-
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Proust Mareei, 1871-1922Sobre a leitura / Mareei Pronsi: traduo
Carlos Vogt -Campinas. SP : Pontes, 4a edio, 2003.
Bibliografia.ISBN 85-7113-050-7
1. Leitura I. Tlulo
89-0484 CDD-001.543
ndice para catlogo sistemtico:1. Leitura : Comunicao 001.543
SOBREA
LEITURATRADUO:
C A R L O S V O G T4a EDIO
Pontes2003
-
Ttulo original: Sur Ia Lecture
Capa: Joo Baptista da Costa AguiarCoordenao Editorial: Ernesto
GuimaresReviso: Adagoberto Ferreira Baptista
Lilian Bedendi
PONTES EDITORESAv. Dr. Arlindo Joaquim de Lemos, 1333Jardim
Proena13095-001 Campinas SP BrasilFone (019) 3252.6011Fax (019)
3253.0769E-mail: [email protected]
w w w. p c jres.com.br
2003Impresso no Brasil
Sobre a Leitura foi publicado originalmente como oPrefcio que
Proust escreveu, em 1905, para a sua tradu-o do livro Ssame et ls
Lys, de John Ruskin.
A observao que fez um editor francs na ocasio emque publicou
este texto to pertinente que vale a penareproduzi-la na edio
brasileira:
". . . essas pginas ultrapassam tanto a obraque introduzem,
propem um elogio to belo daleitura e preparam com tanta felicidade
EmBusca do Tempo Perdido que quisemos, livran-do-as de sua condio
de Prefcio, public-las nasua plenitude."
Foi o que tambm fizemos.
O Editor
-
rA Senhora Princesa Alexandre de Cara-man-Chimay, cujas Notes
sur Florenceteriam deliciado Ruskin, dedico respeito-samente, como
uma homenagem de minhaprofunda admirao, estas pginas que re-colhi
porque elas lhe agradaram.
-
Talvez no haja na nossa infncia dias que tenhamosvivido to
plenamente como aqueles que pensamos terdeixado passar sem viv-los,
aqueles que passamos nacompanhia de um livro preferido. Era como se
tudo aqui-lo que para os outros os transformava em dias cheios,ns
desprezssemos como um obstculo vulgar a um pra-zer divino: o
convite de um amigo para um jogo exata-mente na passagem mais
interessante, a abelha ou o raiode sol que nos forava a erguer os
olhos da pgina ou amudar de lugar, a merenda que nos obrigavam a
levar eque deixvamos de lado intocada sobre o banco, enquan-to
sobre nossa cabea o sol empalidecia no cu azul; ojantar que nos
fazia voltar para casa e em cujo fim nodeixvamos de pensar para,
logo em seguida, poder ter-minar o captulo interrompido, tudo isso
que a leituranos fazia perceber apenas como inconvenincias, ela
asgravava, contudo, em ns, como uma lembrana to doce
-
(muito mais preciosa, vendo agora distncia, do que oque lamos
ento com tanto amor) que se nos aconteceainda hoje folhearmos esses
livros de outrora, j no seno como simples calendrios que guardamos
dos diasperdidos, com a esperana de ver refletidas sobre as pgi-nas
as habitaes e os lagos que no existem mais.
Quem, como eu, no se lembra dessas leituras feitasnas frias, que
amos escondendo sucessivamente emtodas aquelas horas do dia que
eram suficientemente tran-quilas e inviolveis para abrig-las. De
manh, voltandodo parque, quando todos "tinham ido fazer um
passeio",eu me metia na sala de jantar, onde, at a ainda
distantehora do almoo, ningum, seno a velha Flicie, relativa-mente
silenciosa, entraria, e onde no teria como compa-nheiros de leitura
mais do que os pratos coloridos pen-dendo nas paredes, o calendrio
cuja folha da vsperahavia sido h pouco arrancada, o pndulo e o fogo
quefalam sem pudor que se lhes responda, e cujos suavespropsitos
vazios de sentido no substituem como aspalavras dos homens o
sentido das palavras que selem. Instalava-me numa cadeira ao p do
fogo de lenha,do qual, durante o almoo, o tio madrugador e
jardineirodiria: "No ruim! Suporta-se muito bem um pouco decalor do
fogo; posso garantir que s seis horas fazia bas-tante frio na
horta. E dizer que em oito dias j serPscoa!" Antes do almoo quem
poria fim, sem pena. leitura, se se tinha ainda duas longas horas!
