Top Banner
R E F O R M A A G R ` R I A Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA Volume 33 - Nº 2 AGO / DEZ Homena g ens Biografia de JosØ Gomes da Silva Homenagem a JosØ Gomes da Silva Ensaios e De ba tes A CPMI da Terra na visªo dos mandantes O Parlamento e a criminalizaªo dos movimentos de luta pela terra: um balano da CPMI da Terra CPMI da Terra e a luta de classes no Congresso Nacional Estado penal e criminalizaªo do MST ou de como o JudiciÆrio e mdia fabricam as novas bruxas de SalØm uma anÆlise sobre a aªo das mulheres da Via Campesina nas terras da Aracruz Campanha Internacional Contra a ViolŒncia no Campo: instrumento de luta pela reforma agrÆria e contra a violaªo dos direitos humanos A morte ronda os canaviais paulistas MinistØrio Pœblico, Meio Ambiente e Questªo AgrÆria A "Nªo Reforma AgrÆria" do MDA/INCRA no governo Lula Assentamentos e Assentados no Estado de Sªo Paulo: dos primeiros debates as atuais reflexıes Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globo sobre a luta pela terra no Sertªo Carioca (1951-1964) Documentos Por que Reforma AgrÆria? CORREIO DA ALADA CPMI DA TERRA: Quadro comparativo das recomendaıes dos relatrio vencido e vencedor
135

Revista Abra 33

Jan 15, 2016

Download

Documents

Elielson Silva

Revista Abra Ed. 33
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: Revista Abra 33

REFORMAAGRÁRIARevista da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA

Volume 33 - Nº 2 • AGO / DEZ

Homenagens

� Biografia de José Gomes da Silva� Homenagem a José Gomes da Silva

Ensaios e Debates

� A CPMI da Terra na visão dos mandantes� O Parlamento e a criminalização dos movimentos

de luta pela terra: um balanço da CPMI da Terra� CPMI da Terra e a luta de classes no Congresso Nacional� Estado penal e criminalização do MST ou de como o Judiciário e

mídia fabricam as novas bruxas de Salém uma análise sobre aação das mulheres da Via Campesina nas terras da Aracruz

� Campanha Internacional Contra a Violência no Campo: instrumentode luta pela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanos

� A morte ronda os canaviais paulistas� Ministério Público, Meio Ambiente e Questão Agrária� A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo Lula� Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:

dos primeiros debates as atuais reflexões� Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globo sobre a

luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)

Documentos� Por que Reforma Agrária?� CORREIO DA ALADA� CPMI DA TERRA: Quadro comparativo das

recomendações dos relatório vencido e vencedor

Page 2: Revista Abra 33

REFORMAAGRÁRIARevista da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA

Volume 33 - Nº 2 • AGO / DEZ

Page 3: Revista Abra 33

S u m á r i oEditorial ..................................................................................................... 7

Homenagens

Biografia de José Gomes da SilvaSÔNIA HELENA NOVAES GUIMARÃES MORAES ........................................................ 13

Homenagem a José Gomes da SilvaABDIAS ABDIAS VILAR DE CARVALHO ................................................................... 19

Ensaios e Debates

A CPMI da Terra na visão dos mandantesSÔNIA HELENA NOVAES GUIMARÃES MORAES ........................................................ 33

O Parlamento e a criminalização dos movimentosde luta pela terra: um balanço da CPMI da TerraSÉRGIO SAUER; MARCOS ROGÉRIO DE SOUZA; NILTON TUBINO ................................. 41

CPMI da Terra e a luta de classes no Congresso NacionalJOÃO ALFREDO TELLES MELO ............................................................................ 67

Estado penal e criminalização do MST ou de como o Judiciário emídia fabricam as novas bruxas de Salém uma análise sobre aação das mulheres da Via Campesina nas terras da AracruzFERNANDA MARIA DA COSTA VIEIRA .................................................................... 73

Campanha Internacional Contra aViolência no Campo: instrumento de lutapela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanosPAULO DE TARSO CARALO .................................................................................. 99

A morte ronda os canaviais paulistasMARIA APARECIDA DE MORAES SILVA ................................................................. 111

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaMARCELO PEDROSO GOULART .......................................................................... 143

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaARIOVALDO UMBELINO DE OLIVEIRA ................................................................. 165

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexõesSONIA MARIA P. P. BERGAMASCO; LUIZ ANTONIO CABELLO NORDER ....................... 203

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globo sobre aluta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)LEONARDO SOARES DOS SANTOS ....................................................................... 227

Documentos

Por que Reforma Agrária?ANA MARIA ARAÚJO FREIRE ............................................................................ 245

CORREIO DA ALADA ......................................................................... 251

CPMI DA TERRA: Quadro comparativo dasRecomendações dos relatório vencido e vencedor ................................. 255

A Associação Brasileira de ReformaAgrária é uma entidade civil, não governa-mental, sem fins lucrativos, organizadapara ajudar a promover a realização doprocesso agro-reformista no Brasil, bemcomo contribuir para incrementar o pa-drão de vida da população rural, melho-rando a produção, a distribuição dos ali-mentos e produtos agrícolas, aumentandoas possibilidades de emprego, contendo adeterioração ambiental e assegurado orespeito aos direitos fundamentais dohomem.

DIRETORIA EXECUTIVA GESTÃO

2004/2006

PRESIDENTE:Plínio de Arruda Sampaio

VICE-PRESIDENTE:Osvaldo Russo de Azevedo

TESOUREIRO: José Vaz Parente

DIRETORES:Francisco de Assis CostaHugo Herédia (in memoriam)Moacyr PalmeiraOsvaldo Aly JuniorPedro ChristóffoliAriovaldo Umbelino de Oliveira

CONSELHO DELIBERATIVO

TITULARES:Adalberto MartinsBernardo Mançano FernandesJoão Luiz Homem de CarvalhoJoão Pedro StédileJosé Juliano de Carvalho FºLeonilde Sérvolo de MedeirosMaria Emília PachecoRaimundo João AmorimRegina BrunoLuis Carlos Guedes Pinto

SUPLENTES:Abdias Villar de CarvalhoGuilherme C. DelgadoSérgio LeiteGerson Teixeira

CONSELHO EDITORIAL DA

REVISTA "REFORMA AGRÁRIA"

José Juliano de Carvalho Filho(Presidente do Conselho e Editor da revista)

Ariovaldo Umbelino de OliveiraBrancolina FerreiraBernardo Mançano FernandesFernando Gaiger da SilveiraGuilherme da Costa DelgadoLeonam Bueno PereiraLeonilde Sérvolo de MedeirosMaria de Nazareth Baudel WanderleyMarcelo GoulartOsvaldo Aly JuniorOriowaldo QuedaPedro RamosRaimundo Pires SilvaRaquel Santos Sant'AnaRegina PettiSergio Pereira LeiteSonia P. P. BergamascoSonia Novaes MoraesTamás SzmrecsányiWalter BelikVera Botta

JORNALISTA RESPONSÁVEL:Ari Gomes

REVISÃO E EDITORAÇÃO GRÁFICA:Liber Comunicação

É livre a transcrição de matéria originalpublicada nesta revista, desde que citada afonte. A ABRA não se responsabiliza porconceitos emitidos em artigos assinados.

ENDEREÇO:Rua Vicente Prado, 134, São Paulo - SPTEL.: (11) 3105-5088

SÍTIO: www.reformaagraria.orgE-MAIL: [email protected]

Page 4: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 7

Editorial

Antes da apresentação deste número da revista, a ABRA, por meio desteeditorial, vem a público para manifestar-se perante a sociedade sobre trêsacontecimentos recentes que atentam contra a democracia e a luta social poruma sociedade mais justa.

A primeira manifestação refere-se ao que ocorreu na CPMI da Terra. A preo-cupante e revoltante rejeição do relatório do Deputado João Alfredo e a apro-vação de outro relatório, de interesse exclusivo da chamada bancada ruralista,evidenciam que as forças mais retrógradas e truculentas estão novamente amanifestar-se com desenvoltura na sociedade brasileira. O texto aprovado éomisso quanto a vários aspectos relevantes da nossa realidade agrária e visa,de forma torpe, perseguir, desorganizar e criminalizar as organizações dos tra-balhadores, principalmente o MST. Ele chega a propor o absurdo do enquadra-mento das ações dos movimentos sociais na luta pela reforma agrária comoprática de atos terroristas. A ABRA denuncia e repudia o que oconteceu no le-gislativo federal e, ao mesmo tempo, alerta a sociedade sobre o perigo da voltaao obscurantismo.

A segunda diz respeito ao que vem ocorrendo em Ribeirão Preto (SP),região costumeiramente apontada como exemplo do agronegócio. Os fatoslá verificados mostram claramente que o termo agronegócio nada mais é doque um eufemismo para camuflar velhas práticas de coação e intimidação,desde sempre utilizadas pelo latifúndio. Referimo-nos aqui à violência quevem sendo praticada contra a pessoa do Promotor de Justiça Dr. MarceloGoulart, cuja atuação "pauta-se essencialmente no cumprimento da Consti-tuição Federal e na defesa da sociedade civil". Por assim atuar, Marcelo Gou-lart, nosso companheiro na luta pela Reforma Agrária, "tem sofrido ataquesde toda a ordem, alguns com caráter sórdido e covarde". As aspas são demanifesto de apoio, publicado na revista "Dialógico" do Ministério PúblicoDemocrático. Continua o manifesto: "querem acuar todos os setores da so-ciedade que lutam contra a desigualdade, contra a concentração de terras eriquezas, contra o racismo, contra a exploração e a destruição do meio ambi-ente. Querem amedrontar os setores organizados da sociedade civil...". AABRA soma-se às diversas entidades que assinam o manifesto e declara o seuapoio irrestrito a Marcelo Goulart.

Page 5: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 9

Editorial

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 8

Editorial

A terceira manifestação é de apoio às mulheres trabalhadoras rurais quetiveram a coragem de confrontar o agronegócio em uma das suas formasmais agressivas, qual seja, a das grandes corporações multinacionais quedominam, internacionalizam e exploram o nosso solo em favor de interessesoutros, que nada têm a ver com os do povo brasileiro. O silêncio da mídia ea conivência das autoridades levaram-nas à ação contra a Aracruz. Denun-ciaram o "deserto verde" e o domínio e exploração dos aqüíferos. Por isso fo-ram tratadas como criminosas. A estas nobres e corajosas companheiras, aABRA declara o seu apoio e denuncia a forma como foram tratadas.

Esta edição destaca os acontecimentos acima e aborda outros assuntos re-levantes para a nossa realidade agrária.

De início são registradas as homenagens feitas por Sonia Helena NovaesGuimarães Moraes e Abdias Vilar de Carvalho a José Gomes da Silva,saudoso companheiro de todos nós, fundador da ABRA e exemplar lutadorpela Reforma Agrária e justiça no campo. Estas merecidas homenagens tive-ram lugar em Porto Alegre por ocasião da Segunda Conferência Internacionalsobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural.

Na seção Ensaios e Debates, primeiramente, há o destaque para o tema"CPMI da Terra", com a publicação de três artigos: "A CPMI da terra na visãodos mandantes", de Sonia Helena Novaes Guimarães Moraes; "O Parlamentoe a criminalização dos movimentos de luta pela terra: um balanço da CPMIda Terra", de Sérgio Sauer, Marcos Rogério de Souza e Nilton Tubino; e "CPMIda Terra e a luta de classes no Congresso Nacional", de João Alfredo TellesMelo, deputado relator. Ainda sobre a CPMI, na seção Documentos consta o"Quadro Comparativo das Recomendações dos Relatório Vencido eVencedor". O material, ora publicado, possibilita aos leitores o conhecimen-to e a análise do que, de fato, ocorreu no Congresso Nacional.

A seguir, o realce é para o tema da "Criminalização e Violência no Campo".Fernanda Maria da Costa Vieira, com o artigo "Estado penal e criminalizaçãodo MST ou de como o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém- uma análise sobre a ação das mulheres da Via Campesina nas terras daAracruz", retrata e discute o comportamento da justiça na sociedade atual, ouseja, mostra que, fundamentalmente, trata-se de "Punir os pobres". O caso daAracruz é retratado. A autora mostra que o comportamento do judiciáriovivenciado pelas mulheres trabalhadoras e por lideranças do MST "se inserenum processo de criminalização da miséria".

Paulo de Tarso Caralo, com o texto "Campanha internacional contra a vio-lência no campo: instrumento de luta pela Reforma agrária e contra a vio-lação dos direitos humanos", denuncia o modelo de desenvolvimento agrário- concentrador, excludente, violento e predador - e divulga importante cam-panha contra a violência e a impunidade, aprovada no 9º CongressoNacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - CNTTR, realizado pelaCONTAG em fevereiro de 2005.

Maria Aparecida Moraes escreve sobre os efeitos da atual fase da agricul-tura capitalista sobre as condições de trabalho. O artigo "A morte ronda oscanaviais paulistas" retrata a exploração imposta aos trabalhadores na feste-jada área do agronegócio da cana-de-açúcar em São Paulo. Coloca emevidência as mortes de trabalhadores por exaustão, discute as condições sub-humanas em que se dá a migração da mão de obra e permite ao leitor rela-cionar os efeitos do modelo agrícola em São Paulo e nas regiões de origemde muitos trabalhadores. No contexto do agronegócio da cana-de-açúcar, otexto denuncia a barbárie no mundo do trabalho.

Por sua vez, Marcelo Pedroso Goulart contribui com artigo "MinistérioPúblico, Meio ambiente e Questão Agrária". No início deste editorial já fize-mos referência à atuação deste Promotor de Justiça e sobre as pressões eataques que vem sofrendo. O texto apresenta "as noções básicas que deveminformar a ação do promotor de justiça no combate às práticas antiambien-tais" e propõe a atuação efetiva do Ministério Público na política agrária. Esteeditorial chama a atenção para a forma oportuna e didática utilizada para adiscussão da relação entre os princípios-essência da Constituição Federal e afunção social da propriedade rural.

O tema "política agrária" também faz parte desta publicação. AriovaldoUmbelino de Oliveira, com o artigo "A 'Não Reforma Agrária' do MDA/INCRAno Governo Lula", complementa a edição anterior da nossa revista, dedicadaao assunto. O artigo rebate os números oficiais, critica a forma enganosa uti-lizada na divulgação e evidencia o não cumprimento das metas do II PNRA.O texto traz importante denúncia sobre grilagem de terras e apropriaçãoindébita de terras públicas da União na região norte.

Sonia Maria P. P. Bergamasco e Luiz Antonio Cabello Norder retomam paraa nossa revista a temática dos assentamentos de reforma agrária. O artigo"Assentamentos e assentados no Estado de São Paulo: dos primeiros debatesàs atuais reflexões" recupera os debates iniciais sobre a questão em SãoPaulo, analisa historicamente os aspectos importantes da organização políti-

Page 6: Revista Abra 33

H o m e n a g e n s

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 10

Editorial

ca dos movimentos sociais rurais e dos programas de assentamentos, e dis-cute a presença do Estado e as alternativas de ações frente às demandas dosassentados.

A questão do tratamento dado pela grande imprensa à problemática daluta pela terra é abordada por Leonardo Soares dos Santos com o texto "Acobertura do jornal O Globo sobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)". O autor parte da concepção de Gramsci sobre a questão do jornalis-mo, analisa os acontecimentos da época e conclui que a forma como o jor-nal abordou os conflitos esteve intimamente ligada aos princípios ideológicosque orientavam a sua atuação como importante instrumento de hegemoniaprivada. As ações dos trabalhadores na luta pela terra, diferente da atuaçãodos grileiros, foi tratada como "agitações perigosas", "obra de agitadores".

Ana Maria Araújo Freire contribui para esta edição com o texto "Por queReforma Agrária?", originalmente escrito para o Boletim do Incra. O artigoapresenta interessante resumo do nosso processo histórico, caracteriza a nos-sa sociedade como autoritária, discriminatória e elitista, e recoloca a relevân-cia da reforma agrária.

A revista também divulga o documento "El Derecho Agrário Debe OrientarEl Cambio de la Estrutura Agrária Em América Latina", mensagem do Prof. Ro-dolfo Ricardo Carrera, presidente da ALADA - Asociación Latinoamericana deDerecho Agrário.

Este editorial termina com uma nota triste. Infelizmente, comunicamos ofalecimento de Hugo Herédia, diretor da nossa entidade. Neste espaço, tantovalorizado por ele, a ABRA presta a sua homenagem ao grande companheirode lutas pela reforma agrária e justiça na sociedade brasileira.

Plínio de Arruda SampaioPresidente da ABRA

José Juliano de Carvalho FilhoEditor

Page 7: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 13

José Gomes da Silva(1924-1996)

Nasceu em Ribeirão Preto/SP. Em 1946, formou-se em agronomia na Es-cola Superior de Agricultura "LUIZ DE QUEIROZ" da Universidade de SãoPaulo/USP, recebendo, nessa ocasião, o Prêmio "Epitácio Pessoa", oferecidopela Sociedade Rural Brasileira, como primeiro aluno de sua turma, o que jáfazia prever a brilhante carreira a se construir. Em 1950 obteve o título de"MASTER OF SCIENCE" pela University of Illinois, USA e, em 1954, diplomou-se como "DOUTOR EM AGRONOMIA" pela Universidade de São Paulo/USP.A partir de 1963, participou de vários cursos internacionais sobre ReformaAgrária, patrocinados pela Organização dos Estados Americanos (OEA), peloBanco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pelo Ministério da Agricul-tura e Ministério das Relações Exteriores de Israel, pelo Instituto Interamerica-no de Ciências Agrícolas da OEA. Foi bolsista da OEA e dos Governos de Is-rael, Itália, França e Espanha para visita aos projetos de Reforma Agrária des-tes países, além de bolsista do "Institute of Developing Economies", em Tóquiono Japão. Visitou, por inúmeras vezes, os países da América do Sul para co-nhecer as experiências de Reforma Agrária, além de outros na Europa, na Ín-dia, na República Árabe Unida, na União Soviética e na China.

Além de empresário rural de sucesso, com diversas premiações oficiais pelaexcelência na atuação relativa ao solo e à produção e como engenheiroagrônomo atuante, José Gomes da Silva tem vastíssimo currículo no serviçopúblico, que iniciou em 1959, como Diretor da Divisão de Assistência TécnicaEspecializada do Departamento de Produção Vegetal, da Secretaria deAgricultura do Estado de São Paulo. Chefe do Serviço de Expansão de Soja,coordenou o programa que lançou as bases econômicas da cultura da soja nosul do país. Organizou e foi o primeiro Diretor da Divisão de Assistência TécnicaEspecializada (DATE) da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo.

Page 8: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 15

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 14

Homenagens

Em 1964, foi Presidente da Superintendência de Política Agrária/SUPRA eresponsável pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária/IBRA. No anoseguinte, foi membro do Grupo de Trabalho de Regulamentação do Estatutoda Terra (GRET), instituído junto ao Gabinete do Ministro do Planejamento eCoordenação Econômica e assumiu a Coordenadoria do Grupo de Trabalhodo Programa Específico de Cooperativas Açucareiras de Reforma Agrária. Devolta a São Paulo, em 1966, organizou e dirigiu a Divisão de Sócio-EconomiaRural da Secretaria de Agricultura do Estado.

Foi o idealizador e fundador da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE REFORMAAGRÁRIA/ABRA, em 1967, foi seu Diretor-Executivo e Presidente reeleito pordiversas gestões.

Foi ainda Consultor da FAO/IICA nos Estudos do Comitê Especial da FAOsobre Reforma Agrária em Roma, na Itália. Consultor da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT) na preparação de informe sobre"CAPACITAÇÃO DE CAMPONESES PARA A REFORMA AGRÁRIA ECOLONIZAÇÃO" em 1972 e Consultor da FAO em 1975 na FundaçãoAlemã para o Desenvolvimento Internacional na preparação do estudo:"NOVAS FORMAS DA ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO AGRÍCOLA" emBerlin, na República Federal da Alemanha.

José Gomes da Silva exerceu o cargo de Diretor da Cooperativa Agrícolade Pirassununga e da Cooperativa Agropecuária de Campinas.

Em 1983, a convite do Governador eleito André Franco Montoro, assumiuo cargo de Secretário da Agricultura e Abastecimento do Estado de SãoPaulo, quando criou o Instituto de Assuntos Fundiários, depois ITESP e hojeInstituto de Terras "José Gomes da Silva", em sua homenagem.

Em 1984, como Vice-Presidente do Conselho Estadual de Energia, ficouencarregado dos programas de biomassa, especialmente do PROÁLCOOL esuas implicações fundiárias.

Convidado pelo Presidente eleito Tancredo Neves, assumiu em 1985, nogoverno Sarney, a Presidência do Instituto Nacional de Colonização eReforma Agrária/ INCRA e coordenou a equipe que elaborou o 1º PlanoNacional da Reforma Agrária da Nova República-PNRA.

Em 1990, foi coordenador da área de Agricultura e Reforma Agrária doGoverno Paralelo da FRENTE BRASIL POPULAR.

A extensa enumeração dos cargos que José Gomes da Silva ocupou nãotraduz, nem de longe, a importância de sua contribuição para a QuestãoAgrária Brasileira.

Importante salientar que, logo no início de sua carreira, fez parte da equipe,do então Secretário de Agricultura do Governo Carvalho Pinto - JoséBonifácio Coutinho Nogueira - que elaborou o PROGRAMA DE REVISÃOAGRÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO na década de sessenta. Ao mesmotempo, sua capacitação para programas de Reforma Agrária e Desenvolvi-mento Rural dava-se em todos os sentidos, tanto por sua participação e con-tribuição na prática dos projetos ensaiados no estado e no país, como nasexperiências internacionais que pôde conferir in loco.

Sobre sua participação na equipe que elaborou o projeto de lei do Estatutoda Terra, era com riqueza de detalhes que José Gomes transmitia sua crençae idealismo na construção da Lei de Reforma Agrária para o país. Em suaspalestras e cursos, nas publicações da ABRA e no próprio livro que escreveu- "A Reforma Agrária no Brasil", (1971), lembrava que, desde o envio da pro-posta legal ao Congresso Nacional, a lei já era fortemente combatida pelasclasses proprietárias de plantão. Dizia ainda que havia se repetido na esferafederal, em 1964, o mesmo repúdio e fortes reações adversas que a RevisãoAgrária do Estado de São Paulo tivera em 1960.

Decepcionado com a inércia e o descaso do governo federal em fazer valero Estatuto da Terra, José Gomes pediu demissão de seu cargo na Presidênciada SUPRA e no IBRA. Juntou-se, então, a outros companheiros desapontadose, em 1967, fundaram a ABRA - organização não-governamental que semanteria, como ele mesmo ironizava, como uma "lamparina sempre acesa" acobrar do governo a Reforma Agrária do ESTATUTO DA TERRA.

O Doutor José Gomes da Silva nunca deixou de prestar contas ao seu paíse à sociedade, de todo o investimento que o Estado e as instituições interna-cionais lhe proporcionaram ao prepará-lo e capacitá-lo como técnico de altonível nos assuntos ligados à Agricultura e à Questão Agrária. Era um obstina-do pela justiça no campo. Como se não bastasse a luta, muitas vezes"quixotesca", em prol da Reforma Agrária - principalmente nos duros temposda ditadura militar no Brasil - preocupava-se em formar novos quadros enovos entusiastas na matéria, fazia questão de passar seus conhecimentos enão media esforços para atender aos inúmeros apelos de universidades, asso-ciações, sindicatos ou de quem quer que fosse e que o quisessem ouvir. Foium eterno sonhador e buscava com persistência as oportunidades para

Page 9: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 17

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 16

Homenagens

exercer efetivamente seus saberes amplos sobre a matéria. Procurava traba-lhar sempre em equipe e, com espírito de liderança, a todos contagiava. Comextremo bom humor, sabia conduzir as mais difíceis situações de enfrentamen-tos ao melhor termo. A ABRA, sob sua direção democrática, foi uma trincheiraimportante e um fórum de discussão, de crítica, de divulgação e espaço deaperfeiçoamento dos estudos sobre a Questão Agrária Brasileira.

A ABRA de José Gomes foi apoio à Luta pela Terra, foi lugar de acolhimen-to e incentivo aos movimentos sociais existentes no país.

O trabalho sério e a respeitabilidade que José Gomes da Silva sempremanteve junto à sociedade, junto aos políticos, com o reconhecimento atédos adversários, motivou, por mais duas vezes, convocatórias para colaborarcom a administração pública em momentos de abertura política.

Assim, em 1983, como já salientamos, José Gomes foi Secretário deAgricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Razões de saúde ense-jaram sua prematura substituição, o que não impediu que criasse logo no iní-cio de sua gestão um programa de assentamento inovador no Brasil. A cri-ação do Instituto de Assuntos Fundiários/IAF, na sua Secretaria, viabilizou oinício dos estudos para a elaboração do "PLANO DE VALORIZAÇÃO DE TER-RAS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO", posteriormente transformadoem Lei Estadual. O Programa propiciou o assentamento de "trabalhadoressem terra" nas áreas públicas do Estado de São Paulo.

A segunda convocação deu-se em 1985 e lá estava o Doutor José Gomes daSilva a presidir o INCRA, com grande expectativa de mudanças. Infelizmente,porém, não era ainda a vez da Reforma Agrária, ampla e massiva, que se pre-conizava e que se pretendia implantar. O Plano Nacional de Reforma Agrária daNova República/PNRA - elaborado com a participação de mais de cem técnicosde todas as regiões do Brasil - fora grosseiramente adulterado por pressão dasclasses conservadoras e José Gomes, mais outra vez, fiel aos seus princípios éti-cos, deixou o governo e registrou "as crises da Reforma Agrária na NovaRepública" em seu segundo livro intitulado: "Caindo por Terra" (1987).

Em 1988, a Reforma Agrária sofreu outro duro golpe, agora na batalha daConstituinte, melhor dizendo, no enfrentamento com os representantes daUnião Democrática Ruralista/UDR, criada pelos setores mais retrógrados e tru-culentos do latifúndio no país. O lançamento do terceiro livro "Buraco Negro:a Reforma Agrária na Constituinte" é importante documento de denúncias a re-gistrar as frustrações da luta dos setores progressistas, defensores da Reforma

Agrária no Brasil. José Gomes ofereceu suas memórias aos trabalhadoresrurais, na certeza de que o aprendizado poderia ser útil em novos embates doporvir. Também publicou sobre o mesmo assunto - "Comentários à Constitui-ção Federal arts. 184 a 191" (1991), em parceria com o ex-Procurador Geraldo INCRA (durante sua gestão em Brasília) - Luís Edson Fachin.

É importante resgatar, neste contexto, as palavras de Plínio de Arruda Sam-paio, sobre as qualidades do amigo Zé Gomes: "[Ele]...tinha uma virtude,hoje quase submersa nesse pântano em que se transformou a política brasi-leira: coragem cívica. Não fazia questão de contrariar os poderosos, não seatemorizava diante deles. Voltou para a sua Santana do Baguaçu, na terra ro-xa de São Paulo, e pôs-se a cuidar do seu café, da sua cana, da laranja, dolimão." Acrescentou também que, depois de ter saído do INCRA e passadomais decepções com a derrota da Reforma Agrária na Constituinte, José Go-mes não desistiu da luta e, "nessa época, passou a colaborar com o PT e como Movimento dos Sem Terra. Para o Governo Paralelo, que Lula havia insti-tuído, coordenou a formulação de três planos: o Plano de Seguridade Alimen-tar; o Plano de Política Agrícola e o Plano de Reforma Agrária. O primeirodeles constitui[iu] a base técnica da campanha do Betinho em 1993 - a Açãoda Cidadania contra a Fome, contra a Miséria e pela Vida e do CONSEA(Conselho Nacional de Seguridade Alimentar).Os outros dois foram as dire-trizes da proposta de governo feita por Lula, em sua Campanha de 1994.Com os Sem-Terra, visitou assentamentos. Com os estudantes, falou em uni-versidades. Com os jornalistas, deu entrevistas. Para o público, escreveulivros. Sempre sobre o mesmo tema: o Brasil precisa fazer a Reforma Agrária.

Plínio disse ainda que "... de todas as qualidades do José Gomes, a que [...]parece mais digna de admiração, foi a capacidade de superar sua condiçãode classe para perceber e jogar-se por inteiro na luta do povo... era um vito-rioso, plenamente instalado em sua classe, em sua profissão, em sua terra.Rompeu com tudo por uma convicção, pela paixão por uma causa justa, peloentusiasmo em ajudar a construir a Nação."

E em toda essa trajetória de engajamento e amor por seus ideais, contoucom o apoio incondicional de sua esposa, Titina Graziano da Silva, e de seusfilhos - a médica Maria Anaites Graziano da Silva Turini, a socióloga VeraLúcia da Silva Rodrigues e o Engenheiro Agrônomo e Economista José Fran-cisco Graziano da Silva, estes últimos responsáveis pela publicação póstumado livro que seu pai já deixara finalizado, intitulado "A Reforma Agrária Bra-sileira na virada do Milênio", publicado em 1977.

Page 10: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 19

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 18

Homenagens

José Gomes da Silva deixou muitos seguidores ainda hoje um tanto fragilizadoscom sua ausência, mas estimulados sempre por seus valores, por sua obstinação,seu espírito de luta, seu civismo e por sua enorme solidariedade ao próximo.

Vivamos seu exemplo e inspiremo-nos em sua história!

Fonte de referências:

Informações de seus familiares

� Documentos e dados da Associação Brasileira de ReformaAgrária/ABRA

� Artigos e Textos publicados na coleção do Boletim e da RevistaReforma Agrária/ABRA

� Depoimento de Plínio de Arruda Sampaio, publicado naRevista da ABRA, vol.26 - jan.-dez. 1996

� Convívio pessoal da organizadora desta síntese

Homenagem a

José Gomes da Silva

Abdias Vilar de Carvalho¹

1. Agradeço com satisfação e emoção o honroso convite para participar des-ta mesa em homenagem a Dr.José Gomes da Silva. Agradecimento sinceroporque outros pesquisadores mais capacitados do que eu, certamente, dig-nificariam melhor este momento e o próprio homenageado.

A inauguração desta Sala com o nome de José Gomes da Silva, no prédioda PUC, por iniciativa do INCRA e nesta Segunda Conferência Internacionalsobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural é rica não apenas de emo-ção, de rememorações, mas em si mesma de muitos simbolismos, dentre osquais assinalo a semelhança entre espaços e seus significados e destinos. Esteespaço de produção do saber e da pesquisa com o locus da reforma agrária,isto é, ocupação de espaços improdutivos para a transformação de ´´enxa-deiros em produtores´´, conforme ele gostava dizer. Ocupar espaços é plan-tar raízes, germinar e reproduzir, em termos mais simples, fazer história. A queGomes se dedicou? O quê ele fez, o quê nos legou? Desde sua formaturacomo agrônomo até os últimos momentos de sua vida buscou pela reflexão,pela divulgação, pela intervenção, pela direção em órgãos e comissões ocu-par espaços para semear a compreensão da realidade nacional, a necessi-dade de sua transformação e neste processo o lugar especial para a transfor-mação da estrutura fundiária brasileira. A reforma agrária para ele é um ver-dadeiro canal de dignificação da pessoa e de cidadania do trabalhador rural:�Um País tão grande deve ter lugar para todos; casa, comida e trabalhopodem derivar simultaneamente de um pedaço de terra, não no fundo daselva, longe dos mercados e das querências do trabalhador rural. A Naçãomoderna que o Brasil pretende ser não pode construir uma indústria deponta em cima de uma multidão de ´bóias-frias´, são suas palavras no dis-curso de posse na presidência do INCRA, em 11 de abril de 1985.

A universidade é o espaço democrático do livre pensar, do livre exprimir, dabusca de novos conhecimentos, técnicas e tecnologias. Aqui habitam e se produ-zem intelectuais. Não foi isto que ele, também, fez com seus quatro importantes

1 - Sociólogo. [email protected]

Page 11: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 21

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 20

Homenagens

livros - A Reforma Agrária no Brasil: frustração camponesa ou instrumento de de-senvolvimento, de 1971, Caindo por Terra, de 1987, Buraco Negro,: a reformaagrária na Constituinte, de 1989, e o livro póstumo, reunindo os seus últimos ealguns inacabados escritos - A reforma Agrária Brasileira na Virada do Milênio,de 1996, como também dezenas de artigos, outras tantas conferências e pales-tras. Viajou de norte a sul deste país e até mesmo para outros países para conhe-cer os problemas locais e as experiências, aliando, portanto, teoria e experimen-tos, reflexão e ação. José Gomes da Silva, Dr. Gomes, Zé Gomes, Gomes, Zésojinha, nomes variados para um único caudal de pessoa, foi um intelectual nosentido universitário, mas foi sobretudo um intelectual orgânico, no significadoque aprendemos com Gramsci. Por isso Ele não é um estranho a este ambiente.Ele não é um intruso nesta platéia. Este espaço está bem dignificado.

Esta homenagem, não ao idealista como alguns assim o titulavam, talvez atépejorativamente, mas ao idealizador, reconstrói, também, parte da trajetória dareforma agrária brasileira. A comemoração de uma memória, e relembro agoraa célebre frase de Santo Agostinho da `memória como o ventre da alma´ (tantasimbologia com terra!) não se inicia e termina no ato solene. Pelo contrário, éum compromisso político para que o silêncio do esquecimento não sepulte defi-nitivamente a luta de milhões de brasileiros pelo acesso a terra, os nomes da-queles que como líderes, dirigentes e simples homem do povo tombaram porquererem ser cidadãos e uma pátria e uma nação mais justa e humana.

Dr.Gomes não é estranho para alguns que aqui estão. Tiveram o prazer desua amizade, do convívio em trabalho, em reuniões, conferências, encontros.Sob sua orientação trabalharam, partilharam esperanças e decepções, procu-raram dados, escreveram notas, falaram, discutiram, em curtos termos, for-maram-se na escola de Gomes para a reforma agrária. Outras pessoas, co-nhecem-no de livros, artigos, de ouvir falar. Importantes aspectos, pois sãorastros do passado no presente.

2. Quem foi José Gomes da Silva: o empresário moderno, o pesquisador einovador e o idealizador e batalhador da reforma agrária.

Antes de refletir um pouco sobre esses três lado de uma mesma pessoa, per-mitam situá-lo no contexto econômico e político do Brasil.

No final dos anos 50, o pacífico e ´´deitado eternamente em berço esplên-dido`´ campo brasileiro começa a rugir com o surgimento das LigasCamponesas, fato político de grande impacto pois pela primeira vez o cam-

ponês torna-se cidadão político, com a expansão das fronteiras paranaenses,criando um clima de insegurança para a oligarquia agrária e à recém eliteindustrial.. Em vários estados, políticos de esquerda ou comprometidos comas reformas de base foram eleitos, Miguel Arraes, Mauro Borges, Brizola. OPartido Comunista e a Igreja Católica, através de sua ala progressista, sededicam à organização de trabalhadores rurais. Claro que todo este clima eainda mais com a reforma agrária se iniciando na Colombia e no Equador,e, sobretudo, com a vitória de Fidel Castro, os Estados Unidos não tardaram,dentro do clima da guerra fria, a fazer intervenções e buscar alianças seguras.Neste contexto e no Governo Kennedy surge a Aliança para o Progresso comomecanismo de cooptação das elites e dos governos latino-americanos para osonho de `façamos as mudanças antes que o povo as faça´. A Conferênciade Punta Del Este,em 1961, no Uruguai, consagra a reforma agrária comouma ação urgente e necessária para a transformação dos países latino-ameri-canos para o desenvolvimento.

Uma das ações da Aliança para o Progresso foi formar quadros técnicos paraa reforma agrária, a seu modelo, é claro. A tensão no campo e a bandeira dasreformas de base vão além da reforma agrária, incluindo reforma urbana, uni-versitária, controle das remessas de lucro das empresas estrangeiras. A intelec-tualidade seja das universidades, seja dos institutos de pesquisa não ficou au-sente deste clima. Nos anos 60 surgem o IBAD com atuação política, inclusivefinanciando campanhas eleitorais, e o IPES, grupo de estudo com figuras int-electuais de peso, como contra-ponto ao ISEB, surgido na época de JK e queagrupava muitos pensadores de esquerda.

O Golpe Militar de 1964, contando com forte apoio da oligarquia agrária,extingue as Ligas, intervém nos sindicatos rurais, prende e tortura campone-ses, exila lideranças rurais e religiosos. Contraditoriamente, três meses após,o Presidente Castello Branco já fala em fazer reforma agrária. Uma das cau-sas do Golpe, a reforma agrária, ´bandeira certa, mas em mãos erradas´ re-torna para o seio do poder militar. Todo arcabouço jurídico e administrativopara executar a reforma agrária vai ser elaborado pelo governos militares.

No período de transição para a redemocratização do país, a reformaagrária é exigência dos trabalhadores através da CONTAG com apoio daIgreja Católica e de alguns partidos políticos, expressivamente o PMDB e PT.Em 1985, com o MST e, posteriormente, com outros movimentos, o cenáriopolítico dos movimentos sociais rurais se amplia, o que significa dizer ,tam-bém, a interlocução com a sociedade e com os governos.

Page 12: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 23

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 22

Homenagens

3. Dr.Gomes o empresário moderno.

Ele sempre ouviu uma indagação tanto pares, quanto pelos estranhospara o fato de ser um empresário rural bem sucedido e se dedicar com afin-co à reforma agrária.

Ouçamos o que ele mesmo disse à Revista Teoria e Debate:

Teoria e Debate: Uma coisa que instiga a curiosidade é aincompatibilidade teórica advinda do fato de um empresáriobem-sucedido na agricultura, como o senhor, ser um dosgrandes bastiões da luta pela reforma agrária.

JOSÉ GOMES DA SILVA - Essa questão não chega a me preocu-par, mas é uma coisa que eu levo na devida conta. As pessoas seadmiram e a explicação que eu mesmo dou, fazendo um retro-specto de como isso aconteceu, é de que sou, basicamente, umprofissional da terra, um engenheiro agrônomo, que viu naquestão fundiária um eixo fundamental do desenvolvimento dopaís, e está convencido disso. Tudo que tenho "escarafunchado",aqui e no exterior, leva a solidificar essa posição. Eu diria que issoé convicção profissional. Quanto ao fato de eu ter quatro fazendasboas, muito boas por sinal, eu não tenho culpa.

Chama atenção nesta resposta sua convicção de que a consciência de umempresário moderno não é incompatível com compromissos sociais e espe-cialmente não compactuar com o atraso na agricultura. Como ele mesmoafirma em vários documentos, nada é mais contraditório com o desenvolvi-mento do capitalismo e de uma sociedade menos desigual do que uma agri-cultura atrasada com terra ociosa.

Em sua entrevista para Teoria Debate ,em certo momento falando sobre aRevisão Agrária, responde a seguinte pergunta:

- Mas a Igreja, naquela época, aprovou um documento quedizia que era melhor fazer a reforma agrária antes que os comu-nistas a fizessem.

- É, o argumento era esse. Tinha de modernizar o capitalismo. Al-guma coisa precisava ser feita e era melhor que fosse feita por nós.Era isso, eu não tinha dúvida nenhuma. (Revista Teoria e Debate)

Sobre reforma agrária seu pensamento empresarial era:

�Uma reforma agrária verdadeira implica a quebra do poder polí-tico que se estriba no sistema latifundista de posse e uso da terrae deve, necessariamente, conduzir a uma redistribuição da rendano setor primário, pela incorporação ao processo produtivo da na-ção de milhões de ´homens-sem-terra� (Reforma Agrária: 183)

Quantos não tentaram confirmar se essa sua teoria tinha um efeito práticoem suas fazendas? Alguns jornais, quando da discussão do I PNRA, tentaramencontrar alguns deslizes em sua prática empresaria.. Nada encontraram. Eraum empresário rural que ocupava produtivamente as terras, cumpria as obri-gações trabalhistas e sociais. (quem estudou Marx pode compreender o quesignifica ser capitalista, mas não atrasado)

4. Dr.Gomes o pesquisador e inovador

Parte da resposta anterior pode ser transcrita para cá, quando afirma:engenheiro agrônomo, que viu na questão fundiária um eixo fundamental dodesenvolvimento do país.

Quem leu Kautsky lembra-se-á do papel da ciência agronômica para odesenvolvimento do capitalismo na agricultura. Quem leu também outrosautores não marxistas contextualizarão o ensino da Economia Doméstica e aExtensão Rural e compreenderão igualmente esta definição de Dr.Gomes.Só que um pouco diferente, e que diferença!. O agrônomo é o educador doagricultor, ele conhece e transmite inovações. Dr. Gomes é de uma escola emque o agrônomo não é o funcionário passivo de um fazendeiro, o vendedorde pacotes tecnológicos e de agrotóxicos. Como cientista deve colocar aciência em função do desenvolvimento econômico mas com função social. Énessa direção que ele colocou todos os seus conhecimentos agronômicos nãoapenas em suas empresas, mas para a reforma agrária. Em todos os seuslivros e trabalhos, a reforma agrária deve ser acompanhada por umaassistência técnica moderna, em áreas que possam responder aos incentivostecnológicos. Ele inverte uma equação muita divulgada no Brasil pelos con-trários à reforma agrária, que se resumia em primeiro educar o homem docampo e criar estruturas tecnológicas para depois dar-lhe a terra.

Essa postura de Dr.Gomes em compreender a reforma agrária como umprocesso de redistribuição da terra com apoio da assistência técnica, da edu-

Page 13: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 25

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 24

Homenagens

cação,etc está presente em vários trabalhos, principalmente na crítica que elefaz a alguns componentes do Grupo do Estatuto da Terra e depois aos diri-gentes do IBRA pela deturpação do conceito de reforma agrária e pela ênfaseno fiscalismo. Para ele, �A desapropriação por interesse social é o instrumen-to destinado a criar novos proprietários, dentro de projetos organicamenteelaborados e convenientemente implementados� (Reforma: 187)

Quando da elaboração do I PNRA da Nova República ele manifestava todapreocupação para que a reforma agrária não caísse em extremos, ou seja, depuro distributivismo de terra, em qualquer lugar e sem condições técnicas e deacesso de mercado, nem, também, criar toda a infra-estrutura para só depoisfazer desapropriação. Tinha também um minucioso cuidado com os custos dareforma agrária, igualmente como instrumento educativo e de sensibilização daclasse média, para mostrar que o assentamento de um trabalhador rural seriamais barato do que determinados empregos industriais, ou com a manutençãode um preso, ou com determinadas ajudas governamentais a bancos.

5. O idealizador e batalhador da reforma agrária.

A) Seu engajamento pela transformação da estrutura fundiária começa naRevisão Agrária, como ele mesmo situa em vários depoimentos e textosescritos.

Nas entrevistas que Dr.Gomes concede a Regina Bruno e Abdias Vilar, em14 de agosto de 1984, publicada na revista Estudos,Sociedade e Agricultura( nº 6 de 1996), também constante da entrevista publicada em Teoria eDebate nº 21 de 1993, bem como em A Reforma Agrária no Brasil, ele expli-ca como surge a Revisão Agrária no Governo Carvalho Pinto, em São Paulo,sua primeira incursão pela questão:

''O Diogo Nunes Gaspar, pessoa ligada a Jango, participou de uma reu-nião das Nações Unidas onde se discutiu o informe da Aliança para o Pro-gresso sobre Reforma Agrária,que trouxe para cá e deu a José Bonifácio, Se-cretário de Agricultura�. �Embora SP não tivesse uma questão agrária tãoséria, tinha uma presença na Federação�. �Eles prepararam um projeto de leiestadual em que o ITR financiaria alguns projetos de redistribuição�.

Se a intervenção da Revisão Agrária se destinou inicialmente para o Vale doRibeira, porque os conflitos do Pontal do Paranapanema não estavam naordem do dia.

Embora não participando diretamente da equipe que redigiu a Revisão Agráriaé convocado pelo Governador para outras funções, especialmente a de interio-rizar a Secretária de Agricultura, pois já trabalhava no IAC. Como resposta, pro-põe: mobilizar pessoas, defender o projeto(...) criar equipes (Estudos:.38). Postu-ra essa que vai estar presente em toda sua atuação. Forma então nove equipespara irem explicar publicamente o projeto: ´E o debate se decidiu em encontrospúblicos que tinham de um lado o pessoal da FARESP e de outro a Confedera-ção dos Trabalhadores no campo.) (pág.38). Claro que os latifundiários procu-raram boicotar a Revisão e se não fossem esses debates públicos em todo o Es-tado, teria havida uma sepultura para um natimorto. Mas,ele persiste e relata quepara convencer os pequenos e médios agricultores explicava �Reforma Agrárianão é coisa de comunista. Reforma agrária foi feita pelos americanos� (Estudos)

Outra atitude sua e que terá grande repercussão: formação de técnicos,inclusive aparelhando com espaços, verbas e programas os organismos emque atuou: SUPRA, IAC, Secretária de Agricultura, INCRA. O atual ITESP teveorigem na sua gestão como Secretário de Agricultura .

Aproveita então o interesse dos organismos internacionais pelo Brasil e trazpara cá o III Curso Internacional promovido pelo Instituto Americano deCiências Agrícolas da OEA, em Campinas, em 1963, sob a colaboração daFAO, do BID e da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo.

Este curso foi sumamente importante porque até hoje encontramos técnicosaposentados ou da ativa que o fizeram e também por que dele saíram os que, posteriormente, comporão o Grupo de Trabalho do Estatuto da Terra, doqual ele fará parte, liderando o outro grupo em oposição aos que reduziama reforma agrária à tributação fundiária.

B) 1964: SUPRA, Estatuto da Terra.

Com a Revolução de 64, o clima de apreensão vai sendo vencido pelaexpectativa criada em torno da figura do Gen. Castello Branco, sempre elo-giado em seus livros, e pelos seus pronunciamentos de compromisso com areforma agrária.

Juntamente com Carlos Lorena, outra pessoa a quem reverenciamos nestemomento, e Fernando Sodero e outros, forma um grupo que elabora algu-mas propostas de reforma agrária para o Governo Militar (Estudos).Posteriormente, é convidado pelo Ministro Roberto Campos para integrarGrupo de Trabalho do Estatuto da Terra

Page 14: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 27

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 26

Homenagens

Em seus depoimentos, ele estabelece uma distinção dentro do GT doEstatuto da Terra, entre o Grupo do Rio e o de São Paulo. O do Rio era ´´umgrupo muito teórico. Eles falavam em reforma agrária em termos da Aliançapara o Progresso . Participavam ...Roberto Campos, Garrido Torres, Paulo deAssis Ribeiro, Simonsen e o Nascimento Silva. Eles tinham recebido umainstrução do presidente Castello Branco,mas não tinham a prática de campo,não sabiam o que era um camponês´´. O Grupo de São Paulo era compos-to por Gomes, Fernando Sodero, Carlos Lorena. Às vezes consultávamos oJosé Augusto Drummond Gonçalves´´. (Estudos:43)

O Grupo do Rio, capitaneado por Roberto Campos, era auxiliado em SPpor �Delfim Neto, Saulo de Almeida Prado, da SRB, Plínio Correa de Oliveira�(Estudos 45)

Com acesso a Castelo Branco, Dr.Gomes, pela sua capacidade técnica,organizativa vai se destacando neste seleto Grupo, embora sem minimizar asdivergências em torno da definição de um reforma agrária baseada na redis-tribuição da terra.

No curto período que presidiu a SUPRA (1964/1965) ele assim resume suaadministração: �Quando eu fui presidente da SUPRA, a minha estratégia foioutra.Eu tentei criar alguns fatos consumados que não pudessem ser desman-chados, como por exemplo desapropriar uma usina, mas não deu tempo. ASUPRA, enquanto estrutura de reforma,era muito tumultuada.Uma de suas li-nhas de atuação era a de criar sindicatos para pressionar pela reforma.Masna parte operativa não funcionava. Na reforma agrária ou você faz de umamaneira impositiva, ou você tem que ganhar a opinião pública� (Estudos: 42)

Ainda, segundo ele, a dificuldade de executar a reforma agrária. pelaSUPRA: �ela foi muito mal formulada do ponto de vista da concepção opera-tiva da reforma agrária. E não tinha nada... Ela foi dificultada também peloracha entre as Ligas Camponesas e os sindicatos, pela Igreja. (Estudos)

CAXANGÁ

Sobre a desapropriação da Usina Caxangá, em Pernambuco, que lhe causousua queda da direção, Ele mesmo nos relatou ,em entrevista , este episódio:

Em reunião em Palácio com Castello Branco e vários ministro e presidentedo BB, Gomes responde a pergunta do Presidente : como é que se resolve

isso (situação em Caxangá): `` O Senhor acabou de promulgar uma lei pelaqual nós podemos desapropriar. Podemos ou não?

-Então amanhã cedo, às sete horas, o senhor me traz o decre-to`` (Estudos:48)

... Eu mandei o Sodero lá para Pernambuco, ele foi ao cartóriopara citar os confrontantes para desapropriar. Sodero chegou,mandei o decreto para Brasília. Fizemos isso em 24 horas. Logodepois, eu sai.´´ (Estudos: 48)

C) O INCRA

Em 1985 com a redemocratização, é criado o MIRAD e Gomes assume apresidência do INCRA. Nos setores de esquerda havia a esperança dele ser oMinistro, mas sonho logo desfeito pelas informações da imprensa enomeação de Nelson Ribeiro, paraense com apoio do Governador JaderBarbalho e da cúpula da Igreja Católica.

A sua nomeação para o INCRA era reivindicação da CONTAG e de am-plos setores sociais e intelectuais.

Empresário, agrônomo, presidente da ABRA, qualidades que não atemori-zavam os trabalhadores e progressistas, mas no meio empresarial a visão eraoutra, radicalmente diferente.

Sua função inicial foi a da formação de grupos interdisciplinares e com pre-sença de representantes de amplos setores da sociedade para elaborarem aproposta. Trouxe para este grupo alguns antigos colaboradores seus naSUPRA, IBRA, IAC,ABRA, Secretária de Agricultura..

Recordo-me de seus extremos cuidados com a precisão dos dados técnicoscadastrais, devendo ser refeitos várias vezes, e com os cálculos dos custos dareforma agrária. Ele sabia que qualquer cochilo seria um prato cheio paramanchetes de jornais. Da mesma forma, embora de atribuição maior doMinistro, pelo seu maior conhecimento, ele não descuidava do apoio políticono Congresso Nacional e na Igreja Católica. Tinha, igualmente, uma grandepreocupação com a opinião pública, considerando elemento importante nabatalha pela reforma agrária. Por isso redigiu pessoalmente , se não me falhaa memória, o Decálogo da Reforma Agrária,ou algo parecido, com pergun-tas e respostas para distribuição nas universidades, sindicatos, escolas.

Page 15: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 29

Homenagens

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 28

Homenagens

Quando demitido, foi levado ao aeroporto por uma massa de funcionáriosdo INCRA, cuja Sede ficou quase vazio. Mais uma vez, o INCRA ficava para-do na história.

D) O Articulador

Em toda trajetória de Dr.Gomes, sem nenhuma dificuldade, vê-se que todoseu engajamento da reforma agrária não deriva apenas de sua consciênciasocial, mas, fortemente, de seu compromisso com os setores sociais do cam-po. Em outros termos, não é um especialista que atua periodicamente em ór-gãos governamentais. É um cidadão, um coordenador, um dirigente que atuaem nome de um grupo social com um grupo social.

Sempre ligado a CONTAG, desde sua criação, mas antes já ouvia outrosmovimentos e lideranças, participava de congressos de trabalhadores e depesquisadores e intelectuais.. Antes do Golpe, esteve no Nordeste, por contaprópria, para conhecer as Ligas,os incipientes sindicatos,o trabalho da IgrejaCatólica, tinha contatos com Padre Melo e Padre Crespo, Federação dosCírculos Operários . Depois, CONTAG,CPT, CNBB, MST.

Como corolário, a sua forma de sempre criar ou incentivar grupos de estu-dos, de ação,de mobilização. A ABRA é face mais visível desta ação. Esta setorna um espaço de agregação de pessoas de vários matizes, de pesquisa-dores universitários e autônomos; uma escola de reforma agrária; um centrode pensamento e de ação. Com seu acervo de documentos nacionais e inter-nacionais sobre a questão fundiária e com o Boletim Reforma Agrária, poste-riormente transformada em revista, a ABRA se torna um centro de pensamen-to, uma escola de formação e um lugar simbólico de resistência;

Vemos com isto como Dr. Gomes tinha plena consciência da necessidadede apoio de grupos sociais, seja de trabalhadores, seja de intelectuais, sejade especialistas, seja de organizações da sociedade civil para que a reformaagrária fosse um projeto de Nação. E aí, ele conhecia e dedicava muitaatenção a necessidade de se conquistar a classe média.:´´

A renitente classe média que, às vezes, não a compreende, irá também seralargada e fortalecida pela incorporação de novos patrícios,hoje alijados doconvívio do desenvolvimento e da cidadania`` (Reforma Agrária, v.15 nº1,1985: 55)

6. Qual o legado que nos deixou?

1) Acreditar que o homem do campo por mais simples e vivendo nas maisprecárias condições será sujeito da reforma agrária. No seu livro a ReformaAgrária , na página, 116, emocionei-me com sua grande compreensão doproblema da consciência social e política das classes subalternas ao exprimirsua opinião como o camponês nordestino estava se transformando:

´´O camponês da Zona da Mata, que comprou um ràdiozinhode pilha ou a sua bicicleta e graças a isso pôde tomar conhe-cimento do mundo exterior e informar-se melhor sobre como oestavam espoliando.... O que importa é que ganharam cons-ciência da própria situação e esta até hoje prevalece`` (A Refor-ma Agrária, pág.116)

2) E , por fim, o legado histórico, da esperança e do compromisso, mascom atuação:

�Reforma Agrária,tal como a democracia, é um conceito absoluto,não comportando adjetivações:a reforma não é nova ou velha, ésimples e unicamente a redistribuição dos direitos sobre a proprie-dade da terra agrícola,em forma ampla,massiva e imediata�. Entre-vista a Mayla Yara Porto( 1995). Reforma Agrária 25,1:221-229.

�Eis porque a Reforma Agrária não é hoje tarefa de um governo,deste novo Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário,e muito menos deste sonhador que assume o INCRA. Deve ser,sim, um mutirão da terra, que engaje o Parlamento para dar-nosrespaldo legal; que motive o Executivo para propiciar-nos recursose mobilize o Judiciário fazendo cumprir a lei. A sociedade comoum todo deve entendê-la e apoiá-la�. (Discurso de Posse naPresidência do INCRA em 11 de abril de 1985.)

BIBLIOGRAFIA

LIVROSGOMES DA SILVA, José (1971) A Reforma Agrária no Brasil: frus-tação camponesa ou instrumento de desenvolvimento?. Rio, Zahar.____________________(1987) Caindo Por Terra: crises dareforma agrária na Nova República. São Paulo, Busca Vida.

Page 16: Revista Abra 33

E n s a i o s eD e b a t e s

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 30

Homenagens

_________________(1989) Buraco Negro: a reforma agrária naConstituição de 1987/1988. Rio de Janeiro, Paz e Terra. _________________(1996) A Reforma Agrária Brasileira na Vi-rada do Milênio. Campinas, ABRA

ARTIGOSGOMES DA SILVA, José.(1985) ´´Reforma Agrária e Nova Re-pública. Discurso de posse de José Gomes da Sílvia na Pre-sidência do INCRA´´. Revista Reforma Agrária. V.15, n 1:54-56 ____________________(1986) Princípios ConstitucionaisBásicos da Reforma Agrária. Revista Reforma Agrária. _____________________(1990). ´´A agricultura socialista emtempos de perestróika´´. Revista Reforma Agrária.Ano 19, n 3deze 89/mar/90: 37-50____________________(1988).´´Reforma Agrária naConstituição federal de 1988: uma avaliação crítica´´. RevistaReforma Agrária Ano 18, n 2 : 14-17_____________________(1995) .´´Estatuto da Terra(ET), 30Anos´´. Revista Reforma Agrária, n 1 vol.25:07-38.

ENTREVISTASBRUNO, REGINA e CARVALHO, ABDIAS VILAR DE.(1996) JoséGomes da Silva. Estudos Sociedade e Agricultura. Nº 6: 36-48.Entrevista gravada em 14/08/1984. SIMÕES, RENATO. (1993) José Gomes da Silva. Teoria eDebate .Nº 21 (mai-jun-jul).MAYLA YARA PORTO (1995) José Gomes. ReformaAgrária,25,1:221-229.

Page 17: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 33

A CPMI da Terra na

visão dos mandantes

Sônia Helena Novaes Guimarães Moraes¹

Triste e assustador é o relato, voto em separado, dos trabalhos da CPMI daTerra, do deputado Abelardo Lupion. Claro sintoma de doentia e arraigadapercepção das questões sociais do país. Reação truculenta que não mede asconseqüências da possibilidade do acirramento dos conflitos pela posse daterra, em virtude da vontade deliberada e conveniente que as classes domi-nantes têm de ignorar a história da apropriação das terras no Brasil.

Mais preocupante ainda é constatar que a atual conjuntura política docenário nacional pode ter, em muito, contribuído para que tal documentopudesse brotar e se tornar majoritário numericamente, na ComissãoParlamentar de Inquérito do Congresso Nacional - (criada pelo requerimen-to nº. 13/2003-CN).

A ABRA persistente e coerente - na sua missão de defender a ReformaAgrária e os trabalhadores despossuídos de terras no Brasil - não poderiadeixar de avaliar esta tramitação e suas conclusões nefastas para a demo-cracia e para a justiça social do país.

Vale, primeiramente, lembrar que a ABRA, através de seus membros asso-ciados, sempre esteve presente e participou com depoimentos nos trabalhosde outras CPIs sobre a questão da Terra. Em 1971 na CPI do IBRA e do INDA(órgãos antecessores do INCRA), e em 1975, na CPI do PROTERRA. NoBoletim da entidade foram publicados vários depoimentos de representantesde diversas instituições na CPI criada no final de 1976 e iniciada em 1977com o objetivo de analisar o Sistema Fundiário Nacional. Na ocasião, foramtemas predominantes no depoimento do Bispo D. José Brandão, de Propriá,em Sergipe a questão da grilagem de terras, dos desapossamentos violentosnas áreas de construção das barragens da CHESF e da CODEVASF, assimcomo a expulsão do homem do campo para a instalação de grandes proje-tos agropecuários. A ABRA publicou em seu Boletim Reforma Agrária, odepoimento do Bispo, Dom Alano Pena, de Marabá -PA, sob o título: Terra

1 - Advogada, agrarista e membro do Conselho Editorial da Revista Reforma Agrária da ABRA.

Page 18: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 34 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 35

A CPMI da Terra na visão dos mandantesEnsaios e Debates

sem homens ou homens sem terras? Onde foi abordada a questão dos con-flitos pela posse da terra na região norte do país, principalmente, junto aoseixos rodoviários das Rodovias Belém-Pará, da Transamazônica; junto ao rioAraguaia, junto aos pólos agropecuários e agrominerais - mencionando asempresas Jarí Florestal Agropecuária Ltda. com área de mais de três milhõesde hectares, ou a Cia. Vale do Rio Cristalino, de propriedade da Volkswagencom mais de 139 mil hectares de terra. Ambas contando com incentivos daSUDAM, para a implantação da pecuária extensiva e, portanto, com grandeaporte de recursos vindos dos órgãos do governo federal, mas sem gerarempregos efetivamente no desenvolvimento desses projetos. O Bispo do Parátambém abordou a questão dos projetos de colonização feitos por empresasparticulares que igualmente receberam incentivos governamentais, mas querelegaram ao trágico abandono, os colonos trabalhadores em suas agrovilas.

Também foi assunto de outra revista da entidade, os depoimentos dos BisposDom Moacyr Grecchi do Acre e Purus, e do Bispo Dom Henrique Froehlich deDiamantino/MT, à CPI do Sistema Fundiário Nacional. E sempre as mesmasquestões conflituosas entre as grandes empresas agropecuárias e os pequenosposseiros dessas regiões do país, foram denunciadas pelas vozes corajosas daIgreja Católica, tais como: a intimidação e a expulsão das populações que vi-viam nessas regiões por 10, 20, 30 ou até 40 anos, a destruição de suaslavouras, a atuação de pistoleiros, toda sorte de arbitrariedades com ou sem aparticipação do poder judiciário, além das ameaças feitas por policiais a serviçoe mando de grandes detentores de terras. Inclusive, foram inúmeras na ocasiãoas denúncias de escravidão de trabalhadores nas áreas de novas ocupaçõespor parte do grande capital agropecuário, em expansão ao norte do Brasil.

Mais outro número do "Boletim Reforma Agrária" de 1977, apresentou o re-lato de José Gomes da Silva, presidente da ABRA, e de José Francisco da Sil-va, presidente da CONTAG - Confederação dos Trabalhadores Rurais naAgricultura. O depoimento de José Gomes da Silva buscou resgatar os dadosrecolhidos nas CPIs anteriores - do IBRA/INDA e do PROTERRA - enfatizandoque apesar deles nada havia, até então, de providências para a solução dosproblemas trazidos ao Congresso Nacional. Foi um depoimento de cunho emi-nentemente político, reivindicando a imediata aplicação do Estatuto da Terra.

Com a lembrança dessas atuações acima citadas - que representam amemória da ABRA, temos a intenção de pautar, mais uma vez, fatos histori-camente repetitivos da grave situação agrária brasileira, que pela inércia depolíticas públicas pela Reforma Agrária - como já é notoriamente sabido -não se resolve e, ao contrário, se exacerba em pleno século XXI.

A omissão por parte do Estado em assumir com ações enérgicas, o com-bate aos desequilíbrios e conflitos fundiários, acaba por incentivar o conser-vadorismo já dominante e a dar margem a resultados alarmantes como vistonesse relatório da CPMI da Terra e, pior, em nome de um falso conceito demodernidade claramente expresso no discurso dos grandes proprietários deterras, representados pelo bloco ruralista no Congresso Nacional.

Mais uma CPI da Terra no Brasil, além das anteriores da década de seten-ta, de oitenta e do ano de 2.000, algumas já comentadas por nós, não pode-ria deixar de evidenciar a consciência nacional da necessidade da ReformaAgrária no país. Além disso, deveria diante da nação avalizar e recomendar:

1. A firme decisão política de implementar a Reforma Agrária no país;2. A indicação dos instrumentos legais para o aperfeiçoamento da legis-lação agrária existente;3. O planejamento concreto das ações;4. Os mecanismos e recursos de execução.

Esse dever foi rigorosamente cumprido pelo texto da equipe do deputadoJoão Alfredo, mas não ocorreu, e muito diferentemente, no conteúdo dorelatório do deputado Lupion, que nega e ignora a questão política e socialancestral e que recomenda, com torpeza, a criminalização dos movimentossociais, que lutam por direitos conquistados e um outro modelo de desen-volvimento. Segundo a lógica da direita é crime combater o neoliberalismoexcludente, ou lutar por cidadania e por terras para trabalhar e produzir. Noentanto, como tem sido muito bem evidenciado por Marcos Rogério deSouza, assessor especial do gabinete do deputado João Alfredo, a instalaçãodesta CPMI teve, por parte dos ruralistas, endereço certeiro: a clara tentativade condenação dos Movimentos Sociais. O relatório Lupion se mostra ávidopor condenar condutas e chega ao extremo de propor que se tipifiquem comoterrorismo as ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Por outro lado, pode-se imaginar que a resistência desses movimentos soci-ais de pressão, mais vigilantes e organizados, está assustando a classe domi-nante que não tem resposta a dar aos desempregados e sem terra, nesse sis-tema de produção agrícola concentrador, exportador de commodities, e ondeo trabalho é prescindível e desprezado - a máquina e a alta tecnologia têmsubstituído mais e mais, com eficiência para o lucro do capital, a mão-de-obra do trabalhador. E sobre isso, podemos fazer aqui um paralelo e men-cionar a análise de - Viviane Forrester - autora francesa do livro "HorrorEconômico", quando faz severas críticas às políticas neoliberais de nossos

Page 19: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 36 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 37

A CPMI da Terra na visão dos mandantesEnsaios e Debates

tempos, no contexto dos recentes protestos de jovens estudantes e desempre-gados em Paris - e diz a escritora: "os ricos não precisam mais dos pobres. Odesempregado virou uma pessoa supérflua. Vivíamos numa civilização queexplorava os homens, agora ela os elimina... o desempregado fica sem alter-nativa. Isso é ditadura. Dizemos que quando alguém perde seu empregoperde sua dignidade. Ao dizer isso culpabilizamos os desempregados.Tornamos a vítima culpada." (Entrevista publicada no jornal O Estado de S.Paulo, em 02/04/2006, caderno J3).

Guardadas as devidas proporções e o contexto peculiar, esse relatório fac-cioso da CPMI sobre a questão agrária no Brasil, procura tornar os desem-pregados e excluídos da atual estrutura da propriedade capitalista, emperigosos agressores da sociedade "moderna" de produção. E a qualquermovimentação ou forma de protesto organizado, que possa chamar aatenção dos poderes públicos para esse débito social - de séculos deopressão - já é motivo para se intentar normas de criminalização que osdetenham na reivindicação e na luta.

Claro que esta tática não é novidade no país, em tempos de ditadura mili-tar foram criados o GETAT e o GEBAM, (Grupo Executivo de Terras doAraguaia e Tocantins e o Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas),órgãos do governo federal para tratar das questões dos conflitos pela posseda terra na região norte. Sob a justificativa de sérios riscos à SegurançaNacional e sob o comando do exército, passaram a administrar os problemasfundiários da região, retirando do INCRA a sua competência legal. Domesmo modo o objetivo foi claro: a militarização da questão da ReformaAgrária no Brasil.

É forte motivo de preocupação para nós - que apoiamos a luta social erespeito aos direitos mais fundamentais do homem - o surgimento e a reaçãodestas forças retrógradas nos dias de hoje, em pleno ou supostamente plenoregime democrático. E mais grave ainda é inferir que, muito provavelmente,essas forças do mandonismo local estejam articuladas com interesses não sóde lastro nacional, mas certamente com interesses do capital transnacional.Todos, que temos consciência e conhecimento da formação histórica e daestrutura de dominação das elites no país, sabemos das desiguais oportu-nidades que tradicionalmente as classes trabalhadoras enfrentam no acessoao emprego e à renda. Infelizmente, a luta e a resistência dos movimentossociais sob forma de protestos e ocupações de terras tem sido a únicamaneira de se fazerem ouvir e, igualmente para exigirem o cumprimento dedireitos, que lhes são garantidos na letra e por força de lei.

O relato da CPMI da Terra do deputado Lupion é a expressão máxima destareação temerosa, desproporcional e descabida. Entendemos que seu conteú-do, propositadamente, tenha ignorado as questões essenciais vinculadas àquestão da terra no país - posto que já não tivesse "a priori", a intenção deabordá-las.

O RELATÓRIO, CONSEQÜENTEMENTE, DESCONHECEU:

1. A necessidade urgente da REFORMA AGRÁRIA, ao recomendar areestruturação do Banco da Terra como alternativa;2. A violência e a ferocidade dos proprietários de terra com relação aotrabalhador rural e aos movimentos sociais no campo;3. As verdadeiras causas dos conflitos sociais pelo acesso à terra;4. A questão da demarcação das terras indígenas;5. A questão inominável do TRABALHO ESCRAVO em todo o país;6. A evidente formação de milícias e segurança privada nas zonas rurais,além de grupos de extermínio patrocinados por proprietários rurais;7. A necessidade urgente de ajustes na legislação agrária brasileira pararesgatar - ao menos - a coerência das normas do Estatuto da Terra de1964 - desvirtuada tanto pela Constituição de 1988 como em decorrên-cia de normativas obstaculizantes às regras da Desapropriação porInteresse Social para fins de RA dos governos de FHC; 8. A necessidade de se regulamentar, através do Projeto de EmendaConstitucional - PEC nº. 438/200, (já aprovado em primeiro turno pelaCâmara dos Deputados), a nova redação do artº. 243 da ConstituiçãoFederal estabelecendo a expropriação de áreas onde for constatada aexploração do trabalho escravo;9. A necessidade de se criar limites ao tamanho das áreas dos latifúndiose de se avençar um tamanho máximo de área para a propriedade da terrano país;10. A exigência do respeito aos DIREITOS HUMANOS nas ações pos-sessórias, em função da legitimidade dos movimentos sociais e emcumprimento dos TRATADOS INTERNACIONAIS E CONVENÇÕES DEDIREITOS HUMANOS dos quais o Brasil é signatário;11. A necessidade de discussão aprofundada sobre a criação da JUSTIÇAAGRÁRIA no Brasil;12. A necessidade da criação da Comissão Permanente de ReformaAgrária e Justiça no Campo da Câmara dos Deputados para conhecer eencaminhar as questões atinentes a esse assunto;13. A necessidade de fiscalização rigorosa dos cartórios de registro de

Page 20: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 38 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 39

A CPMI da Terra na visão dos mandantesEnsaios e Debates

imóveis que cometem irregularidades na titulação de terras no país;14. O presente relatório, na lista de omissões, ignora, igualmente, todasas recomendações sobre a questão urbana constantes do relatório dodeputado João Alfredo, no que concerne às normas do Estatuto daCidade. Inclusive as questões relativas ao direito à habitação, e à políticade regularização das ocupações das famílias de baixa renda e assuntosrelativos à execução de Planos Diretores nos Municípios;

NO ENTANTO, O MESMO RELATÓRIO FOI DETALHADO E MINUCIOSO QUANDO SE TRATOU:

1. De abordar a forma de atuação do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra;2. De recomendar a investigação de supostas denúncias de treinamentode guerrilha e terrorismo no campo;3. De recomendar o indiciamento de lideranças de trabalhadores ruraispor crimes de extorsão, formação de quadrilha e demais delitos ligados "aprática do MST" nomeando seus escolhidos;4. De propor que se tipifique nova figura na ação penal, ao se sugerir ainclusão de um inciso (VII-C), no artigo 1º da lei 8.072, de 25/07/1990,que trata dos crimes hediondos, criando o "ESBULHO POSSESSÓRIOCOM FINS POLÍTICOS"; 5. De propor Projeto de Lei do Senado Federal acrescentando parágrafoao artº. 20 da Lei nº. 7.170 de 14/12/1983, para prever que se con-sidere como ATO TERRORISTA quem invade propriedade alheia com o fimde pressionar o governo;

Quanto ao teor das duas propostas acima, o relatório do deputadoAbelardo Lupion alega o seguinte:

�Na invenção da nova figura penal do "ESBULHOPOSSESSÓRIO COM FINS POLÍTICOS" justifica que: "O pre-sente projeto vem para corrigir essa lacuna legal, e dar aonosso direito penal força para punir essa ação que afronta osprincípios sociais da propriedade, da livre iniciativa, da liber-dade..." Trata-se, em suma, de afronta ao regime representati-vo e democrático e ao Estado de Direito, o que desvela anatureza hedionda desse crime, de efeitos sociais muito maisgraves do que várias condutas previstas no rol da Lei nº. 8.072de 1990".

"Para justificar o enquadramento das ações dos MovimentosSociais como prática de Atos Terroristas diz o seguinte: "NoBrasil, [o terrorismo] tem se manifestado na forma do inclusio-nismo sócio-econômico, por meio do qual associações de tra-balhadores rurais sem terra, por exemplo, reclamam a falta departicipação social e econômica em razão de uma suposta ne-gação estatal de direitos garantidos constitucionalmente, e, pormeio da violência, buscam pressionar o governo a transformartais direitos em realidade concreta". Argumenta ainda que: "Essetipo de terrorismo, próprio da realidade brasileira, não deve seraceito e deve ser punido com o mesmo rigor que as outras for-mas de atos terroristas previstos na nossa Lei de SegurançaNacional..."

A ABRA só pode lamentar a demência das conclusões consubstanciadasneste Relatório do Deputado Abelardo Lupion.

O verdadeiro relato, elaborado pelo deputado João Alfredo e outros par-lamentares, com 780 páginas, apresentou diagnóstico amplo e detalhadosobre a situação fundiária brasileira, e principalmente analisou as verdadeirascausas da violência no campo. Apresentou ainda 150 recomendações aospoderes Executivos, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, e ao Tri-bunal de Contas da União. Propôs uma emenda constitucional, quatro proje-tos de lei, alterações em leis existentes e recomendações para votação de vá-rias proposições em tramitação na Câmara e no Senado. Mas, foi rejeitadopor 13 votos a 8.

Os Ruralistas do Congresso Nacional, mandatários da falsa e controvertidamodernidade, mais uma vez articularam e venceram numericamente. Mas,não será uma vitória de Pirro? Não será uma provocação e uma instigaçãoà intolerância?

Ao menos continua evidente que defendem, sim, a propriedade de subju-gar, a propriedade de especular e a propriedade de explorar o outro serhumano!

Nosso papel, na ABRA e na sociedade brasileira, continua sendo este decriticar os desmandos, de denunciar as injustiças, e principalmente de agluti-nar forças e de manter, unida e solidária, a chama para defender a ReformaAgrária e o acesso à Terra, de habitar, de produzir, assim como à Terra depreservar!

Page 21: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 41

O Parlamento e a criminalização

dos movimentos de luta pela terra:

um balanço da CPMI da Terra

Sérgio Sauer*

Marcos Rogério de Souza**

Nilton Tubino***

INTRODUÇÃO

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbanarepresentou um dos mais importantes componentes da recente conjunturaagrária brasileira. Criada em setembro de 2003, a chamada CPMI da Terraconcluiu suas atividades em novembro de 2005, rejeitando o parecer do rela-tor oficial da Comissão, Deputado João Alfredo (PSOL/CE), e aprovando umvoto em separado apresentado pelo Deputado ruralista Abelardo Lupion(PFL/PR), que dificulta o avanço das políticas de reforma agrária e crimina-liza a luta pela terra, materializada na atuação do Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O voto em separado é tão reacionárioque chega a recomendar a aprovação de dois projetos de lei que tipificam ascondutas de quem ocupa terras como crime hediondo e ato terrorista.

O relatório aprovado representa mais um capítulo do processo de crimina-lização dos movimentos sociais de luta pela terra. O diferencial, porém, é queo ataque a movimentos sociais e a defensores da reforma agrária parte doCongresso Nacional. Dito de outra maneira, a perseguição aos sem-terra,que antes era promovida por setores dos Poderes Executivo e Judiciário,alcança também o Legislativo, tornando ainda mais complexa a superaçãoda chamada questão agrária brasileira.

O voto vencedor reflete, com grande fidedignidade, a atuação de um seg-mento parlamentar, acertadamente caracterizado como Bancada Ruralista.

* Sérgio Sauer é doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e assessor da Senadora Heloísa Helena(PSOL/CE).** Marcos Rogério de Souza é mestrando em Direito pela UNESP (Campus de Franca) e assessor do DeputadoJoão Alfredo (PSOL/CE). Foi assessor da relatoria da CPMI da Terra.*** Nilton Tubino é assessor do Deputado Federal Adão Pretto (PT/RS).

Page 22: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 42 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 43

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Essa bancada atua acima do recorte partidário, formando um dos mais influ-entes grupos de interesse do Congresso Nacional.

