1 Reflexões sobre Homeopatia, História e Epistemologia Jorge Eduardo de Oliveira Storace Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Mestrado Profissionalizante em Homeopatia da Faculdade de Ciências da Saúde / Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos, para obtenção do grau de Mestre Orientadora: Profa. Dra. Célia Maria Cabral Piva Senna FACIS/IBEHE São Paulo, 2001
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Reflexões sobre Homeopatia, História e Epistemologia - Jorge Storace
This study aims to investigate Homeopathy’s scientific matter, through a Historical analysis, where the medical, scientific and philosofical origins of homeopathic concepts are reviewed; and through an epistemological analysis, where Homeopathy is reviewed compared to Philosophy of Science’s evolution by means of it’s most considerable tendencies and respective philosophers (inductivism and Bacon, conventionalism and Poincaré, positivism and Russell, falsifiability and Popper, scientific research programmes and Lakatos, paradigm and Kuhn, relativism and Feyerabend, complexity and Morin).
A presente dissertação tem por objetivo investigar a questão da cientificidade da Homeopatia, utilizando para isso uma análise histórica, onde são revistas as origens médicas, científicas e filosóficas dos conceitos homeopáticos; e uma análise epistemológica, onde a Homeopatia é revista à luz da evolução da Filosofia da Ciência, através de algumas de suas vertentes mais relevantes e respectivos filósofos representativos (Bacon e o indutivismo, Poincaré e o convencionalismo, Russell e o positivismo, Popper e o falsificacionismo, Lakatos e os programas de pesquisa científica, Kuhn e os paradigmas, Feyerabend e o relativismo, Morin e a complexidade).
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Reflexões sobre Homeopatia,
História e Epistemologia
Jorge Eduardo de Oliveira Storace
Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Mestrado
Profissionalizante em Homeopatia da Faculdade de Ciências da Saúde /
Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos, para obtenção do grau de Mestre
Orientadora: Profa. Dra. Célia Maria Cabral Piva Senna
FACIS/IBEHE
São Paulo, 2001
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Banca Examinadora:
___________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
___________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
___________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
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Este trabalho é dedicado à memória de minha avó Adalgisa e, em especial, meu
avô Lauro Jorge de Oliveira, homeopatista idealista, que manteve acesa e soube
transmitir a chama de fecundas idéias.
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... todos os gêneros de pensamento, inclusive o matemático, são abstrações que
não abarcam, e nem poderiam fazê-lo, a realidade inteira. Diferentes gêneros de
pensamento e abstração podem, juntos, dar-nos um melhor reflexo da realidade.
Cada um por si tem seus próprios limites, mas juntos podem levar o nosso
entendimento da realidade mais longe do que cada um isoladamente... Temos de
explorar de modo criativo uma nova noção de ciência, apropriada ao tempo
presente... O nosso objetivo é lançar um pouco de luz na natureza da criatividade
e sobre como podemos alimentá-la, não só na ciência, como na sociedade e na
vida de cada indivíduo.
David Bohm
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Agradeço a meus pais Maria Luísa e Giorgio, e meus tios Lygia e Verany, pelo
suporte e carinho; a minha filha Fernanda pela paciência e atenção; aos amigos
José Bachur, José Romão, Jorge Gribov, Luís Salama e Marina Pedroso pelo
apoio e comentários; a Carlos Brunini e professores, especialmente Ana Maria
Martins e Marcelo Pustiglione, pelo incentivo e motivação; aos colegas de curso
pela alegria e companhia; e a Moacir Lacerda por seu engenho e arte.
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RESUMO
A presente dissertação investiga os fundamentos das críticas à cientificidade
da Homeopatia, utilizando para isso uma análise histórica, onde são revistas as
origens médicas, científicas e filosóficas dos conceitos homeopáticos; e uma
análise epistemológica, onde a Homeopatia é revista à luz da evolução da
Filosofia da Ciência, através de algumas de suas vertentes mais relevantes e
respectivos filósofos representativos (indutivismo e Bacon, convencionalismo e
Poincaré, positivismo e Russell, falsificacionismo e Popper, programas de
pesquisa científica e Lakatos, paradigmas e Kuhn, relativismo e Feyerabend,
complexidade e Morin).
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ABSTRACT
This study aims to investigate Homeopathy’s scientific matter, through a
Historical analysis, where the medical, scientific and philosofical origins of
homeopathic concepts are reviewed; and through an epistemological analysis,
where Homeopathy is reviewed compared to Philosophy of Science’s evolution by
means of it’s most considerable tendencies and respective philosophers
(inductivism and Bacon, conventionalism and Poincaré, positivism and Russell,
falsifiability and Popper, scientific research programmes and Lakatos, paradigm
and Kuhn, relativism and Feyerabend, complexity and Morin).
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LISTA DE FIGURAS
1. Organograma Histórico-Epistemológico..........................................................7 a 9
2. Caravaggio, Tomé, o Incrédulo, aprox. 1600 [GOMBRICH, 1985]......................22
3. Turner, Começo da Cor, 1819 [BOCKEMÜHL, 1993].........................................29
4. Mondrian, Composição com Vermelho, Amarelo, Azul e Preto, 1921
A Homeopatia, originalmente desenvolvida no século XVIII na Alemanha por Samuel
Hahnemann (1755-1843) é hoje uma prática médica relativamente difundida no mundo,
não sem muitas polêmicas, disputas e críticas que a acompanham desde seu início. Ela
foi e é exercida por médicos, em alguns lugares por práticos, e utilizada pela população
de distintos países com diferentes culturas, como Inglaterra, EUA, França, Alemanha,
Índia, México, Argentina e Brasil, restringindo-se aos exemplos mais destacados.
Mais especificamente no Brasil1, sua história, desde a introdução no país no século
XIX através de Benoit Mure (1809-1958) até a atualidade, pode ser dividida em 6 fases:
implantação, expansão, resistência, áurea, decadência e retomada social [LUZ, 1996]. Ao
longo de todas essas fases, assim como desde sua origem européia, a Homeopatia
buscou sua legitimidade como saber, dos aspectos filosóficos até a busca por uma
institucionalização acadêmica. No período mais recente, desde a década de 1970 até a
atualidade, a Homeopatia ressurge no contexto das então chamadas “Medicinas
alternativas”, no curso de uma revolução contracultural política e social que diagnosticou
uma crise na Medicina “oficial”, manifestada pelos seus altos custos econômicos, grande
iatrogenia e baixa eficácia no atendimento à população sócio-economicamente menos
favorecida, representando o oposto destas características [LUZ, 1996].
1 Atualmente são 15000 médicos homeopatas (6,5% do total e médicos no país) contra 300 nadécada de 80, 1600 farmácias homeopáticas contra 10 na década de 70, 9 milhões de usuáriosestimados, dados da Associação Médica Homeopática Brasileira, 2001 [ORLANDI, 2001].
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Ainda assim, seu estatuto como saber é seguidamente questionado por parte da
Medicina e Ciência estabelecidas. O fato de atualizar-se sua descrição como uma
Medicina “não-convencional” ou “complementar” configura melhor a questão, uma vez que
a Homeopatia não é mais propriamente uma alternativa em um sentido contracultural,
pois além de uma prática oficializada (1980), é também uma especialidade oficial (1990)
[LUZ, 1996]. Torna-se explícito que a oposição se dá agora, como sempre se deu, entre
uma prática convencional e outra não-convencional. Definir-se então a antiga Medicina
“oficial” como convencional é bastante razoável. A Medicina convencional é também
descrita como “científica” ou, mais recentemente, “Medicina baseada em evidências”.
