/4 Reabilitação Urbana na região da Estação da Luz: uma proposta fundamentada no reconhecimento do patrimônio histórico 15/março “Você está tirando essas fotos por causa das desapropriações?” “Em uma primeira visita realizada no dia 15 de março para re-conhecer o centro de São Paulo, caminhei pela Avenida Ipiranga até alcançar a Ave- nida Cásper Líbero. Dali, segui caminhando em direção à Estação da Luz quando um edifício muito degradado me chamou a atenção. O edifício art-dèco de três andares, ainda exibe um resto de pintura verde, mas apresenta grandes áreas de alvenaria exposta e muitas pichações. (...) Parei para prestar atenção no entorno dessa construção e percebi que estava em um local bastante agradável. A larga avenida associada ao baixo gabarito da maioria das edificações dá uma amplitude que possibilita a melhor visualização do conjunto da rua expondo uma rica diversidade arquitetônica e de usos dos edifícios. Fiz um levantamento dos usos de cada edifício, mas sem dúvida, o mais interessante foi o contato com a população do local. Durante a visita fui abordada com a seguinte questão: “Você está tirando essas fotos por causa das desapropriações?”. O Sr. Estênio Geraldo dos Santos, morador desde 1989 desse quarteirão achou que eu era funcionária da Prefeitura e queria saber se ele corria risco de ser desapropriado. (...) Observei o seu edifício e constatei que ele está em boas condições e plenamente utilizado, composto por atividades comerciais no térreo e 9 andares de uso residencial, o que me fez acreditar que não existem motivos para uma desapropriação. (...) Para ele, essa região da Cásper Líbero não é perigosa, pois ali moram muitas famílias e, apesar de todo o comércio fechar no fim da tarde, os bares ficam abertos até a meia-noite mantendo o movimento da rua. Assim, ele não se preocupa em deixar os seus 3 filhos passearam a noite na sua rua. Sem saber, esse morador se referia a algumas das reflexões de Jane Jacobs : “devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles que podemos chamar de proprietários naturais da rua. Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles quanto dos moradores devem estar voltados para a rua. (...) O requisito básico da vigilância é um número substancial de estabelecimentos e outros locais públicos dis- postos ao longo das calçadas dos distritos; deve haver entre eles, sobretudo estabelecimentos e espaços públicos que sejam utilizados de noite.” (JACOBS,1961, p.35)” 26/abril “Fala pro Kassab que não é pra destruir a cidade toda não, hein!” “A partir da visita anterior, decidi explorar as ruas dentro do perímetro do Programa Nova Luz. Segui pela Rua General Couto de Magalhães e encontrei uma situação chocante. Dois quarteirões inteiros demolidos onde restou apenas um edifício muito estreito, que é tombado. Para completar essa cena, de vez em quando um guardador de carros gritava: “Fala pro Kassab que não é pra destruir a cidade toda não, hein!”. O que restou dessa rua é com- posto por sobrados degradados e muitos estacionamentos. Os veículos, se não estão só de passagem, estão procurando algum local para estacionar. Como ali não mora ninguém, não existe nada de comércio local e as calçadas são desagradavelmente quentes pela inexistência de árvores (e de edifícios que façam alguma sombra) a presença de pessoas ali é praticamente nula. Na Rua dos Protestantes a situação não é muito diferente, além de ser um local muito sujo e mal-cheiroso, fato que resulta num local morto e subutilizado que é evitado tanto por pedestres quanto por veículos. Durante 15 minutos passou apenas um casal com passos apressados e eu que tive medo de ser assaltada em plena luz do dia. Na Rua dos Gusmões encontrei alguns imóveis fechados e outros que abrigam atividades relacionadas à informática. A esquina com a Rua do Triunfo é marcada por dois sobrados tombados muito bonitos. Infelizmente, um deles é um cortiço e está bastante degradado. Enquanto eu o observava tive a oportunidade de conhecer um de seus moradores, o Sr. Eduardo Santana, trabalhador do Zoológico de São Paulo. Muito interessado na possibilida- de de projetos para a região, ele se mostrou disposto a me apresentar o edifício por dentro; apesar da grande curiosidade,não pude aceitar o convite, pois estava sozinha. O quarteirão seguinte, apesar da presença de alguns imóveis interditados pela Prefeitura, se apresenta um pouco mais agradável. Nele são encontrados estabelecimentos bem cuidados relacionados ao comércio da Rua Santa Ifigênia e algumas lanchonetes simpáticas e relativamente movimen- tadas. Os quarteirões seguintes fazem esquina com a Rua Santa Ifigênia e por isso, grande parte do seu comércio é relacionado à informática e eletrônicos. O aumento do número de pedestres e as músicas das lojas criam uma atmosfera bastante animada e atraente. Segundo Jane Jacobs “os próprios lojistas costumam incentivar a tranqüilidade e a ordem; detestam vidraças quebradas e roubos; detestam que os clientes fiquem preocupados com a segurança”.