O objetivo deste texto é resgatar a história e atuação dessa CPMI e analis-ar o conteúdo dos relatórios vencido e vencedor. Busca ainda explicitar a lógi-ca e ação da Bancada Ruralista que logrou êxito em usar o Parlamento paracriminalizar a atuação dos que lutam por terra.

1. H ISTÓRICO DA CPMI DA TERRA

A CPMI da Terra foi criada por meio do Requerimento nº 13, de 2003, doCongresso Nacional, com o "objetivo de realizar amplo diagnóstico sobre aestrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, osmovimentos sociais de trabalhadores e de proprietários de terras e a identifi-cação dos caminhos para a solução dos problemas que envolvem o tema".

A CPMI nasceu como alternativa a dois requerimentos de criação deComissão de Inquérito, um apresentado na Câmara e outro no Senado,defendidos por parlamentares especialmente do PFL e PSDB.1 Basicamentemotivados pelo episódio do uso de um boné do MST pelo Presidente Luladurante uma audiência de negociação, os objetivos eram simplesmente"investigar invasões de propriedades e prédios públicos realizadas pelo MST".Estava explícita a intenção de utilizar um instrumento parlamentar de investi-gação para criminalizar um movimento social legítimo.

Os termos desses requerimentos e as diversas manifestações de apoio àinstalação das CPIs deixaram claro que outro objetivo era criar um espaço deoposição às políticas - sociais, em geral, e agrárias, em particular - do atualgoverno, além de investigar e incriminar os movimentos sociais agrários,especialmente o MST. Conseqüentemente, além de oposição ao governoLula, o terceiro objetivo das CPIs era criar condições para deslegitimar qual-quer política de reforma agrária no Brasil. O artifício era atacar a um dosprincipais expoentes da luta pela terra - com acusações de promover a vio-lência e desvio de recursos públicos - como forma de desacreditar e deslegi-timar a reforma agrária.

Após um longo processo de negociação, o objeto de investigação dos doisrequerimentos foi ampliado, incluindo um amplo diagnóstico do campo e dosconflitos urbanos pela posse do solo, dando vida a uma comissão parlamen-tar mista de inquérito (CPMI). Sendo mista, a comissão contou com a parti-cipação de representantes das duas Casas do Congresso Nacional2. Instaladaem dezembro de 2003, foi presidida pelo Senador Álvaro Dias (PSDB/PR) econtou com a relatoria do Deputado João Alfredo, então no PT/CE. Emsetembro de 2005, João Alfredo filiou-se ao PSOL/CE.

Nos dois anos de funcionamento, a CPMI realizou muitas reuniões (43 nototal), audiências públicas e viagens (dez no total) para nove Estados daFederação, sendo que realizou duas viagens ao Pará, a segunda em conse-qüência do assassinato de Irmã Dorothy em fevereiro de 2005. Foram visita-dos ainda os Estados de Pernambuco, Goiás, São Paulo, Rondônia, Paraná,Minas Gerais, Mato Grosso e Ceará, visitas motivadas pela existência degraves conflitos agrários.

Nessas reuniões e viagens, foram ouvidos 25 representantes de movimen-tos sociais de trabalhadores rurais e 24 representantes de organizações dasociedade civil e igrejas, inclusive João Pedro Stédile (MST), Manoel dosSantos (CONTAG) e Dom Tomás Balduino (CPT). Foram realizadas oitivascom 19 representantes de movimentos de proprietários rurais, entre eles LuizAntônio Nabhan Garcia (presidente da UDR). Foram ouvidos ainda especia-listas, pesquisadores, profissionais e agentes públicos ligados à questãoagrária (56 no total), destacando-se o então Ministro do DesenvolvimentoAgrário, Miguel Rossetto; o Ex-Ministro da Secretaria Especial de DireitosHumanos, Nilmário Miranda; e o atual presidente do INCRA, Rolf Hackbarth.

Além das oitivas e audiências públicas para tomar depoimentos, os traba-lhos investigativos da CPMI da Terra incluíram também a transferência dos sigi-los fiscais, bancários e telefônicos de entidades e pessoas físicas (21 sigilos nototal), inclusive de fazendeiros suspeitos de envolvimento no assassinato da Ir-mã Dorothy. A partir de requerimentos apresentados pela Bancada Ruralista,foram aprovadas quebras de sigilos bancários e fiscais da AssociaçãoNacional de Cooperação Agrícola (ANCA), da Confederação das Cooperati-vas de Reforma Agrária do Brasil (CONCRAB) e do Instituto Técnico de Capa-citação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA), entidades ligadas ao MST.

1 - De acordo com a Constituição Federal (art. 58, § 3º), um requerimento de CPI necessita do apoio (assina-turas) de 1/3 dos membros da casa do Congresso Nacional onde a mesma será instalada. No Senado, umaCPI contra o MST foi defendida por parlamentares como o senador Álvaro Dias, defesa essa que lhe deu apresidência da CPMI da Terra.

2 - A CPMI da Terra foi composta por doze (12) senadores e doze (12) deputados titulares, com o mesmonúmero de suplentes para ambas as Casas do Congresso.

Page 23: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 44 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 45

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Por iniciativa de parlamentares defensores da reforma agrária, foram que-brados ainda os sigilos bancários, fiscais e telefônicos da União DemocráticaRuralista (UDR nacional e do Pontal do Paranapanema/SP) e do ServiçoNacional de Aprendizagem Rural (SENAR/RS). O objetivo dessas quebras erainvestigar a aplicação e uso de recursos públicos provenientes de convêniosfirmados entre a União Federal e entidades de trabalhadores e de proprie-tários rurais, no período de 1998 a 2005.

Apesar dos discursos enfatizando o papel da CPMI de "investigar toda situa-ção onde poderia haver desvio de recursos", é importante observar que osparlamentares da Bancada Ruralista estavam mobilizados na proteçãoincondicional de entidades e lideranças patronais. Foram derrotados, porexemplo, requerimentos de quebra de sigilos fiscal e bancário do SENARnacional, da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e de LuizAntônio Nabhan Garcia, presidente da UDR.3

Durante os trabalhos da CPMI, vários foram os temas geradores de emba-tes entre a Bancada Ruralista e parlamentares defensores da reforma agrária.Apesar de participar apenas das audiências e reuniões de interesse direto -por exemplo, votação de requerimentos de quebra de sigilos das entidadespopulares ou de oitivas de proprietários rurais -, os deputados e senadoresruralistas negaram sistematicamente a existência de trabalho escravo nocampo brasileiro. O principal argumento é que existe uma confusão tenden-ciosa com situações que não passam de descumprimento da legislação tra-balhista como, por exemplo, o não registro em carteira e jornadas de traba-lho prolongadas.

Outro tema que gerou vários embates foi a negação explícita da violênciano campo. A negação se deu em várias ocasiões como, por exemplo, pormeio da contestação frontal aos dados sistematizados e divulgados pelaComissão Pastoral da Terra (CPT). Isso aconteceu por ocasião do depoimen-to de Dom Tomás Balduino, quando a CPT foi acusada de instigar a violên-cia divulgando dados tendenciosos que supostamente não passam de dis-putas entre os sem-terra. Aconteceu também durante a visita da CPMI aoParaná, quando um "relatório alternativo", resultado de "investigação indepen-dente", foi apresentado colocando os próprios sem-terra como autores dosassassinatos registrados naquele Estado.

Uma das táticas utilizadas pelos ruralistas foi de vazar para a imprensadados que poderiam sinalizar malversação e uso indevido de recursos públi-cos. Em várias ocasiões, antes de qualquer análise na CPMI, aparecerampublicados na imprensa dados relacionados às entidades e movimentosagrários, sempre acompanhados de acusações diretas de desvios de recursos.Nenhuma das acusações foi provada, mas as suspeitas e acusações con-tribuíram para atingir a imagem das entidades dos trabalhadores sem terra.

É importante salientar que a CPMI da Terra foi prorrogada em dezembro de2004, quando havia interesse da Bancada Ruralista na continuidade das in-vestidas contra os movimentos agrários. Diante da apresentação de requeri-mentos, pedindo as quebras de sigilo bancário e fiscal de todos os 28 SistemasNacionais de Cooperativismo (SESCOOPs nacional e estaduais), da OCB e doSENAR nacional4, membros da Bancada Ruralista passaram a discursar sobrea necessidade de encerrar os trabalhos, os quais estariam sendo prorrogadosdesnecessariamente. Esses requerimentos não foram votados, impedindo quea CPMI investigasse o uso de recursos por parte dessas entidades.

Após a leitura do Relatório Final, elaborado pelo Deputado João Alfredo,ocorrida em 22 de novembro, foi apresentado um voto em separado assina-do pelo Deputado Abelardo Lupion.5 A partir da leitura, vários parlamentares- especialmente o senador Sibá Machado (PT/AC) - iniciaram contatos e reu-niões com líderes dos partidos nas duas Casas, e mesmo com Ministros deEstado, buscando construir um acordo que levasse à aprovação do relatóriofinal do Deputado João Alfredo.

Na negociação foram abertas possibilidades ou mesmo propostas altera-ções e mudanças no texto apresentado pelo Deputado João Alfredo. Perce-bendo a conjuntura favorável no Congresso, além de ter a maioria dos votosna CPMI, a Bancada Ruralista e seus aliados se recusaram a qualquer tipo denegociação. Segundo informações de membros dessa Bancada, a únicanegociação "possível" seria aprovar o voto em separado do DeputadoAbelardo Lupion.

No dia 29/11/2005, a reunião foi aberta com a apreciação do relatório doDeputado João Alfredo. Na discussão, os parlamentares da Bancada Ruralista

3 - Foram aprovadas apenas as quebras de sigilo da UDR e do SENAR/RS devido a casos de instigação explíci-ta à violência, no primeiro caso, e de denúncias e investigações do TCU, no segundo caso, por má versação derecursos públicos.

4 - Os requerimentos foram motivados pela obtenção de novas informações sobre problemas na execuçãode convênios por essas entidades, inclusive cópias de procedimentos investigativos do TCU sobre a apli-cação de recursos do SESCOOP em vários Estados.5 - Além de integrantes da CMPI partidários da reforma agrária, o texto do relator, Dep. João Alfredo, foidefendido pelos líderes do PT e do PSOL na Câmara, deputados Henrique Fontana e Luciana Genro, respec-tivamente.

Page 24: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 46 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 47

teceram várias críticas ao relatório, mas o relator rebateu cada uma delas commuita firmeza. Mesmo assim, o texto foi derrotado por 13 votos a oito e umaabstenção. A derrota já era prevista, pois os parlamentares contrários à refor-ma agrária se recusaram a qualquer tipo de acordo e, desde o início, os par-lamentares que apóiam os movimentos sociais eram minoria na CPMI.6

Mencionando a morte de mais um trabalhador rural na luta pela terra,ocorrida no dia da votação, no Estado de Alagoas, o Deputado João Alfredoafirmou que não se sentia derrotado. Emocionado, resumiu bem o momentoe conteúdo do voto em separado:

Fizemos o que era para ser feito: o diagnóstico da situaçãofundiária brasileira, a análise dos processos de reforma agrária,dos movimentos so-ciais no campo. O relatório alternativo pro-posto é a antítese do nosso e se-quer cumpre os objetivos destaCPMI; não valorizou as visitas aos estados, não reconhece osproblemas fundiários nem apresenta propostas para resolvê-los.É um retrocesso de cem anos.

Vencido o seu relatório, João Alfredo anunciou que seu trabalho estavaencerrado e que não ficaria na reunião para compactuar com um texto quecriminaliza as vítimas dos conflitos agrários. Lembrou ainda que os que der-rotaram seu relatório eram exatamente os mesmos parlamentares que vêmbarrando a votação da Proposta de Emenda Constitucional nº 4387/2001,que prevê a expropriação de áreas onde for constatada a exploração de tra-balho escravo. Na seqüência, os parlamentares defensores da reformaagrária, após manifestações indignadas, acompanharam o relator e se reti-raram da reunião.

A senadora Ana Júlia Carepa (PT/PA) afirmou que o voto em separado erauma excrescência. Por ser do Pará, Estado com mais assassinatos de traba-lhadores do campo, ela não poderia compactuar com aquela votação e, mui-to emocionada, rasgou o texto do Deputado Abelardo Lupion. A reunião con-tinuou somente com os ruralistas e seus apoiadores. Os senadores HeloisaHelena (PSOL/AL) e Eduardo Suplicy (PT/SP) foram designados para perma-necer na sessão, apresentando destaques para retirar algumas questões gra-ves do voto em separado que criminalizavam o MST.

O voto em separado de Lupion foi aprovado com 12 votos favoráveis, tendoo voto contrário do Senador Eduardo Suplicy (integrante da CPMI que semprevotou com o Deputado João Alfredo).7 Na seqüência, foram votadas as pro-postas de supressão apresentadas pelos senadores Eduardo Suplicy e HeloísaHelena, sendo que alguns foram acatados pelos parlamentares presentes.

O relatório recomendava, por exemplo, o indiciamento de cinco dirigentesnacionais do MST por "crimes de formação de quadrilha, extorsão e demaisdelitos ligados às práticas do Movimento (João Pedro Stédile, Gilmar Mauro,João Paulo Rodrigues, José Rainha Juniur e Jaime Amorim)". Essa recomen-dação foi retirada do documento final no momento da votação, permanecen-do o indiciamento de dirigentes da ANCA e da CONCRAB.

As proposta de indiciamentos não vieram acompanhadas de indícios dematerialidade ou de autoria dos delitos. Eram, portanto, frágeis, imprestáveispara alicerçar uma eventual denúncia criminal. Em primeiro lugar, várias pes-soas acusadas nem foram ouvidas e não estavam sendo objetos de investi-gação pela CPMI. Em segundo lugar, não há qualquer acusação contra asmesmas ao longo do texto do relatório de Lupion. Conseqüentemente, o indi-ciamento teve um cunho exclusivamente político e ideológico, explicitando odesejo de destruir um movimento social legítimo por meio da criminalizaçãode suas lideranças.

É preciso deixar registrado que vários representantes de movimentos de tra-balhadores e dirigentes e funcionários da ANCA e da CONCRAB foram hu-milhados pelos parlamentares ruralistas durante os depoimentos prestados àCPMI da Terra. Em vários momentos, explicitando todo o preconceito a lider-anças populares, parlamentares utilizaram palavras torpes e fizeram acu-sações inverídicas contra os depoentes, os quais se mantiveram calados.Diante da truculenta ofensiva da Bancada Ruralista, a maioria dos depoentesadotou o direito constitucional de não responder a nenhuma das questões ouacusações, porque entendiam que já haviam sido condenados pelos ruralis-tas e pela grande imprensa.

6 - Votaram a favor deste relatório os deputados Zé Geraldo (PT/PA), Luci Choinack (PT/SC) e Jamil Murad(PCdoB/SP) e os senadores Ana Júlia Carepa (PT/PA), Eduardo Suplicy (PT/SP), Sibá Machado (PT/PA) e ValdirRaupp (PMDB/RO). Apoiaram o relatório, sem direito a voto, os deputados suplentes Adão Pretto (PT/RS),Anselmo (PT/RO) e Jackson Barreto (PTB/SE), bem como as senadoras suplentes Fátima Cleide (PT/RO) e SerysSlhessarenko (PT/MT).

7 - Votaram contra o relatório apresentado pelo relator e foram favoráveis ao voto em separado os senadoresCésar Borges (PFL/BA), Flexa Ribeiro (PSDB/), Gilberto Goellner (PFL/), Juvêncio da Fonseca (PDT/MS),Mozarildo Cavalcanti (PTB/MT) e Wellington Salgado (PMDB/MG), bem como os deputados Abelardo Lupion(PFL/PR), Josué Bengtson (PTB/PA), Luiz Carlos Heinze (PP/RS), Max Rosenmann (PMDB/PR), Moacir Micheletto(PMDB/PR), Ônyx Lorenzoni (PFL/RS) e Xico Graziano (PSDB/SP).

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 25: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 48 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 49

Usando a lógica de condenar, perante a opinião pública, por meio do vaza-mento de informações sigilosas para a grande imprensa,8 além dos dirigentes,vários empregados e ex-empregados da ANCA e da CONCRAB foram acu-sados de "laranjas" e de enriquecimento ilícito antes das oitivas para ouvi-los.Ao final, estas pessoas - gente pobre que trabalhou ou trabalha como office-boys e em serviços gerais nas entidades - não foram indiciadas, nem mesmotiveram qualquer peso ao longo do relatório do Deputado Lupion.

O relatório vencido do Deputado João Alfredo9 foi encaminhado a váriasinstâncias do Estado como, por exemplo, ao Presidente do Supremo TribunalFederal, à Procuradoria Geral da República, ao Senado Federal e à Câmarados Deputados. Uma cópia foi entregue à Relatora Especial da ONU sobredefensores de direitos humanos, por ocasião de sua missão ao Brasil, erelatórios foram enviados às embaixadas dos países solidários aos movimen-tos sociais que lutam pela terra no Brasil.

2. CONTEÚDO DO RELATÓRIO DO DEPUTADO JOÃO ALFREDO

Elaborado e apresentado pelo relator da CPMI Deputado João Alfredo, orelatório final possui 750 páginas (além dos anexos), nas quais constam umamplo diagnóstico sobre a situação fundiária brasileira, as causas da violên-cia no campo, os programas e ações de reforma agrária e a legislação exis-tente na área. Um capítulo é dedicado à reforma urbana, com especial des-taque ao despejo violento ocorrido em Goiânia, em 2005. Ao final, faz 150recomendações aos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, ao MinistérioPúblico e ao Tribunal de Contas da União (TCU).

O documento está divido em cinco partes. A primeira destina-se a apresen-tar a CPMI da Terra: constituição, objetivos, prazos e composição, além desintetizar as principais reuniões e viagens realizadas, indicar a documentaçãorecebida e as pessoas ouvidas pela Comissão.

A segunda parte representa o momento analítico do relatório no que tangeaos aspectos gerais da questão agrária, ocasião em que enfrenta um dosobjetivos para o qual a CPMI foi constituída. O "diagnóstico da questãoagrária brasileira" centra-se na problemática da estrutura fundiária, da violên-cia no campo, do trabalho escravo, dos movimentos sociais trabalhadores,das organizações ruralistas e da reforma agrária e seu ordenamento jurídico.O relatório vencido afirma que a questão agrária brasileira é marcada pelaconcentração fundiária, pelos conflitos coletivos por terra e pela violênciacontra trabalhadores rurais. Revela que 1,6% dos proprietários com imóveisacima de mil hectares detêm 46,8% do total da área cadastrada pelo INCRAno País. Por outro lado, afirma que mais de três milhões de famílias de traba-lhadores rurais procuram um pedaço de chão para trabalhar.

Segundo o documento, a alta concentração da propriedade da terra dá ori-gem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em umaestrutura agrária inibidora do desenvolvimento, entendido como crescimentoeconômico, justiça social, sustentabilidade ambiental e extensão da cidadaniademocrática à população do campo. O monopólio da propriedade e posse daterra por uma pequena parcela da população é a grande responsável peloêxodo rural, o inchaço das grandes cidades e, acima de tudo, o alto grau demiséria e pobreza em que se encontram milhões de brasileiros.

A violência é analisada a partir dos números, origens e causas. O relatório fezuma distinção entre violência e conflito. O segundo é definido como fruto da lutahistórica dos excluídos para trazer à esfera pública demandas reprimidas,enquanto a violência é a resposta (como uma reação ilegítima) ao conflito. Naraiz de ambos, no entanto, está a concentração fundiária e a impunidade.

Depois de asseverar que a concentração fundiária é a principal responsá-vel pelos conflitos por terra ocorridos em todas as regiões do Brasil, assimcomo pelos altíssimos índices de violência existente no meio rural, o relatóriosustenta que a impunidade dos assassinos estimula a prática da violência. Umdos exemplos citados é que, nas duas últimas décadas, 1.349 lavradoresforam assassinados em decorrência da luta por terra, em 1003 ocorrênciasregistradas. Apenas 75 dessas ocorrências resultaram em julgamentos; 64executores foram condenados e 44 absolvidos. No caso dos mandantes, ape-nas 15 foram condenados.

De acordo com o relator, há várias modalidades de violência contra os tra-balhadores. As mais comuns e visíveis são as praticadas por agentes públicos- sobretudo policiais - e as decorrentes da ação do poder privado. Nessas,

8 - Não se trata aqui de negar que as CPIs são também - além de fóruns investigativos - instrumentos de infor-mação da sociedade e de formação da opinião pública (inclusive porque estas Comissões devem estar direta-mente relacionadas com o interesse público), mas de uma tática de vazar informações sigilosas e não devida-mente investigadas com o propósito de antecipar a condenação dos movimentos sociais e suas lideranças per-ante à opinião pública.9 - A integra deste relatório está disponível no site do Dep. João Alfredo (www.joaoalfredo.org.br) e uma versãoestá sendo publicada pelo Senado Federal sob o título "Reforma agrária quando? Relatório da CPI revela ascausas da violência no campo".

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 26: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 50 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 51

incluem-se a pistolagem, as milícias privadas e as falsas empresas de segu-rança privada. Os proprietários rurais, ante à crescente mobilização dos tra-balhadores sem terra, buscam proteger seus interesses por meio de medidasmuitas vezes ilegais, tais como o uso de armas de fogo, inclusive de uso restri-to, a pistolagem e a organização de milícias privadas, acirrando os conflitose gerando a violência no meio rural brasileiro.

Na seqüência, aborda a demanda por terra por parte de milhões defamílias. De acordo com dados do relatório, cerca de 170 mil famíliasaguardam a realização da reforma em acampamentos à beira de rodovias ouem áreas ocupadas, enquanto aproximadamente 840 mil estão cadastradaspelo INCRA como possíveis beneficiárias. A demanda potencial por terra,porém, é bem maior. Usando como referencial os trabalhadores sem acessoà terra, o montante é de 3,1 milhões de famílias.

O relatório parte da premissa de que os movimentos sociais e as organiza-ções sindicais de trabalhadores rurais que pressionam os poderes públicospela realização da reforma agrária são herdeiros de outras experiências demobilização de lavradores e legatários da resistência indígena e negra. Odocumento afirma que essas pressões, manifestadas por meio de marchas,acampamentos à beira de rodovias e, principalmente, ocupações de imóveisrurais improdutivos, são legítimas e o melhor meio de evitá-las é implemen-tar uma ampla e massiva reforma agrária.

De acordo com o documento, o Brasil possui disponibilidade de terra sufi-ciente para assentar mais de um milhão de famílias. De acordo com o INCRA,as grandes propriedades declaradamente improdutivas totalizam cerca de133,772 milhões de hectares, ao passo que a estimativa de terras devolutaschega ao número aproximado de 172,946 milhões. As terras públicascadastradas por diferentes órgãos federais, e que poderiam ser destinadas aoassentamento de trabalhadores, somam 4,373 milhões de hectares.

As diferentes modalidades que poderiam ser disponibilizadas à reformaagrária totalizam 311,1 milhões de hectares, ou 36% do território nacional.Assim, a meta de assentar 400 mil famílias, traçada pelo Governo Lula no IIPlano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), não deixaria de ser atendida porfalta de terra. Tal meta, segundo o relatório, corre o risco de não ser atingidaem função da manutenção da atual política econômica, que drena os recur-sos orçamentários para o pagamento dos serviços da dívida pública federal.

A lentidão do processo de reforma agrária decorre de vários fatores, entreos quais a inadequação da legislação. Por esse motivo, o relatório reuniu asreflexões suscitadas por especialistas ouvidos pela CPMI acerca dos marcos le-gais da reforma, tentando identificar os gargalos e principalmente as propostaspara solucioná-los. O resultado foi a sistematização de um fértil conjunto derecomendações legislativas para agilizar o processo de reforma agrária. Sãosugestões de alteração da Constituição Federal, do Código de Processo Civilda Lei nº 8.629/93, da Lei Complementar nº 76/93, entre outras.

O relatório apresenta ainda um quadro sobre os movimentos sociais agrários eorganizações ruralistas e faz um diagnóstico das políticas governamentais de refor-ma agrária, implementadas pelos diferentes governos desde João Goulart (1963-1964). Dedica especial atenção às políticas governamentais recentes, ou seja, ana-lisa os resultados dos programas de reforma agrária das gestões de FernandoHenrique Cardoso (1995-2002) e de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006).

A terceira parte do documento apresenta relatos extensos sobre as dez via-gens que a Comissão realizou a nove estados brasileiros, incluindo a análiseda estrutura fundiária, das relações de trabalho e sugestões de encami-nhamentos específicas para cada caso. Destaca-se o Estado do Pará, inclusi-ve pelo fato de ter ficado em evidência com o assassinato da Irmã DorothyStang, após esta ter comparecido à CPMI para denunciar a violência contraos trabalhadores rurais e suas lideranças naquele Estado. O documento tratatambém dos estados de Pernambuco, São Paulo (Pontal do Paranapanema),Rondônia, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso, Ceará e Amapá.

Realizando um de seus objetivos, o relatório dedica a quarta parte paradescrever as atrocidades praticadas pela polícia durante o despejo violento demais de 14 mil famílias de sem-teto da ocupação Sonho Real, em fevereirode 2005, em Goiânia, do qual restaram três mortos e vários feridos.

A quinta parte do relatório destina-se às recomendações e encaminhamen-tos de natureza administrativa, legislativa, judicial, ao Tribunal de Contas daUnião e ao Ministério Público. Todas visam a mesma coisa: coibir a violênciae a impunidade e agilizar o processo de reforma agrária e urbana.

Entre outras recomendações, o relatório pede que o Poder Executivo garan-ta a integridade física dos defensores de direitos humanos ameaçados demorte. Além disso, recomenda a inclusão de 50 ativistas residentes no Estadodo Pará no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos daSecretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 27: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 52 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 53

3. CONTEÚDO DO RELATÓRIO DO DEPUTADO ABELARDO LUPION

O voto em separado, apresentado pelo Deputado Abelardo Lupion(PFL/PR), foi aprovado como relatório final da CPMI da Terra. É fundamentalter claro que o conteúdo do referido voto é a materialização do pensamentoda Bancada Ruralista. O seu autor é um de seus mais aguerridos represen-tantes e é conhecido no Parlamento10 por defender intransigentemente oscaloteiros do crédito agrícola e grandes proprietários rurais, especialmenteaqueles que defendem o uso da força e de armas para manter o direito abso-luto de propriedade, muitos acusados de criar milícias privadas.

O voto em separado dedica mais de 200 de suas 365 páginas ao MST.Dois terços das páginas restantes descrevem as atividades da CPMI e repro-duzem acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU) que constataramsuperfaturamento em desapropriações e outras irregularidades na atuação doINCRA, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).11 Naverdade, esse relatório é uma peça de acusação mal redigida, que tem comoúnicos objetivos criminalizar a luta pela terra materializada na atuação doMST e inviabilizar a implementação da reforma agrária.

Toda a problemática fundiária brasileira, os processos de reforma agrária eo ordenamento jurídico da terra são tratados em menos de 40 páginas. Naverdade, o primeiro capítulo é uma cópia fiel de trechos do relatório doDeputado João Alfredo. Afirma inclusive que "este Relatório analisou os recur-sos federais repassados para o Serviço Nacional de Cooperativismo(SESCOOP) e Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR)". No entan-to, não faz nenhuma referência a irregularidades detectadas nos repasses derecursos de entidades patronais, nem mesmo aquelas resultantes da quebrade sigilo do SENAR/RS.

O segundo capítulo apresenta dados estatísticos do IBGE que revelam a con-centração fundiária existente no Brasil. Não faz, no entanto, qualquer discussãosobre as causas e conseqüências dessa concentração. Sem acrescentar nada denovo em relação ao anterior, o terceiro capítulo trata do panorama agrárioregional e repete os dados da concentração fundiária em cada região.

O quarto capítulo trata das experiências recentes de reforma agrária, dedi-cando apenas sete páginas para relatar a história de programas de reformaagrária no Brasil. Sem falar em erros crassos como, por exemplo, definir co-mo "nova república" o período anterior ao regime militar (p. 65), esse relatórioafirma que o Governo FHC, de 1995 a 2002, assentou 635 mil famílias (p.67), reforçando um dado que não é usado nem mesmo como peça de pro-paganda oficial do governo anterior.

O quinto capítulo é dedicado ao ordenamento jurídico da propriedadefundiária. Também é uma cópia resumida e distorcida do relatório apresen-tando pelo Deputado João Alfredo. O sexto capítulo, por sua vez, é a simplesreprodução de dois acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU) que ver-sam sobre a atuação do INCRA. Os acórdãos referem-se a irregularidades naatuação do órgão e a superfaturamento em "processos relativos a desapro-priação de imóveis, formalizados no período de 1996 a 2000" (p. 109).

Formulado como uma análise da violência no campo nos nove Estadosinvestigados pela CPMI, o sétimo capítulo é um acinte. Possui apenas 12páginas, nas quais não há qualquer referência à morte de trabalhadores, tra-balhadoras e lideranças populares. Apresenta apenas o ponto de vista dasentidades ruralistas, ignorando completamente a existência de milícias pri-vadas, trabalho escravo e grilagem de terras no meio rural brasileiro.

Sobre os estados de Pernambuco, por exemplo, cita somente a morte deum soldado da Polícia Militar, omitindo que, de 2003 a 2005, foram mortos15 lideranças de trabalhadores rurais. No caso do Pará,12 não faz qualquermenção aos conflitos, depoimentos e denúncias feitas à CPMI, nem sequermenciona a morte de irmã Dorothy, motivo de uma segunda visita da Co-missão ao Pará. Quanto à situação no Estado do Paraná, desconhece de-núncias contra fazendeiros e entidades ruralistas, a exemplo da UDR esta-dual, do Primeiro Comando Rural (PCR) e do Sindicato Nacional dosProdutores Rurais (Sinapro), reduzindo o relato à controvérsia envolvendo adesapropriação da fazenda Araupel, concluindo pela inviabilidade da im-plantação do assentamento.

É digno de registro que o Deputado Lupion foi um defensor incondicionaldo Cel. Copetti, ouvido duas vezes pela CPMI da Terra. Esse militar se encon-trava preso no Paraná, acusado de tráfico de armas e formação de milícias10 - Em março de 2006, o deputado Abelardo Lupion - antigo presidente da UDR do Paraná - foi eleito,

como representante do PFL, presidente da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados para agestão 2006.11- Curiosamente, o texto do relatório não informa que as irregularidades encontradas pelo TCU no InstitutoNacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) são relativas à administração do Governo FHC (1995-2002).

12 - É importante lembrar que o Deputado Lupion, acompanhou apenas duas das 10 viagens realizadas pelaCPMI, sendo que uma foi a seu próprio Estado, o Paraná.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 28: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 54 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 55

para combater sem-terra com financiamento de fazendeiros - inclusive inte-grantes da UDR13 - no Estado.

O oitavo capítulo é reservado exclusivamente à análise do Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O mais longo capítulo do relatórioaprovado, com mais de 208 páginas (de um total de 360 páginas), faz umainfinidade de acusações ao MST sem qualquer preocupação com sua com-provação.

O principal argumento, repetido à exaustão, é que o MST é "um movimen-to revolucionário de esquerda" (pp. 147 e 151), e que "sua meta é revolu-cionária socialista" (pp. 150 e 167), que "a filosofia do MST é revolucionáriade esquerda" (p. 167).

A Constituição Federal reafirma o Brasil como um "Estado democrático dedireito" (art. 1º), portanto, tem como fundamento o "pluralismo político"(inciso V). Em seu art. 5º (sobre os direitos e deveres individuais e coletivos),a CF garante o direito de "livre manifestação do pensamento" (inciso IV) eassegura que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosaou de convicção filosófica e política" (inciso VIII). Não constitui nenhum crimeou ilegalidade, portanto, ser socialista, acreditar na revolução, muito menoster uma ideologia de esquerda.

Na verdade, o voto em separado está eivado por uma concepçãoautoritária, preconceituosa e fascista, pois afirma categoricamente que sersocialista ou de esquerda é crime e um "pensamento fora da lei". Estabeleceuma relação entre ser "um movimento revolucionário de esquerda" que "nãoreluta em desviar recursos, públicos ou privados" (p. 147). O documentoaprovado estabelece uma ligação direta entre ser revolucionário e ser ladrão,mesmo sem provas de que houve desvio ou uso indevido de recursos porparte do MST.14

Nesse tópico, são reproduzidas partes de depoimentos prestados pelos re-presentantes da ANCA, CONCRAB e ITERRA, entidades parceiras do MST,assim como os levantamentos iniciados pelo Tribunal de Contas da União

(TCU) nos convênios firmados por essas entidades com órgãos e entidadesfederais. O documento aprovado pela CPMI trata os relatórios preliminares,elaborados pelos analistas de controle externo do TCU, como se fossem ma-nifestações daquela Corte de Contas.

Desconsidera ainda que as normas internas do TCU estabelecem que osprocedimentos de auditorias devem atender a várias etapas e que os re-latórios enviados à CPMI não superaram a primeira etapa. Faz vistas grossas,por exemplo, a ofícios subscritos pelo próprio Presidente do TCU, MinistroAdylson Motta, que, ao encaminhar os relatórios à Comissão, assevera: "poroportuno, ressalto que, por tratar-se de informações preliminares, ainda nãoapreciadas conclusivamente por esta corte, são de caráter reservado".

Ignorando a recomendação explícita do Ministro do TCU, ou mesmo a fra-gilidade das "conclusões" das investigações da CPMI da Terra, o relatórioreforça a acusação de desvios e recomenda a suspensão imediata de todosos convênios - e a conseqüente suspensão de novos repasses - além dadevolução dos recursos públicos alocados nos trabalhos das entidadesagrárias. A recomendação de cancelamento indiscriminado inviabilizaria vá-rios programas sociais como, por exemplo, o PRONERA, voltado à alfabeti-zação de jovens e adultos. Além da tática de desacreditar as entidades dostrabalhadores junto à opinião pública, essa recomendação visa inviabilizarfinanceiramente qualquer ação voltada para a melhoria das condições devida da população pobre do campo.

Outro fato grave é que o voto em separado só faz menção aos convênios dasentidades de trabalhadores. Não faz qualquer alusão aos convênios firmadospela Sociedade Rural Brasileira (SRB) e Organização das Cooperativas Brasi-leiras (OCB), nos quais o TCU também constatou várias irregularidades, muitasdelas idênticas àquelas que apareceram nos convênios das entidades de traba-lhadores. O documento aprovado possui um peso e duas medidas: condenaaçodadamente as entidades de trabalhadores e finge que não sabe, não viu,não conhece os mesmos problemas que envolvem as entidades patronais. Esseé mais um elemento que revela o objetivo de apenas criminalizar as entidadesde trabalhadores e não "identificar caminhos para a solução dos problemas" nocampo, conforme estabeleceu o requerimento que criou a CPMI.

A terceira parte do texto aprovado trata das recomendações e encaminha-mentos. Reproduz algumas das recomendações contidas no relatório do De-putado João Alfredo, acrescentando outras visando criminalizar o MST e osdefensores de direitos humanos ligados à reforma agrária. Isso acontece, por

13 - Segundo registros da Polícia Militar do Paraná, Comando do Policiamento da Capital, algumas horasantes da oitiva no Paraná, realizada no dia 18/04/2005, o Cel. Copetti recebeu as visitas de Marcos MenezesProchet (presidente da UDR estadual), Tarcisio Barbosa dos Santos (dirigente da FAEP) e Francisco C. Gomes,entre outros.14 - O objetivo central das acusações e "investigações" da Bancada Ruralista - explicitando em vários discur-sos - era demonstrar que o MST usa recursos públicos para organizar e financiar "invasões" de terras e ameaçara propriedade, o que não ficou demonstrado pelas investigações da CPMI da Terra.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 29: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 56 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 57

exemplo, quando o documento recomenda o indiciamento de um dirigente(Pedro Christófolli) e de um ex-dirigente da ANCA (José Trevisol) e do Presi-dente da CONCRAB (Francisco Dalchiavon, o Chicão).

O relatório aprovado chega ao cúmulo do reacionarismo ao recomendara aprovação de dois projetos de lei que tipificam as condutas de quem"invade" propriedade alheia para "pressionar o governo a fazer ou deixar defazer" alguma coisa como crime hediondo e ato terrorista. O texto doDeputado Lupion, ao classificar a ocupação de terras nesses termos, torna-seo primeiro documento oficial do Parlamento brasileiro que incorpora a "dou-trina Bush de guerra contra o terror".

Merece destaque os termos que justificam os referidos projetos de lei tipifi-cando as ocupações de terras como crime hediondo. Após se referir equivo-cadamente a diversas motivações de atos de terrorismo no Oriente Médio enos Bálcãs, os termos da justificação do projeto são:

O terrorismo, que é, eminentemente, um movimento político, seadapta à realidade social, econômica e cultural do local ondese exterioriza. No Brasil, tem se manifestado na forma do inclu-sionismo sócio-econômico, por meio do qual associações detrabalhadores rurais sem-terra, por exemplo, reclamam a faltade participação social e econômica em razão de uma supostanegação estatal de direitos garantidos constitucionalmente, e,por meio da violência, buscam pressionar o governo a transfor-mar tais direitos abstratos em realidade concreta (pp. 369s -destaques nossos).

Estabelecer uma relação direta entre as reivindicações e lutas de movimen-tos populares legítimos por inclusão social e econômica com terrorismo é deum reacionarismo inaceitável. Representa, na verdade, a defesa, simples eexplícita, da exclusão social, uma chaga da realidade brasileira, em nome dodireito supremo de propriedade.

Classificando as ações do MST como atos terroristas que assustam os pro-prietários e reforçando a defesa incondicional da propriedade, o texto de jus-tificação do projeto ainda afirma:

Esse tipo de terrorismo, próprio da realidade brasileira, nãodeve ser aceito e deve ser punido com o mesmo rigor que asoutras formas de atos terroristas previstas em nossa Lei de

Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 1983), pois, de formaequivalente, afeta a ordem constitucional estabelecida, a inte-gridade territorial, o regime representativo e democrático e oEstado de Direito (art. 1º, I e II, da Lei de Segurança Nacional).Enfim, tais ações fragi-lizam o Estado (p 370).

Sem sombras de dúvidas, a evocação da Lei de Segurança Nacional explici-ta o verdadeiro espírito do referido relatório. Materializando as concepçõesda Bancada Ruralista, o documento é uma elegia ao autoritarismo social eeconômico, desconhecendo qualquer direito humano dos pobres do campoem nome do direito sagrado de propriedade.

O relatório afirma ainda que ANCA, CONCRAB e ITERRA são "a face jurídi-ca do MST", razão pela qual recomenda que sejam acionadas judicialmentepara reparação de danos causados por ações do movimento. Além disso,reduz toda a problemática do campo brasileiro a possível "mau uso e desvio"de recursos da União repassados para entidades que possuem ligações como MST (ANCA, CONCRAB e ITERRA). Além de não reconhecer problemas naestrutura fundiária e na existência de violência, trabalho escravo ou milíciasprivadas no campo, não faz qualquer recomendação voltada para a melho-ria das condições de vida da população rural.

A concepção autoritária e preconceituosa albergada pelo relatório vence-dor envergonha o Congresso Nacional brasileiro. Além de criminalizar osmovimentos sociais de luta pela terra e os defensores de direitos humanos queatuam no meio rural, o relatório representa uma ode à violência. É um ver-dadeiro manifesto do ódio dos ruralistas aos trabalhadores sem terra, repre-sentando mais um obstáculo no caminho da implementação da reformaagrária e da justiça social no campo brasileiro.

4. A BANCADA RURALISTA E A CRIMINALIZAÇÃO

DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO

O modus operandi dos ruralistas na CPMI da Terra é um bom exemplo daforma de atuação da Bancada Ruralista no Congresso Nacional. O voto emseparado que se sagrou vitorioso não expressa apenas as opiniões doDeputado Abelardo Lupion. Reflete a visão que o conjunto dos parlamentaresruralistas possui sobre a questão agrária brasileira.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 30: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 58 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 59

Em estudo sobre o caráter, o perfil e a composição da Bancada Ruralista naLegislatura 1999/2002, Edélcio Vigna sustenta que os ruralistas integram umdos mais eficientes grupos de pressão no interior da Câmara dos Deputa-dos.15 Segundo o assessor técnico do Instituto de Estudos Sócioeconômicos(INESC), os ruralistas representavam a terceira maior bancada de interesse,com 89 deputados (17,3%), atrás apenas dos empresários (143 deputados) eadvogados (92 deputados).16

Edélcio Vigna afirma que os parlamentares que compunham a bancada rural-ista pertenciam, majoritariamente, aos partidos que formavam a base de apoiodo então governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (19-95-2002).

O assessor do INESC afirma que:

a bancada ruralista não se caracteriza constantemente comoum grupo de interesse, de pressão ou de lobby, mas circula poresses estágios conforme intensifica ou não as suas ações. Énotória, porém, a predominância do aspecto de "interesse".

Para Vigna (2001, p. 13-14), o conceito "grupo de interesse" é o que me-lhor se amolda à Bancada Ruralista, uma vez que é "mais amplo que o degrupo de pressão ou de lobby". "Os grupos de interesse, ao desencadearemuma ação, se transformam em grupos de pressão. E o lobby é a operaciona-lidade da ação."

Edélcio Vigna (2001, p. 14) acredita que os ruralistas constituem-se comoum conjunto suprapartidário de parlamentares que se articulam em defesade interesses localizados, sujeitos às flutuações conjunturais, formando umaverdadeira "bancada".

O grupo ruralista não se submete, necessariamente, a nenhu-ma regra, senão a da fidelidade aos seus interesses. Vota unifi-cada somente nas proposições que possam afetar seus negó-cios no mercado. Nas votações que não envolvem seus interes-ses, cada deputado é "liberado" para seguir ou não as indica-ções das lideranças partidárias, invertendo a lógica do proces-so legislativo.

O assessor do INESC prossegue a caracterização da Bancada Ruralistanos seguintes termos:

Como uma bancada suprapartidária, os ruralistas formam umgrupo de interesse atípico, que atua dentro do Estado, sendoparte do aparelho de Estado, mas com objetivos idênticos aosde qualquer outro grupo social: atuar em favor de interessessetoriais. Todavia, como essa Bancada participa diretamentedo processo decisório, torna-se, assim, um grupo de pressão.E, como esse grupo de interesse e de pressão é agressivo nassuas reivindicações, manifesta-se, também, como uma banca-da de lobby.

Em resumo, a Bancada Ruralista condensa várias especifici-dades que encontramos compartimentadas nas organizações

15 - A declaração das fontes de renda dos deputados foi utilizada para classificar os parlamentares como"ruralistas". "O critério utilizado neste trabalho para classificar os parlamentares como ruralistas foi baseado nadeclaração dos deputados sobre suas fontes de renda, conforme expresso no Repertório Bibliográfico daCâmara dos Deputados. Foi considerado como componente potencial da Bancada Ruralista o deputado quedeclarou, entre as suas fontes de renda, alguma forma de renda agrícola" (Vigna, 2001, p. 9).16 - Estes dados são da legislatura passada, pois infelizmente não há estudos atualizados sobre a atual com-posição e perfil desta Bancada no Congresso Nacional.

0

20

40

60

80

100

Câmara dos Deputados e Bancada Ruralista

82,7% CâmaradosDeputados17,3% BancadaRuralista

Fonte: VIGNA, 2001, p.15.

Bancada Ruralista e Partidos Políticos

05

1015202530

PFL PPB PMDB PSDB PTB PL PST PDT PPSFonte: VIGNA, 2001, p.18.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 31: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 60 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 61

sociais. Ao conceituá-la a partir da sua atuação, é importantecompreender que os ruralistas não compõem uma bancadapartidária, mas um grupo de parlamentares suprapartidários.Uma bancada é uma forma de organização superior a de umgrupo. Ela respeita certos regulamentos, tem uma instânciaburocrática e, nas votações, independente do conteúdo, seguemajoritariamente a indicação do líder.

Na apresentação do estudo realizado por Edélcio Vigna, o entãoSecretário Geral do INESC, Bizeh Jaime, asseverou:

Não há grupo de pressão mais eficiente, atuando no interior doParlamento brasileiro, do que a bancada ruralista. Desde a As-sembléia Nacional Constituinte, os ruralistas utilizam armas deconvencimento típicas da elite agrária para negociar com oExecutivo e o próprio Congresso.

Bizeh Jaime lembra que no processo Constituinte, os ruralistas apoiaramas propostas mais conservadoras e o mandato ampliado de cinco anos parao então presidente Sarney (1985-1989), em troca de um texto que dificul-tasse a desapropriação de terras para a reforma agrária. Desde o fim dadécada de 1980, a ação organizada dessa bancada volta-se para dois obje-tivos fundamentais: dificultar a tramitação de projetos de lei que visem facili-tar a realização da reforma agrária e pressionar os governos para que per-doem as dívidas dos grandes fazendeiros. Prossegue o ex-Secretário Geraldo INESC:

Os ruralistas têm conseguido exercer seu poder de influênciapara obter vitórias. São eles que patrocinam as indicações parao Ministério da Agricultura e elegem, a cada ano, o presidenteda Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dosDeputados. Com redutos estabelecidos, exercem a pressãocom mais facilidade.

A atuação dos ruralistas e os acordos políticos que eles vêm obtendoacabam por favorecer setores já amplamente beneficiados, sem levar emconta questões ambientais e sociais, como as necessidades de milhares deprodutores familiares e de trabalhadores rurais sem terra.

A CPMI da Terra pode ser tomada como um caso exemplar da atuação daBancada Ruralista. Retrata com grande fidedignidade a forma de ação desse

que é um dos mais influentes grupos de interesse do Poder Legislativobrasileiro. Além de ter sido criada por iniciativa do ruralistas, em associaçãocom a oposição ao governo Lula, no já mencionado episódio do uso doboné do MST pelo Presidente da República, a maioria dos integrantes daComissão era composta por ruralistas ou por parlamentares que seguiamsua orientação.

Um dos parlamentares mais influentes da Bancada Ruralista no CongressoNacional é o Deputado Ronaldo Caiado (PFL/GO). Fundador da UniãoDemocrática Ruralista (UDR), em 1985, Caiado foi muito influente durante aAssembléia Nacional Constituinte. Em 1989, disputou a presidência daRepública pelo PDC, mas obteve votação inexpressiva. Em 1990, elegeu-seDeputado Federal pelo PFL, sendo reeleito em 1998 e 2002.

Caiado integrou a CPMI da Terra até fevereiro de 2005, quando a deixoupara presidir a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desen-volvimento Rural da Câmara dos Deputados. Este desligamento formal nãorepresentou abandono de fato da atuação na CPMI. Ao contrário, da pre-sidência da Comissão de Agricultura, Caiado monitorou os trabalhos e foi umdos principais articuladores da estratégia ruralista, estando presente na reu-nião que aprovou o voto em separado apresentado pelo Deputado Lupion.

A atuação de Ronaldo Caiado nos bastidores e no plenário da CPMI reve-la que o Deputado Abelardo Lupion foi apenas o porta-voz da Bancada Rura-lista. É possível afirmar que o voto em separado que, ao final, restou aprova-do, expressa a opinião do conjunto dos parlamentares ruralistas.

É preciso compreender ainda que os propósitos dos ruralistas coincidiamcom os objetivos da oposição conservadora ao governo federal. Os primeirosbuscavam deslegitimar a reforma agrária e criminalizar o MST; os segundospretendiam atacar a gestão do Presidente Lula. A junção desses dois interes-ses forjou a lógica de atuação dos ruralistas e da oposição na CPMI: fazeroposição ao Executivo por meio da defesa das teses ruralistas, especialmenteas que questionavam a viabilidade, necessidade e eficácia da aplicação derecursos públicos na reforma agrária, bem como as que atacavam o MST.

Assim, mesmo os parlamentares do PSDB e PFL que não são membrosorgânicos da Bancada Ruralista, ora funcionavam como "franja" dessa - ouseja, como coadjuvantes - ora lideravam os ataques ao MST e ao governo.Em ambos os cenários, os ruralistas e a oposição conservadora eram aliadosde primeira hora.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 32: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 62 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 63

Tanto é assim que o Presidente da CPMI, Senador Álvaro Dias, integranteda Executiva Nacional do PSDB, colocou a assessoria direta de sua Presidên-cia a serviço dos interesses dos ruralistas. Esses assessores formulavam as per-guntas que os parlamentares ruralistas faziam aos representares de entidadese movimentos sociais ligados aos trabalhadores. Foram eles também que queelaboraram o voto em separado apresentado pelo Deputado Abelardo Lupione aprovado na última sessão da CPMI.

A criação e desfecho da CPMI da Terra não representam atos isolados daBancada Ruralista em sua constante luta por impedir qualquer avanço da re-forma agrária. Inicialmente instalada como um mecanismo para bloquear aimplantação de qualquer política governamental que respondesse, minima-mente, às aspirações históricas das organizações agrárias, os dois anos defuncionamento da CPMI da Terra materializam a ideologia conservadora ereacionária desse segmento do Congresso Nacional.

Ao aprovar o relatório apresentado pelo Deputado Abelardo Lupion, comtal carga de reacionarismo, a Bancada Ruralista colocou o Parlamento bra-sileiro a serviço da criminalização da luta pela terra. A CPMI da Terra não foia primeira comissão de inquérito instalada pela Câmara dos Deputados oupelo Senado Federal para investigar os problemas fundiários brasileiros. Nosúltimos 30 anos, quatro CPIs pautaram esse tema na Câmara dos Deputados.Em 1976, uma CPI analisou a violência no campo. Em 1993, a CPI da Pis-tolagem investigou o extermínio de trabalhadores rurais na região do Bico doPapagaio. Em 2000, uma outra CPI foi criada para investigar a atuação daFUNAI e, em 2001, a CPI da Grilagem investigou a ocupação de terras públi-cas na Região Amazônica.

Todas essas CPIs visaram apontar causas dos problemas fundiários e con-flitos no meio rural. O diferencial da CPMI da Terra é que, pela primeira vez,o produto da Comissão - o relatório final - voltou-se exclusivamente para ainvestigação e responsabilização das vítimas. Vale dizer que as CPIs anterioresbuscavam apontar causas da violência no campo para proteger as vítimas;na CPMI da Terra, as vítimas são apontadas como causa da violência.

No entanto, o fato do Presidente Lula ter recebido lideranças do MST, terparticipado do Grito da Terra (organizado pela CONTAG), da assembléia daFederação de Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF) e de várioseventos promovidos por organizações de trabalhadores se transformou emuma "ameaça" aos interesses da Bancada Ruralista. Também o fato do MDAe do INCRA celebrar convênios (prática adotadas já no governo anterior) com

entidades de trabalhadores em diversas áreas, tais como cooperação agríco-la, educação, saúde, ciência e tecnologia, cultura e direitos humanos, irritouos ruralistas. Isso tudo levou a Bancada Ruralista a usar o Legislativo e seusinstrumentos de atuação como ferramenta de oposição aberta ao diálogoentre movimentos sociais organizados e o Executivo Federal e contra a imple-mentação de qualquer tipo de política agrária. Em outras palavras, a açãoorganizada da Bancada Ruralista voltou-se para fazer do ParlamentoBrasileiro mais um espaço de criminalização da luta pela terra.

Durante a gestão FHC, por exemplo, o processo de criminalização era pro-movido pelo próprio Poder Executivo, especialmente pelos órgãos encarrega-dos de executar a reforma agrária. Ao perceber que o governo Lula, malgra-do suas contradições, não assumiria uma postura autoritária para com os pro-tagonistas da luta pela terra, os ruralistas engendraram o deslocamento doprocesso de criminalização do Executivo para o Legislativo. Com a CPMI daTerra, a perseguição aos trabalhadores sem-terra, antes promovida por setoresdos Poderes Executivo e Judiciário, alcança também o Congresso Nacional.

Outro desiderato da Bancada Ruralista foi o de reforçar a tese de criminali-zação da esquerda, que vem sendo amplamente sustentada por diversos par-lamentares do bloco de oposição ao Executivo. Nesse sentido, asseverouMarcos Rogério de Souza (2005, p. 2):

Qualquer semelhança com o movimento de criminalização daesquerda, em especial do PT, que vem sendo realizada peladireita brasileira por meio das CPIs dos Correios e dos Bingos edos meios de comunicação, não é mera coincidência. Orelatório deixa explícito seu propósito de exterminar o MST, aesquerda e os socialistas. Ignora completamente que aConstituição Federal assegura a democracia, o pluralismopolítico e a livre manifestação do pensamento, razão pela qualnão constitui nenhum crime ser socialista ou possuir ideologiade esquerda.

Cumpre consignar ainda que a CPMI da Terra não foi o única nem a mais im-portante exemplo da atuação da Bancada Ruralista no Congresso Nacional. Esseseguimento parlamentar marcou os trabalhos da Assembléia Nacional Constituin-te, em 1988, especialmente por interditar toda e qualquer proposta mais avança-da de modificação na estrutura fundiária brasileira. Cite-se como exemplo a en-carniçada oposição dos ruralistas à emenda popular que reivindicava a inclusãoda reforma agrária na Carta Magna, com quase 1,5 milhões de assinaturas.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 33: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 64 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 65

O que a CPMI da Terra teve de diferente foi que ela marca uma inflexão nosentido de usar um instrumento de investigação parlamentar (um instrumentoda minoria) para atacar a sociedade civil organizada. Mais que isso, por meiodela a Bancada Ruralista produziu um relatório final, no qual consta a explíci-ta criminalização dos movimentos sociais. Por mais desqualificado que seja,o relatório que não deixa de ser um documento do Parlamento brasileiro, quecertamente será utilizado pelos ruralistas em sua guerra ideológica contra ostrabalhadores em luta pela terra.

CONCLUSÃO

A CPMI da Terra se configurou em espaço aberto de uma luta ideológica,explicitando claramente a lógica e as intenções conservadoras que dominamo cenário do Congresso Nacional. Apesar de ter perdido, ao longo dos doisanos, o seu lugar como ferramenta privilegiada de crítica e disputa política daoposição com o atual governo, os representantes do agronegócio mantive-ram uma atuação acirrada e reacionária a qualquer proposta voltada para asolução dos conflitos agrários.

Ao rejeitar um parecer substancioso, consentâneo com a realidade fundiá-ria e que apresenta propostas para agilizar a reforma agrária, a maioria dosintegrantes da CPMI da Terra fez opção por não contribuir para a garantiados direitos humanos dos trabalhadores em luta pela terra no campo e na ci-dade. Por outro lado, ao aprovar o relatório paralelo, essa mesma maioriaescolheu o caminho da absolutização do direito de propriedade e da respon-sabilização das vítimas pela violência no campo. A aprovação de um relatóriocom tal carga de reacionarismo comprova que a Bancada Ruralista continuasendo um dos grupos de interesses com maior força no Congresso Nacional.

Os movimentos sociais, entidades e organizações da sociedade civil ligadasao tema da reforma agrária manifestaram seu repúdio ao relatório aprovadopela CPMI da Terra, de autoria do Deputado Abelardo Lupion. O MST, a CPT,o Sindicado Nacional dos Docentes em Ensino Superior (ANDES) e a ONGTerra de Direitos divulgaram notas em que afirmam que o relatório aprovadocriminaliza as vítimas da violência no campo. O Centro de Direitos Humanosdo Memorial Robert Kennedy, com sede nos Estados Unidos da América, ofer-eceu-se para divulgar internacionalmente o diagnóstico e as propostasrejeitadas pelos ruralistas, constantes do relatório do Deputado João Alfredo.

O cientista político Emir Sader (2005, p.1) respondeu em forma de textopoético a proposta de Lupion de tipificar como crime hediondo ação de quemocupa terra:

Hedionda a UDR, antro de donos de terras improdutivas, quebrecam a democratização no campo brasileiro e impõem osseus direitos mediante a morte e a violência. Hedionda a CPMIda Terra, que se colocou a serviço dos massacres de trabalha-dores rurais, ao invés de apurar e dizer para toda a sociedadebrasileira por que não se fez reforma agrária ate hoje no Brasil.(...) Hediondos os deputados da CPI que aprovaram esse he-diondo relatório, que merece processos por falta de decoro par-lamentar contra o povo brasileiro. Hedionda, hedionda, hedion-da toda a direita brasileira e os que não se levantam paradefender os trabalhadores sem-terra.

O relatório aprovado é a expressão fidedigna da atuação da BancadaRuralista. É, ele sim, hediondo. Em vez de contribuir com a solução da proble-mática agrária, é mais um obstáculo no caminho da implementação da refor-ma agrária e da justiça social no campo brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUPION, Deputado Abelardo. Voto em separado - CPMI daterra (substitutivo aprovado). Brasília, Congresso Nacional,novembro de 2005.MELO, Deputado João Alfredo Telles (relator). Relatório final daCPMI da terra (voto vencido). Brasília, Congresso Nacional,novembro de 2005.MELO, João Alfredo Telles (ed.). Reforma agrária quando? CPImostra as causas da luta pela terra no Brasil. Brasília, SenadoFederal, 2006 (no prelo).SOUZA, Marcos Rogério de. Hediondos são o latifúndio e seusdefensores. In.: Correio Caros Amigos. São Paulo, editora CasaAmarela, 230ª edição, 6 de dezembro 2005, Disponível em:www.carosamigos.com.br. Acesso em 6/12/2005.SADER, Emir. Ruralistas merecem processo por quebra de deco-ro. Disponível em: www.agênciacartamaior.com.br. Acesso em10/04/2006.VIGNA, Edélcio. Bancada ruralista: um grupo de interesse.Argumento nº 8. Brasília, INESC, 2001.

O Parlamento e a criminalização dos movimentos de luta pela terraEnsaios e Debates

Page 34: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 67

CPMI da Terra e a luta de

classes no Congresso Nacional*

João Alfredo Telles Melo**

Um desafio do tamanho do nosso País e com o tempo de nossa história.Assim se anunciava a CPMI da Terra, da qual fui Relator. Afinal, parafrasean-do Alberto Passos Guimarães, são mais de cinco séculos de latifúndio. Alémdisso, a própria ementa do requerimento para criação da Comissão Parla-mentar Mista de Inquérito já descortinava o palco para a ferrenha luta declasses que marcaria o desenrolar dos trabalhos, ao definir seu objetivo: "rea-lizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos dereforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores (que têmpromovido ocupações de terra em áreas e edifícios privados e públicos, porvezes com violência), assim como os movimentos de proprietários de terras(que, segundo se divulga, têm se organizado para impedir as ocupações porvezes com violência)".

O corte ideológico ficava claro quando, ao tratar da violência, o requeri-mento diferenciava as entidades de trabalhadores das entidades ruralistas: osmovimentos sociais promoveriam ocupações "por vezes com violência". Asentidades ruralistas, "segundo se divulga".

Nos dois anos de duração dos trabalhos da Comissão, se desenvolveramparalelamente duas CPMI's. A dos ruralistas, cuja finalidade era atingir osmovimentos sociais de trabalhadores rurais, em especial o MST, procurandodesmoralizá-los publicamente e criminalizar suas principais lideranças. E anossa, que abraçou a imensa tarefa de fazer o diagnóstico da situaçãofundiária e levantar as causas da violência que tem ceifado a vida de dezenasde trabalhadores e lutadores do povo no campo.

Enquanto eles reduziam o objeto da CPMI ao exame das contas de con-vênios entre governo e cooperativas de trabalhadores, fomos literalmente acampo. Visitamos nove estados - sendo que, o Pará, duas vezes -, realizamos

* Este texto é parte da introdução do deputado João Alfredo ao livro que apresenta, de forma resumida, orelatório vencido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana (CPMI da Terra).** Deputado Federal (PSOL/CE), Relator da CPMI da Terra

Page 35: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 68 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 69

CPMI da Terra e a luta de classes no Congresso NacionalEnsaios e Debates

43 audiências públicas e ouvimos 125 pessoas, entre trabalhadores rurais,proprietários de terras e respectivas entidades, pesquisadores, representantesdo governo e da sociedade civil; e nos debruçamos sobre 75 mil páginas dedocumentos, distribuídos em mais de 500 pastas, entre relatórios, inquéritospoliciais e processos judiciais, sem deixar de também analisar os convênios.Foram quebrados sigilos bancário, fiscal e telefônico de 21 pessoas e enti-dades e examinados dezenas de convênios do governo com entidades rura-listas e de trabalhadores.

Ao final dos trabalhos da CPMI, foi aprovado, por 13 votos a oito, um re-latório paralelo ao nosso, em tensa sessão no dia 29 de novembro de 2005.A Comissão era composta, em sua maioria, por defensores dos interesses dosruralistas que, embora ausentes da maior parte dos trabalhos, compareceramem peso à votação final e aprovaram um texto reacionário, que premia o lati-fúndio improdutivo e inverte a lógica da história, transformando as vítimas emresponsáveis pela violência no campo. Suas principais "contribuições" legisla-tivas são dois projetos de lei que tipificam como "atividade terrorista" e "crimehediondo" as ações de quem ocupa terras como meio legítimo de pressão pe-la realização da reforma agrária.

O relatório paralelo, assinado pelo deputado Abelardo Lupion (PFL/PR), é,infelizmente, o resultado oficial da CPMI, que nem de longe reflete o traba-lho incansável de parlamentares, assessores e colaboradores na construçãodo que se convencionou chamar "relatório vencido" daquela CPI Mista, for-mada por senadores e deputados federais.

Nosso relatório buscou atender aos objetivos a que se propunha a Comis-são. Procurou sistematizar o debate que vem se dando ao longo de nossa his-tória em torno da questão agrária brasileira, fazendo um apanhado inclusiveda legislação existente sobre o tema e apresentando propostas para o seuaperfeiçoamento. Além de analisar a estrutura fundiária e apontar as causasda violência no campo, aborda o trabalho escravo e a questão indígena; his-toria o desenvolvimento dos movimentos sociais no campo e revela a estrutu-ra de organização e os princípios ideológicos que regem as entidades de pro-prietários rurais; compara os programas governamentais de reforma agrária;reúne informações sobre a demanda por terra e o estoque existente no ter-ritório nacional.

Um capítulo extenso, de mais de 300 páginas, retrata os conflitos e aspeculiaridades regionais da questão agrária nos nove estados percorridos. OAmapá não foi visitado mas teve seus problemas analisados em audiência

pública que a CPMI da Terra realizou em Brasília. Outro capítulo foi dedica-do ao exame da questão fundiária urbana, especialmente o despejo violentode mais de 14 mil famílias da ocupação Sonho Real, ocorrido em fevereirode 2005, em Goiânia.

A principal conclusão a que chegamos com a CPMI da Terra é de muitoconhecida dos que lutam pela reforma agrária: a concentração fundiária estána raiz da violência no campo. Dados oficiais revelam que 1,6% dos proprie-tários com imóveis acima de mil hectares detêm 46,8% do total da áreacadastrada pelo INCRA no País. Por outro lado, mais de três milhões defamílias de trabalhadores rurais não dispõem de terra para viver e trabalhar.

A alta concentração da propriedade da terra dá origem a relações econô-micas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em uma estrutura agrária ini-bidora do desenvolvimento, entendido como crescimento econômico, justiçasocial, sustentabilidade ambiental, relações igualitárias de gênero, raça eetnia e extensão da cidadania democrática à população do campo.

Resultado de mais de 500 anos de história, essa estrutura gera pobreza eexclusão no meio rural. A modernização conservadora da agricultura das últi-mas décadas aprofundou a desigualdade, razão pela qual a maior parte dasfamílias que habitam o campo situa-se abaixo da linha de pobreza.

A violência é outra marca da estrutura fundiária brasileira, estimulada pelaimpunidade dos assassinos. Dados da CPT revelam que, nas duas últimasdécadas, 1.349 pessoas foram assassinadas em decorrência da luta por terra,em 1003 ocorrências registradas. Apenas 75 dessas ocorrências resultaramem julgamentos; 64 executores foram condenados e 44 absolvidos. No casodos mandantes, apenas 15 foram condenados.

A forma como a propriedade da terra foi distribuída ao longo da história es-timula o conflito e chancela a violência. O regime de sesmarias, implantadono Século XVI, e os outros que o sucederam, como o regime de propriedadeinaugurado pela Lei de Terras, de 1850, privilegiaram a concentração e im-pediram que os trabalhadores pobres e negros tivessem acesso à terra.

Herdeiros de outras experiências de mobilização de lavradores, e legatáriosda resistência indígena e negra, os movimentos sociais e as organizações sin-dicais de trabalhadores rurais pressionam os poderes públicos pela realizaçãoda reforma agrária. A pressão se concretiza em marchas, acampamentos àbeira de rodovias e, principalmente, ocupações de imóveis rurais improdutivos.

Page 36: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 70 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 71

Os proprietários rurais buscam proteger seus interesses por meio de medi-das muitas vezes ilegais, como a adoção de armas de fogo, inclusive as deuso restrito, a pistolagem e a formação de milícias privadas. Enquanto isso seorganizam politicamente, de forma sistemática, para combater os projetos dereforma agrária. Nosso relatório demonstra, também, como os ruralistas uti-lizam suas entidades para financiar - em grande parte com recursos públicos- seus interesses de classe. Na última década (1995-2005), essas organiza-ções receberam R$ 1,052 bilhão dos cofres públicos, seja por meio de con-vênios ou mediante contribuição compulsória fixada em lei.

No mesmo período, foram transferidos R$ 41,7 milhões à AssociaçãoNacional de Cooperação Agrícola (ANCA), Confederação Nacional dasCooperativas do Brasil (Concrab) e Instituto Técnico de Capacitação ePesquisa da Reforma Agrária (Iterra). Esses dados revelam que as organiza-ções ruralistas receberam 25 vezes mais recursos do governo do que as enti-dades ligadas aos trabalhadores.

O Estado brasileiro tem se mostrado incompetente para resolver o proble-ma fundiário. Ao invés de identificar as causas da violência e enfrentá-las compolíticas públicas adequadas, judicializa os conflitos agrários e trata aquestão, eminentemente social, como caso de polícia.

A atuação dos três poderes da República contribui para agravar a situaçãoem que se encontra o campo brasileiro. A responsabilidade do Poder Execu-tivo é evidente. Desde a promulgação do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), opoder público está expressamente autorizado a realizar a reforma agrária, po-rém essa política pública só é implementada pontualmente, para responderao conflito social já instalado.

O Poder Legislativo não conseguiu remover os entraves legais aos proces-sos de desapropriação e arrecadação de terras para fins de reforma agrária.Ao longo da história, a correlação de forças vem sendo favorável aos grandesproprietários, o que resulta na aprovação de leis e documentos que dificul-tam alterações na estrutura agrária, a exemplo do relatório do deputadoAbelardo Lupion.

Pesa sobre o Poder Judiciário a morosidade para decidir sobre as ações de de-sapropriação e de arrecadação de imóveis para fins de reforma agrária, que secontrapõe à celeridade nos processos de interesse dos grandes proprietários egrileiros. Além disso, os setores conservadores do Judiciário têm sido coniventescom a impunidade de executores e mandantes de assassinatos de sem-terra.

Os conflitos agrários estão enraizados na forma como a terra foi distribuí-da ao longo de nossa história, questão que só pode ser solucionada por umareforma agrária ampla e massiva. Cerca de 170 mil famílias vivem em acam-pamentos à beira de rodovias ou em áreas ocupadas, à espera de um pedaçode chão, enquanto aproximadamente 840 mil estão cadastradas pelo INCRAcomo possíveis beneficiárias da reforma.

Essa imensa demanda é compatível com a disponibilidade de terra que oBrasil possui. As grandes propriedades declaradamente improdutivas tota-lizam cerca de 133 milhões de hectares, ao passo que a estimativa de terrasdevolutas chega ao número aproximado de 172 milhões. As terras públicascadastradas por diferentes órgãos federais, e que poderiam ser destinadas aoassentamento de trabalhadores, somam 4,3 milhões de hectares. São, por-tanto, 311 milhões de hectares que poderiam ser disponibilizadas à reformaagrária. Assim, a meta de assentar 400 mil famílias, prevista no II PlanoNacional de Reforma Agrária, é compatível com o estoque de terras disponí-vel. No entanto, tal meta tornou-se inviável diante da política econômica neo-liberal que o governo Lula herdou da gestão FHC e lhe deu continuidade, quedrena os recursos orçamentários para o pagamento dos serviços da dívidapública federal.

O relatório vencido da CPMI da Terra, resumido em livro a ser impresso pelagráfica do Senado, permanece atual e constitui mais um instrumento na lutaem favor da democratização da terra no Brasil, demonstrando a atualidade ea necessidade da realização da reforma agrária - única possibilidade de se ga-rantir a paz, a justiça e a cidadania para milhões de camponeses brasileiros.

CPMI da Terra e a luta de classes no Congresso NacionalEnsaios e Debates

Page 37: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 73

Estado penal e criminalização

do MST ou de como o

Judiciário e mídia fabricam

as novas bruxas de SalémUMA ANÁLISE SOBRE A AÇÃO DAS MULHERES DA

VIA CAMPESINA NAS TERRAS DA ARACRUZ

Fernanda Maria da Costa Vieira**

No dia 8 de Março, cerca de duas mil mulheres integrantes da ViaCampesina ocuparam uma área pertencente à Aracruz Celulose, em PortoAlegre, e destruíram as mudas de eucalipto e as pesquisas que se realizavamna busca da aceleração desse plantio.

Objetivavam denunciar a silenciosa luta que vem sendo travada por qui-lombolas, tribos indígenas, pescadores, ambientalistas e agricultores fami-liares contra o avanço indiscriminado da Aracruz Celulose sobre as suas ter-ras1. Não são poucas as denúncias que pesam sobre essa empresa no que serefere aos impactos ambientais e sociais.

Imediatamente a mídia se prontificou em condenar o ato como vandalis-mo, exercício de baderna, exigindo a rápida condenação das mulheres,

* Mestre em Direito e Sociologia pela UFF. Professora da UFRJ e advogada da RENAP;1 - Com relação às terras dos índios capixabas, por exemplo, a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, que vemrealizando estudos sobre a invasão nas terras indígenas, aponta que a ARACRUZ CELULOSE se apropriou de18.070 hectares de terras dos índios, no que pese terem recuperado parte das terras apropriadas ilegalmentepela ARACRUZ, lutam pela demarcação oficial.

"É preciso lembrar que a finalidade mais impor-tante do processo e da condenação à morte nãoé salvar a alma do acusado, mas buscar o bemcomum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur)"(Manual dos Inquisidores de Nicolau Eymerich)

Page 38: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 74 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 75

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

como uma fiel porta-voz da Aracruz. Afinal, os prejuízos econômicos foramenormes, muito embora os prejuízos humanos produzidos pela Aracruz sejamde dimensão maior e ignorados pela imprensa e por grande parcela dasociedade.

Seria o ato das mulheres de fato exercício criminoso ou ato compreendidosob a ótica da desobediência civil2?

Para o nosso Judiciário não há outra leitura que não seja a de enquadrartal conduta como crime. Razão pela qual o Ministério Público ofereceu a de-núncia, tipificando os denunciados em crime de formação de quadrilha, danoqualificado, furto, tendo sido recebida pelo Judiciário.

O que se percebe por parte do nosso Judiciário é uma assimilação dos dis-cursos midiáticos em nome da lei e da ordem, que constroem um imagináriode caos e desordem social justificador da persecução penal.

Assim, em nome de uma política persecutória desenfreada, os processoscriminais, que a cada dia crescem no Judiciário, mais nos lembram o perío-do inquisitorial, onde o direito à ampla defesa não era um estatuto perquiri-do, tal qual a presunção de inocência, dois princípios constituídos a partir deuma noção que irá impor o primado da racionalidade no processo criminal.

No entanto, o crescimento do processo de criminalização da pobreza, pro-duto do esfacelamento do chamado Estado de Bem estar Social pela hege-monia neoliberal, irá impor novas condutas no plano processual penal: nãomais a presunção de inocência, nem as garantias constitucionais do devidoprocesso legal, nossos processos criminais invertem a ordem, partem da pre-sunção da culpa e constroem um terreno propício para os estereótipos crimi-nais. Trata-se de Punir os pobres 3.

Tal processo de criminalização4 e controle social vêm se dando de formamais agressiva com relação ao MST (e Via Campesina) cujas ações de ocu-pação coletiva de terras vêm sendo tipificadas como formação de quadrilha,o que revela uma reorientação no sentido de se retirar da visibilidade públi-ca o debate sobre a predatória estrutura fundiária de nosso país, marcada porum vergonhoso índice de concentração de terras; o direito legítimo ao traba-lho; a ruptura com o sagrado direito à propriedade privada imposto pelaCarta Constitucional de 1988; e a garantia da dignidade da pessoa humana.

É nossa intenção, nesse breve texto, analisar, em particular, o papel que oJudiciário desempenha, sob a égide do Estado Penal, na sustentação dessahegemonia conservadora, que aponta para um recrudescimento dos discur-sos da lei e da ordem como forma de contenção das massas empobrecidas.

Entendemos que a recente denúncia promovida pelo Ministério Público deBarra do Ribeiro, na qual figuram 37 integrantes da Via Campesina, em razãoda ocupação na área da Aracruz Celulose no dia 8 de março, insere-se nesseprocesso de criminalização dos movimentos organizados, que irá se sustentarnuma lógica criminal do espetáculo, rompendo com a herança iluminista doprocesso penal acusatório, em nome de uma "caça às bruxas" desenfreada.

I - A INDIFERENÇA SOCIAL E O ENDURECIMENTO PENAL:A DUPLA FACE DA MOEDA NEOLIBERAL

O ideário neoliberal se firmou num mundo cada vez mais sem fronteiras,apresentando-se como única alternativa viável (seja no âmbito político,econômico, social, ideológico e mesmo em termos de uma nova ética) à crisedo capital vivida nas últimas décadas.

Apostando no mercado como única força de regulação do social, essanova ordem dissemina por toda a sociedade sua lógica mercantil, onde tudoe todos têm um preço, transformados em mercadorias prontas ao consumo.Nessa nova ordem tudo que é (ou não) sólido, não se desmancha, e sim, se

2 - O direito de resistência é uma garantia prevista na Declaração Universal dos Direitos do Homem e vemsendo compreendida como um primado na construção de uma sociedade democrática, marcada pela noçãode justiça social. Nossa carta Constitucional também garante o direito de resistência como um exercício decidadania na efetivação do principio fundamental organizador do nosso Estado Democrático e de Direito, pre-visto em no artigo 1º, III, qual seja: a dignidade da pessoa humana. Ver sobre o tema GARCIA, José Carlos.O MST entre desobediência e democracia. Em: STROZAKE, Juvelino José. (org.). A questão Agrária e a Justiça.SP: Revista dos Tribunais, 2000.3 - WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. RJ, Instituto Carioca deCriminologia, Freitas Bastos, 2001.

4 - Tal tema foi objeto de pesquisa desenvolvida pela autora na dissertação de mestrado Presos em nome dalei? Estado penal e criminalização do MST, defendida no programa de pós-graduação em Direito e Sociologiada Universidade Federal Fluminense em 2004. Na dissertação analisamos os processos do Pontal doParanapanema e verificamos uma reorientação por parte do Judiciário, que tipificará as ações de ocupaçãode terra não mais como esbulho possessório. A partir da reunião num mesmo processo de diversas ocupaçõescoletivas, num lapso temporal, tais ações serão tipificadas como formação de quadrilha, gerando um terrenomais propício à criminalização do MST e, especialmente, seus coordenadores, que em muitos casos terão adecretação da prisão provisória.