Estas três definições são usualmente tomadas como sinônimos, o que permite que se
reformule suas proposições da seguinte maneira: se a Medicina convencional é científica
porque baseada em evidências (científicas), uma Medicina não-convencional como a
Homeopatia não pode ser. Em outras palavras, a Ciência, tomada como sinônimo da
verdade, é baseada na assim chamada convenção científica, instância definidora do que
é ou não saber qualificado. Alguns exemplos tornam clara a questão: no primeiro deles,
uma análise histórica dialética em conjunto com uma análise epistemológica
bachelardiana levam R. L. Novaes, médico, a concluir pela
... não-cientificidade da proposição homeopática, por uma aparente ineficácia de
sua prática [NOVAES, 1989].
Apesar de conceder que seu estatuto de
... fato concreto e histórico... (torna-a) objeto de análise e conhecimento...
(sendo) sempre possível se considerar que a ausência de uma explicação
científica nem sempre e necessariamente anula de forma absoluta a positividade
de fenômenos decorrentes de uma intervenção [idem].
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Já M. Bunge, filósofo e epistemólogo contemporâneo, é eloqüente na sua definição de
pseudociência:
... é o caso da astrologia, homeopatia e outras pseudociências: é fácil refutá-las
empiricamente, mas não as consideramos científicas porque são incompatíveis
com o conhecimento científico [BUNGE, 1987].
Por último R. Sabatini, outro médico, aqui no papel de formador de opinião através da
mídia, pergunta e responde se
... A Homeopatia é Ciência? Ou é um culto? Uma seita?... a Medicina
homeopática anseia ser Ciência...então, se quer ser Ciência, procure seguir os
paradigmas da Ciência... existem alguns pontos na filosofia homeopática que
contradizem frontalmente o conhecimento científico vigente e até a lógica
[SABATINI, 1997].
Essa posição é bastante eficaz em descaracterizar o saber homeopático como válido,
já que o parâmetro científico é o que norteia quase que exclusivamente todas as questões
sobre a “verdade” no mundo contemporâneo. Tudo o que não é científico pertence
portanto ao mundo da lenda, da crença, da mistificação ou mesmo do charlatanismo, e,
no limite, da mentira e da falsidade.
Pretende-se analisar, no presente trabalho, a consistência dessa posição em relação
à Homeopatia dividindo-se a questão implícita “A Homeopatia é científica?”, que subjaz na
base das críticas citadas, em duas diferentes questões: “O que é a Homeopatia?” e “O
que é Ciência?”.
A primeira das questões propostas levará a uma análise histórica dos fundamentos do
saber homeopático em relação ao pano de fundo científico e filosófico em que surge,
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objeto da seção 2. A segunda questão levará à uma análise da evolução do conceito de
Ciência sob o ponto de vista epistemológico e suas conseqüências para a Homeopatia,
objeto da seção 3. A conclusão se dará no sentido de procurar avançar a suposta questão
da oposição entre Homeopatia e Ciência descrita anteriormente.
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2. HOMEOPATIA E HISTÓRIA
2.1 ORGANOGRAMA HISTÓRICO-EPISTEMOLÓGICO
O organograma apresentado a seguir visa facilitar uma apreensão geral e sintética:
- da evolução das principais correntes filosóficas ocidentais desde a antiguidade grega
até nossos dias2;
- da evolução da Ciência e da Medicina através da história, especialmente após o
Renascimento3;
- das possíveis, prováveis ou já constatadas relações históricas entre Ciência, filosofia e
Medicina4;
- da inserção da Homeopatia no contexto acima exposto.
Para isso, foi escolhido um determinado recorte baseado na:
- opção pela descrição dos indivíduos historicamente notáveis associada a uma sucinta
descrição da principal, ou principais, contribuições dos mesmos nos domínios elegidos
(Ciência e/ou Medicina e/ou filosofia);
- organização cronológica baseada na data de nascimento dos indivíduos escolhidos.
As cores tem por função destacar determinada característica considerada
relevante, a saber:
2 Baseado principalmente em [JACKSON, s/d; GOETZ, 1950; BULLOCK&STALLYBRASS, 1977;BUNGE, 1987; PESSANHA,1996; DURANT,1996; COMPTON, 1996].3 Seguindo a definição consagrada de Renascimento [in BURCKHARDT, 1991].4 Idem nota 1, além de [COULTER, 1981; GEHSPBM, 1986; NOVAES, 1989; BYNUM, 1995; LUZ,1996; FOUCAULT, 1998; ROSENBAUM, 2000; STORACE, 2001].
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- filósofos e personagens históricas da Grécia Antiga;
- filósofos e personagens históricas da Idade Média;
- cientistas (predominantemente), Idade Moderna e Contemporânea;
- médicos (predominantemente), Idade Moderna e Contemporânea;
- ou ou outras, combinações de características anteriormente descritas
consideradas relevantes.
As linhas que ligam Hahnemann a outros filósofos, cientistas e médicos visam indicar
quais as principais e reconhecidas influências por ele sofridas na elaboração da
Homeopatia6.
5 É comum encontrar-se na literatura filosófica a descrição de uma epistemologia ligada aoempirismo descrita como “escola inglesa”, devido à preponderância de filósofos dessanacionalidade (Locke, Hume, Mill) mais ligados à essa linha considerada mais próxima de como seadmite o trabalho científico, em oposição aos filósofos do continente (europeu) como Descartes,Leibnitz ou Kant, mais próximos de um racionalismo especulativo [FERREIRA/XIMENEZ, 1998].
6 Baseado especialmente em [COULTER, 1981; GEHSPBM, 1986; NOVAES, 1989; LUZ, 1996;CHIBENI, 1998; ROSENBAUM, 2000]
Platão 427-347 a.C.Doutrina da Idéias, Utopia,realismo platônico
Hipócrates 460-370 a.C.Equilíbrio ou desequilíbriodos quatro humores geracrase ou discrase, curapelos semelhantes oucontrários
Leucipo V a.C. aprox.Demócrito 470-370 ac aprox.vazio (natureza contínua) eatomismo físico (átomosindivisíveis, móveis)physis independente damedida humana
Empédocles nasc. 490 a.C.aprox.aletheia proporcional à medidahumanaisonomia dos 4 elementos(fogo, água, terra, ar) regidospor fluídos-forças(príncípios, Philia e Neikos)
Heráclito viveu por volta de504 a.C.Logos-Fogo, fluxo universaltensão harmônica dos opostos
Monismos corporalistasTales, VII-VI a.C. aprox.- physis (água) – hilozoísmoAnaxímandro, VI ac aprox.Anaxímenes- arché – ápeiron – pneumon(ar)Pitágoras, VI a.C. aprox.- mímesis numérica, naturezadescontínua, discreta
Eleatismo (discussão lógica eontológica)Parmênides, VI-V a.C. aprox.aletheia divina única e imutávelZenão, V a.C. aprox.Aporias (paradoxos), crítica àmultiplicidade monista
Os exemplos de como a visão hahnemanniana é, em parte, consistentemente
derivada de um indutivismo poderiam se estender por muitas páginas. Pode-se dizer que
a previsão baconiana de uma nova Ciência toma uma primeira forma definida, em
Medicina, com Hahnemann: experiência pura como dados empíricos confiáveis, pesquisa
perfeita, estudos com experimentos, para indução de leis gerais como a de semelhança.