“ 04/ maio “Você não tem medo de ficar aqui sozinha?” “Iniciei o levantamento pela Rua do Triunfo onde, logo na primeira esquina encontrei uma atmosfera muito agradável. Na esquina com a Rua General Osório existe a Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim (EMESP) e da calçada se ouvia o som daqueles que ali estavam estudando e aprendendo. Entrei no edifício e encontrei no térreo um espaço de convivência muito aprazível e plenamente utilizado por pessoas de diversas faixas etárias e classes sociais. Esse clima agradável contagia as outras esquinas do cruzamento onde se encontram o Largo General Osório, o Hotel Piratininga, e um animado bar no térreo de um prédio bem conservado. A existência de um ponto de táxi no Largo promove segurança no local já que os taxistas ficam ali sentados na sombra sempre de olho ao que acontece na rua. Mas, a medida em que me distanciei da escola de música a Rua do Triunfo foi perdendo o bri- lho. Apesar da existência de alguns sobrados antigos bem conservados onde funcionam pequenas pensões, nenhum espaço no térreo está sendo utilizado e as calçadas são muito sujas o que diminuiu sensivelmente o fluxo de pedestres, já que não existem motivos concretos para a utilização dessas calçadas. As calçadas ficaram tão vazias que cheguei a ser questionada por um dos poucos pedestres se eu não tinha medo de ficar ali. No quarteirão seguinte todo o comércio local é ligado às atividades da Rua Santa Ifigênia o que resulta numa preocupação maior de conservar os imóveis. Como sempre, a presença de um edifício residencial com um pequeno bar no térreo desperta um movimento mais interessante e seguro no local. Dali segui para a próxima via paralela, a Rua dos Andradas. Após a revisão do tombamento do bairro Santa Ifigênia realizado em fevereiro desse ano, não existem mais imóveis tombados nessa rua, mas isso não tira a sua importância, pois essa rua apresenta uma dinâmica viva graças a um rico comércio local (composto não só por estabelecimen- tos ligados às atividades da Rua Santa Ifigênia) associado a alguns barzinhos e edifícios residenciais. “Quanto maior e mais diversificado o leque de interesses legítimos que a cidade e as empresas possam satisfazer, melhor para as ruas, para a segurança e para a civilidade das cidades.” (JACOBS, 1961, p.42)” 10/ maio “Sabe quanto eu gastei nessa obra? 59.000,00!” “Dando continuidade ao reconhecimento das ruas da Nova Luz visitei as Ruas Aurora, Timbiras e General Osório. Grande parte da Rua Aurora exibe uma situação bastante típica dessa região: não possui edifícios residenciais nem comércio local, sendo dominado pelo comércio de eletrônicos carac- terístico da Rua Santa Ifigênia. Essa tipologia de rua é bastante viva durante o período comercial, mas com o fim da tarde todas as atividades cessam e o espaço público, completamente sem luz, sem segurança e sem uso, morre e se torna palco para atividades ilícitas, como o uso e o tráfico de drogas, e ainda para moradores de rua. Me direcionei à Rua General Osório que compartilha com a Rua do Triunfo a agradável atmosfera proporcionada pela escola de música (EMESP) localizada no Largo General Osório. Essa área, tomada pela música e pela saudável movimentação de um comércio local, se abre para o Largo, composto por pequenos mercados e padarias. A influência da música ainda é vista ao longo da primeira quadra da rua, onde se encontram muitas lojas de instrumen- tos musicais e estabelecimentos que oferecem aulas de música. Associados a esse comércio, existem hotéis, edifícios residenciais, duas lanchonetes e uma churrascaria. “Lojas, bares e restaurantes (...) atuam de forma bem variada e complexa para aumentar a segurança nas calçadas”. (JACOBS, 1961). Nessa rua existe um grande imóvel tombado na revisão de tombamentos da Santa Ifigênia em fevereiro de 2010, que exibe uma fachada recém restaurada. Quando parei para tirar fotos da edificação o proprietário veio falar comigo. Ele me contou que antigamente esse imóvel era um cinema (Cine Astoria), mas que existe muito pouco sobre a história do imóvel. Hoje o local é utilizado como estacionamento no térreo e será alugado para pequenas empresas nos outros dois andares. Segundo ele, foram investidos R$ 59.000,00 na