Page 39: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 76 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 77

compra, mesmo no ar. A regra geral é competir, num jogo permanente, onde"vale-tudo", pois o importante é "vencer ou vencer".

Os indicadores econômicos nos dão a dimensão da exploração humanaque o capitalismo neoliberal vem sedimentando. Os índices apontam paraum processo selvagem de concentração de renda.

Para o historiador Hobsbawm, esse engessamento do papel do Estado, pro-movido pela ideologia neoliberal, representa "a tragédia histórica dasDécadas de Crise", pois "a produção agora dispensava visivelmente sereshumanos mais rapidamente do que a economia de mercado gerava novosempregos para eles", tal quadro se agrava se tivermos em mente que:

"esse processo foi acelerado pela competição global, pelo aper-to financeiro dos governos, que - direta ou indiretamente - eramos maiores empregadores individuais, e não menos, após 1980,pela predominante teologia de livre mercado que pressionavaem favor da transferência de emprego para formas empresa-riais de maximização e lucros, sobretudo para empresas pri-vadas que, por definição, não pensavam em outro interessealém do seu próprio pecuniário" 5

A deterioração dos serviços prestados pelo Estado, como saúde, habitação,educação; o crescente número de desempregados; a redução de postos detrabalho; a massa de excluídos sociais: os sem-teto, os sem-emprego, resu-mindo, os sem-nada que se avolumam nas praças, nos viadutos dos grandescentros urbanos.

Em 1870, os 20% mais ricos do mundo possuíam renda 7 vezes superior àdos 20% mais pobres. Em 1960, a diferença aumentou de 30 para 1. Em1990 dobrou de 60 para 1. E em 1994, atingiu de 74 para 1. Isso significaque, para cada 1 dólar produzido pelos 20% mais pobres, os 20% mais ricosgeram US$ 74! Basta dizer que a fortuna dos três mais ricos do mundo - BillGates, Warren Buffett e Paul Allen - supera a soma do PIB de 41 países sub-desenvolvidos (incluindo o Brasil) e de seus 600 milhões de habitantes! Em1998, a fortuna das 200 pessoas mais ricas do mundo somava US$ 1,042trilhão - mais que o PIB do Brasil e equivalente à renda de 41% da populaçãodo planeta (2 bilhões e 460 milhões de pessoas)6.

No Brasil, tais dados não são diferentes e demonstram um paulatinoprocesso de concentração de renda. Em 1999, o Programa das NaçõesUnidas para o Desenvolvimento (PNUD) apresentou seu relatório na qual re-gistrava que:

"os 20% mais pobres - cerca de 32 milhões de brasileiros - divi-dem entre si 2,5% da renda nacional (...). Já os 20% mais ricosabocanham 63,4% da renda nacional (...) Nossa elite é 32vezes mais rica que aqueles que se encontram no andar térreoda escala social."7

No final de 2003, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)lançou seu relatório: Estatísticas do século XX, no qual relata que a diferençaentre o ganho dos mais ricos e os mais pobres em 2001 era de 47 vezes.

Revela ainda que o índice GINI8 em 1960 era de 0,5, tendo subido a cadadécada: em 1970 o índice era de 0,56; em 1980 o índice foi para 0,59 ena década de 1990, o índice registra 0,639. Não sem razão o Brasil irá figu-rar na lista dos campões em desigualdade social.

O alto grau de desigualdade social, em especial a partir da década de1990, produto direto da adoção de políticas de gestão neoliberal, pode serexpressa com extrema clareza nas palavras do Secretário de Trabalho daInglaterra, Robert Reich, ao analisar os índices de desigualdade em seu país,em discurso para o Conselho de Liderança Democrática, em 22 deNovembro de 1994, mas que revela uma situação cada vez mais global, naqual estaríamos caminhando "para nos tornar uma sociedade de duascamadas, composta de uns poucos vencedores e um grande grupo deixadopara trás"10.

Não sem razão, nos alerta Boaventura de Souza Santos, que tal modelo éo mais voraz, pois

é o mais refratário a qualquer intervenção democrática (...) Osmercados financeiros são uma das zonas selvagens do sistemamundial, talvez a mais selvagem. A discricionariedade no exer-

5 - HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras,1995, p. 404.6 - Dados obtidos no texto de BETTO, Frei, A avareza. Em: SADER, Emir (org.). Sete pecados do capital. Riode Janeiro, Record, 1999, p. 18/19.

7 - BETTO, Frei, A avareza. Em: SADER, Emir (org.). Sete pecados do capital. Rio de Janeiro, Record, 1999, p.18.8 - Índice Gini foi criado para medir o grau de desigualdades existente nos países. Sua escala vai de 0 (zero) a 1,0(hum). Quanto mais próximo for o índice apurado do zero, menor o grau de concentração de renda.9 - Fonte: IBGE, publicado no jornal O Globo, 30 de setembro de 2003, caderno economia, p. 19.10 - Ver SENNET, Richard. A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Riode Janeiro, Record, 2003, p.62/63.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 40: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 78 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 79

cício do poder financeiro é total e as conseqüências para os quesão vitimas dele - por vezes, povos inteiros - podem ser arra-sadoras11.

Esse quadro de exclusão social, onde o espaço público é marcado porrelações desiguais, de valores individualistas exacerbados, pelo rompimentodos laços de solidariedade, acaba por gerar "um comportamento cotidianoque envolve a desconsideração do outro. Esse padrão de mentalidade e deação que apodrece o espaço público e solapa a democracia pode serchamado de 'cognição bandida'"12.

Este terreno apresenta-se "fértil" no agravamento das contradições, nãosomente entre países ricos e pobres, mas também nos cenários nacionais. Oacirramento da luta de classes, em termos nacionais, produz como respostada elite política-econômica discursos sobre o aumento da violência e, portan-to, a necessidade de se promover o endurecimento das políticas de segu-rança. Para os excluídos não há Estado Democrático de Direito e sim políti-cas de "Lei e Ordem".

É a partir desse ponto que Jock Young verá tanto no crescimento da violênciae da criminalidade, quanto nas reações punitivas, uma mesma raiz. Para ele,

"tanto as causas da violência quanto a resposta punitiva a ela di-rigida procedem da mesma fonte. A violência obsessiva das gan-gues de rua e a obsessão punitiva dos cidadãos respeitáveis sãosemelhantes não só em sua natureza, mas em sua origem. Am-bas derivam de deslocamentos no mercado de trabalho: uma deum mercado que exclui a participação como trabalhador mas es-timula a voracidade como consumidor; a outra, de um mercadoque inclui, mas só de maneira precária. Vale dizer, ambas de-rivam do tormento da exclusão e da inclusão precária" 13

A perda dos laços de solidariedade, em especial pelo crescimento do indi-vidualismo fóbico14; a visão do outro como um inimigo sempre muito próxi-mo, principalmente pelo crescimento da massa de miseráveis nas grandescidades; a sensação de instabilidade cotidiana; a sensação de efemeridadedas relações, estabelecem o que Young chamará de insegurança ontológica

"que se dá quando a auto-identidade não está embasada nonosso sentido de continuidade biográfica, quando o casulo pro-tetor que filtra as objeções e riscos ao nosso sentido de certezase torna fraco e quando o sentido absoluto de normalidade sedesorienta pelo relativismo dos valores circundantes. Com suaênfase na escolha existencial e na auto-criação, o individualis-mo contribui significativamente para esta insegurança" 15

Como forma de se conter essa insegurança ontológica, o medo, que per-corre toda a sociedade, reafirma-se as políticas de controle social, particular-mente as do campo penal, que passarão por "reafirmar valores como abso-lutos morais, declarar que outros grupos não têm valores, estabelecer limitesdistintos do que é virtude ou vício, ser rígido em vez de flexível ao julgar, serpunitivo e excludente em vez de permeável e assimilativo. Isso pode ser vistosob várias roupagens em diferentes partes da estrutura social"16.

O medo, que hoje se apresenta à riqueza, não possui face determinada,mas ela é produto direto de um modelo altamente concentrador de riquezae, portanto, gerador de um enorme contingente de miseráveis. O medo setransferiu à pobreza, indistintamente. A massa humana que não será maisincorporada mesmo que precariamente no mercado de trabalho.

Para esses indesejáveis, maltrapilhos, obstáculos humanos à beleza dacidade, que mal conseguem equilibrar o peso do próprio corpo nas esquinasdos centros urbanos, volta-se o olhar impiedoso da lógica de segurança,transformando em um axioma a norma: à (há) pobreza, (há) a prisão.

O horror causado diante de tão próxima presença da miséria, que crescevisivelmente, o medo potencializado pela mídia, sempre arguta em explorar11 - SANTOS, Boaventura de S. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualis-

mo. In SANTOS et alii. A Crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. RJ/Contraponto - CORECON.12 - "Por cognição bandida pode-se entender a afinidade entre a prática ética cotidiana e a erosão depadrões institucionais de legalidade democrática, ou seja, um universo de representações e ações desprovi-das do sentido de reconhecimento da existência e do direito de interpelação do outro como fonte de con-vivência social" in FRIDMAN, L. C. Cognição Bandida. Proposta, Rio de Janeiro, FASE, Dez./Fev. de2001/02, nº 91, p. 41.13 - YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidaderecente. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 26

14 - Para Gisálio Cerqueira Filho, a marca dessa nova ordem de globalização neoliberal é a de vivermos sobo domínio de um "individualismo fóbico", que se traduz não só na ausência de "solidariedade social, mas umestranhamento da ordem da fobia com relação ao outro, ao diferente (...) na prática política acentuando-seuma cultura cínica mas também narcísica e auto-centrada". CERQUEIRA FILHO, Gisálio: Édipo e excesso.Reflexões sobre lei e política. Porto Alegre: Fabris ed. 2002, p.32.15 - YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidaderecente. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 34.16 - Ibidem, p.34/35.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 41: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 80 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 81

índices de criminalidade, aponta como saída a privatização dos espaços públi-cos, a forma que a riqueza encontrou para construir seu templo de segurança:

"os novos apartheids sociais são constituídos em nome da paz edas ilhas de tranqüilidade. A segurança dos 'de dentro' ameaça-da pela magnitude das mudanças é supostamente restituída emcondomínios fechados, na contratação de pequenos exércitosparticulares e na utilização de câmeras de televisão que monito-ram residências, ruas, bairros e locais de aglomeração pública. Esse processo de vigilância parece não ter fim porque sempre háum novo invasor/estranho a ser combatido. Busca-se febrilmentea segurança e diminui a solidariedade social. As novas formas deperversão social combinam tecnologias de armamentos e decomunicação, reordenamento dos espaços urbanos, privatizaçãoda sociabilidade e uma cultura de redefinição permanente do'outro' ameaçador cujo limite é a negação cognitiva dos contin-gentes 'imprestáveis'. Mas até o sonho dos shopping centers como ilhas de tranqüili-dade e templos do consumo tem sido sacudido pela presença daviolência dos consumidores inaptos. A divisão da sociedade emparques temáticos relativos à experiência diferenciada dos gru-pos e comunidades pode ser uma imagem literária. Mas, peloexagero, ela permite perceber limites tenebrosos da ordem pós-moderna e favorecer a reflexão acerca das chances de reconsti-tuição da solidariedade social" 17

A lógica da apartação, que vê no outro um invasor, penetra em todas ascamadas sociais, as "barreiras, excluindo e filtrando, (...) não são apenasimposição de poderosos; sistemas de exclusão, visíveis e invisíveis, são cria-dos tanto pelos ricos como pelos despossuídos"18.

Assim, no capitalismo neoliberal, cujas políticas de exclusão promoveramuma desagregação social, a lógica da segurança - sinônimo do medo e dopreconceito - produz uma intolerância social, na qual a solução para os con-flitos diários, para qualquer pequena transgressão, será dada pelo enquadra-mento penal.

2 - O OLHAR INQUISIDOR DO ESTADO PENAL - A MODERNA CAÇA ÀS BRUXAS

O crescimento do sentimento de insegurança, que se potencializou com aredução das políticas de proteção social, com o rebaixamento salarial e como aumento das taxas de desemprego, gerou um terreno propício para aspolíticas de criminalização da miséria, com o conseqüente encarceramentodos miseráveis.

A hegemonia neoliberal será resguardada pela presença massiva doEstado, não mais no campo social, e sim em termos penais, trata-se agora doEstado Penitenciário de que nos alerta Löic Wacquant.

Assim, incapaz de dar respostas no plano econômico-social, o Estado-Nação se apresenta como um Leviatã no quesito segurança

"desenha-se a figura de um novo tipo de formação política,espécie de `Estado-centauro`, dotado de uma cabeça liberalque aplica a doutrina do `laissez-faire, laissez-passer` emrelação às causas das desigualdades sociais, e de um corpoautoritário que se revela brutalmente paternalista e punitivoquando se trata de assumir as conseqüências dessas desigual-dades" 19

Wacquant irá detectar na política estatal de criminalização das conseqüên-cias da miséria de Estado, dois movimentos no processo de penalização. Oprimeiro movimento "consiste em transformar os serviços sociais em instru-mento de vigilância e de controle das novas 'classes perigosas'." 20(...) osegundo componente da política de 'contenção repressiva' dos pobres é orecurso maciço e sistemático ao encarceramento"21.

Importa mencionar que o crescimento da população carcerária não repre-senta, na mesma proporção, um aumento da criminalidade. Isto apenas é oindicativo desse processo de intolerância ao pequeno delito, que irá, nessasduas últimas décadas de gestão neoliberal, lotar as carceragens.

17 - FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio deJaneiro, Relume Dumará, 2000, p. 20/21.18 - YOUNG, op. cit., p. 38.

19 - WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito esociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002, p. 13.20 - Vera Malaguti, em sua dissertação de mestrado Drogas e criminalização da juventude pobre no Rio deJaneiro, analisa o papel das agências de assistência, no caso voltadas para o menor infrator, no mecanismode controle e de reprodução de práticas estigmatizadas, fortalecendo dessa forma as práticas persecutóriapenais sobre a juventude negra e pobre. 21 - WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. RJ, Instituto Carioca deCriminologia, Freitas Bastos, 2001, p. 27/28.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 42: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 82 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 83

"como prova temos o aumento rápido e contínuo do número deprisioneiros a um ano relacionado com o volume de crimescometidos durante o ano correspondente: este indicador de'punibilidade' passa de 21 detentos em 1 mil infrações entre1975 para 37 em 1 mil em meados dos anos 90 (...). O fato deo crescimento deste indicador ser nitidamente mais forte que oíndice de aprisionamento relacionado com o número dos crimesviolentos (275% contra 150%) confirma que a maior punibili-dade do Estado americano visa primeiramente os pequenosdelinqüentes de direito comum. O que mudou neste períodonão foi a criminalidade, mas a atitude dos poderes públicos emrelação às classes pobres, consideradas como o centro irra-diador do crime"22

Como demonstrativo desse endurecimento com relação aos pequenos deli-tos, ou às incivilidades, Wacquant chama a atenção para uma série de práti-cas persecutórias no cotidiano dos pobres, negros e jovens, como "os decre-tos municipais limitando ou proibindo a mendicância, as batidas policiaiscontra os sem-teto, a instauração do toque de recolher para os adolescentes,aplicados de maneira discriminatória nos bairros marginalizados (às vezes demaneira totalmente ilegal, como na França), e a popularidade de que gozapor antecipação a vigilância eletrônica, quando tudo indica que ela tende,não a substituir, mas a somar-se ao aprisionamento."23.

Esse exercício de controle autoritário, discriminatório sobre as camadaspobres da sociedade também foi perquirido por Gizlene Neder ao analisar ocotidiano de apartação nas favelas e as táticas inibidoras-repressivas, resquí-cios dos períodos de repressão militar, assimiladas pelo aparato policial,demonstrando dessa forma, que para a pobreza de feição jovem e negra denosso país, "Tânatos impõe-se sobre Eros"24.

Trata-se da punição preventiva, uma garantia de que ao penalizar ospequenos delitos, obtém-se a segurança de que os grandes ilícitos serão evi-tados. É a teoria da janela quebrada, que se expressa através do argumentode que:

"uma pequena infração, quando tolerada, pode levar a umclima de anomia que gerará as condições propícias para quecrimes mais graves vicejem. A metáfora das janelas quebradasfuncionaria assim: se as janelas quebradas em um edifício nãosão consertadas, as pessoas que gostam de quebrar janelasassumirão que ninguém se importa com seus atos de incivili-dade e continuarão a quebrar as janelas. O resultado seria umsentimento geral de decadência e desamparo em que a desor-dem social encontraria terreno fértil para enraizar-se e gerarseus frutos maléficos. Ou seja, a violência urbana e os crimesgraves seriam o último elo de uma cadeia causal em quepequenas infrações levam a formas mais acerbadas de delin-qüência"25.

Ao mesmo tempo, essas políticas desvelam uma mesma matriz naturaliza-dora da pobreza e criminalidade, como um eterno retorno às teorias biolo-gistas de que a maldade, o germe da violência, se encontra no código genéti-co. Estas políticas demonstram que Lombroso vive.

As políticas de tolerância zero, promovidas pelo Estado, encontram sua cor-respondente no cotidiano. Dissemina-se pela sociedade como um todo, queirá apresentar a mesma intolerância às pequenas desordens urbanas, àsincivilidades das relações pessoais e sociais.

Os pequenos conflitos diários, que poderiam ser solucionados pelo consen-so conquistado, via diálogo, na percepção de que o outro é um interlocutor,portador de direitos, irão ser sanados por meio de uma rede institucional mar-cada pelo discurso penal: ou na justiça ou na delegacia de polícia.

Os discursos que envolvem a legitimação do sistema penal irão se valer deuma ampliação do sentimento de insegurança como forma de justificativapara uma crescente "caça às bruxas": os sem teto, os sem terra, os sememprego (todos os refugos humanos), aqueles que trazem estampado norosto a imagem do fracasso, diante de um modelo que se volta para os bem-sucedidos.

Esse processo de criminalização de determinado segmento social será, viadiscurso jurídico-penal, legitimado e "naturalizado", a tal ponto que 22 - WACQUANT, L. A ascensão do Estado penal nos EUA. Em: Discursos, Sediciosos, crime, direito e

sociedade, ano 7, nº 11, RJ: Editora Revan/ICC, 2002, p. 19/2023 - WACQUANT, L. A tentação Penal na Europa. Em: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, RJ,ano 7, nº 11, 2002, p. 9. Ver também NEDER, Gizlene. Violência e cidadania. Porto Alegre, Sergio AntonioFabris Editor, 1994.24 - NEDER, Gizlene. Violência e cidadania. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 32.

25 - BELLI, Benoni. Polícia, "tolerância zero" e exclusão social. Em: Novos Estudos Cebrap, nº 58, nov., 2000,p.160.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 43: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 84 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 85

"leva à conclusão pública de que a delinqüência se restringe aossegmentos subalternos da sociedade, e este conceito acabasendo assumido por equivocados pensamentos humanistas queafirmam serem a pobreza, a educação deficiente etc., as causasdo delito, quando na realidade, são estas, junto ao próprio sis-tema penal, fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentossociais, mas, sobretudo, de sua criminalização, ao lado da qualse espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos dos ou-tros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmocom refinamento"26.

Por essa razão, por exemplo, as ações de ocupação coletiva de terras, queo MST realiza como forma de tornar público o conflito fundiário e o proces-so de concentração de terras, bem como a morosidade da reforma agrária,são vistas como um atentado à ordem social e legal, um atentado ao próprioEstado, cuja reação de oposição às ações de ocupação de terras se manifes-ta na mídia, no judiciário, etc, sempre exigindo uma política repressiva aomovimento.

A introjeção da noção de ordem, disciplina, normal, desvio, obediência,autoridade; a submissão a que as classes subalternas (grupos vulneráveis)estão expostas por um poder que atua de forma militarizada e violenta; osmeios de comunicação massificando/homogeneizando estereótipos, gestan-do um cenário de medo e caos; o crescimento vertiginoso da miséria criaramum cenário perfeito para o exercício de criação de bodes expiatórios e da ne-cessidade de se combater tais grupos.

A resposta apresentada será, no plano dos discursos jurídicos-penais, umaampliação do papel do direito penal27, como uma alternativa ao cenário decaos e desordem, promovido especialmente pelo crescimento de uma massahumana, que apenas será disciplinada, seletivamente, pelo sistema penal.

Entendemos que esse cenário de endurecimento penal, que a hegemonianeoliberal globaliza, tornou possível a criminalização de amplos setores da so-ciedade, dentre esses o MST, que será visto como um movimento de desordeiro,que ameaça o Estado de Direito, requerendo dos órgãos do sistema penal me-

didas mais ofensivas, dentre elas está a tipificação das ocupações coletivas co-mo crime de formação de quadrilha, possibilitando assim ao Judiciário o "direi-to" de decretar a reclusão, a prisão dos integrantes do movimento.

Dentre os órgãos que compõem o sistema penal, analisamos os discursosadotados pelo Judiciário, entendendo a importância que esse poder possui nahegemonia conservadora28, na sedimentação de práticas de controle, seleti-vas, sobre os extratos subalternos.

Para Alessandro Baratta, "também o insuficiente conhecimento e capaci-dade de penetração no mundo do acusado, por parte do juiz, é desfavorá-vel aos indivíduos provenientes dos extratos inferiores da população. Isto nãosó pela ação exercida por estereótipos e por preconceitos, mas também pelaexercida por uma série das chamadas 'teorias de todos os dias', que o juiztende a aplicar na reconstrução da verdade judicial"29.

Isso significa dizer que devemos levar em consideração nesse processo decriminalização desempenhado pelo poder judiciário, o papel dos valores, aatitude emotiva, a ideologia por trás de cada decisão de um juiz. O alerta deBaratta é para o fato de que ainda que inconscientemente, a sedimentaçãodos estereótipos criminais associados aos extratos inferiores (seletividade evulnerabilidade) irá gerar decisões por parte dos juízes também seletivas.

Trata-se para Baratta da sedimentação no discurso judicial das "teorias detodos os dias", uma assimilação dos estereótipos contra as classes dosextratos inferiores, gestando no imaginário do Juiz um sentido de periculosi-dade para os indivíduos que integram esses extratos

"pesquisas empíricas têm colocado em relevo as diferenças deatitude emotiva e valorativa dos juízes, em face de indivíduospertencentes a diversas classes sociais. Isto leva os juízes, in-conscientemente, a tendências de juízos diversificados con-forme a posição social dos acusados, e relacionados tanto àapreciação do elemento subjetivo do delito (dolo, culpa) quan-to ao caráter sintomático do delito em face da personalidade(prognose sobre a conduta futura do acusado) e, pois, à indivi-dualização e à mensuração da pena destes pontos de vista. A

26 - ZAFFARONI, E. R.; BATISTA,N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoriageral do direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 48.27 - Um interessante trabalho nesse sentido, sobre a "esclerose" do discurso penal é o trabalho de CARVA-LHO, Salo de. A ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controlepenal na sociedade contemporânea) in GAUER, Ruth M.C. (org.). A qualidade do tempo: para além dasaperências históricas. RJ, Lúmen Júris, 2004.

28 - Ver, nesse sentido, NEDER, G. Discurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio AntônioFabris Editor, 1995.29 - BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direitopenal. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 177.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 44: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 86 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 87

distribuição das definições criminais se ressente, por isso mes-mo, de modo particular, da diferenciação social. Em geral, po-de-se afirmar que existe uma tendência por parte dos juízes deesperar um comportamento conforme à lei dos indivíduos per-tencentes aos extratos médios e superiores; o inverso ocorrecom os indivíduos provenientes dos extratos inferiores"30.

Nesse sentido, acreditamos ser de grande valia analisar o processo de cri-minalização vivenciado pelo MST, a partir dos discursos dos agentes jurídicos,pois podemos captar a partir das formulações desses agentes a construção deuma ordem social, que busca impor rédeas, ou melhor, cercas jurídicas aosconflitos entre as classes sociais, impondo um controle sobre os extratos infe-riores da sociedade, buscando dessa forma judicializar/normatizar asrelações sociais31.

3 - A PENA COMO ESPETÁCULO: A REPRODUÇÃO DO ENDURECIMENTO

PENAL NOS DISCURSOS DO JUDICIÁRIO E M INISTÉRIO PÚBLICO

COM RELAÇÃO ÀS AÇÕES DO MST E V IA CAMPESINA

Vamos analisar a denúncia promovida pelo Ministério Público a partir dométodo indiciário, proposto por Carlo Ginzburg, buscando nas falas seu con-teúdo metafórico, os estereótipos produzidos, os silêncios de determinadospontos, aspectos que, num primeiro olhar, parecem sem significado ouimportância, enfim os sinais que revelam a ideologia por trás de cada narra-tiva, ou seja, "o que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir dedados aparentemente negligenciáveis, remontar uma realidade complexa nãoexperimentável diretamente"32.

Por esse método é possível se extrair a totalidade do real a partir da análisede uma única denúncia. Optamos por esse método embora a denúncia emface dos integrantes da Via Campesina, apresente uma linha discursiva seme-lhante à analisada nos autos do Pontal do Paranapanema durante o períodode 1992 a 2002, o que nos possibilitaria cotejar os discursos.

Para que compreendamos o papel que o nosso judiciário se impõe no com-bate ao MST, não podemos perder de vista o papel fundante que a mídia iráexercer na construção desse imaginário de periculosidade do movimento, jus-tificando, e mesmo, cobrando ações ofensivas aos seus integrantes.

Para Nilo Batista "o discurso criminológico midiático pretende constituir-seem instrumento de análise dos conflitos sociais e das instituições públicas, eprocura fundamentar-se numa ética simplista (a "ética da paz") e numahistória ficcional (um passado urbano cordial; saudades do que nunca exis-tiu, aquilo que Gizlene Neder chamou de "utopias urbanas retrógradas"). Omaior ganho tático de tal discurso está em poder exercer-se como discurso delei e ordem com sabor "politicamente correto". (...) Os conflitos sociais podemdessa forma ser lidos apenas pela chave infracional: a tragédia fundiáriabrasileira é reduzida à dogmática do esbulho possessório (...)"33.

Nesse sentido, a mídia será um potencializador para os discursos deendurecimento penal sobre o MST, via proliferação de imagens impostas aomovimento, de que este representa um movimento de desordeiros, ao mesmotempo em que irá massificar as noções de lei, ordem, caos, nação, ressaltan-do a inoperância da autoridade no controle efetivo sobre o movimento,requerendo dessa forma um endurecimento penal sobre seus integrantes34.

"Para quem conhece os "métodos" do MST e se lembra darecente invasão e destruição feita pela Via Campesina em PortoAlegre e as invasões e destruições que o movimento promovepaís afora, fica evidente que está sendo organizada a explosãourbana do País. Para quem vê saques em instalações, ocupaçãodos prédios públicos e destruição do patrimônio idem, paraquem assiste a transgressão, a ilegalidade, o crime, dar cober-tura a ações ditas "sociais", fica claro imaginar o que significa omaior movimento de massa nas ruas do Brasil, conforme a evi-dente declaração de guerra do integrante do MST.

Tanto esse "líder", quanto o outro, o Sr. Stédile, e os que formama direção do MST, são useiros provocadores, ameaçadores eexecutores de ações cominadas como criminosas na legislaçãobrasileira, sob a tolerância, o beneplácito , a leniência e até

30 - Ibidem, p. 177/178.31 - Gizlene Neder irá analisar esse processo, entre o final do século XIX e décadas iniciais do século XX, bus-cando desvelar o papel do pensamento jurídico na sedimentação da ordem burguesa no Brasil. NEDER, G.Discurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995.32 - GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das letras,1989, p. 152.

33 - BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Em: Discursos Sediciosos: Crime, Direito eSociedade, RJ, ano 7, nº 12, 2002, p. 276.34 - Para um trabalho sobre o papel da mídia na construção do imaginário social ver LERRER, Débora F. Decomo a mídia fabrica e impõe uma imagem. "A degola" do PM pelos sem-terra em Porto Alegre. RJ, Revan,2005.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 45: Revista Abra 33

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

88

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

89

mesm

o o apoio de autoridades públicas, a começar do presi-

dente da República. Sob o silêncio do Legislativo e a omissão

do Judiciário.

Em nom

e do social patrulham, anestesiam

, infringem, com

etemcrim

es comuns e são tratados com

normalidade. C

aso os "méto-

dos" de "luta" do MST fossem

empregados pelos dem

ais seg-m

entos da sociedade que desejam m

elhores condições sociais,estouraria nas ruas do país um

a brutal guerra civil onde todosse m

atariam. H

á muito o M

ST deixou de ser movim

ento socialpara se tornar um

partido político que prega a ditadura do pro-letariado. N

ão havendo espaço para revoluções ao gosto ver-m

elho, "não bastam as eleições" que legitim

am a chegada ao

poder. É preciso o crime, a arruação, a instabilidade institu-

cional, para prevalecer a "verdade" social dos zumbis de Lênin.

A sociedade brasileira está anestesiada pelo discurso "social" dequem

vem se utilizando das liberdades dem

ocráticas, que per-m

item coexistir diferentes posições políticas, econôm

icas, paraconspirar e derrubar essa liberdade. A im

posição de qualquerregim

e de força impede que haja divergência, oposição e, prin-

cipalmente, luta arm

ada, como a já praticada pelo M

ST contraa sociedade pacífica e desarm

ada, em nom

e da justiça social.

Fosse em C

uba, um m

ovimento com

o esse teria sido dizimado

por Fidel no paredão. Em países cujo regim

e é defendido peloM

ST não existem m

ovimentos de luta social. O

que querempara o Brasil?" (O

crime anunciado Paulo Saab/ D

iário doC

omércio/SP).

Não obstante a construção m

idiática de que se trata de um m

ovimento

propagador da violência, a realidade se mostra divergente. Em

recente relató-rio sobre a violência no cam

po, a Com

issão Pastoral da Terra revela que em2005 houve um

crescimento de 106%

de mortes de trabalhadores rurais sem

terra em conflitos possessórios.

Dado que já se revelava no relatório divulgado em

2003, na qual seapurou que

"(...) Entre janeiro e agosto de 2003, a Com

issão Pastoral daTerra registrou 44 assassinatos de trabalhadores rurais. D

ados

da CPT revelam

que, de 1985 a 2002, foram registrados 1.280

assassinatos de trabalhadores rurais, advogados, técnicos, lide-ranças sindicais e religiosas ligados à luta pela terra. D

estes1.280 assassinatos, apenas 121 foram

levados a julgamento.

Entre os mandantes dos crim

es, somente 14 foram

julgados,sendo sete condenados. Foram

levados a julgamento quatro

intermediários, sendo dois condenados. Entre os 96 executores

julgados, 58 foram condenados.

Entre 1985 e 2002, 6.330 trabalhadores rurais foram presos

em função de suas atividades políticas ligadas à luta pela refor-

ma agrária. Em

2001, ocorreram 254 prisões arbitrárias de tra-

balhadores rurais e, em 2002, 158 cam

poneses foram presos.

Em 2002, houve 43 assassinatos, 20 tentativas de assassinato e

73 ameaças de m

orte contra trabalhadores rurais, além de 44

agredidos fisicamente e 20 torturados. Estes dados revelam

que,historicam

ente, a violência no campo ocorre contra os traba-

lhadores sem terra" 35.

Nessa perspectiva, o que se percebe é um

processo violento de controlesocial, na qual, a pobreza, ao rom

per com a dom

esticação dos corpos deque nos fala M

ichel Foucault, ao romper com

a disciplina que " fabrica assimcorpos subm

issos e exercitados, corpos 'dóceis'", cuja função é garantir umaum

ento das "forças do corpo (em term

os econômicos de utilidade)" e, para-

lelamente, reduzir "essas m

esmas forças (em

termos políticos de obediência" 36,

será mais brutalm

ente penalizada e combatida.

A rebeldia dos integrantes do MST em

se recusar a aceitar passivamente

que algum dia haja a reform

a agrária servirá de elemento para um

a contra-ofensiva por parte do Estado, do Judiciário, dos órgãos de segurança, dam

ídia sempre pronta a reproduzir discursos intolerantes ao m

ovimento, geran-

do um horror ao M

ST, cuja raiz se encontra no fato de que, como nos diz

Marilena C

hauí, o " Movim

ento dos sem-terra que se recusam

a ocupar olugar da vítim

a sofredora, passiva, muda e inerte, que recusam

a compaixão

e por isso mesm

o, numa típica inversão ideológica, são considerados não

sujeitos éticos e sim agentes da violência " 37.

35 - Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos H

umanos em

Colaboração com

Global Exchange.

Direitos H

umanos no Brasil 2003, p.31.

36 - FOU

CAU

LT, Michel. Vigiar e punir. N

ascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 119.

37 - CH

AUÍ, M

. Ética e violência. Revista Teoria e Debate, nº 39, out/nov/dez de 1998, São Paulo,

Fundação Perseu Abramo, p. 35.

Estado p

enal e crim

inalização

do M

ST o

u d

eco

mo o

Judiciário

e míd

ia fabricam

as novas b

ruxas d

e SalémEn

saios e Deb

ates

Page 46: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 90 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 91

Tal leitura nos permite entender a reação violenta da mídia à ação das mu-lheres da Via Campesina, especialmente a RBS, ligada a Rede Globo, e ototal silêncio com relação à Aracruz Celulose e às freqüentes denúncias deataques aos direitos humanos perpetrados por essa empresa no seu processode expansão territorial, com relação aos quilombolas, povos indígenas, co-munidades tradicionais como pescadores e pequenos agricultores familiarese a degradação ambiental provocada pelo plantio do eucalipto.

Assim, figura-se uma simetria discursiva entre JUIZ - PROMOTOR - DELE-GADO DE POLÍCIA E MÍDIA no que se refere à tentativa de impor um imag-inário penal. Logo, em nome da lei e da ordem justifica-se a operação poli-cial (Polícia Civil/RS) que no dia 21 de março de 2006, com a presença daautoridade policial, invadiu a sede da Associação Nacional de MulheresCamponesas (ANMC), apreendendo computadores, danificando o patri-mônio da entidade, não obstante o mandado judicial determinar apenas abusca e apreensão na Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do RioGrande do Sul - AMTR-RS.

Tal operação não produziu indignação na mídia e se legitimou peloJudiciário a partir do recebimento da denúncia da promotoria, que diantedessas operações sobre organizações entendidas como "perigosas", seja qualfor o parâmetro definidor da periculosidade, se guiará pela sedimentação dopapel simbólico do direito penal38, marcado em grande medida pelo ideáriopersecutório penal irracional.

Nessa perspectiva é que se torna concebível o convencimento apontadopelo Ministério Público para o oferecimento da denúncia em face dos trinta esete integrantes da Via Campesina. Mais grave ainda quando se sabe que taldenúncia, desprovida de justa causa para o seu oferecimento, foi recebidapelo Judiciário.

No texto da denúncia, há uma tentativa de criminalização dos que são com-preendidos como lideranças:

"O domínio do fato foi exercido pelos denunciados (...), os quaisplanejaram e organizaram a empreitada criminosa, valendo-sede suas condições de representantes das entidades conhecidascomo Via Campesina, Associação das Mulheres Trabalhadoras

Rurais da Região Sul do Brasil, Associação Nacional das Mulhe-res Camponesas e Associação das Mulheres Trabalhadoras Ru-rais do Rio Grande do Sul e Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Além disso, à exceção do denunciado JOÃO PEDROSTÉDILE, todos os demais estiveram presentes ao local dos fatose participaram da execução do crime em análise, exercendofunção de liderança e coordenação sobre os demais manifes-tantes, bem como exercendo atos típicos de dano.

O denunciado JOÃO PEDRO STÉDILE, em que pese não tersido comprovada sua presença no local dos fatos, exerceufunção decisiva no planejamento e na execução do crime, namedida em que estimulou os demais denunciados à prática dodelito (participação moral), além de concorrer materialmentepara a sua consecução, seja ao colaborar com a sua con-cepção, seja ao oferecer subsídios teóricos para sua execução,ou mesmo ao promover a adesão de centenas de simpatizantesde seu Movimento ao ato que culminou em resultado criminoso" (denúncia do Ministério Público de Barra do Ribeiro/RS - proc.nº 20600001785 - grifo nosso).

Da mesma forma que se torna impossível saber quem de fato estava naação realizada pelas mulheres da Via Campesina, posto que participaramcerca de duas mil mulheres vendadas, é impossível se estabelecer a partici-pação moral. Tal presunção, que sustenta a denúncia, só se valida numaprática que visa, de forma emblemática, criminalizar a liderança dos movi-mentos sociais, como forma de criar um consenso de que se trata de umaorganização criminosa, portanto com métodos organizacionais e hierarquias.

"(...) Assim, lograram articular a quadrilha, organizando efi-ciente mecanismo de transporte para centenas de manifestantes,conduzindo-os, em sua maioria armados de foices, facões,pedaços de madeira e varas de taquara com facas amarradasà extremidade (fotografias das fls. 286, 299, 301 e 313), até oMunicípio de Barra do Ribeiro, onde desencadeou-se o proces-so de cometimento de crimes de dano qualificado, furto, seqüe-stro e cárcere privado, entre outros.

Os documentos apreendidos em poder dos denunciados (e jun-tados ao inquérito policial) dão conta de estrutura funcionalextremamente organizada, constituída e mantida de forma

38 - Ver CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. RJ, Lúmen Júris, 2002; e ANDRADE, Vera R.P. de. A Ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal. RS, Livraria doAdvogado, 2003.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 47: Revista Abra 33

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

92

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

93

estável, de modo a possibilitar, tanto quanto fosse vontade dos

acusados, a realização de novas empreitadas crim

inosas emoutros m

unicípios ou regiões.(...)"(denúncia do M

inistério Público de Barra do Ribeiro/RS - proc.nº 20600001785 - grifo nosso).

A tentativa de criminalização das cham

adas liderançasvisa justificar a

imputação do crim

e de bando ou quadrilha, e, de forma m

ais grave, apontapara um

a construção no concreto processual da responsabilidade penal obje-tiva. Tal perspectiva fere de form

a mortal os princípios com

ezinhos do devidoprocesso legal, no m

esmo sentido em

que se confronta com a nossa C

artaC

onstitucional, que preceitua como regra processualista no cam

po penal, oprocesso acusatório.

"Na ocasião, os denunciados acim

a nominados, representantes

das entidades

sociais conhecidas

como

Via C

ampesina,

Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais da Região Sul

do Brasil, Associação Nacional das M

ulheres Cam

ponesas eAssociação das M

ulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande

do Sul e Movim

ento dos Trabalhadores Sem-Terra, algum

asregularm

ente constituídas sob a lei brasileira, r euniram-se sob o

pretexto de realizarem m

anifestações de cunho ideológico ereivindicatório, m

as com o real propósito de agregarem

simpa-

tizantes e, de forma organizada e estável, com

eterem atos crim

-inosos em

flagrante excesso de suas prerrogativas de protesto ereivindicação. (...)

A forma de constituição do grupo responsável pelos crim

es oradenunciados, bem

como o fato de que as associações de tra-

balhadores rurais representadas pelos denunciados ocupavamsede com

um, de existência e localização revestidas de segredo

e clandestinidade, são elementos que corroboram

a pretensãode continuidade e estabilidade das ações crim

inosas inaugu-radas neste m

unicípio."(denúncia do M

inistério Público de Barra do Ribeiro/RS - proc.nº 20600001785 - grifo nosso).

Não é a lei que define ser form

ação de quadrilha ou bando as ocupaçõesreivindicatórias do M

ST ou de outras organizações que lutam pelo acesso à

terra. Tal definição parte de uma interpretação do juízo, portanto, ideologia.

Afinal, como nos lem

bra Gizlene N

eder, "o discurso jurídico, ao erigir nor-m

as e constituir (i)legalidades, coloca-nos diante de um D

ireito que não éestático, nem

mesm

o 'positivo'. Ao normatizar, disciplinar e/ou confinar (e

exterminar), apresenta-se com

o resultante de uma correlação de forças so-

ciais e políticas em form

ações sociais historicamente estabelecidas " 39.

A reorientação para crime de form

ação de quadrilha ou bando irá requer-er um

processo de 'demonização' da liderança, isto porque o elem

ento sub-jetivo do tipo penal "form

ação de quadrilha ou bando" é o fim de associar-se

para o cometim

ento de ilícito. Assim, não é necessário que haja a concretiza-

ção bem sucedida do crim

e em si, bastando o sim

ples fato de se associar.

Num

país sem tradição dem

ocrática como o nosso, onde nossa elite gover-

nante sempre atuou com

enormes desconfianças para qualquer organização

social de trabalhadores, a possibilidade de criminalização por m

eio da tipifi-cação em

formação de quadrilha ou bando se am

plia, em especial para um

movim

ento, que questionará o cerne do direito burguês, que é a própria pro-priedade.

Essas estratégias processuais de endurecimento penal sobre o M

ST, queexpressam

a ampliação do Estado Penal descrito por W

acquant, também

re-velam

um redim

ensionamento do direito de propriedade.

Seja nas ações cíveis (possessórias), seja nas ações criminais, há um

a pre-ocupação com

a garantia do statusquo do direito de propriedade. O

simples

ato de ocupar coletivamente a terra já produz um

a fissura nesse direito, noque pese o conceito de função social criar m

ecanismos utilitários para terra,

entendido ainda como absoluto.

Razão pela qual se tentará criminalizar as ocupações coletivas, retirando o

conteúdo político e social das ações do MST:

"A luta pela terra caracteriza-se pelo ato de posse da terra, fatode profundo sentido conceitual e que, com

o ocorrência históri-ca, antecede à figura da propriedade, m

ero efeito jurídico cons-truído pelo direito, para garantir na lenta passagem

da for-m

ação sócio-econômica feudal para a form

ação capitalista, apropriedade da terra a quem

não estivesse em sua posse efeti-

39 - NED

ER, Gizlene. D

iscurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,

1995, p. 98.

Estado p

enal e crim

inalização

do M

ST o

u d

eco

mo o

Judiciário

e míd

ia fabricam

as novas b

ruxas d

e SalémEn

saios e Deb

ates

Page 48: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 94 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 95

va. Construiu-se assim o conceito de propriedade como relaçãoou vínculo jurídico independente da posse (...) nas circunstân-cias de fato da ocupação pode dizer-se que a posse na práticaconcreta das ocupações, é o mais forte mecanismo de correçãoda propriedade. Direito em construção, a ocupação coletivainfirma, ou nega, concomitantemente, os fundamentos essen-ciais do direito burguês: o subjetivismo jurídico individual (...)"40.

Podemos então compreender porque um movimento social, como o MST,que rompe com a construção de uma cidadania regulada41, uma cidadania"outorgada" pelo Estado, ou como nos fala José Murilo de Carvalho42 umaestadania, reconstruindo sua agenda de direitos em conflito com o Estado,rompendo com a lógica da obediência, imposta pelo ente estatal às classespopulares, torna-se um inimigo a ser vencido:

Essa insurgência do MST entra em choque com o judiciário, que buscaarrefecer a luta pela terra, impondo uma prática mais submissa ao movimen-to. Torna-se elucidador para compreensão do papel desempenhado pornossa magistratura não perder de vista que "o juiz construído no Brasil sobinspiração externa e interna do fascismo e do nazismo irá representar, quan-do aguçam os conflitos de terra, importante papel repressivo em benefício dasclasses possuidoras"43.

A pratica persecutória, então, fundamenta-se por si só. Trata-se de umacruzada contra a desordem e a impunidade. Tal construção ideológica pene-tra em nosso Judiciário que acaba por recepcionar denúncias marcadas pelainépcia, como o caso da presente denúncia, especialmente com relação aimputação de furto:

"Nas mesmas circunstâncias de tempo e local referentes ao fatodescrito no item anterior, simultaneamente ao cometimento docrime de dano antes definido, os denunciados (...) conjugandoesforços e vontades entre si e com mais aproximadamente 1000(mil) pessoas não identificadas no inquérito policial, subtraíram,

para si ou para outrem, um disco rígido de memória para micro-computador, tipo winchester, preenchido com arquivos e infor-mações pertinentes à atividade industrial realizada no estabeleci-mento atacado, objeto que pertencia à empresa Aracruz CeluloseS/A, e que estava nas dependências do laboratório de pesquisasgenéticas mantido junto ao Horto Florestal Barba Negra.

Na ocasião, os denunciados, aproveitando-se da ação dedepredação que executavam no local, subtraíram o equipamentoacima descrito, conforme planejamento anteriormente definido.

O domínio do fato foi exercido pelos denunciados (...), os quaisplanejaram e organizaram a empreitada criminosa, determinan-do aos co-denunciados, expressamente, o objetivo de furtar odisco rígido de memória computadorizada.

O denunciado JOÃO PEDRO STÉDILE, em que pese não tersido comprovada sua presença no local dos fatos, exerceufunção decisiva no planejamento e na execução do crime, namedida em que colaborou para a difusão do animus furandientre os demais denunciados, instigando-os a subtrair esseequipamento específico, decerto por lhe interessar o conteúdoarquivado no disco rígido"(denúncia do Ministério Público de Barra do Ribeiro/RS - proc.nº 20600001785 - grifo nosso e no original).

Mais uma vez o que se observa na construção discursiva do MinistérioPúblico é a tentativa de criminalização de forma abstrata. Para garantir acriminalização das lideranças dos movimentos que integram a ViaCampesina, sustenta a promotoria a partir do elemento subjetivo do tipofurto, o animus furandi, que vislumbra o desejo de ter para si a coisa alheia.

Dessa forma, a promotoria compõe sua denúncia com os nomes das lide-ranças partindo de uma presunção, de um pré-julgamento de que haveria uminteresse a priori para obtenção da coisa, sem nenhuma comprovação con-creta. Tal imputação não poderia em nome do devido processo legal ter sidorecebida pelo Judiciário.

No que pese a denúncia se calcar em indícios, pois se trata de uma tese aser verificada ao longo da instrução criminal em contradita com a tese defen-siva, tais indícios devem ser fortes no que se refere à autoria e materialidade

40 - BALDEZ, M. L. A luta pela terra urbana. Mimeo, S/D.41 - "Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas as raízes encontram-se, não em um códi-go de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estra-tificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membrosda comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas emlei". SANTOS, W.G. Cidadania e Justiça. RJ, Campus, 1979, p. 75, grifos no original.42 - CARVALHO, J.C. Cidadania no Brasil. O longo caminho. RJ: Civilização Brasileira, 200143 - BALDEZ, Miguel L. Sobre o papel do direito na sociedade capitalista. Ocupações coletivas: direito insur-gente. RJ, Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 1989, p. 7.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 49: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 96 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 97

do crime, gestando a base para a promoção da denúncia, ou, em outros ter-mos, a justa causa para o oferecimento da denúncia.

Porém, na denúncia analisada não há constrangimento por parte da pro-motoria em oferecê-la por furto sem o menos indício de autoria e mesmo damaterialidade, pois como o próprio promotor esclarece no seu texto:

"(...) ainda que não tenham participado da ideação do crime defurto, foram instruídos pelos demais acusados (acima referidos)a cometê-lo, sendo que o fizeram, retirando a res da esfera devigilância da empresa vítima, sem que se possa ter identificadoo agente diretamente encarregado da subtração.

A res furtiva não foi recuperada, tampouco avaliada."(denúncia do Ministério Público de Barra do Ribeiro/RS - proc.nº 20600001785 - grifo nosso e no original).

4 - CONCLUSÃO

Essa criminalização vivenciada pelo MST, se insere num processo maisamplo de criminalização da miséria. Wacquant aponta para o fato de que ocapitalismo neoliberal, ao promover a redução da ação estatal em termos depolíticas sociais, requererá, em especial pelo progressivo aumento da miséria,uma ampliação da ação estatal em termos de políticas de segurança - é o Es-tado Penal.

Assim, uma das características desse Estado Penal é uma intolerância comrelação ao pequeno delito, à mínima transgressão. Nesse sentido, esse Esta-do Penitenciário, necessitará ampliar o rol de categorias entendidas comoperigosas. Trata-se agora de exercer uma pressão máxima (o outro lado dalógica da tolerância zero) sobre os consumidores falhos de que nos falaBauman e de certa forma expressa uma banalização da vida, onde o outro,os refugos humanos, não é visto mais como um semelhante.

Tornou-se um bárbaro e como tal pode ser eliminado, ou um quasehumano como narra de forma brilhante Eduardo Galeano através da fala deum gerente de empresa de transporte mexicana ao declarar para imprensasobre os meninos de rua que surfavam em cima do ônibus: "Não desejamosque os meninos morram, pois de algum modo são humanos"44.

Razão que faz o historiador Hobsbawm, ao analisar a perspectiva futura dosocialismo, a reafirmar o projeto socialista como contraponto ao capitalismo,pois "(...) A sua defesa assenta-se no fato de que o capitalismo ainda cria con-tradições e problemas que não consegue resolver e que gera tanto a desi-gualdade (que pode ser atenuada através de reformas moderadas) comodesumanidade (que não pode ser atenuada)"45.

Assim, entendemos que o grau de barbarização da vida que o capitalismoneoliberal vem produzindo, revela a verdadeira face do capitalismo, sem ne-nhum atenuante. O capitalismo neoliberal é o capitalismo sem maquiagem, é omundo ao avesso, um mundo do mal-estar social, como nos lembra Galeano.

Essa é marca do atual cenário, na qual o outro é quase humano ou nãohumano. Esse olhar desumanizador do outro, essa indiferença com relação àvida humana é a principal ferramenta para a legitimação dos discursos deendurecimento penal, que como vimos, no limite, adota o extermínio damassa empobrecida sem nenhum constrangimento, afinal trata-se de umaguerra contra os bárbaros.

Desvelar as construções ideológicas, os valores sedimentados, as idéiasreificadas pelo neoliberalismo é ponto central para a superação desse proces-so de barbarização da vida. Pois nos fazem ter a dimensão concreta dos dis-cursos de endurecimento penal.

Entendemos que a criminalização ao MST expressa essa conjuntura globalde fortalecimento do Estado Penal, que necessita impor freios, "cercas" aosque lhe são avessos, embora não tenhamos perdido de vista que há um agra-vante no que se refere ao MST, pois este provoca na raiz, um direito intocá-vel, absoluto, na ótica burguesa: a propriedade.

Essa demonização, sofrida pelo MST e também pela Via Campesina, inte-gra a lógica seletiva do sistema penal. As análises dos discursos dos opera-dores jurídicos nos permitem perquirir o papel que o judiciário vem desem-penhando no exercício de controle das camadas empobrecidas da sociedadee como o direito vem sendo o instrumento pela qual essas cercas estão sendosedimentadas.

O desafio que se impõe ao nosso Judiciário é romper com essa sedutoracerca jurídica, que provoca o 'engessamento' do direito, é romper com uma

44 - GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre, L&PM, 1999, p. 15.45 - HOBSBAWM, Eric. Renascendo das cinzas. In BLACKBURN, Robin (org). Depois da Queda, Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1992. p. 268/70.

Estado penal e criminalização do MST ou decomo o Judiciário e mídia fabricam as novas bruxas de Salém

Ensaios e Debates

Page 50: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 98

construção ideológica de um direito formal, que expressa uma noção de'ordem social', hierarquizada e 'imutável'.

Estará nosso Judiciário a altura dos desafios que o mundo da vida lheimpõe? Essa é uma resposta que não pode ser dada por agora, embora noque se refira à luta pela terra, para os milhões de trabalhadores rurais semterra o portal do Judiciário apresenta a mesma resposta que o portal doInferno de Dante Alighieri: "Renunciai às esperanças, vós que entrais".

Ensaios e Debates

Campanha Internacional

Contra a Violência no Campo:

instrumento de luta pela

reforma agrária e contra a

violação dos direitos humanos

Paulo de Tarso Caralo1

O 9º Congresso Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais -CNTTR, realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores naAgricultura - CONTAG em fevereiro de 2005, aprovou a realização de umaCampanha Internacional contra a violência no Campo no Brasil, a partir deuma proposta apresentada, naquela oportunidade, pela UITA - UniãoInternacional de Trabalhadores da Alimentação e Agricultura. Ao tomaremesta decisão, os delegados e delegadas do 9º CNTTR avaliaram a grave si-tuação de violência, impunidade e violação dos direitos humanos que perma-nece no campo e compreenderam a campanha como um importante instru-mento de combate a esta insustentável realidade e de reforço à luta pelaReforma Agrária ampla e massiva.

Com o slogan - "Chega de Violência no Campo - Corte este mal pela raiz",a campanha foi lançada no dia 07 de março, de 2006, em Porto Alegre,como uma das atividades simultâneas à Conferência Internacional deReforma Agrária e Desenvolvimento Rural, coordenada pela FAO. Além doato de Porto Alegre, estão previstos outros eventos nos demais estadosbrasileiros e em alguns países da Europa e América Latina para apresentaçãoda proposta e busca de adesão dos diversos setores, numa perspectiva deampliação das ações e das parcerias, com o envolvimento daqueles que con-cordarem com os termos e objetivos da campanha.

1 - Paulo de Tarso Carlo é Secretário de Política Agrária e Meio Ambiente da CONTAG

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 99

Page 51: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 101

Campanha Internacional Contra a Violência no Campo: instrumento deluta pela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanos

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 100

Ensaios e Debates

O principal objetivo é denunciar o modelo de desenvolvimento agrário con-centrador de terra e renda que promove a exclusão social e produtiva, adegradação do meio ambiente e é gerador da violência no campo.Buscaremos sensibilizar e obter a solidariedade e o apoio da sociedade civil,nacional e internacional e o comprometimento dos órgãos do Estado paraimplantação de políticas contra a violência e a impunidade e pela realizaçãoda Reforma Agrária.

O fundamental é que a campanha propicie a soma de esforços das enti-dades, organizações e personalidades nacionais e internacionais às lutascotidianas que os trabalhadores e trabalhadoras rurais desenvolvem em todoo Brasil. Para tanto, é preciso ampliar a compreensão quanto às causas, ca-racterísticas e conseqüências da violência no campo, assegurando medidasque possam ir além da denúncia, garantindo ações concretas que levem àerradicação da violência e ponham fim à impunidade.

Com este trabalho e, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, pordemais vasto, trazemos elementos e reflexões sobre alguns aspectos da vio-lência no campo, procurando demonstrar nossas razões para esta luta.Esperamos que, com esta campanha, possamos ter uma ampla adesão deparceiros, pois só uma grande aliança, solidariedade e envolvimento de todose todas, seremos capazes de romper com os laços que unem o latifúndio e oagronegócio à degradação ambiental, à grilagem, à exclusão, à fome enfim,todas as formas de violência no campo.

1. As Principais Razões Da Violência No Campo:

a) A concentração da terra:

A violência no campo está diretamente vinculada à concentração da terrae do poder e ao modelo predador e excludente de desenvolvimento rural, his-toricamente, implantado no Brasil. A concentração fundiária no Brasil é umadas maiores do mundo. O Cadastro declaratório do INCRA - InstitutoNacional de Colonização e Reforma Agrária, demonstra que os imóveis ruraiscom mais de 1.000 hectares representam 1,6% dos imóveis cadastrados e46% da área total. Segundo, ainda, os dados do INCRA, existem mais de 100milhões de hectares de terras ociosas no Brasil, ao mesmo tempo que maisde seis milhões de famílias vivem sem terra e em estado de pobreza extrema,no campo ou nas periferias das cidades, lutando pela reforma agrária comoalternativa de vida, produção e cidadania.

A concentração da terra está diretamente relacionada à concentração dopoder. Os poucos donos das terras, que sempre receberam privilégios eexerceram influência sobre as instâncias do Estado brasileiro, além de se sen-tirem donos da natureza para explorá-la até à exaustão, também se compor-tam como se fossem donos das pessoas, especialmente as mais pobres. Emnome de seus interesses pessoais, financeiros e políticos, os latifundiáriosexploram, escravizam, ameaçam, torturam e matam aqueles e aquelas queousam lutar contra seus privilégios.

A concentração fundiária brasileira, que tem sua origem na colonizaçãofeita pelos Portugueses, foi aprimorada ao longo dos séculos, apoiada pelaspolíticas governamentais que sempre privilegiaram o latifúndio em detrimen-to da realização da reforma agrária ou da agricultura familiar. Atualmente, omodelo agrícola embasado no agronegócio monocultor e voltado para aexportação se expande rapidamente. Grileiros, fazendeiros, madeireiros,grandes plantadores da soja, de algodão, cana de açúcar, pecuaristas cria-dores de grandes áreas de pastos, em nome da modernidade e da produtivi-dade, avançam sobre terras públicas, áreas indígenas, áreas ocupados porpopulações tradicionais e posseiros, ribeirinhos e outros. No afã de ampliarsuas terras, acirram os conflitos no campo e produzem a violência das maisvariadas formas, como a super exploração no trabalho e o trabalho escravo,a grilagem das terras, os crimes ambientais, os espancamentos, despejos,seqüestros, ameaças e assassinatos.

b) A grilagem de terras e a expansão da fronteira agrícola:

Para exemplificar esta razão de acirramento da violência, abordaremos a situa-ção da região Amazônica, em especial o Estado do Pará, reconhecida nacional einternacionalmente como uma das regiões de maiores índices de violação dosdireitos humanos do País. A origem destes conflitos está no processo de ocupa-ção da terra na região, inicialmente impulsionada pelas políticas dos governos mi-litares de estímulo à exploração de suas riquezas minerais e naturais pelos grandesgrupos econômicos e pecuaristas do sul e sudeste do Brasil. Para incentivar esteprocesso, o governo projetou a expansão da fronteira agrícola por meio das lici-tações de grandes áreas públicas, com a formação de grandes fazendas financia-das com recursos do Estado. Além destes projetos incentivou, implementou e fi-nanciou várias outras ações estratégicas para a ocupação da região, a exemploda rodovia Transamazônica, da hidrelétrica de Tucuruí e do Projeto Ferro Carajás.

O outro lado da ocupação da região Amazônica se deu pela migração deum contingente de trabalhadores sem terra, incentivados por uma ampla

Page 52: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 103ABRA - REFORMA AGRÁRIA 102

Ensaios e Debates

campanha nacional que prometia terra para morada e produção. Com isso,uma considerável população pobre migrou para a região. Entretanto, sedepararam com a concentração de terras pelos grandes grupos econômicose pecuaristas, com a falta de infra-estrutura e de atendimento básico, desem-prego, malária e muitas outras mazelas. Como alternativas de sobrevivênciae de produção esta população partiu para a ocupação de terras públicas oude latifúndios improdutivos ou para os garimpos. Muitos foram levados parao interior das grandes fazendas onde foram submetidos ao trabalho escravo.

Atualmente, a situação se agravou com o avanço do agronegócio, espe-cialmente o da produção de soja e pecuária de corte. A região, consideradaa maior fronteira de ocupação agropecuária e extrativista do país, padececom a tradicional grilagem de áreas públicas, a ação dos madeireiros e dospecuaristas e plantadores de soja que alteram drasticamente a paisagem e avida do povo.

A relação entre a expansão da fronteira agrícola e ampliação do agronegó-cio com a violência está confirmada por vários estudos. Como exemplo,encontram-se as afirmações presentes no release à imprensa elaborado pelaCPT, por ocasião da apresentação do Relatório de 2005 sobre os Conflitosno Campo no Brasil, dizendo que "Relacionando o número de conflitos e deviolência com os dados da população rural, estes números são significativa-mente maiores nos estados onde mais cresce e se expande o agronegócio,regiões Centro-Oeste e Norte. O Mato Grosso aparece com o maior índice,6,71, seguido pelo Pará, 5,15, e depois por Goiás, 2,92, Tocantins, 2,82,Mato Grosso do Sul, 1,89, Roraima, 1,70, Rondônia 1,48 e Amapá, 0,87."Além destes estados, a monocultura, principalmente, da soja, eucalipto ecana de açúcar se expande rapidamente sobre o território de vários outroscomo, por exemplo, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Sul, com forte pressãodos grandes produtores sobre as populações tradicionais, acirrando as situa-ções de violência e os despejos forçados.

c) A impunidade:

A outra grande razão para a violência no campo no Brasil é, sem dúvida,a impunidade. Ela é uma importante cúmplice da violência e traz para a cena,além da não penalização dos responsáveis pelos crimes, uma situação deatemorização da população e demonstração de impotência das autoridades.

Para se ter uma idéia da gravidade da situação de impunidade no campo,basta que se analise os dados registrados pela CPT - Comissão Pastoral da

Terra. Durante os últimos 20 anos foram assassinados mais de 1.385 traba-lhadores rurais, lideranças e ativistas ligados aos movimentos sociais de lutapela terra e pela reforma agrária no Brasil. Destes casos, somente 77 foramjulgados, com a condenação de apenas 15 mandantes e 65 executores. 523destes assassinatos aconteceram no estado do Pará e apenas 10 casos forama julgamento, com a condenação de 5 mandantes e 8 executores. Mesmoassim, todos os executores condenados fugiram da cadeia. Três fazendeiroscondenados como mandantes de assassinatos de sindicalistas estão em liber-dade-um cumpre sua pena em prisão domiciliar e os outros dois aguardamjulgamento de recursos em liberdade há dois anos-, devido à parcialidade emorosidade da Justiça.

O massacre de Eldorado de Carajás-onde 17 trabalhadores sem terraforam assassinados pela polícia-é um exemplo de como a Justiça age notratamento dos crimes contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais.Nenhum dos 144 soldados envolvidos no caso foi punido. Os dois coman-dantes responsáveis pela operação, coronel Mário Colares Pantoja e majorJosé Maria Pereira de Oliveira, apesar de condenados a 264 anos pelo júripopular, aguardam em liberdade o julgamento de recursos no SuperiorTribunal de Justiça

Outro caso emblemático da impunidade é o do assassinato de MargaridaMaria Alves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de AlagoaGrande, no Estado do Paraíba. Ela foi assassinada por defender os direitosdos trabalhadores e trabalhadoras das plantações de cana de açúcar daregião. Após mais de 20 anos, com o julgamento adiado por 06 vezes, o tri-bunal absolveu o fazendeiro Zito Buarque, acusado pelo assassinato.

Ainda como reflexo da situação de impunidade, existem atualmente 266pessoas ameaçadas de morte, segundo dados parciais da CPT. São traba-lhadores rurais sem terra, acampados, assentados e agricultores familiares,dirigentes sindicais, funcionários públicos, agentes pastorais, religiosos,índios, quilombolas, entre outros. No estado do Pará, há uma "Lista dos mar-cados para morrer", elaborada pelos fazendeiros da região, na qual constamnomes de dirigentes sindicais, políticos e lideranças locais que devem sereliminados pelos jagunços. O mais triste é que, apesar das inúmeras denún-cias feitas às autoridades municipais, estaduais e federais, as ameaças sãocumpridas e a lista, só não diminui porque no lugar dos assassinados, novasvítimas em potencial são incluídas na relação, sem que os culpados sejampunidos pelos seus crimes.

Campanha Internacional Contra a Violência no Campo: instrumento deluta pela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanos

Page 53: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 105ABRA - REFORMA AGRÁRIA 104

Ensaios e Debates

2. As Principais Características Da Violência No Campo:

a) A violência é seletiva: Apesar da violência dos latifundiários vitimar qual-quer um que se oponha a seus interesses, ela atinge, principalmente, as pes-soas que tenham poder de influência e de formação de opinião sobre ascomunidades. Por isso, dizemos que ela é seletiva, pois suas principais vítimassão os dirigentes sindicais, lideranças sociais, agentes pastorais e comu-nitários, religiosos, parlamentares, advogados, etc.

É importante destacar que a organização para os crimes envolve umatabela de preços para as vítimas. Quanto mais influente for a liderança a sereliminada, mais alto é o valor a ser pago pelo seu assassinato, mesmo queestes sejam irrisórios.

b) A violência é Institucional: Uma outra característica da violência nocampo é a sua institucionalidade. Quase sempre, as ações de repressão àslutas que geram as agressões e desrespeito aos direitos humanos sãoapoiadas pelos organismos do Estado, em especial os órgãos de segurançapública. A interpretação das leis e as determinações do poder judiciário, colo-cando o direito à propriedade acima do direito à vida e à sobrevivência, namaioria das vezes, corrobora e sustenta as ações dos demais poderes, quenão exitam em colocar o aparato público a favor dos latifundiários e contraos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Para exemplificar, registra-se que em2005 mais 25 mil famílias de sem terra foram vítimas de despejos, em opera-ções quase sempre ordenadas pelo Poder Judiciário e executadas violenta-mente pela polícia militar. Estas famílias se somam às mais de 70 mil outras,também despejadas nas mesmas condições nos anos de 2003 e 2004.

A relação tendenciosa existente entre autoridades públicas e os latifun-diários gera uma escandalosa desigualdade no tratamento dos fatos e denún-cias decorrentes da violência contra trabalhadores e trabalhadoras rurais.Enquanto os pistoleiros e mandantes dificilmente têm seus crimes apurados egozam da impunidade, há impressionante agilidade, eficiência e dispêndio derecursos humanos e financeiros para condenar, prender ou despejar traba-lhadores que lutam pelo direito à terra.

c) A violência é organizada: Apesar da ocorrência de fatos isolados, a violên-cia no campo está ligada às organizações formais ou informais dos latifundiários.São criados consórcios, associações, união de ruralistas, etc., como formas dese estabelecer "redes" de financiamento para os assassinatos e de proteção paraas propriedades rurais contra a ação dos trabalhadores e trabalhadoras rurais,

especialmente os sem terra. Estas organizações se valem da contratação emanutenção de milícias privadas e de advogados e promovem a compra dearmas, dentre outras ações ilegais. É comum, também, a criação de "empresasde seguranças", que na verdade são empresas de fachada para dar um caráterde legalidade à contratação de pistoleiros para as fazendas.

d) A violência é generalizada: Apesar de se destacar, principalmente noestado do Pará, a violência no campo está presente em todos os estados doPaís. Mesmo que não se registrem assassinatos, a forma mais divulgada deviolência, os trabalhadores e trabalhadoras rurais sofrem permanentementecom os despejos, ameaças, prisões ilegais, exposição aos agrotóxicos, traba-lho escravo, superexploração do trabalho, dentre outras. Este fato nega, in-clusive, o discurso de muitos fazendeiros, intelectuais, parlamentares e seusaliados, que alegam que só os atrasados latifundiários dos rincões do paíspermanecem com práticas violentas, não aceitas pela maioria dos modernosempregadores rurais e dos defensores do agronegócio. A existência de traba-lho escravo no Rio Grande do Sul, inclusive com a utilização de crianças e amorte, por excesso de trabalho, de 13 trabalhadores cortadores de cana nasusinas de açúcar e álcool do estado de São Paulo, são exemplos que demons-tram esta generalidade e que caracteriza, enquanto classe, os exploradores evioladores dos direitos humanos no campo.

3. O Trabalho Escravo

Uma das formas cruéis, graves e persistentes de violação dos direitoshumanos diz respeito à existência do trabalho escravo. Muitos trabalhadoresrurais, oriundos de vários estados do Brasil, principalmente dos estados doMaranhão, Tocantins, Piauí e Pará, são levados para o interior de fazendas,na maioria das vezes para fazer serviço de derrubada de florestas para aber-tura de novas fazendas, manutenção de pastos e construção de cercas.Tentando fugir das responsabilidades trabalhistas, os fazendeiros utilizam-sedos "gatos", que são representantes dos fazendeiros para contratação de tra-balhadores para os serviços de empreitadas nas fazendas. Estas contrataçõesquase sempre acontecem em estados diferentes do local do serviço, paraonde se dirigem os gatos em busca de pessoas desempregadas ou em situa-ção de vulnerabilidades, sujeitas mais facilmente às falsas promessas de van-tagens econômicas e trabalhistas que apresentam. Levados para áreasgeograficamente isoladas, os trabalhadores já saem endividados pelo paga-mento da hospedagem e de algum dinheiro deixado para seus familiares pelogato. Esta dívida se avoluma com o tempo, pelas compras nas cantinas ou

Campanha Internacional Contra a Violência no Campo: instrumento deluta pela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanos

Page 54: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 107ABRA - REFORMA AGRÁRIA 106

Ensaios e Debates

barracões mantidos pelos mesmos gatos e são umas das razões para impedi-rem a saída dos trabalhadores dos locais de trabalho. Além destas dívidasforçadas, o isolamento e a vigilância armada de pistoleiros transformam mi-lhares de trabalhadores em escravos. Se tentarem fugir, são torturados e, emmuitos casos, assassinados.

O número real de trabalhadores submetidos à escravidão não é conheci-do, pois só é possível o registro daqueles que obtêm sucesso na fuga e con-seguem oferecer denúncia. Estima-se que o trabalho escravo atinge cerca de25 mil trabalhadores de forma mais ou menos permanente no Brasil. Em2005, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do MTE - Ministério doTrabalho e Emprego, realizou 81 operações de combate ao trabalho escravo,com fiscalização em 183 fazendas e a libertação de 4.585 trabalhadores.

A maior incidência do trabalho escravo está nos estados onde há uma forteexpansão da fronteira agrícola sobre a floresta nativa. Esta realidade é con-firmada pelas operações realizadas pelo Grupo Especial Móvel de Fiscaliza-ção, que promoveu a libertação de trabalhadores principalmente nestas áreasdos Estados do Pará, Mato Grosso, Tocantins, Bahia e Goiás. O Pará foi oEstado com o maior número de trabalhadores libertos, 1.128 ao todo.

A ação do trabalho do Grupo Especial Móvel de Fiscalização tem, também,sofrido com a violência dos fazendeiros. Os exemplos mais marcantes destaviolência são os assassinatos dos auditores fiscais do trabalho em Unaí - MG,ocorrido em 28 de janeiro de 2004 e o ataque a tiros sofrido por um grupode fiscalização no dia 08 de fevereiro de 2006, em uma fazenda no municí-pio de Nova Lacerda, Mato Grosso.

Apesar de ainda insuficientes e distantes da promessa do governo deerradicar o trabalho escravo, as ações públicas de combate ao trabalhoescravo começaram a surtir alguns resultados, com prisões temporárias defazendeiros; condenações pecuniárias pela justiça do trabalho; publicação da"lista suja" de fazendas flagradas com prática de trabalho escravo, as quaisserão proibidas de receber financiamento público. Entretanto, a impunidadeem relação aos infratores ainda é a regra geral. Além da punição, o esforçodo governo deve se voltar para a implementação de políticas públicasamplas, em especial a reforma agrária.

Encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados uma Proposta deEmenda à Constituição- PEC - 438-A/2001, que prevê o confisco de terrasonde for encontrado trabalho escravo. As negociações no Congresso se

arrastam há muitos anos, com forte resistência da bancada ruralista, que temse valido de várias manobras para impedir a votação. E, como se trata deuma PEC, a aprovação depende da maioria dos votos dos parlamentares, oque torna mais difícil a conclusão do processo, dado ao expressivo númerode parlamentares com perfil conservador e contrário aos interesses dos tra-balhadores e trabalhadoras.

4. Principais Reivindicações:

O Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - MSTTR,coordenado pela CONTAG, com a execução da Campanha InternacionalContra a Violência no Campo, tem reforçado suas reivindicações pela imple-mentação de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável eSolidário para o Brasil. Para tanto, é fundamental que seja implementada aReforma Agrária ampla e massiva e asseguradas as condições para a amplia-ção e o fortalecimento da agricultura familiar. Como medida de urgência, exi-gimos as medidas abaixo, fundamentais para que se construa uma situaçãode paz e dignidade no campo:

� Cumprimento de todas as metas do PNRA, assegurando oassentamento imediato e com qualidade de todas as famíliasassentadas;

� Colocar em pauta e aprovar imediatamente a Proposta deEmenda Constitucional (PEC) nº 438, de 2001, que altera oartigo 243 da CF e pune a prática do trabalho escravo;

� Publicar imediatamente a Portaria Interministerial de atualiza-ção dos índices de produtividade agropecuária

� Concluir com rapidez os inquéritos de todos os processos judiciaispendentes, assegurando o julgamento e a prisão de todos os culpa-dos pela violência cometidas contra os trabalhadores e trabalhado-ras rurais e demais defensores dos direitos humanos no Brasil.

� Tomar medidas efetivas para impedir os despejos ilegais earbitrários;

� Promover a retomada das terras públicas griladas, destinan-do-as aos projetos de assentamento;

Campanha Internacional Contra a Violência no Campo: instrumento deluta pela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanos

Page 55: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 109ABRA - REFORMA AGRÁRIA 108

Ensaios e Debates

� Qualificar os procedimentos e ampliar os recursos para aerradicação do trabalho escravo e a manutenção do Cadastrode Empregadores, conhecido como "Lista Suja";

� Revogar os planos irregulares de manejo florestal.

� Constituir um grupo interministerial (Ministério doDesenvolvimento Agrário, Meio Ambiente, Justiça, IntegraçãoNacional, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministérioda Defesa, Ouvidoria Agrária Nacional e Polícia Federal) paraatuar nos estados, intervindo nas diversas faces do problemaagrário e ambiental no país, especialmente no Estado do Pará,ampliando recursos e efetivo policial para proceder às prisões,atuar na investigação dos crimes, na fiscalização ambiental e deviolação de direitos humanos, dentre outras ações;

� Proceder a classificação dos imóveis (geo-referenciamento),especialmente da região norte, garantindo a discriminação earrecadação de terras griladas e de todas as terras públicas,destinando-as ao programa federal de reforma agrária;

� Adotar medidas urgentes para proteger todos os defensores edefensoras de direitos humanos com risco de morte, especialmenteos listados como "marcados para morrer" no Estado do Pará.

� Desmantelar as redes criminosas e reprimir as milícias particula-res, muitas mascaradas pela fachada de "empresas de seguranças".

� Revisão, pelos Tribunais de Justiça, dos critérios para a emis-são, por juízes, de medidas liminares determinando desocu-pações forçadas, determinando a oitiva do Ministério Público eorganizações da sociedade civil que conhecem os problemasagrários regionais.

Conclusão

A principal exigência para se conter a violação aos direitos humanos nocampo é a realização de uma Reforma Agrária ampla e massiva. Esta políti-ca precisa ser, efetivamente, uma ação prioritária do governo, garantindorecursos humanos e financeiros e qualificando a legislação e os instrumentos

administrativos para assegurar a agilidade e eficiência das ações. Só com ademocratização da terra será possível democratizar o poder e por um fim àtruculência, intolerância e ganância dos latifundiários que colocam o direitoà terra acima do direito à vida e à cidadania.

É preciso que, de imediato, sejam tomadas medidas efetivas como a con-clusão dos processos de desapropriação, o impedimento dos despejos ilegaise arbitrários, a retomada das terras públicas invadidas por grileiros destinan-do-as aos projetos de assentamento, a ampliação dos recursos para a erra-dicação do trabalho escravo e a manutenção do Cadastro de Empregadores,conhecido como "Lista Suja", além da suspensão dos planos irregulares demanejo florestal. Também é indispensável que o Congresso Nacional cumprao artigo 51 das Disposições Constitucionais Transitórias determinando a revi-são das doações, vendas e concessões de terras públicas no país e que colo-que em pauta para aprovação imediata a proposta de Emenda Constitucionalque confisca as terras onde se explora o trabalho escravo.

