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RETROVISOR S02 E01 APRESENTADOR 01:04 - Boa tarde! O teatro Eva Herz apresenta Retrovisor. Hoje, o jornalista Paulo Marcun entrevista Chiquinha Gonzaga, interpretada pela atriz Clarice Abujamra. Informamos que esta entrevista será gravada para exibição posterior na televisão. A sua presença na plateia implica na autorização para captação e uso de sua imagem e voz. 01:26 – o Programa Retrovisor é oferecido pelo Ministério da Cultura, Bradesco, Tractebel Energia e BNDES. É uma realização Revanche Produções e Media Arts. Ao final da entrevista, o público presente será convidado a fazer perguntas para a personagem. 01:43 – Agradecemos a presença de todos e um bom espetáculo! NARRADOR 01:55 – Francisca Edwiges Neves Gonzaga – ou Chiquinha Gonzaga, como ficou conhecida – carioca, pianista, compositora, autora da primeira marchinha carnavalesca com letra, Ô Abre Alas, de 1899. 02:08 – Foi também a primeira maestrina, ou seja, a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. 02:14 – Neta de escrava, era filha de um tenente do exército imperial. Cresceu em uma família que se pretendia aristocrática e teve como padrinho o Duque de Caxias. 02:24 – Aos 11 anos, depois de estudar piano, começou a compor. Aos 16, casou-se com um empresário escolhido pelo pai. O marido não aceitou sua dedicação à música, o que fez com que eles se separassem para escândalo da sociedade. 02:39 – Apaixonou-se por um rapaz muito mais jovem e passou a ganhar a vida dando aulas particulares de piano. Também tocava profissionalmente, chocando mais uma vez as senhoras bem educadas. 02:50 – Logo começou a conquistar o público nos saraus e em apresentações em teatros. Em 1912, estreia Forrobodó, seu maior sucesso teatral. É quando fala ao Retrovisor. ---------------------------------------------------------------- -----------------------------------------------------
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retrovisor chiquinha gonzaga

Jan 15, 2016

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Paulo Markun

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Page 1: retrovisor chiquinha gonzaga

RETROVISOR S02 E01

APRESENTADOR

01:04 - Boa tarde! O teatro Eva Herz apresenta Retrovisor. Hoje, o jornalista Paulo Marcun entrevista Chiquinha Gonzaga, interpretada pela atriz Clarice Abujamra. Informamos que esta entrevista será gravada para exibição posterior na televisão. A sua presença na plateia implica na autorização para captação e uso de sua imagem e voz.

01:26 – o Programa Retrovisor é oferecido pelo Ministério da Cultura, Bradesco, Tractebel Energia e BNDES. É uma realização Revanche Produções e Media Arts. Ao final da entrevista, o público presente será convidado a fazer perguntas para a personagem.

01:43 – Agradecemos a presença de todos e um bom espetáculo!

NARRADOR

01:55 – Francisca Edwiges Neves Gonzaga – ou Chiquinha Gonzaga, como ficou conhecida – carioca, pianista, compositora, autora da primeira marchinha carnavalesca com letra, Ô Abre Alas, de 1899.

02:08 – Foi também a primeira maestrina, ou seja, a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil.

02:14 – Neta de escrava, era filha de um tenente do exército imperial. Cresceu em uma família que se pretendia aristocrática e teve como padrinho o Duque de Caxias.

02:24 – Aos 11 anos, depois de estudar piano, começou a compor. Aos 16, casou-se com um empresário escolhido pelo pai. O marido não aceitou sua dedicação à música, o que fez com que eles se separassem para escândalo da sociedade.

02:39 – Apaixonou-se por um rapaz muito mais jovem e passou a ganhar a vida dando aulas particulares de piano. Também tocava profissionalmente, chocando mais uma vez as senhoras bem educadas.

02:50 – Logo começou a conquistar o público nos saraus e em apresentações em teatros. Em 1912, estreia Forrobodó, seu maior sucesso teatral. É quando fala ao Retrovisor.

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PAULO

04:19 – Boa tarde a todos! Boa tarde, Chiquinha!

CHIQUINHA

04:22 – Boa tarde!

PAULO

04:24 – Então, ontem à noite, foi apresentado mais uma vez no teatro São José, no Rio de Janeiro a sua peça Forrobodó, enorme sucesso. Tem ladrão de galinha; tem guarda

Page 2: retrovisor chiquinha gonzaga

noturno, que de dia dá aula de clarineta; tem mulata, que só gosta de dançar; tem contínuo de jornal que vira redator... Enfim, uma porção de tipos populares.

04:47 – E mais do que isso: esses tipos estão numa gafieira. Eu tenho a impressão de que é a primeira vez que um teatro da capital abre espaço pra algo tão popular. E um sucesso enorme!

CHIQUINHA

04:55 – E quem não viu não faz ideia do que perdeu! A beleza daquele teatro, né, o envolvimento dos músicos, dos atores, a felicidade deles em cena.

05:07 – E aquela plateia maravilhosa, torcendo, vaiando os vilões. Era o teatro popular. Dentro de um teatro... engomadinho da época, não é.

PAULO

05:19 – E você, com toda experiência que tem, ainda se emociona? Você estava falando ali atrás pra mim que entrar no palco, pra você, continua sendo algo que mexe com você.

CHIQUINHA

05:29 – Ah, com toda a certeza! Eu acho que qualquer profissional, né.

PAULO

05:32 – Entendi. Agora, um detalhe curioso: embora a maior parte dos personagens de Forrobodó sejam mulatos ou negros, a maioria dos atores são brancos. Por que isso?

CHIQUINHA

05:43 – Esse é o país que nós vivemos. Alforria já há vinte e quatro anos e o negro continua pagando um preço muito caro pra viver na sociedade em que vive.

PAULO

05:55 – E como é que essa história foi parar na sua mão?

CHIQUINHA

05:58 – Do musical?

PAULO

05:59 – Do Forrobodó.

CHIQUINHA

06:00 – Do Forrobodó. Pois bem, eu estava em casa e... lá na Praça Tiradentes, chegaram dois rapazes – que moravam no Catete – o Peixoto e o Carlos Bittencourt. Chegaram atarefados, enlouquecidos porque tinham varado a noite trabalhando... das oito da noite às seis da manhã e escreveram uma peça.

Page 3: retrovisor chiquinha gonzaga

06:22 – Não tinham a música. Então, me pediram pra compor a música. Eu fui ao piano, levei a letra, o roteiro da peça, compus a música.

