que está centralizado na figura do professor ao invés de focar na figura do aluno, em que o homogêneo não dá lugar ao diferente; que busca o enquadramento, a sujeição ao padrão, está longe de ser inclusiva.

Respeitar as diferenças no processo de aprender dos alunos é, com certeza, um imperativo para a escola de hoje! A escola contemporânea enfrenta o desafio de rever sua principal tarefa – a de ensinar – e desvelar este “protagonismo” do aluno que não aprende. É a vez de a escola ocupar este lugar e implementar em suas práticas curriculares a “cultura do Re”: “re-significar”, “re-criar”, “re-inventar”, “re-fazer”, “re-estruturar”, “re-organizar”, “re-começar”.

REfERÊnCIAs

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973.

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Elementos do anti-semitismo. Os limites da razão. in.: ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ADORNO, Theodor W. minima moralia. Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo. Ática:1993.

ADORNO, Theodor W; Educação e Emancipação. In.: KADELBACH, Gerd ( Org.).theodor Adorno - Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003 A.

ADORNO, Theodor W. Teoria da Semicultura. Educação e sociedade. Campinas.N.83: 388-411. Dez. 1996.

ADORNO, Theodor W; Educação – para quê? In.: KADELBACH, Gerd ( Org.).theodor Adorno - Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003B.

ADORNO, Theodor W; Educação após Auschwitz.

REVISTA EDUCACION@L

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

Page 13: Revista Educacional

In.: KADELBACH, Gerd ( Org.).theodor Adorno - Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003C.

ALVES, Nilda et.al. Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2002.

BRASIL/MEC - Parâmetros Curriculares nacionais: ensino médio. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. Brasilia, 1999.

Brasil / Resolução CNE/CEB nº2. Diretrizes nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Brasília, 2001.

CONNELL, R. W. Política educacional. Hegemonia e estratégias de mudança social. teoria e Educação, n.5, p.66-80, 1992.

CORRÊA, R.M. Dificuldades no aprender: Um outro modo de olhar. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001.p.25-46.

GLÓRIA, Dília de Andrade. A escola dos que passam sem saber: a prática da não retenção escolar na narrativa de professores, alunos e familiares. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte; PUC Minas – Programa de Pós-Graduação em Educação, 2002.

KLIEBARD, Herbert M. Burocracia e teoria de Currículo. In.:MESSICK, Rosemary G.(org) Currículo: Análise e Debate.2ºedição,RJ:Zahar, 1985 p.107-129.

LAGES, Elizabeth Dias Munaier. família e escola na configuração de percursos escolares de alunos em turmas de aceleração de aprendizagem. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte; PUC Minas – Programa de Pós-Graduação em Educação, 2001.

LOPES, Maura Corcini; FABRIS, Helí Henn. Dificuldades de aprendizagem: Uma invenção moderna. XVIII REUNIÃO ANUAL DA ANPEd. ANAIS em CDRom. Textos Completos. GT N.15: Educação Especial, 2005.

MALETTA, Ana Paula Braz. o Currículo e a sala de aula: Um olhar sobre as diferenças nas series iniciais do ensino fundamental..Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte; PUC Minas - Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008.

PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspetivas sociológicas. Lisboa,Quixote, 1993.

SIROTA, Régine. A escola primária no cotidiano. Série Educação Teoria e Crítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

VILELA, Rita Amélia T. Para uma sociologia Critica da Educação em Adorno e Horkheimer: apontamentos. In: MAFRA, Leila de A. e TURA, Maria de Lourdes R. Sociologia para Educadores 2: o debate sociológico no século XX e as perspectivas atuais. Rio de Janeiro. Quartet, 2005 UNIMEP. Piracicaba/SP, 2004. “Colóquio Internacional Teoria Crítica e Educação” – Publicação restrita.

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Page 14: Revista Educacional

REsUmo

Este artigo parte do princípio de que o domínio da palavra pública tem importância significativa no exercício da cidadania e que cabe à escola possibilitar o acesso a usos de linguagem mais formalizados que exijam controle mais efetivo da enunciação. Para isso, ela deve dar importância às práticas que envolvem o eixo oral da mesma forma que tem dado à escrita. Assumir uma concepção interacionista, funcional e discursiva da língua como uma forma de desenvolver a autonomia nos alunos é o caminho defendido por esse estudo que tem por objetivo avaliar a relevância do trabalho com a oralidade no sentido de contribuir para o ensino eficaz de Língua Portuguesa.