A solução dos problemas e da violência contra os trabalhadores e traba-lhadoras rurais exige ações permanentes dos Governos, pela realização daReforma Agrária e contra a impunidade e o crime organizado. Devem en-volver as instituições do Estado, as polícias, os governos estaduais e o judi-ciário contra todos aqueles que insistem em desafiar e enfrentar as leis, o Es-tado de direito e as autoridades constituídas.

É urgente que o poder judiciário priorize o julgamento dos crimes contra ostrabalhadores e trabalhadoras rurais e de outras lideranças no campo. Parapor um fim à impunidade é fundamental concluir com rapidez os inquéritosde todos os casos pendentes, levar a julgamento e manter presos todos osculpados pelas atrocidades cometidas contra os trabalhadores e trabalhado-ras rurais de todo o Brasil.

Sabemos que, mesmo com estas medidas, ainda será necessário um grandeesforço para erradicar a violência no campo no Brasil. Mas acreditamos, tam-bém, que só a luta será capaz de alterar os padrões atuais de violação dedireitos e de impunidade. Neste sentido, esta campanha internacional contraa violência no Campo pretende ser mais um importante instrumento nestaluta. Esperamos que ela tenha ampla adesão e parcerias com organizações,movimentos e personalidades que, assim como nós, acreditam e lutam porum Brasil Sustentável e Solidário, com Reforma Agrária e paz.

Campanha Internacional Contra a Violência no Campo: instrumento deluta pela reforma agrária e contra a violação dos direitos humanos

Page 56: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 111

A morte ronda os

canaviais paulistas

Maria Aparecida de Moraes Silva*

Desde o século passado, a macro-região de Ribeirão Preto é conhecidacomo uma das mais desenvolvidas do país. Primeiramente, o café foi oresponsável pela produção de enormes riquezas. No início dos anos de1960, surgem as usinas de cana-de-açúcar e álcool, cuja expansão da pro-dução, ao longo destas últimas décadas, coloca esta região (além de outras)

* livre-docente da UNESP; pesquisadora visitante da USP e pesquisadora do CNPq

Menina-criança, órfã da cana, cujo pai lhe prometera uma bicicleta nofinal da safra de 2005. Ele morreu antes. Ela, todavia, não entendeu osignificado da morte. Continuou sonhando e esperando a volta do pai(que fora para o céu, segundo sua mãe), para lhe mostrar que haviaaprendido a pedalar.

Mulheres quebradeiras-de-coco que, na terra dos babaçus, cantam aoritmo do som da casca quebrada;Mulheres quebradeiras-de-coco que, na terra dos canaviais paulistas,desfiam sonhos, sentadas nos corredores feios das pensões das cidades-dormitórios, enquanto seus maridos trabalham no corte da cana.Mulheres rendeiras, mulheres tecelãs nas terras do Vale do Jequitinhonha,fiando o algodão, tecendo cobertas e sonhos, enquanto cantam e esper-am os maridos que partiram;Homens maranhenses que sonham com bonés, óculos escuros, motos etambém em construir casa de alvenaria, deixando de lado, a choça deadobe, coberta de folhas de babaçu;Crianças de Timbiras/MA, cidade onde a data do dia dos pais foi retira-da do calendário escolar, em razão da migração;Meninos do Vale que sonham em vir para São Paulo, quando inteiraremidade;Homens dos canaviais paulistas, enegrecidos pela fuligem da cana, cujocarvão penetra corpos e almas, tingindo seus olhares de profunda tristeza.Mulher, menina-criança, menino, homem, todos movidos pela mesmaengrenagem; todos movidos pelos mesmos sonhos e pelas mesmas bus-cas, pela esperança miúda de serem alguém neste mundo. Este texto é dedicado a vocês.

Page 57: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 113ABRA - REFORMA AGRÁRIA 112

no mais alto ranking da economia brasileira, sem contar a capacidade decompetição adquirida no mercado externo, algo comprovado pelas recentesconquistas na OMC, por meio das futuras vendas de açúcar para os paísesda União Européia. Ademais, nesses últimos meses, o etanol ( álcool) temsido visto como a alternativa para a solução dos problemas energéticos futu-ros em razão do esgotamento das reservas petrolíferas mundiais. Grandesempresas como Microsoft e Google já se mostraram interessadas em investirneste negócio, que coloca o Brasil como um dos mais competitivos domundo. Segundo a UNICA (União dos Canavieiros do estado de São Paulo),neste ano de 2006 serão instaladas mais 19 usinas e destilarias em todo oestado, o que corresponderá à ocupação de milhares de hectares em cana.

Por sua vez, a maior processadora mundial de açúcar - a COSAN S. A.Indústria e Comércio - investirá US$ 400 milhões no setor sucroalcooleiro nospróximos anos, atingindo a cifra gigantesca de moagem de 50 milhões detoneladas de cana por ano! Esta empresa, que reúne capital nacional eestrangeiro, obteve altos lucros em 2005, em virtude da subida de suas açõesno mercado financeiro em torno de 132%. (Folha de S. Paulo, Dinheiro, B10,24 de março de 2006).

Para o viajante que percorre as rodovias paulistas, após a cidade deCampinas, indo em qualquer direção, a impressão que terá é que estará nomeio de um gigantesco canavial. A história objetivada desta região - caracteri-zada pelas marcas das antigas fazendas de café, das moradias dos colonos esitiantes, do multicolorido de plantações de milho, algodão, amendoim, feijão,além de pastagens, das estradas vicinais, das reservas de matas, de pequenoscórregos - está em vias de desaparecimento, cedendo lugar ao monocromáti-co dos canaviais, exceto as áreas ocupadas pelos laranjais. Durante os mesesde abril a novembro, até mesmo o firmamento aparece enegrecido pelasgigantescas nuvens de fumaça, advindas das queimadas da cana, prática pre-datória ao meio ambiente e à saúde das populações rurais e urbanas que aívivem. Segundo recente reportagem, os focos de queimada aumentam emmais de 1000%durante a safra na região de Ribeirão Preto.Este fato provocavários danos à saúde das pessoas da cidade1, sem contar que há o crescimen-to de até 50% no número de pacientes com problemas respiratórios (Folha deS. Paulo, Folha Ribeirão, C1, 28 de março de 2006). Os gases expelidos pela

fuligem da cana queimada são: o carbônico, os nitrosos ( sobretudo o monóxi-do e o dióxido de nitrogênio), e os sulforosos (como o monóxido e o dióxidode enxofre). Alguns desses gases vão para a atmosfera e podem reagir com aágua, gerando ácidos nitrosos e sulforosos que, com grande acumulação,podem gerar chuva ácida, prejudicial ao meio ambiente. Além desses gases,há a formação de vários hidrocarbonetos ou aromáticos contendo benzeno esimilares, muito prejudiciais à saúde. (Zampernini, 1997; Allen et al., 2004;Rocha &Franco, 2003; Oppenheimer et al., 2004).

Apesar de inúmeras denúncias, inclusive do Ministério Público, as queimadascontinuam, amparadas na Lei Estadual N. 11.241/2002, contrariando lei ante-rior, que previa o fim desta prática predatória do meio ambiente e da saúde daspessoas, que estabeleceu um percentual crescente de eliminação da queimadade cana do primeiro ao vigésimo ano, para áreas mecanizáveis. Para aquelasnão mecanizáveis, com declividade superior a 12% e área me-nor de 150 hec-tares, o prazo final para a eliminação da queima é o ano de 2031. Segundoesta lei, a área mecanizável dessa região deveria estar em torno de 30%.

Nos últimos anos, a riqueza, advinda do agronegócio do açúcar e álcoolvem sendo exposta nas vitrines das agrishows, feiras realizadas em RibeirãoPreto com o intuito de revelar o Brasil moderno, avançado tecnologicamentee cuja agricultura é movida tão-somente por máquinas. No entanto, há umaoutra realidade situada atrás do palco deste show. Um mundo invisível,escondido no meio dos canaviais e laranjais que compõem a gigantesca pro-dução desta região: o trabalho e os trabalhadores.

O objetivo deste texto é dar visibilidade às condições de trabalho impostaspelas usinas, cujos resultados têm sido o enorme desgaste físico, responsávelpor 13 mortes no período de 2004-2005, sem contar a legião de verdadeirosmutilados, após 10 ou 15 anos de trabalho.

OS TRABALHADORES DOS CANAVIAIS PAULISTAS

Grande parte destes trabalhadores é proveniente das áreas maispobres do país: nordeste e Vale do Jequitinhonha/MG. Segundo estimativasdo Pastoral do Migrante, são em número de 50 mil migrantes nesta região,enquanto para o conjunto do estado ultrapassam a casa dos 200 mil. Na suamaioria são jovens, que se deslocam todos os anos a partir do mês de marçoe aqui permanecem em alojamentos construídos pelas usinas ou nas pensõesdas cidades-dormitórios, até o início do mês de dezembro. São os chamados

1 - Em recente declaração durante a realização da Audiência Pública, realizada em Ribeirão Preto em 22 demarço de 2005, um vereador de Araraquara afirmou que, durante o período da safra, os gastos da Secretariade Saúde aumentam em R$ 500 mil ao mês, em virtude dos problemas das doenças respiratórias que atingem,principalmente, as crianças e idosos. Em 2003, houve 3885 pedidos de queimada encaminhados a Cetesb,na região de Ribeirão Preto. Em 2006, este número passou para 4585, o que representa não o fim progressi-vo das queimadas, mas seu aumento (Folha de S. Paulo, Folha Ribeirão, C3, 11/04/06).

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 58: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 115ABRA - REFORMA AGRÁRIA 114

migrantes temporários, embora esta migração seja permanentemente tem-porária, pois esta situação existe desde o início da década de 1960 (Silva,1999). A partir do ano 2000, no entanto, assiste-se ao processo de mudançada cartografia migratória. Muitos dos migrantes atuais são provenientes doMaranhão e Piauí, estados que, no passado, tinham pouca participação nesteprocesso. Uma das explicações dada para a mudança da cartografiamigratória reside no fato de que houve uma enorme intensificação do ritmodo trabalho, traduzida em termos da média de cana cortada, em torno de 12toneladas diárias. Este fato está diretamente relacionado à capacidade física,portanto, à idade, na medida em que acima de trinta anos de idade, os tra-balhadores já encontram mais dificuldades para serem empregados. Destasorte, a vinda destes outros migrantes cumpre a função de repor, por meio dofornecimento de maior força de trabalho, o consumo exigido pelos capitaiscuja composição orgânica é maior.

Por outro lado, muitos desses migrantes são camponeses com terra,enquanto outros são rendeiros e outros já vivem nas periferias das cidades,na condição de proletários A mudança da cartografia migratória para oscanaviais paulistas, por meio da presença de maranhenses e piauienses vemocorrendo em razão do avanço do agronegócio da sojicultura e pecuária,responsáveis pelo processo de expropriação do campesinato dessa região, deum lado, e, do outro, do sucroalcooleiro paulista, demandante de grandescontingentes de força de trabalho. Esta migração é essencialmente masculi-na. Enquanto os homens partem, as mulheres ficam. Elas cuidam da roça ouse empregam enquanto quebradeiras de coco. Algumas delas partem com osmaridos, e, às vezes, até com os filhos, para lhes preparar a comida e lavarsuas roupas. Nas periferias das cidades-dormitórios paulistas vivem emminúsculos quartos alugados nos fundos-de-quintais, de onde geralmentesaem, à espera dos maridos que trabalham no corte da cana (Vetorassi,2006; Silva et al., 2006).

Defende-se aqui a tese de que os altos índices de exploração nos canaviaispaulistas, resultando nas 13 mortes de trabalhadores no período de 2004-2005, são assentados no processo migratório, cuja análise será aprofundadamais adiante. Para isso, serão apresentados alguns dados de investigaçõesnas regiões de origem desses migrantes, a fim de se aprofundar a concretici-dade das relações de trabalho existentes, sob a ótica do sujeito do trabalho,enquanto dotado de força, de energia para o trabalho pesado e tambémenquanto sujeito portador de valores culturais associados à visão de mundocamponês da realidade social de origem.

O relatório de recente pesquisa da Pastoral do Migrante, em parceria coma Comissão Pastoral da Terra do Estado do Piauí, obteve informações de 367domicílios familiares de trabalhadores que saem para trabalhar em outrosestados, nos municípios considerados como os que possuem os maioresíndices de trabalhadores migrantes: Barras, Miguel, São Raimundo Nonato,União Esperantina e Uruçuí. Das famílias entrevistadas (74,1%) são formadaspor 5 membros ou mais; 82,7% dos membros das famílias realizam trabalhosnas atividades agrícolas.

A renda familiar dos entrevistados segundo essa fonte é: 71,8% dos entre-vistados obtêm com o trabalho realizado na própria região declaram que arenda da família não atinge um salário mínimo e das famílias que declaramrenda maior que um salário, e 86,9% possuem aposentados entre seus mem-bros. Estes dados revelam que 93% dos que saem para trabalhar são ho-mens que se distribuem nas diferentes faixas etárias, sendo que 65,3% se con-centram na faixa entre 18 e 35 anos, idade em que o trabalhador possuimaior força física para trabalhos pesados. Os níveis de escolaridade sãobaixos: 16% são analfabetos e 45% não atingiram sequer a quarta série doensino fundamental.

Em torno de 40% das famílias têm pelo menos duas pessoas que viajamtodos os anos para trabalhar fora; em 90,8% dos deslocamentos a migraçãonão é definitiva: os trabalhadores vão e voltam demorando entre cinco a setemeses e mais da metade é constituída de chefes de família; 76,6% dos tra-balhadores saíram mais do que duas vezes para trabalharem nos últimos 5anos. Apenas 11,5% dispõem de dinheiro para viajar, 56,6% pedem dinheiroemprestado para familiares ou amigos e 31,9% recebem adiantamento dogato. A dívida contraída com o gato pode representar o início da submissãoà escravidão ou ao trabalho degradante, segundo esse levantamento.

Quanto à maneira de aliciamento desses trabalhadores, o relatório aponta:

(...)15,6% dos trabalhadores saem sós quando vão trabalharem outro local; 48,4% migram em pequenos grupos com pa-rentes ou colegas e 56,0% saem em grupos grandes que sãoaliciados por gatos. O primeiro contato do gato é feito nos lu-garejos, geralmente nos bares "boteco", entre um gole e outrode cachaça, ou com alto falante em cima do carro até o anún-cio nas rádios locais. Prometendo bons salários, que variamentre R$ 800.00 e R$ 1.200.00 por mês, alojamentos bons comcomida, lavadeira de roupa de graça e que no final da safra a

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 59: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 117ABRA - REFORMA AGRÁRIA 116

usina dará o seguro desemprego. O segundo passo é o trans-porte que, na maioria das vezes, é feito por empresas clandes-tinas, que na saída, o "gato" oferece ao trabalhador, cachaça,muitas mulheres em volta do ônibus e outras coisas e partem domunicípio geralmente de madrugada, utilizam as estradas vici-nais ou até estradas de terra, não trafegando pelas BRs, devidoa fiscalização da Policia Rodoviária Federal. (Comissão Estadualde Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo (CPTE); CPT/PI;PETAG/PI - PASTARAL DO MIGRANTE/PI e DRT/PI. APOIO:OIT-Brasil.

Os dados acima revelam um crescimento expressivo do número demigrantes destes dois estados para os canaviais paulistas, no intervalo deapenas seis anos: 6.000%, ou seja, 60 vezes!

Um outro levantamento recente foi feito no município de Timbiras/MA,onde 54% dos chefes de família entrevistados nos bairros periféricos possuíamterras arrendadas, 16% terras próprias e 15% posses. A forma de pagamen-to no sistema de arrendamento é uma saca de arroz em palha para cadalinha de roça, que corresponde a 0,3ha de terra (Carneiro, 2005).

Das 114 famílias entrevistas, 71 (63%) possuem algum membro trabalhan-do fora do município de Timbiras. Os locais de destino desses trabalhadoressão bastante variados, mas, concentram-se principalmente nos estados deGoiás (31,18%), São Paulo (30%) e Pará (6,45%). O deslocamento para ou-tras regiões no interior do estado do Maranhão (19,35%) foi também citado,

destacando-se, nesse caso, o município de Campestre do Maranhão, no qualse localiza uma usina de produção de álcool, a Destilaria Cayman.

Quanto ao trabalho realizado nas regiões de destino, a ocupação maismencionada foi a da cana-de-açúcar, com 54% das respostas, com menorimportância apareceram as atividades da construção civil e do trabalho do-méstico. No que tange à faixa etária, à situação civil e ao sexo dos migrantes,60,78% possuem entre 20-29 anos, 54,36% são casados (ou estão juntos) e83,65% são do sexo masculino.Este dado confirma a situação levantada noPiauí, na qual os trabalhadores migrantes são muito jovens, são do sexo mas-culino e são dotados de força para o trabalho duro requerido pelas usinassucroalcooleiras.

Segundo ainda esse autor, a maioria, cerca de 45,06%, informou que oprocesso de migração ocorreu através do contato com familiares e amigos.Somente 8,5% informaram terem sido mobilizados através de gatos (ou em-preiteiros), enquanto 35,21% responderam que viajaram por conta própria.

No que concerne à forma de deslocamento, os dados coligidos revelam:cerca de 40% dos trabalhadores viajaram em ônibus clandestinos; 19,7% via-jaram em ônibus ditos de "empresa" e de "turismo" e somente 28,16% infor-maram que o deslocamento foi realizado em ônibus de linha.

Tabela 1

Número estimado de trabalhadores migrantes do MA e PI para S. Paulo

Safras Número estimado de Trabalhadores Imigrantes dos Estados do MA e PI Diferença

2000/2001 100 ------- 2001/2002 300 + 200 2002/2003 1.000 + 700 2003/2004 3.000 + 2.000 2004/2005 5.000 + 2.000 2005/2006 6.000 + 1.000

Fonte: Pastoral do Migrante, rel atório de atividades, 2005.

Tabela 2

Distribuição dos trabalhadores que migraram segundo a faixa etária .

Faixa Etária Nº Em % 15 a 19 anos 6 4,6 20 a 24 anos 34 26,3 25 a 29 anos 28 21,7 30 a 34 anos 11 8,52 35 a 39 anos 15 11,62 40 a 44 anos 3 2,3 45 a 49 anos 3 2,3 50 a 54 anos 2 1,5 Total 102 100 %

Fonte: Carneiro (2005, p.3).

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 60: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 119ABRA - REFORMA AGRÁRIA 118

Quanto ao quesito da ocupação, 53,5% dos entrevistados responderamque o chefe da família tem por ocupação principal a agricultura, enquanto20% sobrevivem principalmente com os rendimentos oriundos da aposenta-doria rural. Do total dos ocupados na agricultura, 54% dos entrevistados tra-balham em terras arrendadas, 16,4% em terras próprias e 15% em posses. Aforma de pagamento pelo arrendamento corresponde a um saco de 60 kg dearroz (em palha) por cada linha de roça plantada, ou seja 0,33 hectares.

Quanto ao tempo de moradia, na periferia de Timbiras, esta pesquisa revelaque, para 20,2% das famílias entrevistadas, o tempo de residência na moradiaatual é entre 0 a 2 anos; para 12,3% de 3 a 5 anos, para 22,8% de 6 a 10anos, enquanto 42,1% responderam estar lá residindo há mais de 10 anos.

Baseando-se em dados do IBGE, sobre a estrutura agrária do município, oautor conclui que o processo de expropriação do campesinato maranhensetem ocorrido graças à ação de grandes empresas, com apoio da SUDENE,SUDAM e fundos setoriais como o FISET, responsáveis pelo incremento do re-florestamento e pela redução incessante da área da produção camponesa,que, apesar de representarem em torno de 92% do número de estabelecimen-tos com até 50 hectares, ocupam apenas 6,8% da área total. Este fato con-tribui para o empobrecimento dos membros da família camponesa, obrigan-do-os a migrarem em busca de meios de sobrevivência. No município de Tim-biras, 44,7% das famílias entrevistadas são assistidas pelos recursos dos pro-gramas do governo federal, como Bolsa-escola, Bolsa-família, PETI e Vale-gás.

No que tange às outras áreas de origem de migrantes, vale a pena citar oexemplo do Vale do Jequitinhonha/MG. No início da década de 1970,grandes projetos de reflorestamento de empresas estatais e privadas foramimplantados no Vale do Jequitinhonha, especificamente nas chapadas. Aação do Estado, por meio dos governos militares, foi decisiva para a efeti-vação do plantio em torno de quinhentos mil hectares de terras com eucalip-tos. Um total de catorze grandes empresas passou a dominar mais de 90%da área reflorestada. (Silva, 1989).

A modificação do sistema de apropriação das terras foi feita graças à inter-venção do Estado, com a criação da Rural Minas, que classificou as terras dechapadas como áreas devolutas, isto é, desocupadas, e, portanto públicas.Este instrumento jurídico foi o meio pelo qual os governos militares lograramo desmantelamento da unidade grotas-chapadas, e, conseqüentemente, domundo camponês. As terras foram cedidas ou arrendadas às grandes empre-sas ou vendidas a preços simbólicos. Na década de 1970, mais de duzentas

mil pessoas migraram definitivamente desta região. A grande maioria dos queficaram engrossou as fileiras dos migrantes temporários, principalmente paraa região de Ribeirão Preto/SP, para o trabalho assalariado do corte da canae da colheita do café (Silva, 1999).

Esta população foi com o passar do tempo, desenvolvendo um modo devida bastante peculiar, caracterizado pela apropriação particular das terrasbaixas - as veredas e grotas - e a apropriação comum das terras altas - as cha-padas. Esta forma de apropriação permitiu a satisfação das necessidades desobrevivência desse campesinato por muito tempo. As moradias eram construí-das nas grotas, nas partes baixas, próximas aos córregos, rios ou minasd'água. Havia uma unidade entre grotas e chapada. A chapada era de todos,conforme mostra o depoimento de um camponês.

A chapada tinha de tudo; tinha madeira, pouca, mas tinha;tinha vários pedaços de chapada, mas ninguém era dono...Ninguém vendia...A criação gostava muito da chapada. Nãotinha cerca na chapada. A chapada servia para tirar a madeira,para a lenha da casa. Tinha muita fruta... A jaca, o piqui tinhademais, o jenipapo, tinha uma futinha chamada gabiroba, opapari, a pitanga... Do piqui, se faz o óleo, o óleo amarelo,usado na comida, a gente coloca em cima em cima do prato.Na chapada não tinha erva brava para o gado não, de talmodo que o gado podia pastar à vontade. A gente não tinhaforça de cuidar da chapada, mas lá saía mandiocal... O pes-soal era fraco, não podia fechar de arames a chapada. Na cha-pada havia muito mato pequeno, o angiquinho, nós todos aquiconhecemos este mato. Agora, tinha uns paus maiores, que erao pau-terra, o piquizeiro, muita sucupira. Assim o pessoal usavaesta madeira para fazer coisas para casa: banco, mesa,cadeira, o cati (catre, cama), chiqueiro para porco, curral, olhasenhora, para tudo a chapada servia... (Sr Joaquim, negro, 50anos) (Silva, 2001, p. 104-105).

Portanto, essas pesquisas revelam que estes trabalhadores são produzidospelo processo de expropriação do campesinato em diferentes espaços emomentos históricos. Esses últimos durante a fase da ditadura militar, e osprimeiros em decorrência da expansão do agronegócio nos cerradosbrasileiros, por meio da plantação de soja e extensas áreas de reflorestamen-to de eucalipto. As pequenas roças de feijão, arroz, milho e mandioca desa-parecem para ceder espaços a essas culturas, enquanto seus antigos donos

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 61: Revista Abra 33

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

12

1A

BRA

- REFO

RM

A A

GRÁ

RIA

120

são expulsos, passando a residir nas periferias urbanas da região. Os dados

do relatório da Pastoral do Migrante em

recente visita ao Maranhão e Piauí

confirma o processo de expropriação do cam

pesinato e sua transformação

em proletários.

Há um

crescimento populacional recente de m

uitas cidadesm

aranhenses devido à emigração de fam

ílias do meio rural,

enxotadas pelo contexto agressivo da concentração fundiária; apobreza extrem

a levou-as a buscarem abrigo nas cercanias

urbanas onde construíram suas habitações de adobe cobertas

de palha de babaçu ou construídas totalmente com

materiais

dessa palmeira m

uito comum

naquele Estado. Tais migrantes há

muitos anos m

oravam e sobreviviam

em pequenos arrendam

en-tos de terra localizados em

áreas pertencentes a latifundiários,m

as alterações das políticas de interesses por parte dessesgrandes proprietários expropriaram

compulsoriam

ente o sonhodessas fam

ílias de continuar arrendando seu pequeno roçado(cerca de 1/3 de um

alqueire paulista de 24 mil m

etros quadra-dos) apenas a fim

de plantar, colher e sobreviver; atualmente, a

absoluta falta de alternativas de sobrevivência local está provo-cando um

êxodo massivo de trabalhadores em

direção àsregiões do país onde estão instalados os com

plexos agroindus-triais sustentados pela produção da cana de açúcar, laranja,café, dentre outros produtos agrícolas. N

um largo ao lado do

terminal rodoviário de Tim

biras, acompanham

os o embarque

de migrantes que lotaram

6 ônibus clandestinos que partirampara o interior de São Paulo, M

ato Grosso e G

oiás. Um

a sema-

na antes outros 12 ônibus também

clandestinos tomaram

osm

esmos rum

os, sendo que a maioria tinha com

o destino aregião de Ribeirão Preto. Vim

os uma Igreja local corajosa, cria-

tiva e testemunhal que segue investindo bastante na construção

de uma infra-estrutura em

favor da formação, organização e

promoção hum

ana das comunidades sofridas e enfraquecidas

pela pobreza crônica; as pastorais sociais são instrumentos

encarregados de toda essa dinamicidade eclesial.

Estando em C

odó, reunimo-nos com

os vereadores da cidadena C

âmara M

unicipal, ocasião em que pudem

os fazer-lhes uma

ampla exposição sobre a realidade m

igratória que a Pastoralvem

acompanhando há anos. Para surpresa nossa, aqueles par-

lamentares dem

onstraram total desinform

ação a respeito dofenôm

eno da emigração m

assiva que empurra para longe do

próprio município m

ilhares de pessoas. Duas em

issoras derádio locais cederam

espaços muito significativos para entrevis-

tas conosco em program

as de grande audiência e alcanceregional, inclusive Estados vizinhos.

SERTÃO PIAU

IENSE

Vimos um

a realidade muito carente e sofrida de um

povo força-do a acostum

ar-se e a saber conviver com longas e freqüentes

estiagens. Reunimo-nos durante um

a manhã chuvosa com

obispo diocesano e diversos agentes pastorais locais, represen-tantes de com

unidades, sindicatos e associações da região. Emcom

panhia de Dom

Pedro, que muito am

igavelmente nos aco-

lheu e hospedou em sua residência, visitam

os comunidades no

interior dos municípios de São Raim

undo Nonato e São Braz,

onde nos

encontramos

com

um

grande núm

ero de

traba-lhadores já prestes a tom

ar o rumo de costum

e, ou seja, regiõesdistantes pelo país a fora onde há trabalho e ganho para aom

enos minorar a situação de carência de suas fam

ílias.A seca é o fenôm

eno que não explica totalmente a razão desse

êxodo anual de piauienses em direção às frentes de oportu-

nidades de trabalho temporário localizadas em

algumas privile-

giadas zonas geográficas do país; a falta de políticas públicasconstitui-se num

entrave que impede um

convívio satisfatório dopovo nordestino com

o semi-árido, forçando-o a sair. Em

SãoRaim

undo Nonato, tam

bém fom

os convidados a manter um

alonga entrevista num

programa noticioso de rádio igualm

entede audiência e alcance m

uito significativos. Ouvim

os relatos deatividades de um

a Igreja igualmente com

prometida e em

penha-da com

a realidade carente e sofrida de seu povo; as pastoraissociais da diocese desem

penham um

papel muito relevante na

formação, inform

ação e organização do povo das comunidades

interioranas; os recursos humanos e m

ateriais oferecidos pelaIgreja diocesana através da C

áritas local em favor da cam

pa-nha existente no N

ordeste brasileiro pela construção de cister-nas dom

iciliares para coletar água da chuva, é um dos gran-

des exemplos que visibilizam

e ao mesm

o tempo tornam

a Igrejaum

sinal de Cristo am

oroso e misericordioso para com

seu po-vo (Relatório Pastoral do M

igrante, Guariba, m

arço de 2006).

A m

orte ro

nda o

s canaviais p

aulistas

Ensaios e D

ebates

Page 62: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 123ABRA - REFORMA AGRÁRIA 122

Feitas essas considerações, a proposta seguinte é a análise da ocorrênciadas mortes no contexto da exploração da força de trabalhadores nus - segun-do a expressão marxiana -, desprovidos de suas condições objetivas, impostaspelas empresas do chamado agronegócio do açúcar e álcool no interior doestado de São Paulo.

V IDA E TRABALHO NO "INFERNO VERDE "

Segundo os relatos de trabalhadores, quando migram, em geral, são trazi-dos pelos gatos, viajam em ônibus clandestinos, e, em alguns momentos sãosubmetidos às condições análogas às de escravo, segundo denúncias daPromotoria Pública, do Ministério do Trabalho e da Pastoral do Migrante, veic-uladas pela imprensa local e regional, nacional e até mesmo internacional.De 2004 a 2005, a Pastoral do Migrante, por meio do agente, Jadir Ribeiro,registrou 13 mortes, ocorridas supostamente em função do desgaste excessi-vo da força de trabalho. Segundo depoimentos de médicos, a sudorose,provocada pela perda de potássio pode conduzir à parada cardiorrespi-ratória. Outros casos se referem à ocorrência provocada por aneurisma, emfunção de rompimento de veias cerebrais. Em alguns lugares, os trabal-hadores denominam por birola, a morte provocada pelo excesso de esforçono trabalho. Para este trabalho, o piso salarial é de R$ 410,00, sendo que oganho é medido pelos níveis de produtividade.

Os nomes dos mortos são os seguintes:

� José Everaldo Galvão, 38 anos, natural de Araçuaí/MG, falecido em abrilde 2004, no hospital de Macatuba/SP. A causa da morte foi parada car-diorespiratória;� Moisés Alves dos Santos, 33 anos, natural de Araçuaí/MG, falecido nohospital de Valparaíso/SP, devido a uma parada cardiorespiratória; � Em maio de 2004, o trabalhador Manoel Neto Pina, 34 anos, natural deCaturama/BA, faleceu após uma parada cardiorespiratória no hospital deCatanduva/SP. � Lindomar Rodrigues Pinto, 27 anos, natural de Mutans/BA, falecido emmarço de 2005, em Terra Roxa/SP;� Ivanilde Veríssimo dos Santos, 33 anos, natural de Codó/MA, teve mortesúbita; trabalhava para a usina São Martinho, faleceu em Pradópolis/SP; � Valdecy de Paiva Lima, 38 anos, natural de Codó/MA, falecido no hospi-tal São Francisco de Ribeirão Preto/SP, em julho de 2005, devido a um aci-dente cerebral hemorrágico; � Natalino Gomes Sales, 50 anos, natural de Berilo/MG, falecido em agos-

to de 2005, por parada cardiorespiratória, num hospital em Batatais/SP; � Domício Diniz, 55 anos, natural de Santana dos Garrotes/PB, falecido emsetembro de 2005 no trajeto para o hospital em Borborema/SP; teve mortesúbita;� Em 04 de outubro de 2005, faleceu o trabalhador Valdir Alves de Souza,43 anos; a causa da morte foi enfarte. � Ainda no mês de outubro, dia 21, faleceu o trabalhador José Mário AlvesGomes, 47 anos, natural de Araçuaí/MG; a causa da morte foi enfarte,após cortar 25 toneladas de cana; morava no alojamento Jibóia, mantidopela Usina Santa Helena, do Grupo Cosan., no município de Rio dasPedras/SP.� No dia 21 de novembro faleceu Antônio Ribeiro Lopes, 55 anos, naturalde Berilo/MG, residente há 20 anos em Guariba, durante o trabalho nausina Engenho Moreno no município de Luiz Antônio.

Duas outras mortes estão sendo averiguadas, pois as denúncias ocorreramapós os corpos terem sido enterrados em seus locais de origem, no Vale doJequitinhonha/MG.

As notícias dessas mortes ganharam espaços nos principais meios de comu-nicação locais, regionais e, até mesmo, internacionais2. Estas denúncias, ini-cialmente encaminhadas ao Ministério Público, chamaram a atenção daProcuradoria Geral da República de São Paulo, da Plataforma DHESC -Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais -DHESC Brasil, com apoio institucional do Programa de Voluntários das NaçõesUnidas (UNV/PNUD) e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão -PGR/MPF - as quais organizaram duas audiências públicas na cidade deRibeirão Preto durante o mês de outubro de 2005, e também da AssembléiaLegislativa do Estado de São Paulo, representada pela Comissão de Agriculturae Pecuária, que se responsabilizou pela organização da terceira audiênciapública, na cidade de São Paulo, em dezembro de 2005. No ano de 2006, oMinistério Público do Trabalho realizou várias audiências com o intuito de dis-cutir o fim do trabalho por produção e o cumprimento da NR313; houve tam-bém uma audiência pública em Ribeirão Preto, chamada pela Comissão dosDireitos Humanos do Trabalho da Assembléia Legislativa de São Paulo.

2 - Inúmeras reportagens forma veiculadas pelas imprensas local e regional, além de jornais de grande circu-lação como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, além de programas televisivos, valendo destacar umareportagem de sete minutos no Programa, Fantástico, da Rede Globo, no horário nobre de domingo á noite.Quanto às notícias veiculadas no exterior, destacam-se: entrevista concedida pela autora desse texto à RádioAlemã, Deutschland radio, Deutsche Welle de Berlim, no mês de março de 2006, ao jornal francês La Terre,de Paris, no período de 28 de fevereiro a 06 de março de 2006, na seção, Actualité . As mortes também foramobjeto de referência na Espanha no Boletim Trabajador Azucarero (V. V, N. 11, nov/05).

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 63: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 125ABRA - REFORMA AGRÁRIA 124

As mortes são na verdade a ponta do iceberg de um processo gigantesco deexploração, no qual não somente a força de trabalho é consumida, como tam-bém a própria vida do trabalhador. Historicamente, este sistema de exploraçãoguarda fortes semelhanças aos fatos ocorridos na Inglaterra no início do sécu-lo XIX, quando nas fábricas e manufaturas, em virtude da extração da maisvalia absoluta, as jornadas de trabalho se estendiam até 18 horas, levandomuitos operários à morte. Marx (1977), ao analisar estes fatos, afirma que talsistema fora estancado em virtude da ação do estado, por meio de uma legis-lação capaz de conter os apetites vorazes dos capitalistas em busca de lucroscrescentes, a fim de garantir a reprodução da classe trabalhadora.

Silva (1999), em estudo sobre trabalhadores e trabalhadoras rurais na re-gião de Ribeirão Preto, aponta que este fenômeno da exploração sempre este-ve associado à grande oferta de força de trabalho, proveniente dessas áreasmais pobres do país e também em razão dos condicionantes históricos que de-finem estes trabalhadores como desqualificados, desvalorizados, valores queentram na determinação do valor do preço da força de trabalho. Este fenôme-no tem acompanhado o processo de acumulação capitalista em vários temposhistóricos e em vários países. Atualmente, a chamada imigração ilegal de tra-balhadores das áreas pobres para as ricas nada mais é do que a outra facedesta medalha. Na verdade, a ilegalidade é uma forma de rebaixar o valordesta força de trabalho, na medida em que os imigrantes não têm acesso aosdireitos sociais trabalhistas e são considerados não cidadãos, 'indocumenta-dos', obrigados a viver escondidos, podendo ser deportados, presos como cri-minosos, segundo atestam várias pesquisas sobre a temática das migrações in-ternacionais no mundo atual (Serviço Pastoral dos Migrantes, 2005).

No que tange aos migrantes temporários, eles são considerados"estrangeiros", "gente de fora", "gente que vem para tomar os empregos dospaulistas", portanto, recai sobre eles, a marca do preconceito, dos estigmas,valores que direcionam ações de órgãos policiais em várias cidades. Apenaspara citar um exemplo, no ano de 2005 e também em 2006, a delegacia deSanta Rosa de Viterbo exigiu que todos os migrantes se cadastrassem assimque chegassem ao município, cujas justificativas baseavam-se nos supostos

aumentos dos índices de criminalidade durante a safra, supostamente, provo-cados por eles, evitando as possíveis fugas dos criminosos. Atitudes comoessa se repetem todos os anos, apesar de protestos de vários setores dasociedade civil, sobretudo da Pastoral do Migrante, sediada em Guariba. Aideologia discriminatória, que camufla o preconceito racial, dado que amaioria dos migrantes não é branca, se estende aos residentes, ex-migrantesnas cidades dormitórios da região, tornados verdadeiros "outsiders" (negros,mineiros, nordestinos) em contraposição aos "estabelecidos" (originários dascidades, brancos e descendentes de antigos colonos italianos). (Vetorassi,2006; Silva, 1999, Silva et al., 2006).

O paralelo com os imigrantes ilegais nos países ricos assenta-se no proces-so de desenraizamento social que atinge tanto estes últimos quanto os na-cionais, temporários. O desenraizamento inicia-se com a perda das con-dições objetivas do trabalho, nos locais de origem. O deslocamento espacialé também deslocamento cultural e de valores. O universo social destesespaços é diferenciado. Nos locais de origem ainda há muitos traços dos va-lores de uso, das relações primárias de sociabilidade, do tempo cíclico, danatureza e não do tempo linear da produção de mercadorias capitalistas.

Estes elementos constituem a ontologia do ser social destes camponeses,transformados, de um momento para o outro, em mercadoria, força de tra-balho barata, cujo dispêndio deve obedecer às regras impostas pelas empre-sas. No eito dos canaviais, devem se portar como "profissionais do podão".Para isso, devem aprender o "jogo do corpo", com movimentos cada vez maisrápidos, para ser um verdadeiro "atleta", um "jogador de futebol" (segundo aexpressão de um subdelegado do trabalho), capaz de jogar durante oito ounove horas, sob sol forte e temperaturas acima de 350 A fim de oferecer aoleitor a idéia mais próxima possível da realidade dos chamados "profissionaisdo podão", far-se-á uma breve descrição de seu cotidiano, durante sete ouoito meses, com apenas uma folga por semana.

Logo pela madrugada, começam a preparar a comida, pois há apenas umfogão para muitas marmitas. Por voltas da 6:00hs, os ônibus partem emdireção aos canaviais, numa viagem que pode durar mais de uma hora.Chegando ao eito, as tarefas são distribuídas: cada trabalhador recebe asinstruções do corte de cinco ruas. A cana deve ser abraçada e cortada o rés-do-chão para facilitar a rebrota. Esta atividade exige total curvatura do corpo.Após o corte, a cana é lançada nas leiras (montes); antes devem ser apara-dos os ponteiros, cujo teor de sacarose é pouco não compensando o trans-porte para a moagem. Segundo dados agronômicos da ESALQ, para cortar

3 - A NR 31- Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho, na Agricultura, Pecuária Silvicultura,Exploração Florestal e Aqüicultura -, estabelecida pela Portaria n° 86, de 03/03/05 (Diário Oficial da União de04/03/05), regulamenta os direitos e deveres inerentes aos empregadores e empregados rurais. Dentre as medi-das de segurança que não vêm sendo cumpridas pelas usinas da região de Ribeirão Preto, estão a obrigato-riedade de abrigos nas frentes de trabalho, as instalações sanitárias (um conjunto para cada 40 trabalhadores),águas potável e fresca, materiais de primeiros socorros, remoção adequada dos acidentados, pausas regularese remuneradas para descanso e interrupção remunerada da jornada de trabalho por fatores climáticos (RELA-TORIA NACIONAL PARA O DIREITO HUMANO AO TRABALHO, 2005).

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 64: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 127ABRA - REFORMA AGRÁRIA 126

10 toneladas de cana, o trabalhador desfere quase 10 mil golpes. A elevaçãocontinuada da média induz ao sofrimento, dor, doenças e até mesmo à morte.Acredita-se que este fato seja um dos principais pontos de reflexão. Há ainda,segundo a pesquisa de Andrade (2003), registros do uso de drogas, comomaconha e crack, para o aumento da capacidade de trabalho durante o corteda cana. A frase, Não dá para acompanhar o campo de cara limpa, refletea crueza e a brutalidade destas relações de trabalho. A maconha, segundodepoimento de um trabalhador, alivia as dores nos braços. Quanto ao crack,trata-se de uma droga estimulante, portanto, o seu uso possibilita maioresganhos de produtividade. Este fato, além de invisível, é proibido, pois, numasociedade permeada pela violência como a brasileira, o silêncio, muitasvezes, é uma estratégia de sobrevivência.

As condições de trabalho são marcadas pela altíssima intensidade de pro-dutividade exigida. Na década de 1980, a média (produtividade) exigida erade 5 a 8 toneladas de cana cortada/dia; em 1990, passa para 8 a 9; em2000 para 10 e em 2004 para 12 a 15 toneladas! No entanto, em razão doscritérios impostos, vários depoimentos demonstram que este montante é muitomaior, pois o cálculo da produtividade é feito a partir da transformação dometro em toneladas. Ou seja, a partir de cálculos aleatórios, a paridade éestabelecida em, por exemplo, X metros = X toneladas. Este sistema é chama-do "campeão", que consiste no seguinte: antes do corte, um técnico da usinarecolhe três amostras de cana de cada talhão (área plantada). Estas canassão levadas para a usina e pesadas. A partir daí são fixados os valores cor-respondentes de metros e toneladas, segundo estimativas baseadas nasamostras colhidas. Entretanto, apesar dos critérios científicos e técnicos teremaperfeiçoado as variedades de cana - cada vez mais visando ao aumento doteor de sacarose -, as canas não possuem o mesmo peso, nem se encontramda mesma forma no momento do corte. Há canas deitadas, em pé,trançadas, as quais exigem diferentes esforços dos trabalhadores. Assimsendo, o Sindicato de Cosmópolis desenvolveu um método capaz de diminuirum pouco o desgaste no tocante: o uso do gancho. O gancho é um instru-mento de madeira, feito pelos próprios trabalhadores, que substitui, na ver-dade, os movimentos com as pernas para alinhar a cana para o corte dosponteiros, caso estes não sejam retirados antes de serem lançados nas leiras.A experiência adquirida durante o tempo de trabalho leva à criação deestratégias que visam à diminuição do sofrimento no trabalho. Assim sendo,o gancho, como invenção resultante da experiência laboral, acaba sendo ummecanismo de resistência do trabalhador. Este instrumento ameniza as doresnos braços e nas costas e evita o agravamento das dores nas pernas. Outraforma de resistência produzida no eito é a troca de cabos do podão pelo

próprio trabalhador. As usinas, na busca do aumento desenfreado de lucros,fornecem podões com cabos menores, a fim de diminuir os custos com osinstrumentos de trabalho. Esta medida exige maior curvatura do corpo nomomento do corte, mais um agravante do sofrimento no trabalho. Para con-trapor a isso, alguns trabalhadores trocam os cabos menores por maiores.

Por outro lado, algumas usinas exigem a cana amontoada e não enleirada(em leiras), para facilitar a ação dos guinchos no momento da recolha edepósito nos caminhões. Todas estas imposições não são contabilizadas noscálculos dos técnicos, segundo o modelo campeão. Ainda mais. A cana épesada na usina, portanto, o controle desta operação escapa ao trabalhador,que, em muitos casos, se sente lesado.

Para evitar o roubo no momento da pesagem, o Sindicato de TrabalhadoresRurais de Cosmópolis desenvolveu um método que contraria aquele adotadopelas usinas. Trata-se da quadra fechada, cuja descrição é a seguinte. Deposse dos cadernos de metragem, obrigatoriamente oferecidos pela usina,tem-se o controle sobre o eito igualado, isto é, de todo o eito, e não apenasde algumas partes, segundo o processo de amostragem descrito anterior-mente. Ademais, foi desenvolvido um software para computador - colocadona usina -capaz de controlar o peso da cana proveniente de todos as quadras(talhões), sob a fiscalização do sindicato. Segundo a sindicalista, os cálculos,advindos deste método, apontam para cifras muito superiores daquelas ofer-ecidas pela usina. Em alguns casos, a partir de seus exemplos, 12 toneladas(segundo o campeão), na realidade, correspondem a 20, 25 ou até 30toneladas (segundo a quadra fechada)! Em suma, além do sobre-valor cap-tado pela relação de trabalho que fixa em R$ 2,20 a tonelada cortada, há oroubo no momento da pesagem da cana na usina4.

A metragem feita pelo "campeão" é uma amostragem de deter-minada área do eito - a escolha ficava a critério da usina, queescolhia os piores locais, ou seja, aqueles em que o metro dacana tinha uma pesagem menor. Além disso, os fiscais e empre-iteiros "roubavam metros" dos cortadores de cana, pois a quan-tidade de cana não era conhecida por quadra.A partir de 1988, o Sindicato de Cosmópolis consegue colocara quadra fechada na Usina Éster. A idéia partiu de um dos tra-balhadores, que sugeriu que a metragem fosse feita em cada

4 - Todas estas informações foram oferecidas pela representante do STR de Cosmópolis, durante a primeiraAudiência Pública, chamada pela Procuradoria Geral da República de São Paulo e pela Plataforma DHESC(Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), sob o patrocínio da ONU, realizada em Ribeirão Preto, no dia 27 deoutubro de 2005, com o fim de apurar as ocorrências das mortes nos canaviais paulistas.

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 65: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 129ABRA - REFORMA AGRÁRIA 128

quadra, para que não houvesse injustiça, corrigindo, assim, asimperfeições do terreno e estabelecendo um controle maior daprodução de cada trabalhador. Para dar andamento ao proces-so, o Sindicato exigiu que a Usina fornecesse o mapa agronômi-co da fazenda. Assim, antes de iniciar a safra, o Sindicato jásabia quantos metros de cana tinha cada quadra, impedindoque os metros de cana fossem "roubados" pelos fiscais ouempreiteiros. Um dos trabalhadores entrevistados disse que, emcomparação ao caminhão campeão, a quadra fechada aumen-ta de 30 a 40% o que os trabalhadores recebem pela produção(Diário de campo de Juliana Dourado após ter assistido aoVídeo, Quadra fechada, de autoria de José Roberto Novaes edo Sindicato de trabalhadores de Cosmópolis, abril de 2006).

Não obstante este controle, os relatos apontam para a continuidade dascãibras, vômitos, tonturas, feridas no corpo, provocadas pelo suor mescladoà fuligem, dores de cabeça etc. A principal característica desse trabalho é ade ser extremamente árduo e estafante, pois exige um dispêndio de força eenergia, que, muitas vezes, o trabalhador não possui, tendo em vista o fatode serem extremamente pobres, senão doentes e subnutridos, além de seremsubmetidos a uma disciplina rígida, cujo controle não incide apenas sobre otempo de trabalho, como também sobre os movimentos do corpo e o graude competição estabelecido entre os cortadores. Quanto mais competitivos,mais rápidos serão os golpes de podão, capazes de lhes darem o título de"podão de ouro". Os portadores desse prêmio terão no final da safra, poupa-do o suficiente para a compra da moto, mercadoria desejada, cujo feticheredefinirá o papel de seu possuidor na comunidade de origem. Caso sejajovem, solteiro, será visto como vitorioso, forte, destemido, valores sanciona-dos positivamente e responsáveis pelas conquistas amorosas das jovens, cujosolhares também permanecem embaçados pelo brilho do fetiche. Caso sejamcasados, o dinheiro poupado poderá ser empregado na construção da casaem alvenaria, deixando de lado a choça de adobe, coberta com folhas debabaçu (Maranhão) ou a casinha, cujas paredes são cobertas pela tabatinga(Vale do Jequitinhonha).

No que tange à atividade do plantio, o dispêndio de energia é tambémmuito grande. Esta tarefa combina o emprego de força de trabalho e meiosmecânicos. Após o corte das mudas, as mesmas são transportadas aos locaisde plantio em caminhões. Em cima da carga de cana, que chega a atingir aaltura de 3 metros, ficam os trabalhadores que vão lançando as mudas nossulcos, já abertos para o plantio. Esta tarefa se combina àquela de outros tra-

balhadores que, agachados ou ajoelhados, vão colocando e cortando asmudas nos sulcos. Estes últimos são obrigados a desempenhar a tarefa noritmo do caminhão e também do trator, que vem em seguida tapando os sul-cos com terra. Os motoristas destes caminhões são terceirizados e recebemsegundo o sistema de fretes. Logo, quanto mais cana transportarem maioresserão seus ganhos. Segundo relato de sindicalistas, os trabalhadores não des-cansam e não tem tempo sequer para suas necessidades fisiológicas.

A carência nutricional, agravada pelo esforço excessivo, contribui para oaumento de acidentes de trabalho, além de doenças das vias respiratórias,dores na coluna, tendinites, cãibras, produzidas pela perda de potássio emrazão dos suores. A fuligem da cana queimada contém gases com venenos,pois, também segundo o que está sendo apurado pela Promotoria Pública, asusinas distribuem agrotóxicos que apressam a maturação da cana, apenas trêssemanas antes do corte. Estes produtos são altamente prejudiciais à saúde5.

Durante as Audiências Públicas, muitos relatos de trabalhadores confir-maram o sofrimento durante o trabalho, as cãibras em todo o corpo, ânsiasde vômito, que levam a desmaios e, até mesmo à morte, como nos 13 casoscitados. Alguns chegaram a mencionar as jornadas de trabalho que chegamà 18 horas diárias, sobretudo nas atividades referentes à troca de turnos,como o engate dos tratores com a cana colhida pelas máquinas, cujas "gaio-las" são, em seguida acopladas aos caminhões, que conduzem a cana às usi-nas para a moagem.

A imposição da média de 12 toneladas de cana colhidas por dia é umaforma de selecionar os trabalhadores, pois aqueles que não atingem o nívelde 10 toneladas são dispensados. Os níveis de esforços exigidos para o corteda cana, somados à não reposição adequada dos nutrientes e calorias per-didos no eito, e o não esclarecimento sobre o volume da produção diária dotrabalhador, são o comprovante dos índices de superexploração e também dodesrespeito aos direitos humanos do trabalho.

O grande exército de trabalhadores migrantes representa não somente oresultado do desenraizamento social e econômico, provocado pelo processode expropriação em seus locais de origem, como também, um conjunto de

5 - Notícias veiculadas pela internet revelam que esta situação não ocorre apenas no Brasil. EmChichigalpa, região canavieira da Nicarágua, onde está situada a empresa Nicarágua Sugar State yCompañía Licorera de Nicarágua, 1383 trabalhadores morreram nos últimos anos, vítimas de insuficiênciarenal crônica (IRC), enfermidade provocada pela creatinina, em razão dos agrotóxicos maturadores dacana, que causam coceiras, e sérios danos à saúde, como a IRC. (CCOO/CONFIA/Nicarágua, 2006),acessado em 21 de março de 2006.

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 66: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 131ABRA - REFORMA AGRÁRIA 130

seres, cuja condição humana é negada (Silva, 1993). Trata-se de um fenô-meno, cuja face é a negação do sujeito enquanto ser, e sua transformaçãoem não portador de direitos, algo que causa sérias rupturas em sua identi-dade. Neste contexto, vários processos contribuem para a progressão do tra-balho em direção a simples labor, isto é, à simples reposição das necessi-dades físicas e orgânicas, sem contar que a capacidade de ação, ou seja, dapolítica, é suprimida (Arendt 2005).

Neste sentido, a redução desse trabalho a labor é baseado em múltiplaspráticas, sendo que as mais comuns são: listas negras, proibindo a desobe-diência de normas; ganchos, suspendendo trabalhadores por suposta deso-bediência aos feitores; sentimento de medo e vergonha em pedir atestadosmédicos, em virtude do fato de que a declaração da doença e da dor é umsinal de fraqueza, que não corresponde aos padrões de virilidade existentes eà competição imposta pelos responsáveis pela disciplina do trabalho; renasci-mento do sistema de barracão, da economia de escambo, de tal sorte que otrabalhador não possui direito sequer ao status de consumidor livre.

A ocorrência destes processos coercitivos na região foi reiterada nos re-latórios feitos após as Audiências Públicas. Segundo o relatório da platafor-ma DHESC, as iniciativas destes trabalhadores para levar a público este con-texto de exploração são seguidas de ameaças e retaliações por parte dasempresas. O contato destes trabalhadores com sindicatos ou órgãos públicoscompetentes para fiscalização das condições de trabalho é evitado pelasempresas, dificultando sobremaneira não apenas a defesa dos direitosenvolvidos nas relações de trabalho no campo, mas também o esclarecimen-to acerca do real conteúdo das relações que sustentam o corte manual dacana-de-açúcar no estado6. Além de propositalmente distanciados dos sindi-catos e dos órgãos de fiscalização, estes trabalhadores também são afasta-dos dos contextos rotineiros de sociabilidade das cidades onde residemdurante a safra. Uma hierarquia espacial define não apenas fronteiras territo-riais, mas também limites aos ambientes passíveis de exercícios das trocassimbólicas nos municípios. Abrigados em favelas ou cortiços afastados,muitos deles situados no interior dos canaviais, estes trabalhadores migrantes

são disciplinados no cotidiano do lugar, sendo estigmatizados em seus corpose em seus bens simbólicos7.

Este conjunto de violências é decisivo na desconstrução do universo daação destes trabalhadores. As dificuldades do dia-a-dia são reiteradamentesilenciadas e os valores, as lembranças da experiência cotidiana, sãoforçadas ao apagamento. Como bem destaca Arendt sobre a tangibilidadedos acontecimentos no plano da ação,

(...) sem a lembrança e sem a reificação de que a lembrançanecessita para sua própria realização - e que realmente a tor-nam, como afirmavam os gregos, a mão de todas as artes - asatitudes vivas da ação, do discurso e do pensamento desapare-ceriam como se nunca houvessem existido (p. 107)

No sentido geral, tal como sugere Antunes (1997) em relação ao trabalhoindustrial no capitalismo avançado, este trabalho torna-se estranhado,impondo-se, contraditoriamente, como barreira social ante o desenvolvimen-to da personalidade humana. No sentido específico, desfigurado, o trabalho,ao invés de caminho para a ação, reduz-se ao labor, como foi dito acima.Ou seja, para os trabalhadores do corte da cana, o eito despe seu universode representações e revela sua dimensão eminentemente orgânica, quesobrevive às exigências físicas do dia de trabalho.

Este confinamento na dimensão do labor integra, em sentido mais amplo,a perda de referências deste segmento de trabalhadores rurais. Isto porque oque permite ao portador da força de trabalho (trabalho-mercadoria) não setornar também abstrato são justamente suas práticas políticas de defesa dosdireitos sociais característicos das relações trabalhistas em sociedade moder-nas. Contudo, na medida em que para esta categoria de trabalhadores estesdireitos ou não existem ou são efetivamente ignorados no cotidiano darelação de trabalhos - vide exemplo da Norma Rural 31, que dispõe sobresegurança no trabalho e não tem suas cláusulas respeitadas pelas usinas eempreiteiros da região -, há também a emergência de trabalhadoresabstratos, cuja face individual e sua personalidade são descartáveis nasrelações de trabalho vigentes. Assim, a identidade deste trabalhador, sua face6 - A este respeito, a Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho destaca que, em visita ao aloja-

mento de uma usina controlada por capital multinacional no município de Araraquara, a pessoa responsávelpela administração do alojamento apresentou resistência ao acesso da Comissão formada pela RelatoriaNacional para o Direito Humano ao Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalhoe Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo às instalações do alojamento. Oacesso foi permitindo após a informação, pelo Ministério Público do Trabalho, de que a empresa seria sub-metida aos procedimentos legais vigentes por dificultar a realização do trabalho das autoridades públicas, talcomo aponta trecho do referido relatório (RELATORIA NACIONAL PARA O DIREITO HUMANO AO TRABA-LHO, 2005).

7 - Emprega-se aqui o termo disciplina tal como concebida na noção de espaço disciplinador em Foucault(1983). No disciplinamento deste espaço, importa aos grupos sociais saber sobre as presenças e as ausências,instaurar comunicações úteis, interromper outras, poder apreciar ou sancionar comportamentos. Ou seja, nesteespaço disciplinado, grupos e agentes procedem para reconhecer, dominar e utilizar os recursos neledisponíveis. Nestes termos, a disciplina manifesta-se não apenas nas formas institucionais mais evidentes, mastambém nas dimensões "microfísicas" que operam nas relações de poder.

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 67: Revista Abra 33

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

13

3A

BRA

- REFO

RM

A A

GRÁ

RIA

132

política e suas trocas simbólicas são subsum

idas em um

contexto onde elem

esmo é reduzido à esfera do labor, ou, nos term

os de Marx, à não-identi-

dade do trabalho abstrato; isto é, é reduzido exclusivamente ao "quantum

nele contido da substância constituidora do valor" (Marx, 1983, p. 47), a

saber, a energia para o trabalho. Ou seja, nesta lógica do capital agroindus-

trial, trata-se da redução do indivíduo a músculos e m

ovimentos, a sim

plesenergia. (SILVA, et al, 2006).

RELA

TOS

DO

"INFERN

O" (Q

UE

VERD

E )

Neste item

serão apresentados alguns excertos dos relatórios da Promotoria

Pública e da Plataforma D

HESC

produzidos após visitas aos trabalhadores erealização das Audiências Públicas.

Durante a visita ao alojam

ento de trabalhadores migrantes,

dentro da propriedade da Usina Bonfim

, foram obtidas as

seguintes informações e constatados os seguintes fatos:

Foram encontrados no alojam

ento os trabalhadores (cerca de40) que se encontravam

de folga no dia 04, segundo o rodízio5 por 1.

As condições do alojamento se aproxim

am a de um

a prisão. Emcada quarto existem

3 ou 4 camas. O

s cômodos não têm

janelas e as portas se abrem todas para um

corredor interno. Aárea onde é feita a lavagem

dos utensílios de trabalho é am

esma onde se lavam

as marm

itas e onde se obtém água para

consumo individual. A presença de funcionários da em

presa,durante todo o tem

po em que estivem

os no alojamento foi

intensa, tentando impedir o acesso livre aos trabalhadores. A

Relatoria Nacional para os D

ireitos Hum

anos à Alimentação

Adequada, à Água e à Terra Rural, com base em

análise pre-lim

inar de documentos, resultados e inform

ações obtidas emm

issão para investigação de denúncia de mortes de cortadores

de cana de açúcar, no Estado de São Paulo, por possível sobre-carga de trabalho e alim

entação insuficiente (...).

A referida Relatoria Nacional faz parte do projeto "Relatores

Nacionais

em

Direitos

Hum

anos Econôm

icos, Sociais

eC

ulturais (D

HESC

)", coordenado

pela Plataform

a Brasileira

DH

ESC, com

apoio do Programa de Voluntários das N

açõesU

nidas (U

NV/PN

UD

/ON

U)

e da

Procuradoria Federal

dosD

ireitos do Cidadão, do M

inistério Público Federal.

Foram apresentados os relatórios que tratam

de ambos os

casos. Em outubro de 2005, a Relatoria N

acional para o Direito

Hum

ano ao Trabalho realizou missão na Região de Ribeirão

Preto/SP para investigar as causas das mortes de dez traba-

lhadores rurais do setor canavieiro. O Relatório enfoca alguns

itens, tais como: trabalhadores m

igrantes, oriundos dos estadosde

Pernambuco,

Piauí, Paraíba,

Maranhão,

Bahia e

Minas

Gerais; aliciam

ento de trabalhadores por "gatos"; não-forneci-m

ento de Equipamentos de Proteção Individual - EPI por parte

do empregador; exaustão dos trabalhadores por jornada de tra-

balho excessiva, sendo esta a maior causa das m

ortes. Um

outro detalhe é que todos os trabalhadores encontrados eramnegros ou pardos.

A realidade vivida pelos trabalhadores rurais da região deRibeirão Preto levou a concluir que o conjunto das condições aque os trabalhadores estão subm

etidos concorre para que tantoas m

ortes quanto a mutilação dos trabalhadores sejam

recor-rentes. As condições a que nos referim

os são: a) superexplo-ração dos trabalhadores, ocasionada por pagam

ento por pro-dução, que leva os trabalhadores a produzir além

de seus limi-

tes, pela jornada de trabalho de 10 horas/dia, pelas metas de

produção fixadas em 10/12 toneladas por dia; pelos baixos

salários, pela terceirização das atividades e pela não pesagemda produção, o que leva os trabalhadores a não ter controle dareal produção do seu trabalho e da justeza do salário recebido;b) deficiência na interm

ediação e fiscalização das relações detrabalho, expresso na perm

anência de condições insalubres epericulosas no am

biente de trabalho (ausência de condiçõespara

armazenam

ento da

alimentação,

água inadequada,

equipamentos de proteção individual em

número insuficiente ou

em condições inadequadas, ausência de am

bulância e equipa-m

entos de primeiros socorros) e no desrespeito à legislação

nacional e aos tratados internacionais de direitos humanos dos

quais o Brasil é signatário (aliciamento de trabalhadores por

'gatos', intim

idação aos

trabalhadores, não

emissão

deC

omunicação de Acidente de Trabalho - C

AT, não pagamento

A m

orte ro

nda o

s canaviais p

aulistas

Ensaios e D

ebates

Page 68: Revista Abra 33

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

13

5A

BRA

- REFO

RM

A A

GRÁ

RIA

134

integral das verbas rescisórias); c) práticas anti-sindicais, expres-sas na política da em

presa de ameaças aos trabalhadores que

denunciam irregularidades e na recusa em

contratar ex-diri-gentes sindicais (Relatoria N

acional para o Direito H

umano ao

TrabalhoProjeto Relatores

Nacionais

em

DhESC

Plataforma

Brasileira de

Direitos

Hum

anos Econôm

icos, Sociais

eC

ulturaisApoio: O

rganização das

Nações

Unidas

- O

NU

-PN

UD

/UN

VProcuradoria Federal dos Direitos do C

idadão -PG

R/MPF).

No dia 09.03.2006, conform

e demanda feita pela C

oordena-ção do projeto dos relatores da Plataform

a DH

ESC e da Rela-

toria Nacional para o D

ireito Hum

ano ao Trabalho, foi realiza-da audiência com

o Ministro do Trabalho e Em

prego, Sr. LuizM

arinho, para tratar da situação vivida pelos trabalhadores dosetor canavieiro no interior de São Paulo, bem

como a existên-

cia de trabalho escravo no interior de Pernambuco.

Geralm

ente ficam hospedados em

alojamentos m

antidos pelasusinas, ou em

casas alugadas por eles próprios ou pelo empre-

iteiro ou pelo gato. O aluguel pago por esses trabalhadores fica

em torno de R$50,00 e R$100,00 pago por pessoa, por casas

na maior parte das vezes, localizadas em

favelas ou cortiços daregião, as quais têm

entre dois e quatro cômodos, e chega a ser

dividida por um núm

ero de quatro a nove pessoas.

Durante a visita realizada ao alojam

ento Jibóia, mantido pela

Usina Santa H

elena, do Grupo C

OSAN

, foram constatadas as

seguintes ocorrências:

a .A pessoa responsável pela adm

inistração do alojamento

apresentou resistência ao acesso da Com

issão formada pela

Relatoria N

acional para

o D

ireito H

umano

ao Trabalho,

Ministério Público do Trabalho, D

elegacia Regional do Trabalhoe Federação dos Em

pregados Rurais Assalariados do Estado deSão Paulo ao alojam

ento, permitindo o acesso apenas quando

foi informado pelo M

inistério Público do Trabalho de que seriasubm

etido aos procedimentos legais vigentes por dificultar a

realização do trabalho das autoridades presentes;b .

Foram encontrados diversos trabalhadores m

igrantes, osquais inform

aram haver naquele local quatro turm

as de traba-

lhadores, somando-se o total de 120 trabalhadores alojados.

Todos eram provenientes do estado de M

inas Gerais, m

ajorita-riam

ente trabalhadores negros e pardos.c . As condições de alojam

ento são precárias, em cada quarto

existem quatro cam

as, e quatro armários de aço, nos quais os

trabalhadores guardam seus pertences, e com

o o espaço é insu-ficiente, expõem

-nos também

no chão, sobre as camas, e sus-

pendendo-os pelas paredes. Cada quarto conta apenas com

uma janela pequena, as portas de todos os quartos apontam

para uma m

esma porta, estreita, que em

caso de emergência

(incêndio, por exemplo) im

possibilitaria a fuga dos trabalhado-res, colocando todos em

risco. Os banheiros localizados próxi-

mos ao quarto não contam

com chuveiro, contam

apenas comum

a pia pequena e um vaso sanitário com

descarga, os banhossão realizados em

uma área coletiva com

vários chuveiros. d .

As refeições são realizadas em um

refeitório existente nolocal, próxim

o à cozinha, em horário fixo, entretanto, os traba-

lhadores organizam-se para fazer as refeições sem

interferênciada adm

inistração local. Contam

com um

a nutricionista que fre-qüenta o local em

dias alternados verificando se a dieta alimen-

tar recomendada para os trabalhadores tem

sido cumprida cor-

retamente, em

bora alguns trabalhadores afirmem

que a quali-dade da com

ida não seja muito satisfatória. H

á uma espécie de

lavatório para os copos, onde eles retiram a água da torneira

para beber, pois a usina não disponibiliza água filtrada para ostrabalhadores;e .

O local onde lavam

as roupas e utensílios usados no traba-lho fica localizado na parte traseira de cada quarto, um

peque-no lavatório com

posto por uma pia com

torneira, em precárias

condições de higiene. Próximo a cada lavatório há um

a fossasanitária, algum

as com a tam

pa danificada ou até cobertas compedras, o que não proporciona o isolam

ento completo dos

dejetos. É próximo a essas fossas sanitárias que se encontram

osvarais para colocação das roupas lavadas para secar ao sol;f .O

s gêneros alimentícios ficam

estocados em duas despensas,

separados e em condições adequadas de higiene, todos com

data de validade e indicação de data para consumo. O

s ali-m

entos provenientes

de frigoríficos

ficam

armazenados

emrefrigeradores para conservação até o período previsto paraconsum

o. O m

aterial de limpeza é arm

azenado em um

a outradespensa em

separado dos gêneros alimentícios.

A m

orte ro

nda o

s canaviais p

aulistas

Ensaios e D

ebates

Page 69: Revista Abra 33

ABR

A- R

EFORM

A A

GRÁ

RIA

13

7A

BRA

- REFO

RM

A A

GRÁ

RIA

136

g. Há um

cômodo no local onde funciona um

a espécie de bar,no qual é realizada a venda de bebidas alcoólicas aos traba-lhadores. Esse bar já foi fechado um

a vez por determinação da

Sub-Delegacia Regional do Trabalho de Piracicaba/SP, entre-

tanto, permanece com

freezers, e barris para armazenam

entode bebidas alcoólicas, além

de alimentos usados com

o petiscos,am

endoim, por exem

plo. É perceptível a existência de umcaderno que funciona com

o uma espécie de caderneta para

anotação dos débitos de trabalhadores. Foi encontrada, aindadurante a visita, um

a garrafa vazia de cerveja e diversas tamp-

inhas de garrafas de cachaça ao lado do bar, o que reforça osindícios de que o consum

o e venda de álcool no alojamento

permanece, além

de o bar encontrar-se fechado no mom

entoda visita e não ter havido a disponibilização da chave para abri-lo. O

s indícios de consumo e venda de bebida alcoólica no alo-

jamento m

antido pela usina expõem os trabalhadores ao risco

freqüente de dano, devido aos efeitos que o consumo do álcool

provoca no organismo hum

ano. Um

a vez que as atividadesdesenvolvidas pelos trabalhadores requerem

o uso de objetoscortantes, os trabalhadores ficam

, após a ingestão de álcool,vulneráveis a um

risco maior de provocar danos a si próprios e

a outrem, acarretando assim

, no aumento do grau de pericu-

losidade das atividades laborativas em virtude do consum

o detal substância.h .

Há ainda um

a espécie de galpão com bancos, televisão,

mesa de sinuca com

tacos e bebedouro, onde os trabalhadorespassam

parte de seu tempo livre sentados assistindo à progra-

mação da televisão ou jogando sinuca;

V isita à família do trabalhador Valdecy Paiva de Lim

a

5- No período da noite do dia 25 de outubro de 2005, a

Relatoria Nacional para o D

ireito Hum

ano ao Trabalho esteveno m

unicípio de Guariba para ouvir a fam

ília do trabalhadorValdecir Paiva de Lim

a, que faleceu no dia 11 de julho de 2005.O

trabalhador queixava-se de estar sentindo dores-de-cabeça,quando aproveitou o seu dia de folga e, no dia 21 de junho de2005,

procurou tratam

ento m

édico no

Pronto Socorro

daSociplan de G

uariba. Foi atendido pela Doutora M

aria Ivani,que o encam

inhou para exames de eletroencefalogram

a e raiosX. N

o dia 22 de junho retornou para apresentar os exames,

recebeu o diagnóstico de enxaqueca, tomou os rem

édios indi-cados pela m

édica, mas continuou apresentando o quadro de

dores-de-cabeça. A médica disse que deveria continuar tom

an-do os rem

édios e que não poderia fornecer-lhe um atestado só

por causa de dor-de-cabeça. Tomou os rem

édios e continuoutrabalhando na C

entral Energética Moreno, no m

unicípio deLuiz Antônio/SP. N

o dia 07 de julho, após a refeição, cortouduas bandeiras de cana e im

ediatamente sentiu-se m

al, quan-do

foi am

parado pelo

sobrinho, que

também

trabalha

nom

esmo engenho. Foi levado ao hospital de Ribeirão Preto, no

ônibus da Usina, passou por um

a cirurgia cerebral, ficou inter-nado durante quatro dias, m

as não resistiu e faleceu. O corpo

foi sepultado em C

odó, no Maranhão, sendo que a U

sinaassum

iu todas as despesas funerárias. Saía de casa para traba-lhar no corte da cana às 05h20 da m

anhã, voltava para casapor volta das 17h. C

ortava doze toneladas de cana por dia,tinha 38 anos, de cor parda, analfabeto, oriundo do m

unicípiode C

odó, era casado e tinha uma filha. A única fonte de renda

da família era o salário do trabalhador, a em

presa pagou arescisão do contrato de trabalho e está providenciando o segurode vida, m

as não pagou indenização à família, que está m

oran-do com

familiares num

a casa de dois cômodos juntam

ente comoito pessoas, e que têm

sobrevivido da ajuda de parentes. Otrabalhador levava com

ida de casa. Segundo o sobrinho do tra-balhador, no local de trabalho não há am

bulância nem m

eiosde prim

eiros socorros, quando algum trabalhador adoece ou se

acidenta é

socorrido pelo

ônibus da

Usina

8. (Plataform

aD

HESC

/RELATORIA N

ACIO

NAL PARA O

DIREITO

HU

MAN

OAO

TRABALHO

, 2005).

8 - A viúva deste trabalhador e a filha voltaram para a terra de origem

, após o recebimento da indenização,

seguro de vida e a pensão do marido, segundo inform

ações da Pastoral do Migrante. Assim

que o marido fale-

ceu, a Usina providenciou o traslado do corpo até C

odó/MA, cuja viagem

durou três dias, numa distância de

3000 Km. A esposa e a filha foram

na mesm

a ambulância que transportava o corpo do trabalhador m

orto.Emrazão de não entender o significado da m

orte, a menina perguntava a m

ãe sobre as razões do "pai ficar fecha-do naquele caixão", segundo depoim

ento colhido por mim

, assim que elas regressaram

a Guariba, a fim

dereceber seus direitos.

A m

orte ro

nda o

s canaviais p

aulistas

Ensaios e D

ebates

Page 70: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 139ABRA - REFORMA AGRÁRIA 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início deste ano de 2006, vários Encontros, Audiências Públicas,Debates vêm sendo realizados com representantes dos Sindicatos, Empresas,MPT, DRT/SP, SDTs, Pastoral do Migrante, Universidades, AssembléiaLegislativa de São Paulo, ONGs, com o intuito de discutirem propostas paraa solução das mortes e também para coibir a precarização e as práticas abu-sivas de exploração dos trabalhadores pelas usinas. Até o momento, o MPT ea DRT/SP adotaram como imposição o cumprimento da NR31. Para o ano de2007, haverá a imposição do fim do trabalho por produção, segundo deter-minação do MPT.

Estes atos comprovam a intervenção do Estado, como agente disciplinadordas relações de trabalho, dado que, a partir de meados da década de 1990,com a extinção do IAA (Instituto do Açúcar e Álcool), houve a implantação doprocesso de desregulação dessas relações imposta pelo neoliberalismo.Algumas das medidas, que estão sendo e serão impostas pela DRT/SP, visama reparação do desrespeito não somente das leis trabalhistas, como tambémdos direitos humanos do trabalho. Os principais itens do documento produzi-do pela DRT/SP são9:

� Fim da terceirização, com a eliminação dos intermediários (gatos) nomercado de trabalho10;� Exames médicos pré-admissionais e demissionais com ênfase na avalia-ção cardíaca e osteomuscular, exigindo-se os seguintes exames: hemogra-ma completo; imunologia para a doença de chagas; protopasitológico,além de outros exames periódicos de avaliação de peso (os cortadores per-dem mais de 5kgs de peso durante a safra), pressão arterial e cardiopul-monar; notificação de doenças e acidentes de trabalho, disponibilização deambulâncias e pessoas treinado nas frentes de trabalho etc.� Proposta de que a alimentação deverá ser fornecida pelo empregador,incluindo café da manhã e almoço, segundo os costumes alimentaresregionais; fornecimento de re-hidratante oral de acordo com a análisenutricional;� As moradias dos migrantes serão consideradas alojamentos e deverãocumprir a NR3111;

� Quanto à jornada de trabalho, deverá haver controle, com abolição dehoras extras, do sistema "coruja", que se constituem nas sobras de talhõesque são cortadas após a jornada, sem pagamento de horas extraordinárias;uma das propostas é a diminuição da jornada para 6 hs diárias;� Quanto à aferição e remuneração por produção, a proposta é a adoçãodo sistema da quadra fechada da Usina Éster, criado pelo sindicato deCosmópolis; eliminar o critério da cana amontoada e adotando o da canaenleirada, com corte da ponta no chão (e não antes da cana ser lançadaao chão); elevação do piso da categoria;� Quanto ao sistema de transporte de trabalhadores, deverá haver ocumprimento da NR31, que leva em conta a segurança;� Quanto ao carregamento de cana, proibição da jornada de 12 hs, quali-ficação dos operadores de máquinas e inspeção periódica dos veículos;� Quanto à NR31, imposição do cumprimento imediato dos seguintes itens:

- Fornecimento de EPIs e ferramentas- Fornecimento de pelo menos 2 pares de calçados;- Instalação sanitária;- Fornecimento de água para higiene e água fresca potável;- Abrigo para alimentação, protegido de intempéries com mesas eassentos;- Exigência do cumprimento de pausas para descanso (pelo menos duas);- Fornecimento de vestimentas12.