06:34 – Não contente, procurei Pascoal Segretto e o convenci a produzir o espetáculo. E ele o fez.

06:43 – Ele... se eu não me engano, foi oitenta mil réis que ele empregou nessa produção. E foi o sucesso que foi.

PAULO

06:49 – Sucesso! Tenho impressão que esse dinheiro ele já recuperou.

CHIQUINHA

06:52 – Ah, com certeza!

PAULO

06:53 – Agora, por que apoiar jovens artistas, jovens criadores como o caso do Luiz Peixoto e do carlos Bittencourt?

CHIQUINHA

07:01 – Porque eu sei o que é isso, eu levei muito tempo pra ser reconhecida.

PAULO

07:07 – Entendi. E como é que você aprendeu música?... Posso chamar você de você?

CHIQUINHA

07:09 – Por favor, por favor. Bem, eu... da maneira mais tradicional possível. Quando era menina, na família, com o maestro Elias Lobo. Foi assim que eu comecei. Mas depois... eu fui autodidata.

07:25 – Esse meu balanço, essa minha maneira de escrever eu consegui sozinha.

PAULO

07:31 – E o teatro? Como é que entrou na sua vida?

CHIQUINHA

07:34 – Como é que o teatro entrou na minha vida? Olha, compor e compor para o teatro foi uma coisa que eu sempre quis e que fiz sozinha.

07:42 – Aliás, eu cheguei a procurar o Arthur Azevedo. E levei pra ele uma partitura que eu fiz de um libreto, que ele não aceitou por eu ser mulher.

PAULO

07:52 – Esse, aliás, é um problema... um problema frequente na sua vida. O fato de ser mulher, ser artista, não é uma coisa que combina direito nesses tempos, né.

Page 4: retrovisor chiquinha gonzaga

CHIQUINHA

08:00 – Com certeza não, são dias dificílimos pra mulher.

PAULO

08:03 – Nesse... a sua primeira composição, Atraente, parece, pra quem vê de fora, uma espécie de resumo do que viria a ser a sua arte, a sua obra: uma música pra reunir as pessoas, pra alegrar as pessoas. Era esse o seu projeto?

CHIQUINHA

08:17 – O meu projeto sempre foi fazer uma música popular alegre, sabe, que fizesse parte das reuniões do povo, das festas carnavalescas, que alegrasse e que fosse, mais do que tudo, brasileira.

PAULO

08:33 – Entendi. Agora, você buscou reconhecimento profissional. Quer dizer, você não ficou só fazendo a sua composição, né.

08:39 – Eu diria até que a batalha que você fez pra ser uma maestrina...

CHIQUINHA

08:41 – Com certeza.

PAULO

08:43 – Tem... tem a ver com isso?

CHIQUINHA

08:44 – Com certeza. Eu lutei muito. O que eu queria na minha vida era ser conhecida... Aliás, reconhecida como maestrina e respeitada.

PAULO

08:54 – E tem a história de um broche, que, aliás, você podia ter trazido hoje, Chiquinha,

CHIQUINHA

08:57 – Pois é, uma falha, me perdoe, me perdoe. Mas é.... pois é, você sabe que a sociedade carioca não me aceitava. E assim também, dentre os músicos muitos não me aceitavam.

09:10 – Tinha uns jornalistas que eu já não... digamos, eu não me dava... Com o perdão do momento, eu não me dava muito bem com eles.

PAULO

09:18 – Por favor...

Page 5: retrovisor chiquinha gonzaga

CHIQUINHA

09:19 – Apesar de alguns deles serem autores teatrais, o que tornou essa relação mais... o lado mais utilitário dela, digamos assim.

09:28 – E eles me deram de presente – alguns deles – me deram de presente um broche com as três notas, as primeiras notas musicais de uma peça minha chamada Valquíria.

09:40 – Eu guardo esse broche com... é como se fosse um reconhecimento do meu trabalho.

PAULO

09:46 – Uma espécie de medalha, digamos assim.

CHIQUINHA

09:48 – Exato.

PAULO

09:49 – E o que é que a força de vontade teve a ver com a sua trajetória?

CHIQUINHA

09:55 – Tudo. Tudo. Viver na época que eu vivi e ainda viver, né, e autodidata, eu nunca tive auxílio de governo nenhum, nunca fui pra Europa pra aprender nada.

10:07 – O que eu aprendi, aprendi sozinha. Por exemplo, eu tinha que compor músicas pra outros instrumentos. Eu não tinha aprendido isso.

10:16 – Aprendi sozinha no piano. Eu gosto de aprender.

PAULO

10:20 – Em 1895, você compôs Gaúcho, que depois foi renomeada pra Corta Jaca. Essa composição estreou numa peça fraca, que ficou pouco tempo em cartaz, mas, quatro anos depois, passou a fazer parte do repertório do Grupo Euterpe, né, ex-Estudantina. 10:36 - E acabou sendo um grande sucesso da sua carreira. Foi tocada na Europa... Em todos os cantos, o Corta Jaca é uma marca registrada da sua carreira.

10:46 – Você tinha ideia de que ela se tornaria tudo isso quando você compôs essa música?

CHIQUINHA

10:49 – Não, não tinha ideia. Como eu te disse, eu nunca compus pra ser... Vou compor uma música de sucesso. Não, compunha pelo prazer, uma música que todo mundo pudesse cantar e dançar.

11:00 – E essa peça, essa partitura começou realmente devagarinho, mas ela foi conquistando seu espaço nos cafés cantantes, nos chopps berrantes e acabou sendo o que é hoje em dia, não é.

Page 6: retrovisor chiquinha gonzaga

PAULO

11:13 – Aliás, nesses cafés cantantes e chopps berrantes, eu confesso que quando ouvi essa expressão achei muito... muito oportuna, né, porque é uma balbúrdia nesses locais.

11:24 – É preciso pagar pra ouvir a sua música.

CHIQUINHA

11:27 – O que eu acho corretíssimo. O artista vive da sua obra. Ele tem... o seu ganha-pão, a sua arte é o seu ganha-pão.

11:26 – E depois, nos cafés-concertos tocava-se muito a música francesa, a música europeia, que já estava... um pouquinho gasta.

11:43 – E conosco não. Eles sabiam que iam ouvir a melhor música brasileira.