Palavras-chave: Oralidade – Ensino - Linguística

IntRoDUção

O baixo nível de desempenho linguístico demonstrado por estudantes na utilização da língua, tanto oral quanto escrita, tem ocupado, segundo Geraldi (1997), lugar de destaque no inventário das deficiências apontadas quando se fala em crise do sistema educacional brasileiro. O autor ainda acrescenta

que mesmo estando a humanidade na era da comunicação é comum dizerem que o jovem não consegue expressar seu pensamento, articular um juízo e estruturar sentenças linguisticamente.

Apesar de não compartilhar algumas dessas afirmações, o autor reconhece o fracasso das aulas de língua portuguesa tal como vêm sendo praticadas em muitas escolas.

No sentido de levantar questões metodológicas que possam contribuir para reverter o quadro citado por Geraldi, este artigo pretende dar ênfase às questões que envolvem o trabalho com a oralidade em sala de aula. Eixo1 colocado em detrimento devido a valorização da escrita.

LUGAR E PAPEL DA oRALIDADE no EnsIno DE LínGUA

Ensinar oralidade na escola encontra pressupostos teóricos favoráveis em várias disciplinas periféricas da lingüística como sociolinguística, pragmática, etnografia da fala, entre outras.

Toda essa produção contribui para despertar a possibilidade de trabalhar oralidade em sala de aula e sobre o quanto essa prática precisa ocupar 1OsPCNpropõemqueosconteúdosdeLínguaPor-tuguesaarticulem-seemtornodedoiseixosbásicos:ousodalínguaoraleescrita.(1998,p.34)

lugar claro e definitivo no ensino produtivo de língua materna.

Marcuschi (1997) destaca que não se trata de ensinar a fala, mas sim identificar a imensa variedade e riqueza de usos da língua. Para isso, o autor diz que um aspecto central é a exploração da variação2 com o propósito de mostrar que a noção de um dialeto padrão uniforme é só teórica, não se dá na realidade. Assim, noções de norma, padrão, dialeto, variante, sotaque, estilo, gíria, bem como tudo que estiver relacionado às variações diatópica, diafásica e diastrática3 podem tornar-se aliadas ao ensino e ajudar o aluno a perceber que a língua é heterogênea, o que deixa claro a importância dos estudos sociolinguísticos aliados ao trabalho com oralidade.

No entanto, não se trata de converter tópicos da lingüística em mais conteúdos que o aluno deva incorporar, mesmo por que, conhecer particularidades da linguagem oral não é garantia de desenvolvimento 2 “Quando se fala emvariação, remete-se à socio-lingüística, essa área da ciência da linguagem queprocura,basicamente,verificardequemodofatoresdenaturezalingüísticaeextralingüísticaestãocorre-lacionadosaousodevariantesnosdiferentesníveisdagramáticadeumalíngua–afonética,amorfolo-giaeasintaxe–etambémnoseuléxico”.(BELINE,2006,p.121)3Diatópica–variaçãode lugar;Diafásica–varia-çãodesituaçãodefalaouderegistro(maisoume-nosinformal);Diastrática–variaçãodenívelsócio-econômico.

REVISTA EDUCACION@L

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

A oRALIDADE no EnsIno DE LínGUA

sImonE APARECIDA LEsIKoEspecialista em Língua Portuguesa / Lingüística / Literatura: texto e ensino pela Universidade Estadual de Ponta

Grossa.Professora de Língua Portuguesa do Colégio Marista São José do Rio de Janeiro.

E-mail:[email protected]

Page 15: Revista Educacional

da competência comunicativa4 que, segundo Bortoni-Ricardo (2004), permitirá saber o que falar e como falar com quaisquer interlocutores em quaisquer circunstâncias. Trata-se, pois, de oferecer ao professor suporte para associar as contribuições teóricas aos dados da realidade transformando-os em objeto de ensino. (RODRIGUEZ, 1995 p.5).