E a crítica de Bacon ao rodopiar sem rumo da Ciência antiga é quase exatamente a
mesma de Hahnemann ao caleidoscópio colorido da Medicina antiga.
Seriam estas algumas das proposições básicas homeopáticas (derivadas de dados
observacionais):
- existência de uma força vital (Organon § 8);
- cura pela semelhança na natureza (idem, nota do § 26, §s 46, 50);
- efeito das ultradiluições (ibidem, nota do § 33).
E suas correspondentes proposições universais:
- vitalismo (ibidem, §s 11-16);
- lei de semelhança (ibidem, §s 51-53);
- dinamização (ibidem, § 68) [HAHNEMANN, 1962].
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O fato da Homeopatia ter enfrentado tantas e tão contínuas oposições desde o seu
surgimento é mais um forte indício a favor da crítica epistemológica ao indutivismo como
modelo da Ciência. Se apenas a demonstração indutiva estivesse por trás do
conhecimento científico, Hahnemann seria considerado um paradigma científico, mas a
história nos mostra que não ocorreu dessa forma.
O modelo indutivista exige de seu proponente uma escolha, de fato, não-indutiva de
quais proposições são aceitas e quais são rejeitadas, na medida em que, ao aceitá-las,
estará aceitando literalmente o que entende por verdade:
...uma proposição deve ser ou comprovada a partir dos fatos, ou derivada... de
outras proposições já comprovadas... A crítica indutivista é essencialmente
cética: consiste em mostrar que (se) uma proposição não está comprovada... é
pseudocientífica... quando então é banida da história da Ciência e transferida
para a história da pseudociência, para a história das simples crenças...
[LAKATOS, 1998].
Isto é o que ocorre com as proposições homeopáticas, incompatíveis com as
proposições cientificamente aceitas. Mas
...o historiador indutivista não pode oferecer uma explicação... racional para o
motivo que conduz no caso presente a uma seleção preferencial de certos fatos
em detrimento de outros.... quando enfrenta o problema da enorme consideração
tida pela metafísica por alguns grandes cientistas e, na realidade, o motivo que
os levava a pensar que as suas descobertas eram importantes por razões que à
luz do indutivismo parecem muito estranhas... atribuirá estes problemas à
psicopatologia... [LAKATOS, 1998].
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Um exemplo retirado de Newton10 vem a corroborar a limitação epistemológica do
indutivismo. Suas leis da gravitação reintroduziam um conceito, o de força, considerado
obscurantista e metafísico pelos cartesianos, que acreditavam apenas na ação por
contato entre os corpos na natureza. O modelo newtoniano permaneceu acuado por anos,
tendo Newton chegado a recuar e ceder às críticas racionalistas, incapaz de responder
consistentemente de forma indutiva. Mas manteve obstinadamente sua crença na
correção de seu modelo, até que corroborações da teoria feitas por previsões bem
sucedidas, como as de Halley (1656-1742) lhe deram um estatuto científico unânime
[KUHN, 1991; LAKATOS,1998].
Esses dois exemplos apontam a primeira e mais fundamental inconsistência do
indutivismo: a suposição de que uma observação é pura, que o dado empírico dos
sentidos corresponde a uma verdade, uma tábula rasa, é uma falsa suposição. Toda
observação pressupõe um conjunto de valores anteriores, culturais, semânticos ou
psicológicos, não havendo de forma nenhuma algo como um dado puro dos sentidos
(crítica exercida por Hume, para quem crenças em leis e teorias são hábitos psicológicos
adquiridos pela repetição de observações [CHALMERS, 2000]).
A segunda inconsistência deriva do questionamento de quantas observações de A
relacionadas a B seriam suficientes para permitir a indução, e isso não se daria de forma
10 Tendo o próprio Newton avançado o conceito indutivo de método científico em seus Principia:1) não se admite mais causas dos que as verdadeiras e suficientes para a explicação dofenômeno; 2) os mesmos efeitos naturais se relacionam com as mesmas causas; 3) as qualidadesdos corpos se estendem universalmente; e 4) as proposições serão consideradas acuradas atéque sejam contrariadas por outros fenômenos [WEISSTEIN, 2000].
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lógica, mas por simples convenção (que influenciará a adoção de um modelo probabilista,
ou então convencionalista).
A terceira inconsistência é de natureza lógica: o pressuposto de que A é igual a B
afirma algo que pretende precisamente provar, o que gera uma assertiva que pretende
provar-se a si mesma e que se torna, portanto, insustentável (que levará a um
refinamento do modelo, como no positivismo lógico).
Uma evolução posterior do indutivismo é descrita como justificacionismo, o que seria a
delimitação das condições empíricas mínimas necessárias para que, apesar de não
logicamente justificável, o método indutivo permanecesse valoroso. Ainda assim,
Os filósofos John Locke e David Hume apontaram... que a justificação empírica
da indução envolve dificuldades insuperáveis... (levando, por um lado, a uma)
retomada da doutrinas racionalistas (Kant) e, por outro, a reformulação dos
objetivos empiristas... procurou-se, assim, determinar condições nas quais o salto
indutivo seja feito de maneira mais segura possível... [CHIBENI, 1998].
Dentre elas estariam a necessidade de um grande número de observações de um
fenômeno, a variação ampla das condições de reprodução dos mesmos e a ausência de
contra-evidências; mas a história demonstrou claramente que essas condições ideais de
produção do saber científico não foram cumpridas na grande maioria dos exemplos das
descobertas e da prática científica [CHIBENI, 1998]. Por esses motivos a epistemologia
abandonou gradativamente o modelo indutivista como explicativo do conhecimento
científico, evolução essa que será descrita a seguir.
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3.2 CONVENCIONALISMO - POINCARÉ
O convencionalismo também é um modelo corrente na Ciência contemporânea.
Pressupõe que a escolha entre duas teorias rivais, competindo pela primazia da
explicação de uma verdade científica, depende menos de uma lógica estritamente
indutiva e mais de um acordo geral (convenção) no âmbito dos que fazem Ciência.
Essa convenção não é arbitrária, e de qualquer forma continua a levar em
consideração o método científico basicamente como colocado por Newton (vide nota 10,
pág. 27).
Portanto, os critérios são:
- a teoria que apresentar o menor número de causas para o maior número de
fenômenos explicados será preferida;
- desde que as mesmas causas levem aos mesmos efeitos;
- que os fenômenos sejam observados universalmente;
- e será considerada correta até que seja contrariada por fenômenos ou outras teorias
nas quais melhor se adequem.
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Então, descrito de outra forma, o convencionalismo adota critérios que tendem à um
caráter, respectivamente:
- estético-metafísico, de preponderância da simplicidade teórica sobre a complexidade;
- também estético-metafísico, de preponderância da simetria sobre a assimetria;
- de validade do maior poder preditivo independente e universal;
- e de uma certa relativização instrumentalista11, pois, na medida em que pode ser
substituída por uma melhor, uma teoria já não carrega completamente a verdade em
si, mas antes a melhor descrição dela até dado momento.