PAULO

11:48 – Foi num café cantante, aliás, que o cantor e ator Machado Careca deu forma final à letra do Corta Jaca, né. Que foi parar na Europa e foi apresentado como “tango brasileiro”.

12:01 – E em algumas dessas apresentações... na Europa ele ganhou peso, ganhou importância, né.

12:10 – Os direitos autorais dessa obra lá na Europa estão sendo pagos pra você?

CHIQUINHA

12:15 – Olha, de início, eu recebi exatamente “zero patacas”. Mas eu fui à Europa e, passando por Berlin, eu encontrei um disco meu, muito bem editado. Editado pelo Figner, da Casas Edson do Rio de Janeiro.

12:32 – Mas ele não era meu editor. Meu editor estava no Brasil: Gusmão, da Buschmann & Gusmão; ele era o meu editor.

12:42 – O Figner pediu uma reunião, um almoço, tentando me acalmar, porque... eu percebi que agora tinha alguma coisa estranha com a música brasileira porque...

PAULO

12:49 – Estavam fazendo...

CHIQUINHA

12:49 – estava fazendo sucesso na Europa. Mas o Joãozinho, que estava ao meu lado, nervoso como é, exigiu e eu acabei... e o editor acabou recebendo quinze mil réis de direitos autorais.

PAULO

13:00 – Joãozinho que você menciona é seu atual marido, né? Como é que vocês se conheceram?

CHIQUINHA

Page 7: retrovisor chiquinha gonzaga

13:07 – Olha, eu frequentava a Euterpe... a ex-Estudantina. Era um lugar onde jovens, inteligentes e educados frequentavam.

13:15 – Tinha os famosos saraus, de poesia, de música. O Joãozinho era o diretor musical da época. Ele se apaixonou pela minha música e...

PAULO

13:24 – Acho que mais do que pela sua música, né... E um detalhe curioso, né: ele tinha dezesseis anos e você... cinquenta e dois?

CHIQUINHA

13:35 – Cinquenta e dois. Você pode imaginar o que isso aconteceu na época? Imagina, nos dias de hoje já seria um escândalo, imagina na época.

13:43 – Mas eu soube contornar isso muito bem.

PAULO

13:45 – De que maneira?

CHIQUINHA

13:47 – Eu fui pra Lisboa com ele. E levei o Joãozinho como meu filho adotivo.

PAULO

13:58 – Simples assim.

CHIQUINHA

13:59 – Simples assim, eu podia passear com ele na rua de mão dada sem as maledicências, sem as piadas jocosas que eu sempre ouvi aqui nesse país. Foi um momento muito especial.

PAULO

14:08 – E você...

CHIQUINHA

14:08 – E quando eu voltei, vou te dizer uma coisa: pra evitar que isso acontecesse... porque meus próprios filhos... causaram um certo problema com isso, não é...

14:19 – Eu não... eu tentei preservar a nossa intimidade o máximo possível.

14:25 – Eu acho que a maior parte do povo não faz ideia desse nosso...

PAULO

14:29 – Quer dizer, pra muita gente ele é seu filho adotivo até mesmo no Brasil?

Page 8: retrovisor chiquinha gonzaga

CHIQUINHA

14:30 – Ele é meu filho adotivo e... por mim, será assim até que eu morra. Eu quero viver com ele até que a morte nos separe.

PAULO

14:36 – Ah, é! Mas eu acho que quando você conheceu o Joãozinho não foi só ele que se interessou por você. Porque você deu de presente pra ele um fado intitulado Desejos, né, e também deu uma fotografia pra ele.

CHIQUINHA

14:52 – Bom, fora a insinuação da música, eu fui discreta. Na medida do possível.

PAULO

14:58 – Ah, entendi. Isso foi em 1899, né. E o Joãozinho chama pra registro “João Batista Fernandes Lage”. E é um jovem muito talentoso, era um jovem talentoso, aprendiz de musicista, né, e com essa grande diferença de idade.

15:14 – Agora, esse não é o único João da sua história, da sua vida.

CHIQUINHA

15:18 – Não.

PAULO

15:19 – Antes do Joãozinho, você viveu com outro João: João Batista de Carvalho.

CHIQUINHA

15:21 – Carvalhinho.

PAULO

15:22 – O Carvalhinho.

CHIQUINHA

15:23 – Um homem fascinante! Charmoso, contagiante... Ele me tirou por muito tempo, ele me tirou de dentro da sociedade, do ambiente que eu vivia, ele era engenheiro, me levou praqueles terrenos de lama até os joelhos, quando estavam construindo a ferrovia, né, da Serra da Mantiqueira.

15:44 – Depois me arrastou pra fazendas no interior de Minas Gerais. Ele foi uma pessoa de uma alegria, de um charme inesquecível.

PAULO

15:53 – O que que deu errado?

Page 9: retrovisor chiquinha gonzaga

CHIQUINHA

15:54 – Mas tem um problema seríssimo: ele era absurdamente infiel e isso eu não posso tolerar.

PAULO

16:06 – Era o seu segundo marido.

CHIQUINHA

16:07 – Era o segundo.

PAULO

16:08 – O primeiro... como é que... você tinha dezesseis anos? Foi seu pai, aliás, que, digamos...

CHIQUINHA

16:14 – Foi.

PAULO

16:15 - ...encaminhou você pro primeiro casamento.

CHIQUINHA

16:15 – Meu primeiro marido. Ele era... o Jacinto. O Jacinto era... o Jacinto era filho de militar. Um militar monarquista, né, fez parte do gabinete de duque de Caxias, acabou sendo exonerado.

16:34 – E ele era um homem rico. Tinha navios, né, alugava, vendia. Nós fizemos uma viagem num desses navios na época da guerra da...

PAULO

16:43 - Do Paraguai.

CHIQUINHA

16:46 - ...do Paraguai. É um assunto que até hoje mexe comigo. Da guerra do Paraguai e eu quis tocar a bordo e ele me proibiu. Aliás, ele me proibiu a música sob qualquer aspecto.

16:57 – Eu não aguentei mais. Eu disse a ele: Senhor meu marido, eu não concebo a vida sem harmonia. E me separei dele. Foi uma... a minha primeira grande ruptura com a sociedade, a minha vida pessoal, né.

PAULO

17:16 – E você já tinha três filhos!

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CHIQUINHA

17:18 – Tínhamos três filhos: Maria do Patrocínio, Hilário e o Joãozinho. Mas ele proibiu que eu ficasse com os meus filhos.

