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Psicanlise e Cincia: o encontro dos discursos
Sonia Alberti
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de
Ps-Graduao em Psicanlise da UERJ. Pesquisadora do CNPq.
Psicanalista Membro da Escola de Psicanlise dos Fruns do Campo
Lacaniano.
End.: R. Joo Afonso, 60 casa 22. Rio de Janeiro, RJ. CEP:
22261-040.
E-mail: [email protected]
Luciano Elia
Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Membro do Colegiado do Programa de
Ps-Graduao em Psicanlise da UERJ. Psicanalista Membro da Lao
Analtico Escola de Psicanlise.
End.: Praia do Flamengo, 180/302. Rio de Janeiro, RJ. CEP:
22210-030.
E-mail: [email protected]
ResumoA rejeio psicanlise por parte de inmeros autores que se
pretendem defensores do discurso cientfico, pela via que no deixa
de ter seu lastro no positivismo, exige do psicanalista uma
verificao dos paradigmas que articulam Psicanlise e Cincia. A
particularidade da proposta desse texto o fato de que parte de uma
anlise histrica em associao com a posio de Freud para ento
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identificar trs momentos no ensino de Lacan em que este
interroga as relaes da Psicanlise com a Cincia. Inicialmente,
responde pergunta se a psicanlise pode ser uma cincia com a
associao da psicanlise s cincias conjecturais, na contraposio das
cincias experimentais. J nesse momento distinguia claramente a
psicanlise das cincias ditas humanas. No entanto, essa no deixa de
ser uma proposta que, com Popper, corre o risco de enfatizar mais
ainda a viso positivista da epistemologia. A grande virada ser dada
no momento em que Lacan situa o sujeito no centro dessa questo, ao
observar que o sujeito est em uma relao com o objeto no campo mesmo
em que se constitui como sujeito. Tal observao s toma consistncia
com a inveno do objeto a. Com essa nova formulao da questo, Lacan
pode avanar e perguntar se a cincia comporta a experincia
psicanaltica, abrindo finalmente novas vias de interrogaes que
apresentaremos identificando algumas maneiras de abordar o
tema.
Palavras-chave: psicanlise, cincia, discurso, saber, real.
AbstractThe fact that psychoanalysis is being rejected by a
quite significant amount of authors who supposedly stand for the
scientific discourse, a quite positivistic point of view, forces
the psychoanalyst into a verification of the paradigms which
articulate Psychoanalysis and Science. The specificity of this
article is due to it`s departure on an historical analysis
discussed in association to Freud`s ideas about the place of
psychoanalysis in sciences, followed by an identification of three
moments in Lacan`s discussion on the subject. Initially, the
discussion about the possibility of Psychoanalysis being a Science
is answered by Lacan through an association of Psychoanalysis with
conjectural sciences, opposed to experimental sciences. At this
moment the author distinguished clearly between psychoanalysis and
the so called human sciences. Nevertheless, this is still a
proposition which can be told as still emphasizing more a
positivistic version of epistemology with Popper. The big turning
point will be given by Lacan at the moment in which he situates the
subject in the centre of this question, observing that the subject
is in relation with the object in the very field in which it is
constituted. This observation only attains consistency with the
invention of the object a. At this moment Lacan can step forwards
and ask if science may sustain the
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psychoanalytic experience, and new paths are opened for further
discussions that we present by identifying some possibilities to
address the topic.
Keywords: psychoanalysis, science, discourse, knowledge,
real.
A Questo Partimos da questo ainda e eterna de Canguilhem: O
que Psicologia? e que retomamos, parafraseando-o:
, pois, muito vulgarmente, que a filosofia coloca para a
psicologia a questo: dizei-me em que direo tendes, para que eu
saiba o que sois. Mas o filsofo pode tam-bm se dirigir ao psiclogo
sob a forma uma vez que no costume de um conselho de orientao, e
dizer: quando se sai da Sorbonne pela rue Saint-Jacques, pode-se
subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Panteo, que o
Conservatrio de alguns grandes homens, mas se se desce dirige-se
certamente para a delegacia de Polcia (Canguilhem, 1958/1972).
Ao identificar no texto de Canguilhem um humor swiftiano, Lacan
relana sua pergunta quanto a um possvel encontro da psi-cologia com
seu fracasso. No h cincia do homem, observa ele, em mais uma de
suas frases que parecem escandalosas se suas razes no so lidas: no
h cincia do homem porque o homem da cincia no existe, mas apenas
seu sujeito (Lacan, 1966/1998a, p. 873), com exceo da psicologia,
continua, porque a psicolo-gia descobriu meios de se perpetuar nos
prstimos que oferece tecnocracia, e at, como concluiu, com humor
realmente swiftiano, um artigo sensacional de Canguilhem, numa
deslizada de tobog do Panteo delegacia de Polcia (ibid:873-4).
Quando oferece seus prstimos tecnocracia, a psicologia , por
excelncia, a cincia do homem no real sentido da expres-so, pois a
nica que desconsidera o fato de que o homem da cincia no existe, a
nica a desconhecer que, para fazer cincia, h que se ser sujeito. De
resto, lemos no Seminrio 17 de Lacan que o discurso da cincia no
deixa nenhum lugar para o homem (Lacan, 1992/1996, p.171).
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Explicamos: a Psicologia um saber absolutamente novo no final do
sculo XIX sculo que foi o palco das grandes ba-talhas que a criaram
(cf., a esse respeito, Alberti, 2003). Por um lado identificado com
aquele que Canguilhem associa subida da rue Saint-Jacques em Paris
, a Psicologia pode colocar gran-des questes, imagem dos grandes
homens imortalizados no Panteo, por outro, porm, a Psicologia j se
mostrava, em 1958 data da publicao do texto de Canguilhem ,
gravemente asso-ciada ao discurso capitalista que introduzia
parmetros no afazer cientfico, que desde ento s se cronificaram e
que a perpetua-ram nos prstimos que oferece tecnocracia, como diz
Lacan, fazendo dela (a Psicologia) um instrumento de Polcia.