Todavia, a grande polêmica que envolve neste momento, de um lado, aPromotoria Pública e do outro lado, os usineiros e representantes sindicais, éo trabalho por produção, cuja abolição é defendida pelos promotores, osquais acreditam que é a imposição da alta produtividade a responsável pelasmortes. Tal medida não é aceita nem pelos usineiros, que alegam que seriamlesados e nem pelos representantes sindicais, cujas afirmações são as de queos trabalhadores não aceitariam trabalhar na diária (pagos por dia), porqueo piso salarial é baixo, aquém de suas reais necessidades de reprodução daforça de trabalho e do sustento de suas famílias. Segundo uma sindicalista,os trabalhadores não aceitam diminuir o ritmo de trabalho porque não con-seguiriam cortar cana devagar, pois correriam riscos de ser acidentados!

9 - DRT/SP. Diagnóstico e propostas de solução sobre a precarização do trabalho no setor sucroalcooleiro noEstado de São Paulo. Agradeço a gentileza do subdelegado do trabalho de Araraquara, Dr. Milton F. B. Bonili,pela disponibilidade deste material.10 - Além da Procuradoria do Trabalho, o Ministério do Trabalho e várias prefeituras estão empenhadas nocombate à presença dos aliciadores de mão-de-obra migrante (os gatos), bem como nas moradias precáriasdestes. Folha de S. Paulo, B10, 15/02/06.

11 - Uma força-tarefa envolvendo a Subdelagacia do trabalho, o Ministério Público do trabalho, a PolíciaFederal, a Polícia Militar de Ibaté, acabou com um alojamento na periferia desta cidade, onde mais de 100trabalhadores, provenientes do Maranhão estavam vivendo em condições sub-humanas. Jornal primeiraPágina, , B3, São Carlos, 08/04/06.12 - O subdelegado regional do trabalho/São Carlos, Dr. Antônio Valério Morillas Jr., conseguiu implantar aobrigatoriedade da distribuição de kits de proteção dos trabalhadores da laranja, medida quês era estendidaa todo estado de São Paulo. Os kits contêm: óculos, marmita térmica, boné árabe (com proteção para opescoço), botina, perneira, avental, luvas, roupa teflonada (para diminuir o calor). Jornal Primeira Página, A10, São Carlos, 02/04/06.

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 71: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 141ABRA - REFORMA AGRÁRIA 140

O leitor poderia se perguntar sobre razões que levam as pessoas a aceitaresta situação. Segundo Amartya Sem, a liberdade somente existe quando,diante de no mínimo duas alternativas, a pessoa pode escolher uma delas. Sehouver, apenas uma única alternativa, não se pode falar em liberdade, mas emimposição, já que a possibilidade de escolha é inexistente. Esta é a situaçãodos migrantes que se destinam a este trabalho nos canaviais e laranjais paulis-tas e também dos chamados bóias-frias locais. São pessoas que não possuemoutra alternativa de sobrevivência, senão esta. Quanto ao ritmo acelerado detrabalho, ele foi sendo imposto e, ao mesmo tempo, incorporado pelos traba-lhadores, durante estas últimas décadas. Ainda que sujeitos à morte e às muti-lações - a vida útil de um cortador de cana é de 15 anos e a do escravo noBrasil era de 10 anos -, os trabalhadores, ao "preferirem" este ritmo, conside-ram-no natural, sem questionar as conseqüências para suas próprias vidas.

Portanto, a migração, assim como este trabalho, é resultante do sistemaeconômico-social vigente, que se traduz pela imposição, pelo atrelamento demilhares de pessoas a um processo de trabalho, que não pode ser definidocomo livre, que possui as características da escravidão, porém com novascorrentes, invisíveis, sob a capa do salário em dinheiro, do contrato e dochamado direito de ir e vir. Qualquer forma de recusa, de resistência, indivi-dual ou coletiva, é traduzida em ameaças, dispensas, medo e perseguições.O capataz dos confins deste país é substituído pelos feitores, fiscais e gatos.As armas são substituídas pelas listas negras e rescisões de contratos.

Enquanto esta barbárie ocorre no mundo do trabalho, o mundo do merca-do internacional coloca este mesmo país no patamar do sucesso absoluto doagribusiness. Este é o paradoxo dos dois mundos da sociedade contem-porânea. O trabalho que produz esta enorme riqueza é o mesmo que mutilae pode matar os "Severinos", que deixam suas terras em busca da sobrevivên-cia individual e familiar.

O verdadeiro significado da história libertadora é quando os sujeitos aescovam a contrapelo, segundo a definição de W. Benjamin. Este texto teveesta intenção.

REFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS

ALLEN, A. G. Et al. Influence of sugar cane burning on aerosol so-luble ion composition in Southeastern Brazil. AtmosphericEnvironment. V. 38, 2004, p. 5025-5038.

ANDRADE, A . F. Cana e crack: Sintoma ou problema? Um estu-do sobre os trabalhadores no corte de cana e consumo do crack.Dissertação de Mestrado. PPG/Psicologia Social/PUC/SP, 2003.ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses ea Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo: Cortez, 1997.ARENDT, H. A condição humana. 10aedição. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2005.FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 2ªedição.Petrópolis: Vozes, 1983.MARX, K. Le capital .(Livre 1). Paris: Éditions Sociales, 1977.OPPENHEIMER, C. et al. NO2 Emissions from Agricultural Burning inSão Paulo, Brazil. Environ. Sci. Technol. V. 38, 2004, p. 4557-4561.ROCHA, G. O.; RANCO, A. Sources of atmospheric acidity in aagricultural-industrial region of São Paulo State, Brazil. Journal ofGeophisical Research. V. 108, N. D7, 4207, 2003.SERVIÇO PASTORAL DOS MIGRANTES. (Org.). Travessia nade$ordem global. Fórum social das migrações. São Paulo:Paulinas, 2005.SILVA, N. III DE M. "Vale do Jequitinhonha: Incorporação e trans-formações estruturais. Trabalho apresentado no II EncontroRegional Leste-Pipsa. Belo Horizonte, abril, 1989.SILVA, M. A. M. Trabalhadores e trabalhadoras rurais: a condiçãohumana negada. Revista São Paulo em Perspectiva. São Paulo: V.7,n.3, 1993, p.116-124. SILVA, M. A. M. Errantes do fim do século. São Paulo: Edunesp,1999.SILVA, M. A M.; MARTINS, R. C.; OCADA. F. K.;GODOI, S. MELO,B. M.; VETTORASSI, A. BUENO, J. D..; RIBEIRO, J. D. Do karoshino Japão, à birôla no Brasil: as faces do trabalho no capitalismomundializado Revista Nera ( Núcleo de estudos , pesquisa e proje-to de reforma agrária). Edição n. 7, 2006. Revista eletrônica doPPG/Geografia e dep. De Geografia da UNESP/PP, 2006 (prelo).VETTORASSI, A. Espaços divididos e silenciados. Um estudo sobreas relações sociais entre nativos e os "de fora" de uma cidade dointerior paulista. Dissertação de Mestrado. PPG/CiênciasSociais/UFSCar, 2006.ZAMPERLINI, G. C. M. Investigação da fuligem proveniente daqueima de cana-de-açúcar com ênfase nos Hidrocarbonetospolicíclicos aromáticos (HPAs). Dissertação de mestrado.PPG/Instituto de Química de Araraquara, 1997.

A morte ronda os canaviais paulistasEnsaios e Debates

Page 72: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 143

Ministério Público, Meio

Ambiente e Questão Agrária

Marcelo Pedroso Goulart*

1. JUSTIFICATIVA DO TEMA

Este breve ensaio, nos seus estreitos limites, tem por objetivo apresentar asnoções básicas que devem informar a ação do promotor de justiça no com-bate às práticas rurais antiambientais, hoje generalizadamente disseminadasna agricultura de nosso país, bem como propor a atuação efetiva do Minis-tério Público na política agrária. Pretende também revelar as determinaçõeshistóricas e sociopolíticas do padrão de produção agrícola hoje hegemônico,demonstrar seu conteúdo antiambiental, apontar, à luz da Constituição daRepública e da legislação ambiental, o papel que cabe aos promotores dejustiça na promoção da agricultura sustentável e da reforma agrária.

Sem a contextualização histórico-social das práticas rurais antiambientais esem o balizamento das premissas jurídico-políticas que devem nortear a atua-ção do operador do direito nessa área, qualquer trabalho será inócuo, poisalienado, e não atingirá os objetivos postos pela sociedade na Constituiçãoda República.

2. A AGRICULTURA MODERNA

2.1 As R2.1 As Revoluções Agrícolasevoluções Agrícolas

Os estudiosos do desenvolvimento agrícola apontam os séculos XVIII e XIXcomo o período de surgimento da agricultura moderna. A primeira fase dessenovo modelo de produção, chamada de Primeira Revolução Agrícola, foiconstruída durante a transição do feudalismo para o capitalismo na EuropaOcidental e representou a superação - inédita na história da humanidade -da escassez crônica de alimentos.1

* Promotor de Justiça no Estado de São Paulo1 - Cf. VEIGA, O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica, pág. 21.

Page 73: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 144 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 145

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

O padrão de produção resultante da Primeira Revolução Agrícola apresen-tava as seguintes características:

� agricultura e pecuária como atividades complementares;� aumento da diversidade de culturas em várias propriedades;� a adoção de sistemas de rotação de culturas;� a criação de animais para alimentação, força de tração e produção deesterco.

Como acentua Ehlers:

O principal alicerce desse processo de fusão entre as práticasagrícolas e a pecuária foi a implantação paulatina de sistemasde rotação de culturas com plantas forrageiras leguminosas. Aadoção de diferentes métodos de 'alternância de cultivos' permi-tiu aumentar a lotação de cabeças de gado nas propriedades,beneficiando a fertilidade dos solos, principalmente os solos fra-cos. Outra conseqüência foi o aumento da diversidade de cul-turas em várias propriedades.2

Os avanços científicos e tecnológicos ocorridos a partir de meados do sécu-lo XIX possibilitaram aos agricultores a utilização de fertilizantes químicos e deimplementos motomecanizados, proporcionando, desta maneira, a supera-ção de dificuldades que passaram a enfrentar com a insuficiência de estercopara a adubação do solo e com a manutenção dos animais. Inicia-se asegunda fase da agricultura moderna, conhecida como Segunda RevoluçãoAgrícola, com as seguintes características:

� distanciamento da produção vegetal da produção animal;� substituição dos sistemas rotacionais diversificados e consorciados por sis-temas simplificados (monoculturas);� quimismo ou agroquímica - desprezo pelo papel da matéria orgânica nanutrição das plantas e intensiva utilização de fertilizantes químicos;� apropriacionismo - processo pelo qual certos componentes da produçãoagrícola passam a ser realizados pelo setor industrial (insumos químicos,implementos motomecanizados, variedades genéticas selecionadas paraalta produtividade, ração para alimentação animal);� redução da utilização da mão-de-obra.

Esse padrão intensificou-se a partir de meados deste século e difundiu-sepelo mundo, tornando-se hegemônico na década de 70. Fala-se, então, emRevolução Verde e num modelo agrícola químico-mecânico-genético. Hámaior separação da produção animal e vegetal. Os avanços do setor indus-trial e das pesquisas na área química, mecânica e genética propiciam ahomogeneização dos insumos e das práticas agrícolas, levando à interna-cionalização do processo de apropriacionismo e à imposição pelos paísescentrais aos países periféricos de um pacote tecnológico agrícola de utiliza-ção em larga escala nos sistemas monoculturais.3

2.2 A agricultura moderna e os impactos socioambientais2.2 A agricultura moderna e os impactos socioambientais

A degradação socioambiental é um dos produtos da agricultura moderna.O padrão produtivo estabelecido a partir da Segunda Revolução Agrícola,baseado na monocultura, na exploração extenuante da terra, no uso intensivode fertilizantes químicos e de agrotóxicos com alto poder biocida, tem provo-cado grandes impactos ambientais. Eis alguns dos custos socioambientais:

� erosão, "impactação" e perda da fertilidade dos solos;� destruição florestal;� dilapidação do patrimônio genético e da biodiversidade,� dilapidação dos recursos naturais não renováveis;� contaminação dos solos, das águas, dos animais silvestres, do homem docampo e dos alimentos;� surgimento de pragas mais resistentes;� aumento da presença de hormônios nos alimentos;� altíssimas concentrações de efluentes orgânicos originários dos confina-mentos intensivos;� aumento dos custos de produção;� concentração da propriedade e da riqueza;� migração, urbanização caótica e exclusão social.4

3. AGRICULTURA SUSTENTÁVEL: OBJETIVOS

A agricultura moderna está em xeque. O padrão de produção agrícola hojehegemônico é insustentável do ponto de vista socioambiental. Seus funda-

2 - Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma, pp. 20-21.

3 - Cf. EHLERS, Agricultura sustentável: origem e perspectivas de um novo paradigma, passim. GUIVANT, Aagricultura sustentável na perspectiva das ciências sociais, p. 101.4 - Cf. GUIVANT, A agricultura sustentável na perspectiva das ciências sociais, p. 101. MARTINE, A trajetóriada modernização agrícola: a quem beneficia?, p. 10. EHLERS, Agricultura sustentável: origens e perspectivasde um novo paradigma, passim.

Page 74: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 146 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 147

mentos estão sendo revistos e já se fala em um novo padrão. Impõe-se, comurgência, um novo modelo que concilie a produção, a conservação ambien-tal e a viabilidade econômica da agricultura.5

Os objetivos que compõem as propostas para uma agricultura sustentávelforam assim sintetizadas por Guivant:

� promoção da saúde de agricultores e consumidores;� manutenção da estabilidade do meio ambiente, mediante incorporaçãodos processos naturais, como os ciclos de nutrientes, a fixação denitrogênio, o controle de pragas pelos predadores naturais;� asseguração dos lucros dos agricultores a longo prazo;� produção agrícola para responder às necessidades atuais da sociedade,levando-se em conta as gerações futuras.6

Enfim, a agricultura sustentável deve ser ecologicamente equilibrada, eco-nomicamente viável, socialmente justa e culturalmente apropriada:

� o equilíbrio ecológico assegura a manutenção a longo prazo dos recur-sos naturais, a produção mínima de impactos adversos ao ambiente e adiversificação de culturas;� a viabilidade econômica se dá quando há retornos adequados aos pro-dutores e otimiza-se a produção das culturas com o mínimo de insumosquímicos;� a agricultura promove a justiça social quando satisfaz as necessidadeshumanas de alimentos e de renda, atende às necessidades sociais dasfamílias e das comunidades rurais, dirige-se à erradicação da fome, da mi-séria e da pobreza e possibilita a organização democrática da propriedade;� a produção agrícola deve, ainda, atender às características geográficas,históricas e culturais de determinado povo.7

4. O PADRÃO DE PRODUÇÃO AGRÍCOLA HEGEMÔNICO EM

FACE DOS MODELOS DE SOCIEDADE E DE PRODUÇÃO

DELINEADOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Ao refundar a República, após o período de ditadura militar, o povobrasileiro firmou novo pacto político, consubstanciado na Constituição pro-

mulgada em 5 de outubro de 1988, que delineia um projeto de sociedade ede Estado democráticos (democracia participativa, econômica e social) a serconstruído pela cidadania e pelos agentes do Estado.

Esse projeto perpassa toda a Constituição e sua essência está sintetizadanos três primeiros artigos. Neles, encontramos os chamados princípios-essên-cia, ou seja, "as prescrições normativas constitucionais, destinadas a traduzirvalores sobre os quais se forma uma sociedade".8 Os princípios-essência con-sagram valores que devem necessariamente orientar a prática social, a açãodo Estado e a interpretação das normas jurídicas.

Dentre os princípios-essência, encontramos os princípios impositivos, queimpõem aos agentes políticos que integram os órgãos de Estado e à cidada-nia, como um todo, a realização de fins e a execução de tarefas.9 No artigo3º da Constituição encontramos os objetivos da República brasileira (cons-trução da sociedade livre justa e solidária; garantia do desenvolvimento na-cional; erradicação da pobreza e da marginalização; redução das desigual-dades sociais e regionais; promoção do bem de todos, sem preconceitos).

Os princípios-essência permeiam toda a Constituição. A ordem econômicaconstitucionalmente definida tem por fim "assegurar a todos existência digna,conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput). A ordem social con-stitucionalmente estabelecida tem como objetivo "o bem-estar e a justiça so-ciais" (art. 193). Assim, a asseguração da dignidade da existência, a pro-moção da justiça social, a realização do bem-estar social e a promoção dajustiça social são princípios-essência impositivos.

Além dos princípios-essência, a Constituição também contempla os princí-pios-base, as "prescrições destinadas a estruturar a organização da sociedadeou de determinada atividade que a integra".10 No que diz respeito à ordemeconômica constitucionalmente definida, a soberania nacional, a pro-priedade privada, a função social da propriedade, a livre concorrência, adefesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigual-dades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favore-cido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras eque tenham sua sede e administração no País são princípios-base que devemestruturar a organização das atividades econômicas (art. 170, incs. I a IX).

5 - Cf. EHLERS, Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma, p. 1066 - Cf. GUIVANT, A agricultura sustentável na perspectiva das ciências sociais, p. 104.7 - Cf. EHLERS, Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma, pp. 111-118.

8 - Cf. DERANI, Direito ambiental econômico, p. 246.9 - Cf. CANOTILHO, Direito constitucional, p. 122. DERANI, Direito ambiental econômico, p. 246.10 - Cf. DERANI, Direito ambiental econômico, p. 248.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 75: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 148 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 149

O meio ambiente ecologicamente equilibrado foi consagrado como direitofundamental,11 princípio-base da ordem econômica12 e requisito essencialpara a caracterização da função social do imóvel rural.13

A sadia qualidade de vida, que pressupõe o respeito ao direito ao meioambiente ecologicamente equilibrado, compõe a dignidade da existência -objetivo da ordem econômica14 - e o bem-estar de todos - objetivo da ordemsocial.15 Por ser assim, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do representa faceta importante para a formação e garantia da dignidadehumana - fundamento do Estado Democrático de Direito.16

Dentre os princípios que informam o projeto democrático brasileiro, devemser destacados os seguintes:

a) princípio da transformação social - como macro-princípio impositivo,obriga o cidadão, a sociedade (por meio dos sujeitos políticos coletivos e dossujeitos econômicos) e as instituições estatais (por meio de seus diversosórgãos de direção política) a implementar ações e políticas públicas voltadaspara a transformação democrática das estruturas sociais e econômicas.17

b) princípio do desenvolvimento socioeconômico - o desenvolvimento écondição para a transformação social, implicando implementação de políti-cas públicas que promovam mudanças de caráter socioeconômico-cultural edistribuição eqüitativa de seus benefícios;

c) princípio da igualdade material - ao partir da igualdade jurídica e passarpela igualdade de oportunidades, esse princípio vai além, pois visa garantir opleno desenvolvimento da pessoa humana e a sua capacidade de autodeter-minação, bem como a efetiva participação de todos na formação da vontadepolítica do Estado, no gozo dos bens culturais e na partilha eqüitativa dariqueza socialmente produzida;

d) princípio da supremacia do interesse público sobre o privado - subordi-na a livre iniciativa e a propriedade privada ao interesse social;

e) princípio da promoção do bem comum - impõe aos agentes políticos queintegram os órgãos de Estado e à cidadania, como um todo, o dever de criartodas as condições da vida social que permitam e favoreçam o desenvolvi-mento integral de todas as pessoas, sem distinção e sem preconceito, garan-tindo, desse modo, existência digna a todos, sem exceção.

O padrão de produção agrícola adotado em nosso país, derivado daSegunda Revolução Agrícola e fundado na monocultura, no latifúndio, naagroquímica e na redução da mão-de-obra, é concentrador. Ao concentrarpropriedade, riqueza, renda e poder, esse padrão de produção caminha nacontramão do projeto constitucional de desenvolvimento, pois só faz aumen-tar a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais, além de provo-car a degradação ambiental, inviabilizando a promoção do bem comum.

O imóvel rural que adota esse padrão descumpre a função socioambien-tal, fere a ordem econômica e social e frustra o cumprimento dos objetivosfundamentais da República brasileira. Nega, portanto, o projeto de sociedadedemocrática delineado na Constituição. É antidemocrático, do ponto-de-vistapolítico, e inconstitucional, do ponto-de-vista jurídico.18

5. O PADRÃO DE PRODUÇÃO AGRÍCOLA HEGEMÔNICO

EM FACE DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

Essa padrão produtivo também fere normas e princípios consagrados nalegislação ambiental, agrícola e agrária.

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e a Lei da Política EstadualPaulista do Meio Ambiente, além de definirem meio ambiente, degradação daqualidade ambiental, poluição, poluidor e recursos ambientais,19 dão as dire-trizes e normatizam a política ambiental, objetivando a compatibilização dodesenvolvimento socioeconômico com a preservação da qualidade do meioambiente e do equilíbrio ecológico.20

A Lei da Política Agrícola subordina a atividade agrícola às normas e princí-pios de interesse público, de forma que seja cumprida a função social da pro-priedade21. Define a proteção do meio ambiente como objetivo e instrumen-to da política agrícola.22

11 - Constituição da República, art. 225.12 - Constituição da República, art. 170, inciso VI.13 - Constituição da República, art. 186, incisos I, II e IV.14 - Constituição da República, art. 170.15 - Constituição da República, art. 193.16 - Constituição da República, art. 1º, inciso III. Sobre o tratamento constitucional do meio ambiente, verDERANI, Direito ambiental econômico, pp. 253-256.17 - xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

18 - Cf. GOULART, Ministério Público e democracia: teoria e práxis, pp. 127-128.19 - Lei Federal nº 6938/81, art. 3º, incisos I a V, e Lei Estadual Paulista nº 9509/97, art. 3º, incisos I a V.20 - Lei Federal nº 6938/81, art. 4º, inciso I, e Lei Estadual Paulista nº 9509/97, art. 4º, inciso I.21 - Lei Federal nº 8171/91, art. 2º, inciso I.22 - Lei Federal nº 8171/91, art. 3º, inciso IV, e art. 4º, inciso IV.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 76: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 150 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 151

E a Lei da Reforma Agrária considera preservação do meio ambiente, comorequisito do cumprimento da função social da propriedade rural, a manu-tenção das características do meio natural e da qualidade dos recursos am-bientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico e dasaúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.23

Para a efetivação da política ambiental, a legislação impõe ao poluidor eao predador a obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados aomeio ambiente,24 bem como o sujeita à restrição de incentivos e benefícios fis-cais, à perda ou suspensão de financiamento em estabelecimentos oficiais decrédito e à restrição à participação em licitações.25

A reparação do dano ambiental implica, além de indenização, obrigaçãode fazer ou de não-fazer.26 Em regra, a obrigação de fazer consiste na implan-tação de técnicas, sistemas e equipamentos de controle antipoluição, na suamanutenção e no seu adequado funcionamento, e a de não-fazer, na ces-sação das práticas antiambientais.

O legislador consagrou a teoria do risco integral, pela qual o dever dereparar o dano surge independentemente da culpa do agente e da licitude dasua conduta, bastando a demonstração da existência de dano oriundo deuma determinada atividade (nexo de causalidade: atividade/dano). Rompe-secom o sistema clássico da responsabilidade civil, que tem na culpa o funda-mento do dever de indenizar, adotando-se a responsabilidade objetiva na suamaior extensão27. Assim o é, porque em matéria ambiental vige o princípio dasupremacia do interesse público sobre o privado. O titular de uma atividadeprivada, da qual obtém vantagens (lucro), deve assumir todos os riscos deladecorrentes. Isso implica:

� prescindibilidade da culpa para o dever de reparar;� irrelevância da licitude da atividade;� irrelevância do caso fortuito e da força maior como causas excludentesda responsabilidade.

6. INSTRUMENTOS JURÍDICO-PROCESSUAIS PARA

A PROMOÇÃO DA AGRICULTURA SUSTENTÁVEL

A promoção da agricultura sustentável pelos operadores do direito, emespecial pelos promotores de Justiça do Meio Ambiente, passa pelo questio-namento do padrão produtivo hoje hegemônico através dos instrumentosadministrativos e processuais criados para a defesa de interesses difusos,ressaltando-se, nesse passo, o inquérito civil, o compromisso de ajustamentode conduta e a ação civil pública.28

Através desses instrumentos, os promotores de Justiça - defensores doregime democrático e do meio ambiente -, devem exigir o cumprimento daConstituição da República, em especial naquilo que diz respeito à funçãosocial da propriedade rural e de toda legislação infraconstitucional aplicável,como v.g., o Código Florestal, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente,a Lei da Reforma Agrária, a Lei da Política Agrícola, a Lei de Agrotóxicos.

7. O M INISTÉRIO PÚBLICO E A PROMOÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA

7.1 A função social do imóvel rural7.1 A função social do imóvel rural

No ordenamento jurídico brasileiro, desde a Constituição democrática de1946, a propriedade perdeu o caráter de direito absoluto de uso gozo e dis-posição pelo seu titular. A partir de então, a função social passou a figurarcomo elemento constitutivo do conceito jurídico de propriedade. Como bemsintetiza Silveira:

Importa dizer que a função social não é um elemento externo,um mero adereço do direito de propriedade, mas elementointerno sem o qual não se perfectibiliza o suporte fático do direi-to de propriedade...29

Grau, com acerto, chega a afirmar que:

a propriedade dotada de função social, que não esteja acumpri-la, já não será mais objeto de proteção jurídica. Ouseja, já não haverá mais fundamento jurídico a atribuir direitode propriedade ao titular do bem (propriedade) que não está a23 - Lei Federal nº 8629/93, art. 9º, § 3º.

24 - Lei Federal nº 6938/81, art. 4º, inciso VII, e Lei Estadual Paulista nº 9509/97, art. 4º, inciso V. 25 - Lei Federal nº 6938/91, art. 14, incisos II e III, e Lei Estadual Paulista nº 9509/97, art. 2º, inciso XVIII.26 - Lei nº 6938/81, art. 14, § 1º, Lei Federal nº 7347/85, art. 3º.27 - Lei Federal nº 6938/81, art. 14, § 1º, e Lei Estadual Paulista nº 9509/97, art. 32.

28 - Tais instrumentos estão disciplinados na Lei Federal nº 7347/85.29 - Cf. A propriedade agrária e suas funções sociais, p. 13.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 77: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 152 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 153

cumprir sua função social. Em outros termos: já não há mais, nocaso, bem que possa, juridicamente, ser objeto de direito depropriedade.30

Na Constituição vigente, a função social do imóvel rural está assim definida:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedaderural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus deexigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:I- aproveitamento racional e adequado;II- utilização adequada dos recursos naturais disponíveis epreservação do meio ambiente;III- observância das disposições que regulam as relações de tra-balho;IV- exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dostrabalhadores.

Da análise do citado artigo, verifica-se que a função social do imóvel ruralé constituída por um elemento econômico (aproveitamento racional e ade-quado), um elemento ambiental (utilização adequada dos recursos naturais epreservação do meio ambiente) e um elemento social (observância das nor-mas que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores).

Basta a inobservância de um dos requisitos para a caracterização do des-cumprimento da função social.

7.2 F7.2 Função social do imóvel rural e reforma agráriaunção social do imóvel rural e reforma agrária

O imóvel rural que não cumpra a função social é susceptível de desapropria-ção por interesse social, para fins de reforma agrária (Const. art. 184, caput).

A Constituição diz, todavia, que são insusceptíveis de desapropriação parafins de reforma agrária: (i) o pequeno e médio imóvel rural; (ii) o imóvel ruralprodutivo (art. 185, incs. I e II).

A interpretação isolada e apressada do art. 185, inciso II, da Constituição,poderia levar à conclusão de que o imóvel rural que atendesse tão-somenteao requisito econômico da função social (produtividade), desprezando os

demais (aqueles correspondentes aos elementos ambientais e sociais), nãopoderia ser desapropriado para fins de reforma agrária.

A interpretação sistemática das normas constitucionais não autoriza tal con-clusão. Como observa Borges:

a propriedade cuja exploração não respeita a vocação naturalda terra, degradando o seu potencial produtivo, que não man-tém as características próprias do meio natural, que agride aqualidade dos recursos ambientais, não contribuindo para amanutenção do equilíbrio ecológico da propriedade, nem éadequada à saúde e à qualidade de vida das comunidades vizi-nhas está sujeita a sofrer desapropriação ... O simples fato deser a propriedade produtiva não garante sua proteção contra adesapropriação por interesse público para fins de reformaagrária. Se tal propriedade se mantém produtiva em discordân-cia com as normas ambientais que sobre ela incidem, não severifica, aí, o cumprimento de sua função social, conforme pre-ceitua o art. 186 da Constituição. A exploração econômica nãoé intocável quando proporciona degradação ambiental.31

A degradação ambiental - seja ela provocada pela utilização inadequadados recursos naturais ou pela não preservação do meio ambiente - produzevidentes prejuízos ao aproveitamento racional e adequado da terra. Há, por-tanto, vinculação entre os elementos econômico e ambiental da funçãosocial, sendo impossível dissociá-los.

O mesmo raciocínio vale para a impossibilidade de dissociação do elemen-to econômico do elemento social. Ora, não pode ser considerada produtivaa atividade que necessite desrespeitar as disposições que regulam as relaçõesde trabalho para alcançar o grau de eficiência na exploração da terra. Ouque, para atingir esse grau de eficiência, venha prejudicar o bem-estar dosproprietários e dos trabalhadores.

Ainda que a produtividade, do ponto de vista estritamente econômico, este-ja presente, o imóvel rural poderá ser desapropriado para fins de reformaagrária se descumprido um dos demais requisitos caracterizadores da funçãosocial (elemento ambiental ou social).

30 - Cf. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica, p. 316.

31 - Cf. Função ambiental da propriedade e reforma agrária, pp. 308-309. No mesmo sentido, VARELLA,Introdução ao direito à reforma agrária, pp. 251-256; SILVEIRA, A propriedade agrária e suas funções so-ciais, pp. 21-22.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 78: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 154 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 155

7.3 O Ministério Público e a promoção da reforma agrária7.3 O Ministério Público e a promoção da reforma agrária

A Constituição de 1988 confere ao Ministério Público a tarefa de defendera ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuaisindisponíveis (art. 127, caput). A defesa da ordem jurídica e a defesa dosinteresses sociais e individuais indisponíveis são atribuições tradicionais doMinistério Público. A defesa do regime democrático passou a integrar esse rola partir da promulgação da Constituição. Diante dessa nova incumbência,resta indagar qual democracia deve o Ministério Público defender.

A resposta não é difícil. Cabe ao Ministério Público defender o projeto dedemocracia participativa, econômica e social delineado na Constituição. Noatual momento histórico, é necessário frisar que, mais do que defender, oMinistério Público deve colocar-se como parceiro privilegiado das forças so-ciais comprometidas com a construção da democracia de massas, difundin-do e representando os valores democráticos, fazendo atuar os direitos soci-ais, coletivos e difusos.

A construção da democracia substancial no Brasil passa necessariamentepela profunda transformação da sua estrutura fundiária, o que implica imple-mentação de uma política de reforma agrária agressiva, política essa previstaem capítulo próprio da Constituição da República (arts. 184 a 191). Nãohaverá democracia em nosso país, tampouco desenvolvimento econômico,sem a realização da reforma agrária.

A implementação da Política Constitucional de Reforma Agrária não dispen-sa a atuação do Ministério Público, que se dá de três formas:

� defesa do interesse difuso à reforma agrária;� fiscalização do cumprimento dos Planos de Desenvolvimento dosAssentamentos (PDAs) e dos Planos de Desenvolvimento Sustentável dosAssentamentos (PDSs);� intervenção como custos legis nos processos que versam sobre litígioscoletivos pela posse da terra rural.

Na defesa do interesse difuso à reforma agrária, o Ministério Público deveinstaurar inquérito civil nos casos (i) de manifesta omissão da União no deverde desapropriar o grande imóvel rural que não cumpre a função social ou (ii)de verificação, em determinado caso concreto, desse descumprimento pelotitular do domínio ou da posse. Num ou noutro caso, cabe ao membro doMinistério Público que preside o inquérito recomendar ao INCRA a abertura

do processo administrativo de desapropriação, marcando prazo para isso. Nocaso de não atendimento da recomendação, deverá pleitear, perante aJustiça Comum Federal, por meio de ação civil pública, a condenação daUnião na obrigação de fazer a desapropriação e o assentamento de traba-lhadores sem-terra nessas áreas.

No acompanhamento e fiscalização dos Planos de Desenvolvimento dosAssentamentos, o Ministério Público deve instaurar inquérito civil nos casos dedescumprimento das cláusulas desses planos, mormente no que diz respeitoao apoio técnico e financeiro do Poder Público aos assentados e às práticasantiambientais. Cabe ao membro do Ministério Público que preside o inquéri-to recomendar ao órgão público implementador e/ou à representação dosassentados a observância dos termos do plano e de práticas consentâneascom padrões de produção social e ambientalmente sustentáveis, compatíveiscom os princípios que informam uma política democrática de reformaagrária. No caso de não atendimento da recomendação, poderá pleitear,perante o Poder Judiciário, por meio de ação civil pública, a condenação dosinteressados em obrigações de fazer ou de não-fazer que garantam o cumpri-mento do plano.

A atuação do Ministério Público como custos legis nos processos que ver-sam sobre litígios coletivos pela posse da terra rural merece uma abordagemmais aprofundada, o que se fará a partir dos próximos itens deste ensaio.

8. Os litígios coletivos pela posse da terra rurale o acesso à ordem jurídica justa

8.1 O processo como instrumento de acesso à ordem jurídica justa8.1 O processo como instrumento de acesso à ordem jurídica justa

As mudanças sociopolíticas que marcaram a transição do Estado liberalpara o Estado social refletem-se no fenômeno processual. As lutas protagoni-zadas inicialmente pelo movimento operário, com nítido teor classista,somadas às lutas de outros grupos e segmentos sociais (negros, mulheres,estudantes, pacifistas, ambientalistas, consumidores, minorias, etc.), consubs-tanciadas em demandas por igualdade e melhor qualidade de vida, resul-taram no reconhecimento constitucional e legal de novos direitos econômi-cos, sociais, coletivos e difusos, cuja concretização passou a depender, pre-cipuamente, da "atuação positiva do Estado",32 seja para criar as condições

32 - Cf. CAPPELLETTI e GARTH, Acesso à justiça, pp. 10-11. SANTOS, A sociologia dos tribunais e a demo-cratização da justiça, p. 165.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 79: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 156 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 157

da vida social que viabilizem o gozo dos direitos proclamados - a demandaração governamental -, seja para superar os conflitos jurídicos decorrentes dasua inobservância e violação - a demandar a intervenção do Sistema deAdministração da Justiça.

Esse contexto histórico favoreceu a explosão da litigiosidade e o surgimen-to dos conflitos de massa, que acabam por desaguar no Sistema deAdministração da Justiça, a exigir a mudança de postura dos operadores dodireito, em especial do juiz, que, de mero espectador do duelo das partes,passa a perseguir, no processo, o objetivo público de fazer valer o direito erealizar justiça.

No último século, ocorreu intensa publicização do processo. De meroinstrumento de satisfação de direitos subjetivos, o processo transforma-se eminstrumento do Estado para a realização do bem comum.

Nessa perspectiva, o grau de efetividade do sistema processual é medidopela capacidade do Estado-jurisdição cumprir seus escopos, garantindo atodos e através do processo a concretização dos direitos e a realização dajustiça social. A efetividade do processo está diretamente relacionada com agarantia do acesso à justiça.

O acesso à justiça é considerado por Cappelletti e Garth como "o pontocentral da moderna processualística"33 e por Dinamarco como "o pólo meto-dológico mais importante do sistema processual na atualidade".34 É ne-cessário aprofundar o sentido da expressão acesso à justiça, que, à evidên-cia, não deve estar limitada à idéia de livre trânsito nas instituições da Admi-nistração da Justiça. Como acentuam Cappelletti e Garth, o sistema "deveproduzir resultados que sejam individual e socialmente justos".35 Ou comoco-locado por Watanabe, o sistema deve "viabilizar o acesso à ordem jurídi-ca justa".36

Assim, o acesso à justiça deve ser compreendido no seu duplo aspecto: (i)como universalização do acesso às instituições que compõem o Sistema deAdministração da Justiça; (ii) como acesso à ordem jurídica justa.

No segundo aspecto e levando em conta a realidade brasileira, almeja-se:

a) garantir, pelas instituições do Sistema de Administração da Justiça, ocumprimento dos objetivos da República, definidos constitucionalmente einformados pelos princípios da transformação social, do desenvolvimento, daliberdade, da igualdade, da solidariedade, da supremacia do interesse públi-co e da promoção do bem comum;37

b) garantir, pelos membros dessas instituições, a utilização do direito comoinstrumento de transformação social.

8.2 Os litígios coletivos pela posse da terra rural8.2 Os litígios coletivos pela posse da terra rural

Os litígios coletivos pela posse da terra rural são trabalhados, em regra,pelos operadores do direito à luz de princípios, normas e doutrinas jurídicashistoricamente superadas. A visão setecentista dessa problemática ainda pre-pondera, transformando os tribunais brasileiros em espaços de negação daefetividade dos direitos sociais constitucionalmente previstos.

Os operadores do direito, de forma geral, e os membros do Judiciário, emespecial, não podem postar-se como instrumentos a serviço da manutençãode uma estrutura agrária perversa, engessando o país, inibindo o avanço doprojeto democrático constitucionalmente delineado.

A mudança do tratamento dos conflitos coletivos pela posse da terra ruralimplica, primeiramente, o reconhecimento, pelo operador do direito, da com-plexidade social, política e jurídica da questão, o que afasta a visão privatís-tica do tema e impõe a utilização dos princípios constitucionais como critériodiretivo das opções interpretativas. Desse modo, algumas premissas postaspelo direito material e processual contemporâneos e já consagradas no orde-namento jurídico brasileiro devem ser observadas:

� publicização do regime jurídico da propriedade e da posse da terra;� reforma agrária como instrumento fundamental de concretização dademocracia econômica e social consagrada na Constituição da República;� publicização do processo;� Sistema de Administração da Justiça como espaço de acesso à ordemjurídica justa.

33 - Cf. CAPPELLETTI e GARTH, Acesso à justiça, pp. 31-73.34 - Cf. A instrumentalidade do processo, p. 304.35 - Cf. Acesso à justiça, p. 8.36 - Cf. Acesso à justiça e sociedade moderna, p. 128. 37 - Sobre os objetivos da República brasileira ver retro, n. 4.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 80: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 158 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 159

Observadas essas premissas, podemos concluir, com Garrido de Paula, que:

� a posse que merece proteção jurídica é aquela que, nos termos doCódigo Civil, seja justa e de boa fé, e aquela que, em razão daConstituição da República e das leis que regulamentam a matéria, recaiasobre terras que cumpram a função social, em todos os seus elementos(econômico, ambiental e social), escapando da possibilidade de servir àreforma agrária;� o ônus de provar que a posse carente de proteção judicial recai sobreterra que cumpra com sua função social é do autor.38

8.3 A intervenção do Ministério Público nos processos8.3 A intervenção do Ministério Público nos processosque envolvam litígios coletivos pela posse da terra ruralque envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural

O Ministério Público, enquanto ator do processo, ora atua como órgãoagente (autor das ações civis públicas), ora como órgão interveniente (chama-do tradicionalmente de custos legis). Nas hipóteses previstas no art. 82 doCódigo de Processo Civil, o Ministério Público atua como órgão interveniente,sempre na defesa de valores que, transcendendo a esfera jurídica individual,interessam à sociedade. Assim, os valores relacionados com a natureza darelação jurídica material posta em juízo ou relacionados com a condiçãopeculiar da pessoa que figura como parte no processo.39

A intervenção do Ministério Público, como custos legis, só se justifica quan-do presente na relação jurídica de direito material objeto do processo uminteresse público qualificado, compatível com a relevância das incumbênciasconstitucionais do Parquet - defesa da ordem jurídica, do regime democráti-co e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.40

Não se pode perder de vista que, ainda como órgão interveniente, oMinistério Público não deixa de ser parte, pois, como ensina Dinamarco:

a qualidade de parte reside na titularidade dos deveres, ônus,poderes, faculdades, que caracterizam a relação processual:

partes são os sujeitos do contraditório instituídos perante o juiz(...) Ora, o órgão do Ministério Público, uma vez no processo, étitular dessas posições jurídicas processuais inerentes à relaçãojurídica que se estabelece no processo, seja fiscal da lei ou não(...) O que caracteriza a figura do custos legis é (ao contrário doque sucede na caracterização do conceito de parte) uma circun-stância completamente alheia ao direito processual: ele não évinculado a nenhum dos interesses em causa. No plano do dire-ito material, o fiscal da lei não se prende ao interesse de nenhu-ma das partes conflitantes: ele quer que a vontade estatal mani-festada através da lei seja observada (mas, para buscar esseobjetivo, a lei impõe que ele atue no processo como parte).41

Com a alteração da redação do art. 82, inc. III, do CPC, dada pela Lei nº9415/96, ficou expressamente prevista a intervenção do Ministério Públiconos processos que versam sobre conflitos fundiários. O que justificaria a inter-venção do Ministério Público nesse tipo de processo?

Enfrentando essa questão com rigor, Garrido de Paula conclui que:

o Ministério Público, nas ações que envolvam litígios coletivos pela posseda terra rural, tem a qualidade de interveniente em razão da natureza da lide,reveladora do interesse público primário da República Federativa do Brasil deincrementar, em conformidade com a Constituição e com as leis, a reformaagrária.42

É do interesse de toda a sociedade brasileira, a consecução dos objetivosfundamentais da República, dirigidos à construção da sociedade livre, justa esolidária, na qual o desenvolvimento econômico deve estar voltado necessaria-mente para a erradicação da pobreza e da marginalização, para a diminuiçãodas desigualdades sociais e para a promoção do bem de todos (CR, art. 3º,incs. I a IV). Trata-se do projeto constitucional de democracia econômica e so-cial, que não se compatibiliza com a estrutura agrária e com o padrão de pro-dução agrícola concentrador e excludente hoje existentes no país.

Os conflitos coletivos pela posse da terra, que deságuam nos tribunais atra-vés das ações possessórias, têm como pano de fundo a contradição entre oprojeto constitucional de democracia econômica e social e a cruel realidade

38 - Conclusões da tese de GARRIDO DE PAULA, A intervenção do Ministério Público nas ações possessóriasenvolvendo conflitos coletivos pela posse da terra rural, aprovadas durante o 2º Congresso do MinistérioPúblico do Estado de São Paulo (maio de 1997) e incorporadas à Carta de Ribeirão Preto pela Reforma Agráriae em Defesa do Meio Ambiente, elaborada durante o Seminário "Meio Ambiente e Reforma Agrária", promovi-do pela Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, em Ribeirão Preto, em 13 de dezembro de1999.39 - Cf. DINAMARCO, Fundamentos do processo civil moderno, p. 322.40 - Nesse sentido a lição de GUIMARÃES JÚNIOR, Ministério Público: proposta para uma nova postura noprocesso civil, p. 155.

41 - Cf. Fundamentos do processo civil moderno, pp. 326-327.42 - Cf. A intervenção do Ministério Público nas ações possessórias envolvendo conflitos coletivos pela posseda terra rural, p. 410.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 81: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 160 ABRA - REFORMA AGRÁRIA 161

fundiária brasileira. O processo, enquanto um dos instrumentos de acesso àordem jurídica justa, pode e deve ser o espaço de superação dessa contradi-ção, impondo-se a intervenção do Ministério Público, enquanto instituição in-cumbida de defender o projeto democrático da Constituição. Esse projeto temcomo meta a justiça social no campo, com a mudança da estrutura fundiáriaatravés da implementação do plano de reforma agrária (CR, 170, 184 a 191).

Vislumbrando o alcance que a participação do Ministério Público nessascausas pode ter, o juiz Castilhos Bertoluci, do Tribunal de Alçada do RioGrande do Sul, em decisão liminar proferida em sede de agravo de instru-mento, assim se manifestou:

Nesse contexto, a presença e a participação do MinistérioPúblico em demandas dessa natureza são imperiosas, na medi-da em que a visão dimanada desse órgão oportunizará no feitoa defesa de direitos e interesses outros, não apenas aqueles con-tidos na estrita relação processual que vincula possuidores e pro-prietários. A Constituição Federal, aliás, dotou o MinistérioPúblico de funções maiores e de alta relevância na proteção dointeresse público. Esse interesse está, como em poucos casos,eloqüentemente presente na espécie. Tão imperiosa e valiosa éa presença do Ministério Público que deve ela ser convocadadesde o início da demanda, para que, desde logo, esteja ela lideimpregnada da visão publicista e eqüidistante das paixões queenvolvem o caso, assim fornecendo ao magistrado melhores emais amplos elementos de convicção para decidir. (grifo nosso)

Aqui, o juiz inova, ao acentuar que a participação do Ministério Públicodeve ocorrer desde o início do processo, mesmo antes da apreciação deeventual pedido liminar ou da apresentação da contestação. E assim deve ser,em razão, como já visto, das complexas questões sociopolítico-jurídicas queenvolvem o conflito coletivo fundiário.

O conflito coletivo pela posse da terra rural tem peculiaridades que não po-dem ser desprezadas. O tratamento processual desse tipo de causa não podeseguir rigidamente o modelo proposto pelo individualista Código de ProcessoCivil, projetado para compor conflitos de natureza interindividual.

Deve ser ressaltado o fato de que, nesse tipo de processo, o interesse públi-co a ser tutelado não figura como mero adorno dos interesses privados daspartes em litígio. Em decorrência da publicização do regime jurídico da posse

e da propriedade rurais, os interesses das partes, mais do que em qualquer ou-tra causa, estão subordinados ao interesse social. O interesse público mani-festa-se "eloqüentemente" e deve preponderar e orientar as decisões judiciais.

Vimos que a posse merecedora de proteção jurídica é aquela que, além deser justa e de boa fé, recai sobre terras que cumpram a função social, nosseus elementos econômico, ambiental e social.43 Esse último requisito -demonstração do cumprimento da função social - decorre do regime consti-tucional da posse e da propriedade rural. Cabe ao autor demonstrá-lo e aojuiz levá-lo em consideração quando da apreciação da existência do fumusboni iuris em pedido liminar e no julgamento do mérito. Como imperativoconstitucional, o cumprimento da função social é do interesse de toda asociedade e está acima dos interesses das partes em litígio. A tutela desseinteresse social, no processo possessório, cabe ao Ministério Público, que, nacondição de custos legis e defensor do regime democrático, não é merocoadjuvante, mas, sim, sujeito do contraditório e parte interessada naprevalência desse imperativo constitucional. Portanto, sua participação devedar-se desde o início, para que apresente, antes de cada decisão (antes,sobretudo, da decisão que aprecie pedido liminar), os argumentos jurídico-constitucionais, de natureza pública, que permeiam a causa e devem formara convicção do juiz.

Não podemos perder de vista que o processo está a serviço da realizaçãodo direito material e é o instrumento que o Estado-juiz dispõe para pacificaros conflitos, fazendo justiça.44

REFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função ambiental da pro-priedade e reforma agrária. In: SILVEIRA, Domingos S. D. da(org.). O direito agrário em debate. Porto Alegre: Livraria doAdvogado Editora, 1998.CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 4ªed. Coimbra: Almedina, 1989.CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris,1988 (em cooperação).DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo:Max Limonad, 1997.

43 - Retro, n. 8.244 - Nesse sentido, DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, passim.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 82: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 163ABRA - REFORMA AGRÁRIA 162

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civilmoderno. São Paulo: RT, 1986.

- A instrumentalidade do processo. 4ª ed. São Paulo:Malheiros, 1994.EHLERS, Eduardo. Agricultura sustentável: origens e perspectivasde um novo paradigma. São Paulo: Livros da Terra, 1996.GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. A intervenção do MinistérioPúblico nas ações possessórias envolvendo conflitos coletivospela posse da terra rural. In: II CONGRESSO DO MINISTÉRIOPÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo: 1997.Anais, p. 405-410.GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre, Fabris: 1988 (emcooperação).GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia:teoria e práxis. Leme: LED, 1998.

- O Ministério Público, as práticas rurais antiambientais ereforma agrária. In: 13º CONGRESSO NACIOANL DOMINISTÉRIO PÚBLICO. Curitiba. 1999. Livro de Teses. vol. 3, p.103-111.GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. Ministério Público: propostapara uma nova postura no processo civil. In: FERRAZ, AntonioAugusto de Camargo (coord.). Ministério Público: instituição eprocesso. São Paulo: Atlas, 1997.GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de1988: interpretação e crítica. 2ª ed. São Paulo: RT, 1991.GUIVANT, Júlia Sílvia. A agricultura sustentável na perspectivadas ciências sociais. In: LEIS, Héctor Ricardo et al. Meio ambi-ente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as ciênciassociais. São Paulo: Cortez, 1995.MARTINE, George. A trajetória da modernização agrícola: aquem beneficia? Lua Nova, v. 23, pp. 7-37, 1991.SANTOS, Boaventura de Sousa. A sociologia dos tribunais e ademocratização da justiça. In: SANTOS, Boaventura de Sousa.Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.São Paulo: Cortez, 1995.SILVEIRA, Domingos Sávio Dresh da. A propriedade agrária esuas funções sociais. In: SILVEIRA, Domingos Sávio Dresh da(org.). O direito agrário em debate. Porto Alegre: Livraria doAdvogado Editora, 1998.VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reformaagrária: o direito face aos novos conflitos sociais. Leme: LED-

Editora de Direito, 1998.VEIGA, José Eli da. O desenvolvimento agrícola: uma visãohistórica. São Paulo: Edusp-Hucitec, 1991.WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In:GRINOVER, Ada Pellegrini e outros (coord.). Participação eprocesso. São Paulo, RT, 1988.

MARCELO PEDROSO GOULART

Graduado pela USP, o Autor é Promotor de Justiça no Estadode São Paulo, Mestre em Direito pela UNESP e Docente daEscola Superior do Ministério Público de São Paulo. É membro-fundador e ex-Coordenador Nacional (1995/1996) doMovimento do Ministério Público Democrático. Além de colab-orar como articulista em periódicos e revistas especializadas,publicou os livros Ministério Público e democracia: teoria epráxis, pela LED-Editora de Direito, e Ministério Público e direitoalternativo, este em co-autoria, pela Editora Acadêmica.

Ministério Público, Meio Ambiente e Questão AgráriaEnsaios e Debates

Page 83: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 165

A "Não Reforma Agrária" do

MDA/INCRA no governo Lula1

Ariovaldo Umbelino de Oliveira1

1. Um pouco da História...

A experiência da participação na equipe de Plínio de Arruda Sampaio nosegundo semestre de 2003, para elaborar o primeiro documento que deve-ria ser o II PNRA, foi muito importante para que se pudesse reforçar a con-sciência de que em política vale tudo, menos ética e moral. No governo deFHC do PSDB não foi diferente, no governo Sarney do I PNRA também nãofoi diferente. Aliás, na ditadura militar, também não foi diferente. Mas, os inte-lectuais sempre acham que chegará um dia do primado da ética e da moraltambém na política.

O intelectual José Juliano de Carvalho Filho da FEA - USP e da ABRA emum feliz artigo publicado em "O Globo" de 20/01/2006, foi brilhante na críti-ca aos dados de 2005 divulgados pelo MDA/INCRA sobre a reforma agráriano governo LULA:

"Controvérsia sobre números não é novidade quando se tratade reforma agrária. Quem acompanha a política agrária noBrasil deve se lembrar de várias situações em que este fato ocor-reu. Chegou a vez do governo Lula.

1 - Trabalho apresentado na reunião paralela realizada pela Via Campesina durante a ConferênciaInternacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural - CIRADR-FAO, Porto Alegre-RS entre 7 e10/03/2006.2 - Professor Titular do Departamento de Geografia - FFLCH - USP, membro da ABRA e do Instituto IANDÉ.3 - "Meu país" - Zezé Di Camargo & Luciano, CD Pra não pensar em você- 1998, música utilizada na cam-panha de Lula em 2002.4 - Também membro da equipe de Plínio de Arruda Sampaio do II PNRA.

"O que que há meu paísO que que há ...

Tá faltando consciênciaTá sobrando paciência

Tá faltando alguém gritar ..."3

Page 84: Revista Abra 33

No governo Figueiredo final do período ditatorial houve contro-vérsia sobre os números da reforma. Naquela época, final de1984, foi oficialmente anunciada a emissão do milionésimodocumento de titulação de terra. O governo de então apontavaeste fato como evidência de que estava em curso no país omaior programa de reforma agrária do mundo.

Os jornais publicaram várias análises. Manifestei-me a respeitoem artigo publicado pela Folha de S. Paulo à época: O milhãode títulos anunciados refere-se a uma série de documentos,entre os quais se incluem títulos de propriedade definitivos paraagricultores sem terra, para posseiros que já ocupavam a terrae títulos com direito a ocupação provisória. Evidentemente, adita maior reforma agrária do mundo, e dos militares, não ocor-reu. Cabe também relembrar o óbvio, ou seja, os movimentossociais foram perseguidos e reprimidos nesse período negro danossa história."

Assim, como a música de Raul Seixas, "E anos 80" e seu verso certeiro: "Eanos 80, a charrete que perdeu o condutor"5 mostrou simbolicamente, ocor-reram muitas derrotas/vitórias na luta pela reforma agrária no país. O Brasildos militares não fez a reforma agrária do Estatuto da terra, mas a sociedadecivil ganhou o MST que reforçou a luta que a CPT já fazia desde a década de70. Ganhou-se o I PNRA, no governo Sarney, mas o Brasil perdeu MarcosFreire, ministro da Reforma Agrária. Veio a Constituição "cidadã" de 1988,mas, a reforma agrária perdeu a possibilidade histórica de desapropriar ter-ras produtivas concedida pelo Estatuto da Terra de 1964.

Certamente, é possível pensar que o PT tenha começado a perder seu nortena eleição de 1989, e todos que o ajudaram em sua construção, perderamo partido que poderia começar a revolucionar a sociedade brasileira. Quemsabe aí, pode ter desaparecido na história política do Brasil, a possibilidadede um partido transformar este país. É possível também, pensar que sucumbiuaí, mais uma das teses ortodoxas de um determinado tipo de marxismo. Mas,também é possível pensar que neste momento, uma nova alternativa estavanascendo no campo brasileiro, o cada vez mais forte movimento camponêsmoderno. Aliás, contrariando intelectuais, políticos de esquerda e quem sabe,parte de seus próprios dirigentes.

Feita a digressão, é preciso voltar ao texto de CARVALHO FILHO:

"Em dezembro de 1995, primeiro ano do governo FHC, o presi-dente da República afirmava na imprensa ter conseguidocumprir a meta de campanha, assentando mais de 40 milfamílias. O MST questionava os números oficiais, apresentandoo número de famílias assentadas em 1995, como inferior a 15mil. De acordo com o MST, a diferença se devia ao fato de queFHC, para chegar à meta de 40 mil famílias assentadas naque-le ano, somara títulos de regularização fundiária de processosque vinham de governos anteriores e, ainda, de títulos de pos-seiros. Para o MST, a meta anunciada pelo governo se referia a40 mil novas famílias que seriam assentadas.

Durante a campanha pela reeleição, sempre a inflar seus supos-tos feitos, o então candidato FHC afirmava pelo site do Incra: OBrasil está realizando a maior reforma agrária em curso nomundo. Na televisão, na propaganda oficial, ator famoso anun-ciava: Uma família assentada a cada cinco minutos.

O segundo mandato, marcado pela chamada reforma agráriade mercado de FHC, desmontou conceitos e condições parauma distribuição fundiária efetiva. Duas linhas de atuaçãonorteavam o governo. De um lado, agressividade na implemen-tação da política fundiária, anúncio de medidas e números,sempre, com razão, contestados. De outro, com a conivência damídia, crítica contínua aos movimentos sociais, sobretudo oMST com os objetivos de desqualificá-los, enfraquecê-los ecriminalizá-los. Essa outra maior reforma agrária em curso nomundo também não ocorreu."

CARVALHO FILHO certamente há de concordar que é preciso continuarregistrando para a história, que no interior do segundo mandato de FHC,existiu também, pela primeira vez na história da humanidade, a "ReformaAgrária Virtual dos Correios". Ou seja, aquela que só ocorreu na televisãopara iludir os camponeses sem terra. Quem sabe, FHC ou o PSDB, ou opróprio ministro Raul Jungmann, um dia poderão dar notícia da mesma, parao registro da história. A midia brasileira foi tão conivente com este falso pro-grama de reforma agrária, que nunca mais, ele foi objeto de uma reportagemsequer. O que permite entender que a grande midia só defende a pro-priedade privada da terra, e mais, que uma parte dos repórteres, não tem amínima consciência sobre o que escrevem e/ou falam sobre a propriedadeprivada da terra na sociedade capitalista.

5 - Raul SEIXAS, "E anos 80" - BRILHANTES, Columbia, (Ed. Especial).

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 167ABRA - REFORMA AGRÁRIA 166

Page 85: Revista Abra 33

Quando foram realizadas as reuniões para formular o II PNRA, encontrou-se no INCRA, um cadastro de mais de 1,2 milhões de brasileiros que tinhamsido iludidos pelo PSDB do então presidente FHC. Este partido tem muitaconta para prestar à sociedade brasileira. Aliás, ele tem sido um partido do"faz de conta", "faz de conta que sabe fazer", "faz de conta que fez", "faz deconta que irá fazer", etc, etc, etc.

Mas, agora são os camponeses que novamente estão sendo iludidos. Iludidospelo MDA/INCRA. A pergunta a ser feita é: o Presidente LULA sabia/sabe que oMDA/INCRA está fazendo um "quarto da reforma agrária" prevista na Meta 1 doII PNRA? Ou seja, aquela que interessa diretamente aos movimentos socioterri-toriais que formam a Via Campesina e o Fórum da Reforma Agrária?

CARVALHO FILHO já deixou registrado para a história:

"Chegamos ao governo Lula... Entre outras afirmativas, (oMDA/INCRA) diz que o Brasil superou a meta de assentamentosprevista no II PNRA... o melhor desempenho da reforma agráriaem toda a nossa história."

Certamente, CARVALHO FILHO gostaria de ter escrito que:

Essa outra maior reforma agrária do mundo do MDA/INCRA do governoLULA também não ocorreu.

Parece até, uma doença congênita. Certos "técnicos do Cadastro do INCRA"parecem ser mágicos, pois enfeitiçam todos os dirigentes que por lá passam.Com o atual governo não está sendo diferente, ou seja, também foi iludido oupediu ajuda para, tentar iludir a todos que lutam pela reforma agrária. Aliás, oque é estranho é que o atual presidente do INCRA, ajudou durante o governoFHC, a desmistificar "os dados falsos da maior reforma agrária do mundo doPSDB". Aqui cabe também, uma digressão sobre o INCRA e seus "técnicos doCadastro". Se há uma caixa preta das terras do Brasil e da reforma agrária, elaestá no Cadastro daquela instituição. Por lá passaram alguns dos maiores"agentes da grilagem de terra do país", se é que eles ainda não estão por lá.Basta uma pergunta para incriminar uma parte dos que já passaram por estesetor do INCRA: nas mãos de quem estão a maior parte das terras públicas dis-criminadas e/ou arrecadadas da Amazônia Legal? Como os que se dizem pro-prietários conseguiram estas terras? Será que o cadastro resiste a uma audito-ria séria de quem sabe das "grilagens legalizadas" que são feitas através de cer-tos "técnicos do Cadastro" desde, pelo menos, os governos militares?

Tenho dito, ao governo atual, aos movimentos sociais e a mídia quandoprocurado, que o estado do Pará é a "bola da vez da grilagem". Nada temadiantado. Nos INCRAs do Pará, pasmem, lá tinha dois e o atual governocriou o terceiro (um que deveria ser do Pará todo com sede em Belém, outroem Marabá como "herança" do combate à guerrilha do Araguaia, onde esta-va a sede do GETAT - Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins daditadura militar, e agora, o MDA/INCRA criou a SR-30 - Superintendência deSantarém. Esta unidade está no centro de uma das possíveis maiores grilagemde terra pública do Século XXI. Esta ação veio articulada com a "benção" daministra Marina Silva do Meio Ambiente. A Ministra acreditou/acredita que osmadeireiros da Amazônia e os "agentes" do novo Sistema Florestal Brasileiro,vão cumprir os planos de manejo dos PDSs e dos PAFs6. Trata-se da predom-inância do que o excelente jornalista Washington Novaes escreveu em suacoluna quinzenal no jornal O Estado de São Paulo sob o também certeiro títu-lo "O fato consumado como regra do jogo":

Há duas semanas, quando da aprovação no Congresso do projeto de leisobre concessão de florestas públicas na Amazônia, comentou-se aqui aprevalência, na mal chamada área ambiental, da 'teoria do já que' - queren-do dizer que já que não se consegue fazer o melhor, já que não se conseguefazer prevalecer o mais racional, já que não se consegue vencer resistênciaspolítico-econômicas, já que não se consegue estabelecer as regras mais ade-quadas, capazes de realmente levar ao uso sustentável dos serviços e recur-sos naturais, aceita-se, como mal menor, uma legislação questionável pelaciência e/ou pelo bom senso, que se dobra diante de fatos ou situações queconsidera consumados, irreversíveis.

As últimas semanas foram fartas em episódios dessa natureza. Pode-secomeçar pela resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)que alterou as regras para ocupação e utilização de Áreas de PreservaçãoPermanente (APPs), como beiras de rios, nascentes, veredas, reservatórios,áreas indígenas, manguezais, dunas e topos de morros. Embora as novasregras só prevaleçam para ocupações consumadas até julho de 2001, 'sãoum retrocesso', como definiu o procurador Antônio Herman Benjamin, comlonga e competente experiência na área ... Mas os riscos não terminam aí."7

No Pará ( e na Amazônia toda), em qualquer dos três INCRAs a corrupçãoe a grilagem começa em certos "funcionários dos Protocolos", passa, óbviopelo Cadastro, tudo via madeireiros e grileiros e seus agentes internos (doINCRA), e termina na mesa dos superintendentes e/ou Brasilia.6 - PDS - Projeto de desenvolvimento sustentável e PAF - Projeto Agro-florestal.7 - NOVAES, W "O fato consumado como regra do jogo" in O Estado de São Paulo, 03/03/2006, p. A2.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 169ABRA - REFORMA AGRÁRIA 168

Page 86: Revista Abra 33

A SR-Santarém, desde o início de 2006, vem fazendo reuniões com asmadeireiras para viabilizar os PDS que vai implantar em sua jurisdição. Ou,como um alto funcionário deste órgão diz nas reuniões com os madeireiros:"Vocês dão a terra", uma ironia, pois a terra é pública, portanto do INCRA, eos assentados "permitirão que a madeira seja explorada através de planos demanejo". Quase cem por cento das terras desta jurisdição são terras doINCRA ou devolutas, o que pela Constituição de 1988, deveriam ser desti-nadas para a reforma agrária. Entretanto, estão sendo "griladas" por alguns"funcionários do INCRA" para aos proprietários de terra (do Mato Grosso, doParaná, etc.) que queiram "comprá-las". A mídia tem denunciado esta novaforma de grilagem nos municípios da margem esquerda do Rio Amazonas8.(FIGURA 01)

Foi em decorrência em parte de tudo isso que os dados relativos aos assen-tamentos de reforma agrária do INCRA continuaram no atual governo, "con-taminados" por informações que não se referem a assentamentos de reformaagrária propriamente dita. Esta "contaminação" dos dados interessa a "certosfuncionários" do INCRA que são corruptos, pois, encobrem suas ações frentea seus dirigentes. Mas, parece que está interessando também à concepção dereforma agrária do MDA/INCRA. Parece que todos que têm que fazer a refor-ma agrária no governo LULA, esqueceram-se do que é reforma agrária. Porisso, não é demais lembrar o texto original do Estatuto da Terra de 1964, afi-nal, o primeiro dever de qualquer funcionário público é o cumprimento doordenamento legal:

"Artigo 1º ...§ 1° Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas quevisem a promover melhor distribuição da terra, mediante modi-ficações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aosprincípios de justiça social e ao aumento de produtividade."

Em publicação recente escrevi sobre esta questão, trazendo à luz posiçõesde eminentes estudiosos da reforma agrária:

"A reforma agrária constitui-se, portanto, em um conjunto deações governamentais realizadas pelos países capitalistas visan-do modificar a estrutura fundiária de uma região ou de um paístodo. Ela é feita através de mudanças na distribuição da pro-priedade e ou posse da terra e da renda com vista a assegurarmelhorias nos ganhos sociais, políticos, culturais, técnicos,econômicos (crescimento da produção agrícola) e de reorde-nação do território. Este conjunto de atos de governo deriva deações coordenadas, resultantes de um programa mais oumenos elaborado e que geralmente, exprime um conjunto dedecisões governamentais ou a doutrina de um texto legal...

Do ponto de vista etimológico, a palavra reforma deriva do pre-fixo re e da palavra formare. A palavra formare é a forma deexistência de uma coisa ou de um sentido. Por sua vez, o pre-fixo re contém o significado de mudança, de renovação. Logo,a palavra reforma contém o significado de mudança de umaestrutura pré-existente, em um outro sentido determinado. A

Figura 01

Fonte: Folha de São Paulo, 07/03/2005.8 - Folha de São Paulo, 07/03/2005.9 - Artigo 1º da Lei nº 4.504 de 30/11/1964.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 171ABRA - REFORMA AGRÁRIA 170

Page 87: Revista Abra 33

reforma agrária implica, portanto, na idéia de renovação daestrutura fundiária vigente. Por conseguinte, as leis de reformaagrária constituem-se em instrumentos opostos à estruturaagrária existente, a qual ela objetiva modificar.

Nas sociedades capitalistas a reforma agrária tem sido feita como objetivo de mudar a propriedade privada da terra concentra-da nas mãos dos latifundiários, dividindo-a e a distribuindo paraos camponeses e demais trabalhadores.

Segundo a literatura jurídica citada pelo professor Pinto FER-REIRA 10, reforma agrária é "a revisão, por diversos processosde execução, das relações jurídicas e econômicas dos que de-têm e trabalham a propriedade rural, com o objetivo de modi-ficar determinada situação atual do domínio e posse da terra ea distribuição da renda agrícola" como afirma Nestor DUARTE.Ou então, reforma agrária "...segundo o moderno conceito, éuma reestruturação da sociedade agrária tendo como finalida-de avolumar a quota-parte da renda social agrícola que vai fi-car em poder dos setores até então menos favorecidos dessasociedade; pequenos proprietários, rendeiros, parceiros, traba-lhadores, assalariados, etc." como escreveu Henrique de BAR-ROS. Já segundo Coutinho CAVALCANTI, "reforma agrária é arevisão e o reajustamento das normas jurídico-sociais e econô-mico-financeiras que regem a estrutura agrária do País, visan-do à valorização do trabalhador do campo e ao incremento daprodução, mediante a distribuição, utilização e exploração so-ciais e racionais da propriedade agrícola, à melhor organiza-ção e extensão do crédito agrícola e ao melhoramento dascondições de vida da população rural."

Rafael Augusto de MENDONÇA LIMA11 defende a idéia de que foi o pro-fessor Antonino C. VIVANCO quem melhor conceituou a reforma agrária,afirmando que ela "consiste na modificação da estrutura agrária de uma re-gião ou de um país determinado, mediante a execução de mudanças funda-mentais nas instituições jurídicas agrárias, no regime de propriedade da terrae na divisão da mesma. Além de tudo isso, pressupõe a construção de obrase prestação de serviços de diferentes naturezas tendentes a incrementar a pro-

dução e melhorar a forma de distribuição dos benefícios obtidos dela, a fimde conseguir melhores condições de vida e de trabalho, em benefício da co-munidade rural" e acrescenta que "no conceito enunciado é necessário distin-guir vários aspectos importantes: (1)- político: que consiste na participação dogoverno na ação que visa planejar e realizar a reforma agrária; (2)- jurídico:que está arraigado única e exclusivamente na reforma institucional e nos con-teúdos dos atos de governo de origem legislativa ou de regulamentação ne-cessárias para instrumentá-la; (3)- econômico: que compreende o conjuntode medidas que são adotadas para melhorar os índices de produtividade, pa-ra obter uma melhor distribuição da riqueza, para promover a conservaçãodas fontes naturais da produção, para dividir os latifúndios, para concentrare reagrupar os minifúndios, etc.; (4)- técnico: que se refere especialmente àsmodificações nas formas de trabalho e a seus aperfeiçoamentos, à mecaniza-ção agrícola, ao uso de fertilizantes, ao sistema de transporte, etc.; (5)- social:que abarca um cem números de mudanças afim de lograr um estado sani-tário melhor da população, melhorar o nível alimentar, evitar as enfermida-des, repartir ensinamentos adequados, capacitar os trabalhadores, induzi-losa adaptar-se às mudanças necessárias para viver e trabalhar em condiçõesmais favoráveis."

Assim, a reforma agrária é compreendida como um amplo conjunto demudanças profundas em todos os aspectos da estrutura agrária de umaregião ou de um país, visando alcançar melhorias nas condições sociais,econômicas e políticas das comunidades rurais. Por isso, Antonio GARCIA dis-cutindo o conceito de reforma agrária, concluiu que ele deve ser "um proces-so massivo, rápido e drástico de redistribuição dos direitos sobre as terras esobre as águas", "dialeticamente, é uma operação conflitiva de mudanças naqual se modificam, com freqüência, os núcleos dinâmicos do processo (pas-sando o centro político de gravidade de uma força à outra) e na qual, porsuposto, removem-se e se substituem as ideologias". Sinteticamente e deforma objetiva, também Raymundo LARANJEIRA12 escreveu que a "reformaagrária é o processo pelo qual o Estado modifica os direitos sobre a pro-priedade e posse dos bens agrícolas, a partir da transformação fundiária e dareformulação das medidas de assistência em todo o país, com vista a obtermaior oferta de gêneros e a eliminar as desigualdades sociais no campo."

As condições fundamentais para a realização da reforma agrária, basean-do-se em parte na concepção de Pompeu ACCIOLY BORGES13, são:

10 - FEREIRA, Pinto "A reforma agrária", Ed. Livraria Freitas Bastos, São Paulo, 1970.11 - MENDONÇA LIMA, Rafael Augusto de "Direito agrário, reforma agrária e colonização", Livraria FranciscoAlves Editora, Rio de Janeiro, 1975

12 - LARANJEIRA, Raymundo "Colonização e reforma agrária no Brasil", Civilização Brasileira, Rio deJaneiro, 1983.13 - ACCIOLY BORGES, Pompeu "Os donos da terra e a luta pela Reforma Agrária" - CODECRI - IBASE,Rio de Janeiro, 1984.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 173ABRA - REFORMA AGRÁRIA 172

Page 88: Revista Abra 33

(1)- a reforma agrária deve ser um processo amplo, geral emacivo de redistribuição dos direitos sobre as terras e as águas;deve ser amplo para poder atingir com suas metas em um curtoprazo (no máximo dez anos) toda uma região ou todo o país;precisa também ser geral para poder eliminar a estrutura lati-fundiária e desenvolver em seu lugar um plano de democratiza-ção de acesso a terra e a água, tendo por base a produçãocamponesa; e ser macivo para poder beneficiar a totalidade doscamponeses sem terra, dos que possuem pouca terra e dosdemais trabalhadores que desejarem ter acesso a terra;

(2) a reforma agrária deve ser parte de um programa de desen-volvimento agrário e de um plano geral de desenvolvimentoeconômico e social nos quais, tenha previamente asseguradasua cota-parte no total dos. investimentos programados;

(3) a reforma agrária deve ser planejada, coordenada e execu-tada em todos os seus aspectos por um órgão ou entidadepública com poderes, prestígio político e dotada recursos finan-ceiros e humanos suficientes, com uma estratégia de execuçãoparticipativa e descentralizada;

(4) a reforma agrária deve mobilizar todas as forças políticas exis-tentes - movimentos sociais, centrais sindicais, sindicatos de traba-lhadores, instituições, entidades e organizações populares - que re-presentam a massa dos camponeses e demais trabalhadores inte-ressados, para participarem direta e intensamente da elaboração,implantação e gestão dos seus planos, programas e projetos;

(5) a reforma agrária deve ser executada em cada área prioritá-ria (território reformado) tendo como princípio fundamental osfatores sociais, políticos, econômicos, técnicos e institucionaisespecíficos; garantindo-se a ação integrada de todos os órgãose entidades públicas na área reformada;

(6) a reforma agrária deve incidir preferencialmente sobre asgrandes propriedades que não cumprem a função social daterra e nas quais existam condições favoráveis de exploração;

(7) a reforma agrária deve limitar ao mínimo o pagamento dasindenizações pela desapropriação da terra, através de uma no-

va conceituação do que seja o 'justo valor'; deve fixar de formaprogressiva, prazos mais longos para o resgate dos títulos dadívida agrária, quanto mais baixos os índices de produtividade;e suprimir a cláusula de garantia contra eventual desvalorizaçãoda moeda;

(8) a reforma agrária deve criar uma nova estrutura da pro-priedade fundiária, apoiada exclusivamente (I) na pequena pro-priedade familiar camponesa integrada ou não em cooperativaou outra forma associativa de produção agrícola; e (II) emunidades de produção de camponeses baseadas no direito realde uso da terra de propriedade da União; face à existência daempresa agrícola capitalista (pequena, média ou grande) assimqualificada segundo o grau de utilização dos recursos da terra,o uso da tecnologia moderna, o capital investido por unidadede área, e do emprego de mão-de-obra assalariada;

(9) a reforma agrária deve modificar as relações de trabalhoexistentes no campo, de sorte à assegurar (I) mais justa dis-tribuição de renda agrícola; (II) cumprimento integral da legis-lação pertinente; e (III) defesa dos direitos e garantias do traba-lhador assalariado;

(10) a reforma agrária deve adotar um sistema econômico deinvestimento que priorize a utilização dos camponeses e demaistrabalhadores beneficiários da mesma;

(11) a reforma agrária deve conservar e ampliar as áreas de pro-teção ambiental, bem como desenvolver um agricultura saudávelque não comprometa o uso sustentável dos recursos naturais.

Para a implantação da reforma agrária há a necessidade de duas políticasfundamentais: a política fundiária e a política agrícola.

A política fundiária refere-se ao conjunto de princípios que as diferentes so-ciedades definiram com aceitável e ou justo para o processo de apropriaçãoprivada da terra ... Na política fundiária, está incluído também, o conjunto delegislações que estipulam os tributos incidentes sobre a propriedade privadada terra; as legislações especiais que regulam seus usos e jurisdições de exer-cício de poder; e programas de financiamentos para a aquisição da terra.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 175ABRA - REFORMA AGRÁRIA 174

Page 89: Revista Abra 33

A política agrícola por sua vez, refere-se ao conjunto de ações de governoque visam implantar nos assentamentos de reforma agrária a assistênciasocial, técnica, de fomento e de estímulo à produção, comercialização, bene-ficiamento e industrialização dos produtos agropecuários. Estão incluidos nes-tas ações: educação e saúde públicas, assistência técnica, financeira, credití-cia e de seguros, programas de garantia de preços mínimos e demais subsí-dios, eletrificação rural e outras obras de infra-estrutura, contrução de mora-dias e demais instalações necessárias, etc."14

Dessa forma, é preciso discernir os atos governamentais interessando oconjunto das ações relativas à reforma agrária. Para contribuir ao debatesugiro a seguinte divisão dos atos praticados pelo INCRA e que redundam emestatísticas da reforma agrária, em quatro classificações:

1. Reordenação Fundiária: refere-se aos casos de substituiçãoe/ou reconhecimento de famílias presentes nos assentamentos jáexistentes, e/ou para garantir seus acessos às políticas públicas;

2. Regularização Fundiária: refere-se ao reconhecimento dodireito das famílias (populações tradicionais, extrativistas, ribeir-inhos, pescadores, posseiros, etc.) já existentes nas áreas objetoda ação (flonas, resex, agroextrativistas, desenvolvimento social,fundo de pastos, etc.);

3. Reassentamentos Fundiários de famílias Atingidas porBarragens: referente aos proprietários ou com direitos adquiri-dos em decorrência de grandes obras de barragens e linhas detransmissão de energia realizadas pelo Estado e/ou empresasconcessionárias e/ou privadas;

4. Reforma Agrária: refere-se somente aos assentamentos decor-rentes de ações desapropriatórias de grandes propriedades impro-dutivas, compra de terra e retomada de terras públicas griladas.