De temposem tempos, ouvia-se o barulho da bomba que fazia a
guacorrer e tambm levantar olhos e olh-la atravs dos
vidros fechados da janela, ali, bem perto, na nica aliado
jardinzinho que margeava com tijolos e faianas emmeias-luas suas
platibandas de amores-perfeitos: amores-perfeitos colhidos, parece,
nesses cus to bonitos, essescus versicolores e como que refletidos
dos vitrais daigreja que se viam s vezes entre os tetos da vila,
custristes que apareciam antes das tempestades, ou depois,j
bastante tarde, quando o dia estava prestes a terminar.Infelizmente
a cozinheira vinha com muita antecednciaarrumar a mesa; se ela
ainda o fizesse sem falar! Mas no.Acreditava sempre que devia
dizer: "Voc no est bemassim; no melhor poiar-se numa mesa?" E
apenaspara responder: "No, muito obrigado", era preciso esta-car e
trazer de muito longe a voz que, dentro dos lbios,repetia sem rudo,
correndo, todas as palavras que osolhos haviam lido; era preciso
para-la, faz-la sair, e, paradizer de um modo convincente: "No,
muito obrigado",era preciso dar-lhe uma aparncia de vida comum,
umaentonao de resposta que tinha perdido. A hora passa-va:
frequentemente, muito tempo antes do almoo, come-avam a chegar na
sala aqueles que, cansados, haviamencurtado o passeio, haviam
"passado por Msglise", ouaqueles que "tendo de escrever", no tinham
sado naque-la manh. Eles diziam: "No vou incomod-lo",logo comeavam
a se aproximar do fogo, a ver as hcdeclarar que o almoo j seria
bem-vindo. Tratava-sparticular deferncia aquele ou aquela que tinha
"ficaSescrevendo" e se lhe dizia: "Voc ps em dia suas carti-nhas",
com um sorriso no qual havia respeito, mistrio,luxria e considerao,
como se essas "cartinhas" conti-
10 11
-
vessem, ao mesmo tempo, um segredo de estado, umaprerrogativa,
um augrio e uma indisposio. Alguns, semmais delongas, sentavam-se
bem antes mesa, em seuslugares. Era ento uma tristeza, pois seria
um mau exem-plo para os que iam chegando, se fizessem crer que j
erameio-dia, fazendo com que meus pais pronunciassem aspalavras
fatais: "Venha, feche seu livro, vamos almoar."Tudo estava pronto,
os talheres inteiramente postos sobrea toalha, faltando apenas o
aparelho de vidro que noaparecia seno no final da refeio e no qual
o tio horti-cultor e cozinheiro fazia ele prprio o caf na mesa,
tubu-lar e complicado como um instrumento de fsica de cheirobom e
no qual era to agradvel ver subir na campnulade vidro a ebulio
repentina que deixava em seguidanas paredes embaadas uma borra
cheirosa e marrom; etambm o creme e os morangos que o mesmo tio
mistu-rava, em propores sempre idnticas parando justo norosa que
era preciso atingir com a experincia de um colo-rista e a adivinhao
de um apreciador. Como o almoome parecia longo! Minha tia-av ficava
s experimentan-do os pratos para dar sua opinio com uma doura
quesuportava, mas no admitia a contradio. Para um ro-mance, para
versos, coisas que ela conhecia muitoT>em7ela recorria sempre,
com uma humildade de mulher, opinio dos mais competentes. Ela
pensava que este erao domnio flutuante do capricho onde o gosto de
umanica pessoa no pode fixar a verdade. Mas sobre ascoisas cujas
regras e os princpios lhe tinham sido ensina-dos por sua me, sobre
a maneira de fazer certos pratos,de tocar as sonatas de Beethoven e
de receber com ama-
12
bilidade, ela estava segura de ter uma ideia justa da per-feio e
de discernir se os outros dela se aproximavammais ou menos. Para as
trs coisas, alis, a perfeio eraquase a mesma: era uma espcie de
simplicidade nosmeios, de sobriedade e de charme. Ela abominava
quese pusesse especiarias em pratos em que absolutamenteno cabiam,
que se tocasse com afetao e abuso dospedais, que "recebendo" se
sasse de um natural perfeitoe se falasse de si mesmo com exagero.