Com efeito, aquele palco das grandes batalhas que criaram a
Psicologia, ou seja, o sculo XIX, preparou o terreno para aquilo
que associamos articulao que Thomas Khun (1962/1979) faz da cincia
com a ideologia: houve uma profunda diviso quanto considerao do que
cincia em funo da interseo que a cin-cia passou a ter com as
ideologias e, sem dvida, com a economia. As questes que isso
introduz so tantas, que evidentemente no poderemos tratar delas
aqui de forma exaustiva. Mas isso no impede que as delineemos, um
pouco pelo menos. Adiantamos, no entanto, que tais questes no
deixam de ser enormemente produtivas: nunca se escreveu tanto em
nome da cincia, nunca se trabalhou tanto na articulao com a cincia,
alm do fato de que a postura diante do saber na interlocuo com o
que Lacan, no Seminrio 17, de 1969-70 (1992/1996), chamaria de
discurso universitrio, introduziu parmetros que so hoje seguidos
inde-pendente da ideologia a que nos afiliamos, na medida em que
todos estamos submetidos ordem da produo: de orientao, de artigos,
de conferncias, de teses, independente de sua qua-lidade... o que
importa que a produo contada em nmeros, ela contabilizada,
demonstrando que, independente da ideolo-gia a que nos afiliamos,
estamos todos muito bem submetidos aos desgnios do discurso do
capitalista, querendo ou no!
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O discurso da cincia, com Freud e Lacan muito freqente toparmos
hoje com textos que consideram
a Psicanlise uma folk psychology alheia a qualquer preocupao
cientfica. Tal considerao emana de textos que militam (termo que
utilizamos aqui por identificar estes textos com uma ideologia,
justamente porque seus autores consideram que eles sim, fazem
cincia, e no os psicanalistas) por uma Psicologia
anatomo-fisio-lgica. Na realidade, com Foucault (1963/1980) que
podemos identificar a anatomia como parmetro fundamental na ruptura
com uma forma de fazer cincia no sculo XIX, enquanto ser Lacan
(1966/1998a) quem acrescentar a este parmetro de Foucault, a
importncia da fisiologia para a corrida pelo cientificismo da
clnica. Os que militam identificando a psicanlise a uma folk
psychology, so contrrios a qualquer orientao que identifica a
Psicologia com o estudo do sujeito, articulado linguagem, e que se
apresen-ta hic et nunc na transferncia atravs da fala, lugar em que
este sujeito um significante que o representa para outro
significante, deixando sempre um resto impossvel de dizer.
Historicamente, portanto, nunca terminaremos por retomar esse tema
como alis outros autores j o observaram (cf., Kahl, 2002) pois a
cada vez que se coloca uma questo dessa ordem psicanlise, melhor
ela deve responder. No h dvida de que sua articulao com a
lin-guagem lhe d o suporte para formalizar sua resposta (Beividas,
2000). Traamos com isto uma definio muito genrica do sujeito na
contramo da Psicologia antomo-fisiolgica, definio laca-niana que,
no entanto, passvel de ser aplicada, de uma forma geral, a todas as
correntes psicolgicas que aqueles poderiam as-sociar com uma
psicologia popular, por no se sustentarem nas premissas por eles
cultivadas da antomo-fisiologia. Ou seja, no s a Psicanlise, mas
todas as correntes psicolgicas que viriam se contrapor, no incio do
sculo XX, a uma ideologia cientista ba-seada no boom cifrador das
taxionomias do comportamento e da contabilizao de seus parmetros,
tanto via testes psicolgicos que hoje so cada vez de maior ponta,
com a contribuio da Psicologia cognitivo-comportamental , quanto
via graus de com-prometimento desadaptado. A estes militantes
preciso perguntar de que maneira concebem e identificam a
cincia.
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preciso estabelecer, com clareza, o que o termo Cincia, como
categoria epistemolgica, designa. Em uma perspectiva rigorosa,
entende-se por Cincia o modo de produo de conheci-mento que,
seguindo os parmetros metodolgicos estabelecidos por Galileu e
interpretados pela arquitetura discursiva de Descartes, se
caracteriza por: a) despojamento das qualidades sensveis ou anmicas
do objeto que se trata de conhecer; b) uso da linguagem despojada
de significaes compreensveis e compartilhadas pelo saber comum na
formulao do discurso terico; c) obedincia estrita ao princpio da
contingncia e da universalidade, segun-do o qual todo e qualquer
elemento a ser estudado poderia ser infinitamente diverso do que ,
nada o obrigando, previamente, a ser como , e cabendo justamente
cincia esclarecer os modos pelos quais ele chegou a ser como . Ora,
esses elementos ca-racterizam o mtodo hipottico-dedutivo criado por
Galileu, do qual a verificao a ltima etapa, e a esta linhagem que
Freud se filia, diretamente, sem ambigidades e sem outras mediaes
discursivas. A Psicanlise, neste sentido, estritamente derivada do
mtodo inaugural da cincia moderna, e se no permanece no campo da
cincia, por operar neste mtodo uma subverso ra-dical, pela qual
introduz, na cena (por isso dita Outra cena, a do inconsciente),
precisamente, aquilo que o discurso da cincia, por ser a-semntico,
universal e contingente, introduziu mas, no mesmo golpe, expeliu de
seu campo operacional: o sujeito (e no o homem). A psicanlise opera
com o sujeito, o mesmo da cin-cia, que no entanto sobre ele nada
opera.