reforma da fachada e parte dos ambientes interiores (por falta de dinheiro, as reformas no in- terior do edifício foram interrompidas) e o valor do último IPTU foi R$ 30.000,00. Ao ouvir o valor do IPTU, comentei sobre a redução desse imposto para imóveis tombados e fiquei perplexa ao saber que um proprietário tão empenhado não sabia que seu imóvel havia sido tombado no começo do ano...” A área central de uma cidade abrange um bairro ou um conjunto de bairros consolidados marcados por possuírem uma infra-estrutura urbana rica e já bem estabelecida, serviços e equipamentos públicos, muitas oportunidades de trabalho e grande potencial habi- tacional já que é geralmente uma região densamente edificada. Soma-se a isso o seu importante caráter cultural e turístico por ser o local onde a cidade co- meçou e, portanto onde se concentra a grande maioria do seu patrimônio histórico edi- ficado. Apesar de todas essas características é muito comum nas grandes cidades um movimento de abandono dessas áreas devido à formação de novos centros que atraem o interesse tanto dos investimentos quanto da própria população. E isso se aplica à cidade de São Paulo. A partir da década de 1950 tem início o declínio da região central paulistana que só se intensificou nos anos seguintes até que, no final da década de 80 e principalmente no início dos anos 90, as idéias sobre o centro da cidade começaram a se modificar dando início à elaboração de planos para a reabilitação dessa área. A partir de então, muito foi desenvolvido para melhorar o centro de São Paulo, unindo esforços municipais, estaduais, federais e da população da cidade. O retorno da preocupação com o centro da cidade pode ser conferido em um trecho da Declaração de São Paulo, escrita em 1989 na capital paulista, que diz o seguinte: “Que populações marginalizadas, ocupantes dos centros históricos urbanos de todas as nações, devem poder alcançar melhoria real na qualidade de vida de seu cotidiano, através de projetos de restaura- ção e reciclagem que considerem, também, sistemas habitacionais de padrão condizente com a dignidade e cidadania das populações.” (1989, p.2) É também importante reabilitar e atrair os interesses de volta ao centro das ci- dades pois eles são essenciais para marcar a identidade da cidade frente aos visitantes e representar uma importante referência para os seus cidadãos, sendo eles o testemunho da cultura e do passado da cidade. O trecho a seguir, retirado das Normas de Quito (1967, p.6) demonstra essa significativa relação entre a popula- ção e o seu centro histórico: “Um monumento restaurado adequadamente, um conjunto urbano valorizado, constituem não só uma lição viva de história como uma legítima razão de dignidade nacional.” Assim, entende-se a importância econômica, habitacional e cultural de se intensificar o uso das regiões centrais urbanas. Projetar uma inter- venção urbana em um tecido delicado como o de um centro histórico é uma tarefa complexa e por isso é muito importante observar o que já foi produzido em outros centros urbanos. Casos como o projeto-piloto de Lina Bo Bardi para o Pelourinho em Salvador, o pioneiro projeto de reabilitação no centro histórico de Bologna e o projeto elaborado numa cooperação entre Espanha e Cuba para a região da Avenida Malecón em Havana tiveram a reabilitação do patrimônio edificado e a manutenção da popula- ção local como objetivos principais do projeto. No caso da região da Lapa no Rio de Janeiro, a presença e a valorização dos edifícios e monumentos históricos na região foi fundamental para que uma “revita- lização espontânea” fosse organizada pelos próprios usuários do local. Já no centro histórico de Madrid, a reabilitação das praças e de seus edifícios históricos, somados ao tratamento dos espaços públicos privilegiando o pedestre, foram as soluções ideais para devolver essa importante região da cidade aos seus cidadãos. A maneira como o patrimônio histórico, a população usuária e a dinâmica da vida urbana já existente na região são levadas em consideração no desenvolvimento do projeto é essencial para o sucesso da intervenção. 1 Principais vias de acesso da região central de São Paulo. Perímetro de intervenção da Nova Luz e os principais equipamentos culturais e de lazer do seu entorno. Imóveis tombados no entorno próximo à Estação da Luz. parque da luz pinacoteca museu de arte sacra estação pinacoteca estação da luz estação julio prestes praça da república largo do paissandú teatro municipal anhangabaú mosteiro de são bento Bologna - Itália Madrid - Espanha Malecón de Havana - Cuba Pelourinho, Bahia - Brasil Lapa, Rio de Janeiro - Brasil