17:28 – Eu só consegui mesmo a guarda do mais velho, de João.

PAULO

17:34 – E você, em nenhum momento pensou em abandonar a música em troca... pelo casamento?

CHIQUINHA

17:39 – Nunca. A música é a minha vida. Nada me fazia crer que pra ter alguma coisa você tinha que abrir mão de outra, muito menos da música.

PAULO

17:49 – Como é que você definiria o Jacinto?

CHIQUINHA

17:52 – Um homem típico do seu tempo. Não tolerava um gesto que fosse de uma mulher que ele não achasse condizente com uma dama da sociedade.

18:02 – E a mulher sofria. Nem votar a mulher podia, não é.

PAULO

18:06 – E a sua família, que atitude teve diante da separação?

CHIQUINHA

18:10 – Foi um... eu fui banida da família. Meu pai, quando eu me separei, me negou o que eu mais precisava na época, que era um teto, eu precisava de abrigo e isso me foi negado.

18:25 – Fora a ausência dos filhos, né.

PAULO

18:28 – Aliás, tem uma história pouco conhecida na sua trajetória que aconteceu dentro de um bonde, envolvendo a sua filha. Qual foi essa história?

CHIQUINHA

18:35 – Não, não é uma história das mais alegres. Eu estava no mesmo bonde que a minha filha, Maria Alice, com a Maria... do primeiro casamento.

PAULO

18:43 – Maria do Patrocínio.

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CHIQUINHA

18:44 – Isso. Ela estava com o noivo e meus pais. Ela olhava pra mim... eu não aguentei.... Ela não sabia quem eu era.

18:57 – Eu cheguei a ela e a maneira que eu achei de me apresentar foi dizendo....: Não vai pedir a bênção pra sua mãe? Foi o suficiente pra que o noivo rompesse com ela.

19:11 – Mas ela acabou se casando com outro homem que não dava muita importância a isso. Acho que nisso ela... puxou um pouquinho da mãe.

PAULO

19:19 – Bom, mas a sociedade não é muito, digamos, flexível com o papel que a mulher deve desempenhar. Por exemplo, nas Artes Plásticas, uma pintora só tem certos temas que ela pode abordar.

19:34 – Falar em mulher compositora, pianista, tocando na noite, se apresentando em cabarés ou em teatros então... é pior ainda.

19:44 – Quanto lhe custou a atitude de enfrentar tudo isso?

CHIQUINHA

19:49 – A minha ousadia me custou tudo isso que eu acabei de lhe narrar, né, uma... uma vida... bastante difícil, mas nunca, nunca...

19:59 – A sociedade quis me colocar como vítima, sabe. Mas isso não comporta, não cabe em mim essa posição de vítima. Eu sempre fiz o que quis.

PAULO

20:11 – E você pretende continuar produzindo músicas pro teatro?

CHIQUINHA

20:15 – Ah, com certeza! Compor pro teatro ou compor qualquer tipo de música. Isso eu não vou parar nunca.

20:21 – Assim como defender as minhas causas, não é. Principalmente a minha luta pelos direitos autorais.

PAULO

20:27 – Por que essa insistência?

CHIQUINHA

20:29 – Meu Deus, nós precisamos disso. Nós precisamos dessa retaguarda, desse quinhão, fruto do nosso trabalho.

20:38 – Eu tento encontrar ainda hoje músicos, sabe... Vamos nos agrupar, quem sabe montar uma sociedade de autores teatrais. Acho necessário.

PAULO

Page 12: retrovisor chiquinha gonzaga

20:50 – Vocês ganham menos do que quem faz a peça, do que quem produz, do empresário?

CHIQUINHA

20:55 – Quando ganhamos.

PAULO

20:58 – Então não é fácil a vida? Uma resenha de uma peça sua que está em cartaz, uma outra peça: Colégio de Senhoritas diz o seguinte: “A peça é fraca, mas espirituosa. A música é toda ela no estilo Chiquinha Gonzaga”.

21:12 – Você acha que está construindo uma escola, que está fazendo um caminho aí?

CHIQUINHA

21:15 – Não. Eu nunca compus, como eu te disse, pra fazer sucesso ou pra seguir um caminho. Eu sempre quis uma música, uma música de acesso ao povo.

21:25 – Sabe, eu nunca gostei da música contemplativa, reflexiva. Eu prefiro estar na boca do povo. A minha música, claro!

PAULO

21:37 – Mas eu diria que você conseguiu as duas coisas, certo. Tanto a tua música quanto você volta e meia aparecem na boca do povo. Pode ser que agora mais experiente...

CHIQUINHA

21:51 – Não, não. Aqui nos meus sessenta e cinco anos de idade, quando tudo deveria acalmar... Tudo bem, a minha vida ao lado de Joãozinho é um pouco mais calma. Mas eu sinto tudo muito intensamente.

22:03 – Eu continuo compondo, eu continuo indo às rodas de choro, continuo defendendo os meus ideias....

22:10 – A minha vida dentro da música é que me dá essa alegria. As dores estão lá, são inesquecíveis, inevitáveis.

22:21 – Uma mulher sem filhos, sem família.

PAULO

22:25 – Ou pior, com filhos que não pode ver.

CHIQUINHA

22:28 – Alguns nunca me conheceram.

PAULO

Page 13: retrovisor chiquinha gonzaga

22:31 – As letras das canções, com uma linguagem mais popular que as suas músicas do teatro de revista ajudam a difundir, também parecem ser uma tendência e algo que tem a ver com a sua trajetória.

22:44 – Mas tem gente que diz que esse tipo de música é uma coisa chula.

CHIQUINHA

22:49 – Isso me irrita profundamente, porque entre o chulo e o popular há uma diferença substancial. Não são sinônimos, não tem nada a ver uma coisa com outra.

PAULO

23:00 – O que você faz é popular, você reconhece?

CHIQUINHA

23:03 – Com o maior orgulho. A música popular brasileira, música dançante.

PAULO

23:09 – Qual a importância do músico Joaquim Calado na sua trajetória teatral e musical?

CHIQUINHA

23:13 – Ah... Calado foi o meu protetor, meu amigo. A primeira polca que ele escreveu chamava-se... foi dedicada a mim: Querida por Todos.

PAULO

23:26 – Pois é.

CHIQUINHA

23:26 – Calado foi o meu grande companheiro. Um mestiço... tocava flauta em coretos, acabou professor do conservatório musical.