Marcuschi (1995) diz ser importante ter clareza quanto ao papel desse tipo de trabalho para não correr o risco de transformar a fala num tipo de conteúdo autônomo no ensino de língua, deixando, assim, de trabalhá-la integradamente e na relação com a escrita. Relação, essa, de fundamental importância no trabalho com a oralidade.

Razões para ampliar o estudo da oralidade

Há muitas razões para ampliar a perspectiva do estudo da oralidade para além da simples observação do código linguístico. Uma delas diz respeito às relações mútuas e diferenciadas com a escrita. Na fase de alfabetização a oralidade influencia a escrita e com o passar dos anos de escolaridade esse ponto de vista inverte-se, como foi evidenciado nas pesquisas de Silva & Scherre (1996) e, mais recentemente, em Mollica (2006).

É sabido, também, que o trabalho com a oralidade pode ressaltar a contribuição da fala na formação cultural e na preservação das tradições orais que persistem em culturas nas quais a escrita já entrou de forma decisiva (MARCUSCHI, 1995). É lamentável que, algumas vezes, realizações estéticas próprias da literatura improvisada dos cantadores e repentistas apareçam na sala de aula apenas como pretexto para que sejam 4Anoçãodecompetência lingüística foi implanta-dapelosociolingüistanorte-americanoDellHymesnumacríticaànoçãodedesempenhoecompetênciaproposta por Chomsky por considerar que ela nãodavacontadasquestõesdavariação.Onovoconcei-toébastanteamploparaincluirnãosóasregrasquepresidemàformaçãodassentenças,mastambémasnormassociaiseculturaisquedefinemaadequaçãodafala.(BORTONI-RICARDO,2004,p.73)

convertidas na norma padrão da língua. Atividades como essas fazem com que a produção perca o seu valor de expressão cultural de uma comunidade. Além disso, transmitem a idéia de que seu padrão linguístico deve ser evitado (ANTUNES, 2002). Ou seja, aproveitar essas produções para estudar a fala, também, é uma oportunidade de esclarecer aspectos relativos à discriminação e ao preconceito lingüístico5.O estudo da oralidade também pode ser ampliado através da análise dos aspectos pragmáticos da organização textual em relação à fala e escrita a partir das diferenças, tendo em vista que esta não incorpora a gestualidade e a prosódia daquela.

Sabemos como, ao lado de elementos morfossintáticos e semânticos do texto, encontram-se outros de natureza supra-segmental (como a entonação, as pausas, por exemplo), que em muito contribuem para a construção do sentido e das intenções pretendidos. Numa dimensão muito próxima ganha sentido também explorar a função de certas expressões fisionômicas, de certos gestos e outros recursos da representação cênica (como levantar-se, movimentar-se), os quais funcionam de forma muito significativa, como elementos complementares no processo da interação verbal. (ANTUNES 2002, p.104)

Afastando-se da relação com a escrita, a autora (idem, p. 105) acrescenta que não há interação se não há ouvinte. Numa relação interativa, analisar a oralidade desenvolve a habilidade de escutar com atenção e respeito os mais diferentes tipos de interlocutores. Para Marcuschi (1995 p.42), “aspectos relativos à polidez ao tratamento interpessoal, às relações interpessoais e muitos outros podem ser facilmente observados na produção lingüística na própria sala de aula”.

Finalmente, estudar a fala, segundo Marcuschi (idem), é uma oportunidade de analisar os mecanismos de controle social e reprodução de esquemas de dominação e poder implícitos em 5 Sobre preconceito lingüístico ver: BAGNO, M.Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. SãoPaulo:Loyola,1999.

usos linguísticos na vida diária, tendo em vista suas íntimas, complexas e comprovadas relações com a estrutura social. Além disso,

a palavra humana é mais do que simples vocabulário: é palavra – e ação... falar não é um ato verdadeiro se não está, ao mesmo tempo, associado ao direito à auto-expressão e à expressão da realidade, de criar e recriar, de decidir e escolher e, em última instância, de participar do processo histórico de sua sociedade. Nas culturas do silêncio, as massas são mudas, ou seja, são proibidas de participar criativamente nas transformações de sua sociedade e, por conseguinte, são proibidas de ser. (FREIRE, 2006, p. 43)

Para esses dois autores, é necessário considerar a fala como um conteúdo indispensável na formação cidadã e na inclusão social do aluno.