J em uma outra perspectiva, aquela a que aderem os atu-ais
militantes da cincia do comportamento, e que consideram, por isso,
a Psicanlise como uma folk psychology, a Cincia seria o
procedimento que parte da observao da realidade, recortada em dados
da ordem do particular, estabelece correlaes cada vez mais precisas
at chegar a estabelecer determinaes causais de carter geral. Tal
procedimento caracteriza o que se denominou, na histria
epistemolgica, o mtodo emprico-indutivo, muito mais derivado da
filosofia empirista inglesa, sobretudo de John Locke, e retomado
pelo positivismo com que, com Augusto Comte, as cincias humanas e
sociais ingressaram nesse filo, do que derivado das balizas
metodolgicas que presidiram o momento
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inaugural da cincia moderna, com Galileu. No espectro traado por
Gaston Bachelard em O Racionalismo aplicado (Bachelard, 1948/1977),
essas duas tendncias metodolgicas encontram-se em franca oposio. O
mtodo emprico-indutivo no parte de pos-tulados lgicos, e sim de
premissas que, por no se desprenderem da realidade que pretende
observar tal como ela , acabam por tornar-se ou fenomenolgicos, ou
ontolgicos, e no se aspira a formulaes universais, do tipo que Karl
Popper (1934/1977) es-tabeleceu como exigveis aplicao da prova de
refutabilidade emprica. Tampouco mtodo emprico-indutivo opera
segundo o princpio da contingncia: a tese de que os processos
subjacen-tes a todo e qualquer quadro psicopatolgico, para darmos
um exemplo concreto disso, so de natureza neural, organicamen-te
identificveis, no considera a contingncia da incidncia dos efeitos
da linguagem, do significante, do elemento material e as-semntico
na constituio do sujeito, por exemplo. Recalcando o contingente,
ingressa no necessrio da determinao neurolgi-ca: h de haver disfuno
em algum neurotransmissor, questo de tempo encontr-la. Isso
constitui uma petio de princpio, ex-presso com que Freud,
empregando-a em ingls no seu texto (it begs the question) acusa
Jung, justamente para demonstrar que sua dmarche no cientfica
(Freud, 1914/1975a, p. 47).
Assim, em toda discusso que se pretenda metodolgi-ca e
epistemolgica sria sobre as relaes da Psicanlise e da Psicologia
com a Cincia, preciso saber que concepo de ci-ncia norteia os
diferentes argumentos.
Retomemos, assim, a grande preocupao de Freud em se dizer
articulado com o discurso da cincia. Com efeito, j na-quela poca,
demonstrar que se est inserido em tal discurso era condio sine qua
non para buscar um lugar no panteo reto-mamos somente a referncia a
Canguilhem dos autores a que se daria algum crdito. Com Freud, a
grande preocupao era que se pudesse verificar o vnculo da
Psicanlise com a Cincia, e tal preocupao era a verdadeira razo de
sua evidente insistncia na importncia da Cincia para a Psicanlise.
que, no fundo, Freud acreditava na Cincia como via exclusiva do que
podemos associar ao conceito kantiano de Erkenntnis (conhecimento
e/ou reconhe-cimento), e essa era, para ele, razo suficiente e
completamente
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mais importante do que qualquer idia que pode se associar a isso
depois quanto ao fato de que Freud no veria outra maneira de
introduzir um novo saber no campo dos discursos crveis se a
veri-ficao por uma cientificidade no se desse! No entanto, para ns,
o trabalho cientfico o nico caminho que pode levar ao conhe-cimento
[Kenntnis] da realidade exterior a ns (Freud, 1927/1974, p.165-6).
Freud tinha total conscincia da falibilidade da percepo, pois sabia
perfeitamente que a realidade tem a forma e o contedo que lhe
atribumos. Para Freud, toda realidade psquica. Assim, a cincia para
ele o nico modo de tratar da realidade psquica esta que, por
exemplo, se atualiza, como realidade sexual prpria do inconsciente,
na transferncia, sem confundir com ela a opera-o do analista,
aquele que opera sobre esta realidade psquica, ou seja: se a
realidade sempre psquica, interna-e-extena a um s tempo, a operao
analtica, para incidir eficazmente sobre ela, no poder apoiar-se na
realidade psquica do operante, isto , o analista, e sim naquilo
que, extrado desta realidade, a causa que a sustenta, ex-sistente a
ela.
com Lacan que o alcance da preocupao de Freud sobre a relao da
Psicanlise com a Cincia pode ser definitivamente ex-plicitada.
Foram fundamentais seus trs registros real, simblico e imaginrio
para introduzir os parmetros que dariam condies ao psicanalista e
ao terico da psicanlise de se situar no de-bate no qual chamado a
responder aos militantes que identificam a psicanlise com uma folk
psychology.
O Simblico e a Res CogitansO sculo XVII conheceu toda uma nova
Weltanschauung e
se deu o incio da investigao cientfica, numa proposta de
de-sassociar as influncias teolgica e escolstica da investigao da
realidade. O golpe que a Cincia Moderna perpetrava nas certezas
compartilhadas pelos homens, seja quanto ao lugar da Terra em relao
aos astros e ao cu, seja na destituio do prprio cu, o Cosmos,
entendido como o mundo fechado que estava em cima de todos ns, e a
criao, em seu lugar, do universo infinito que no tem mais nem em
cima nem embaixo, em que todos os as-tros giram, inclusive a Terra,
em torno de astros mais importantes embora no povoados de humanos,
tudo isso produziu o que pode-
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ramos, a justo ttulo, nomear, com a Psicanlise, de momento de
angstia na Humanidade. Nenhum momento seria mais propcio para o
surgimento do sujeito, ainda segundo a mesma Psicanlise. Neste
momento to singular e crucial da histria da humanidade, e diante da
incerteza quanto realidade do mundo objetivo (da reali-dade
exterior a ns, para retomar as palavras de Freud) em funo do corte
com o dogmatismo religioso , Descartes, em um gesto que desloca o
homem da angstia aguda, afirma a certeza do co-gito Penso, logo
sou. O homem, que em um primeiro momento do Cogito ganha o estatuto
do ser porque pensa, disso no po-dendo duvidar, como duvidou de
todas as demais coisas, ou seja, este homem que acedeu condio
ontolgica por uma opera-o do pensamento, que se constitui, no plano
subjetivo, como a certeza que sucede a dvida, passa, a partir deste
ato, a poder tambm existir, porque passvel de uma inscrio no mundo
do simblico. Descartes distinguiu um mundo em que as coisas
exis-tem atravs de sua representao conceitual, deixando de fora
outro mundo, onde as coisas no so conceituadas. Era, ento, a criao
de um novo discurso: o da cincia.