23:37 – Ele tinha... sabe, pela cor, pela, pela influência africana, ele tinha uma maneira sincopada de tocar, um balanço e, claro, eu aprendi com ele na boemia, junto a outros músicos.

23:51 – Foi ele que me levou pela mão, pro mundo real, sabe, da vida, da música. Me ajudou nos momentos mais difíceis, mais difíceis.

24:02 – Ele conseguia alunos pra eu dar aula de piano.

PAULO

24:05 – E levava você pros tais cafés cantantes ou chopps berrantes.

CHIQUINHA

Page 14: retrovisor chiquinha gonzaga

24:09 – Que mulher não entrava. Mas com ele eu entrava. Quando eu estava com o Joãozinho, ele me tirou um pouco da sociedade por conta daquelas viagens que eu contei pra você, mas quando eu...

PAULO

24:19 – Com o João, seu segundo marido?

CHIQUINHA

24:20 – Ô, perdão, com o João. É muito João, não é. Ele me... quando eu voltava, era sempre o calado que me levava pra esses lugares maravilhosos, onde se fazia uma música...

PAULO

24:35 – Aliás, ele fundou também um grupo, o chamado Choro Carioca, o Choro do Calado, que, aliás, foi um precursor desse estilo musical do choro, né.

24:44 – E se eu não me engano, você foi ali a primeira mulher a fazer parte desse grupo.

CHIQUINHA

24:48 – A primeira “chorona”, a primeira pioneira. Esse... a palavra choro estava mais ligada ao nosso grupo do que a um estilo musical.

24:58 – Na verdade, nós tocávamos as mesmas coisas: a abandeira, as polcas, os xotes, enfim. Mas a gente tinha um balanço diferente, umas descaídas, sabe, uma coisa sincopada, que nós usávamos de propósito pra derrubar o que improvisava.

PAULO

25:15 – Entendi. E acabou, né, virando um enorme sucesso.

CHIQUINHA

25:20 – Exatamente. O choro, hoje, é um gênero musical.

PAULO

25:24 – Dizem que você e o Calado foram mais do que amigos.

CHIQUINHA

25:29 – Ah... maledicência! Nós sempre fomos amigos de verdade. A Feliciana, mulher dele, morria de ciúmes, mas não havia nada não.

PAULO

25:37 – E como é que pesou em você a morte precoce dele aos trinta e dois anos em 1880?

Page 15: retrovisor chiquinha gonzaga

CHIQUINHA

25:44 – Pesou e pesa até hoje. É uma saudade imensa do Calado, sabe, por tudo isso que eu te disse: pelo irmão, pelo amigo, pelo suporte que me deu na vida, né.

25:58 – Mas, depois que ele partiu, eu acabei tendo um outro amigo.

PAULO

26:02 – Quem foi?

CHIQUINHA

26:03 - ... que foi maravilhoso: Carlos Gomes.

PAULO

26:07 – O maestro Carlos Gomes?

CHIQUINHA

26:08 – O maestro Carlos Gomes.

PAULO

26:11 – Agora, nesse caso, você não ficou só na idolatria, digamos assim, ou no respeito, né. Você chegou a organizar concertos...

CHIQUINHA

26:17 – Organizei...

PAULO

26:19 - ... pra arrecadar fundos.

CHIQUINHA

26:20 - ...onde nós apresentamos o Caramuru. Nossa, cem violões no palco, violas, tamborins, foi...era uma coisa maravilhosa.

26:28 – Eu não sei se o senhor sabe, mas eu acredito...

PAULO

26:31 – Me chame de você.

CHIQUINHA

26:33 – Por favor.

PAULO

26:33 – Temos a mesma idade.

Page 16: retrovisor chiquinha gonzaga

CHIQUINHA

26:33 – Eu não sei se você sabe, mas foi uma das primeiras vezes, se não a primeira vez que os violões entraram nos palcos.

26:43 – Quem tocava violão na época podia ser preso. Como não honrar aquele homem, né. Aquele filho de alfaiate que fez sucesso – o maior maestro brasileiro da época- que fez sucesso internacional na Itália, comparado a Verdi...

PAULO

26:56 – E que acabou aceitando você como maestrina, né.

CHIQUINHA

27:01 – Essa... eu tenho uma foto que ele me deu; ela fica sobre o meu piano. Eu tenho muito ciúme e muito orgulho porque é o reconhecimento desse grande maestro ao meu trabalho como maestrina.

PAULO

27:14 – E você teve um romance com Carlos Gomes?

CHIQUINHA

27:17 – É o que dizem.

PAULO

27:20 – Mas hoje você se diz casada com o filho adotivo, é isso?

27:28 – Aliás, você concorda com o que dizem sobre você?

CHIQUINHA

27:34 – Olha, as maledicências, eu as tenho como injustiça e me dá revolta. O que dizem... as críticas negativas à minha música nunca me impediu que eu fizesse nada.

27:44 – Agora, quando falam que a minha música é envolvente, é maravilhosa, [e contagiante, eu concordo plenamente.

PAULO

27:56 – Bom, vamos passar pra algumas perguntas aqui, quase que um “bate-bola” rápido se a gente pode usar a expressão.

28:02 – Qual partido que você apoia?

CHIQUINHA

28:04 – Não, eu não apoio partido nenhum, eu apoio causas. Lutei pela causa abolicionista, republicana... quanto a essa eu tenho algumas restrições.

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PAULO

28:15 – E você tem religião?

CHIQUINHA

28:16 – Sou católica. Com o passar dos anos parece que a religião se tornou uma coisa mais profunda na minha vida.

PAULO

28:24 – Você compôs um hino em homenagem à assinatura da Lei Áurea, não foi.

CHIQUINHA

28:30 – Foi sim.

PAULO

28:31 – Quer dizer, você teve, então, um engajamento efetivo. É mais do que simplesmente concordar com a abolição ou com a República?

CHIQUINHA

28:37 – Com toda certeza! Eu apoiei várias causas com o meu trabalho como maestrina, como compositora. Eu cansei de vender partitura pra auxiliar todas as causas.

28:49 – A causa republicana, então, por exemplo, eu participei da Revolução do Vintém, porque eles aumentaram vinte réis na conta do bonde, no preço, né, no valor da passagem do bonde.

29:03 – O povo foi às ruas; eles arrancavam trilhos dos bondes, machucaram os animais, o condutor... Foram três dias de loucura na cidade.