Estudos que se ocupam das relações fala e escrita

Para compreender as estruturas textuais próprias do discurso oral, a organização das classes em torno do trabalho com língua oral e avaliação das aprendizagens, Rodriguez (1995) considera fundamental reconhecer as diferenças entre a linguagem oral e escrita.

Entender essas diferenças parte, inicialmente, da necessidade de compreender as variadas tendências dos estudos que se ocupam das relações entre fala e escrita e, assim, poder sugerir uma linha de tratamento menos comprometida com o preconceito e a desvalorização da forma oral.

Quatro perspectivas Marcuschi (2007a) diz que a tendência de maior tradição entre a linguística é a da dicotomia que se dedica à análise das relações e diferenças entre fala e escrita. Dentro dessa mesma perspectiva encontram-se, de um lado, os teóricos de visão restrita

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Page 16: Revista Educacional

REVISTA EDUCACION@L

e, de outro, os que percebem essas relações dentro de um contínuo, seja tipológico ou da realidade cognitiva e social.

Da dicotomia mais estrita resultou o prescritivismo de uma norma tida como padrão, que está representada na denominada norma culta e que conduz o ensino de língua ao ensino de regras gramaticais ignorando os fenômenos dialógicos e discursivos. Essa perspectiva é a responsável pela separação da fala e da escrita em dois blocos distintos. Aquela é tida como lugar do erro, do caos gramatical; essa como lugar da norma e do bom uso da língua.

A perspectiva fenomenológica observa muito mais a natureza das práticas da oralidade versus escrita. As análises seguem uma perspectiva cognitiva, antropológica e desenvolve uma fenomenologia da escrita e seus efeitos na forma de organização e produção de conhecimentos.Essa tendência não serve para tratar das relações lógicas, pois localiza suas análises na formação da mentalidade dentro de atividades psíquicas, sociais, econômicas e culturais, portanto, de visão global. Muitos problemas foram detectados nessa tendência e várias de suas postulações, que não cabe aqui mencionar, não passam de crenças já desmontadas pelas investigações contemporâneas.

A tendência variacionista, segundo Marcuschi (idem) é a que trata do papel da escrita e da fala e faz propostas específicas a respeito do tratamento padrão e não-padrão no ensino formal sob o ponto de vista dos processos educacionais. Essa perspectiva é uma variante da dicotômica, mas o diferencial encontra-se no fato de que essa é muito mais sensível aos conhecimentos dos indivíduos que enfrentam o ensino formal. Destaca-se o fato dessa tendência observar variedades linguísticas e não preocupar-se em fazer distinção entre fala e escrita. O autor diz ser simpático a essa perspectiva que se caracteriza mais ideológica e menos lingüística apesar de não considerar

que ela resolva todas as questões.

Chamada por Marcuschi (idem) de sociointeracionista, a perspectiva dialógica não forma um conjunto teórico sistemático e coerente, mas tem a vantagem de perceber com maior clareza a língua como fenômeno interativo, dinâmico e dialógico marcado pela fala nas estratégias de formulação em tempo real. Para Street citado por Marcuschi (idem, p. 33) “essa tendência em direção à análise (crítica) do discurso unida à investigação etnográfica poderia ser uma das melhores saídas para a observação do letramento e da oralidade como práticas sociais”. Sozinha, a perspectiva sociointeracionista é considerada de baixo potencial explicativo e descritivo dos fenômenos sintáticos e fonológicos da língua e, também, das estratégias de produção e compreensão textual.

Por isso, Marcuschi sugere um hibridismo entre essa tendência e a visão variacionista e a Análise do Discurso e da Conversação aliados à Linguística do Texto. Essa fusão poderia apresentar resultados mais seguros e com maior adequação empírica e teórica.

Segundo Ramos (2002, p. 8) “muitos profissionais que atuam na área de ensino da língua materna conseguem chegar à universidade (e por vezes sair dela) sem ter consciência das especificidades da fala em contraposição à escrita. Há quem acredite que se fala tal como se escreve e vice versa”. Questão bem mais agravante se considerar que um engano como esse acontece com professores que trabalham com ensino fundamental reproduzindo ‘pérolas’ como: “Agora que você me contou toda história é só escrevê-la!”.