Com Descartes foi possvel a construo de uma linguagem conceitual
dentro da qual os objetos, que at ento no haviam acedido condio de
existentes no plano conceitual, na medida em que a Cincia, no tendo
ainda feito sua apario discursiva no mundo, no havia portanto
constitudo sujeito e objeto como duas categorias conceituais a
travarem, entre si, a relao fun-damental de produo do conhecimento,
passaram a ocupar um lugar proeminente entre as operaes cientficas.
O cogito carte-siano inaugura uma ciso do objeto na cincia e, por
conseguinte, no discurso: de um lado, o objeto real por exemplo, a
estrela no cu , de outro, o objeto construdo enquanto conceito, ou
seja, a simbolizao do objeto, a estrela formulada no papel do
astrnomo fazendo-a existir no clculo cientfico, substituindo
metaforicamente aquela que continua no cu. O Cogito ergo sum ,
fundamental-mente, a possibilidade de dar existncia ao objeto do
pensamento, distinto da imagem que temos dele e distinto do
real.
Depois de Descartes nascido exatamente duzentos e ses-senta anos
antes de Freud o discurso da cincia j propunha, claramente, que o
campo da cincia aquele em que s existem o
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que Freud chamou de Vorstellungen (representaes), ou seja, h um
mundo, que o das representaes, com o qual o cientista tra-balha.
Tais representaes esto submetidas a leis especficas de cada cincia
e no podem ser transpostas para outros campos. Entretanto, no que
concerne Psicanlise, a operao no se reduz a uma diferena que a
particularizaria como uma cincia entre outras, todas passveis de
inscrio em um mesmo registro metodolgico. A Psicanlise no cabe
inteiramente no universo da representao.
Na medida em que o significantizamos, o sujeito reduzido a um
trao mnmico, sua representao enquanto trao, marca significante que
presentifica o prprio sujeito na fala quando diz: eu. Trata-se ento
do eu como inscrio, do eu enquanto fi-gura gramatical que tanto
pode ser sujeito, quanto objeto, e que, por isso, no passa de um
significante, de um shifter, tal como Jakobson (1957/1971) o
definiu por emprstimo a Jespersen, in-dependente de tudo o que
possvel imaginar sobre esse mesmo sujeito. O sujeito, contudo, no
se reduz ao significante, ao trao com o qual o inscrevemos no plano
simblico. Seu ser de sujeito irrecupervel no simblico, o que, longe
de reduzir a importncia do trabalho simblico, confere-lhe uma
dimenso a mais: a de bor-dejar, contornar o furo real de modo a
permitir que o sujeito se situe em relao ao que no pode domesticar
pelo saber e pelo dizer.
Com o cientista ocorre a mesma incidncia do impossvel matriser,
a dominar, a prever e controlar. A diferena que o cien-tista
encontra esse limite na sua relao com os objetos do mundo que tem a
conhecer e dominar, enquanto que para o psicanalista esse limite
dado, por assim dizer, internamente: sua prpria condio de objeto
que lhe escapa, em sua prpria experincia como sujeito. isso que
Lacan quer dizer quando afirma que o sujeito est, se assim podemos
dizer, em excluso interna ao seu objeto (Lacan, 1966/1998a, p.
875); disjunto dele, o sujeito no entanto est em uma relao com o
objeto que o situa no campo mesmo em que se constitui como
sujeito.
A psicanlise filha da cincia na medida em que se atm s
determinaes criadas por Descartes, segundo as quais h um pensvel e
um impensvel, um dizvel e um indizvel, um concei-tuvel e um
impossvel a conceituar. Freud no poderia ter dado a
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virada sozinho, claro, houve quem o buscasse na mesma poca, a
coisa estava no ar, era um novo Zeitgeist. E sobretudo estava no ar
porque o discurso da cincia tambm se fortalecia, em rede, nos
diferentes campos.
Lacan, a partir de sua formao, que incluiu a influncia do
Estruturalismo, com apogeu em meados do sculo XX, na Europa, pde
articular tal mundo particular o da cincia com o simb-lico.
Simblico, real e imaginrio so os trs registros nos quais o ser
falante o ser humano transita. Se o discurso da cincia afir-ma um
mundo no simblico, e pelo fato de que este simblico estritamente
submetido a leis que o particularizam, ento em cada cincia h aquilo
que lhe externo. Como dissemos acima, h li-mites e a cincia se
define como um saber ciente de seus limites, poderamos dizer, um
saber que, em princpio, leva em conta a cas-trao ela no pode tudo.
A cincia se restringe, encontra seu limite no fato de que s pode
afirmar algo na medida do dito, do que passvel de ser dito. O resto
no do campo do simblico e, portanto, inatingvel pela cincia. Esse
seu limite. Todo cientista sabe, hoje, que as operaes que executa
no se do num para-lelismo biunvoco com o mundo natural, mesmo
quando pode, em alguns momentos, estabelecer uma relao entre ambos
os cam-pos o conceitual (ou simblico) e o natural. Descartes funda
o que Foucault (1966/1992) chamou de episteme da representao, solo
discursivo da Cincia Moderna, no qual algumas antinomias se
sustentam teoria/realidade, mundo conceitual/mundo real, entre
outras, e cujo pice Kant, o filsofo que interpretou
filosoficamen-te a Fsica Moderna. Posteriormente, a partir de
Hegel, emergiu a episteme da Histria, marcada pelo materialismo
dialtico e con-creto, que j rompe, de certo modo, com a
representao, por no admitir a dualidade teoria/realidade que a
funda, introduzindo, em seu lugar, o movimento discursivo concreto
da prxis teorizada. s depois deste ltimo, no sem relao com ele, que
emerge a Psicanlise como discurso, o que torna, portanto, impossvel
situ-la no plano da episteme da representao. que a psicanlise se
dirige ao sujeito, e este no um mero shifter, um elemento da
lin-guagem, um trao, nem mesmo um significante, e sua condio mais
real a de objeto.