É óbvio que o ideal seria depurar ainda mais a última categoria, retirandoos assentamentos em terras públicas griladas ou não na Amazônia Legal, eque fossem ocupadas por famílias que nunca as ocuparam anteriormente,passando-os para a classe da colonização. O INCRA possui todas ascondições para distinguir como assentamentos de reforma agrária somente

aqueles que foram objeto de atos desapropriatórios ou compra em regiãoonde estes atos desapropriatórios não podem ser realizados.

Outro ponto que precisa ser reforçado é aquele referente aos termos do IIPNRA. No documento oficial presente no site15 do Ministério do Desenvolvi-mento Agrário à página 38 está a relação das onze METAS do II PNRA -2003/2006:

"META 1 - 400.000 novas famílias assentadas;

META 2 - 500.000 famílias com posses regularizadas;

META 3 - 150.000 famílias beneficiadas pelo Crédito Fundiário;

META 4 - Recuperar a capacidade produtiva e a viabilidadeeconômica dos atuais assentamentos;

META 5 - Criar 2.075.000 novos postos permanentes de traba-lho no setor reformado;

META 6 - Implementar cadastramento georreferenciado do ter-ritório nacional e regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais;

META 7 - Reconhecer, demarcar e titular áreas de comunidadesquilombolas;

META 8 - Garantir o reassentamento dos ocupantes não índiosde áreas indígenas;

META 9 - Promover a igualdade de gênero na Reforma Agrária;

META 10 - Garantir assistência técnica e extensão rural, capaci-tação, crédito e políticas de comercialização a todas as famíliasdas áreas reformadas;

META 11 - Universalizar o direito à educação, à cultura e àseguridade social nas áreas reformadas."

Pode-se afirmar então, que ocorreu uma clara e intencional confusão nadivulgação dos dados. Se o II PNRA que é o documento oficial da reforma

14 - OLIVEIRA, A.U. "Reforma Agrária" in Dicionário da Terra, org. Márcia Mota, Civilização Brasileira, Riode Janeiro, p. 385/391. 15 - www.mda.gov.br/aquivos/PNRA_2004.pdf, consultado em 02/03/2006 às 16:24hs.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 177ABRA - REFORMA AGRÁRIA 176

Page 90: Revista Abra 33

agrária brasileira separou as metas, por que o MDA/INCRA as juntou nadivulgação das cifras? Porque a atitude de somar tudo como se fossem dadosdos novos assentamentos da reforma agrária da Meta 1? É possível pensarneste momento, apenas uma explicação: mais um ano de fracasso no cumpri-mento da Meta 1 do II PNRA, de assentar em 2005, um total de 115 milfamílias. Como o MDA/INCRA não cumpriu novamente a meta do ano pas-sado, como já não havia cumprido as metas de 2003 e 2004, o caminho foiinstaurar a confusão "liqüefazendo" também, os dados de 2005. E mais, oque é preocupante do ponto de vista político, reagindo energicamente aoMST quando este movimento sócioterritorial acertadamente criticara os dadosde 2005 divulgados, através da seguinte nota:

Brasília, 22 de dezembro de 2005

NOTA À IMPRENSA E À SOCIEDADE

Em relação aos dados anunciados nesta quinta-feira (22) pelo Ministério doDesenvolvimento Agrário, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terrasente-se na obrigação de esclarecer a sociedade que:

1. Assim como a política econômica do Governo Lula, a política de ReformaAgrária nada tem de original e repete os mesmos passos do Governo FHC: infla-ciona os verdadeiros números de assentamentos utilizando a prática de contabilizara reposição de lotes em assentamentos antigos como novos assentamentos; emdeixar famílias vivendo em assentamentos precários no norte do país em terraspúblicas, que beneficiam principalmente grileiros. No intuito de provar que estariafazendo a reforma agrária. Reforma agrária é desconcentrar a propriedade da terrae resolver os problemas dos pobres do campo.

2. A falta de originalidade repete-se na submissão às políticas do Banco Mundialpara área agrícola, mantendo a fracassada política do Banco da Terra, rebatizado deCrédito Fundiário, uma premiação aos latifundiários improdutivos que têm suas ter-ras compradas à vista, enquanto milhares de agricultores iludidos endividam-separa pagá-las. Hoje, mais de 40 mil famílias encontram-se em situação de inadim-plência em Estados como Ceará, Pernambuco e Bahia, em projetos antigos com omesmo receituário.

3. Lamentavelmente, o que o Ministro comemora hoje é uma política que nãodesconcentra a propriedade da terra e não distribui renda, premiando o latifúndio eque assemelha-se mais aos projetos de colonização da Amazônia do Regime

Militar, do que qualquer coisa que pudesse ser chamada de Reforma Agrária.4. Por outro lado, esperávamos que o Governo explicasse porque quase 200 mil

famílias, de pobres do campo, ainda vivem nos acampamentos em beiras de estra-da e em latifúndios improdutivos. E que esperam as meras estatísticas organizadaspor eles. Enquanto isso, vivem sob condições precárias debaixo de barracos de lonae sem qualquer assistência para produção.

5. Finalmente, achamos que o Ministro Miguel Rossetto deva acatar a sugestão queo Presidente do INCRA, Rolf Hackbart, defendia quando era assessor da Câmara dosDeputados: que seja formada uma comissão de auditoria dos assentamentos, forma-da pela CNBB, OAB, jornalistas e servidores do Incra (CNASI) para ir visitar in locoesses assentamentos, e atestar as condições em que estas famílias se encontram.

COORDENAÇÃO NACIONAL DO MOVIMENTO DOS TRABALHADO-RES RURAIS SEM TERRA16

Além da nota oficial do MST, seu site divulgou também comentários sobreo fato e a nota:

"MST contesta números da Reforma Agrária do governo

22/12/2005

A Coordenação Nacional do MST contesta os dados da Reforma Agrária apre-sentados pelo governo Lula e afirma que o Ministério do Desenvolvimento Agrário(MDA) repete métodos do governo Fernando Henrique Cardoso [1995-2002].

O MDA anuncia nesta quinta-feira que foram assentadas mais de 115 mil famíliasem 2005, número que ultrapassa a meta anual. O Plano Nacional de Reforma Agrá-ria do governo Lula prevê o assentamento de 400 mil famílias até o final de 2006.

De acordo com nota do MST ... o governo Lula inclui nos números da ReformaAgrária famílias que receberam terras de assentamentos antigos. Na maioria doscasos, as terras foram reutilizadas depois da desistência de outros trabalhadores porcausa da falta de condições de vida, produção e terras agricultáveis.

Foram aumentados também os dados de assentamentos na região amazônica, quetêm estrutura precária e estão em terras públicas, preservando os grileiros da região.

O MST pede formação de uma comissão, com a participação de movimentossociais, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB), dos servidores do Instituto Nacional de Colonizaçãoe Reforma Agrária (Incra) e jornalistas para visitar os assentamentos anunciados efazer uma auditoria nos dados apresentados.

O governo sustenta que foram assentadas 36 mil famílias, em 2003, e 81 mil, em2004. Estudo do pesquisador e professor titular da Universidade de São Paulo(USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, calcula que foram assentadas 9 milfamílias, em 2003, e 35 mil, em 2004."17

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST

SCS Qd. 06 Ed. Carioca, salas 708/709 - 70.032-000 – Brasília/DF FONE: (61) 3322 - 5035 FAX: (61) 225 – 1026

Escritório Nacional em Brasília - DF

Reforma Agrária: Por um Brasil sem Latifúndio !

16 - http://www.mst.org.br/informativos/minforma/ultimas1441, acessado no dia 02/03/2006 às 17:50hs.17 - Idem

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 179ABRA - REFORMA AGRÁRIA 178

Page 91: Revista Abra 33

As críticas acertadas desencadearam uma nota áspera do MDA/INCRA à críti-ca, revelando, mesmo sem uma análise criteriosa e profunda dos dados, o fra-casso governamental no cumprimento das metas do II PNRA. Parece queprevaleceu o ditado popular de que a "melhor defesa é o ataque". Foram osseguintes os termos da crítica do MDA/INCRA como resposta à critica do MST:

"NOTA OFICIAL MDA/INCRA

(22/12/2005 - 18:12)

1. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e o Presidente doINCRA, Rolf Hackbart, anunciaram hoje que o Brasil superou a meta de assenta-mentos prevista no Segundo Plano Nacional de Reforma Agrária. Trata-se do me-lhor desempenho da Reforma Agrária em toda a nossa história. É, acima de tudo,uma vitória do país, que começa a superar uma longa história de concentraçãofundiária e pobreza no campo.

2. Em Nota à Imprensa e à Sociedade, a Coordenação Nacional do Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra tenta confundir a opinião pública negando asinformações prestadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA.Alheio ao que realmente está acontecendo no campo brasileiro, o MST discorda dosnúmeros sem fundamentar sua discordância, faz uma crítica leviana sobre oscritérios de contabilização de assentados e procura estabelecer com o Governo umdebate sem nenhuma seriedade, baseado em slogans vazios de conteúdo, infor-mações e argumentos falsificados.

3. Como bem sabe o MST, a crítica que era feita ao processo de contabilização dogoverno anterior era a de que os números anunciados não se referiam as famílias efe-tivamente assentadas e sim a uma pretensa "capacidade" das áreas destinadas à refor-ma agrária. Este procedimento foi afastado com a revogação da portaria 80 do Incra,no primeiro ano deste governo. Desde então, os números contabilizados referem-sea famílias na terra, em projeto de assentamento promulgado, em área de propriedadedefinitiva do Incra, com todos os direitos de assentado garantidos. O que na lin-guagem técnica do órgão chama-se "RB" homologada (relação de beneficiários).

4. Este é um tipo de debate que não ajuda a Reforma Agrária. De fato, em 2005,a meta de 115 mil famílias assentadas prevista no PNRA foi superada. São mais de115 mil mulheres e homens, com nome, sobrenome e CPF, que passaram a ter seulote de terra para viver e produzir com dignidade. Gente real que não possuía terrae agora possui; que não produzia e agora produz. Se o MST não vê, ou não sabe, éporque está longe destas terras e desta gente.

5. O MST critica genericamente o assentamento em terras públicas na RegiãoNorte do país. Estamos assentando sim, em terras públicas no norte do país. Epodemos fazer isto porque estamos combatendo a grilagem nestas terras.Recuperando terras que estavam ilegalmente nas mãos de grileiros e destinando-aspara a Reforma Agrária. Sim, fizemos projetos de assentamento, no norte do país,no Pará, na terra pública que estava grilada e pela qual deu a vida a Irmã Dorothy.É uma pena que o MST não compreenda a importância desta luta e deste trabalho.

6. O MST afirma que a Reforma Agrária que estamos fazendo não desconcentraa propriedade da terra. Não fundamenta esta afirmação. Não pode fazê-lo. Vamosaos fatos, eles falam por si: em três anos de governo, 16,3 milhões de hectares de

terras foram destinadas para a Reforma Agrária e 240 mil agricultoras e agricultoressem terra foram assentados.

7. O MST acusa o Governo de submissão às políticas do Banco Mundial pormanter um programa de crédito fundiário. Neste caso, trata-se de desinformação oumá fé. O Programa de Crédito Fundiário é um programa distinto do programa deReforma Agrária, destinado a um outro público, que tem condições de financiar acompra de terra. São agricultores familiares, minifundiários, que querem ter umpedaço a mais de terra e pagar por ela, ou jovens que não pretendem abandonar ocampo e necessitam de terra para plantar. Este programa é uma reivindicação demovimentos como a Contag, a Fetraf, e diversos outros. Suas terras, por Lei, nãopodem ser objeto da reforma agrária uma vez que são inferiores a 15 módulos fis-cais e, por isto mesmo, não passíveis de desapropriação.

7. O Brasil persiste como um dos países com maior concentração fundiária domundo. A Reforma Agrária é uma tarefa histórica, de caráter civilizatório, que estepaís não foi capaz de resolver a contento. Esta situação, no entanto, está mudando.A Reforma Agrária começou a caminhar a passos largos. Ainda há muito a ser feito.Muito trabalho pela frente. Um trabalho a ser realizado em conjunto pelo Governoe pela sociedade. Um trabalho que não pode ser interrompido nem dificultado pelodebate maniqueísta, pobre e marcado por interesses particulares ou de grupos."18

Em ato continuo, o INCRA divulgou em seu site a listagem por superin-tendência, com nome dos municípios, nomes dos projetos e ano de implan-tação, nomes dos beneficiários das RBs (Relação de Beneficiários) homolo-gadas. Esta relação estava no site do INCRA no dia 23/01/2006 às 23:25hs,quando a baixei em meu computador. Desta primeira listagem partem agoraminhas críticas aos dados do MDA/INCRA. Entretanto, para meu espanto ecertamente de muitas outras pessoas que acessam as páginas do governo naInternet, quando, no Instituto Iandé, baixei novamente o citado arquivo queestava disponível no site do INCRA, no dia 13/02/2006 às 13:27hs, fui aler-tado por Camila Salles de Faria e Maira Bueno Pinheiros, que a nova listagembaixada não continha mais os anos dos assentamentos. Portanto, MDA/INCRAagiu efetivamente, de forma intencional em tentar esconder qualquer possibili-dade de descoberta das irregularidades com os dados. Por sorte, tenho grava-do como prova com o registro da Internet as duas tabelas. Atualmente, já foiretirada do site do INCRA, também a segunda versão da listagem.

A pergunta que pode ser feita neste momento é aquela simples: porque esteato? É óbvio, foi porque que é, através dos anos dos assentamentos, que sepode descobrir que os assentamentos não eram de 2005. Parece que nestecaso também, prevaleceu outro ditado popular: "a mentira tem perna curta".

Assim, a alegação do MDA/INCRA no item 3 da crítica ao MST, de que onúmero de assentados deriva das RBs homologadas, igualmente continuam

18 - http://www.mda.gov.br/index.php?ctuid=8071&sccid=134, acessado dia 02/03/2006 às 17:33hs.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 181ABRA - REFORMA AGRÁRIA 180

Page 92: Revista Abra 33

escondendo outra verdade. Quando o INCRA faz o reconhecimento de as-sentamento antigo, ou de posses, ou de reassentamento de atingidos por bar-ragens, ou de famílias que "compram" ou não vagas de famílias já assen-tadas, "tecnicamente para o Cadastro do INCRA" elas entram através das RBshomologadas. Dessa forma, a rotina técnica contém um equívoco conceitualpropositado que visa reunir em uma mesma classificação, assentamentos queque são conceitualmente diferenciados.

Não há nada de errado em o MDA/INCRA afirmar que realizou a regulari-zação fundiária, ou o reassentamento, ou mesmo, a reordenação fundiáriade um determinado número de famílias, pois estas ações fazem parte das ru-bricas das diversas metas do II PNRA. O problema é tentar dizer que o MDA/INCRA cumpriu a meta de 2005, de assentar 115.000 famílias em assenta-mentos da reforma agrária, ou seja, teria cumprido a Meta 1 do II PNRA. Istoefetivamente não ocorreu em 2005 e muito menos em 2003 e 2004. O queocorreu provavelmente, foi que "compraram", conscientes ou não, a "idéia"que um "certo ex-funcionário" do INCRA (que trabalhou durante o governoFHC) vendia por ocasião da preparação do II PNRA: considerar regulariza-ção fundiária como reforma agrária.

Outro ponto equivocado da crítica do MDA/INCRA refere-se ao fato de que"não há fundamento" nas mesmas. A crítica do MST acertou em cheio no alvoda "manobra" dos dados feito pelo governo, pois, referia-se à Meta 1 do IIPNRA. O governo não fez os 115.000 assentamentos porque no mínimo, setivesse feito o número de acampados no país, tinha em tese, diminuído brus-camente, fato que não ocorreu, mesmo porque, não há notícias nos relatóriosda Ouvidoria Agrária do MDA, ou mesmo nos levantamentos da CPT, deexistência de um número massivo de famílias em novos acampamentos. Feitosos "expurgos" e a reclassificação possível com as informações divulgadas,como se verá mais adiante neste trabalho, o MDA/INCRA assentou em pro-jetos de reforma Agrária da Meta 1 do II PNRA no ano de 2005, pouco maisde 45 mil famílias incluídos neste total os assentamentos em terras desapro-priadas, compradas e em terras públicas. No caso dos dados disponíveis, nãofoi possível separar os assentamentos nas terras públicas particularmente naAmazônia Legal, pois permitiria discutir a possibilidade de classificá-los comocolonização. Entretanto, dados divulgados extra oficialmente na Internet, per-mitem dizer que 54,3% (69.182 famílias) das RBs homologadas (127.506 nototal), foram em terras públicas. Destas RBs em terras públicas, conforme severá pelas tabelas mais adiante no trabalho, um total de 58.886 famíliasestão na Amazônia Legal19, ou se preferirem 45.504 famílias estão na RegiãoNorte do país.

Intencionalmente do ponto de vista político a crítica do MDA/INCRA tentouindispor o MST (denominado de "grupo") contra os movimentos pela terra dopólo sindical e dos posseiros em geral. A acusação principal é aquela de que oMST está "alheio ao que realmente está acontecendo no campo brasileiro, oMST discorda dos números sem fundamentar...". O MDA/INCRA sabe muitobem que se há movimento sócioterritorial que tem consciência plena do queestá acontecendo no campo brasileiro é o MST. Portanto, fomentar a divisão doscamponeses e trabalhadores interessados na reforma agrária, é no mínimo ter-giversação do mundo da política onde todos apreenderam que "a melhor formade combater o opositor é tentar dividi-lo, atacando-o e desqualificando-o", poisassim, ele tem que ficar se defendendo. Como se vê, o governo FHC fez esco-la até para muitos daqueles que se dizem petistas no governo LULA.

Quanto à alusão às ações do governo na Amazônia, parece que oMDA/INCRA continua se portando como "ouvido de mercador". Participeidurante o ano de 2004/5 de uma equipe de pesquisadores que fizeram umestudo a pedido do CNPQ, sobre o eixo da BR-163 - rodovia Cuiabá-Santarém. O resultado sobre a "grilagem legalizada" de terras está publicadono livro "Amazônia revelada - Os descaminhos ao longo da BR-163"20. Nestelivro há muitas provas de que as ações que MDA/INCRA e MMA fazem naAmazônia, e particularmente no Pará. Está muito longe do que os dirigentesde Brasília pensam, o que uma parte dos funcionários públicos destes órgãosestão fazendo de fato na região. Por isso, insisto na tecla de que o estado doPará é a "bola da vez" da grilagem de terras na Amazônia. Aliás, pude pre-senciar e fotografar a entrada de uma vasta área cercada na BR-163, quediziam pertencer a um grupo do qual participaria também, um apresentadorde programa de TV que tem negócios na área rural. E mais, na placa naentrada da área grilada havia a indicação de que lá, no interior da florestaAmazônica, felizmente do ponto de vista ambiental bastante despovoada, iria,pasmem, ser construído um frigorífico avícola.(FOTO 01)

Sobre as ações do MDA/INCRA e do MMA no eixo da Cuibá-Santarém,novos estudos que estão sendo realizados revelarão ainda mais os casos degrilagem de terras e apropriação indébita de madeira nas terras públicas daUnião na região. O mapa do INCRA a seguir (MAPA 01) é testemunha de quetoda a terra na faixa da BR-163 pertence à União, e não pode ser destinadoa outro fim que não seja a reforma agrária.

19 - Nos dados da Amazônia Legal estão incluídos os dados da Região Norte mais os estados de MatoGrosso e Maranhão, embora uma pequena parte deste último estado não faça parte da Amazônia Legal.Este procedimento foi adotado porque a divulgação dos dados não foi feita por município o que permitiriaa agregação rigorosa da informação.20 - TORRES, M. (Org.) "Amazônia revelada - Os descaminhos ao longo da BR-163", Brasília, CNPQ, 2005, (496p.).

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 183ABRA - REFORMA AGRÁRIA 182

Page 93: Revista Abra 33

Aliás, ninguém ainda se esqueceu o episódio da Operação Faroeste daPolicia Federal que em fins de 2004, prendeu nove funcionários do INCRA(entre eles um superintendente) e cujo final ainda continua desconhecido.Portanto, está longe o momento a partir do qual o governo tenha controle

sobre seus próprios funcionários corruptos envolvidos com a grilagem legali-zada21. Basta uma vistoria no protocolo do Incra do Pará para ver que já háinteressados particulares distribuídos devidamente pelo próprio INCRA emglebas, com pedido protocolado para se apropriarem de todas estas terras.O mapa a seguir (MAPA 02) é testemunha destes fatos:

Dessa forma, pode-se verificar que as questões que envolvem o Pará,podem estar encobrindo uma das maiores grilagens legalizadas de terraspúblicas da história do Brasil, por isso, as notas oficiais precisam ser maisrealistas.

Voltando à questão sobre os dados relativos ao número de assentamentosem 2005, é necessário também, que o MDA/INCRA divulguem os dados dasRBs Homologadas segundo a forma de obtenção das terras separando regu-larização, reconhecimento, aquisição, desapropriação etc. e aí todos pode-rão ver se é possível chegar ao número divulgado como se fosse tudo da Me-ta 1 do II PNRA? Para qualquer pessoa de bom senso, é inconcebível admitirque alguém que ocupa cargo público possa não estar dizendo a verdade.

Por isso, as discussões a seguir, sobre os dados dos três anos do governoLULA pretendem revelar os abusos cometidos pelo MDA/INCRA na divulgaçãodos números da reforma agrária e o é que lastimável para todos petistas, con-

Foto 1

Foto OLIVEIRA, A.U. Rodovia Cuiabá-Santarém - BR-163

21 - http://www.dpf.gov.br/DCS/noticias/2004/dezembro/07122004_faroeste.htm

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 185ABRA - REFORMA AGRÁRIA 184

Page 94: Revista Abra 33

cluir que o MDA/INCRA não está cumprindo as metas do II PNRA, portantonão está fazendo nem a reforma agrária anunciada pelo Presidente LULA emnovembro de 2003. Trata-se, pois da vitória da não reforma agrária defendi-da inclusive, por muitos membros do próprio governo LULA. Aliás, vários deles,até escreveram sobre a não necessidade atual da reforma agrária.

Penso que chegou a hora de abrir a crítica profunda a aqueles que em nomedo governo LULA, não estão fazendo a reforma agrária. Por isso, é preciso "audi-tar os dados do Cadastro do INCRA", pois lá está a fonte das manobras com ascifras estatísticas. Torna-se assim, urgente que o MDA/INCRA reveja os termos danota oficial e reconheça publicamente, a realidade dos números.

Talvez, a melhor resposta a ser dada ao MDA/INCRA neste episódio, é asempre necessária crítica profunda aos dados disponíveis referentes a 2003,2004 e 2005 sobre a não reforma agrária do MDA/INCRA.

2. Os dados de 2003,a não reforma agráriado primeiro ano do II PNRA

O debate em torno do número de famílias assentadas nos três anos do go-verno foi de certo modo dificultado pelo próprio MDA/INCRA, que deixou dedivulgar os dados precisos sobre o que é efetivamente Reforma Agrária, ouseja, ações desapropriatórias baseadas na legislação em vigor, de terrasimprodutivas, portanto, aquelas que não cumprem a função social. Oumesmo, a aquisição de terra em regiões onde não havia disponibilidade deterras improdutivas, devolutas ou públicas. Somente os dados referentes a2003 foram disponibilizados publicamente, com alguns detalhes efetivos dasações segundos suas rubricas originais em tabelas e gráficos em20/01/2004. (TABELAS 01, 02, 03 E 04 E GRÁFICOS 01 E 02)

ASSENTAMENTOS / RECONHECIMENTO - 2003 SITUAÇÃO Realizado (%)

T O T A L 36.301 100,00%

Assentamentos em PAs Criados até 2002 22.240 61,3%

Assentamentos em PAs Criados em 2003 9.233 25,4%

Reconhecimento (*) 4.828 13,30%

(*) Do total de 36.301 famílias são em Projetos originários dos Estados eMunicípios, as quais passaram a ser beneficiários do Programa de RA, através doreconhecimento feito pelo INCRA.

Tabela 01

2 2 . 2 4 0

9 . 2 3 3

4 . 8 2 8

0

5 . 0 0 0

1 0 . 0 0 0

1 5 . 0 0 0

2 0 . 0 0 0

2 5 . 0 0 0

A s s e n t a m e n t o s e m P A sC r ia d o s a t é 2 0 0 2

A s s e n t a m e n t o s e m P A sC r ia d o s e m 2 0 0 3

R e c o n h e c im e n t o ( * )

Gráfico 01

ASSENTAMENTOS / RECONHECIMENTO - 2003

REGIÃO Famílias Assentadas (%)

BRASIL 36.301 100%

NORTE 16.004 44%

NORDESTE 13.256 37%

SUDESTE 1.566 4%

SUL 1.038 3%

CENTRO-OESTE 4.437 12%

1 6 . 0 0 4

1 3 . 2 5 6

1 . 5 6 6

1 . 0 3 8

4 . 4 3 7

-

2 .0 0 0

4 .0 0 0

6 .0 0 0

8 .0 0 0

1 0 .0 0 0

1 2 .0 0 0

1 4 .0 0 0

1 6 .0 0 0

1 8 .0 0 0

N O R T E N O R D E S T E S U D E S T E S U L C E N T R O -O E S T E

F A M ÍL IA S

Tabela 02

Gráfico 02

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 187ABRA - REFORMA AGRÁRIA 186

Page 95: Revista Abra 33

No ano de 2003, foram efetivamente assentadas em projetos implantadospelo novo governo 9.233 famílias, sendo que a área efetivamente desapro-priada (409.008ha) tinha capacidade para assentar apenas 12.176 famílias.Aliás, a área comprada ou em processo de compra, ou seja, o recurso aomercado imobiliário foi de pouco mais de 170 mil hectares, 30% do total doesforço de obtenção de terras.

Entre as 36.301 famílias assentadas, há também a soma dos assentamentosde reforma agrária, de regularização fundiária e de reordenamento dos assen-tamentos já existentes, onde na maioria dos casos reconhecia-se a situação jáexistente de substituição de antigos assentados. Também, entre os assentadosdaquele ano, estão 22.240 famílias que foram contabilizadas em assentamen-tos antigos. Mas, para se ter a idéia de certo descontrole das estatísticas doINCRA, há uma listagem do SIPRA, de 01/01/2003 a 31/12/2003 disponí-vel, indicando o assentamento de apenas 35.643 famílias.

A análise dos dados pode gerar a impressão de que já na divulgação dosdados de 2003, o MDA/INCRA estava discernindo entre assentamento efeti-vo de reforma agrária e reconhecimento e regularização fundiária. Mas umolhar mais atento às listagens obtidas pode-se verificar que entre os dadossobre assentamentos antigos, estão também dados referentes à substituiçãode famílias nestes assentamentos. Esta conclusão é possível, pois na notaexplicativa sobre o que foi computado como reconhecimento, refere-se ape-nas aos assentamentos estaduais e/ou municipais reconhecidos.

O Relatório Preliminar de 2004 do DATALUTA - Banco de dados da Lutapela Terra do NERA - Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de ReformaAgrária do Departamento de Geografia da UNESP de Presidente Prudente22,coordenado por FERNANDES, B.M., e que faz ano a ano o expurgo dosdados divulgados pelo INCRA desde o governo FHC, indica que o númeroexato de assentamentos realizados em 2003 foi de 24.020 famílias, ou seja,9.233 famílias de assentamentos efetivos de 2003, e outras 14.787 famíliasassentadas em assentamentos anteriores a este ano.

Portanto, pode-se concluir que no ano de 2003, o MDA/INCRA de fatoassentou como ação já efetiva do novo governo, um total de 9.233 famílias.Com muito boa vontade, pode-se dizer que completou em assentamentos degovernos anteriores um total de 14.787 famílias, chegando assim a um totalde 24.020 famílias. As 12.281 famílias restantes são números da reorde-nação, reconhecimento e regularização fundiária em 2003.

ASSENTAMENTO / RECONHECIMENTO por SR/UF - 2003

SR 01/PA 3.786 60 3.846 SR 14/AC 1.203 111 1.314 SR 15/AM 1.237 167 1.404 SR 17/RO 2.130 20 2.150 SR 21/AP 466 27 493

SR 25/RR 1.356 - 1.356

SR 26/TO 1.573 - 1.573 SR 27/MB 3.867 1 3.868

NORTE 15.618 386 16.004

SR 02/CE 994 19 1.013 SR 03/PE 955 - 955 SR 05/BA 2.584 - 2.584 SR 12/MA 1.785 3.081 4.866 SR 18/PB 435 - 435

SR 19/RN 1.026 - 1.026 SR 22/AL 246 - 246

SR 23/SE 62 1 63

SR 24/PI 848 551 1.399 SR 29/MF 669 - 669

NORDESTE 9.604 3.652 13.256

Assentamentos Reconhecimento TOTALREGIÃO/

SR/UF

SR 28/DF 505 1 506

SR 04/GO 419 2 421

SR 13/MT 2.980 150 3.130 SR 16/MS 365 15 380

CENTRO-OESTE 4.269 168 4.437

SR 06/MG 427 31 458 SR 07/RJ 122 108 230

SR 08/SP 226 380 606 SR 20/ES 272 - 272 SUDESTE 1.047 519 1.566

SR 09/PR 317 - 317

SR 10/SC 322 - 322

SR 11/RS 296 103 399 SUL 935 103 1.038

TOTAL 31.473 4.828 36.301

Tabela 03

ASSENTAMENTO / RECONHECIMENTO por SR/UF - 2003

Tabela 04

Fonte: MDA/INCRA/SD “Ações finTABELA 03alísticas 2003”, data: 20/01/2004, referência 31/12/2003, www.incra.gov.br acessado em 25/03/2004 às 13:27hs.

DESAPROPRIAÇÃO / COMPRA E VENDA – 2003

Unidade Qtde (A)

em Andamento

Concretizada (C)

IMÓVEIS 192 87 18 210

ÁREA / Ha 409.008 161.268 16.519 425.527

FAMÍLIAS (Capacidade) 12.176 9.197 679 12.855

DESAPROPRIAÇÃO - 2003TOTAL

(A+C)

COMPRA

22 - http://www2.prudente.unesp.br/dgeo/nera/telas/projetos.htm acessado em 03/03/2006 às 0,51hs.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 189ABRA - REFORMA AGRÁRIA 188

Page 96: Revista Abra 33

Partindo-se dos dados obtidos pelo NERA, a diferença entre o número defamílias assentadas e a meta de 2003 (30 mil famílias), seria negativa em5.980 famílias. Porém, tomando-se os assentamentos efetivamente implanta-dos no novo governo, a diferença negativa seria de 20.767 famílias. Assim,em uma primeira conclusão pode-se afirmar que o MDA/INCRA fez de fatono primeiro ano de governo, menos de um terço (30,8%) da reforma agráriaprevista no II PNRA.

3. 2004, consciência e frustraçãono segundo ano da não reforma agrária do II PNRA

Em 2004, as cifras do INCRA/MDA indicaram 81.184 famílias em uma tabe-la divulgada (TABELA 05) e 81.160 na listagem SIPRA. Do total, 25.735 famílias(44%) referem-se a assentamentos realizados em 2004, e 9.705 famílias em as-sentamentos iniciados de 2003. Mas, 45.744 famílias tiveram suas RBs homo-logadas em assentamentos anteriores a 2003, ou seja, 56% do total.

Mas quando, é introduzido o necessário "expurgo" dos dados feitos peloNERA, o número efetivo ficou em 34.185 famílias23. Assumindo-se os dados re-lativos às famílias nos assentamentos efetivos do governo LULA nos doisprimeiros anos, seriam no máximo 43,4 mil famílias, pois certamente, entre os

dados de 2004, relativos a 2003, existiram casos que não se enquadravam naclassificação dos assentamentos da reforma agrária.

Como também, em 2004 o MDA/INCRA não cumpriu as metas do ano (115mil famílias) a diferença, segundo os dados do NERA seria negativa em 80.815famílias, que por sua vez, somadas à diferença negativa de 2003, também apu-rada pelo NERA, acumularia uma diferença negativa de 86.795 famílias.Porém, se for considerado apenas, os assentamentos efetivados no governoLULA, este número ficaria em 101.582 famílias. A segunda conclusão quepode-se afirmar é que no segundo ano do governo LULA o MDA/INCRA fezmenos de um terço (29,7%) da reforma agrária prevista no II PNRA.

4. Os números de 2005:aparece claramente a não reforma agrária do MDA/INCRA

Quanto aos dados de 2005, o MDA/INCRA anunciou 127.506 famíliasassentadas e mais, logo somou a eles os números dos anos anteriores che-gando à cifra de 245.061 famílias (a soma divulgada a cada ano não batemcom a cifra acumulada) nos três anos do governo LULA. Aliás, o cadastro doINCRA é uma verdadeira caixa preta para a sociedade, menos para "algunsfuncionários". Mas, qual foi então a "matemagia" que o INCRA/MDA fez?

Como afirmei anteriormente, somaram todos os dados das diferentes Metasdo II PNRA, como se fossem assentamentos novos relativos à Meta 1.Portanto, porque a atitude de somar tudo ?

Em minha modesta opinião, depois de longa trajetória de pesquisadorsobre a questão agrária, só há uma explicação para essa postura: escondero essencial. E qual é o essencial? Não tenho mais dúvida nenhuma de que oMDA/INCRA, não cumpriu as metas dos assentamentos novos, e isso foi feitointencionalmente, ou seja, não queriam (desde 2003) fazer a reforma agráriae por isso não a fizeram, era a continuidade da não reforma agrária.

Por isso, os dados de 2005 divulgados também, tiveram que ser reclassifi-cados estatisticamente. Como os pesquisadores do NERA ainda não con-cluíram seu trabalho de expurgo dos dados de 2005, eu mesmo, fiz uma novaclassificação, com os limites da forma como os dados foram divulgados,segundo as seguintes classes e os seguintes resultados:

- Reordenação Fundiária - um total de 47,6 mil famílias.

BRASIL - 2.004 - GOVERNO LULA - Projetos de Reforma Agrária Número de Famílias Assentadas(por Trimestre, segundo o período/ano de criação)

Período de criação 1º Trim. 2º Trim. 3º Trim. 4º Trim. 2004TOTAL %

Até 1984 91 116 666 684 1.557 1,921985 a 1994 629 1.238 2.567 2.847 7.281 8,971995 a 2002 5.740 6.438 9.420 15.308 35.906 45,46Subtotal (1) 6.460 7.792 12.653 18.839 45.744 56,35

2003 1.276 3.637 3.496 1.296 9.705 11,952004 567 1.987 4.559 18.622 25.735 31,7

Subtotal (2) 1.843 5.624 8.055 19.918 35.440 43,65

TOTAL (3) 8.303 13.416 20.708 38.757 81.184 100Fonte.- SDM. Sistema SIPRA. Relatório: Rel 0229. Data. 3110112005.

2004

23 - Idem.

Tabela 05

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 191ABRA - REFORMA AGRÁRIA 190

Page 97: Revista Abra 33

- Regularização Fundiária - um total de 32,8 mil famílias.

- Reassentamentos Fundiários de famílias Atingidas porBarragens - um total de 1,6 mil famílias.

- Reforma Agrária - um total de 45,5 mil famílias.

Assim, das 127,5 mil famílias 82 mil não se referem à reforma agrária defato, ou seja, ao cumprimento da Meta 1 do II PNRA. Quem é que tem razãoMDA/INCRA ou o MST? É evidente que o governo tentou confundir a todos,mas, caiu na armadilha que armou. A continuidade da não reforma agrária,ou se preferirem, a reforma agrária de um pouco mais de um terço da meta,pois, no total foi atingido foi tão somente de 39,6% da Meta 1 de 2005.

Os dados reclassificados estão expostos na TABELA 06 a seguir. Nelaencontra-se de forma detalhada, a distribuição por SR e por regiões os novosnúmeros obtidos. Assim, do total divulgado pelo MDA/INCRA, tem-se: 1,2%(1.606 famílias) relativas à reassentamentos de atingidos por barragens;37,3% (47.571 famílias) incluídas em ações de reordenação fundiária; 25,8%(32.835 famílias) produto de ações de regularização fundiária; e apenas37,7% (45.509 famílias) em assentamentos novos da reforma agrária daMeta 1 do II PNRA.

Do ponto de vista territorial a distribuição regional das diferentes classes deassentamentos, obedeceu aos números presentes na TABELA 07 a seguir.Quanto aos assentamentos novos relativos à Meta 1 do II PNRA, verificou-seque 8,18% deles ficou a região Norte; 17,30% como o Nordeste, destaquepara os estados do Maranhão e Piauí com mais de 11 mil famílias assen-tadas;.7,46% com o Centro Oeste, perfazendo as três regiões um total demais de 92% dos assentamentos da Meta 1 realizados. Para as regiõesSudeste e Sul ficaram os percentuais ínfimos de 2,26% e 0,49% respectiva-mente. Como se vê pela distribuição territorial, nada de se fazer reformaagrária onde domina o agronegócio.

Quando se procede a comparação entre os assentamentos efetivamenterealizados e a distribuição pelas SR das metas previstas para o cumprimentoda Meta 1 do II PNRA, o resultado revela mais discriminação territorial. Naregião Sul, menos de 12% da meta foi atingida. Na região Sudeste e na re-gião Centro Oeste os percentuais foram parecidos de 35% e 34%. Na regiãoNordeste por sua vez, o percentual ficou em 55% e na região Norte em 30%.

Brasil – Governo Lula - Assentamentos realizados pelo INCRA/MDA – 2005

Unidades da Re- Federação/Regiões TOTAL Assentamentos Reordenação Regularização REFORMA Superintendências GERAL Fundiários Fundiária Fundiária AGRÁRIA

Regionais-INCRA

BRASIL 127.511 (1,2%) 1.606 (37,3%) 47.561 (25,8%) 32.835 (37,7%) 45.509 NORTE 58.349 220 18.070 29.628 10.431

SR/14 Acre 4.025 0 2.635 983 407 SR/17 Rondônia 1.741 0 1.693 40 8 SR/25 Roraima 1.433 0 925 0 508 SR/21 Amapá 1.854 0 1.457 397 0 SR/15 Amazonas 5.167 0 1.999 2.953 215 SR/01 Pará 14.838 0 564 13.528 746 SR/27 Marabá 8.196 0 5.167 0 3.029 SR/30 Santarém 18.000 0 2.621 11.727 3.652 PARÁ Total (1) 41.034 0 8.352 25.255 7.427 SR/26 Tocantins 3.095 220 1.009 0 1.866

NORDESTE 39.735 0 14.613 3.057 22.065 SR/12 Maranhão 16.438 0 7.353 428 8.657 SR/24 Piauí 4.982 0 791 1.191 3.000 SR/02 Ceará 1.432 0 641 26 765 SR/19 Rio Grande do Norte 1.904 0 915 0 989 SR/18 Paraíba 1.376 0 504 0 872 SR/03 Pernambuco 3.725 0 2.363 0 1.362 PERNAMBUCO Total (2) 5.783 0 2.940 0 2.843 SR/22 Alagoas 1.300 0 387 0 913 SR/23 Sergipe 1.400 0 210 30 1.160 SR/05 Bahia 5.120 0 872 1.382 2.866 SR/29 Petrolina 2.058 0 577 0 1.481

CENTRO-OESTE 19.898 0 10.393 0 9.505 SR/13 Mato Grosso 10.301 0 8.135 0 2.166 SR/16 Mato Grosso do Sul 6.032 0 835 0 5.197 SR/04 Goiás 2.494 0 1.029 0 1.465 SR/28 Distrito Federal 1.071 0 394 0 677

SUDESTE 6.541 806 2.703 150 2.882 SR/06 Minas Gerais 3.368 806 1.256 0 1.306 SR/20 Espírito Sant o 507 0 335 0 172 SR/07 Rio de Janeiro 657 0 222 0 435 SR/08 São Paulo 2.009 0 890 150 969

SUL 2.988 580 1.782 0 626 SR/09 Paraná 1.938 580 1.024 0 334 SR/10 Santa Catarina 402 0 334 0 68 SR/11 Rio Grande do Sul 648 0 424 0 224

Fonte: www.incra.gov.br/relgeren_127511 (*) Inclui SR/01 Pará, SR/27 Marabá e SR/30 Santarém Organização e conceituação: OLIVEIRA, A.U., ABRA, USP, IANDÉ, 2006.

(1) Reassentamentos Fundiários de famílias Atingida s por Barragens , proprietárias ou com direitos adquiridos em decorrência de grandes obras de barragens e linhas de transmissão de energia realizadas pelo Estado e/ou empresas concessionárias e ou privadas. (2) Reordenação Fundiária - Substituição e/ou r econhecimento de famílias presentes nos assentamentos já existentes.

(3) Regularização Fundiária - Reconhecimento do direito das famílias (populações tradicionais, extrativistas, ribeirinhos, pescadores, posseiros, etc.) já existentes nas áreas objeto d a ação (flonas, resex, agroextrativista, desenvolvimento social, fundo de pastos, etc. (4) Reforma Agrária - Assentamentos decorrentes de ações desapropriatórias de grandes propriedades improdutivas, compras de terra e retomada de terras públicas grilada s. Observação : Os dados divulgados na listagem não permitem discernir entre desapriação ou compra e terras públicas.

Tabela 06

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 193ABRA - REFORMA AGRÁRIA 192

Page 98: Revista Abra 33

Como se pode verificar, a distribuição das ações efetivas de reforma agráriaestá coerente com a concepção da não reforma agrária do MDA/INCRA quepor sua vez bate integralmente com a concepção dos principais assessores dogoverno LULA.

Portanto, a reação forte do MDA/INCRA contra o MST, deveu-se única eexclusivamente ao fato de que, a crítica feita atingira totalmente o ponto frágilda gestão do MDA/INCRA: o não cumprimento das metas do II PNRA.

Assim, o governo LULA fechou o terceiro ano do mandato, acumulando umadiferença negativa na relação números alcançados e metas estipuladas de69.491 famílias em 2005, que somadas às outras diferenças negativas dosanos anteriores deu uma cifra de 156.286 famílias pelos indicadores do NERAem 2003 e 2004, e de 171.073 famílias pelos meus cálculos. Isto quer dizerque o MDA/INCRA assentou referente à Meta 1 do II PNRA, apenas e tão so-mente 89.927 famílias, ou 34,2% das metas estabelecidas para os três pri-meiros anos de governo. Pode-se concluir, portanto, que a teoria do um terçodas metas se manteve constante, e com ele a tese da não reforma agrária.

BRASIL – GOVERNO LULA - ASSENTAMENTOS REALIZADOS PELO INCRA/MDA - 2005

UF Reassentamentos Regiões TOTAL Reordenação e % REFORMA % META Diferença %

SR GERAL Regularização AGRÁRIA RA/ INCRA Fundiária META

BRASIL 127.511 82.002 64,31% 45.509 35,69% 115.000 -69.491 -60,43%

NORTE 58.349 47.918 82,12% 10.431 17,88% 34.350 -23.919 -69,63% SR/14 AC 4.025 3.618 89,89% 407 10,11% 3.000 -2.593 -86,43% SR/17 RO 1.741 1.733 99,54% 8 0,46% 2.000 -1.992 -99,60% SR/25 RR 1.433 925 64,55% 508 35,45% 2.800 -2.292 -81,86% SR/21 AP 1.854 1.854 100,00% 0 0,00% 1.150 -1.150 -100,00% SR/15 AM 5.167 4.952 95,84% 215 4,16% 3.000 -2.785 -92,83% SR/01 PA 14.838 14.092 94,97% 746 5,03% 6.400 -5.654 -88,34% SR/27 MB 8.196 5.157 62,92% 3.029 36,96% 12.000 -8.971 -74,76% SR/30 SM 18.000 14.348 79,71% 3.652 20,29% 0 3.652 0,00%

PA Total (1) 41.034 33.607 81,90% 7.427 18,10% 18.400 -10.973 -59,64% SR/26 TO 3.095 1.229 39,71% 1.866 60,29% 4.000 -2.134 -53,35%

NORDESTE 39.735 17.670 44,47% 22.065 55,53% 39.900 -17.835 -44,70% SR/12 MA 16.438 7.781 47,34% 8.657 52,66% 10.400 -1.743 -16,76% SR/24 PI 4.982 1.982 39,78% 3.000 60,22% 3.500 -500 -14,29% SR/02 CE 1.432 667 46,58% 765 53,42% 2.000 -1.235 -61,75% SR/19 RN 1.904 915 48,06% 989 51,94% 2.500 -1.511 -60,44% SR/18 PB 1.376 504 36,63% 872 63,37% 1.100 -228 -20,73% SR/03 PE 3.725 2.363 63,44% 1.362 36,56% 6.800 -5.438 -79,97%

PE Total (2) 5.783 2.940 50,84% 2.843 49,16% 8.800 -5.957 -67,69% SR/22 AL 1.300 387 29,77% 913 70,23% 3.000 -2.087 -69,57% SR/23 SE 1.400 240 17,14% 1.160 82,86% 2.500 -1.340 -53,60% SR/05 BA 5.120 2.254 44,02% 2.866 55,98% 6.100 -3.234 -53,02% SR/29 MF 2.058 577 28,04% 1.481 71,96% 2.000 -519 -25,95%

C. OESTE 19.898 10.393 52,23% 9.505 47,77% 27.400 -17.895 -65,31% SR/13 MT 10.301 8.135 78,97% 2.166 21,03% 13.500 -11.334 -83,96% SR/16 MS 6.032 835 13,84% 5.197 86,16% 9.100 -3.903 -42,89% SR/04 GO 2.494 1.029 41,26% 1.465 58,74% 3.000 -1.535 -51,17% SR/28 DF 1.071 394 36,79% 677 63,21% 1.800 -1.123 -62,39%

SUDESTE 6.541 3.659 55,94% 2.882 44,06% 8.090 -5.208 -64,38% SR/06 MG 3.368 2.062 61,22% 1.306 38,78% 3.360 -2.054 -61,13% SR/20 ES 507 335 66,07% 172 33,93% 930 -758 -81,51% SR/07 RJ 657 222 33,79% 435 66,21% 800 -365 -45,63% SR/08 SP 2.009 1.040 51,77% 969 48,23% 3.000 -2.031 -67,70%

SUL 2.988 2.362 79,05% 626 20,95% 5.260 -4.634 -88,10% SR/09 PR 1.938 1.604 82,77% 334 17,23% 3.000 -2.666 -88,87% SR/10 SC 402 334 83,08% 68 16,92% 600 -532 -88,67% SR/11 RSl 648 424 65,43% 224 34,57% 1.660 -1.436 -86,51%

Fonte: www.incra.gov.br/relgeren_127511 Organização e conceituação: OLIVEIRA, A.U., ABRA, USP, IÁNDE, 2006.

(1) Reassentamentos Fundiários de famílias Atingidas por Barragens , proprietárias ou com direitos adquiridos em decorrência de grandes obras de barragens e linhas de transmissão de energia realizadas pelo Estado e/ou empresas concessionárias e ou privadas. (2) Reordenação Fundiária - Substituição e/ou reconhecimento de famílias presentes nos assentamentos já existentes.

(3) Regularização Fundiária - Reconhecimento do direito das famílias (populações tradicionais, extrativistas, ribeirinhos, pescadores, posseiros, etc.) já existentes nas áreas objeto da ação (flonas, resex, agroextrativista, desenvolvimento social, fundo de pa stos, etc. (4) Reforma Agrária - Assentamentos decorrentes de ações desapropriatórias de grandes propriedades improdutivas, compras de terra e retomada de terras públicas griladas. Observação : Os dados divulgados na listagem não permitem discer nir entre desapriação ou compra e terras públicas.

BRASIL - GOVERNO LULA - ASSENTAMENTOS REALIZADOS

PELO INCRA/MDA - 2005

Regiões BRASIL Norte Nordeste Centro- Sudeste Sul Oeste

TOTAL GERAL 127.511 58.349 39.735 19.898 6.541 2.988

100% 45,76% 31,16% 15,61% 5,13% 2,34%

Reassentamentos Fundiários (1) 1.606 220 0 0 806 580 1,25% 0,17% 0% 0% 0,63% 0,45%

Reordenação Fundiária (2) 47.561 18.070 14.613 10.393 2.703 1.782 37,30% 14,17% 11,46% 8,15% 2,12% 1,40%

Regularização Fundiária (3) 32.835 29.628 3.057 0 150 0 25,76% 23,24% 2,40% 0% 0,12% 0%

REFORMA AGRÁRIA (4) 45.509 10.431 22.065 9.505 2.882 626 35,69% 8,18% 17,30% 7,46% 2,26% 0,49%

Fonte: www.incra.gov.br/relgeren_127511 Organização e conceituação: OLIVEIRA, A.U., ABRA, USP, IANDÉ, 2006.

(1) Reassentamentos Fundiário s de famílias Atingidas por Barragens , proprietárias ou com direitos adquiridos em decorrência de grandes obras de barragens e linhas de transmissão de energia realizadas pelo Estado e/ou empresas concessionárias e/ou privadas. (2) Reordenação Fundiária - Substituição e/ou reconhecimento de famílias presentes nos assentamentos já existentes. (3) Regularização Fundiária - Reconhecimento do direito das famílias (populações tradicionais, extrativistas, ribeirinhos, pescadores, posseiros, etc.) já existen tes nas áreas objeto da ação (flonas, resex, agroextrativista, desenvolvimento social, fundo de pastos, etc. (4) Reforma Agrária - Assentamentos decorrentes de ações desapropriatórias de grandes propriedades improdutivas, compras de terra e retomada de terras públicas griladas. Observação : Os dados divulgados na listagem não permitem discernir entre desapriação ou compra e terras públicas.

Tabela 07

Tabela 08

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 195ABRA - REFORMA AGRÁRIA 194

Page 99: Revista Abra 33

5. Quem ganha e quem perde?

É praticamente impossível hoje calcular-se o número total de assentados dareforma Agrária, pois no governo FHC, os adeptos da "matemagia" do"Cadastro do INCRA alteraram a base cadastral dos dados do SIPRA. Isto querdizer o seguinte: somente um novo censo nacional dos assentamentos de co-lonização, reforma agrária e regularização fundiária permitiria restaurar a ba-se estatística dos dados do INCRA. Repito mais uma vez, no INCRA o Cadas-tro é, em minha modesta opinião, a "caixa preta" de muitas "operações escu-sas". Por exemplo, ninguém lá, exceto o "homem do cadastro" sabe das coi-sas. Aliás, já é hora dos movimentos sociais começar a cobrar a transparên-cia, visibilidade nas operações do INCRA. O INCRA é parte do Estado bra-sileiro e não propriedade de governo ou de "alguns funcionários". Até arrisca-ria dizer que o MDA/INCRA está "enganando até o Presidente da República"com esses números e acha que poderiam enganar também os movimentossociais e a sociedade civil inteira.

Curiosamente, quando se compara os números inflados de FHC com os deLULA, verifica-se que a capacidade de inflar dados da reforma agrária doMDA/INCRA foi aperfeiçoada, pois o "balão" está mais alto. O gráfico aseguir dá a dimensão desse fato comparativamente.

Mas quando, por dever de ofício, aprofunda-se na análise dos resultadosefetivos alcançados pelo governo LULA no campo da reforma agrária a situa-ção é outra. O gráfico a seguir procura fazer essa comparação entre númerosoficiais, números expurgados e metas.

Como se pode ver, é praticamente impossível o governo em seu quarto ano,cumprir a Meta 1 do II PNRA, pois o déficit já é maior do que a meta deste anode 2006. Este é o quadro com o qual os movimentos sociais terão que trabalharpara construir suas estratégias e táticas de ações. Não há mais como alimentarilusões, LULA fechará este governo também, sem ter feito a reforma agrária.

30.716

41717

66837

98740 99201

6992973754

4348636308

81254

127.511

0

20.000

40.000

60.000

80.000

100.000

120.000

140.000

Font

e: IN

CR

A

Org

.: O

LIV

EIR

A, A

.U.,

US

P, A

BR

A E

IAN

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

BRASIL - REFORMA AGRÁRIA - Nº DE FAMÍLIAS ASSENTADAS

1º Governo FHC 2ºGoverno FHC Governo LULA

Gráfico 03

36.308

30.00024.020

5.980

81.254

115.000

35.185

79.815

85.795

127.496

115.000

45.509

69.491

155.286

140.000

0

20.000

40.000

60.000

80.000

100.000

120.000

140.000

160.000

Fo

nte

: IN

CR

A O

rg.: O

LIV

EIR

A, A

.U. -

US

P,

AB

RA

e IA

ND

É

2003 2003 2003 2003 2004 2004 2004 2004 2004 2005 2005 2005 2005 2005 2006

BRASIL - ASSENTAMENTOS DE REFORMA ABRÁRIA - GOVERNO LULA

Assentamentos oficiais Metas II PNRA Reforma Agrária Diferença no Ano Diferença Acumulada

Gráfico 04

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 197ABRA - REFORMA AGRÁRIA 196

Page 100: Revista Abra 33

Nem mesmo a Marcha realizada no ano de 2005, foi suficiente para sen-sibilizar o MDA/INCRA.

Mas, o que é mais crítico, é o quadro das famílias desesperançadas nos acam-pamentos. Para reforçar ainda mais a tese da não reforma agrária do MDA/INCRA, apresento a seguir TABELAS 09 E 10, resultados comparativos entre onúmero de famílias assentadas e de famílias acampadas em 2003 e 2004.

A derrota dos acampados é muito cara. Não há como explicar que em2003, apenas 19% deles foram assentados em termos gerais para o país.Porém, quando se toma os dados regionais, nas regiões do agronegócio,mais de 90% das famílias tiveram quer permanecer acamapadas.

A situação em 2004, não mudou muito, pois apenas 32% das famíliaschegaram aos assentamentos. Mas nas regiões Centro Oeste, Sudeste e Sul,mais de 80% da famílias tiveram que permanecer debaixo das lonas pretas dosacampamentos. Apenas o estado do Maranhão e da Paraíba tiveram umnúmero de assentados superior ao número de acampados, o que não querdizer que os acampamentos tornaram-se assentamentos. Segundo os dados daOuvidoria Agrária do MDA, no ano de 2005 até no mês de novembro o esta-do da Paraíba tinha conhecido uma única ocupação de terra, e o Maranhão

BRASIL - GOVERNO LULA - RELAÇÃO NÚMERO DE ASSENTADOS E ACAMPADOS EM 2003

UF/ ASSENTADOS ACAMPADOS SAL DO Regiões EM 2003 EM 2003 POSITIVO NEGATIVO % BRASIL 36.301 171.288 3.831 -138.818 -81,04 NORTE 16.004 22.489 3.784 -10.269 -45,66 SR-14/AC 1.314 437 877 SR-17/RO 2.150 4.234 -2.084 -49,22 SR-25/RR 1.356 346 1.010 SR-21/AP 493 0 493 SR-15/AM 1.404 0 1.404 SR-01/PA 3.846 14.645 -6.931 -47,33 SR-27/MB 3.868 (*) (*) SR-30/SM 0 (*) (*) PA Total (1) 7.714 14.645 -6.931 -47,33 SR-26/TO 1.573 2.827 -1.254 -44,36 NORDESTE 13.256 68.172 47 -54.963 -80,62 SR-12/MA 4.866 6.328 -1.462 -23,10 SR-24/PI 1.399 2.586 -1.187 -45,9 SR-02/CE 1.013 966 47 SR-19/RN 1.026 4.397 -3.371 -76,67 SR-18/PB 435 1.028 -593 -57,68 SR-03/PE 955 22.107 -20.818 -94,17 PE Total (2) 1.624 22.107 -20.483 -92,65 SR-22/AL 246 7.325 -7.079 -96,23 SR-23/SE 63 6.138 -6.075 -98,97 SR-05/BA 2.584 17.297 -14.378 -83,12 SR-29/MF 669 (**) (**) (**) C. OESTE 4.437 46.319 -41.882 94,42 SR-13/MT 3.130 19.307 -16.177 -83,79 SR-16/MS 380 14.474 -14.094 -97,37 SR-04/GO 421 7.031 -6.610 -94,01 SR-28/DF 506 5.507 -5.001 -90,81 SUDESTE 1.566 22.810 -21.244 -93,13 SR-06/MG 458 9.236 -8.778 -95,04 SR-20/ES 272 1.791 -1.519 -84,81 SR-07/RJ 230 1.507 -1.277 -84,74 SR-08/SP 606 10.276 -9.670 -94,10 SUL 1.038 11.498 -10.460 -90,97 SR-09/PR 317 8.709 -8.392 -96,36 SR-10/SC 322 1.066 -744 -69,79 SR-11/RS 399 1.723 -1.324 -76,84 Fonte: INCRA Organização: OLIVEIRA, A.U., ABRA, USP, IANDÉ, 2006 (*) Incluídos no total do Estado do Pará (**) Incluído no total do Estado de Pernambuco

Tabela 09

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 199ABRA - REFORMA AGRÁRIA 198

Page 101: Revista Abra 33

BRASIL - GOVERNO LULA - RELAÇÃO NÚMERO DE ASSENTADOS E ACAMPADOS EM 2004

UF/ ASSENTADOS ACAMPADOS SAL DO Regiões EM 2004 EM 2004 POSITIVO NEGATIVO % BRASIL 81.254 189.865 -129.571 -68,2% NORTE 31.846 17.408 18.341 -3.903 -22,4% SR-14/AC 4.191 126 4.065 SR-17/RO 2.052 2.860 -808 -28,3% SR-25/RR 2.828 0 2.828 SR-21/AP 1.221 0 1.221 SR-15/AM 3.172 0 3.172 SR-01/PA 7.421 9.541 (*) (*) SR-27/MB 9.175 (*) (*) (*) SR-30/SM 0 (*) (*) (*) PA Total 16.596 9.541 7.055 SR-26/TO 1.786 4.881 -3.095 -63,4% NORDESTE 28.453 83.128 2.711 -57.386 -69,0% SR-12/MA 11.454 8.881 2.573 SR-24/PI 2.266 2.482 -216 -8,7% SR-02/CE 1.158 1.263 -105 -8,3% SR-19/RN 2.479 4.590 -2.111 -46,0% SR-18/PB 1.748 1.610 138 SR-03/PE 736 21.517 -19.741 -91,7% PE Total 2.741 21.517 -18.776 -87,3% SR-22/AL 827 8.891 -8.064 -90,7% SR-23/SE 521 11.750 -11.229 -95,6% SR-05/BA 5.183 22.144 -15.920 -71,9% BA Total 5.259 22.144 -16.885 -76,3% SR-29/MF 2.081 (**) (**) (**) C. OESTE 14.858 46.057 -31.199 -67,7% SR-13/MT 10.213 18.242 -8.029 -44,0% SR-16/MS 3.511 17.769 -14.258 -80,2% SR-04/GO 377 7.186 -6.809 -94,8% SR-28/DF 757 2.860 -2.103 -73,5% SUDESTE 2.453 23.167 -20.714 -89,4% SR-06/MG 1.168 9.790 -8.622 -88,1% SR-20/ES 399 2.229 -1.830 -82,1% SR-07/RJ 160 2.007 -1.847 -92,0% SR-08/SP 726 9.141 -8.415 -92,1% SUL 3.644 20.013 -16.369 -81,8% SR-09/PR 2.726 16.497 -13.771 -83,5% SR-10/SC 389 1.016 -627 -61,7% SR-11/RS 529 2.500 -1.971 -78,8%

Fonte: INCRA Organização: OLIVEIRA, A.U., ABRA, USP, IANDÉ, 2006

(*) Incluídos no total do Estado do Pará (**) Incluído nos totais dos Estados de Pernambuco (50%) e Bahia (50%)

nenhuma. Mas, por sua vez pelos dados da CPT de 2005, o Maranhão conhe-ceu três ocupações de terras, enquanto que a Paraíba conheceu dez.

No conjunto, o ano de 2005 foi marcado segundo a CPT por 433 ocu-pações de terras envolvendo cerca de 50 mil famílias. Quanto aos acampa-mentos, foram mais 89 concentrando mais de 17 mil famílias ainda segundoa CPT. Logo, o crescimento da luta pela terra continua sua marcha.

Diante esta realidade: quem ganhou e quem perdeu?

O MDA/INCRA acha que ganhou, pois tentaram transformar uma derrotaem vitória a qualquer custo.

Os latifundiários certamente ganharam, pois não foram molestados pelanão reforma agrária do governo atual.

O agronegócio ganhou, porque pode continuar "escondendo" a terraimprodutiva debaixo dos índices técnicos da década de 70, utilizados peloINCRA na definição da produtividade.

Quem perdeu foram os movimentos sociais, pois foram ludibriados nasreuniões de acompanhamento onde sempre ouviram o discurso de que areforma agrária seria feita. Mas, perdeu parte da sociedade brasileira, quepermanece na esperança de que um dia, a dívida social da reforma agráriaseja verdadeiramente paga.

Não há outro caminho para os que sempre lutaram pela reforma agrária,continuar seguindo a palavra de ordem talvez mais antiga: "a luta continua".Mas, agora, com a certeza de que há inimigos da reforma agrária também,no interior do Partido dos Trabalhadores. O caminho talvez seja, reforçarainda mais o rubor da vergonha e, encontrar no vermelho das marchas, asretomadas das ocupações e da luta, porque como escreveu Chico da Silvaem seu tema para o Boi Garantido de Parintins-AM:

O brilho do meu canto tem o tomE a expressão da minha cor "vermelho"24

(no quente verão de março do quarto ano da decepção com a reforma agrária dogoverno LULA, mas, com a alegria com uma retomada do despertar na América Latina)

Tabela 10

24 - "Vermelho" Chico da Silva, Ed. Mercury, do CD de Fafá de Belém "Pássaro sonhador" 1996.

A "Não Reforma Agrária" do MDA/INCRA no governo LulaEnsaios e Debates

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 201ABRA - REFORMA AGRÁRIA 200

Page 102: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 203

Assentamentos e Assentados

no Estado de São Paulo:

dos primeiros debates

as atuais reflexões

Sonia Maria P. P. Bergamasco1

Luiz Antonio Cabello Norder2

O Estado de São Paulo abriga a maior parte da produção industrial eagroindustrial e os maiores índices de urbanização do país. Um aspecto rele-vante é a concentração das atividades industriais na região metropolitana deSão Paulo e em algumas capitais regionais no interior. Ao mesmo tempo,grande parte dos pequenos municípios passaram por um forte decréscimopopulacional e econômico, sobretudo a partir das últimas décadas do sécu-lo passado, após terem conhecido uma trajetória de crescimento ao longo daprimeira metade do século XX.

A modernização da agricultura, particularmente com a produção de cana-de-açúcar, milho e laranja, levou a formação de uma classe de trabalhadoresassalariados temporários, ao mesmo tempo em que a simultânea expansãoda pecuária ultra-extensiva deixou parte das propriedades rurais bastantepróximas da situação formal de improdutividade, de acordo com a legislaçãoagrária em vigor. Tal cenário fez emergir uma série de conflitos sociais, con-testações políticas e disputas pela posse da terra - e, com isso, as organiza-ções populares em defesa da reforma agrária foram fortalecidas e, conse-quentemente, assentamentos rurais com diferentes características políticas eadministrativa foram sendo implementados.

Este texto discute a importância dos assentamentos para a melhoria dascondições de vida e de trabalho das populações rurais e para a transfor-mação da dinâmica sócio-econômica e demográfica de seus municípios e

1 - Professora Titular da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas(Feagri/Unicamp). Email: [email protected] - Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (CLCH/UEL).Email: [email protected].

Page 103: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 205ABRA - REFORMA AGRÁRIA 204

regiões. Para isso, há uma análise histórica dos principais aspectos da orga-nização política dos movimentos sociais rurais, principalmente do MST, e daimplementação de programas de assentamentos rurais no Estado de SãoPaulo, com ênfase para seu diferenciado impacto nas dinâmicas sócio-econômicas, políticas e demográficas locais e regionais. A base de dadosresulta de pesquisa realizada em assentamentos localizados em quatromunicípios de distintas regiões do Estado de São Paulo3.

1. CONFLITOS SOCIAIS E POLÍTICAS FUNDIÁRIAS

Nos anos 50, os debates sobre a reforma agrária resultaram, no Estado deSão Paulo, na elaboração do programa de Revisão Agrária de 1960, quechegou a entusiasmar parte dos setores urbanos interessados em uma amplia-ção da oferta de alimentos, bem como na neutralização ideológica do "avançocomunista" no campo. A meta era o assentamento anual de algo entre 500 e1.000 famílias em todo o Estado. No âmbito desse programa, o governo es-tadual avaliava a utilização de terras públicas para fins distributivistas. Alémdisso, divulgava a proposta de descentralizar o processo de distribuição deterras através da desapropriação de áreas por utilidade pública - justamenteem um contexto nacional de redefinição dos mecanismos jurídicos dedesapropriação para fins de reforma agrária. A força política e ideológica daoposição e o elevado custo das indenizações prévias e em dinheiro, previstasna legislação estadual em vigor para os casos de desapropriação por utili-dade pública, estão entre os fatores que inviabilizaram sua execução; apenasdois projetos foram iniciados, num total de 175 famílias assentadas4.

Com a instauração do regime militar, a reforma agrária foi substituída pelacolonização em áreas de fronteira agrícola, sobretudo na Região Centro-Oeste e Norte do país. Ao mesmo tempo, no âmbito da modernização agrí-cola, ocorreram significativas modificações nas relações sociais; na antigazona cafeeira, que compreende basicamente os Estados de São Paulo, Rio deJaneiro, Minas Gerais e Paraná, o colonato e outras relações de trabalhonão-assalariado foram desestruturados - e grande parte da população rural

foi submetida a um rápido processo de proletarização e migração em direçãoaos principais centros urbanos e a algumas capitais regionais em expansão.

No final dos anos 70 e início dos anos 80, diversos movimentos sociais,partidários e sindicais começaram a ser reorganizados e a recolocar a refor-ma agrária na pauta das reivindicações pró-democracia. No Estado de SãoPaulo, eclodem os conflitos em torno das barragens de usinas hidrelétricasPorto Primavera, Taquaruçu e Rosana, na região do Pontal do Paranapanema,o que exigiu uma resposta do Estado no sentido de reassentar a populaçãoatingida pelos alagamentos. Antigas disputas agrárias começavam a ganharum novo significado, com destaque para a luta dos posseiros da FazendaPrimavera, em Andradina, com apoio da igreja católica, por meio das Co-missões Eclesiais de Base (CEBs) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), daFederação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (Fetaesp)e de partidos políticos, especialmente o Partido dos Trabalhadores (PT) e oPartido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). A desapropriação daFazenda Primavera em 1980 passou a informar o debate sobre reforma agrá-ria e a ação de outros diferentes grupos de trabalhadores rurais sem-terra noEstado de São Paulo, alguns ligados à CPT, outros às organizações sindicais.

É no bojo deste diversificado processo de organização dos movimentossociais, sindicais e partidários que o MST (Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem-Terra) foi fundado no Estado de São Paulo, ao longo de 1984. Issocontribuiu para a construção de uma articulação nacional da demanda popu-lar pela reforma agrária, especialmente a partir do Primeiro Congresso doMST, realizado no ano seguinte, em Curitiba. No entanto, o surgimento edifusão do MST ao longo dos anos 80 representou não somente uma con-tinuidade e mesmo o aprofundamento de certas características presentes nasdemais organizações, mas também o estabelecimento de novas diretrizes deação, principalmente no plano organizativo.

O mais importante elemento nesta redefinição programática promovidapelo MST foi a adesão a uma concepção massiva da luta política, com impli-cações tanto para a mobilização local dos trabalhadores como para adefinição de alianças políticas nacionais. A tomada de decisões na organi-zação dos acampamentos do MST passou a ser pautada por uma segmen-tação entre as famílias acampadas e os coordenadores, entre liderados e lide-ranças. Começam então a surgir "dissidências" com as mais diversas moti-vações administrativas, políticas e ideológicas e passa a ser acirrado umambiente de tensão e disputa com outras organizações, como a CPT, gruposindependentes, sindicatos e suas federações5.

3 - Pesquisa Os impactos regionais dos assentamentos rurais: dimensões econômicas, políticas e sociais, quecontou com a participação no Estado de São Paulo de Leonardo de Barros Pinto, Luiz Antonio C. Norder e deRosângela Ap. Pereira de Oliveira e que foi também realizada em outros cinco Estados, sob a coordenação deLeonilde Medeiros e Sérgio Pereira Leite, do CPDA/UFRRJ (Medeiros e Leite, 2004); o plano amostral é deaproximadamente 10% do total de famílias em cada assentamento. 4 - Um assentamento foi em Campinas, com 72 famílias, em uma área desapropriada mediante negociaçãoamigável do governo estadual; e outro em Marília, com 103 famílias, em uma área publica. Esta ultima expe-riência rapidamente acabou resultando na venda das parcelas e sua transformação em chácaras para a popu-lação urbana (Tolentino, 1990; Bergamasco et al., 1991).

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 104: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 207ABRA - REFORMA AGRÁRIA 206

A expansão do MST representou, por um lado, um aumento da eficácia naconquista de terras e no reconhecimento público da demanda e, por outro, acriação de uma estrutura organizativa mais centralizada e com menor poderdecisório por parte dos próprios trabalhadores. No plano discursivo, asdemais organizações que reivindicavam a reforma agrária passaram a serdesqualificadas. Esse contexto histórico foi analisado por Bernardo MançanoFernandes da seguinte forma:

"O dimensionamento do espaço de socialização política, essen-cial na trajetória histórica da formação do MST e na espaciali-zação e territorialização da luta pela terra, havia sido preteridonesse processo organizativo... A massificação da luta desen-volveu-se com o aumento do número de famílias nas ocupaçõesde terra, e também com a alienação da grande maioria dos tra-balhadores que se tornaram passivos no processo de luta" *.

A articulação política regional e nacional da demanda pela reforma agráriapromovida pelo MST e a ação localizada de diversos movimentos sociais esindicais implusionaram a formulação e implementação de diferentes políti-cas fundiárias governamentais, tais como: a) assentamentos em áreasdesapropriadas pelo governo federal; b) reassentamentos de populaçõesatingidas por barragens de usinas hidrelétricas; c) assentamentos em áreaspúblicas pertencentes ao governo estadual, geralmente em posse de grandesfazendeiros6.

Há uma diversidade de mediadores e formas de atuação nos acampamentose assentamentos. Em alguns casos, há a predominância do MST; em outros, daCPT, da CUT/Rural ou ainda das federações sindicais, além de grupos com a-tuação de menor abrangência populacional e territorial. Isso também ocorre nointerior de um assentamento, onde muitas vezes há a atuação simultânea - enão raro antagônica - de mais de uma organização. A constituição dos assen-tamentos rurais no Estado de São Paulo resulta, portanto, de uma pluralidadede conflitos pela posse da terra e de formas de mobilização política.

Um panorama da organização política e social nos assentamentos pode serobservado na Tabela 1, que apresenta informações obtidas em pesquisas poramostragem em três regiões do Estado. Nota-se que há maior participação

política em diversas instituições nos assentamentos de Sumaré I e II e entre ogrupo de famílias proveniente da mesma região metropolitana que formou aAgrovila Campinas, no Assentamento Fazenda Reunidas. Com relação à vin-culação aos principais mediadores (MST, CPT, sindicatos, etc.), nota-se quehá grande disparidade seja de um assentamento para outro, como no inte-rior de um mesmo assentamento. O mesmo pode ser dito sobre a partici-pação em associações e cooperativas.

Muitas são as trajetórias profissionais, familiares, políticas e culturais que le-varam à formação dos acampamentos - do MST, da CPT ou de outras organi-zações - e dali aos vários programas estatais de criação de assentamentos ru-rais. Trata-se da luta de posseiros, arrendatários, parceiros e sitiantes atingidospor barragens, ou seja, trabalhadores inseridos em certas relações sociais esta-belecidas historicamente e que disputaram as áreas rurais por eles já ocupa-das. Em outros casos, os assentamentos originaram-se da organização sindi-cal de trabalhadores rurais assalariados do setor canavieiro que, vivendo sobpéssimas condições de vida urbana, resolveram fazer do acesso à terra umaalternativa à sua condição econômica e social. Há ainda a luta de trabalha-dores rurais sem-terra que migravam pelas várias regiões do país e que, a par-tir de meados dos anos 80, passaram a procurar nos movimentos sociais politi-camente organizados um novo caminho para alcançar seu retorno ao campo.

A mobilização política dos trabalhadores rurais para a condução da lutapela reforma agrária, a partir da década de 80, inicia-se com a identificaçãodas áreas a serem disputadas, levando em conta os atores governamentais e

5 - Fernandes, 1996: 170-171; 1998.6 - As políticas fundiárias governamentais incluem ainda os programas de regularização na distribuição de ter-ras em áreas de conflito social (especialmente no Vale do Ribeira, região com a maior preservação ambientalno Estado) e a demarcação de terras indígenas e de populações remanescentes de quilombos. * - Fernandes, 1996: 170-171.

Tabela 1. Participação Política dos Assentados em Áreas Selecionadas no Estado de São Paulo - % (*)

Município Araraquara Sumaré Promissão

Assentamento/

Agrovila

Monte

Alegre I

Monte

Alegre IV Sumaré I Sumaré II

Agrovila

Campinas

Agrovila J.

Bonifácio

Agrovila

Penápolis

Origem Política Feraesp (1) Feraesp (1) CUT Rural (2) CUT Rural (2) MST Sindicato (3) Sindicato (3)

Associação 14 - 22 30 50 16 8

Cooperativa - 18 33 - 60 8 -

Sindicato 42 27 77 40 10 33 8

MST - - 33 20 50 - -

CPT - - 11 10 40 - -

ONGs/outras - - 22 30 10 8 16

Não participa 57 54 33 60 - 58 75 Fonte: Relatório da Pesquisa A dinâmica dos assentamentos de trabalhadores rurais e seus efeitos sobre o espaço social e físico ,

Campinas, Feagri/Unicamp; Paris, CRBC/EHESS, 2002. (1) Feraesp: Federação dos Assalariados rurais do Estado de São Paulo, que

reunia principalmente sindicatos de trabalhadores com atuação na região canavieira do Estado de São Paulo; também com participação

da Comissão Pastoral da Terra; (2) Também com participação do MST; (3) Também com participação das prefeituras das cidades de

origem dos assentados. (*) Pesquisa por amostragem; respostas múltiplas.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 105: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 209ABRA - REFORMA AGRÁRIA 208

privados envolvidos na disputa e uma estimativa da capacidade estratégicade cada grupo de trabalhadores para constituição de assentamentos. Essasiniciativas locais pressupõem sua inserção nas esferas públicas de debatepolítico. Daí a importância de mediadores: movimentos sociais, sindicatos,partidos, igrejas, etc. - que, no entanto, disputam entre si a representaçãopolítica dos trabalhadores.