A noção que se pode ter dessas tendências e perspectivas mostra que o trabalho que se pode desenvolver a partir da oralidade, também relacionada à escrita, é tão mais amplo que, nas palavras de Belintane (2000), não cabe a idéia de reduzir a dinâmica

da língua oral ao espaço restrito em poucas páginas nos manuais didáticos.

A compreensão do trabalho com a oralidade em sala de aula

A partir da concepção de que os indivíduos se constituem na relação dialógica, a qual tem na língua falada sua matriz formadora, torna-se relevante ampliar o conhecimento da língua falada. Assim, de acordo com Marcuschi (1997a), a análise de interações verbais constitui-se um programa capaz de contribuir para a melhor compreensão do que se entende por “o homem é um ser social”.

Além disso, o autor diz que é necessário ter uma noção de língua que sustente uma visão de fala coerente e produtiva e que se busque analisar as relações entre fala e escrita dentro de um contínuo evitando relações dicotômicas que privilegiem uma ou outra. Para isso, cabe aqui, fazer uso das contribuições da lingüística nos últimos trinta anos que enfatizam a análise da língua em contextos situacionais autênticos, ou seja, na língua em uso. Uso, que por sua vez, manifesta-se em situações cotidianas na oralidade ou na escrita.

Segundo Marcuschi (idem) as pesquisas com a língua em uso resultam numa melhor compreensão da língua como atividade interativa e aplicam-se rapidamente ao ensino em virtude do seu enorme poder explicativo e aplicativo. Nas palavras do autor: “São perspectivas que permitem integrar de maneira significativa os aspectos pragmáticos, sociais, cognitivos e lingüísticos numa visão holística da língua enquanto atividade”.

A partir da Sociolingüística, Marcuschi (1997) propõe que se trabalhe com atividades que tratem da distinção entre as falas de diversas regiões do país. Para tanto, o autor sugere que sejam apresentadas gravações de falas, novelas, entrevistas ou debates a fim de discutir aspectos relativos

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

Page 17: Revista Educacional

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

à prosódia, sotaques, léxico etc. Destaca-se a importância de um olhar não discriminatório que enfoque a fala como um fator que contribui para a formação de identidades.

O estudo das variedades pode mostrar que a língua é heterogênea e não monolítica. Para isso podem ser explorados os mais variados aspectos: variação sociolingüística, dialetal, de registros, de situações sociocomunicativas, entre outras.

Numa direção paralela à Sociolinguística, o estudo da modalidade oral ampliou-se no período entre 1980 e 1990 com a aplicação das teorias da Análise da Conversação6 que tornou possível o estudo da oralidade. Até então os métodos serviam apenas para análise da língua escrita.

Segundo Preti,

Problemas novos, como o do turno (a macrounidade da língua falada) e suas estratégias de gestão; das leis de simetria na conversação natural; da estruturação dos tópicos ou temas; dos procedimentos de reformulação; do emprego de sinais característicos da língua oral (marcadores conversacionais); da sobreposição de vozes; do fluxo conversacional; da densidade informativa etc. vieram para mostrar que a língua falada tem suas regras próprias (2003, p.8).

Ao preocupar-se com todas essas questões, a Análise da Conversação descobre a oralidade como um fenômeno central na vida dos indivíduos, no uso da língua e na própria concepção de língua (MARCUSCHI, 2007b). A aplicação das contribuições dessa teoria pode ser feita a partir de atividades que proponham distinguir uma pessoa da 6PesquisadoresdoestadodeSãoPaulopublicaram,a partir de 1997, uma série de volumes intituladosProjetosParalelos–NURC/SPdeestudos relativosàanálisedalínguaoralnaperspectivadaAnálisedaConversação.Olivroqueabreacoleçãocontacomumasériededezensaiossobrealgunsdosproblemasmais latentes para o estudo dos textos orais numaperspectivaquesediferenciadoestudodosgênerosorais,vistoqueestãomaisinteressadosemreflexõessobreoralidadeeescrita,contextosconversacionais,planejamento,relaçãoentreosinterlocutores,meca-nismos de paráfrases, sintaxe, léxico, entre outros.(Ver:PRETI,D.(Org).Análisedetextosorais.6.ed.SãoPaulo:Humanitas,2003).

outra pela fala e o que a fala revela em relação aos falantes.