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interessante articular essa afirmao com a condio do sujeito do
significante, e do modo como Lacan escreve a defini-o mesma desse,
utilizando, nos termos desta definio, a sua relao com o sujeito: um
significante aquilo que representa um sujeito junto a outro
significante. Aparentemente, Lacan est plenamente situado no campo
da representao. Ocorre, contudo, que exatamente para saturar esse
campo que ele define desta forma: se o significante representa,
sempre para outro, e s pode representar um sujeito, nada mais
fazendo alm disso, e estando claro que um sujeito s poderia ser
representado por um signifi-cante, e nunca por qualquer outro
elemento. O significante no idntico a si mesmo, e essa
no-identidade transmitida ao sujei-to por ele representado: Por
exemplo, quando algum diz: Eu me represento..., o eu representado
difere do sujeito que fala. Assim, eu diferente de eu, como a pode
ser diferente de a na l-gica matemtica, ou um cachimbo pode no ser
um cachimbo e de fato no o , como na obra de um Magritte.
Com efeito, com o estudo da linguagem que a ordem sim-blica pode
encontrar toda sua particularidade. Buffon, j no sculo XVIII,
definia a cincia como a lngua bem feita, ou seja, como lngua capaz
de dar conta do fenmeno, capaz de bem dizer o fe-nmeno. Por outro
lado, a psicanlise se distingue da cincia na medida em que no se
restringe a estudar o pensvel, o dizvel e o conceituvel, ela tambm
se ocupa do impensvel, do indizvel e do impossvel a conceituar.
Conforme os trs registros propostos por Lacan para estudar o campo
da realidade psquica, se a exis-tncia est do lado do simblico, do
que se afirma no simblico, e que reduz as coisas ao significante
que as representa para outro significante, ento h, necessariamente,
algo que escapa exis-tncia, o que no redutvel a tal representao,
que no pode ser representado por um significante para outro
significante! Define, em conseqncia, o real como o que est fora do
simblico. O sim-blico o que existe, o real ex-siste ao simblico e o
imaginrio d a consistncia das Gestalten que formamos. Estas se
susten-tam nos significantes, mas, levando em conta a
descontinuidade que h entre um significante e outro, o imaginrio a
construo que cada um projeta da realidade para velar o abismo do
real que, de outra forma, teramos que encarar regularmente quando
pas-
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samos de um significante a outro. Tal imaginarizao sempre traz
consigo um ou outro engodo, na medida em que a realidade que
gestaltizamos tributria da realidade psquica de cada um,
sus-tentada na fantasia conceituada por Freud e Lacan como resposta
do sujeito humano ao impossvel de compreender. Imaginamos, ou seja,
construmos a nossa realidade porque ainda cremos neces-sitar
compreender a articulao das coisas. Eis tambm porque vedado ao
psicanalista tentar compreender, como explicita Lacan j no seu
terceiro seminrio, pois quem articula o sujeito e este o paciente.
O psicanalista, ao contrrio, submetido como est ao discurso da
cincia o que, no entanto, no faz dele um cien-tista deve deixar sua
ateno flutuante para articular a estrutura da fala do sujeito.
Se o mundo da cincia o mundo das representaes, no h
meta-representaes para a cincia. As representaes que representam as
representaes so outras tantas representaes que se estruturam com as
primeiras, justamente, em rede. Da a famosa frase de Lacan: no
existe a metalinguagem. E da tambm a expresso de Freud, que tantas
vezes confundiu os tradutores, atravs da qual se referia inscrio
psquica de uma experincia tanto de satisfao quanto de desprazer
como Vorstellungsreprsentanz, ou seja, o representante da
representa-o. Toda experincia de satisfao, como Freud a conceitua
em seu Projeto, memorizada como trao mnmico. Tais represen-tantes
freudianos so os significantes da conceituao de Lacan, eles
constituem o saber inconsciente. Como sempre, quando voc afirma
algo no simblico deixa de fora uma poro de coisas im-possveis de
assim afirmar, ao representante da representao corresponde um real
o que fica fora do simblico, como con-ceituado. Conclui-se, da, uma
poro de coisas, entre elas que o saber (que em psicanlise sempre
inconsciente) um subcon-junto deste mesmo inconsciente, onde h bem
mais no saber do que saber e que est do lado do sujeito enquanto
vazio de signi-ficantes, poderamos dizer, do lado do real do
sujeito. o que a cincia exclui de seus clculos: o real do sujeito.
Para a cincia, o sujeito somente uma varivel passvel de mensurao
quando interfere num experimento cientfico, por exemplo. No esse o
sujeito da psicanlise, o sujeito da psicanlise o sujeito da
fala,
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sempre cindido, sempre da paixo (do pathos, ele sofre) e
portan-to, distinto tambm de qualquer forma de individualidade
emprica (Milner, 1995, p. 33).
Assim, para referir a psicanlise metodologia cartesiana h que se
pens-la como mtodo de investigao o que ela , desde os primrdios,
desde os primeiros textos de Freud , mas um m-todo de investigao
que se inscreve no discurso da cincia por inserir-se nos mesmos
fundamentos de qualquer cincia moderna (Descartes) , com o nico
intuito de resgatar aquilo que a cincia propriamente dita excluiu
de seu mbito: o sujeito. De forma que podemos dizer que a
psicanlise encontrou um lugar na cultura cien-tfica por se ocupar
do que a cincia exclui, resgatando um campo de conhecimento e
eliminando deste campo a superstio.
Foi na condio de sujeito que Descartes, instigado pelo de-sejo
de separar o verdadeiro do falso, realizou o corte cientfico, e
nessa trilha que a psicanlise de Freud, com Lacan, estuda a re-lao
entre cincia e verdade. A situao hoje se coloca de nova forma
porque inclui o discurso do capitalista... e inmeros traba-lhos a
examinam. Se o discurso do psicanalista, ao situar o saber no lugar
da verdade, subverte, em um giro discursivo, a posio do sujeito,
independentemente de suas crenas, o discurso da ci-ncia, por sua
vez, quando submetido aos imperativos do discurso capitalista, nega
a existncia do sujeito do inconsciente e, portan-to, da castrao que
o constitui.