Assim, esse conjunto de disputas fundiárias levou não apenas à conquistade áreas isoladas para a criação de assentamentos rurais, mas também à for-mação e expansão de movimentos sociais que protagonizaram a re-inserçãoda reivindicação de reforma agrária na agenda de debates políticosnacionais. Aos diversos movimentos sociais, mas com crescente atenção paraas ações do MST, passou a ser atribuído o protagonismo inicial para a cria-ção, em geral emergencial e improvisada, de determinados projetos de as-sentamento.

A "redescoberta" do Pontal do Paranapanema pelo MST e a implementaçãode assentamentos na região, já na segunda metade dos anos 90, teve umarelevância não apenas local ou regional, mas um significativo alcance políti-co nacional. Neste processo de recuperação de áreas públicas pelo governodo Estado, parte das fazendas em disputa entre grileiros e sem-terra passou aser destinada aos acampados, após indenização prévia e em dinheiro pelasbenfeitorias realizadas na área. A região do Pontal do Paranapanema, dadasua importância política e abrangência territorial - cerca de um milhão dehectares -, transformou-se em uma das principais frentes de disputas fun-diárias no Estado de São Paulo - e alcançou grande repercussão nacional7.

Os dados disponíveis sobre os projetos de assentamentos implementadosno Estado de São Paulo a partir de 1980 indicam que algo em torno de 9,6mil unidades familiares de produção agropecuária, distribuídas em 141assentamentos8, foram criadas nas décadas de 80 e 90. Deste total, 5.716

famílias (cerca de 60% do total) foram assentadas no Pontal doParanapanema (e dentre estas, 38% o foram entre 1995 e 1999).

O impacto demográfico dos assentamentos no Pontal tem importanterelevância regional no Estado de São Paulo. Ademais, a região tornou-sepalco dos principais conflitos agrários no Estado, onde, de acordo com infor-mações do Movimento Sem-Terra (MST), mais de cinco mil famílias estavamacampadas reivindicando seu assentamento em 19979. Paralelamente, osprogramas implementados pelo governo federal no Estado de São Paulo combase na legislação sobre reforma agrária permitiram o assentamento de3.114 famílias, distribuídas em 33 projetos nos anos 80 e 90. Os dois maispopulosos foram os de Promissão e Andradina, com 629 famílias e 343,respectivamente, e representavam cerca de 31% do total de famílias assen-tadas pelo INCRA no Estado. Cinco projetos reuniam de 120 a 175 famíliascada; treze projetos abrigavam menos de 100 famílias e onze assentamentostinham capacidade para menos que 50 famílias.

Todavia, frente aos limites políticos e institucionais para a realização demedidas de distribuição de terras com base na legislação sobre reformaagrária, parte dos assentamentos rurais no Brasil e no Estado de São Pauloacabaram por ser criados em terras públicas por governos estaduais. No finalde 1985, o Governo do Estado de São Paulo criara duas leis reguladoras desua atuação fundiária: o Plano de Valorização de Terras Públicas (PVTP) e oPlano de Regularização Fundiária. Esta legislação é posterior aos projetos deassentamentos em Itapeva, Casa Branca, Araraquara, Araras e Sumaré - oprimeiro em uma área pública em negociação desde os anos 60, e os demaisem hortos florestais pertencentes a uma empresa ferroviária estatal, a Fepasa(Ferrovias Paulistas SA), que veio a ser privatizada em 1998. Na segundametade dos anos 80, com base no PVTP, foram criados outros assentamentosem áreas públicas estaduais nos municípios de Araraquara, Andradina,Itapetininga, Porto Feliz e Euclides da Cunha10. Um resumo das informaçõessobre o número de assentamentos e famílias assentadas em São Paulo até ofinal dos anos 90 é apresentada a seguir.

7 - Os conflitos sociais nesta região são constantes desde os primórdios de seu povoamento. Nos primeirosanos do século XX, um longo processo judicial já envolvia vários fazendeiros e grileiros (que divergiam entresi), em confrontação com trabalhadores rurais e com o Estado. Alguns destes litígios permanecem ainda hojesem resolução. Parte das fazendas criadas irregularmente, no entanto, chegou a ser legalizada e transformadaem propriedades privadas, através de operações jurídicas sobre as quais recaem suspeitas as mais diversas.Os programas de redistribuição fundiária na região do Pontal começaram a ser implementados a partir de1990, quando cerca de 800 famílias ligadas ao MST decidiram ocupar uma área de 387 hectares da FazendaNova Pontal, em Teodoro Sampaio, com o objetivo de reverter sua situação jurídica. Iniciava-se ali a efetivaçãode uma série de estratégias políticas visando a conquista destas áreas pelos trabalhadores. Em meados de1995, uma área de 17.694 hectares de doze fazendas já havia sido ocupada por acampados do MST noPontal. Uma seqüência de acordos e desacordos entre Estado, grileiros e sem-terra, permeados por diversasações jurídicas e policiais, ocupações e desocupações, acabaram por dar visibilidade à questão da reformaagrária, justamente naquele período em que a opinião pública brasileira ficara estarrecida com o massacre de19 trabalhadores rurais por forças policiais no Norte do país (Fernandes, 1996: 101-113).

8 - Esse número inclui os reassentamentos populacionais decorrentes dos alagamentos provocados pela cons-trução de usinas hidrelétricas. As reivindicações sociais em tais reassentamentos comportam evidentes pecu-liaridades políticas e administrativas, mas foram encaminhadas, principalmente na primeira metade dos anos80, de forma articulada com as demais manifestações de luta pela terra e pela reforma agrária. São cinco pro-jetos de reassentamento na região do Pontal do Paranapanema e dois na região de Andradina, envolvendo umtotal de 1.501 famílias, o que corresponde a aproximadamente 15% do total de famílias assentadas e reassen-tadas no Estado. 9 - Houve desde 1995 uma multiplicação de movimentos sociais organizados no Pontal do Paranapanema,disputando a representação política dos interessados em sua integração aos projetos de assentamento(Fernandes, 1998). 10 - Barbosa e Leite, 1990.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 106: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 211ABRA - REFORMA AGRÁRIA 210

Como as políticas estaduais de assentamento eram respostas improvisadasàs situações de conflito, temos a criação de assentamentos de pequeno porteou geograficamente dispersos, com a exceção da região do Pontal do Parana-panema. Assim, no período de 1984 a 1994, as sucessivas administrações dogoverno estadual promoveram o assentamento de aproximadamente 1.675famílias em 24 projetos, em áreas estaduais pertencentes a dez municípios. Emseguida, entre 1995 e 1999, o governo estadual assentou ou iniciou o assen-tamento de mais 3.837 famílias, das quais 86% no Pontal do Paranapanema.Em outra frente de disputas sociais, os hortos florestais da Fepasa, em geralvoltados para a produção de dormentes para as ferrovias, foram assentadas715 famílias até 1998, em uma área total de quatorze mil hectares.

Destas considerações sobre o processo político de implementação dosassentamentos rurais criados no Estado de São Paulo até o final dos anos 90destacam-se os seguintes aspectos: a) a instabilidade e descontinuidade naspolíticas fundiárias governamentais; b) a presença de conflitos sociais, mobi-lizações, criação de acampamentos, manifestações, ocupações de áreas emdisputa, etc. precedendo a implementação dos assentamentos, c) o atendi-mento de apenas uma reduzida parcela dos trabalhadores, ou seja, compouca modificação na constituição do mercado de trabalho, com exceção,relativamente, de algumas regiões ou localidades específicas11.

2. CONDIÇÕES SOCIAIS NOS ASSENTAMENTOS

Esta seção apresenta a evolução recente de alguns dos principais indi-cadores demográficos, sociais e econômicos regionais - e avalia as trajetóriasmigratórias e profissionais, a composição da renda das famílias assentadas eas particularidades da infra-estrutura social em sete assentamentos situadosem quatro municípios no Estado de São Paulo. Trata-se de pesquisa sobreassentamentos criados em épocas distintas, com diferentes perfis popula-cionais e econômicos e situados em municípios das principais distintas regiõesdo Estado: Araraquara, Mirante do Paranapanema, Promissão e Sumaré12.

a) Ta) Transformações Demográficas e Econômicasransformações Demográficas e Econômicas

Embora o número de famílias assentadas ainda possa ser consideradopequeno quando comparado ao da população ocupada em atividadesagropecuárias no Estado de São Paulo - e a despeito da reduzida área desti-nada aos assentamentos -, a implementação de assentamentos rurais, emvários casos, levou a uma significativa alteração das condições locais de pro-dução e a uma redistribuição populacional com elevado impacto econômicoe político local e regional.

É importante ressaltar que a urbanização em diversas regiões do Brasil ocor-reu de forma a concentrar enormes contingentes populacionais em grandescentros metropolitanos, geralmente capitais estaduais, mas também em algu-mas cidades de porte regional. A contrapartida disso foi um notável refluxo de-mográfico e econômico nos pequenos municípios13. A concentração fundiária,a dinâmica de modernização agrícola e a ausência de políticas públicas ade-

Tabela 2. Número de famílias assentadas em São Paulo, de acordo com origem

administrativa e ano de implementação (1979 -1999)

Ano de Implementação

Total Até 1983 1984-1988 1989-1994 1995-1999 Total

Federal 164 1.108 578 1.264 3.114

Estadual - 663 509 3.837 5.009

Barragens 523 978 - - 1.501

Total 687 2.749 1.087 5.101 9.624 Fonte: INCRA, ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”), MST.

11 - No Estado de São Paulo, existiam cerca de 135 mil estabelecimentos rurais em meados dos anos 90. Entre1970 a 1995, houve uma redução de 1.357.113 para 914.954 pessoas ocupadas em atividadesagropecuárias. Deste total, boa parte era empregada apenas sazonalmente. O trabalho temporário atinge seupico nos meses de junho e julho, quando eram empregados não mais que 240 mil trabalhadores. Em janeiroe fevereiro, este número caía para até 95 mil trabalhadores.

Tabela 3. Origem dos Assentamentos Pesquisados no Estado de São Paulo Assentamento Município Inicio Famílias Implementação

Bela Vista do Chibarro Araraquara 1989 167 Federal

Santa Clara Mirante do Paranapanema 1994 46 Estadual

São Bento Mirante do Paran apanema 1994 185 Estadual

Estrela D´Alva Mirante do Paranapanema 1995 31 Estadual

Fazenda Reunidas Promissão 1987 629 Federal

Sumaré I Sumaré 1984 26 Estadual

Sumaré II Sumaré 1986 28 Estadual

12 - Pesquisa Os impactos regionais dos assentamentos rurais: dimensões econômicas, políticas e sociais(Medeiros e Leite, 2004). 13 - Faria, 1991.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 107: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 213ABRA - REFORMA AGRÁRIA 212

quadas à agricultura familiar podem ser mencionadas como fatores que vie-ram a enfraquecer a inserção de pequenos municípios nas redes urbanas, ouseja, a conexão sócio-econômica entre os pequenos municípios, os núcleos ur-banos de importância regional e os grandes centros metropolitanos14.

A constituição dos assentamentos tem revitalizado a dinâmica econômicade pequenos municípios e revertido esta trajetória - que é comum a muitosdos pequenos municípios no Estado de São Paulo. Em Promissão e Mirantedo Paranapanema, a população rural, que declinara entre 1970 e 1980, vol-tou a expandir-se nas décadas seguintes, o que está relacionado, em grandemedida, à implementação de programas de assentamento no meio rural.

A Tabela 4 mostra que os municípios pesquisados apresentam uma diferen-ciada dinâmica demográfica ao longo do período 1970-2000. EnquantoAraraquara e Sumaré passaram por um acentuado crescimento de sua popu-lação urbana, transformando-se em importantes pólos econômicos regionais,Mirante do Paranapanema e Promissão passaram por um processo inverso,qual seja, o de redução de sua população rural e total. Foi somente após aimplementação dos assentamentos (Promissão no final dos anos 80 e Miranteem meados dos 90) que este cenário foi modificado. A população rural, quedeclinara nos quatro municípios entre 1970 e 1980, voltou, nas décadasseguintes, a expandir-se nos quatro municípios.

b) Fluxos Migratórios eb) Fluxos Migratórios eCondições de TCondições de Trabalho antes do Assentamentorabalho antes do Assentamento

Muitos dos assentados no Estado de São Paulo são migrantes provenientesda região de Estados vizinhos, principalmente Minas Gerais e Paraná, e daRegião Nordeste; agregaram-se aos paulistas, que somam pouco mais que ametade das famílias entrevistadas. A disputa pelas terras do Pontal atraiu auma parcela de migrantes de vários pontos do país. No entanto, há um inter-valo entre estes dois atos: os trabalhadores sem-terra entrevistados migrarampara o Estado de São Paulo, onde permaneceram habitando e trabalhandoem ocupações diversas, antes de entrarem na luta pela terra. Em outros ter-mos, a atração exercida pelo mercado de trabalho estadual parece precedera atração exercida pela luta pela terra. Além da migração interestadual, háuma notável migração intra-estadual. Migrar e lutar pela terra parece ter sidoa disposição de muitos dos assentados do Estado de São Paulo.

A grande maioria dos assentados estava empregada antes do assentamen-to, o que sugere que a luta pela reforma agrária tem um significado maisamplo que apenas a busca de emprego. Uma em cada três famílias teve ocu-pação urbana no período anterior ao assentamento; os que atuavam comoassalariados urbanos correspondem a 25% do total. É interessante destacarque nos assentamentos no Pontal do Paranapanema há uma incidência maiorde trabalhadores rurais temporários (entre 40 a 50% dos entrevistados), alémde um menor contingente de trabalhadores com ocupação urbana anterior aseu assentamento.

Em todos os assentamentos pesquisados, no entanto, há uma substancialtransformação das condições de vida e de trabalho, uma vez que, em suavasta maioria, essa população, antes do assentamento, não contava com oacesso a terra. Apenas uma pequena parte dos assentados (11%) não haviadesenvolvido qualquer produção agropecuária antes do assentamento: cercade 90% dos titulares de lote tiveram alguma experiência anterior de produçãoagropecuária, mas a grande maioria na condição de parceiros e arren-datários; poucos foram posseiros.

Os assentados vivenciaram as transformações sócio-econômicas ocorridasa partir dos anos 60 em toda a zona cafeeira, na qual a erradicação doscafezais (e sua substituição pela cana-de-açúcar, laranja e pecuária de corte)implicou na substituição de relações de trabalho não-assalariados (arrenda-mento, colonato e parceria) pelo trabalho assalariado temporário (bóia-friaou trabalhador volante). Essas mudanças coincidem historicamente com a

14 - Santos, 1988.

Tabela 4: Evolução da população rural e urbana dos municípios de Araraquara,

Mirante do Paranapanema, Promissão e Sumaré, 1970 -2000.

Município População 1970 1980 1991 2000

Araraquara Urbana 84.459 118.781 156.465 173.569

Rural 15.979 9.341 10.266 8.902

Mirante do Paranapanema Urbana 7.175 8.538 10.545 9.833

Rural 14.734 6.921 4.634 6.380

Promissão Urbana 15.609 15.877 22.093 25.635

Rural 4.935 4.345 5.888 5.470

Sumaré Urbana 15.335 95.825 225.528 193.937

Rural 7.739 6.026 1.342 2.786 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados desta série histórica não incluem a população que habitava as

áreas que vieram a formar outros municípios ao longo deste período.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 108: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 215ABRA - REFORMA AGRÁRIA 214

expansão na demanda por mão-de-obra nos centros urbano-industriais.Assim, após um hiato representado pelo trabalho assalariado rural ouurbano, os trabalhadores rurais, a partir dos anos 80, decidem entrar na lutapela terra para resgatar o projeto familiar ou a condição anterior de produ-tores agropecuários, agora não mais como colonos, parceiros e arren-datários, subordinados ao latifúndio, mas como assentados em terra própria.

c) Pc) Perfil das Ferfil das Famílias e Condições de Vida amílias e Condições de Vida

Esta seção apresenta uma síntese de informações sobre distribuição etária,educação, habitação, composição das famílias, saúde e alimentação, obtidasa partir de pesquisas de campo nos assentamentos mencionados anteriormente.

Idade dos Titulares: Um breve perfil dos titulares de lotes no Estado de SãoPaulo pode ser delineado através da figura de um homem com idade entre45 a 60 anos, com menos de quatro anos de ensino formal. Os titulares delote entrevistados abrangem todas as faixas etárias, com destaque para afaixa de 50 a 60 anos, que comporta a maior freqüência relativa. Também afaixa dos titulares com mais de 60 anos apresentou percentual expressivo(17%), havendo casos, como os de Sumaré e da Fazenda São Bento, em quemais de um terço dos assentados já havia passado de 60 anos. Nestas situa-ções, é comum encontrar mais de uma família nuclear, ou seja, os filhos secasam e permanecem no lote.

Educação: Em nosso plano amostral, efetuado entre fevereiro e maio de1998, encontramos um total de 23% dos titulares de lote em situação deanalfabetismo. Os analfabetos e os que possuem menos que quatro anos deestudo formal chegam a quase 90% das famílias pesquisadas; menos de 10%possuem oito anos ou mais de ensino formal - e o percentual dos que chegamao ensino superior raramente ultrapassa a 1%, em média15.

A escolarização de jovens e crianças dá-se geralmente em duas etapas: osprimeiros quatro anos são cursados em escolas no interior do assentamentoe os quatros seguintes em escolas do município. Mesmo em assentamentosde grande porte, como o Fazenda Reunidas, não há escolas após a 4a série:os estudantes precisam deslocar-se para o núcleo urbano. O transporte esco-lar é oferecido pelas prefeituras e objeto de constantes negociações políticas.

Habitação: As condições habitacionais tem sido arroladas entre os critériospara uma análise das condições sociais de vida e identificação da situação depobreza no Brasil16. Além disso, não obstante suas particularidades técnicas,organizacionais e sociais, a construção civil nos assentamentos pressupõe umaintegração comercial com o município e a região. Em geral, há uma ligeiramodificação das condições habitacionais quando comparamos a situaçãoatual dos assentados com a que dispunham antes do assentamento. Houve umaumento na construção de casas de alvenaria e uma redução na construçãode casas de madeira; por outro lado, nota-se um aumento (de 6% para 11%)na permanência de residências com pisos de terra, fator de insalubridade, nointerior das construções habitacionais. O esgoto dos assentamentos é em geraldepositado em fossas individuais não-assépticas (79%), mas há também umconsiderável despejo em locais abertos, como rios e valetas (13%).

Quase 80% das famílias consideravam que a habitação no assentamentoera melhor que a que dispunham anteriormente; para pouco mais de 10%dos entrevistados, não houve melhoria significativa e para 5% chegou mesmoa ocorrer uma redução na qualidade de sua habitação. Nos assentamentosmais recentes, a percepção das condições habitacionais é mais desfavorávelque nos mais antigos. O fato dos assentamentos permitirem o acesso à casaprópria, ainda que precária, rompendo com as situações anteriores de de-pendência de alugueis ou concessões, contribui para esta avaliação positiva.

Família: Apesar da importância do trabalho agrícola para a constituição darenda familiar, os assentamentos abrigam apenas uma parte da família dosassentados. Há, no entanto, uma variação na evasão de filhos e filhas;mesmo assim, aproximadamente metade das famílias entrevistadas reuniatoda a família no lote. Por outro lado, há uma boa proporção de famílias commuitos moradores. Em Promissão, a média de moradores no assentamentomostrou-se superior à media de moradores por domicílio no município17;quase metade das famílias assentadas abrigam seis moradores ou mais,havendo, em média, seis moradores por lote.

Esses dados mostram que o acesso a terra constitui-se simultaneamente emum eventual acesso à habitação para os filhos que se casam. O assentamen-to torna-se, em muitos casos, local de moradia para os filhos de assentadosque se empregam em diversas atividades, sejam elas rurais ou urbanas, den-tro ou fora do assentamento, no lote ou fora dele; predomina o assalariamen-

15 - Esses dados são similares ao panorama traçado pelo Censo dos Assentamentos de Reforma Agrária noBrasil (Schmidt, Marinho e Rosa, 1998); em alguns Estados do Nordeste, o analfabetismo compreendia algoentre 40 a 50% dos beneficiários titulares de lote. As estatísticas sobre a escolarização dos cônjuges, em todoo país, não diferem substancialmente das que se apresentam para os titulares.

16 - Brandão Lopes, 1995; Leone, 1994.17 Em 1991, conforme dados do IBGE, a média no Estado de São Paulo era a de 4,21 pessoas por domicíliona zona rural; na zona urbana era de 3,87. No Brasil, a média era de 4,69 na zona rural e 4,06 na zonaurbana.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 109: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 217ABRA - REFORMA AGRÁRIA 216

to temporário, instável e eventual para os homens, e o emprego em serviçosdomésticos para as mulheres. O lote transforma-se, assim, em um refúgiopara os filhos já em idade economicamente ativa, sobretudo pela disponibili-dade de habitação, alimentação, cultura e sociabilidade.

Saúde: Alguns assentamentos contam com postos de saúde em seu interior,como ocorre no Bela Vista do Chibarro e no São Bento. Outros, como o EstrelaD´Alva e o Santa Clara, utilizavam o posto de saúde de assentamentos vizinhos(o da Fazenda São Bento). Em Sumaré, os assentados contam apenas comserviços públicos de saúde no centro urbano. Na mesma situação encontrava-se o Assentamento Fazenda Reunidas, onde os assentados precisavam se deslo-car para o município para receber atendimento médico (com exceção de umade suas agrovilas, que conta com um atendimento parcial e intermitente).

Há uma nítida precariedade no atendimento médico-hospitalar na maioriados assentamentos. Além da elevada concentração demográfica em algunsassentamentos, há ainda uma grande incidência de doenças crônicas, o quereforça a necessidade dos postos de saúde nos assentamentos. No entanto,mesmo em assentamentos com grandes contingentes populacionais, essademanda não é atendida.

Alimentação: A percepção dos assentados das áreas estudadas em 1998com relação à alimentação, em comparação com sua situação anterior, erade melhoria na maior parte dos casos (72%), contra um pequeno grupo defamílias (2,5%) que estimam ter piorado sua alimentação no assentamento;cerca de 20% das famílias consideram que não houve modificações substan-ciais em sua alimentação. A manutenção e recriação de tradicionais práticasprodutivas visando a obtenção de alimentos para consumo familiar continuaapresentando grande importância e ajudam a explicar essa percepção pre-dominantemente favorável em relação a alimentação em assentamentos noEstado de São Paulo18.

d) Composição da Rd) Composição da Renda Fenda Familiar e Integração Econômicaamiliar e Integração Econômica

A produção agropecuária constituía a principal atividade econômica reali-zada pelos assentados; poucos titulares de lote atuavam como assalariadospermanentes fora dos lotes. Assim, os assentamentos têm permitido a retira-da de trabalhadores rurais do mercado de trabalho, sobretudo dos titularesde lote. Na média estadual, apenas 1,6% dos titulares entrevistados vinham

atuando como assalariados, sendo que em vários assentamentos isso aparecede forma bastante eventual e esporádica.

Vimos que os assentados não eram necessariamente desempregados antesde entrar na luta pela terra: ao contrário, tinham emprego, muitas vezes urba-no, de baixa remuneração. Ao comparar a renda obtida antes do assentamen-to com a obtida na situação atual, os assentados entrevistados expressam aseguinte estimativa: cerca de 58% afirmaram que houve uma melhoria em seupoder de compra, contra apenas 16% que acreditavam ter ocorrido o con-trário; 26% acreditavam que permaneceram com o mesmo poder aquisitivo.

Uma análise dos dados da pesquisa sobre a composição da renda mon-etária nos assentamentos pesquisados indica que, em termos médios, osrendimentos auferidos no interior dos lotes eram bem superiores aos obtidosfora dele. As fontes de renda oriundas do lote foram mais de cinco vezessuperior às fontes de renda geradas fora dele. A renda por lote atingiu amédia ponderada (conforme a densidade populacional de cada assentamen-to) de US$ 228 mensais por família, enquanto a renda fora do lote ficou emUS$ 38, totalizando US$ 26619.

Dados sobre a renda monetária obtida a partir de atividades realizadas nointerior do lote mostram que especificamente a produção agrícola é que temmaior importância para as famílias assentadas; no entanto, a renda agrícolamensal média de US$ 167 por lote inclui variações expressivas, tendo comopiso o Assentamento Estrela D´Alva, com renda agrícola líquida de US$ 180,em média; e, como teto, o Assentamento de Sumaré, cuja renda agrícolachegou à média de US$ 246 por lote.

As fontes de renda monetária obtidas fora do lote têm importância menorque as fontes de renda no interior do lote. A renda previdenciária atingiu acifra média de US$ 15, seguida de perto pelos salários recebidos por ativi-dades exercidas fora do lote, cuja média ficou em US$ 14. Observou-se ain-da que o trabalho remunerado fora do assentamento tem maior importânciarelativa tanto entre as famílias com menor montante total de rendimentos mo-netários como entre as famílias em situação oposta, com maior rendimento.

Esse conjunto de informações sobre a geração e distribuição de renda nointerior dos assentamentos ganha importância diante do contexto de desem-prego e subemprego em todo o Estado e que, em algumas regiões, como a

18 - Para uma análise do debate sobre segurança alimentar e desenvolvimento rural, com dados nutricionaiscoletados em pesquisa de campo no Assentamento Fazenda Reunidas, ver Norder(1998, 2004).

19 - Para fazer a conversão dos valores em reais para dólar, utilizamos nesta seção a cotação de US$ 1,00para R$ 1,20, vigente durante a realização da pesquisa, em 1998.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 110: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 219ABRA - REFORMA AGRÁRIA 218

que se insere Teodoro Sampaio, manifesta-se de forma ainda mais intensa.Mais de 35% das famílias obtiveram uma produção agropecuária cuja comer-cialização foi superior a dois salários-mínimos mensais. No entanto, para30% das famílias, a produção agropecuária não foi suficiente para atingiruma renda monetária familiar superior a meio salário-mínimo mensal, per-manecendo, assim, em situação de dependência em relação à obtenção derecursos externos (a aposentadoria ou o trabalho assalariado fora do lote,principalmente). Há, mais uma vez, uma importante diversidade entre osassentamentos, com destaque para a Fazenda Estrela D´Alva, com um eleva-do percentual de famílias com renda agropecuária de no máximo meiosalário-mínimo mensal.

A integração das famílias assentadas ao mercado de trabalho irá variarconforme as características do mercado de trabalho local e regional. Assim,a equação pluriatividade-proletarização no Assentamento de Sumaré, situadoem uma região metropolitana com mais de dois milhões de habitantes, é bas-tante distinta daquela observada no Pontal do Paranapanema, onde as ativi-dades agrícolas no interior do lote são comparativamente mais importantespara o conjunto familiar. Os jovens de 10 a 16 anos com dedicação de até24 horas semanais ao trabalho alcançam um percentual de 10 a 15% do tra-balho agrícola realizado no lote, enquanto em Sumaré esse índice não chegaa 5%. Por outro lado, os jovens com idade entre 17 a 25 anos em Sumaréapresentam maior dedicação em tempo integral no interior do lote, ou seja,mesmo em áreas metropolitanas, a atividade agrícola permanece como fontede renda e absorção de trabalho entre as famílias assentadas.

A maior parte dos produtos adquiridos pelas famílias é comercializada nopróprio município, o que reforça a avaliação de um impacto favorável dosassentamentos na dinâmica econômica regional, principalmente dospequenos municípios. Isso é reconhecido por atores sociais de vários pontosdo Estado. Além da formação de novos grupos de consumidores na econo-mia local, há ainda o reconhecimento por agentes econômicos presentes noPontal do Paranapanema, por exemplo, de que os desdobramentos do assen-tamento na dinamização econômica são significativos. Segundo o Presidenteda Associação Comercial de Teodoro Sampaio,

Nós consideramos que a reforma agrária no Pontal foi a indús-tria que nunca chegou aqui... Hoje a gente analisa que foi bom,está sendo bom e a gente espera que continue a desenvolver...informalmente, entre os comerciantes, achamos que 40% donovo movimento econômico gira em torno da reforma agrária20.

Nos três assentamentos pesquisados no Pontal do Paranapanema, asaquisições voltadas para a produção agropecuária e para o consumo fami-liar não se realizam exclusivamente no município, mas se espalham pelaregião e pelo Estado. Ainda assim, cerca de 30 a 50% do consumo dasfamílias assentadas era efetuado no comércio do município. Nos demaisassentamentos pesquisados no Estado, as relações com o comércio local sãobastante intensas. Sumaré e Araraquara são municípios de porte médio, deimportância regional, que oferecem uma ampla rede comercial e deprestações de serviço, na qual os assentamentos se inserem e se diluem. Jáem Promissão, município de pequeno porte e que tem no assentamentoFazenda Reunidas cerca de 10% da população local, as relações de trocaentre o assentamento e o comércio local são de considerável importânciaeconômica.

Um aspecto que chama a atenção é a ausência ou reduzida difusão deatividades comerciais no interior dos assentamentos. Vários fatores estão naorigem de fenômeno, que não será analisado aqui; de qualquer forma, valeregistrar que nos anos 80 e 90 o INCRA proibia e reprimia a realização dealgumas atividades comerciais no interior dos assentamentos, contrariando asperspectivas de fortalecimento da agricultura familiar através de atividadesnão-agrícolas e ocupações pluriativas. Assim, parte das oportunidades com-erciais ou de prestação de serviços acabou sendo absorvida por outros seg-mentos da população local. A interdição estatal de atividades não-agrícolasfoi amplamente criticada por assentados e mesmo por técnicos do governoque atuavam nos assentamentos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As várias frentes de disputas agrárias abertas pelos movimentos populares -MST, CPT, sindicatos, grupos independentes - no Estado de São Paulo a par-tir do início dos anos 80 levaram à implementação de programas de assen-tamento que repercutiram tanto na uma modificação dos indicadoresfundiários, sociais e econômicos de algumas localidades (Pontal doParanapanema e Promissão) como no aparecimento de novos atores políticose culturais em outras (Araraquara e Sumaré); têm levado também a umadiversificação da atividade agrícola, tanto no que se refere ao tipo de produ-to como ao tipo de produtor.

20 - Entrevista concedida em 1998 por Antonio Celestino dos Santos Neto, Presidente da AssociaçãoComercial de Teodoro Sampaio -favor de facilitar o no me da pessoa que fez a entrevista, a data e a locali-dade onde ela foi feita.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 111: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 221ABRA - REFORMA AGRÁRIA 220

Trata-se, portanto, da geração de diversidade social, técnica, política,econômica e cultural de grande significado para uma região do país marca-da por uma forte padronização agroindustrial do meio rural. Os assentamen-tos se constituem, igualmente, de acordo com os dados sobre a percepçãodos próprios assentados, como uma fonte de melhoria das condições ali-mentares, habitacionais e culturais. Assim, como vimos, cerca de 80% afir-maram ter melhores condições habitacionais no assentamento do que ante-riormente; 72% estimam ter melhor alimentação e 58% avaliam que pas-saram a ter maior poder aquisitivo - dados que ganham especial relevo selevarmos em conta a idade avançada e a baixa escolarização que predomi-na entre os titulares de lotes.

Todavia, se, por um lado, os assentamentos contribuem para a modificaçãodas regiões e localidades nas quais se inserem, por outro, são também per-meados pelas suas características e condições. Há diferentes formas de inte-gração dos assentamentos nas dinâmicas regionais. Os estudos de caso emquatro regiões do Estado de São Paulo, apresentados acima, nos permitemconhecer algumas das características deste diferenciado processo.

Nos Assentamentos de Sumaré, ligado a diversas organizações (PT,CUT/Rural, MST e outras), há uma atuação política bastante ampla e intensade uma parte dos assentados. Há uma notável criação de vinculações dosassentados com sindicatos, movimentos sociais, organizações não-governa-mentais, universidades, escolas de primeiro e segundo graus, além da parti-cipação direta na administração de um município com mais de 200 mil habi-tantes, em uma das maiores regiões metropolitanas do país. Além disso, a in-serção de inúmeras reportagens jornalistas, na imprensa escrita, falada e tele-visiva sobre os assentamentos de Sumaré, desde a época dos acampamen-tos, na primeira metade dos anos 80, até os dias atuais, permitiram difundira proposta de reforma agrária não apenas na região metropolitana de Cam-pinas, mas também, em várias ocasiões, em todo o país.

Um segundo caso é do Assentamento Fazenda Reunidas, cuja origem políti-ca está ligada a um grupo organizado pela CPT que passou a reivindicar aárea; posteriormente, houve a chegada de um grupo do MST, vindo da regiãode Campinas/Sumaré, mas a falta de articulação entre as lideranças dosacampamentos fez surgir uma forte rivalidade entre os dois grupos. Após oestabelecimento dos dois acampamentos e a desapropriação da área, sindi-catos de trabalhadores rurais de vários municípios da região, com o apoio desuas respectivas prefeituras, passam a convocar os interessados no processode seleção das famílias para o assentamento, em 1987.

O município de Promissão possuía em 1991um população de pouco me-nos que 30 mil pessoas, das quais mais de 10% viviam no assentamento. Alio impacto do assentamento de 629 famílias foi, primeiramente, demográfico.Os resultados na economia local não poderiam deixar de ser percebidos pelapopulação e pelos agentes econômicos e políticos locais. Entretanto, foi so-mente em 2004 que um assentado foi, pela primeira vez, eleito vereador nomunicípio, pelo Partido dos Trabalhadores. Até então, os assentados não ti-veram qualquer participação direta na administração municipal, como vinhaocorrendo em Sumaré.

Em Araraquara, no Assentamento Bela Vista do Chibarro, predomina umoutro cenário: as famílias assentadas não apresentam a mesma abrangênciade ação política que aquela experimentada em Sumaré, nem o impactodemográfico ocorrido em Promissão. A vinculação histórica da maioria dosassentados ao sindicalismo co-existe com uma parte das famílias ligadas aoMST vindas de Campinas, Sumaré e Promissão, onde não haviam sido assen-tadas devido aos critérios de seleção utilizados.

A presença de um assentamento envolvendo centenas de famílias no inte-rior do principal pólo sucro-alcooleiro do Estado de São Paulo, no qual sãoempregados milhares de trabalhadores rurais assalariados, tornou-se um im-portante ícone de resistência ao modelo de agricultura patronal e agroindus-trial vigente na região - e de importante significado para o movimento sindi-cal. Esta experiência mostrava que o sindicalismo também se constituía comoum ator político na defesa da reforma agrária e que, além da cana-de-açú-car e da laranja, era possível praticar uma produção agropecuária diversifi-cada através do fortalecimento da agricultura familiar.

Um dos mais relevantes embates neste assentamento gira em torno da adesãodos assentados à produção de cana-de-açúcar, efetuado notadamente combase no arrendamento da terra às usinas da região. As opiniões dos assenta-dos, técnicos e especialistas no assunto são divergentes com relação a isso.Alguns argumentam que os assentados não podem prescindir do aproveitamen-to das oportunidades econômicas e produtivas constituídas em seu entorno,ainda que de forma dependente dos circuitos agroindustriais. Outros insistemna necessidade de construção de formas alternativas de agricultura, ou seja, deuma diversificação técnica e social da agricultura, visando seja o aproveitamen-to do potencial agroecológico de cada parcela de terra e das oportunidadeseconômicas e culturais de cada localidade, seja na integração a circuitos maisintensivos em trabalho, como a olericultura e a fruticultura, por exemplo.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexões

Ensaios e Debates

Page 112: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 223ABRA - REFORMA AGRÁRIA 222

No Pontal do Paranapanema, onde predomina a pecuária de corte ultra-ex-tensiva e um dos menores índices de modernização da agropecuária no Esta-do, os assentados, preponderantemente ligados ao MST, encontram áreasambientalmente degradadas, com baixa fertilidade do solo e maior distânciacom relação aos canais de distribuição de produtos. Em comparação com asoutras três regiões pesquisadas, há menor geração de renda e as condiçõessociais são mais precárias. Mesmo assim, o elevado número de assentadosfaz com que as políticas governamentais, notadamente durante a fase de im-plementação dos projetos, tenha contribuído para reverter a situação de es-tagnação econômica da região.

As políticas publicas (principalmente aquelas voltadas para habitação, saú-de, educação, transporte e eletrificação) constituem-se em elementos-chavepara uma análise dos impactos dos assentamentos sobre as localidades e re-giões em que se inserem, já que representam não apenas a efetivação de dire-itos que ampliam qualidade de vida dos assentados, mas permitem, indireta-mente, a ocupação, no setor público, de profissionais com formações técnicasdiversas (técnicos agrícolas, agrônomos, agentes de saúde, professores, etc.).

Vale salientar que a produção agropecuária é a atividade econômica demaior importância para as famílias assentadas nas quatro regiões pesquisa-das - e que, por isso, as políticas creditícias adquirem importância centralpara o desenvolvimento dos assentamentos e das regiões onde se inserem.A produção agropecuária desenvolvida em cada assentamento pode ser rea-lizada através de diversas matrizes tecnológicas, o que leva a uma grandeoscilação na composição da renda, na geração de empregos (diretos e indi-retos) e nas estratégias de reprodução social. Além disso, leva também aoestabelecimento de diferentes relações com agentes econômicos e órgãosgovernamentais.

As medidas estatais voltadas para o fortalecimento da agropecuária emvários assentamentos foram em grande medida direcionadas para os produ-tos básicos da modernização agrícola predominante no Estado: milho, cana-de-açúcar e algodão. Temos com isso a produção de mercadorias em grandeescala, com forte utilização de insumos de origem agroindustrial e elevadocusto financeiro, além de pequena absorção de trabalho por unidade de áreae de produto. Ademais, diante dos precários arranjos institucionais formula-dos para viabilizar essa integração específica com os atores e canais de mo-dernização agrícola, muitas famílias acabaram por entrar em situação de ina-dimplência, em um modelo produtivo que requer ampla mobilização de re-cursos financeiros e comerciais21.

Assim, é preciso reavaliar em que medida o sistema de produçãoagropecuária que vem sendo priorizado para o sistema de créditos permiteque esse impacto possa ser reproduzido, ampliado e renovado no longoprazo. Diante das condições institucionais vigentes, é possível afirmar que,ainda os impactos (internos e externos) dos assentamentos já possam favore-cer o desenvolvimento sócio-econômico local e regional, há um enormepotencial por ser aproveitado. Esse potencial já vem sendo desenvolvido pelosassentados apesar do limitado apoio tecnológico e financeiro das agênciasestatais. As políticas de financiamento da diversificação da produção, os pro-gramas de crédito de custeio e as políticas sociais (sobretudo as de habitação)demonstram muita lentidão, ineficácia, instabilidade, descontinuidade e,sobretudo, pouca proximidade com os projetos produtivos formulados pelospróprios assentados.

A análise das linhas de crédito é um tema de grande relevância governa-mental para a compreensão dos impactos dos assentamentos nas regiões emque se inserem. Em Promissão e no Pontal do Paranapanema, a liberação decréditos de financiamento representou o ingresso de um volume de recursosclaramente perceptível de recursos financeiros nos municípios na fase deimplementação, quando há um maior aporte de investimentos públicos nosassentamentos. Os assentamentos, ao receberem financiamentos para ocusteio da safra, financiamentos para a aquisição de máquinas, equipamen-tos e instalações produtivas, créditos para habitação e apoio de diversosprofissionais da agricultura, educação, saúde, transporte, contribuem paraque toda a economia local ganhe um novo impulso.

Além disso, boa parcela dos assentados transforma-se, mediante diferen-ciadas estratégias, em agricultores bem estabelecidos, com elevada pro-dução,eficiência técnica e rentabilidade. Isso nos faz colocar algumasquestões com relação ao teor e ao papel das políticas governamentais. Nota-se que diversificação produtiva, a múltipla utilização do solo e a criação denovas redes sócio-técnicas e comerciais alternativas, visando um aprofunda-mento da conexão entre os assentados e suas localidades, foram esboçadase experimentadas nos assentamentos. Com isso, emergem relações sociais,arranjos institucionais e processos de inovação econômica e tecnológica queampliam a diversidade de atores sociais e processos produtivos - e, destaforma, demonstram a abrangência da contribuição dos movimentos sociais eassentamentos para a redefinição da dinâmica sócio-econômica local eregional em um Estado marcado por uma elevada concentração geográficae social em seu processo de transformação industrial e agropecuário.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexõesEnsaios e Debates

Page 113: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 225ABRA - REFORMA AGRÁRIA 224

REFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS

Barbosa, Maria Valéria e Sérgio Pereira Leite (1990), Reformaagrária em terras públicas: contradições de um governodemocrático. Jaboticabal: Universidade Estadual Paulista;Faculdade de Ciências Agrárias. Barone, Luiz Antonio (2002), Conflito e cooperação: o jogo dasracionalidades sociais e o ç.;campo político num assentamentode reforma agrária. Araraquara: Universidade Estadual Paulista:Faculdade de Ciências e Letras, Tese de Doutorado.Bergamasco, Sonia Maria Pereira, Vera Lúcia Botta Ferrante eTerezinha D´Aquino (1991), Assentamentos rurais em SãoPaulo: a roda viva de seu passado/presente. Ciências SociaisHoje, São Paulo: Vértice; Anpocs, pp. 253-280. Brandão Lopes, Juarez (1995), Política social: subsídios estatís-ticos sobre a pobreza e acesso a programas sociais no Brasil.Estudos Avançados, vol. 9, n. 24, pp. 141-156.Faria, Vilmar Evangelista (1991), Cinqüenta anos de urbaniza-ção no Brasil: tendências e perspectivas. Novos Estudos CEBRAP,n. 29, pp. 98-119. Fernandes, Bernardo Mançano (1998), A luta pela terra noPontal do Paranapanema. Araraquara: Projeto de Intercâmbioem Pesquisa Social em Agricultura, Encontro Regional. Fernandes, Bernardo Mançano (1996), MST: formação e territo-rialização. São Paulo: Hucitec. Hoffmann, Rodolfo; Graziano da Silva, José (1999) O CensoAgropecuário de 1995-96 e a distribuição da posse da terra noBrasil. XXXVII Congresso Brasileiro de Economia e SociologiaRural. SOBER. Foz do Iguaçu, 1999.Kageyama, Ângela & Leone, Eugênia Troncoso (1999), Umatipologia dos municípios paulistas com base em indicadoressociodemográficos. Textos para discussão, n. 66..Campinas:Instituto de Economia, Universidade Estadual de Londrina, 52p.Leone, Eugênia Troncoso (1994), Pobreza e trabalho no Brasil:análise das condições de vida e ocupação das famílias agríco-las nos anos 80. Universidade Estadual de Campinas: Tese deDoutoramento.Medeiros, Leonilde Servolo e Leite, Sérgio Pereira, org. (2004),Assentamentos rurais: mudança social e dinâmica regional. Riode Janeiro: Mauad. Norder, Luiz Antonio Cabello (2004), Políticas de Assentamento

e Localidade: os desafios da reconstituição do trabalho rural noBrasil. Tese de Doutorado: Universidade de Wageningen.Norder, Luiz Antonio Cabello (1998), A construção da segu-rança alimentar em assentamentos rurais: questões, contextos emétodos, Caderno de Debates, Revista do Núcleo de Estudos ePesquisas em Alimentação, Campinas: NEPA/Unicamp, vol. 5.p. 41-58Santos, Milton (1988), Metamorfoses do espaço habitado. SãoPaulo: Paz e Terra.Schmidt Benício, Marinho, Danilo Nolasco e Rosa, Sueli Couto(1998), Os assentamentos de reforma agrária no Brasil.Brasília: Ed. UnB (Universidade de Brasília). Tolentino, Célia Aparecida Ferreira (1990), A revisão agráriapaulista: a proposta de modernização do campo do GovernoCarvalho Pinto. Itaguaí: Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro; Curso de Pós-Graduação em DesenvolvimentoAgrícola, Dissertação de Mestrado.

Assentamentos e Assentados no Estado de São Paulo:dos primeiros debates as atuais reflexõesEnsaios e Debates

Page 114: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 227

Olhos de Papel:

A cobertura do jornal O Globo

sobre a luta pela terra no

Sertão Carioca (1951-1964)

Leonardo Soares dos Santos*

O tema deste artigo consiste na forma com que um jornal de grandevendagem e de considerável peso político no cenário carioca procurou tem-atizar os conflitos de terra e a luta dos pequenos lavradores do SertãoCarioca durante os anos 50 e 60. Partindo de uma análise das contribuiçõesde Antonio Gramsci sobre a questão do jornalismo, nossa principal preocu-pação se voltou para o esclarecimento das seguintes questões: a caracteriza-ção política e social do jornal O Globo, a maneira como os agentes envolvi-dos em tais disputas são enquadrados, as considerações a respeito da legi-timidade de suas reivindicações, e, a tentativa do jornal em exercer certa for-ma de controle sobre o movimento daqueles pequenos lavradores.

GRAMSCI E A PROBLEMÁTICA DO JORNALISMO

Para Carlos Nelson Coutinho, Antônio Gramsci teria "ampliado" a teoria mar-xista clássica do Estado, ao afirmar - baseando-se na experiência histórica domundo ocidental - que o processo de desenvolvimento capitalista teria engen-drado a criação no interior do Estado, de uma esfera social nova, dotada deleis e de funções relativamente autônomas e específicas e de uma dimensãomaterial própria. Essa esfera seria a "sociedade civil".1 Sua constituição aponta-ria conseqüentemente para o desenvolvimento de um processo de ocidentaliza-ção, pelo qual uma sociedade de formação "ocidental" se diferenciaria da deformação "oriental". Nesta há uma relação extremamente desproporcional emfavor de um Estado "que é tudo" em detrimento de uma sociedade civil "primi-tiva" e "gelatinosa".2 Neste tipo de formação social, o exercício de dominação

* Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense1 - COUTINHO, Carlos. Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro:DP&A, 2000. pp. 15-6.2 - GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere - volume 2. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000. p. 262.

Page 115: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 229ABRA - REFORMA AGRÁRIA 228

por meio do Estado tenderia a privilegiar mecanismos de coerção apoiados norecurso extensivo da força. Realidade bem diferente é o que encontraríamos nassociedades "ocidentais", nas quais haveria uma justa relação entre o Estado, quese apresentaria como uma espécie de "trincheira avançada", e a sociedade civil,que se constitui neste momento como uma "robusta cadeia de casamatas e for-talezas".3 Não que nesta forma social os mecanismos de coerção direta deixemde existir, que as classes dominantes não mais se sirvam da aplicação da forçapara fazer valer seus interesses; só que a dominação teria que se dar tambéme fundamentalmente por meio de relações sociais de caráter político-ideológi-co: é necessário que no exercício da dominação a classe dominante seja capazde consolidar a hegemonia que, completando os efeitos da coerção direta,assegure o consenso dos dominados.4

Numa sociedade "ocidental", isto é, numa sociedade civil complexificada, aconstrução desse consenso se dá por meio daquilo que Gramsci denominade "aparelhos 'privados' de hegemonia". Eles constituem, neste momento es-pecífico, a "sociedade civil", que é o espaço intermediário entre o Estado quediz representar o interesse público e os indivíduos atomizados do mundo daprodução. Verdadeiros portadores materiais de cultura e de ideologias, tais"aparelhos" se corporificariam num conjunto de organizações e instituiçõescomo sindicatos, partidos políticos, jornais, revistas, TVs, rádios, escolas, fun-dações, sociedades literárias, grupos teatrais, etc. A "organização da cultura"seria esse sistema de instituições, cuja função primordial seria concretizar opapel da cultura na reprodução ou transformação da sociedade como um to-do. A luta de classes atravessaria tanto o Estado quanto este sistema de "orga-nização da cultura", este "complexo formidável de trincheiras e fortificações",que é ele próprio um campo de lutas entre várias concepções de mundo.5 Oestabelecimento do controle sobre os meios de produção econômica não po-de mais ser pensado e vivido sem que se leve em consideração a necessidadeda imposição de uma hegemonia sobre aquele sistema cultural.

Em suma: numa sociedade "ocidental" o poder de uma classe não pode sedar apenas pelo domínio - baseado puramente na força - dos meios de pro-dução econômica. Seu domínio sobre a ordem social só é possível se aomesmo tempo consegue estabelecer as bases de uma direção ideológico-cul-tural que apresente e realize aquela dominação, fundamentalmente históricae mutável, como algo natural e inquestionável.

De todas essas "trincheiras e fortificações" mencionadas, a escolhida pornós como objeto de estudo a ser desenvolvido neste trabalho diz respeito àatividade mais singular que um jornal pode desenvolver - o jornalismo.

Gramsci entende que, ao se estudar o jornalismo, devemos necessariamentepartir do pressuposto de que ele é, em linhas gerais, a apresentação de

"um agrupamento cultural (em sentido lato) mais ou menoshomogêneo, de um certo tipo, de um certo nível e, particular-mente, com uma certa orientação geral; e que se pretenda tomartal agrupamento como base para construir um edifício culturalcompleto, autárquico, começando precisamente pela...língua,isto é, pelo meio de expressão e de contato recíproco."6

Teríamos portanto um jornal ou um "centro homogêneo" que procura di-fundir um modo de agir e de pensar homogêneos - ou, segundo o próprioGramsci, uma "consciência coletiva homogênea" - conforme uma certa "o-rientação geral". Essa "orientação", quando referida à atividade publicística deum jornal, refletiria a "concepção integral de mundo" que um dado grupo pre-tende difundir. É preciso ainda dizer que, ao se lançar na construção daque-le "edifício", o jornal visa em primeiro lugar, satisfazer uma certa categoria deseu público e, em segundo, criar e desenvolver esta necessidade e gerar seupúblico e ampliar progressivamente sua área de atuação.

Nota Gramsci que tradicionalmente os jornais eram divididos em dois tiposde gênero: o de informação e o de opinião. O primeiro, caracterizaria afunção cumprida por um jornal sem nenhum vínculo partidário, ou seja, porum jornal "sem partido". O segundo, ao contrário, seria sempre realizado peloórgão oficial de partido.7

No entanto, tendo em conta alguns casos concretos, Gramsci nos leva aquestionar se tal distinção é realmente eficaz. Na Itália por exemplo, os jor-nais cumpriam as duas funções - informação e direção política, além de cul-tura política, literária, científica etc. Ressaltando que os jornais cumpriam es-sas funções principalmente em razão da inexistência de partido políticos cen-tralizados na Itália.8 Mas o caso francês parece não deixar dúvidas. Gramscicomenta que lá as funções de opinião dependiam diretamente de partidosque tinham uma "aparência" de imparcialidade.9 Nenhuma informação jorna-

3 - Ibidem.4 - COUTINHO, Carlos Nelson. op. cit., p.16.5 - GRAMSCI, Antônio. Op. cit., 79.

6 - idem, p.197.7 - idem, p.199.8 - idem, p.218.9 - ibidem

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 116: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 231ABRA - REFORMA AGRÁRIA 230

lística, fosse de qual fosse o jornal, era dada de forma inocente ou desinteres-sada. A forma como se veiculava uma informação sempre respondia aos prin-cípios ou expectativas de determinado grupo sócio-político.

Há também a possibilidade de diferenciarmos os jornais como sendo detipo "comercial" de um lado, e "doutrinário" do outro. O que parece distinguirum do outro é a relação de proporção entre dois elementos que constituema atividade publicística de todo jornal: a)difusão de uma concepção demundo ou de princípios político-ideológicos, e b)busca por sucessivos lucroseconômicos. No primeiro tipo, busca-se predispor o leitor a aplicar as doutri-nas partidárias divulgadas pelo jornal. No segundo, visa-se a incutir no leitorde que o jornal é artigo de primeira necessidade, a ser consumido incessan-temente. Num jornal "doutrinário" o primeiro elemento seria o fim de sua ativi-dade. No jornal "comercial" o que prevalece é o segundo. Mas na prática, aênfase ideológica de um jornal "comercial" também se evidencia na medidaem que o jornal se posiciona em favor dos princípios da ordem social vigente,pelo simples fato de que a conquista do lucro econômico, ao qual toda suaatividade é voltada, só encontra possibilidade de realização nos limites e pos-sibilidades fornecidos por esta mesma ordem.

Mas se continuarmos caminhando mais um pouco, encontraremos nas con-siderações de Gramsci outros pontos em comum entre esses dois tipos de jor-nal nos levam a concluir que tal distinção não pode ser tratada de forma tãorígida: em primeiro lugar, todo jornal tem de ter um plano comercial, até porqueo problema de qualquer jornal, sendo ele "doutrinário" ou "comercial", "é o deassegurar uma venda estável (se possível em contínuo incremento)".10 Em segun-do, seja o jornal que ambiciona capital político seja aquele que tenha comosuprema ambição angariar capital econômico, todos eles têm como elementofundamental para seu êxito ou fracasso o seu perfil ideológico, "isto é, o fato deque satisfaça ou não determinadas necessidades político-intelectuais".11

Em suma: sendo um jornal "doutrinário" ou "comercial", é preciso que nuncase esqueça que ele é sempre e necessariamente, no quadro de umasociedade capitalista moderna, um "aparelho privado de hegemonia",12 ou

em outras palavras, ele sempre atua como um partido político.

Mas se todo jornal busca consolidar uma determinada "concepção integralde mundo" criando e expandindo uma opinião pública, é certo também queeles não o fazem de igual maneira. Pois como o próprio Gramsci diz, tal ini-ciativa é feita em função de uma determinada "orientação geral".

Cada tipo de jornal se voltará para camadas sociais específicas, ou paracerta categoria no interior de cada uma dessas camadas. A diferença entrecada tipo de jornal também se expressa na atitude que mantém com seupúblico. Gramsci menciona como "atitudes" possíveis de serem adotadas porum jornal a "demagógico-comercial" e a "educativo-didática".13 Podemosincluir aquela atitude que combina elementos comerciais e ético-políticos,que é a que geralmente encontramos nos jornais da "grande imprensa". Deacordo com a atitude junto ao público, o jornal desenvolve sua posição emrelação ao "senso comum" ou "bom senso". O tipo geral de imprensa, apon-ta Gramsci, expressa uma adesão completa com a reprodução do "sensocomum", "já que sua finalidade é modificar a opinião média de uma determi-nada sociedade, criticando, sugerindo, ironizando, corrigindo, renovando e,em última instância, introduzindo 'novos lugares-comuns'".14 Neste ponto éposto à prova a capacidade que um jornal tem de criar uma linguagemprópria, de participar do

"desenvolvimento geral de uma determinada língua nacional,introduzindo termos novos, enriquecendo de conteúdo novostermos já em uso, criando metáforas, servindo-se de nomeshistóricos para facilitar a compreensão e o julgamento de deter-minadas situações atuais, etc..."15

A pesquisa que desenvolvemos sobre a luta pela terra no Sertão Cariocadurante os anos de 1945 e 1964, se apoiou em informações presentes nosregistros realizados por jornais de "pequena" e "grande" imprensa sobre aque-les eventos. Importante frisar que a pesquisa sobre esses jornais se fez com oapoio em algumas precauções metodológicas e critérios de interpretação. Portrás ou pelas manchetes e reportagens sobre os conflitos de terra no SertãoCarioca tem-se a configuração de conflitos e disputas políticas em torno deprojetos e concepções de mundo. Dependendo da forma como se veiculavae dependendo do tipo de leitor a quem se dirigia, uma notícia dando conta

10 - idem, p.249.11 - ibidem.12 - Há também um terceiro tipo de jornal ao qual Gramsci se refere e que englobaria os jornais locais, cujatônica seria a inexistência de interesse pela vida internacional e quase nenhum pela vida nacional, "salvoenquanto ligada aos interesses locais, sobretudo eleitorais", porém, tendo "todo o interesse pela vida local,mesmo pelos mexericos e pelas miudezas". Além de conceder grande "importância para a polêmica pessoal(de caráter galhofeiro e provinciano: fazer o adversário parecer estúpido, ridículo, desonesto, etc". Estas obser-vações são muito importantes na medida em que o perfil acima desenhado, que a priori seria exclusivo dospequenos jornais locais do interior, se manteve em muitos jornais urbanos, principalmente aqueles tidoscomo"jornais populares", durante as décadas de 1940 e 1950.

13 - idem, p.243.14 - idem, p.209.15 - idem, p. 202.

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 117: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 233ABRA - REFORMA AGRÁRIA 232

dos conflitos pela terra no Sertão Carioca era transmitida de forma a mostraruma "ocupação" como uma "invasão", um "protesto" como uma "agitação",um simples ato de contestação como a expressão da "revolução anti-feudal eantiimperialista", um clima de insatisfação e revolta como um "prato esplêndi-do para os comunistas", ou simplesmente ignorava-se qualquer um desseseventos, o que não deixava de ser uma forma de se posicionar politicamentefrente a eles. A tematização da luta pela terra no Sertão Carioca não era ape-nas a elaboração de fatos brutos da vida cotidiana em fato jornalístico, poisque este mesmo processo de elaboração era a expressão do compromisso deseus protagonistas (os jornais) com grupos, correntes ou tendências políticase suas respectivas doutrinas, concepções e esquemas ideológicos. Sendo ojornal um "aparelho privado de hegemonia", cada uma dos manchetes, tex-tos e imagens que veicula eram instrumentos voltados, simultaneamente, àdefesa de uma determinada concepção de mundo e ao combate de outras.

Gramsci nos permite enxergar as páginas do jornal como um espaço demanifestação da luta de classes que permeia a sociedade civil, sob a formada luta de idéias. Ao sumariar os principais aspectos da análise de Gramscisobre o jornalismo, pensamos que um estudo que se apóie em jornais devater como ponto de partida esclarecer os seguintes pontos: 1)o tipo sócio-político do jornal; 2) alinhamento com grupos políticos; 3) o público ao qualele se dirige; 4) a leitura e a linguagem que ele elabora com relação aosproblemas e conflitos do mundo social.

É o que procuraremos fazer a seguir tomando como estudo de caso acobertura realizada pelo jornal O Globo sobre a luta pela terra na zona ruralda cidade do Rio de Janeiro no período 1951-1964.

O GLOBO: NOTÍCIA, HEGEMONIA E CONTROLE

Jornal voltado para a classe média carioca, principalmente aquela queresidia na Zona Sul, era - e ainda é - uma autêntica empresa, um jornal mo-derno, aquele em que poderíamos dizer que o verdadeiro diretor era o dire-tor administrativo e não o diretor da redação. Mas o fato de funcionar comouma empresa não significa que não pudesse ter uma atuação, frente às ques-tões ideológicas e políticas da conjuntura em que estava inserida, igual ou atémaior que um jornal-partido. O próprio Gramsci destaca que uma empresajornalística editorial tem necessidade de uma organização particular, estreita-mente ligada à orientação ideológica da "mercadoria" vendida.16 E a merca-

doria posta à venda pelo Globo era um produto composto por notícias e in-formações de um lado, e de propaganda comercial de outro. E do sucessodeste último componente, ou seja, a execução de um plano de venda de seuespaço publicitário, dependia a realização do primeiro, a atividade jornalísti-ca propriamente dita. E quanto maior a dependência do Globo frente aos cir-cuitos empresariais, mais tenaz se tornava a sua defesa dos princípios erelações que sustentavam o sistema capitalista. N. Werneck Sodré informaque em 1953 o total de publicidade paga e distribuída por Cias Americanasde Petróleo foi de 3 bilhões 506 milhões e 200 mil cruzeiros. Desse total, 1bilhão e 197 milhões foram dados aos jornais.17 Dentre os laureados estavaO Globo, não por acaso, como se pôde ver, um dos principais inimigos domovimento em prol da nacionalização do petróleo brasileiro e um dos porta-vozes da campanha contra Getúlio Vargas.

Além da defesa da entrega do direito de exploração do petróleo brasileiroàs Cias norte-americanas, o Globo tinha outras bandeiras e campanhas decaráter nem um pouco popular. Era, por exemplo, contra o direito de grevedos trabalhadores, que a seu ver não passava de uma "agitação perigosa àsobrevivência das instituições". Assim se pronunciava o jornal em 1953,diante das grandes greves que começavam a irromper em São Paulo:"Sucedem-se as greves e as ameaças à harmonia entre as classes".18

Também era contra a reforma agrária, especialmente o ponto referente àdesapropriação das terras. Mas o jornal não era só do contra, era tambéma favor do alinhamento incondicional aos americanos, cuja relação com oBrasil seria marcada por uma "fraternidade Continental e indissolúvelamizade", cujos "laços tradicionais e inalteráveis de afeto e de apreçomútuo" eram incontestáveis.19

O jornal era também um dos principais porta-vozes do anti-comunismo noBrasil. Nesta e noutras campanhas O Globo exercitava o seu talento típico de"organismo de polícia política, de caráter investigativo e preventivo", publican-do denúncias, suspeitas, pistas e "provas" de supostos planos e ações criminosasintentadas pelos "asseclas de Prestes".20 No início dos anos 50, o jornal teria des-coberto, por exemplo, que os "adeptos do credo vermelho" teriam, entre tantos"planos sangrentos e iconoclastas", planejado incendiar a cidade do Rio de Ja-neiro.21 Mas se este foi evitado, o mesmo não pareceu ter se dado em outros

16 - GRAMSCI, Antonio. op. cit., p. 247.

17 - SODRÉ, Neson Werneck. A História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p.463.18 - O Globo, 27/08/53, p.1.19 - O Globo, 30/05/1949.20 - GRAMSCI, Antônio. Op. Cit., p.78. Como forma de reconhecimento desse papel, a imprensa comunistadaria ao O Globo a alcunha de "Boletim da Rua da Relação". (Nessa rua do centro do Rio localizava-se a sededa antiga Policia Política).21 O Globo, 13/09/1951.

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 118: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 235ABRA - REFORMA AGRÁRIA 234

lugares e momentos segundo o atento jornal. Além das greves nas cidades, ojornal entendia que o partido e seus "agitadores" estavam "por trás" dos inúme-ros conflitos armados e greves que começavam a se intensificar no campo noinício da década de 50: Canápolis(Minas Gerais), Sul da Bahia, Fernandópo-lis (São Paulo), "triângulo mineiro", região do Vale do Rio Doce e, principal-mente, Porecatu(Paraná), foram para O Globo os mais "inquietantes" exemplos.

Tanto nesses como em outros movimentos reivindicatórios de caráter popu-lar O Globo encontraria no argumento anti-comunista a base de articulaçãoe justificação de suas posições contra esses mesmos movimentos. Movimentosreivindicatórios e "agitação comunista" não eram mais do que faces de umamesma moeda para o jornal. No caso da campanha contra a nacionalizaçãodo petróleo:

"Tratava-se de demonstrar que os defensores da solução estataleram comunistas e, sendo os comunistas bandidos depravadosnão deviam ter direito a exteriorizar suas opiniões, antes deviamser rigorosamente punidos por isso. Assim, o patriotismo mobi-lizado para a defesa da riqueza nacional, em caso concreto,passava a ser encarado como crime".22

Nos movimentos ocorridos no interior do país o quadro é idêntico.Vejamos alguns exemplos da cobertura do jornal sobre conflitos entre "pos-seiros" e "grileiros" em Porecatu. A descrição dos acontecimentos era feita emfunção de dois objetivos básicos: o primeiro era caracterizar os "posseiros"como "intrusos" ou "invasores". O curioso é que no caso de Porecatu, ospequenos lavradores seriam "intrusos" pelo fato de terem "tomado posse" de"terras pertencentes a pessoas documentadamente legitimadas". Mas, aomesmo tempo, o jornal reconhecia que havia "bastante mata virgem" naque-la região;23 O segundo visava caracterizar a ação desses "intrusos" como

resultado do trabalho de "agitação" dos comunistas. Era comum que asmanchetes designassem tais ações como "rebelião vermelha", "ensaio de téc-nicas de guerrilha", "revolução comunista", etc.24 Ao mesmo tempo o jornalfrisava que os "posseiros" só cometiam tais atos porque eram a bem da ver-dade, "vítimas da propaganda vermelha e [da] coação armada" dos "agita-dores". Vejamos o que dizia o jornal no calor dos acontecimentos:

"os comunistas continuam fazendo com que Lavradores troquema terra pela cadeia, (...) arrastaram pobres lavradores a umaluta com os fazendeiros. Induziram-nos a apossar-se das pro-priedades rurais. E, assim, de simples e pacatos trabalhadores,transformaram-se em perigosos intrusos, em choque com as leise dispostos a enfrentar as autoridades".25

Acreditava o jornal que alguns fatores favoreciam tal situação: uma delasera o "problema econômico-social em torno ao posseiro", que o tornava uma"gente desajustada", "espoliada", obrigada a viver como "pária". Daí os insis-tentes apelos do jornal por medidas do Governo de modo a solucionar talsituação, de modo que ela não pudesse mais ser "explorada" pelos comu-nistas.26 Um outra fator apontado dizia respeito a alguns hábitos de vida queseriam típicos dos "posseiros" e que certamente os impulsionavam a cometer"atos afoitos": um desses hábitos seria o consumo de cachaça. Um dosrepórteres d'O Globo que estiveram no local, destaca na sua reportagem queera comum a "bebericagem de cachaça" por parte dos "intrusos" armados,deixando-os mais "possessos e obstinados". Um "vendeiro" teria contado quetinha servido cachaça a três "intrusos" num dia, "todos eles estavam armadose depois de saírem fizeram alguns disparos".27

Mas não eram apenas as grandes questões da política nacional o objetodas "reportagens investigativas" d'O Globo. Tendo como exemplo o caso dacidade do Rio de Janeiro, vemos o esforço do jornal em exercer influênciasobre uma série de aspectos do cotidiano da população carioca, buscandoimpor critérios e padrões de julgamento sobre o certo e o errado, o elogiá-vel e o condenável etc. Pretendendo desse modo educar a sociedade, civilizá-la segundo suas concepções de mundo.28 E era nesse tipo de domínio que O

22 - SODRÉ, Nélson Werneck, op. cit., p. 457.23 - O Globo, 21/06/1951. p. 8.24 - Cabe observar que não foi só O Globo que construiu esse tipo de imagem sobre os conflitos de Porecatu - eno Brasil como um todo -, mas toda a imprensa não-comunista. Um rápido acompanhamento da cobertura feitasobre Porecatu pelos "getulistas" Correio da Noite, Diário do Povo, Diário Trabalhistas, A Noite e Última Hora, pelo"udenista-lacerdista" Tribuna da Imprensa e pelos "liberais-conservadores" como O Mundo, Correio da Manhã,Diário da Noite, O Jornal e Diário Carioca, permitiu-nos colher as seguintes manchetes: "Uma certeza: os comu-nistas não desistem", "Porecatu, onde os comunistas experimentam as forças", "Ponta de lança comunista no Brasil!","Chegou ao Paraná um lugar-tenente de Prestes", "Nova tática comunista", "Munidos [os "posseiros"] de armasautomáticas, insuflados e dirigidos por comunistas", "Prestes, na fronteira da Bolívia, prepara a Revolução Sul-ameri-cana", "Prestes organiza a nova coluna", "Moscou comanda a agitação comunista no Brasil", "Norte do Paraná -Foco de agitação comunista", "Guerrilhas vermelhas agitam o País", "Infiltração Vermelha no seio dos colonos, comagitação e desordem", "Crime inominável dos agentes de Stálin!", "Comunistas atiram 'posseiros' contra fazendeirosno Paraná", "O comunismo ensangüenta o interior do Brasil". APERJ. Fundo DOPS. Série Comunismo: "Relatório doinquérito relativo aos acontecimentos de Porecatu"(anexo).

25 - O Globo, 25/06/1951. p. 8.26 - O Globo, 28/06/1951. p. 4.27 - O Globo, 25/06/1951. p. 8.28 - Muito embora não fosse um devoto de Gramsci, Dom Hélder Câmara, ao parabenizar O Globo pelo seuaniversário, comentava com extrema argúcia que: " Os educadores, e eu só sei encarar os jornalistas deste ângu-lo, têm responsabilidade tanto maior quanto mais grave e mais confusa é a hora que passa. Todos os dias peço aDeus que a nossa imprensa esteja cada vez mais à altura de colaborar na orientação das consciências dosbrasileiros. Essa prece eu a faço de modo especial, na sua data tão cara, pelo O GLOBO, que é um dos meus jor-nais cotidianos", O Globo, 01/08/53 (grifos meus).

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 119: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 237ABRA - REFORMA AGRÁRIA 236

Globo promovia as suas célebres "campanhas" ou "Guerras", que iam desdea "Guerra contra a violência no trânsito", a "Guerra aos casais que atentamcontra a moral pública",29 a "campanha" pelo fim das atividades dos"camelôs",30 até a campanha pelo cooperativismo, destinada a eliminar a atu-ação dos "intermediários" na venda de gêneros alimentícios de primeiranecessidade aos consumidores cariocas.31 Era seguindo essa mesma linhaque o jornal concebia as suas reportagens especiais e editoriais, por meio daqual promovia o diagnóstico e a solução para alguns dos males queassolavam a sociedade e que oferecia parâmetros de ação às "campanhas"citadas acima. Um dos "males" que mais receberam a atenção do jornal foi agrande "crise moral" da cidade, que estaria levando "a sobrepor-se aos princí-pios da concórdia e da solidariedade humana toda a espécie de interesses ede desígnios". Exemplo desse "estado de coisas" teria sido o carnaval cariocade 1953, no qual

"A fantasia predominante foi o short, o biquíni disfarçado, enver-gado por mulheres de todas as idades e, infelizmente, até poradolescentes. E não nos esqueçamos dos flagrantes escan-dalosos das expansões amorosas em público, das mulheres quedançavam sobre as mesas ou cavalgavam os ombros doshomens, coisas que, há poucos anos, eram consideradas exces-sos privativos das piores orgias".32

Entretanto, o jornal não terminaria o texto de sua matéria sem antes nos daruma mensagem de esperança: "Felizmente para nós, acreditamos que asforças sãs da nossa sociedade são suficientemente fortes para reagir a taisabusos sem o recurso final de termos de combater o carnaval".33

Outro "grande mal" a despertar as atenções do jornal se relacionava como elevado número de crimes que ocorriam na cidade. Várias eram as pro-postas ventiladas para a resolução de tal fenômeno, que iam desde a cons-trução de um presídio na floresta amazônica até a proibição de toda sorte de"jogos de azar". O certo é que O Globo acreditava que podia contribuir comsuas reportagens para a "prevenção" e "melhor repressão" das ações dos"malfeitores". Em função disso havia uma seção do jornal dedicada especifi-camente a esta tarefa e que sob o título "Com vistas ao Chefe de Polícia", vei-culava notícias sobre os locais mais perigosos da cidade. O principal deles -e que para O Globo seria a principal causa, entre outras coisas, da existên-cia de 1500 "delinqüentes ou transviados" na cidade - era as Favelas. Desdemeados de 1951, o jornal afirmava que era preciso "limpar os morros",lugares por excelência de "alguns habitante noturnos da cidade, de ladrões,batedores de carteira e outras categorias de vadios".34 Tamanha preocupaçãofez com que o jornal "enviasse" um repórter - que já tinha feito reportagenssobre as penitenciárias cariocas para a série "Eu voltei do inferno" - aos mor-ros cariocas para cobrir de perto a "miséria" e as "privações" de seusmoradores. O resultado desse trabalho foi publicado na série "Fui a outroinferno". No texto de apresentação dessa séria o repórter afirmava que

"a prisão e o morro são realmente dois círculos do mesmo infer-no e, às vêzes, um só, porque suas fronteiras quase sempre seconfundem. Sob muitos aspectos, até, morro e prisão se com-pletam e conjugam na mesma síndrome de patologia social. Nomorro e na sua miséria sem lei e sem pão, o crime viça e pros-pera como num caldo de cultura ótimo. E é ele que servia deponto de referência, de refúgio e de asilo à maior parte doscriminosos da cidade".35

Mas quais elementos constituiriam o "caldo de cultura" que fazia do morro eseus moradores um autêntico caso de "patologia social"? Naqueles anos 50três pareciam ser os fatores que faziam com que nas favelas imperasse a "va-diagem durante o dia, [e o] crime à noite". A propósito, é uma coisa que nossalta aos olhos as semelhanças entre os "diagnósticos" sobre os "problemas"das favelas e aqueles sobre o campo. O primeiro fator seria às "degradantes"condições sócio-econômicos representadas pelos "barracos [que] se acorco-vam em verdadeiros prodígios de equilíbrio instável entre a lama, os porcos eos homens"; condições estas semelhantes ao período "pouco além do séculoda Descoberta [do Brasil]."36 O segundo fator apontado seria o alto consumo

29 - A esta "campanha", "um imperativo de moralização social, correspondia outras, tais como: a "campanhacontra as publicações obscenas" que impunha "severas penalidades àqueles que lançarem no mercado a imun-da literatura do bas-fonds, de efeitos tão perniciosos quanto o tráfico de entorpecentes"; e a maior "fiscaliza-ção dos banhistas" das praias da zona sul, principalmente os indivíduos que se dirigiam às suas casas apenasde "calção de banho" e "moças também audaciosas [que] já não se envergonha[va]m de transitar pelos bair-ros (...) com seus trajes sumários de praia, quando não o fazem envergando maiôs imorais". O Globo,31/03/1954, p.2. 30 - Segundo a definição do jornal, "camelôs" eram "elementos desviados do trabalho construtivo" por "umaforma ilegal de comércio" que obtinham mercadorias para suas "vendas clandestinas". O Globo, 27/11/1954. 31 - "Ou procuramos na cooperativa a solução do problema econômico-social, ou as massas serão levadasao Comunismo", dizia o presidente da Caixa de Crédito Cooperativo ao apontar para o principal mérito dainiciativa do jornal, O Globo, 26/04/51, p.1. 32 - O Globo, 28/02/1953. 33 - idem.

34 - O Globo, 22/06/1951. p. 1.35 - O Globo, 27/12/1951. p. 1.36 - idem.

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 120: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 239ABRA - REFORMA AGRÁRIA 238

de cachaça. E esse fator era comumente identificado no momento em queeram realizadas as "batidas" contra a "malandragem" desses morros. Numadessas ocasiões, no morro do Cantagalo, o repórter afirmava categorica-mente: "Nas 'biroscas', encontramos a inspiração para os crimes: cachaça".37

O terceiro fator - que estava estreitamente relacionado a uma conjuntura ondeas "naturais imperfeições da sociedade humana" eram "exploradas" para oestabelecimento de um "clima de subversão e insurreição da ordem" - diziarespeito a "campanha de agitação" empreendida por quem fazia parte da cate-goria dos grandes "criminosos da cidade": os comunistas. Estes estariam "agi-tando as Favelas", como fizeram no Morro do Simão, com a distribuição depanfletos e jornais, instigando a população a reivindicarem desa-propriaçãodos morros e, "o mais grave", "desacreditar" e "atacar" a "administração gover-namental".38 Para O Globo, enquanto este primeiro fator deveria ser alvo deações dos "governos"- por meio de seus órgãos administrativos, e de associa-ções civis, como a Fundação Leão XIII -,os outros dois fatores se-riam da alça-da das "autoridades policiais", levando-o a propor uma dupla política para osmorros: uma de "recuperação" e outra de "Campanha contra o crime".