Marcuschi (1997) sugere que se analise a polidez e sua organização na fala, bem como o fato desse aspecto interferir de maneira decisiva na qualidade, na compreensão e na natureza dos atos de fala praticados. Nesse sentido propõem-se atividades que discutam sobre as formas de se desenvolver os temas, as diferenças entre fala e escrita com relação à mudança de tópicos e interrupção dos interlocutores. Ainda relacionado ao campo da conversação, o autor sugere a identificação de elementos típicos da produção oral, como os marcadores conversacionais, as hesitações, as repetições, as correções, os modalizadores, os dêiticos etc.

A Linguística Textual também apresenta fortes subsídios teóricos para o trabalho a partir da oralidade. Koch (apud BENTES, 2000) propõe que se veja essa teoria como o estudo das operações linguísticas e cognitivas que regulam e controlam a produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos e orais. Sendo assim, a partir da perspectiva da Linguística Textual podem-se desenvolver atividades que explorem os fatores de textualidade ou a falta de textualidade relacionadas às produções orais responsáveis pelo sucesso ou fracasso da comunicação.A Análise do Discurso7, mesmo que centrada nos estudos acadêmicos, também pode oferecer contribuições para o trabalho a partir da oralidade. Por intermédio dela podem ser explorados aspectos relativos à argumentatividade, ou seja, sugere-se a análise dos textos orais a partir de mecanismos usados pelas pessoas para persuadirem umas as outras.

Outras teorias ainda podem contribuir muito para o trabalho com a oralidade. Marcuschi (2007b) destaca a Etnometodologia, a Etnografia da Fala, a Antropologia Linguística e a 7Apesar de não relacioná-la ao ensino,Mussalim(ver referência) proporciona um primeiro contatocom aAnálise do Discurso, passando pela origemdos estudos no estruturalismo, marxismo e psica-náliseatéasformaçõesdiscursivas,osconceitosdesujeitoeascondiçõesdeprodução.

REVISTA EDUCACION@L

Sociologia Interativa como teorias em ebulição. Elas vêm influenciando o ensino das línguas já que permitem melhor analisar os processos interativos e concordam muito bem com as teorias sobre funcionamento do texto, seja ele oral ou escrito.As contribuições de todos esses estudos não servem de novas nomenclaturas e conceitos para substituírem os da Gramática Tradicional que ocupou (ocupa) maior parte do tempo das aulas de Língua Portuguesa. Elas servem de suporte para que sejam desenvolvidas e aplicadas metodologias que sirvam para ensinar os alunos a perceberem a riqueza que envolve o uso da língua e a utilizarem-se, de forma competente, de uma ferramenta diária, a qual os acompanhará por toda a vida.

ConsIDERAçÕEs fInAIs

Houve um tempo em que o behaviorismo imperava; o sujeito era considerado como ser passivo diante da aprendizagem e esta era algo resultante, principalmente, da prática e do reforço.

Por esse viés, ensinar língua oral significava corrigir a fala do aluno – “Não é pra mim fazer, é pra eu fazer” – correção que, muitas vezes, interrompia a opinião empolgada do aluno acerca de algum tema e o fazia encolher-se. Nesse tempo, os alunos decoravam poemas de exaltação à Pátria ou à bandeira, e horas de ensaios e treinos eram consumidas, perdendo-se em virtude do nervosismo no momento da apresentação em eventos cívicos. Havia, também, o ensino da leitura em voz alta transformado em tortura (obrigatória) para os tímidos e em humilhação (também obrigatória) para os que apresentavam algum déficit de leitura. E, o que falar das famigeradas provas orais? Na verdade, eram memorizações de questionários ou de conceitos que não faziam sentido, e que os alunos tentavam reproduzi-los com fidelidade diante do olhar avaliativo do professor.