Essa postura foi adotada por inúmeros cientistas ao longo da história. Um exemplo
é o do químico alemão Friederich Kekulé (1829-1896), descobridor da estrutura em
anéis fechados do benzeno (inspirado pelo sonho que teve de uma cobra mordendo o
próprio rabo). Acreditava ser tal estrutura uma descrição teórica fictícia; útil, mas não
necessariamente correspondente à verdadeira forma. Porém essa estrutura veio a ser
posteriormente confirmada pela microscopia eletrônica [CHALMERS, 2000].
O convencionalismo também pressupõe uma evolução ou sucessão contínua das
teorias científicas, uma melhor substituindo a outra menos precisa, sem rupturas12.
O convencionalismo não-instrumentalista (ou realista) de Henri Poincaré (1854-
1912), nascido na França, se apóia em quatro características igualmente importantes:
11 Nome dado para a proposição epistemológica que defende que, apesar de existir uma realidadeexterna ao observador, a teoria não é a descrição direta dela mas apenas uma aproximação útil,em oposição ao realismo científico que advoga que uma teoria corresponde à realidade em umcerto grau, ou à própria realidade [CHALMERS, 2000]. Para Lakatos [LAKATOS, 1998], oinstrumentalismo não é mais que uma versão degenerada do convencionalismo.12 Conceito que é contestado por epistemólogos com Thomas Kuhn, como será visto adiante.
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- o fenomenismo: defendia que o que podemos apreender da natureza não é a
realidade em si, mas apenas os fenômenos e suas relações apresentadas por ela. A
realidade surge de uma aproximação entre o que carregamos de noções sobre o
mundo confrontadas com as verificações. De qualquer forma, essa não é uma posição
subjetivista (tal como não há uma realidade, apenas o que pensamos que ela seja),
mas apenas indica que as noções científicas falam minimamente sobre fragmentos da
realidade:
Freqüentemente se diz que as experiências devem ser realizadas sem idéias
preconcebidas. Isso não é possível; não somente seria tornar estéril toda
experiência, como também não o poderíamos fazer mesmo que quiséssemos.
Cada um carrega consigo a sua concepção de mundo da qual não se pode
desfazer assim tão facilmente... (então) precisamos tirar o melhor partido desse
pouco que podemos atingir diretamente. É preciso que cada experiência nos
possibilite o maior número possível de previsões e com o mais alto grau de
probabilidade que se possa alcançar [POINCARÉ, 1988].
- a hipótese e a generalização matemática: o que coordena um conjunto de
observações e o transforma de uma massa de dados em uma moção científica é uma
hipótese matematizável, em geral probabilística, passível de verificação. Sem a
hipótese não há organização, sem a verificação não há aproximação à verdade:
Assim, graças à generalização, cada fato observado nos faz prever um grande
número de outros; mas não devemos nos esquecer de que só o primeiro é
seguro, de que todos os outros são prováveis. Por mais sólida que nos possa
parecer uma previsão, não estamos, nunca, absolutamente seguros de que, se
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nos propusermos a verificá-la, a experiência não venha a desmentir. Mas,
freqüentemente, a probabilidade de acerto é bastante grande para que possamos
nos sentir satisfeitos. Mais vale prever sem certeza do que absolutamente não
prever [POINCARÉ, 1988].
- a unidade e simplicidade da natureza: o fato de poder haver uma hipótese indica que
atrás de uma aparente complexidade, a natureza nos apresenta uma regularidade
tanto mais apreensível quanto mais simples, o que deve indicar essas duas
propriedades da mesma:
... toda generalização supõe, numa certa medida, a crença na unidade e na
simplicidade da natureza. Quanto à unidade... se as diversas partes do universo
não fossem como os órgãos de um mesmo corpo, elas não agiriam umas sobre
as outras... logo não temos que nos perguntar se a natureza é una, mas, sim,
como ela é una... (mas) não é seguro que a natureza seja simples... se nossos
meios de investigação se tornassem cada vez mais penetrantes, descobriríamos
o simples sob o complexo, depois, o complexo sob o simples... e assim por
diante... em algum momento, temos que parar e, para que a Ciência seja
possível, temos que parar quando encontramos simplicidade [POINCARÉ, 1988].
- a experiência crucial: seguindo Bacon, acredita que uma experiência bem conduzida
é mais válida na definição de um fenômeno do que centenas de experiências comuns
ou malfeitas:
Todos nós sabemos que existem experiências bem feitas e experiências
malfeitas. Estas últimas se acumularão em vão, quer sejam cem, quer sejam mil.
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Um único trabalho de um verdadeiro mestre, de um Pasteur13, por exemplo, as
fará, todas, cair no esquecimento... O que é então uma boa experiência? É a que
nos desvenda algo além de um fato isolado; é a que nos permite prever, isto é, a
que nos permite generalizar [POINCARË, 1988].
Note-se que Poincaré pressupõe e admite uma metafísica (unidade e simplicidade do
universo), uma verdade relativa (provável), o valor de uma experiência singular (crucial)
na evolução da Ciência e o valor da hipótese (e não só das evidências), numa postura
mais flexível a aberta do que os indutivistas passados e presentes.
De um ponto de vista convencionalista, a Homeopatia é capaz de cumprir com vários
de seus critérios. O conjunto de hipóteses homeopáticas fundamentais (semelhança,
1962]) pode ser considerado como mais simples e mais simétrica: um pequeno conjunto
de hipóteses dá melhor conta dos fenômenos da saúde e da doença do que um apanhado
de hipóteses muitas vezes conflitantes tais como genética, microbiologia, stress
imunológico, psicossomatismo; possui maior poder preditivo, tais como leis de cura,
prognóstico clínico dinâmico, miasmas entendidos como padrões evolutivos gerais, não
contemplados pela Medicina convencional; e dependendo da assim chamada escola
homeopática, entende o conjunto teórico como uma melhor aproximação à realidade do
indivíduo são/doente, e não a verdade médica última.
13 Parcialmente desmistificado pela historiografia mais recente, tendo manipulando experiências aseu favor com por exemplo a ocultação da morte de uma criança e de cães pela vacinação anti-rábica, apesar do inegável sucesso nas campanhas posteriores [SCLIAR, 1995].
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Por outro lado, algumas escolas entendem que a Homeopatia descreve a realidade
médica de uma forma literal, o que pode se chocar com uma postura convencionalista.
Mas o principal é a crítica corrente por parte da Ciência, e que parece ter uma caráter
convencionalista, de que a Homeopatia não passou por uma generalização matemática, o
que em Medicina corresponde a trabalhos predominantemente clínicos ou laboratoriais
que apresentem resultados estatisticamente significativos, e, especialmente, não
apresentou uma experiência crucial no tocante a sua hipótese mais controversa, a da
ação de ultradiluições.
Apesar disso, esses critérios podem estar sendo cumpridos em nossos dias, em face
do aumento de volume e qualidade de trabalhos relativos à elucidação convencionalista
dessas questões14.