A Revoluo DiscursivaA partir de meados do sculo XX, com a
crescente influn-
cia do discurso do capitalista no discurso da cincia influncia
que se inaugurou no sculo XIX sem dvida houve um retrocesso quanto
descoberta de Freud. Na tentativa de vender os produtos
cientificistas, voltou-se a crer que h um mundo da representao para
alm dela mesma, chega-se at mesmo a buscar as represen-taes
psquicas nas imagens tomogrficas ou nas ressonncias magnticas que
servem neurologia. No entanto, trata-se de dois saberes diferentes
a neurologia um, a psicanlise outro e cada um tem seu corpo
terico-conceitual e seu recorte da rea-lidade, deixando de fora,
como dito, uma poro de coisas...
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psicaNlise e ciNcia: o eNcoNtRo dos discuRsos 793
fundamental ento termos claro que no h possibilidade de uma
relao biunvoca entre ambas, ou seja, que no possvel dizer que o que
se pensa tem representao no crebro, nem que as le-ses cerebrais e a
antomo-fisiologia tenham qualquer correlato intrnseco com o
psiquismo do ser falante (cf. Alberti, 2006)!
Com o positivismo, as cincias do homem foram colocadas no topo
do edifcio das cincias experimentais e se, por um lado, com isso,
foram reconhecidas, por outro, em realidade, subordi-nadas. Essa
noo provm de uma viso errnea da histria das cincias, baseada no
prestgio de um desenvolvimento especiali-zado dos experimentos
(Lacan, 1953/1998b, p. 285). As razes que determinam tal engano
certamente tm suas origens no prprio substrato ideolgico e mesmo
econmico da revoluo burguesa, dos quais surgiram ento dois grandes
movimentos:
Em primeiro lugar, o do cientificismo das disciplinas que, at
ento, se ocupavam da alma, com a finalidade de inclu-las no rol das
cincias , e a reduo metodolgica de suas prticas, que cada vez mais
exilam os discursos a insistirem na subjetividade. Assim, por
exemplo, o que se verifica hoje nesse movimento que a prpria
psicanlise certamente um saber com consistncia te-rica reduzido a
uma folk psychology, no cientfica. Qualquer construo terica que no
siga as bases experimentais descar-tada como no cientfica.
E em segundo lugar, o da insistncia na importncia da
sub-jetividade. Com Lacan, esse segundo movimento se verifica nos
avanos particulares de algumas disciplinas, no sculo XIX,
espe-cialmente: a lingstica, a etnografia estrutural e a teoria
geral dos smbolos. Lacan observa que tal movimento se baseia na
especi-ficidade da referncia simblica para a pesquisa da
subjetividade. Em funo disso, o que associa esse movimento com a
cincia no a experimentao, mas as conseqncias dos avanos da
matemtica e da histria, ambos determinando uma nova forma de ver o
mundo.
Com efeito, somente a partir do Iluminismo mas sobretudo no
sculo XIX , foram encontradas as respostas para inme-ros problemas
matemticos at ento impossveis de resolver e que permitiram, para
dar somente um pequeno exemplo, estu-
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dar as relaes entre conjuntos coisa at ento impensvel... Isso
implicar as leis da intersubjetividade no campo da lgica e da
matemtica modernas. Quanto histria, tambm somente no sculo XIX que
o homem pode fazer greve geral! isso no pouca coisa num mundo at
ento submetido ordem do Um (s para retornar referncia
matemtica).
Ao mesmo tempo em que os discursos tentavam se inscre-ver a
partir de uma relao com a cincia, como visto, impunha-se cada vez
mais o organicismo, conforme o primeiro modelo, o do cientificismo
das disciplinas. no segundo movimento, ao lado da lingstica, da
etnologia, da antropologia, da histria e da lgica-matemtica que a
psicanlise se inscreve; dentre as psicologias, no somente a
psicanlise, mas sem dvida ela, do modo como queria Freud a acolher
em seu campo a psicopatologia. Nela, o homem efeito lgico do
entrecruzamento dos campos da lin-guagem e do gozo, e a clnica
permite estabelecer este homem como capaz de elaborar, na
transferncia, o que desse entrecru-zamento o adoece.
Mas, por absurdo que isso possa parecer, ao longo do s-culo XX,
a prpria psicanlise conheceu destinos que, como temia Freud
(1927/1975b, p.343), quiseram esvaziar seu fundamento e a tentativa
de inscrev-la no discurso mdico sem dvida foi um dos responsveis.
Diante do embarao que a clnica psicanaltica apre-senta no
quotidiano de sua prtica, no poucas vezes acaba-se lanando mo de
explicaes que j no apostam na capacidade de o prprio sujeito
elaborar seu sofrimento. Haja vista a importan-te gama de
psicanalistas que hoje buscam as neurocincias para darem conta de
fenmenos. Ainda nos encontramos numa gran-de Babel. Acredita-se j
se estar no futuro apontado por Freud na frase O futuro poder nos
ensinar a influenciar diretamente, com substncias qumicas, as
quantidades de energia e suas distribui-es no aparelho psquico
(Freud, 1938/1999, pp.108), e se cr que hoje j saibamos exatamente
quais as afeces psquicas que efetivamente se beneficiariam das
influncias eletroqumicas.