PAULO

29:12 – Parece um negócio que eu já ouvi falar talvez, mas eu acho que não, eu estou confundindo as datas.

CHIQUINHA

29:17 – Mas tudo por causa de vinte réis.

PAULO

29:19 – Vinte réis.

CHIQUINHA

29:20 – E a corte se deu conta disso, porque acabaram retirando o valor do preço da passagem.

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PAULO

29:25 – Então, e nessa Revolta do Vintém, o jornalista Lopes Trovão, que foi um dos batalhadores pela causa e acabou se transformando numa espécie de líder do movimento, chegou a dizer o seguinte:

29:35 – “Essa Chiquinha é o diabo! Foi nossa companheira de propaganda na praça pública, nos cafés, nunca nos abandonou”.

29:43 – Você se arrepende de ter feito alguma coisa na vida?

CHIQUINHA

29:45 – Imagina, de nada! Eu lembro da minha luta, sabe, pra conseguir evitar aqueles negros que, contra a vontade, eram colocados na guerra, entendeu.

29:57 – A causa deles era uma causa enorme. Também... eu não me arrependo de nada!

PAULO

30:02 – E certezas, você tem?

CHIQUINHA

30:06 – Certezas?... Eu tenho certeza de... ter feito o que eu queria fazer, a presença da música na minha vida.

PAULO

30:15 – Dúvida.

CHIQUINHA

30:17 – Ah, dúvidas em tenho muitas, mais que certezas. Me preocupa o futuro.

30:24 – O futuro do teatro de revista hoje está aí, um sucesso, mas sabe-se lá até quando, né.

30:29 – O meu futuro financeiro.

PAULO

30:30 – Eu achei que você fosse rica.

CHIQUINHA

30:32 – Não, não sou. As pessoas normalmente ligam a fama com a fortuna, mas não...

PAULO

30:37 – Qual é o seu patrimônio?

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CHIQUINHA

30:38 - ... não é bem, bem assim. O meu patrimônio é uma casa na Praça Tiradentes, meu piano, não muito mais do que isso.

PAULO

30:44 – E como é que você – você já falou um pouco isso, mas eu queria insistir nisso – como é que você recebe as críticas.

CHIQUINHA

30:52 – Eu recebo as críticas de uma maneira... com uma certa perplexidade, entendeu. Porque até hoje existe esse preconceito enorme contra o trabalho da mulher.

31:05 – Então, as críticas sempre têm mais do que um lado só, né, sempre é comprometida.

PAULO

31:12 – Como é que você define o que você faz?

CHIQUINHA

31:16 – Eu defino como música dançante e teatro popular.

PAULO

31:22 – E qual é seu grande sonho?

CHIQUINHA

31:25 – Eu já realizei: ser reconhecida como maestrina e respeitada como tal.

PAULO

31:31 – Qual é a sua grande obra, digamos assim, aquela que você acha que vai ficar pra... pra sempre? Eu sei que você não compõe pra isso, mas sempre...

CHIQUINHA

31:41 – Não, eu nem ia falar de novo... Tem uma que eu gosto muito que é Ô Abre Alas, que foi composta, o que, em 99, não foi? Me refresca...

PAULO

31:54 – Isso, isso.

CHIQUINHA

31:54 - ... pelo Jorge Faraz e o Peixoto?

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PAULO

31:58 – Isso, isso.

CHIQUINHA

31:58 – Ela diz assim: “Ô, abre alas, que eu quero passar; ô abre alas, que eu quero passar; eu sou da Lira, não posso negar; Rosa de Ouro é quem vai ganhar... Ô abre alas, que eu quero passar...”

32:16 – É isso, é isso: Ô Abre Alas. Depois... depois teve o Corta Jaca e o Forrobodó, que você mesmo viu no teatro, que se tornaram um sucesso.

PAULO

32:26 – Sim, e você tem um método de trabalho?

CHIQUINHA

32:29 – Eu preciso de sossego pra compor, só isso. Inspiração não me falta.

PAULO

32:34 – E a rotina de vida, qual é?

CHIQUINHA

32:36 – Hoje em dia é tranquila, em casa, ao lado do Joãozinho, sempre compondo, sempre compondo.

32:44 – Eu gosto de costurar também.

PAULO

32:46 – Ah, é? Você é vaidosa?

CHIQUINHA

32:48 – Não, nunca fui vaidosa, não. Você sabe que... quando eu era jovem, tinha um cabelo enorme, negro, negro, né. Como sair às ruas, né, com um cabelo assim?

32:59 – Então, eu inventei um lenço que eu enrolava no cabelo, que acabou virando minha marca registrada, né. E assim eu ia; não tinha dinheiro pra comprar chapéu.

PAULO

33:09 – Fora o trabalho, o que é que você faz além de costurar?

CHIQUINHA

33:13 – Posso lhe contar um caso sobre a história do chapéu?

PAULO

33:15 – Por favor! Claro!

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CHIQUINHA

33:16 – Certa vez, eu estava na rua e passou uma mulher e ficou indignada de me ver simplesmente com um laço na cabeça, ela pegou, arrancou o laço e jogou no chão.

33:28 – Eu olhei pra ela, olhei bem primeiro pra ela, abaixei, peguei o laço, depois eu disse a pior coisa que se pode dizer pra uma mulher: “Como você é feia!”

PAULO

33:40 – Está certo!... Você teve uma vida amorosa bastante movimentada, quer dizer, três marido, fora as...

CHIQUINHA

33:49 - ...as paqueras, o flerte...

PAULO

33:51 – O flerte...

CHIQUINHA

33:52 – Eu adorava flertar. Flertava com seminarista, com padre... Fosse um tempo atrás essa entrevista, estaria flertando com o senhor. Mas isso traz muita dor de cabeça.

PAULO

34:03 – Não, não, por favor, fiquemos por aqui. Vai se saber o que vai acontecer, né. Ainda mais que a minha mulher é ciumenta e... não, melhor não.

34:11 – Mas hoje você está sossegada?

CHIQUINHA

34:17 – Se é possível se dizer isso de Chiquinha Gonzaga, estou.

PAULO

34:20 – Mas o Joãozinho é ciumento. Ele, num certo sentido, controla a sua vida financeira, às vezes até dificulta o acesso dos seus filhos...

CHIQUINHA

34:28 - ... dos meus filhos.