Page 18: Revista Educacional

O tempo passou e as práticas de antes não combinam mais com as concepções de linguagem e aprendizagem que surgem calcadas no cognitivismo de Piaget, no sociointeracionismo de Vygotski e no dialogismo de Bahktin. Essas teorias trouxeram uma nova concepção de sujeito, que passa a ser entendido como capaz de assumir sua palavra na interação, e de texto enquanto lugar dessa interação que é construído por interlocutores e os constrói simultaneamente.

De modo geral, a noção de trabalho com o oral que se observa em materiais didáticos desconsidera sua condição de produção, sua intencionalidade e sua significação. Algumas vezes, ela é resumida em “Atividade Oral” e está distante de contemplar toda a riqueza que o tema pode representar.

As discussões levantadas aqui ainda não fazem parte de muitos espaços de diálogos importantes e, para que as propostas apresentadas se efetivem em mecanismos de mudança e de promoção do saber, é indispensável que se invista nos profissionais de educação, oferecendo-lhes condições para que se mantenham informados através da atualização constante e intensiva.

Emerge a necessidade de se adotar postulações teóricas que concebam a língua como sistema integrado pelos sistemas gramatical, semântico e discursivo e que entendam a cognição humana como processo de construção subjetiva socialmente mediada. Ou seja, abordagens que tomam os processos subjetivos de construção de conhecimentos linguísticos como culturalmente condicionados e a atividade textual como tributária das condições histórico-sociais de sua produção.

REfERÊnCIAs BIBLIoGRáfICAs

ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003

BELINE. R. A variação lingüística. In: FIORIN, L. (Org) Introdução à lingüística: objetos

teóricos. São Paulo: Contexto, 2006.

BELINTANE, C. Linguagem oral na escola em tempo de redes. In. Revista Educação e Pesquisa. São Paulo, v.26,n.1,p.53-65, jan./jun. 2000.

BENTES, A.C. Lingüística textual In. MUSSALIN, F. & BENTES, A.C. (orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. (Vol.1). 4. ed. – São Paulo: Cortez, 2004.

BORTONI-RICARDO, S.M. Educação em língua materna: a sociolingüística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares nacionais: Língua Portuguesa —5ª a 8ª séries. Brasília: 1998.

GERALDI, J. W. o texto na sala de aula. 2.ed. São Paulo: Ática, 1997.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 45.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

MARCUSCHI, L. A. Concepção de língua falada nos manuais de português de 1º e 2º graus: uma visão crítica. Trabalho apresentado na 49ª reunião anual da SBPC, Belo Horizonte, MG, julho de 1997.

______.Análise da conversação. 5.ed. São Paulo: Ática, 2006.

______. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2007a.

______.o papel da lingüística no ensino de línguas. (Disponível em: http://www.marcosbagno.com.br/for_marcuschi.htm); Acesso em: 23 mar. 2007b.

MOLLICA, M. C. Da linguagem coloquial à escrita padrão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

PRETI, D. (Org). Análise de textos orais. 6.ed. São Paulo: Humanitas, 2003.

RAMOS, J.M. o espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

RODRIGUEZ, M.H. “Hablar em la escuela: Para qué?... Como?. In. Lectura y Vida. Revista Latinoamericana de Lectura da Internacional Reading Assiciation (IRA), ano XVI, n. 3, set./1995).

SILVA, G; SCHERRE, M.M. Padrões sociolingüísticos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

REVISTA EDUCACION@L

Page 19: Revista Educacional

UNIÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E ENSINO - UBEEUNIÃO NORTE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E CULTURA - UNBEC

DIREtoR-PREsIDEntEIr. Wellington Mousinho

sUPERIntEnDEntE soCIoEDUCACIonALDilma Alves Rodrigues

GEREntE EDUCACIonALJaqueline de Jesus

AnALIstAs EDUCACIonAIsAloimar SilvaCarla FlorianaClaudiane Junqueira Fernando SouzaIreneuda NogueiraRita RochaRoberta GuedesThiago Araújo

PLAnEJAmEnto EstRAtÉGICoArthur Gomes

ExPEDIEntEREvIstA EDUCACIon@L é uma publicação da Gerência Educacional da Província Marista Brasil Centro-Norte.

Page 20: Revista Educacional