E era com este mesmo "sentimento de colaboração" que o jornal acompa-nhava atentamente o desenrolar da luta pela terra no Sertão Carioca. Preo-cupado com a possível interferência de comunistas, O Globo produziu re-portagens especiais e minuciosas de modo a alertar as autoridades compe-tentes para o perigo que os conflitos de terra podiam acarretar para a "har-monia social". Exemplo foi a resistência armada que os lavradores de Pedrade Guaratiba ameaçaram irromper contra a tentativa de despejo intentadapor Pedro Moacir Barbosa. O jornal declarava: "Os posseiros de Pedra deGuaratiba estão resistindo ao Loteamento. Os engenheiros das Companhiasimobiliárias ainda não conseguiram fazer o levantamento das terras".

Assim como os "posseiros" de Porecatu, os de Pedra de Guaratiba teriam umaliderança. Seu nome era Calú, com "ares de chefe, chapéu de abas largas, vozgrossa dominando tudo", ele orientava os "posseiros" a resistirem. E ainda

"Fala[va] com raiva, a mesma raiva que fomos encontrar emoutros 'posseiros' (...)- Quem entrar na minha fazenda morre - grita o Calú.Precisamos agüentar a mão com a nossa espingarda.

O grito de Calú ecoa[va] em todo o 'Sertão Carioca'."39

No decorrer da reportagem, o jornal apresentaria quais seriam - além dasações de resistência e da presença de um "líder" entre os lavradores - os ou-tros aspectos que tornavam a situação de Pedra de Guaratiba muito seme-lhante a de Porecatu: um era o fato do evento envolver a tentativa de despe-jo contra "posseiros" por parte de um sujeito acusado de ser um "grileiro"; ooutro era indiretamente apontado como uma das causas de todo aqueleclima "explosivo" e de "raiva" entre os lavradores: o consumo de cachaça.Assim os repórteres descreveriam o "ambiente" encontrado logo que chega-ram ao lugar: "O cheiro de bebida forte, o gosto salgado de mar e o odor depeixe fresco dava ao bar as cores de local típico. Os quatros homens beberi-cavam cachaça." Mais tarde o próprio Calú, o "líder" daqueles "posseiros" "rai-vosos" lhes teria oferecido cachaça, o que foi prontamente aceito. Vejamosseus efeitos:

"Depois que entornamos o copo, mudou o ambiente. Éramoscomo os outros, sabíamos agüentar a bebida, havíamos con-quistado o direito a um visto no Passaporte que nos levaria aossegredos das misérias de Guaratiba."40

Note-se que esse aspecto era o mesmo apontado pelo jornal como umadas causas da proliferação de crimes nos morros cariocas. Mas era possívelque houvesse um outro aspecto que tornasse o caso de Pedra de Guaratibamais semelhante ainda com o de Porecatu e, pode-se dizer, com a dos mor-ros da cidade. E esse aspecto era o que efetivamente preocupava o jornal eque tornava o caso de Pedra de Guaratiba como um "problema" muito pare-cido com o que acontecia em outras áreas um tanto "agitadas":

"O problema de Pedra de Guaratiba existe e os 'posseiros' estãodispostos a resistir de qualquer maneira. A situação é explosiva,um prato esplêndido para os comunistas (...) Os comunistasapenas aguardam a oportunidade para agitar ainda mais aque-les que vivem da região. Se o governo não tomar providênciasurgentes, terá um outro Porecatú as portas do Rio. É a advertên-cia desta reportagem".41

Ou seja, O Globo estava mais preocupado com a possibilidade dos "pos-seiros" servirem aos "desígnios" dos comunistas do que com a sua situação emsi. É bem verdade que esse mesmo jornal, ao mesmo tempo que levava aoconhecimento da opinião pública os conflitos de terra do Sertão Carioca,37 - O Globo, 22/06/1951. p. 1.

38 - Como não poderia deixar de ser, a ligação dos "moradores dos morros" com os "agentes de Stálin" tam-bém suscitava grande preocupação por parte da Polícia Política, conforme podemos testemunhar no "BoletimReservado nº 68"(17/04/1951). APERJ. Fundo DPS. Série Dossiês: "Protestos", pasta 298c, fls. 1-2.

39 - O Globo, 07/07/1951. p. 1.40 - idem.41 - O Globo, 07/07/51, p. 1.

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 121: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 241ABRA - REFORMA AGRÁRIA 240

denunciava muitas vezes as práticas violentas realizadas por "grileiros". Poroutro lado, ele cobria de silêncio as iniciativas dos lavradores e de suas orga-nizações representativas em resposta ao processo de expulsão de suas terras.O Globo não dedicaria nenhuma linha de suas páginas para informação de"eventos camponeses" como o I Congresso dos Lavradores do DistritoFederal(1953), a I Conferência dos Lavradores do DF, a II Conferência dosLavradores da Guanabara(1963), as manifestações em frente a câmaramunicipal e, posteriormente, em frente à Assembléia Legislativa daGuanabara nos anos de 1954, 1955, 1956, 1957 e 1963.

A forma como o jornal tematizava os conflitos de terra no Sertão Cariocaestava intimamente ligada aos princípios ideológicos que orientavam a suaatuação de autêntico e importante aparelho de hegemonia privada que era.Os problemas decorrentes do processo de loteamento e urbanização do cin-turão verde do então Distrito Federal, com a expulsão e precarização dascondições de vida e trabalho dos lavradores cariocas, existiam e não eramdesmentidos pelo jornal. Mas o caminho que este definia e legitimava para asolução de tais problemas, incluindo-se as ações criminosas de grileiros, erade atribuição única e exclusiva das "autoridades". O fato dos próprioslavradores se organizarem e resistirem ativamente contra tal processo só indi-cava, para o Globo, a presença da influência de "agitadores". Se os grileiroscometiam atrocidades contra os lavradores, cabia às autoridades policiais, esó a elas, detê-los e puni-los; mas se os lavradores buscavam, de formademocrática, lutar por direitos elementares de cidadania, tais "agitaçõesperigosas" em nada ficavam a dever aos atos criminosos dos grileiros, caben-do então a polícia tomar alguma providência. Pelo menos esta era a"advertência" daquele jornal - como se estivesse sempre "positivo e operante"- sobre este e muitos outros movimentos de luta dos trabalhadores por todoo Brasil daquela época.

B IBLIOGRAFIA

BARBOSA, Marialva. Imprensa, poder e público (os diários doRio de Janeiro - 1880-1920). Tese de doutorado, História, UFF.Niterói, 1996.CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. O cotidiano dostrabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo:brasiliense, 1986. COSTA, Luiz Flávio Carvalho. Sindicalismo rural brasileiro emconstrução. Rio de Janeiro: Forense/ UFRRJ, 1996.

COUTINHO, Carlos. Nelson. Cultura e sociedade no Brasil.ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere - volume 2. SãoPaulo: Civilização Brasileira, 2000. p. 262.O GLOBO, 1951-1964.MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil.Petrópolis:Vozes,1983_________. Expropriação e violência: a questão política nocampo. São Paulo: Hucitec, 1982. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. "Dimensões políticas da violên-cia no campo". In Tempo, Rio de Janeiro, vol.1, abril de 1996.___________. História dos movimentos sociais no campo.Rio deJaneiro:FASE,1989.___________. "Os trabalhadores rurais na política: o papel daimprensa partidária na constituição de uma linguagem declasse". In Estudos Sociedade e Agricultura, nº4, julho-1995.SODRÉ, Nelson Werneck. A História da imprensa no Brasil. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

Olhos de Papel: A cobertura do jornal O Globosobre a luta pela terra no Sertão Carioca (1951-1964)Ensaios e Debates

Page 122: Revista Abra 33

D o c u m e n t o s

Page 123: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 245

Por que Reforma Agrária?1

Ana Maria Araújo Freire2

Diz a história oficial, que em 1500, os portugueses descobriram o Brasil, eque eles foram melhores colonizadores do que os outros colonizadoreseuropeus. Que eram mais fraternos e amigos e que se misturaram com asnegras determinando uma sociedade mais alegre e mais tolerante.

Na verdade, os portugueses invadiram as terras novas da América à procu-ra de metais e pedras preciosas. Não as encontrando entenderam então quenada tinha aqui que os interessasse e que assim deveriam abandonar as ter-ras do Novo Mundo. O território conquistado só começou a ser povoadopelos portugueses quando os chamados "piratas" -os que procuravamriquezas pelo mundo todo --- franceses, ingleses, espanhóis e holandeses ---aqui aportavam levando, inicialmente, o Pau-Brasil, para utilizar sua tinta nacoloração dos tecidos. Os franceses e os holandeses chegaram a se fixar nas"terras portuguesas". Os nossos colonizadores, é preciso enfatizar, não forammelhores do que os outros europeus que dominaram partes da África e dasAméricas, foram diferentes. Foram tão malvados quanto exige a naturezamesma do colonialismo.

Por causa das invasões a Coroa Portuguesa resolveu criar as CapitaniasHereditárias, que eram imensas porções de terras dadas à nobreza portugue-sa para que viessem para cá com homens povoando essa imensidão de ter-ras e produzisse para o enriquecimento dos dominantes. Poucas Capitaniasprosperaram, mas a marca da grande porção de terra para um só homempermaneceu, malvadamente, viva entre nós. Mesmo que nesses 500 anosessas terras tenham vindo sendo divididas e dividas, ainda hoje são "lotes"absurdamente gigantescos: são os latifúndios!

1 - Texto escrito a pedido para publicação no Boletim do Incra.2 - Doutora em Educação pela PUC-SP, é viúva e sucessora legal da obra do educador Paulo Freire. Tem umlivro publicado sobre a temática deste artigo: Analfabetismo no Brasil: da ideologia da interdição do corpo àideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas,Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Gracias até os Severinos. São Paulo, Cortez, Brasília, DF: INEP,1989; 2ª reimpressão, revista e ampliada, 1993; 2ª edição, 1995; 3a edição, 2001. Este livro resultou dadissertação defendida em 1988, sob a orientação de Paulo Freire e publicada pelo INEP como trabalho re-presentativo do Ano Nacional e Internacional da Alfabetização, iniciativa da UNESCO, em 1990.

Page 124: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 247

Por que Reforma Agrária?

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 246

Documentos

O que plantar nessas terras? O açúcar era nesse tempo (séc. XVI) umaespeciaria muito cara (como a pimenta, a noz-moscada, o cravo, a canela,etc.), que servia para conservar os alimentos. Resolveram os colonizadoresportugueses, então, plantar a cana de açúcar os massapés do Nordeste.Encomendaram os "engenhos" para a moagem aos holandeses.

Mas, quem faria a plantação, a limpeza, a colheita e a moagem da cana?Que homens trabalhariam tanta terra? Quantos homens seriam necessáriospara trabalho tão árduo, tão duro? Resolveram roubar os negros, as negrase seus filhos da África. Encostavam os navios nos portos africanos e convi-davam toda a gente do lugar para uma grande festa. Vinham reis e rainhas,nobreza e povo. Aí, com o navio cheio de gente, zarpavam para o nordestebrasileiro. Ao chegarem as famílias africanas eram separadas e cada um/avendidos como "peças" para o trabalho escravo.

Como tudo aqui era controlado pelo governo português toda a produçãodo açúcar era comprada por ele e vendida por ele no mundo. Portanto havianos tempos coloniais, até a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, umúnico comprador e único vendedor. Isso se chama monopólio comercial. Olucro do colonizador foi se tornando cada vez mais diminuto para que fossemaior o dos que viviam em Portugal. Com o monopólio comercial as proibi-ções de se produzir qualquer artigo para o consumo e venda interna na Co-lônia chegaram ao limite dos portugueses determinarem que a nossa ca-chaça --- bebida resultante da produção do açúcar --- fosse jogada fora paraser comprada a fabricada em Portugal, a partir de suas frutas.

Derrubaram a Mata Atlântica do Nordeste para servir de combustível paraos fornos que cozinhavam a calda para fazer o açúcar. A política dos por-tugueses dizimou também os índios, quer escravizando-os, quer matando-ospara vender suas cabeças como "coisa exótica dos trópicos" na Europa. OsJesuítas "cumpriram com o seu dever" catequizando outros tantos índios, naverdade os desaculturando.

A sobrevivência dos brancos e dos negros ficava limitada a se alimentaremquase tão somente do açúcar (que era fornecido apenas para consumo ime-diato); de carnes de animais de pequeno porte; das frutas, entre outras dasjacas, das mangas e das bananeiras, cujas mudas tinham sido trazidas daÍndia e da África pelos padres jesuítas e aqui plantadas com grande sucesso;da lavoura do milho e da mandioca, tradição de nossos índios. Estes dessaslavouras, da pesca e da caça. A população brasileira, portanto não tinhaexcedente de mercadoria, não tinha o menor poder de troca.

A Coroa portuguesa enviou para cá as meninas órfãs dos conventos para secasarem com os donos das terras e dos escravos, os "senhores de engenho".

Estes eram o todo-poderoso: mandavam em tudo e em todos e todas.Detinham a autoridade suprema: ordenavam os casamentos de seus filhos,resolviam as discórdias de todos os níveis de dentro de sua "Casa Grande",mandavam surrar e torturar seus escravos ao limite máximo possível com ocuidado apenas de não os matar (os escravos custavam muito caro, maiscaros do que os engenhos fabricados e trazidos da Holanda). Havia quepoupá-los, mas humilhá-los ao extremo, afinal isso era legal e "legítimo", poisos negros e as negras tinham sido comprados por ele, ademais não tinhamalma, como asseverava, na época, a Igreja Católica. Abusavam como que-riam das mulheres negras, subjugavam suas próprias esposas brancas, tudocom a conivência do clero, sobretudo do jesuíta.

Disso decorreu uma sociedade patriarcal na qual o mandonismo, o abusoe falta de respeito à dignidade do outro e da outra, a intolerância, a indife-rença aos direitos das mulheres, e dos negros e das negras, era a regra.

O "senhor de terras e de escravos" não pagava salário, não deixava que "osmoradores" de suas terras aprendessem a ler e a escrever, criaram uma raçade cães ferozes para evitar que os escravos fugissem, dava-lhes pouca comi-da e os confinavam nas senzalas para dormirem amontoados na promis-cuidade. Proibiam quase todas as manifestações da cultura negra: das reli-giosas às danças e cantos profanos. Permitiam as cantigas de ninar e as comi-das africanas. "Cercados", confinados nos latifúndios poucos puderam fugir aesse "destino" imposto pelos senhores de escravos e de terras. Não havia co-municação e assim se produziu o analfabetismo generalizado no Brasil.

Assim, vocês podem verificar que a colonização brasileira foi realizada apartir de três pilares: o latifúndio, o trabalho escravo e o monopólio comer-cial (ademais com um único produto para exportação). Esse estado de coisasdeterminou, portanto, uma sociedade que é intolerante e opressora, diferen-cia e hierarquiza humilhando a quase todos e todas. Nos construímos na vio-lência. Na banalização da vida.

Estas coisas, infelizmente são fáceis de serem constatadas na sociedadebrasileira de hoje, elas permanecem vivas entre nós mesmo que, ao mesmotempo, tenhamos mudado tanto. Hoje somos uma sociedade moderna,industrial, com grandes e importantes centros de serviços e de cultura.Caminhando para uma democracia. Mas, também somos o país onde há a

Page 125: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 249

Por que Reforma Agrária?

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 248

Documentos

maior diferença de qualidade de vida entre os mais ricos e os mais pobres.Somos um dos países do mundo com a pior distribuição da renda.

Somos uma sociedade autoritária, na qual o rico diz sem cerimônia: "Sabecom quem está falando?". Continuamos sendo uma sociedade discriminatóriaem várias de suas facetas prejudicando os/as índias, e sobretudo os negros eas negras por que continuamos os/as excluindo dos espaços mais privilegia-dos/valorizados da sociedade. Mesmo com relação à mulher branca conti-nua a haver também discriminação, pois apesar de dedicarem mais tempo nasua escolarização/profissionalização continuam percebendo salários menoresdo que os homens. Continuamos ainda a ser uma sociedade altamente elitis-ta, na qual a elite manda e usufrui da quase totalidade dos bens materiais eculturais produzidos socialmente, em detrimento da maioria.

Todas essas são mazelas que decorrem do modo como construímos a nossahistória, em como nos organizamos enquanto nação. São os fortes resquíciosde nossa origem colonialista que ainda pesam enormemente sobre nós. Sãoas mazelas que têm como natureza a violência.

Podemos concluir, sem medo de errarmos que um dos grandes males doBrasil é, pois, o latifúndio, que permanece desafiando todos e todas que oentendem como o que determinou uma sociedade injusta. Uma sociedadepautada pela violência e a antieticidade.

Em pleno século XXI é inconcebível que o nosso país não tenha feito a divisãode suas terras. Divisão justa e necessária. É preciso que essa Reforma Agráriaseja feita, urgentemente, sem mortes e sem violência. Que ela seja feita dentroda legalidade, pois ela é legítima e benéfica para o país e para todas e todos.

Não falamos de uma Reforma Agrária qualquer, falamos da que venhaacompanhada dos recursos financeiros e estratégicos, e da formação dos ho-mens e das mulheres no sentido de terem consciência que seu trabalho temque respeitar os ciclos da vida. Que o uso da terra deve se pautar pelo desen-volvimento sustentável.

Se mesmo uma Reforma Agrária pensada "politicamente correta" não ga-rante em si mesma a solução dos nossos problemas mais cruciais --- quemgarante somos nós humanos assegurando as condições para que ela traga ajustiça social, daí a sociedade mais justa, temos que saber que a ReformaAgrária que devemos viabilizar não nasce pronta e terminada, ela deve de darnum processo ininterrupto no qual vamos construindo um mundo melhor.

Sem a Reforma Agrária podemos ter a certeza de que permaneceremosuma sociedade marcada pela malvadez instaurada pelo colonialismo: o anal-fabetismo generalizado, a fome, a falta de moradia, o desemprego e a explo-ração do trabalho, o menosprezo pelos direitos humanos mais fundamentaisdas camadas subalternas, sobretudo de suas mulheres e menores.Permaneceremos numa sociedade na qual a violência não deixa que criançasbrinquem, que as meninas não sejam molestadas sexualmente pelo machis-mo desenfreado, que não precisem estas meninas de se prostituir para garan-tir sua sobrevivência e tantas vezes a de sua família também, que os pobressejam respeitados.

Construímos uma sociedade que por sua natureza contraditória precisa doscondomínios fechados e dos carros blindados para fugir dos horrores que cri-amos. Dos homens e das mulheres que sofreram (sofrem) o inferno dos presí-dios e das "Febens" e ou que sobrevivem nas favelas desumanas sentindo epercebendo que seu futuro e o do de seus filhos e filhas não será diferente:serão como a sua e a de seu pai e avô e de todos os seus ancestrais: marca-da pela desesperança e pautada pela violência.

Façamos a Reforma Agrária em processo permanente de seu aperfeiçoa-mento: ela certamente nos garantirá dias melhores e de mais Paz para todase todos os brasileiros e brasileiras.

É preciso buscar a cultura da Paz e aniquilarmos a arraigada e tradicionalcultura da violência: a Reforma Agrária é o caminho primeiro nessa busca denossa humanização.

A Reforma Agrária é, pois, imperativo nacional!

Page 126: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 251

CORREIO DA ALADA

MENSAJE DEL PROF. RODOLFO R ICARDO CARRERA,PRESIDENTE DE LA ALADA

La segunda etapa en la vida de ALADA no podía iniciarse con mayores aus-picios. El marco que le prestó el PRIMER CONGRESO INTERAMERICANO DEDERECHO AGRARIO, realizado en Porto Alegre (Brasil) en los días 24/29 deoctubre último, fue realmente trascendente: en el día de su clausura, los del-egados y representantes de las Facultades de Derecho de la mayoría de lospaíses de Latinoamérica efectuaron la renovación de sus autoridades. Laprimera etapa, iniciada en Alcalá de Henares (España) en 1968, vino así aconcluir en Porto Alegre (Brasil), y de la presidencia acordada entonces aEspaña (Ballarín Marcial) se pasa ahora a la presidencia de Argentina. Paranosotros es doblemente honrosa la asunción de esta presidencia - por ser laanterior de España y por haber sido el presidente Ballarín - pero tambiéndoblemente comprometida por las mismas razones.

Nuestras primeras palabras para Correo de ALADA deben ser dedicadas alCongreso de Porto Alegre, que ha sido sin duda la reunión interamericana deespecialistas en Derecho Agrario, más importante que se ha realizado hastaahora, por la cantidad de representantes de los países hermanos allí pre-sentes y por la seriedad de la labor realizada, así como por su PRONUNCI-AMIENTO DE PORTO ALEGRE. Nuestro mandato emana de la voluntad delos profesores allí reunidos: y el PRONUNCIAMIENTO, expresa en su punto5° : " - Se requiere el fortalecimiento de los organismos internacionales desti-nados a impulsar la actividad agraria. Instase a esas entidades que promue-

Associação Latinoamericana de Direito Agrário Asociación Latinoamericana de Derecho Agrario

1° Semestre de 1972 - 1

EL DERECHO AGRARIO DEBE ORIENTAR EL CAMBIO DE LA ESTRUCTURA AGRARIA

EN AMERICA LATINA

Page 127: Revista Abra 33

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 253

Correio da ALADA

ABRA - REFORMA AGRÁRIA 252

Documentos

van estudios y proyectos para la elaboración y el perfeccionamiento de lasinstituciones jurídicas agrarias". En consecuencia, nuestras tareas no podíaniniciarse en circunstancias más auspiciosas.

La función coordinadora de ALADA está contenida en la Recomendaciónaprobada por el Congreso - iniciativa de los ilustres juristas brasileños Dres.Jaime Soares de Albuquerque, Marcos Heusi Netto e Igor Tenório - que diceen su párrafo segundo: "Recomiendase que la ALADA promueva contactoscon las Universidades Latinoamericanas, en el sentido de establecerse Cursosde Derecho Agrario comparado a nivel de especialistas o de post-graduadoscon énfasis en el estudio de la legislación agraria latinoamericana".Trataremos de dar cumplimiento cuanto antes a esta Recomendación, a cuyofin hemos iniciado ya los contactos correspondientes.

Para nosotros, como lo expusimos en la sesión de Clausura del Congreso, elDerecho Agrario puede ser encarado como una técnica jurídica; como unaCátedra de Derecho en las Facultades respectivas, como un instrumento trans-formador de estructuras agrarias injustas, para convertirlas en nuevas formasen las que la distribución de la riqueza generada sea más equitativa: o, final-mente, como una herramienta insustituible para realizar el desarrollo. Este ulti-mo enfoque es el que más nos atrae ahora, luego de bregar durante más detres décadas, ininterrumpidamente, por todas las otras formas de encarar elDerecho Agrario. Entendemos que el desafío de hoy es que el Derecho Agrariosirva de desarrollo; que es la consigna de los pueblos subdesarrollados.

El desarrollo exige cambios de estructuras y en América Latina ese cambiodebe comenzar en el agro, de lo contrario ese sector quedará rezagado yestancado. El cambio de estructuras agraria, producirá - por el contrario - unefecto multiplicador de riqueza, porque transformando los latifundios impro-ductivos o dedicados a ganadería extensiva, en empresas agrarias de tamañomediano y diversificada producción, se multiplicará el numero de productoresy con ello se elevará el poder de compra del sector, y por onde el consumode productos industriales. A su vez, la industria con ese impulso inicial, dadopor el mayor consumo de la población rural, encontrará un mercado nacionalen crecimiento constante, lo que le asegurará inversiones redituables. Así haocurrido en Japón, Australia, Mejico, y otros países en los cuales el cambiocomenzó en el agro.

El Derecho Agrario debe orientar el cambio de la estructura agraria, intro-duciendo profundas reformas en las Constituciones y luego en las leyes espe-ciales, antes de encararse - por los países - las políticas de reformas agrarias.En nuestro trabajo presentado al Congreso hemos explicitado esas reformasjurídicas fundamentales y demostrado que, de lo contrario, las leyes de refor-

ma agraria tropezarán con el régimen jurídico común que las oligarquíasnacionales mantienen intacto para defenderse de estas innovaciones. Por ello,siempre debe recordarse que la reforma agraria comienza con profundo cam-bio en el régimen jurídico de la tierra y de la actividad agraria.

De allí, la importancia del Derecho Agrario y de su contenido finalistico,según nuestra concepción: - "El Derecho Agrario es la ciencia jurídica quecontiene los principios y las normas que reglan las relaciones emergentes dela actividad agraria, a fin de que la tierra sea objeto de una eficienteexplotación que redunde en una mayor y mejor producción, así como en unamás justa distribución de la riqueza en ella generada, en beneficio de quienesla trabajan y de la comunidad.

Las nuevas generaciones están comprendiendo el contenido revolucionariode esta disciplina jurídica que busca el cambio dentro de la ley y por la ley.Los jóvenes son los llamados a convertir en realidad los sueños de quienes losprecedieron, luchando durante años por ese cambio. Ellos ansían unasociedad nueva, más justa y más libre, su lucha no debe agotarse en la solasupresión de la injusticia y de la sumisión del hombre, sino que deben estudi-ar y proyectar las nuevas formas de esa sociedad.

El Derecho Agrario ejerze enorme atracción en los jóvenes porque no solopenetra en la entraña de la injusta regulación jurídica del uso y usufructo ypropiedad de la tierra y de la actividad agraria sino que, además, proponeconcretas fórmulas jurídicas para sustituir a las que han caído en el anacro-nismo. Esa es la misión de los agraristas. Como lo expresara Ballarín en el n°1 de la Revista ALADA, en su hermoso artículo, "el agrarista presta su princi-pal auxilio al legislador que ha de cambiar la ley para adaptarla a las nuevasexigencias de la sociedad".

Es esa nuestra misión. La hemos cumplido siempre. Ahora la cumpliremosdesde la presidencia de ALADA.

CORREIO DA ALADAEsta publicação, destinada à circulação no Brasil, em todos os países da

América Latina, na Europa e nos Estados Unidos, através, principalmente deentidades dedicadas ao estudo do Direito Agrário e da Sociologia Rural, é daresponsabilidade de Octávio Mello Alvarenga, Diretor Executivo e de J. MottaMaia, Secretário-Geral da ALADA.

Endereço para qualquer correspondência: Rua Joaquim Nabuco, 244, 1°andar - Copacabana, Rio de Janeiro, GB.

Page 128: Revista Abra 33

C P M I D AT E R R A

Q u a d r o c o m p a r a t i v o d a s r e c o m e n d a ç õ e sd o s r e l a t ó r i o v e n c i d o e v e n c e d o r

Page 129: Revista Abra 33

Quadro comparativo das recomendações dos relatório vencido e vencedorCPMI DA TERRA

1. Cumprir as metas previstas no II Plano Nacional de Reforma Agrária.

1. Recomendar a reestruturação do Banco da Terra, em nível nacional, que é uma alternativa eficiente de reforma agrária, possibilita a aquisição de terras por negociação, evitando -se os conflitos fundiários, abitrariedades e violências. Ponto fundamental da proposta do Banco da Terra é o fato de se obter financiamento para aquisição de imóveis rurais para pessoas que possuem real vocação e vontade de trabalha -las.

2. Efetivar o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), criado pela Lei n.º 10.267/2001, utilizando -se dos cadastros já existentes no âmbito da administração pública da União (INCRA, Receita Federal, IBAMA) e complementados com a tecnologia do georreferenciamento, de modo a l egalizar o território, coibir as práticas fraudulentas envolvendo terras públicas (tais como a grilagem) e aumentar o estoque de terras disponível para reforma agrária.

IDEM

3. Constituir secretaria no INCRA com atribuições exclusivas de implementar e gerenciar o CNIR. IDEM

4. Agilizar o programa de legitimação de posses de famílias ocupantes de terras públicas com área de até 100 hectares, reduzindo uma das causas da violência no meio rural, beneficiando as que tenham tornado as terras produtivas com trabalho familiar; que não sejam proprietárias de outro imóvel rural e comprovem morada permanente e cultura efetiva pelo prazo mínimo de um ano.

IDEM

5. Determinar as medidas cabíveis para a retomada das áreas públicas ocupadas irregularmente. IDEM

6. Agilizar a destinação, para a reforma agrária, das terras da União já arrecadadas. IDEM

7. Determinar à Presidência do INCRA que constitua força -tarefa com o objetivo de promover a regularização fundiária no Estado do Amapá

IDEM

8. Edição de portaria con junta pelos Ministérios competentes, atualizando os índices de produtividade, em atendimento ao art. 11 da Lei nº 8.629/93 e à determinação constitucional de realização da reforma agrária.

NÃO CONSTA

9. Revogação dos arts. 4º, § 1º, e art. 8º do Decreto n º 578/92, de 24 de junho de 1992, que, ao disciplinar a cláusula de preservação do NÃO CONSTA

NÃO CONSTA

Recomendar a suspensão imediata do repasse de recursos federais aos convênios firmados com a ANCA, CONCRAB E ITERRA, em virtude das graves irregularidades detectadas pelos técnicos do TCU. (RECOMENDAÇÃO REJEITADA)

15. Determinar ao Ministério d a Justiça que promova as diligências necessárias para garantir a integridade física de todas as pessoas ameaçadas de morte em decorrência de conflitos por terra.

Determinar ao Ministério da Justiça que promova as diligências necessárias para garantir a in tegridade física de todas as pessoas ameaçadas de morte em decorrência de conflitos por terra, sejam fazendeiros ou trabalhadores rurais, intensificando as buscas por armamento irregular também nos assentamentos e acampamentos sem – terra, focos sabidos d e violência no campo.

16. Com a celeridade que a situação recomenda, incluir as pessoas ameaçadas de morte que constam da lista abaixo*, elaborada pela Comissão Pastoral da Terra, no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ou outros congên eres ligadas à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República ou ao Ministério da Justiça. (*)lista no original com 44 nomes.

NÃO CONSTA

17. Determinar à Polícia Federal que organize operações especiais para capturar os 29 mandantes e pistoleiros com prisões preventivas decretadas, mas que se encontram foragidos, conforme relação** abaixo. (**) No original consta relação de 21 foragidos da justiça.

NÃO CONSTA

18. Determinar à Polícia Federal para que reforce a segurança da Superintendente Regional do INCRA -AP, Maria Cristina do Rosário Almeida

NÃO CONSTA

19. Determinar à Polícia Federal que organize força tarefa para investigar a constituição de organizações que incentivam e promovem a violência no campo, inclusive com a contratação de milícias privadas e o tráfico internacional de armas, patrocinadas por proprietários rurais, bem como as relações que mantêm entre si nos diversos Estados (os chamados “consórcios” de entidades).

19. Determinar à Polícia Federal que organize força tare fa para investigar a constituição de organizações que incentivam e promovem a violência no campo, especialmente aquelas ligadas ao contrabando de armas e sua utilização na invasão de propriedades privadas. Aprovada com a seguinte: “Determinar à Polícia Fed eral que organize força tarefa para investigar a constituição de organizações que incentivam e promovem a violência no campo”.

20. Aumentar o efetivo da Polícia Federal e fortalecer o INCRA, o IBAMA e a FUNAI nas regiões onde os conflitos agrários são mai s intensos.

20. Aumentar o efetivo da Polícia Federal e fortalecer o INCRA, o IBAMA e a FUNAI nas regiões onde os conflitos agrários são mais intensos, a fim de garantir o direito de propriedade.

21. Criar escritório do INCRA e novos postos da Polícia Fed eral na

9. Revogação dos arts. 4º, § 1º, e art. 8º do Decreto nº 578/92, de 24 de junho de 1992, que, ao disciplinar a cláusula de preservação do valor real da terra, fez incidir juros compensatórios e correção monetária plena sobre os Títulos da Dívida Agrária, o que representa manifesta inconstitucionalidade, na medida em que transforma a propriedade que não cumpre a função social em ativo financeiro altamente rentável no mercado imobiliário.

NÃO CONSTA

10. Editar novo decreto, de sorte a corrigir as distorções atualmente existentes, aplicando -se índices específicos que permitam auferir o valor de mercado do imóvel.

NÃO CONSTA

11. Criação de Ouvidorias Agrárias Federais nos Estados da Federação, dotadas de orçamento e estrutura, a fim de maximizar o trabalho de prevenção extrajudicial e descentralizada dos conflitos no campo.

IDEM

12. Regulamentação das Ouvidorias Agrárias, com definição específica sobre o papel dos ouvidores.

Regulamentação das Ouvidorias Agrárias, através de projeto de lei a ser elaborado p elo Ministério do Desenvolvimento Agrário, com definição específica sobre o papel dos ouvidores, estrutura e competência do órgão, a fim de evitar as condutas abusivas que vem sendo verificadas atualmente.

13. Prestação de assistência técnica, jurídica e social permanente às famílias beneficiárias da reforma agrária, através da coordenação articulada entre o MDA, o INCRA e as diferentes esferas governamentais e não -governamentais, atendendo aos acampados, assentados, agricultores familiares, comunidades in dígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, garimpeiros e trabalhadores atingidos por barragens, minimizando o impacto das dificuldades enfrentadas, contribuindo para a garantia dos direitos humanos e iniciando um processo de informação e formação pa ra inclusão social e produtiva dessas famílias.

Alterar a forma pela qual vem sendo prestada assistência técnica, jurídica e social aos assentados e aos proprietários rurais de pequeno porte, de modo a favorecer um melhor controle sobre efetiva prestação. O mecanismo que hoje vem sendo aplicado, de celebração de convênios com a ANCA para terceirização de tais serviços, vem sendo alvo de pesadas críticas tanto por seus supostos beneficiários diretos quanto pelos técnicos do TCU.

14. Nos casos específicos de Rondônia e Pará, fornecer assistência técnica e capacitação para as famílias beneficiárias dos programas de reforma agrária, promovendo atividades agro -florestais, permitidas no Zoneamento Sócio -Econômico e Ecológico do Estado, como forma de viabilizar assentamentos em Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e de produção florestal

IDEM

CPMI DA TERRA - Quadro comparativo das

recomendações dos relatório vencido e vencedor

21. Criar escritório do INCRA e novos postos da Polícia Federal na região de Confresa (MT), para agilizar a solução dos conflitos existentes.

IDEM

22. Determinar à Polícia Federal que forneça proteção aos funcionários do INCRA, FUNAI e IBAMA que se encon tram ameaçados no exercício de suas funções

NÃO CONSTA

23. Garantir recursos orçamentários necessários à implantação e manutenção dos programas e metas de reforma agrária, bem como às ações de combate a violência no campo promovidas pela Polícia Federal, INCRA, IBAMA e FUNAI.

NÃO CONSTA

24. Dotar as Superintendências Regionais do INCRA, especialmente a do Amapá, de infra -estrutura e recursos humanos e financeiros, para que possam concluir os processos de sindicância sobre envolvimento de funcionários em irregularidades, bem como executar as demais tarefas que são de sua atribuição específica.

IDEM

25. Incluir representantes da CPT do Amapá e do Ministério Público Federal daquele Estado na Comissão, coordenada pela Casa Civil da Presidência da Repúblic a, que estuda o repasse de terras da União para o Amapá.

NÃO CONSTA

26. Demarcar as terras de Marinha em toda a zona costeira brasileira. IDEM

27. Agilizar as ações vinculadas ao Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, em especial o seu Zoneamento Eco nômico Ecológico ZEE).

IDEM

NÃO CONSTA

Recomendar à Polícia Federal e à ABIN que investigue ou retome as investigações sobre as denúncias de treinamento de guerrilha e de interferência das FARC colombianos de uma forma geral em centros de treinamento do MST, especialmente no assentamento da Fazenda Normandia, em Pernambuco.

28. Determinar que INCRA identifique as famílias que ocupam a terra indígena Marãiwatsede, Estado do Mato Grosso, reassentando -as em outras áreas.

NÃO CONSTA

29. Promover a definit iva desintrusão daquela terra indígena. NÃO CONSTA 30. Determinar a criação de um grupo de trabalho, coordenado pela FUNAI e com a participação de representantes das populações indígenas, para realizar levantamento das terras de Marinha e

NÃO CONSTA

30. Determinar a criação de um grupo de trabalho, coordenado pela FUNAI e com a participação de representantes das populações indígenas, para realizar levantamento das terras de Marinha e devolutas, bem como a verificação da cadeia dominial das terras ditas particulares nessas áreas, para solucionar os conflitos demarcando e homologando as terras indígenas, especialmente no Estado do Ceará e em todo o Nordeste brasileiro.

NÃO CONSTA

Page 130: Revista Abra 33

Quadro comparativo das recomendações dos relatório vencido e vencedorCPMI DA TERRA

31. Constituir comissão, coordenada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, e composta pela Polícia Federal, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Ministérios Públicos Federal e Estaduais e Ministério do Desenvolvimento Agrário, a fim de realizar diagnóstico sobre a atuação das empresas de segurança privada e encaminhar solução para os problemas atuais, inclusive com proposta de legislação específica para a atuação na área rural.

NÃO CONSTA

32. Executar as metas do Plan o Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. NÃO CONSTA

33. Fortalecer, com recursos financeiros e humanos, os Grupos Móveis de Fiscalização, revendo a base de cálculo para o pagamento de diárias entre outros ajustes ao bom desempenho desses grupos.

NÃO CONSTA

34. Desenvolver ações repressivas e preventivas nas localidades que concentram o aliciamento e o alojamento de trabalhadores rurais para o trabalho escravo, como Redenção, Açailândia, Marabá, Santana do Araguaia e Sapucaia, no Pará.

NÃO CONSTA

35. Incentivar a participação dos Estados, estimulando a elaboração de Planos Estaduais de Erradicação do Trabalho Escravo NÃO CONSTA

36. Celebrar convênios de cooperação técnica com os Estados para combater o trabalho escravo nas regiões com maior incidên cia, identificando origem (locais de aliciamento), rotas e destino (locais de uso do trabalho forçado) dessa prática.

NÃO CONSTA

37. Criar no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), comissão especial interna para investigar os casos de irregularidades de conduta de funcionários do INCRA, sem prejuízo de investigação por parte da Controladoria Geral da União.

IDEM

44. Determinar as diligências necessárias para esclarecimento dos fatos e prisão dos responsáveis pela morte de José Dutra da Costa, o Dezinho, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Rondon do Pará, ocorrida em 21 de novembro de 2000, e do Tesoureiro do Sindicato, Sr. Ribamar Francisco dos Santos, assassinado em 7 de fevereiro de 2004.

NÃO CONSTA

45. Promover as diligências necessárias para apurar denúncia de que na fazenda de José Leite Barros, localizada no Município de Rondon do Pará, exis tira cemitério clandestino;

NÃO CONSTA

46. Determinar à Corregedoria da Polícia Militar que investigue a participação de policiais em operações ilegais de despejo, atuação junto a pistoleiros e milícias privadas, assim como a instalação de posto e seguran ça em uma área (denominada Fazenda Rio Curuá) sob o controle privado da empresa Indústria, Comércio, Exportação e Navegação do Xingu Ltda (INCENXIL), localizada na Região de Terra do Meio.

NÃO CONSTA

47. Determinar diligências para apurar eventuais respon sabilidades na operação da Polícia Militar, comandada pelo Tenente PM Guimarães e pelo Sargento Ronaldo, em que policiais teriam adentrado, sem ordem judicial, acampamento na Fazenda Oriente, Município de Concórdia do Pará, e teriam destruído casas de agricultores, nos termos da denúncia realizada pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura dos Estado do Pará e Amapá

NÃO CONSTA

48. Determinar diligências para apurar eventuais responsabilidades de policiais que, em cumprimento de ordem judicial de reint egração de posse, teriam queimado mais de 60 barracos e 290 redes e outros pertences dos agricultores que ocupavam a fazenda no Município de Acará, fato que ocorreu no dia 26 de maio de 2004.

NÃO CONSTA

49. Ajuizar, em caráter de urgência, todas as ações discriminatórias e reivindicatórias pertinentes a serem promovidas na região do Pontal do Paranapanema, visando aquisição de áreas para a reforma agrária.

NÃO CONSTA

50. Agilizar a arrecadação das terras devolutas já discriminadas, priorizando as glebas j á negociadas, com o assentamento imediato das famílias de trabalhadores rurais sem -terra da região

NÃO CONSTA

38. Determinar que a Presidência Nacional do INCRA instaure, em caráter de urgência, processos de sindicância para apuração de responsabilidades dos servidores da Superintendência da autarquia em Rondônia, suspeitos de integrarem esquema de grilagem, com a s devidas punições administrativas, civil e penal.

IDEM

39. Determinar que os diferentes órgãos da administração direta e indireta da União arrematem ou adjudiquem em ações de execução, ou recebam, em dação de pagamento de créditos de qualquer natureza, imóveis rurais suscetíveis de destinação à reforma agrária, sob condição de prévia manifestação do INCRA, ao qual deverão, concomitantemente ou subseqüentemente, ser tais imóveis repassados à autarquia, gratuitamente ou mediante contrapartida em Títulos da Dívida Agrária.

NÃO CONSTA

40. Criar grupo de trabalho no âmbito da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, para estudar alterações na Instrução Normativa 01/1997, prevendo mecanismos que possam compatibilizar o interesse da administraçã o no controle da aplicação dos recursos públicos e às especificidades dos beneficiários de convênios que, em função das limitações impostas pela realidade, estejam impossibilitados de cumprir a norma tal como está redigida atualmente.

Criar grupo de trabal ho no âmbito da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, para estudar mecanismos que tornem mais rigorosa a fiscalização da execução dos convênios firmados para assistência aos beneficiários por programas de reforma agrária. Deve ser verifi cado o fiel cumprimento da Instrução Normativa 01/1997, a fim de evitar uma prestação de contas meramente formal, com as fraudes, vícios e omissões verificadas pelos técnicos do TCU nos convênios executados com a ANCA, CONCRAB e ITERRA.

41. Determinar que o INCRA celebre contratos de comodato com as entidades, legalmente constituídas para representar as famílias assentadas, tendo por objeto as áreas dos assentamentos em que forem (ou onde estejam sendo) instaladas escolas, centros de capacitação e outras e struturas de uso comunitário.

Determinar que o INCRA exija adequada contrapartida sempre que celebrar contratos com as entidades, legalmente constituídas para representar as famílias assentadas, tendo por objeto as áreas de assentamentos em que forem (ou o nde estão sendo) instaladas escolas, centros de capacitação e outras estruturas de uso comunitário. Exigir ainda que as atividades aí praticadas sejam fiscalizadas, a fim de evitar que cursos de técnicas de guerrilha e preparação para atos violentos sejam ministrados nessas dependências.

42. Criar força -tarefa, no âmbito da Secretaria de Segurança Pública, com a presença do Ministério Público Federal e Estadual, da Polícia Federal e Rodoviária Federal, de sorte a agilizar a investigação dos crimes decorrentes dos conflitos agrários, sobretudo nos casos em que ocorreram mortes, a fim de identificar os executores e os mandantes.

NÃO CONSTA

43. Determinar a investigação de eventuais responsabilidades do Delegado Jamil Casseb na operação policial que resultou na morte do agricultor José Orland o de Souza, ocorrida em Santarém, em 3 de maio de 2003, nos termos da denúncia realizada pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura dos Estado do Pará e Amapá.

NÃO CONSTA

51. Apurar, de forma sistemática, a formação de milícias por parte de fazendeiros na região do Pontal do Paranapanema, promovendo o desarmamento e a investigação do tráfico de armas.

NÃO CONSTA

52. Fortalecer e apoiar a atuação da Comissão de Mediação de Conflitos Agrários, na prevenção à violência no campo. NÃO CONSTA

53. Promover campanhas, divulgando as áreas de conservação permanente e as reservas biológicas e indígenas, sua utilidade e as limitações de seu uso, informando as penas previstas em lei àq ueles que violarem a legislação.

NÃO CONSTA

54. Determinar que órgãos competentes promovam o desarmamento nas áreas de conflitos e o combate às milícias armadas. NÃO CONSTA

55. Revisar e aprimorar o Zoneamento Sócio –Econômico Ecológico, efetivando sua im plementação em todo o Estado de Rondônia.

NÃO CONSTA

56. Aprofundar as investigações envolvendo a formação de milícias privadas e grupos de extermínio, patrocinadas por proprietários rurais.

NÃO CONSTA

57. Promover o desarmamento das pessoas envolvidas n os conflitos agrários. NÃO CONSTA

58. Aumentar o efetivo das Polícias Militar e Civil e fortalecer a presença do Instituto de Terras (ITER) nas regiões onde os conflitos agrários são mais intensos

NÃO CONSTA

59. Realizar operações de desarmamento nas áre as de maior intensidade de conflitos fundiários. NÃO CONSTA

60. Apurar, com rigor e celeridade, as denúncias de formação de milícias armadas, garantindo a punição dos responsáveis. NÃO CONSTA

61. Promover o ajuizamento, em caráter de urgência, de todas a s ações discriminatórias e reivindicatórias pertinentes relativas à terras devolutas e/ou griladas em Minas Gerais.

NÃO CONSTA

62. Agilizar a arrecadação das terras devolutas já discriminadas, priorizando as glebas já negociadas, com o assentamento imediato das famílias de trabalhadores rurais sem -terra da região.

NÃO CONSTA

63. Aumentar o efetivo das Polícias Militar e Civil nas regiões onde os conflitos agrários são mais intensos NÃO CONSTA

64. Realizar operações de desarmamento nas áreas de maior intensidade de conflitos fundiários. NÃO CONSTA

65. Apurar, com rigor e celeridade, as denúncias de formação de milícias armadas, g arantindo a punição dos responsáveis. NÃO CONSTA

66. Criar comissão de mediação de conflitos agrários, envolvendo órgãos governamentais e representantes dos setores envolvidos. NÃO CONSTA

Page 131: Revista Abra 33

Quadro comparativo das recomendações dos relatório vencido e vencedorCPMI DA TERRA

67. Realizar operações de desarmamento nas áreas de maior intensidade de conflitos fundiários. NÃO CONSTA

68. Desenvolver ação conjunta entre as Polícias Estaduais e Federal, Ministérios Públicos Estaduais e Federal, possibilitando a fiscalização das fals as empresas de segurança e a punição dos responsáveis pela violência no campo.

NÃO CONSTA

69. Rever a política de apoio à carcinicultura, suspendendo os empreendimentos sem licenciamento e modificando a resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CO EMA) que permite a instalação de viveiros em áreas do ecossistema manguezal (salgados, apicuns e carnaubais).

NÃO CONSTA

70. Criação de unidades de conservação e de uso sustentável nas comunidades litorâneas. NÃO CONSTA

71. Criação de força tarefa, coord enada pelo Instituto do Desenvolvimento Agrário (IDACE), para ações de discriminação das terras públicas devolutas, em especial na zona costeira.

NÃO CONSTA

72. Determinar ao Instituto de Terras do Amapá (TERRAP) que promova trabalho conjunto com o INCRA, a fim de regularizar as posses de milhares de pequenos posseiros.

NÃO CONSTA

73. Garantir, na Lei Orçamentária de 2006, os recursos necessários para o cumprimento das metas previstas no II Plano Nacional de Reforma Agrária, incluindo recursos suficientes para contemplar as metas dos anos anteriores não cumpridas por falta de verbas.

Garantir, na Lei Orçamentária de 2006, os recursos necessários para a infra -estrutura dos assentamentos já realizados, priorizando a fixação do assentado e sua adequada subsis tência, antes de partir para a realização de novas desapropriações.

74. Discutir, votar e aprovar a PEC nº 281/2000, de autoria da Dep. Luci Choinacki e outros, que estabelece o limite da propriedade rural no Brasil em 35 módulos fiscais, em tramitação na Câmara dos Deputados.

NÃO CONSTA

84. Inserir novo inciso ao art. 927 do Código de Processo Civil, para que a petição inicial nas ações possessórias comprove o cumprimento dos elementos da função social da propriedade (ambiental, trabalhista e produtividade), sob pena de indeferimento, nos termos do Projeto de Lei apresentado no anexo I deste Relatório

NÃO CONSTA

85. Alterar o art. 928 do CPC, de sorte a exigir a prévia oitiva do representante do Ministério Público e dos órgãos agrários federal e estadual, antes da concessão da liminar, no s termos do Projeto de Lei apresentado no anexo I deste Relatório .

NÃO CONSTA

86. Discutir, votar e aprovar o PLS 64/2005, de autoria do Senador Álvaro Dias, em tramitação no Senado Federal, que altera o art. 928 do CPC, tornando obrigatória a inspeção ju dicial nas ações de reintegração de posse de áreas objetos de conflitos coletivos.

IDEM

87. Criar comissão para apresentar projeto de lei que estabeleça procedimentos mínimos para os casos de cumprimentos de mandados expedidos em ações possessórias, respe itando o princípio da dignidade humana, os Tratados Internacionais e Convenções de Direitos Humanos que o Brasil é signatário.

NÃO CONSTA

88. Discutir, votar e aprovar a Proposta de Emenda Constitucional apresentada pelo Conselho da Justiça Federal, que t rata da criação das varas agrárias federais.

NÃO CONSTA

89. Criar comissão para promover ampla discussão com os parlamentares e a sociedade civil, em torno das propostas de emendas à Constituição que instituem a Justiça Agrária.

NÃO CONSTA

90. Discutir, votar e aprovar o PL nº 5.222/2005, de autoria do Deputado Anselmo, em tramitação na Câmara dos Deputados, que inclui no Grupo das Unidades de Uso Sustentável a Reserva Legal em Bloco, previsto na Lei nº 9.985/2000.

NÃO CONSTA

91. Apreciar a MP nº 2.168 -39, de 26 de julho de 2001, conformando a estrutura e funcionamento do Serviço Nacional de Aprendizagem Cooperativista (SESCOOP) ao texto constitucional, com modificações que visem impedir que uma entidade representativa dos interesses do patronato rural p romova a administração direta de recursos públicos arrecadados mediante cobrança de contribuições previdenciárias.

NÃO CONSTA

75. Discutir, votar e aprovar a PEC 438/2001, já aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados, que dá nova redação ao art. 243 da Constituição Federal e estabelece a expropriação de áreas onde for constada a exploração de trabalho escravo.

NÃO CONSTA

76. Criar comissão para apresentar projetos de lei aprimorando a legislação civil no que diz respeito às indenizações às pessoas lesadas pelo trabalho escravo, bem como no que concerne à competência da Justiça Federal para processar e julgar as ações penais decorrentes da prática do trabalho escravo, como lesão aos direitos humanos e à organização do trabalho.

NÃO CONSTA

77. Discutir, votar e aprovar a PEC nº 374/2005, de autoria do Deputado Federal Dr. Rosinha e outros, em tramitação na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre a estatização dos cartórios.

Constituir comissão especial destinada a discutir as novas diretrizes que devem guiar o funcionamento dos cartórios de imóveis, adaptando-os às modernas tecnologias e a novos mecanismos de controle con tra grilagem de terras.

78. Promover alteração no parágrafo único do art. 185 da Constituição Federal, compatibilizando o conceito de “propriedade produtiva” com os preceitos constitucionais que condicionam o direito de propriedade ao atendimento dos requ isitos inerentes à função social, nos termos da PEC apresentada no anexo I deste Relatório.

NÃO CONSTA

79. Discutir, votar e aprovar imediatamente o PL nº 5.946/2005, em tramitação na Câmara dos Deputados, de autoria do Deputado Adão Pretto, que modifica o art. 11 da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, ajustando os parâmetros, índices e indicadores de produtividade das propriedades em períodos não superiores a 5 (cinco) anos.

NÃO CONSTA

80. Promover alterações na Lei Complementar 76/93, de sorte a agilizar o processo judicial de desapropriação para fins de reforma agrária, nos termos do Projeto de Lei Complementar apresentado no anexo I deste Relatório .

NÃO CONSTA

81. Discutir, votar e aprovar o PLS 566/1999, de autoria do Senador Antônio Carlos Mag alhães, em tramitação no Senado Federal, que altera dispositivos da Lei Complementar nº 76, de 06 de julho de 1993, com as ressalvas constantes do Projeto de Lei Complementar apresentado no anexo I deste Relatório .

NÃO CONSTA

82. Promover alterações na Lei 8.629/93, nos tópicos relativos à vistoria e avaliação preliminar do imóvel, ao atendimento das funções trabalhista e ambiental pela propriedade, entre outros, tornando a lei agrária mais consentânea com os dispositivos constitucionais que tratam da reforma agrária, nos termos do Projeto de Lei apresentado no anexo I deste Relatório .

NÃO CONSTA

83. Promover alteração na Lei n.º 6.383/76 conferindo também aos processos discriminatórios estaduais o caráter preferencial e prejudicial em relação às ações em andamento, referentes a domínio ou posse de imóveis situados, no todo ou em parte, na área discriminada, nos termos do Projeto de Lei apresentado no anexo I deste Relatório .

NÃO CONSTA

92. Editar nova lei em substituição à Lei n° 8.315, de 23 de dezembro de 1991, que cria o SENAR, impedindo que uma entidade representativa dos interesses do patronato rural promova a administração direta de recursos públicos arrecadados mediante cobrança de contribuições previdenciárias.

NÃO CONSTA

93. Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 31ª e 32ª reuniões desta CPMI e cópia dos documentos autuados pela Secretária sobre tráfico de armas, à Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a inve stigar as organizações criminosas e o tráfico de armas, em funcionamento na Câmara dos Deputados.

NÃO CONSTA

94. Encaminhar cópia dos documentos autuados pela Secretária, referentes à questão indígena, às comissões específicas existentes no Congresso Naci onal.

NÃO CONSTA

95. Encaminhar cópia dos documentos autuados pela Secretária, referentes aos remanescentes de quilombos, às comissões específicas existentes no Congresso Nacional. 0

NÃO CONSTA

96. Criar uma Comissão Permanecente de Reforma Agrária e Justiça no Campo da Câmara dos Deputados, com competência para conhecer e encaminhar questões atinentes esse campo temático.

NÃO CONSTA

NÃO CONSTA

Encaminhar cópia dos documentos autuados pela Secretaria, referentes à atuação, organização e funcionamento do s movimentos sociais no campo, à Comissão Parlamentar de Inquérito específica que aguarda instalação na Câmara dos Deputados, fazendo -se acompanhar de nota de confidencialidade sempre que se tratar de documento protegido por sigilo . (RECOMENDAÇÃO REJEITADA)

97. Concluir as auditorias nos convênios celebrados entre a administração direta e indireta da União e a ANCA, CONCRAB e ITERRA, e, após garantido o contraditório e a ampla defesa, nos casos de comprovação de irregularidades, aplicar as sanções cabíveis.

Concluir as auditorias nos convênios celebrados entre a administração direta e indireta da União e a ANCA, CONCRAB e ITERRA, e, após garantido o contraditório e a ampla defesa, nos casos de comprovação de irregularidades, aplicar as sanções cabíveis. Para tanto, encaminhem -se cópias da documentação sigilosa obtida por esta CPMI envolvendo a movimentação financeira e fiscal das citadas entidades, a fim de que sirvam como subsídio às investigações daquela Corte de Contas, devendo tal documentação ser acompa nhada de nota de confidencialidade.

NÃO CONSTA Determinar que o TCU fiscalize, anualmente, os convênios com

NÃO CONSTA

Determinar que o TCU fiscalize, anualmente, os convênios com organizações não governamentais, especialmente aquelas ligadas à reforma agrária, e envie relatório consolidado à Comissão Mista de Orçamento e Finanças do Congresso Nacional.

Page 132: Revista Abra 33

Quadro comparativo das recomendações dos relatório vencido e vencedorCPMI DA TERRA

NÃO CONSTA

Determinar que o TCU fiscalize, anualmente, as despesas dos programas de reforma agrária, especialmente os gastos com obtenção de terras e consolidação de assentamentos, e envie relatório consolidado à Comissão Mista de Orçamento e Finanças do Congresso Nacional.

98. Concluir as auditorias nos convênios celebrados entre a administração direta e indireta da União e a OCB e SRB, e, após garantido o contraditório e a ampla defesa, nos casos de comprovação de irregularidades, aplicar as sanções cabí veis.

NÃO CONSTA

99. Promover auditoria na aplicação dos recursos públicos arrecadados mediante contribuições previdenciárias e repassados ao Sistema Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) e ao Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP), no período compreendido entre 1998 a 2005. As auditorias devem ser realizadas tanto no SENAR e SESCOOP nacionais, quanto nos SENARs e SESCOOPs estaduais.

NÃO CONSTA

100. Considerando a ausência de informações precisas sobre a morosidade dos processos jud iciais de desapropriação e de arrecadação, recomenda -se a realização de estudo sobre a aferição do tempo médio de tramitação das ações de desapropriação, discriminação e arrecadação.

NÃO CONSTA

101. Recomendar, a todos a juizes e tribunais que integram o Poder Judiciário, o julgamento em caráter preferencial das ações e recursos judiciais que envolvam desapropriação, discriminação de terras devolutas e a retomada de terras públicas, de modo a agilizar a implementação da reforma agrária e viabilizar a justi ça no campo.

NÃO CONSTA

102. Realizar seminário entre juizes federais, desembargadores de Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, ministros do Superior Tribunal de Justiça e representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Cong resso Nacional e de organizações da sociedade civil ligadas à questão agrária, para discutir o papel do Poder Judiciário na realização da reforma agrária, tendo como eixo o II Plano Nacional de Reforma Agrária.

NÃO CONSTA

103. Realizar correição em todos os cartórios envolvidos em irregularidades, criando mecanismos e procedimentos para sanar, efetivamente, as mesmas e punir os responsáveis.

NÃO CONSTA

NÃO CONSTA

Recomendar ao Ministério Público o indiciamento e a adequada persecução cível e criminal dos responsáveis pelos crimes de formação de quadrilha, extorsão e demais delitos ligados às práticas da direção do Movimentos dos Sem – Terra (MST), especi almente: João Pedro Stédile – Coordenador Nacional do MST; Gilmar Mauro – Coordenador Nacional do MST; João Paulo Rodrigues – Diretor Nacional do MST; José Rainha Júnior – Coordenador do MST do Pontal do Paranapanema, Estado de São Paulo; Jaime Amorim – Coordenador do MST de Pernambuco . (RECOMENDAÇÃO REJEITADA)

NÃO CONSTA

Recomendar ao Ministério Público, que por ocasião do ajuizamento de ações cíveis visando a indenização por danos causados a patrimônios público, privado e ambiental por membros do Movimento dos Sem – Terra (MST), passe a incluir, na qualidade de litisconsortes passivos a Associação Nacional de Cooperação Agrícola – ANCA, a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil – CONCRAB e o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa d a Reforma Agrária – ITERRA, conjunta ou separadamente, em virtude de haver restado configurado que constituem a figura jurídica de grupo econômico.

NÃO CONSTA

Envio dos autos ao Ministério Público para que avalie a atuação do Ouvidor Agrário Nacional e, c aso entenda devido, convoque -o para celebrar Termo de Ajustamento de Conduta a fim de evitar novos excessos em sua atuação.

109. Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 22ª, 23ª e 29ª reuniões desta CPMI e cópia da Fita VHS e de documentos autuados pela Secretária sob os nº 315, 342, 365, 417, ao Ministério Público Federal para que indicie Luiz Antônio Nabhan Garcia e os demais homens que participaram das imagens exibidas pelo Jornal Nacional (Rede Globo de Televisão), no dia 02 de julho de 2 003, pelos crimes de porte ilegal de armas de fogo de uso restrito (Lei Federal 9.437/97) e contrabando (arts. 334).

NÃO CONSTA

110. Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 22ª, 23ª e 29ª reuniões desta CPMI e cópia dos documentos autuados pe la Secretária sob o nº 220, para que o Ministério Público Federal no Estado de São Paulo promova o indiciamento de Manoel

NÃO CONSTA

104. Estudar e efetivar alterações nos procedimentos de correição dos cartórios, tornando mais rígido a fiscalização e garantindo a eficácia das recomendações e punições dos órgãos corregedores.

105. TJ PARANÁ: Determinar a conclusão dos inquéritos polic iais e promover o julgamento de todos os envolvidos na morte de trabalhadores rurais em conflitos coletivos pela terra, especialmente os acusados da morte de Sebastião Camargo, Paulo Sérgio Brasil, Anarolino Viau e Elias de Moura.

NÃO CONSTA

106. Impetrar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) em face dos arts. 4, § 1º, e art. 8º do Decreto nº 578, de 24 de junho de 1992, por violação do art. 184 da Constituição Federal, bem como manifestação nas ações de desapropriação, no sentido de garantir o valor real da coisa e não a transformação da propriedade improdutiva em ativo financeiro.

NÃO CONSTA

107. Encaminhar este Relatório ao Procurador Geral da República para que verifique a possibilidade do ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN s), com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei n° 8.315, de 23 de dezembro de 1991, e da MP nº 2.168 -39, de 26 de julho de 2001, que permitem a cobrança de contribuições previdenciárias e seu repasse para o SENAR e o SESCOOP , respectivamente.

NÃO CONSTA

108. Reativar o Grupo de Trabalho sobre Trabalho Escravo no âmbito da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão da Procuradoria da República.

NÃO CONSTA

NÃO CONSTA

Recomendar ao Ministério Público o indiciamento e a adequ ada persecução cível e criminal dos responsáveis por desvios de verbas públicas e prestação de contas fraudulentas em convênios firmados entre a União e os braços jurídicos do MST, especialmente: José Trevisol (ex -dirigente da ANCA – Associação Nacional de Cooperação Agrícola); Pedro Christóffoli (dirigente da ANCA – Associação Nacional de Cooperação Agrícola); Francisco Dal Chiavon (dirigente da CONCRAB – Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil)

NÃO CONSTA Recomendar ao Ministério Públi co o indiciamento e a adequada persecução cível e criminal dos responsáveis pelos crimes de formação de quadrilha, extorsão e demais delitos ligados às práticas

110. Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 22ª, 23ª e 29ª reuniões desta CPMI e cópia dos documentos autuados pela Secretária sob o nº 220, para que o Ministério Público Federal no Estado de São Paulo promova o indiciamento de Manoel Domingues Paes Neto, por crime de falso testemunho, conforme previsto no art. 342 do Código Penal Brasileiro.

NÃO CONSTA

111. Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária contendo as informações bancárias, fiscais e telefônicas, ao M inistério Público Federal no Pará, sob a garantia do sigilo, para que determine a instauração de procedimento criminal contra Laudelino Délio Fernandes Neto, Regivaldo Pereira Galvão, Danny Gutzeit, tendo em vista que não apresentaram declarações de imposto de renda em alguns períodos, entre 1998 a 2004.

NÃO CONSTA

112. Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária contendo as informações bancários, fiscais e telefônicos, ao Ministério Público Federal no Pará, sob a garantia do sigilo, para instrução dos inquéritos e processos criminais nos quais Laudelino Délio Fernandes Neto, Francisco Alberto de Castro, Lázaro de Deus Vieira Neto, Regivaldo Pereira Galvão, Danny Gutzeit, José Francisco Vitoriano, Vitalmiro Gonçalves de Moura, Luiz Ungaratti, Yoakim Petrola de Melo Jorge figurem como investigados ou processados.

NÃO CONSTA

113. Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária contendo as informações bancárias, fiscais e telefônicas, à Receita Federal do Pará, sob a garantia do sigilo, para que instaure procedimento de fiscalização contra Laudelino Délio Fernandes Neto, Regivaldo Pereira Galvão, Danny Gutzeit, tendo em vista que não apresentaram declarações de imposto de renda em alguns períodos, entre 19 98 a 2004.

NÃO CONSTA

114. Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 36ª reunião desta CPMI e cópia dos documentos autuados pela Secretária sob os nº 356, 357, 358, 369, 383, ao Ministério Público Federal no Mato Grosso para que determine a in stauração de procedimento de investigação acerca das ações de Gilberto Luiz de Resende, conhecido como “Gilbertão”, no que tange a fraude em títulos relativos a terras públicas da União na região de

NÃO CONSTA

114. Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 36ª reunião desta CPMI e cópia dos documentos autuados pela Secretária sob os nº 356, 357, 358, 369, 383, ao Ministério Público Federal no Mato Grosso para que determine a instauração de procedimento de investigação acerca das ações de Gilberto Luiz de Resende, conhecido como “Gilbertão”, no que tange a fraude em títulos relativos a terras públicas da União na região de Confresa/MT.

NÃO CONSTA

115. Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos au tuados pela Secretária contendo as informações bancárias do SENAR/RS, sob a garantia do sigilo, para que o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul possa instruir o Procedimento Administrativo nº 1.29.000.000683/2001 -11.

NÃO CONSTA

116. Recomenda a o Ministério Público de Pernambuco Promover diligências para apurar denúncias de que a Polícia Militar associou -se a jagunços, pagos pelos proprietários da Usina Aliança, no município de Aliança, a fim de promover desocupação ilegal de área ocupada por tra balhadores rurais

NÃO CONSTA

Page 133: Revista Abra 33

Quadro comparativo das recomendações dos relatório vencido e vencedorCPMI DA TERRA

115. Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária contendo as informações bancárias do SENAR/RS, sob a garantia do sigilo, para que o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul possa instruir o Procedimento Administrativo nº 1.29.000.000683/2001 -11.

NÃO CONSTA

116. Recomenda ao Ministério Público de Pernambuco Promover diligências para apurar denúncias de que a Polícia Militar associou -se a jagunços, pagos pelos proprietários da Usina Aliança, no município de Aliança, a fi m de promover desocupação ilegal de área ocupada por trabalhadores rurais

NÃO CONSTA

117. Encaminhar ao Ministério Público do Pará este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária contendo as informações bancários, fiscais e telefônicos, ao Ministério Público do Estado do Pará, sob a garantia do sigilo, para instrução dos inquéritos e processos criminais nos quais Laudelino Délio Fernandes Neto, Francisco Alberto de Castro, Lázaro de Deus Vieira Neto, Regivaldo Pereira Galvão, Danny Gutzeit, José Francisco Vitoriano, Vitalmiro Gonçalves de Moura, Luiz Ungaratti, Yoakim Petrola de Melo Jorge figurem como investigados ou processados.

NÃO CONSTA

118. Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária sob o nº 375, ao Minis tério Público do Estado do Pará, para que indicie Décio José Barroso Nunes (Delsão), pelos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do CPB) e apropriação ilegal de terra pública, além de outros que os representantes do parquet entenderem cabíveis.

NÃO CONSTA

127. Garantir a efetiva participação popular na elaboração dos planos diretores municipais, na definição e implementação de uma política habitacional de interesse social e na gestão democrática das cidades;

NÃO CONSTA

128. Priorizar a implantação das zona s especiais de interesse social, com vistas à regularização das ocupações de baixa renda. NÃO CONSTA

129. Implantação urgente de uma política habitacional de forma descentralizada e participativa, integrada à política urbana, envolvendo os movimentos soci ais de luta pela moradia, estados e municípios.

NÃO CONSTA

130. Previsão de recursos, no Orçamento Geral da União, para viabilizar os programas de acesso ao crédito e financiamentos habitacionais, principalmente para a população de baixa renda.

NÃO CONSTA

131. Implementação imediata da Lei no 11.124/05, especialmente do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. NÃO CONSTA

132. Regularização fundiária das ocupações e assentamentos irregulares de baixa renda, conforme prevê o Estatuto das Cidades. NÃO CONSTA

133. Cumprimento imediato das determinações previstas na Medida Provisória nº 2.220, de 2001, que estabeleceu a concessão especial de uso para fins de moradia em terras públicas.

NÃO CONSTA

134. Incentivo às cooperativas habitacionais e os muti rões para a produção de habitação de interesse social, com garantia de assistência técnica e material.

NÃO CONSTA

135. Revisão da legislação de parcelamento do solo e de registro de imóveis, com vistas à simplificação de procedimentos de regularização fun diária e à redução de custos.

NÃO CONSTA

136. Aprovação imediata do Projeto de Lei nº 3.057, de 2000, que “inclui § 2º no art. 41, da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, numerando-se como parágrafo 1º o atual parágrafo único”, na forma de Substitutivo que promove ampla revisão e atualização da referida lei, à luz do Estatuto da Cidade.

NÃO CONSTA

137. Elaboração e aprovação de lei complementar, prevista no art. 23, parágrafo único, da Constituição Federal, que fixará normas para a cooperação entre os diversos estados federados, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem -estar em âmbito nacional, em especial no que tange à promoção de programas de

NÃO CONSTA

119. Ao Ministério Público do Estado do Pará para promover diligências para apurar denúncias do envolvimento do Delegado de Polícia Civil, Pedro Monteiro, com fazendeiros e jagunços da região de Anapú, apontados como responsáveis por práticas violentas contra trabalhadores rurais.

120. Ao Ministério Público do Estado do Pará: Criar força -tarefa com o objetivo de fiscalizar a atuação das Polícias Civil e Militar do Estado do Pará, nos diversos Inquéritos Policiais não concluídos, envolvendo crimes decorren tes de conflitos no campo.

NÃO CONSTA

121. Ao Ministério Público do Estado do Pará: Promover diligências para verificar a participação de tabeliões e registradores na prática de delitos como a grilagem de terras e fraudes nos registros de imóveis.

NÃO CONSTA

122. Ministério Público de São Paulo: Encaminhar este Relatório e cópia dos documentos autuados pela Secretária que tratam das transferências dos sigilos bancários, fiscais e telefônicos de Manoel Domingues Paes Neto, ao Ministério Público do Estado d e São Paulo, sob a garantia do sigilo, para instrução dos inquéritos e processos criminais que apuram contrabando e porte ilegal de armas.

NÃO CONSTA

123. Ministério Público de São Paulo: Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 22ª, 23ª e 29ª reuniões desta CPMI e cópia de Fita VHS e de documentos autuados pela Secretária sob os nº 315, 342, 365, 417, ao Ministério Público do Estado de São Paulo para que determine a instauração de procedimento de investigação acerca das relações existentes en tre Luiz Antônio Nabhan Garcia, a UDR Nacional e a UDR de Presidente Prudente, com a formação das milícias privadas no Pontal do Paranapanema, Estado de São Paulo.

NÃO CONSTA

124. Ministério Público do Paraná: Encaminhar este Relatório e cópia dos documen tos autuados pela Secretária sob os nº 397, 409, 410, 415, 416, 420, 421, 422 e 453, que tratam de transferências dos sigilos bancários, fiscais e telefônicos, ao Ministério Público do Estado do Paraná, sob a garantia do sigilo, para instrução dos inquéritos e processos criminais nos quais João Della Torres Neto, Waldir Copetti Neves e Adair João Sbardella figurem como investigados ou processados.

NÃO CONSTA

125. Ministério Público do Mato Grosso: Encaminhar este Relatório, as notas taquigráficas da 36ª reunião desta CPMI e cópia dos documentos autuados pela Secretária sob os nº 356, 357, 358, 369, 383, para que o Ministério Público do Estado de Mato Grosso promova o indiciamento de Gilberto Luiz de Resende, conhecido como “Gilbertão”, pelos crimes de constrangimento ilegal e ameaça, previsto nos artigos 146 e 147 do Código Penal Brasileiro, além de outros que os representantes do parquet entenderem cabíveis.

NÃO CONSTA

126. Implantação imediata pelos órgãos municipais competentes (Prefeituras e Câmaras de Vereadores), especialmente em Goiânia, das diretrizes e instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, sobretudo no que tange à elaboração e implantação dos planos diretores, garantindo -se

NÃO CONSTA

137. Elaboração e aprovação de lei complementar, prevista no art. 23, parágrafo único, da Constituição Federal, que fixará normas para a cooperação entre os diversos estados federados, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem -estar em âmbito nacional, em especial no que tange à promoção de programas de construção de moradias e à melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

NÃO CONSTA

138. A imediata aquisição da área definitiva pelo Estado de Goiás e Município de Goiânia para o assentamento das famílias desalojados do Parque Oeste Industrial, conforme compromisso do Termo de Ajustamento de Conduta firmado em maio de 2005, entre o Ministério Público do Estado de Goiás, o Governo do Estado de Goiás e a Prefeitura Municipal de Go iânia.

NÃO CONSTA

139. Implantar infra -estrutura básica e serviços públicos indispensável à garantia do direito à moradia adequada na área de assentamento.

NÃO CONSTA

140. Indenizar as famílias pelos danos materiais e morais ocorridos ao longo de todo o processo – e que ainda persistem. NÃO CONSTA

141. Realizar as melhorias necessárias para transformar as atuais moradias do acampamento provisório (Setor Grajaú) em moradias dignas e seguras e intervenção física de urbanização, tais como ampliação signific ativa do número de banheiros, aumento dos pontos de abastecimento de água etc., até o assentamento definitivo das famílias.

NÃO CONSTA

142. Garantir o atendimento à saúde e educação no acampamento provisório (Setor Grajaú), bem como provimento do direito humano à alimentação adequada através da distribuição de cestas básicas quando esta medida se fizer necessária.

NÃO CONSTA

143. Incluir as famílias despejadas em políticas públicas municipais, estaduais e federais, de transferência de renda, de forma arti culada com programas de geração de emprego e renda e qualificação profissional das famílias.

NÃO CONSTA

144. Aprovar o Plano Diretor participativo de Goiânia, prevendo os instrumentos do Estatuto da Cidade regularização fundiária e indução do cumprimento da função social e respeitando as Resoluções do Conselho Nacional das Cidades.

NÃO CONSTA

145. Demarcação da área definitiva de assentamento das famílias da Ocupação Sonho Real como Zona Especial de Interesse Social para a realização de regularização fundiária que garanta adequada urbanização e titulação.

NÃO CONSTA

146. Apresentação do Incide nte de Deslocamento de Competência perante o STJ, conforme previsto no § 5º do art. 109 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/20004, visando à federalização das investigações e do julgamento dos crimes contra os direi tos humanos ocorridos durante o despejo forçado, de sorte a garantir punição justa e exemplar dos responsáveis.

NÃO CONSTA

Page 134: Revista Abra 33

CPMI DA TERRA

147. Conclusão dos inquéritos criminais e apresentação de denúncia envolvendo os crimes eleitorais e os de improbidade administrativa cometidos por candidatos e agentes durante as eleições municipais de 2004, mediante falsas promessas de consolidação da oc upação da área do Parque Oeste Industrial que induziu o adensamento da ocupação, a resistência da família na área e o agravamento do conflito.

NÃO CONSTA

148. Devolução dos autos do Inquérito Civil Público ao Ministério Público Estadual para que conclua a s investigações e apuração da adequação do encaminhamento à Polícia, uma vez que foram colhidos depoimentos de vítimas e de policiais envolvidos na ação de despejo, com garantia de sigilo à autoridades policiais para garantia da integridade pessoal dos dep oentes.

NÃO CONSTA

149. Conclusão dos inquéritos civil e criminal que visam a apuração da responsabilidade das autoridades públicas pelas violações de direitos humanos ocorridas durante o despejo da Ocupação Sonho Real.

NÃO CONSTA

150. Envio da documenta ção, relacionada ao episódio de Goiânia e à reforma urbana no Brasil, sejam encaminhadas às Comissões de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, para que acompanhem a investigação e as ações governamentais para a solução definit iva das famílias envolvidas.

NÃO CONSTA

Page 135: Revista Abra 33

A P O I O :