PAULO

34:29 – Não é uma contradição?

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CHIQUINHA

34:32 – Quem não tem contradições?

PAULO

34:35 – E você já teve algum apelido?

CHIQUINHA

34:38 – Chiquinha Polca.

PAULO

34:41 – Bom,. Bom apelido. Sedutora, formosa, insinuante, sensual, faceira, cabocla, estonteante, são adjetivos que eu encontrei em vários textos de jornal sobre você.

34:52 – Você concorda com eles? Eles correspondem à realidade?

CHIQUINHA

34:55 – Plenamente. Porque eles estão falando da minha música.

PAULO

34:59 – Ah, entendi.

CHIQUINHA

35:00 – Mas a minha música sou eu.

PAULO

35:02 – Ah, entendi mais ainda, está certo.

35:05 – Qual foi a maior mudança na sua vida?

CHIQUINHA

35:08 – Foi a mais drástica de todas: o rompimento do meu primeiro casamento. Eu rompi com a sociedade. Tive que me colocar dentro dessa sociedade.

PAULO

35:20 – Como é que você encara a morte?

CHIQUINHA

35:22 – Eu goto da vida, gosto muito da vida. Mas conforme os anos vão passando, os sofrimentos, enfim, “vai” ocupando um peso maior dentro de você.

35:35 – Mas eu pretendo viver muito tempo ainda.

Page 23: retrovisor chiquinha gonzaga

PAULO

35:38 – Com o Joãozinho?

CHIQUINHA

35:40 – Com ele até que a morte nos separe.

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PAULO

35:43 – Muito bem. Então, nós vamos agora pras perguntas da plateia e voltamos daqui a pouco.

35:49 – Foram distribuídos aí uns questionários; basta acenar pra produção, por favor e podemos... Ó, a Teresa está ali... podemos fazer as perguntas. Tem um microfone volante...

36:20 – É só levantar a mão. Temos aí perguntas?

CHIQUINHA

36:29 – Acho que não.

PAULO

36:31 – Certamente terá, só precisa dar um tempinho pras pessoas formularem, porque como estava a luz apagada... Se tivesse um piano agora, a Chiquinha ia tocar pra gente.

CHIQUINHA

36:45 – E dançar, eu gosto muito de dançar também.

PAULO

37:05 – Pergunta ali, olha... pode conseguir um microfone para a Márcia ali.

CHIQUINHA

37:16 – Você conhece todos da plateia pelo nome?

PAULO

37:18 – A Márcia eu conheço. Isso, traz um... tem um microfone aqui, ó... já tem uma pergunta aqui na frente, à esquerda aqui, a Márcia Camargo.

37:35 – Eu peço só que as pessoas se identifiquem: o nome e a profissão se possível... Ali... Só um segundinho, Márcia. Está ok, podemos?

MÁRCIA – escritora e jornalista

Page 24: retrovisor chiquinha gonzaga

37:47 - Bom, foi um prazer ouvi-la e conhecer tudo isso sobre a sua vida e eu queria saber... Bom, meu nome é Márcia Camargo, eu sou escritora e jornalista, eu queria saber qual legado que a senhora acha que vai deixar pras futuras gerações? A senhora pensa nisso, assim, agora...

38:04 - ... não no fim da vida, mas, enfim, depois dessa vida tão rica, o que que a senhora acha que vai ficar como legado pro futuro?

CHIQUINHA

38:11 – Olha, eu espero que o meu legado seja a música genuína brasileira, isso é que eu espero.

38:19 – E um detalhe: quando o Calado fez uma música chamada Querida por Todos, é assim que eu gostaria de ser lembrada, que a minha música fosse lembrada: uma música “querida por todos”.

ISABELA - psicóloga

38:38 – Chiquinha, foi um prazer ouvi-la. Nas futuras gerações, qual você acha que vai ser a importância da sua atuação e da sua vida como mulher em tudo o que fez?

CHIQUINHA

38:52 – Da minha vida como mulher eu espero que a mulher, futuramente, se não... sofra todo tipo de preconceito, toda dificuldade de receber pelo seu trabalho de uma maneira correta.

39:06 – Que ela possa exercer a sua vida com dignidade. Quanto à música, é mais ou menos o que eu acabei de dizer: eu espero que ela seja difundida. Muito, em todos os lugares.

39:18 – Que a música brasileira não fique restrita a um gueto qualquer, mas que ela assuma a sua força.

GUSTAVO – estudante de música e professor de piano

39:38 – Eu pergunto pra Chiquinha referente às composições pra criança que você teve, que você fez e como você se enxerga enquanto Chiquinha criança dentro das suas, do seu universo composicional mesmo.

CHIQUINHA

40:01 – Olha, eu... não foram, não foram tantas as composições, né. Como criança, eu me enxergo dentro de uma família que me proporcionou o estudo da música, né, com o maestro Elias Lobo, que me deu aulas.

40:17 – Então, a minha formação quando criança, quando... já, digamos assim, meus oito, nove anos, já... sempre com a música junto, né, aprendendo. Sempre. Junto com o maestro Elias Lobo.

VALDEMAR - produtor

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40:37 – Gostei muito tua vida e eu... muita coisa eu não conhecia, eu só conhecia o seu lado de compositora. O que eu queria saber é se você, nessa tua vida, você conheceu outras mulheres como você?

40:51 - Não com músicas, mas mulheres que também desafiaram a sociedade da época e tiveram essa coragem de enfrentar o...

CHIQUINHA

40:59 – Olha, isso foi mil oitocentos e... E eu confessou a você, pelo menos agora, não consigo me lembrar de mais mulheres que tenham... Fatalmente deve haver, mas eu não se te dizer.

PEDRO - hacker

41:29 – Eu queria continuar um pouco nesse tema da mulher. O que que você acha que foi, na verdade, o diferencial... Por que que você conseguiu isso, que muitas mulheres não conseguiram, mas eu imagino que muitas tinham vontade? O que você acha que foi o grande diferencial?

CHIQUINHA

41:44 – A teimosia. A teimosia, a perspicácia. Eu sabia o que eu queria da minha vida. A música era um fator marcante do meu caráter. Não havia como abrir mão dela.

41:56 – Quando você tem uma meta, com aquela firmeza, com aquela paixão que eu tinha, nada te derruba.

GORETE - secretária

42:15 – Você rompeu um casamento logo no início, deixando a sociedade “ababascada”... Por que... por que ficar com o Joãozinho então e aceitando a interferência dele na visita dos filhos e na vida financeira?