Tal questo, muito alm de meramente terica , na reali-dade,
impactante para cada psicanalista que trabalhe, tanto no
consultrio, quanto em algum servio de sade mental no Brasil
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psicaNlise e ciNcia: o eNcoNtRo dos discuRsos 795
hoje. No raro, verificamos a dicotomia entre psquico e somtico,
e h verdadeiras divises nos prprios servios e encaminhamentos em
funo dessa dicotomia. Assim, possvel encontrar setores, nos servios
de sade, que trabalham exclusivamente com a idia de que todo
fenmeno mental tem origem somtica, e outros que no levam em conta,
de forma alguma, a determinao somtica dos processos psquicos. Se
com Descartes houve uma diviso entre corpo e pensamento no mbito da
teoria, o que se pode en-contrar hoje tal diviso na prtica clnica:
ou res cogitans ou res extensa. A posio sustentada pelo discurso
psicanaltico dirige-nos para a superao da dicotomia cartesiana, que
no deve ser confundida com a mera adjuno interativa do somtico com
o psquico, em uma lgica psicossomtica. O que a Psicanlise faz
desconsiderar a dicotomia cartesiana entre substncia pen-sante e
substncia extensa e rearticular tudo isso a partir de outro
referencial: o da linguagem (significante) e o do gozo que dela
de-corre, mas a ela no se reduz inteiramente. No seminrio sobre o
ato psicanaltico, Lacan afirma:
Eu penso, diz ele [Descartes], logo eu sou. Ele se rejei-ta
invencivelmente no ser desse falso ato que se chama o Cogito. O ato
do Cogito o erro sobre o ser, como podemos ver na alienao
definitiva do corpo, que dele resulta, que rejeitado na extenso. A
rejeio do corpo fora do pensamento a grande Verwerfung de
Descartes. Ela assinalada por seu efeito que reaparece no Real, ou
seja, no impossvel. impossvel que uma mquina seja corpo. Por isso o
saber o prova sempre mais, co-locando-a em peas destacadas (lio de
10 de janeiro de 1968, de O Seminrio, livro 15, O Ato psicanaltico,
documento de trabalho).
O que na verdade a psicanlise prope o resgate do corpo do exlio
na extenso, articulando-o, como lugar de gozo, s letras que possam
cifr-lo, em uma operao que nada tem a ver com a considerao do
orgnico como co-produtor do psquico (cf. Elia, 2004 e Pollo,
2004).
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Psicanlise: de Cincia Conjectural a Saber sobre o Real do
Sujeito
No Livro II de seu Seminrio, Lacan prope que a Psicanlise
inscreva-se como cincia conjectural do sujeito. Estranha propo-sio,
primeira vista, quando sabemos que tal taxionomia surge na pena de
um epistemlogo que, certamente, fundamenta teori-camente aqueles
que renegam a relao com a verdadeira cincia de todos os saberes que
no se constroem a partir da relao ne-cessria entre hiptese e
teoria, para a composio do axioma e este verificado, do princpio.
Com efeito, Karl Popper prope que seriam conjecturais todas as
teses que se orientam a partir de uma afirmao presumida como
verdadeira ou como genuna, mas cujos fundamentos so geralmente
inconclusivos, de modo que no podem ser elevadas categoria de
princpio, nem de te-orema. Em matemtica, so conjecturais as teses
cuja verdade ainda no foi provada conforme as regras da
lgica-matemtica, mas isso no impede que possam vir a s-lo. Enquanto
no o so, os matemticos podem usar a conjectura provisoriamente, e
todo trabalho que a usa , por sua vez, conjectural tambm.
s vezes, a conjectura uma hiptese freqentemente e re-petidamente
usada na verificao de outros resultados. Cita-se o exemplo da
hiptese de Riemann, na teoria dos nmeros, que trata dos nmeros
primos, e que, apesar de ainda conjectural, usada para fazer
predies sobre a distribuio dos nmeros primos. Antecipando-se ao
teorema que poucos matemticos duvidam vir a se constituir a partir
dessa hiptese , alguns j se utilizam da hiptese de Riemann para
desenvolver outras provas, contingen-tes em relao verdade dessa
conjectura.
Finalmente, nem toda conjectura termina por ser provada
verdadeira ou falsa, pois se pode concluir tambm pelo indeci-dvel,
o que, nem por isso, razo para considerar tal conjectura como
inconsistente.
Para Lacan ento, aproximar a psicanlise das cincias que admitem
a conjectura, como a lgica e a matemtica, entre outras j citadas,
tem por conseqncia aprofundar, desde a primeira hora de seu ensino
e com o mximo rigor, a discusso a respeito das relaes da Psicanlise
com a Cincia, questo de que Lacan
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psicaNlise e ciNcia: o eNcoNtRo dos discuRsos 797
sempre se ocupou. Por todas essas razes, j em seu Seminrio 2,
Lacan prope que a expresso cincia conjectural substitua a de
cincias humanas, a fim de constituir-lhes maior rigor lgico, alm de
emancip-las do jugo metodolgico que tradicionalmente essas cincias
mantinham em relao s cincias naturais e exa-tas: Cincias
conjecturais, eis a, creio, o verdadeiro nome que se deveria dar,
de ora em diante, a um certo grupo de cincias que se designa,
habitualmente, pelo termo de cincias humanas (Lacan, 1978/1988, pp.
369-70). interessante que Lacan acrescente, logo em seguida, em sua
fala: No que este termo seja imprprio, j que, nesta conjuntura, da
ao humana que se trata. Mas creio que seja por demais vago, por
demais infiltrado e controlado por todos os tipos de ressonncias
confusas de cincias pseudo-inici-ticas, que s podem rebaixar-lhe a
tenso e o nvel. Ganhar-se-ia com a definio mais rigorosa de cincias
da conjectura (idem).
curioso observar que, neste momento de seu ensino, e em que pese
a evidente denegao (no que este termo seja impr-prio), Lacan ainda
considerava apropriada a expresso cincias humanas, como se pode ler
na frase j que da ao humana que se trata. Dez anos depois, contudo,
este mesmo autor dir: No h cincia do homem, porque o homem da
cincia no exis-te, mas apenas seu sujeito. conhecida a minha
repugnncia de sempre por esta denominao cincias humanas, que me
pare-ce ser o apelo mesmo servido (Lacan, 1966/1998a, p. 859). A
repugnncia pode ter sido de sempre, mas o modo de dizer de Lacan
mudou muito: no primeiro momento aqui considerado, a expresso
apropriada, e no momento posterior ela designa algo que no existe e
que evoca o apelo mesmo servido. O que se passou neste intervalo de
dez anos?