14 Estudo metanalítico de trabalhos clínicos homeopáticos nos últimos 25 anos demonstrou eficáciaem 81 dos 107 trabalhos analisados; dos 22 estudos de metodologia considerada ótima, 15apresentaram positividade [ULMANN, 1995]. Recentemente 4 laboratórios independentesconfirmaram os então controversos resultados positivos da degranulação de basófilos por altasdiluições obtidos em 1988 [BENVENISTE, 1988; BROWN&ENNIS, 2001; FISCHER, 2001;MILGROM, 2001].
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3.3 POSITIVISMO – RUSSELL
O positivismo, nomeado por Auguste Comte (1798-1857) como o princípio
fundamental de sua filosofia,
É a visão de que todo o conhecimento verdadeiro é científico, no sentido da
descrição e sucessão dos fenômenos observáveis. A palavra é agora comumente
usada como abreviação de Positivismo Lógico... e relaciona-se proximamente
ao... reducionismo... que pode ser contrastado com o holismo... e negado pelo
vitalismo... [BULLOCK&STALLYBRASS, 1977].
Chega-se aqui ao extremo do espectro epistemológico em relação às proposições
homeopáticas. A noção de que sistemas biológicos podem ser reduzidos aos sistemas
físico-químicos, e de que os processos anímicos ou mentais podem ser reduzidos aos
processos fisiológicos, físicos e químicos encontra aqui sua maior antinomia em relação à
Homeopatia. No entanto, esse é o panorama dominante na Ciência no que se refere à
Medicina convencional, descontando-se o fator da crise apontada no início do trabalho. É
contra essa visão que a Homeopatia surge como uma das possibilidades de resposta às
inquietudes surgidas nas últimas décadas. Portanto, pode-se dizer que o modelo
45
homeopático e o modelo positivista são irredutíveis: não se comunicam, a não ser para se
anular mutuamente. O positivismo, na sua formulação comteana, praticamente (e
paradoxalmente, em se tratando de Ciência) eleva o indutivismo a condição de doutrina; a
história da humanidade é uma progressão do pensamento mágico à Ciência, ápice da
capacidade civilizatória; o saber é hierárquico, das Ciências mais “simples” (matemática,
Física) às mais “complexas” (Medicina, sociologia), o saber das mais simples necessário
e condicionante absoluto para a compreensão das complexas; o mundo deve ser
conhecido em sua essência (suas leis) através do raciocínio e observação, e não
meramente do conhecimento empírico [SIGOLO, 1999].
Surpreendentemente, o Brasil presenciou, no início do século XX, uma insuspeita e
documentada ligação entre a Homeopatia e o positivismo de Comte, que havia
conquistado grande penetração especialmente entre militares, políticos e médicos,
inclusive homeopatas históricos. Hahnemann é apresentado como um gênio da reforma
positiva, por, muito antes de Comte ter nascido, ter transformado o pensamento médico
metafísico em Ciência racional; o anímico é entendido como uma propriedade mais
fisiológica cerebral do que espiritual; a ação dos medicamentos, próxima aos conceitos de
Broussais sobre a deficiência ou excitação dos tecidos; a força vital, considerada
metafísica, passa a receber um adjetivo físico: energia. Entretanto,
Uma vez que a Homeopatia não continha, em sua origem, elementos da filosofia
positivista, e nem esta a via como Ciência positiva –pelo contrário, taxava-a de
prática metafísica– por que a homeopatia, num momento de sua história,
contempla a possibilidade de construir seu discurso tendo como alicerce o
pensamento de Auguste Comte?... Pertencer ao campo da Medicina e não à
“crendice popular” requeria a adaptação e a reinterpretação, por parte dos
46
médicos homeopatas, de alguns pontos de sua teoria para que ela pudesse ser
reconhecida enquanto Ciência. O positivismo ofereceu, por seu aparato teórico e
aceitação na sociedade brasileira, as condições necessárias para sustentar o
discurso homeopático enquanto científico [SIGOLO, 1999].
De qualquer forma, o positivismo comteano é muito diferente daquele que vai inspirar
a profissionalização da filosofia da Ciência. O mais elaborado representante dessa
formulação é Bertrand Russell (1872-1970), britânico, que avança as proposições básicas
do positivismo ao mesmo tempo que inspira a construção do Positivismo Lógico do
Círculo e Viena.
Russell, antes de filósofo, é um matemático-filósofo, que chama seu modelo
epistemológico de atomismo lógico, busca de “partículas” lógico-matemáticas universais:
O objetivo da filosofia (russelliana) deveria se igualar à perfeição da matemática
ao limitar-se a declarações similarmente exatas e similarmente verdadeiras antes
de toda a experiência. ”As proposições filosóficas... devem ser a priori”...
(gerando) um impiedoso ataque à irracionalidade do misticismo, seguido de tal
glorificação do método científico, que nos faz pensar no misticismo da lógica...
(no entanto) Russell despejou na sua filosofia social o misticismo e o sentimento
que ele havia reprimido de maneira tão resoluta na sua atitude para com a
metafísica e a religião. [DURANT, 1996].
Filósofo rigoroso, e humanista libertário, Russell encerra as contradições e limites do
sonho indutivista. Ao mesmo tempo, simboliza a iluminação e a limitação da Ciência
baconiana. Por um lado, concorda com o convencionalismo de Poincaré na medida em
47
que considera os dados dos sentidos como uma aproximação à realidade, sem que seja a
apreensão direta da mesma. Combate a metafísica e o racionalismo idealista, na medida
em que propõe que se abandone as visões unificadoras do mundo ou teorias gerais em
troca de análises parciais da questões, apesar de conceber que a crença ocupa um lugar
básico instintivo no processo do conhecimento. Como há diferentes graus de crença,
como há de conhecimento, a tarefa filosófica é apontar o seu mais alto grau de verdade,
mostrando que a questão que verdadeira e realmente preocupa a filosofia não é a de
saber se o termo verdade está sendo corretamente utilizado, mas sim que frases, crenças
ou juízos são verdadeiros ou falsos. Por outro lado, o trabalho epistemológico se traduz
na tarefa de
conferir unidade e organização aos conhecimentos... (que são) “contaminados de
dúvida em certo grau”... assim quer a verdade, quer a falsidade são relações
externas das proposições e das crenças... o erro só surge quando ultrapassamos
o dado sensível [FERREIRA&XIMENEZ, 1998].
Neopitagórico e empírico, politicamente arrojado e cientificamente convencional,
rigoroso e fluído simultaneamente, Russell atinge um ponto de bifurcações que após o
esforço do Círculo de Viena, descendente direto de suas idéias, permite que se abram os
questionamentos da Epistemologia mais recente.
48
3.4 FALSIFICACIONISMO - POPPER
Karl Popper (1902-1994), nascido na Áustria e naturalizado britânico, tendo
tangenciado o Círculo de Viena, foi o epistemólogo de maior repercussão na crítica e
desconstrução dos modelos de Ciência vistos anteriormente. Além disso, todos os
epistemólogos posteriores construíram suas obras a partir de um frutífero diálogo direto
ou indireto com suas proposições.