CHIQUINHA

42:30 – Já ouviu falar em amor?

GORETE

42:44 – Já. E o amor dos filhos?

CHIQUINHA

42:38 – Eles voltaram. O que sobrou... o que sobrou de todo esse relacionamento, de toda essa distância causada por tudo isso, na medida do possível foi retomado.

ENÉAS - roteirista

43:13 – Chiquinha, se viesse alguém do futuro e te dissesse que o teatro de revista tal qual você conheceu não chegaria a sobreviver, mas daria muitos filhos em outros meios de comunicação que talvez a gente... você talvez nem imagine ainda... Que sentimento você teria em relação a isso?

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CHIQUINHA

43:33 – Uma profunda alegria, de imaginar que outras pessoas poderão ver um teatro de revista, aquela beleza, aquela agilidade, a crítica que ele tinha embutida nos seus textos...

43:49 - ... aquele trabalho de livre... simples.... simples comunicação, não tinha nada de rebuscada, mas era perspicaz, era inteligente. Eu acho que seria uma maravilha!

SAMUEL - advogado

44:08 – Chiquinha, se você pudesse estar vendo hoje pelo “Retrovisor”, o que você diria que aconteceu depois com a sua música, com a sua obra e com a música brasileira em geral?

CHIQUINHA

44:21 – Digamos lá por dois mil e não sei quanto?

SAMUEL

44:25 – É, lá na frente, é.

CHIQUINHA

44:26 – Eu diria que – com raras e honrosas exceções – essa frase é batida mas é verdadeira, a música brasileira... está em pleno declínio. Não há qualidade, não há... Não há acesso à boa música brasileira também, que ainda é composta.

44:45 - Ela não tem livre acesso nas rádios... Eu acho que a música brasileira deveria retomar um pouco do seu passado, do seu... da sua força.

44:57 – Tudo bem, os tempos mudam, mudarão. Os meios de comunicação... A música segue, seguiu um novo rumo, né, que não deixa de ter uma certa qualidade, mas a alma verdadeira de uma harmonia, de uma melodia, de uma poesia... é raro.

45:15 – Alguns... alguns rapers têm letras que são maravilhosas, mas são uma exceção. Eu acho que está em franca decadência a letra e a harmonia das músicas brasileiras.

???

45:43 – Como é que você imagina que ela será vista no futuro?

CHIQUINHA

45:46 – Por estudiosos, talvez?

CLÁUDIA – artista plástica

45:56 – A sua história é encantadora e a sua obra é encantadora. O Jorge Braque dizia que “a ciência tranquiliza e a arte perturba”. E o verdadeiro artista carrega dentro de si essa inquietude criativa e acaba perturbando mesmo sem ter noção disso, com as suas atitudes.

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46:17 - Pela sua arte, você tinha noção do que você causava ao redor ou era uma coisa tão natural pra você que não havia outra forma...

CHIQUINHA

46:25 – Não, eu tinha noção, eu tinha noção sim, porque eu pagava um preço caro por ela. Eu sabia exatamente o quanto a minha ousadia perturbava. E não era só nas mulheres, na sociedade não; nós próprios meios musicais. Eu sabia, sim.

RONALDO MENDONÇA - jornalista

46:50 – Antes de tudo, parabéns pela coragem. Como você sabe, a gente lê muita coisa e ouve muita coisa e hoje você tem oportunidade de nos mostrar a fundo quem és.

47:01 – Falamos do futuro, mas, hoje, você consegue enxergar pra quem você vai passar essa, esse legado? Imediatamente, nesses próximos anos? Quem pode te – entre aspas – substituir, apesar de já ser insubstituível pra nós?

CHIQUINHA

47:17 – Muito obrigada! Eu não penso em quem irá me substituir. Eu acredito, sim, na força dessa música, do teatro que nós estamos fazendo, né, da música composta, o acesso que ela tem.

47:32 – Então, eu acredito num efeito dominó nesses dias, né, que vai contagiando os músicos, vai encantando os músicos, vai levando a plateia pros teatros e fazendo-os conhecer, não é, um outro tipo.

47:46 – Como nós já falamos aqui, o teatro era fechado, a música europeia... então, eu acho que essa, essa contaminação, né, eu gostaria que se tornasse uma epidemia.

JOÃOZINHO - publicitário

48:16 – Se você não optasse por música, qual outra arte que você gostaria de fazer?

CHIQUINHA

48:24 – Nunca me passou pela cabeça qualquer outra manifestação senão a música. Nunca. Eu gostaria, sim, de sempre defender as causas. Eu acho que os infortúnios existem, sempre existirão numa sociedade, mas que há que se lutar contra o que se acredita injustiça com... cada um com as armas que tem, com o que pode.

48:52 – Mas jamais a passividade; isso eu não posso enxergar. Dentro da música... é isso que eu te disse, eu não consigo imaginar outra coisa. A música é parte do meu caráter, da minha alma.

PAULO

49:09 - Chiquinha... a pergunta é óbvia, mas eu acho que vale ser feita: você faria tudo de novo?

CHIQUINHA

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49:18 – Com certeza. Tudo. Apesar de todos os pesares, de todas as dores. Uma mulher sem família, longe dos filhos e...

49:30 – São dores que vão ficar pro resto da sua vida. Mas eu não abriria mão de nada do que fiz.

PAULO

49:38 – E agora, pra finalizar realmente: Clarice Abujamra, pra você... pra você...

Clarice relaxa, sai do personagem e é aplaudida.

CLARICE

50:08 – Olha, essa história de abrir a conversa pra plateia... nunca mais vai me pegar.

PAULO

50:15 – Mas não é você, é a Chiquinha.

CLARICE

50:19 – É, pois é, depois eu converso com você lá atrás.

PAULO

50:24 – Clarice Abujamra, pra você quem foi Chiquinha Gonzaga?

CLARICE

50:28 – Chiquinha Gonzaga é uma mulher que eu aprendi mais ainda hoje e que eu gostaria imenso que ela fizesse parte da minha vida, que... a força dessa mulher, né.

50:42 – Se colocar no meio... enfim, tudo isso que nós falamos. Eu gostaria que ela me inspirasse de verdade.

PAULO

50>:51 – Clarice, muito obrigado! Chiquinha, obrigado! Obrigado, pessoal! Valeu!

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