Na verdade, muita coisa se passou: Lacan criou o que, em seu
prprio dizer, foi sua nica inveno: o objeto a 1. Deu ao re-gistro
do Real a sua radical irredutibilidade em relao aos demais
Imaginrio e Simblico, iniciando o caminho que viria a destituir
deste ltimo a primazia que ele, maneira cientfica e cartesia-na,
como demonstramos anteriormente neste texto, lhe atribura. Por
isso, alis, Lacan sofreu a excomunho maior por parte da
International Psychoanalytical Association, e que ele equivaleu
sofrida por Spinoza, em sua poca.
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No mesmo ano em que afirmara que as cincias humanas no existem,
e que so o apelo servido, Lacan transformara sua pergunta inicial,
que se formularia nesses termos: a Psicanlise uma Cincia?, em uma
outra: Qual a cincia que comportaria a Psicanlise? (Lacan,
1965/1973). Com essa transformao, Lacan est agora em outra posio
discursiva quanto s relaes entre Psicanlise e Cincia, posio na qual
a operao psicanaltica que est em posio de interrogar a Cincia, de
cujas coxas saiu, mas foi alm dela, e no o contrrio. Que cincia
poderia compor-tar a incluso do real do sujeito? Que cincia poderia
suportar a incluso da transferncia no interior do campo discursivo
que rege a sua experincia?
Em 1970, Lacan d uma entrevista a uma radiodifusora belga, que
mais tarde se publica sob o ttulo: Radiofonia. um dos textos mais
importantes para se pensar a cincia no sculo XX. Chamamos a ateno
para os principais pontos desse texto, atravs de duas referncias
fundamentais: a) a referncia frase de Galileu: o livro da natureza
escrito em matemtica (Lacan, 1970/2001, p.430); b) a referncia
revoluo cientfica impetrada por Kepler, e que no deixa de ser
devedora dessa observao de Galileu.
O que Kepler introduz na astronomia? Que as rbitas plane-trias
no so esfricas e sim elpticas, o que definitivamente impe que se
desimagine qualquer relao possvel do homem com elas! A partir da, a
nica maneira de trabalhar com tais rbitas pela via simblica,
calculando tais elipses que descentralizam para sem-pre toda e
qualquer coisa no espao celeste. Porque fazer elipses partir de
dois centros, e tra-las implica introduzir um centro matemtico para
alm do sol. Numa articulao rpida, isso se associa frase de Galileu,
de que no h natureza para alm da matemtica, mesmo Galileu ainda
estudando o cu imagem do que havia de Gestalt no mundo em que
vivia, com um nico cen-tro, o sol. O centro esfrico de Galileu no
deixa de se associar fantasia de Aristfanes sobre o amor, no
Banquete, de Plato, em que esferas se dividiram na origem dos
tempos, de forma que at hoje procuramos nossa cara metade para
voltar a fazer Um. Bem diferente o amor proposto por Scrates ento,
quando jus-tamente responde a Alcibades que, tendo o ouro, no lhe
dar o cobre que para este, na projeo do que Alcibades v nele. O
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psicaNlise e ciNcia: o eNcoNtRo dos discuRsos 799
amor, no discurso de Scrates, no se sustenta na projeo
ima-ginria que um pode fazer para o outro, mas na falta, porque
para Scrates se ama aquilo que nos falta, o que para Freud vem a
ser o prprio desejo.
Lacan observa, em Radiofonia, que foram trs as grandes revolues
a considerar:
1. De Coprnico a Kepler: do imaginrio ao simblico;
2. A revoluo de Marx: em que a mais valia precipita a
cons-cincia de classe, apontando o que vai mal no discurso do
mestre;
3. A revoluo discursiva, introduzida por Freud, quando prope o
discurso do analista. Este, j no mais o mestre, que j no pergunta
ao paciente (na posio de escravo) o que vai mal para se apoderar
desse saber, e com ele trabalhar para o mestre posio que surge
tambm na medicina quando o mdico, no lugar do mestre, diz ao
paciente que ele quem sabe sobre seu sofrimento e pode cur-lo,
fazendo de seu paciente o objeto de aplicabilidade de sua cincia ,
tampouco o analista outro su-jeito que, numa relao intersubjetiva,
procura compreender de forma jaspersia, por identificao imaginria,
o que se passa com seu paciente, mas o analista , com o novo
discurso criado por Freud, o objeto que pode causar o sujeito, seu
paciente, a querer saber o que vai mal.
Para estudar e aprofundar tal noo de objeto, que o analis-ta
deve ocupar na transferncia contexto identificado por Freud como o
nico possvel para uma anlise a psicanlise e suas es-colas no medem
esforos. So esses esforos, realizados desde ento, que tm como
visada fundamental por prova o prprio conceito de psicanalista.
Efeito de uma formao psicanaltica que implica o reposicionamento
diante do saber, o psicanalista, como conceito, redesenha a lgica
da relao entre sujeito e ob-jeto, sustentado no ato analtico e no
desejo do analista que, na condio de objeto a causar o sujeito em
anlise a querer saber, descentra a direo do tratamento e os
princpios de seu poder.
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Notas1. A interpretao que damos disso diverge, num certo
sentido,
de outras, segundo as quais haveria uma irredutibilidade da
psicanlise objetivao (cf. p. ex., Calazans, 2006), pois justamente
no momento em que Lacan pode se dar conta da equivalncia entre
sujeito e objeto (a, no caso), que ele pode preparar o terreno para
repensar as relaes entre psicanlise e cincia, abrindo margem para a
compatibilidade lgica entre o pensamento psicanaltico e o
pensamento cientfico (idem, p.273), mas em novas bases. porque o
sujeito redutvel ao objeto a, em particular no final de uma anlise,
que h objetivao do sujeito mesmo se tal efeito no corresponde ao
conceito positivista da objetivao.
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Recebido em 9 de agosto de 2007Aceito em 28 de agosto de
2008Revisado em 1 de setembro de 2008