Para Popper, o fato da postura realista por ele adotada sofrer a crítica de pertencer à
ordem da metafísica não é relevante, já que é o realismo que autoriza o “jogo” científico:
segundo algum idealismo existencialista, se tudo não passa de um “sonho da mente” não
há sentido em fazer Ciência; já considerar que há um observador independente da
realidade e vice-versa, além de ser de “bom senso” (metafísico) é um postulado básico
para que haja Ciência. Popper valoriza a metafísica:
Sob uma perspectiva histórica, a metafísica pode ser vista como a fonte de que
brotam as teorias das Ciências empíricas [POPPER, 1972].
E adota a de maior valor, sob seu ponto de vista, para a Ciência: o realismo. A Ciência
seria orientada por uma
49
Fé não científica, metafísica (ainda que biologicamente explicável) em leis,
regularidades que podemos desvelar, descobrir... (uma) irracional fé na razão.
[POPPER, 1972].
Considera a mentalidade científica moderna como
Um dos mais importantes elementos de nossa civilização ocidental (na forma de
uma) tradição racionalista que nós herdamos dos gregos... (o que implica em
uma) atividade intelectual mas também a observação e a experimentação... (cuja
grande função é) sua influência liberalizadora – como uma das maiores forças
que contribuem para a liberdade humana [POPPER, 1994].
A partir disso, para Popper a Ciência surge de um consenso, isto é, um acordo entre
os investigadores a respeito dos valores e objetivos comuns que partilham, dentre eles:
- universalização - os enunciados são científicos se valerem independentes de critérios
pessoais;
- “comunismo” - as descobertas e pesquisas não se restringem a quem faz, mas valem
na medida em que são divulgadas;
- desinteresse - a Ciência não é interessada no sentido de obter um resultado que
deseja; é objetiva, rigorosa e comprometida com a ausência de fraudes;
- ceticismo organizado - ninguém ou nenhum grupo isoladamente pode dizer o que é a
“verdade”; deve haver um permanente teste intersubjetivo [PEREIRA, 1993].
Da parte de quem faz Ciência, estes cientistas devem possuir um espírito crítico e um
“dogmatismo revolucionário”, no sentido de quem preserva a tradição e ao mesmo tempo
busca o aprimoramento. Até aqui, Popper parece quase indistinguível de uma posição
50
convencionalista e às vezes até mesmo instrumentalista, se não fosse pelo critério de
demarcação científica que propõe, a fundamental e principal marca de seu trabalho:
Todos os procedimentos metodológicos devem ser conduzidos de tal forma a
facultar o falseamento das hipóteses. [PEREIRA, 1993].
Popper evita o conceito absoluto de verdadeiro e falso em Ciência; uma teoria, uma
vez aceita em lugar de outra, não significa que diga como a realidade é verdadeiramente,
mas sim que descreve uma melhor aproximação dos fatos. Portanto, a evolução da
Ciência se dá com base a uma aproximação cada vez maior e melhor, sem nunca se
chegar a uma verdade absoluta, que, se existir, é incognoscível. Com isso, uma teoria
pode ser melhor quanto mais, em termos lógicos, possa ser refutada; se não houver
possibilidade de refutação, não é uma teoria e sim um dogma, e, portanto, não pode ser
científica. Falseabilidade então torna-se equivalente a possibilidade de refutação, e isto
torna a falseabilidade o mais importante critério de demarcação entre Ciência e
pseudociência para Popper.
A partir daí, uma teoria X se torna melhor que uma Y se:
1) X faz afirmações mais precisas que Y;
2) X explica mais fatos que Y;
3) X resiste aos testes que refutam Y;
4) X permite testes que nem eram sugeridos por Y;
5) X contextualiza problemas que antes dela pareciam isolados;
6) Se as duas se equivalem, a mais simples prevalece [PEREIRA, 1993].
51
Aplicando-se os conceitos anteriores ao modelo homeopático, inicialmente com
relação aos primeiros tópicos citados (consenso):
- os enunciados homeopáticos são supostamente universais, mas em várias questões
(como potência, posologia e até mesmo critério de semelhança) são submetidos a
critérios excessivamente individuais ou grupais;
- em geral, pode-se dizer que há ampla comunicação de idéias, mas muitas se
caracterizam por baixa objetividade e personalismo;
- a disputa de correntes ou escolas denota um forte componente de interesse no
sentido de que se ratifique que seu resultado é mais valoroso que outro;
- novamente aqui se disputa a “verdade” na ausência de critérios objetivos e
intersubjetivos claros, universais.
Deve-se notar que ainda faltaria à Homeopatia, segundo estes critérios, o denominado
consenso científico, tanto “interno” quanto em relação à Ciência em geral. Com relação à
teoria propriamente dita, tome-se hipoteticamente o seguinte enunciado (bastante
esquemático) como “teoria homeopática”: “a doença equivale a um desequilíbrio
dinâmico da totalidade psicofísica, que pode ser auxiliado na sua correção pela utilização
de medicamentos previamente experimentados, em doses mínimas, aplicados por
provocarem uma síndrome semelhante no organismo, contra a qual este reage
simultaneamente à condição inicial, atingindo assim a cura”. Agora, confronte-se com o da
Medicina convencional: “a doença resulta fundamentalmente de condições genéticas e
microbiológicas, contra as quais utilizam-se fármacos em doses ponderais no sentido de
paliar, suprimir, compensar ou eliminar os sintomas ou condições fisiopatológicas, o que
resulta na cura”. Ressalvando-se o caráter genérico, impreciso e superficial das
52
definições, pode-se proceder ao exercício de submetê-las aos critérios antes
mencionados (X = Homeopatia; Y = Medicina convencional):
1) segundo relatos (portanto, ainda dados não-científicos, já que não satisfazem as
condições gerais15) X pode ser mais precisa em certas condições (por exemplo,
doenças psicossomáticas e crônicas) que Y, e o inverso pode se dar em outras
condições (por exemplo, doenças agudas graves ou com muita lesão);
2) semelhante à anterior;
3) não é possível responder à esta condição, já que X não passou ainda pelo mesmo
volume de testes que Y;
4) semelhante à anterior;
5) parece (mesma condição que itens 1 e 2) que X contextualiza melhor problemas antes
isolados por Y.
Pode-se ainda supor como desnecessária a superação do item 6, considerando-se as
2 teorias como equivalentes (em relevância), e ambas adequadamente “simples”, dada a
complexidade do objetivo proposto (saúde/doença).
Quanto ao aspecto da faseabilidade da teoria homeopática, é possível proceder-se a
uma análise por partes Por exemplo:
- a hipótese da ação biológica de ultradiluições: é falseável, já que pode ser refutada ou
confirmada mediante experimentos, e portanto é uma hipótese científica, ao menos sob o
ponto de vista epistemológico popperiano;
15 Aqui valem as mesmas observações referidas na nota 14 (pág. 34), na medida em que os dadoshomeopáticos passam a satisfazer as condições gerais e se tornam, portanto, dados científicos.
53
- a hipótese da força vital: não é refutável a não ser que seja trocada por uma hipótese
refutável como a de “propriedades emergentes de sistemas” ou algo assim, já que uma
força (fisicamente) imaterial não pode ser negada nem confirmada, tornando-se então
uma hipótese pseudocientífica.
De uma forma geral, a Homeopatia submetida à uma análise falsificacionista perderia
a identidade dada por seu conjunto ao mesmo tempo que ganharia uma consistência em
suas partes assim desmembradas, transformando-se em algo como uma “homeologia” ou
próximo a isso. A postura epistemológica falsificacionista é bastante corrente na Ciência,
coexistindo de alguma forma no conjunto de valores científicos atuais ao lado de um
indutivismo sofisticado e de um convencionalismo. Mas já sofreu críticas e comentários
epistemológicos suficientemente elaborados que apontam suas inconsistências:
... a revolução Copernicana não ocorreu a partir da queda de um ou dois chapéus
da Torre de Pisa... nem os indutivistas nem os falsificacionistas dão um relato da
Ciência compatível (historicamente) com ela. Os novos conceitos de força e
inércia não surgiram como resultado de observação e experimentação
cuidadosa. Tampouco surgiram através da falsificação de conjeturas audaciosas
e da substituição contínua de uma conjetura audaciosa por outra. As formulações
iniciais da nova teoria, envolvendo concepções novas incompletamente
formuladas, foram mantidas com perseverança e desenvolvidas a despeito de
aparentes falsificações Apenas depois de um novo sistema de Física ter sido
projetado –processo que envolveu o trabalho intelectual de muitos cientistas por
vários séculos– é que a nova teoria pôde ser comparada com sucesso aos
resultados da observação e do experimento de forma detalhada. Nenhuma
54
explicação da Ciência pode ser aceita como suficiente a menos que possa
acomodar fatores como estes [CHALMERS, 2000].
A partir de análise, críticas e intenso diálogo, novas formulações epistemológicas
foram sendo propostas, indo além da proposição popperiana em diversas direções, e
serão objeto das seções seguintes.
55
3.5 PROGRAMAS DE PESQUISA – LAKATOS
Devido às inconsistências das propostas indutivista, convencionalista e
falsificacionista sobre o processo de produção do conhecimento científico, Imre Lakatos
(1922-1974), nascido na Hungria, propõe uma interessante e inovadora forma de
concebê-lo, entendendo que a evolução da teoria e da prática em Ciência se dá na forma
de programas de pesquisa.
Este seria constituído de uma série de proposições centrais e definidoras de uma
teoria, que formariam o seu núcleo irrefutável, o “coração” de determinado programa. Por
convenção, esse núcleo não seria mudado apesar de provas em contrário, mas antes ele
seria cercado de uma série de idéias ou hipóteses secundárias, que formariam um
cinturão protetor em torno do mesmo16. Estes sofreriam, enquanto necessário, mudanças
significativas em função da confirmação ou refutação dos fatos ou experimentos, o que
16 A irrefutabilidade convencionada do núcleo corresponderia ao que Lakatos denomina deheurística (método que consiste no procedimento de busca de um objetivo desconhecido com baseem critérios conhecidos [BULLOCK/STALLYBRASS,1977]) negativa; as progressões e regressõesdo cinturão, variáveis em cada programa são chamadas de heurística positiva [CHALMERS, 2000].
56
não traria nenhum ônus para o núcleo em si. Abandonar as idéias nucleares significa
abandonar o programa [LAKATOS, 1998].
Lakatos descreve que existiriam programas rivais, em determinados momentos
históricos, competindo entre si. Na medida em que um deles ascende em importância,
consistência e capacidade preditiva, é considerado progressivo em relação a seu rival,
que, em oposição, passa a ser considerado degenerativo. A progressividade ou
degenerescência de um programa não indicam cabalmente sua adoção total ou abandono
imediato respectivamente, mas apenas um relativo grau de sucesso do mesmo em dado
momento histórico. Somente a posteriori, através da retrospectiva histórica, é que se
pode afirmar mais decididamente sobre a preponderância de um determinado programa.
Lakatos defende a idéia de programa baseando-se nos exemplos históricos como o
de Newton, já citado anteriormente17: o programa “gravitacional”, cujo núcleo irrefutável
seria constituído pelas leis da gravitação mais o conceito de força gravitacional, foi
mantido apesar das críticas e evidências em contrário: as equações, de início, só eram
corretas se o Sol fosse considerado um ponto e não esférico, por exemplo. As evoluções
no tratamento matemático, o uso de telescópios mais sofisticados, o aprimoramento das
leis de refração adequados a estes, foram processos de adaptação no cinturão que
finalmente levaram à comprovação do núcleo. Portanto, a idéia de programas se
adequaria melhor aos exemplos históricos bem como seria um modelo epistemológico
17 página 27.
57
mais produtivo para as pesquisas atuais, já que não exige que programas rivais se
anulem um ao outro, favorecendo uma evolução mais “harmoniosa” da Ciência.
S. Chibeni faz, em seu estudo18, uma detalhada descrição de como a Homeopatia
pode ser encarada como um programa de pesquisa. Seu núcleo irredutível ou rígido,
baseado em Hahnemann, seria constituído por:
- lei da semelhança;
- totalidade dos sintomas;
- experimentação no homem são.
O cinturão protetor seria composto por uma série de outras características
homeopáticas como: dinamização, unicidade dos remédios, individuação, teoria das
doenças crônicas, importância dos sintomas peculiares, proeminência dos sintomas
psíquicos, agravação, dentre as mais destacadas, que poderiam ser refutados sem
comprometimento do núcleo.
Além disso, Chibeni argumenta consistentemente a favor de uma análise da
Homeopatia com base na discriminação entre seus componentes construtivos e
fenomenológicos. O vitalismo pertenceria à categoria das teorias construtivas, que
...envolvem proposições referentes a entidades e processos inacessíveis à
observação direta... postulados por sua “construção” a partir dessa suposta
estrutura fundamental subjacente [CHIBENI, 1998],
18 “A Questão da Cientificidade da Homeopatia” [in CHIBENI, 1998].
58
enquanto todas as características anteriores, descritas como núcleo e cinturão, fariam
parte de uma teoria fenomenológica,
... cujas proposições se refiram exclusivamente a propriedades e relações
empiricamente acessíveis entre os fenômenos... essas proposições descrevem,
conectam e integram os fenômenos, permitindo a dedução de conseqüências
empiricamente observáveis... é importante observar que essas duas categorias
de teoria não são conflitantes, no sentido que um mesmo conjunto de fenômenos
seja tratado por duas teorias, uma fenomenológica e outra construtiva; nesse
caso, a última vai além da primeira no nível explicativo, desse modo
complementando-a [CHIBENI, 1998].
Há a possibilidade dessa descrição explicar o surgimento das diferentes “escolas”
homeopáticas, umas privilegiando o componente fenomenológico da Homeopatia, como a
francesa, e outras o componente construtivo, como algumas argentinas; de qualquer
forma, por adotarem o mesmo núcleo, estariam trabalhando sempre dentro do mesmo
programa. A tendência da comunidade científica, dependendo, principalmente, se o
enfoque é mais realista ou mais instrumentalista, é considerar de mais alto valor uma
teoria fenomenológica em relação a uma teoria construtiva ou vice-versa, o que pode,
eventualmente, resultar numa maior valoração de certas características homeopáticas em
detrimento de outras. Isto possibilitaria novamente, como comentado sobre o
falsificacionismo, um desmembramento de sua concepção original, desejável para uns e
condenável para outros.
Considerada dessa forma, dentro da epistemologia lakatosiana, a Homeopatia deixa
de ser uma pseudociência e passa a adquirir caráter científico, como um programa rival
59
da Medicina convencional. De qualquer forma, segue-se uma reflexão: se o programa
não-convencional homeopático é rival do convencional médico, um deles é degenerativo
enquanto o outro progride. A resposta para a pergunta sobre qual cumpre qual descrição
é impossível dentro do modelo, e isso é admitido por Lakatos a respeito de sua proposta,
já que só a História pode responder a essa questão, em um momento e tempo
imprevisíveis. Do ponto de vista de cada programa, o seu é progressivo em relação ao
outro: para a Medicina convencional, a Homeopatia já teria degenerado há muito tempo, e
no entanto sua prática o nega, e até afirma o contrário; o inverso é algumas vezes
profetizado por homeopatas. E mesmo um programa que tenha se degenerado a ponto de
ter sido completamente abandonado, pode vir a ressurgir novamente de forma
imprevisível em um tempo futuro, como atestado novamente por Newton e seu conceito
de força, abandonado no curso da História e depois retomado de forma bem sucedida, ou
o conceito de éter que parece ressurgir modernamente, transformado na hipótese da
“matéria escura”, procurada hoje em dia por astrofísicos para melhor “acomodar” a
relação entre massa/taxa de expansão do Universo.
Por esse motivo, o modelo de programas de pesquisa é algumas vezes considerado
como insuficiente enquanto uma epistemologia prospectiva, sendo mais uma descrição
historicamente consistente da evolução da Ciência.
60
3.6 PARADIGMAS - KUHN
A visão epistemológica do americano Thomas Kuhn (1922-1996) é, involuntariamente
talvez, menos conhecida em seu conjunto do que pela introdução do conceito de
paradigma19, sendo tão indiscriminadamente utilizado na atualidade que corre o risco de
ter seu sentido esvaziado antes de ser plenamente compreendido.
Até aqui, todos os modelos epistemológicos analisados procuram uma explicação
para a evolução do conhecimento científico apoiando-se mais em uma história interna,
supondo-se uma lógica e um conjunto de características próprias e exclusivas da Ciência,
do que em uma história externa, interpretada ora como história geral, ora como sociologia,
ora como psicologia, ou combinações das mesmas, apoiando-se nesta última em maior
ou menor grau para corroborar seus modelos, mas procurando independer-se dela na
busca de seus sentidos próprios.
19 Do grego para=proximidade e deikmen=mostrar, modelo, exemplo [WEBSTER, 1951;JACKSON, s/d].
61
De forma diversa, Kuhn passa a integrar com muito maior intensidade elementos da
história externa como determinantes na construção da Ciência. Nesse sentido entra a
conceituação de paradigma,
Sistema de pressuposições, estrutura absoluta de pressupostos que alicerça uma
comunidade (científica, na proposta kuhniana estrita) [KUHN, 1991].
O conceito pode ser desdobrado em vários sentidos:
- sociológico, onde alicerça o conjunto de valores, normas, técnicas e crenças
partilhados pela comunidade científica;
- epistemológico, onde representa o esquema de pensamento para a explicação e
compreensão da realidade;
- metafísico, onde representa uma determinação mais ampla e mais difusa que a teoria,
ou seja, não é uma teoria e pode funcionar sem ela, sendo nessa caso mais extenso
que a teoria [TEIXEIRA, 1995].
Portanto, a noção de paradigma, em maior ou menor grau, implica em uma noção
mais fundamental no sentido literal, já que indica que os aspectos filosóficos,
sociológicos e mesmo psicológicos de uma comunidade e de uma cultura constituem
os próprios fundamentos que norteiam e delimitam os pressupostos científicos de uma
época. Para Kuhn, há um caráter evolutivo, porém não necessariamente progressivo,
já que uma etapa não sucede à outra por ser melhor per se, mas por trazer melhores
respostas para um determinado momento histórico-cultural. Além do mais, as
sucessões não se dão tranqüilamente, mas na forma de revoluções.
62
Kuhn entende que, na medida que um paradigma se estabelece, é constituída a
fase da denominada Ciência normal; onde todo o esforço da comunidade científica
está organizado e dirigido em um determinado sentido, pois todos concordam quanto
capacidade resolutiva daquele determinado paradigma. É uma fase de forte
elaboração matemática, da formalização e normalização dos experimentos e
condutas. Anomalias e possíveis refutações são consideradas secundárias ou
temporárias, pois há a certeza implícita de que, na medida que progride a exploração
daquele modelo, elas serão elucidadas.
No momento em que as anomalias se avolumam e o modelo parece dar mostras
de esgotar sua capacidade explicativa, isto é, dar respostas de acordo com as
necessidades históricas, sociais e culturais de determinada em determinado momento,
sobrevirá a crise, onde o paradigma passa a ser contestado, e diversos membros da
comunidade científica passarão a buscar novos modelos. É uma fase onde predomina
a incerteza, a intuição e a criatividade mais “artística” do que propriamente o rigor
formal e a matematização plena. Novas visões, regularidades, padrões e noções
passam a surgir, e, invariavelmente, o novo paradigma surgirá em oposição ao antigo:
são irredutíveis, isto é, um não pode ser explicado pelo outro, pois muitas vezes suas
visões são diametralmente opostas. A historiografia e os manuais científicos, guiados
por pressupostos de simetria e normalidade, se encarregariam de, passada a crise,
reescrever a história como uma sucessão contínua e suave de progressão rumo
sempre a uma maior e melhor Ciência.
Resgatando elementos perdidos nessa mesma história, Kuhn sugere que a
evolução se dá através de saltos descontínuos, ainda que discretos. Há aqui, nos
63
próprios termos escolhidos, um paralelismo entre a visão clássica, de tempo e espaço
contínuos e átomos indivisíveis da mecânica clássica e o salto para o espaço-tempo
relativístico e o átomo quântico descontínuo:
...consideramos revoluções científicas aqueles episódios de desenvolvimento
não-cumulativo nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente
substituído por um novo, incompatível com o anterior... de forma muito
semelhante às revoluções políticas, as revoluções científicas iniciam-se com um
sentimento crescente... de que o paradigma existente deixou de funcionar
adequadamente na exploração de um aspecto da natureza... o sentimento de
funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a
revolução... o historiador da Ciência que examina as pesquisas do passado...
pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda
com ele o próprio mundo... os cientistas adotam novos instrumentos e orientam
seu olhar em novas direções. E o que é mais importante: durante as revoluções,
os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos
familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente... as bem
conhecidas demonstrações relativas a uma mudança na forma (Gestalt) visual
demonstram ser muito sugestivas, como protótipos elementares para essas
transformações [KUHN, 1991].
Ampliando a noção de paradigma para grandes períodos históricos e integrando
diversas áreas da cultura e atividade humanas, pode-se dizer que antes do Renascimento
um paradigma regia sob os seguintes signos sintéticos:
- primazia da natureza sobre o homem;
- raciocínio analógico;
64
- holismo, integração do todo às partes, animismo, vitalismo;
- espaço fechado e integrado;
- tempo como eterna sucessão de ciclos ;
- regimes tribais, monárquicos, teocráticos;
- economia de subsistência, agrícola, artesanal;
- matriz energética humana, animal, vegetal;
- música modal (ragas indianas, cânticos tibetano, canto gregoriano);
- arte sacra, à serviço da relação com o espiritual/divino.