Desde o primeirobocado, s primeiras notas, num simples bilhete, ela
tinhaa pretenso de saber se estava tratando com uma boacozinheira,
com um verdadeiro msico, com uma mulherbem educada. "Ela pode ter
muito mais dedos do que eu,mas falta-lhe gosto quando toca com
tanta nfase esteandante to simples." "Pode ser uma mulher muito
bri-lhante e cheia de qualidades, mas uma falta de tatofalar de si
mesma nessa circunstncia." "Pode ser umagrande cozinheira, mas no
sabe fazer bife com batatas."Bife com batatas! parte de um concurso
ideal, difcil porsua prpria simplicidade, espcie de Sonata pattica
dacozinha, equivalente gastronmica daquilo que na vidasocial a
visita da dama que vem pedir informaes sobreum domstico e que, num
ato to simples, pode provarter tato ou falta de educao. Meu av
tinha tanto amorprprio que gostaria que todos os pratos fossem
sempreum sucesso, mas era to pouco entendido em cozinha quejamais
sabia quando eles eram um fracasso. s vezes,raras alis, ele
aceitava que no estivessem bons, masapenas por obra do acaso. As
crticas sempre fundadas deminha av e que, ao contrrio, implicavam
que a cozi-
13
-
nheira no tinha sabido preparar o prato, no podiamdeixar de
parecer particularmente intolerveis a meu av.Frequentemente, para
evitar discusses com ele, minhaav, depois de provar um prato com os
lbios, no davaopinio, o que, alis, fazia com que imediatamente
sou-bssemos que ela era desfavorvel. Ela se calava, mas nslamos nos
seus olhos doces uma desaprovao inabalvele refletida que tinha o
dom de deixar meu av furioso.Ele suplicava ironicamente que ela
desse sua opinio,impacientava-se com o seu silncio, cumulava-a de
ques-tes, encolerizava-se, mas sabamos que ela poderia
sermartirizada e no confessaria aquilo em que meu avacreditava: a
sobremesa no estava suficientemente doce.
Depois do almoo, retomava imediatamente minha lei-tura;
sobretudo se o dia estivesse um pouco quente, aspessoas subiam para
"retirar-se em seus quartos", o queme permitia, pela escadinha de
pequenos degraus, chegarimediatamente ao meu quarto, no nico andar
to baixoque uma criana podia saltar as janelas com uma pernadae
encontrar-se na rua. Eu ia fechar minha janela sempoder evitar a
saudao do armero da frente, que sob opretexto de baixar seus
toldos, vinha todos os dias, depoisdo almoo, fumar seu cigarro
diante de sua porta ecumprimentar os passantes que, s vezes,
paravam paraconversar. As teorias de William Morris, que foram
tan-tas vezes aplicadas por Maple e pelos decoradores ingle-ses,
afirmam que um quarto no bonito se no contiversomente coisas que
nos so teis e que toda coisa til,mesmo um simples prego, no deve
ser dissimulada, mas
14
aparente. Por sobre o leito de tringulos de cobre e total-mente
descoberto, nas paredes nuas desses quartos higi-nicos, algumas
reprodues de obras-primas. A julg-loegundo os princpios dessa
esttica, meu quarto no eraabsolutamente belo, pois estava cheio de
coisas que nopodiam servir para nada e que dissimulavam
pudicamen-;e, ao ponto de tornar de uso difcil aquelas que
serviampara alguma coisa. Mas justamente dessas coisas queno
estavam l para minha comodidade, mas que pare-ciam ali estar pelo
prazer, que meu quarto tirava, paramim, todo seu encanto. As altas
cortinas brancas queescondiam ao olhar o leito situado como no
fundo de umsanturio; o punhado de mantas em marceline,
colchasfloridas, coberturas bordadas, fronhas em cambraia delinho,
sob as quais o dia desaparecia, como um altar noms de Maria sob as
grinaldas e as flores- e que, noiti-nha, para poder me deitar, eu
depositava com cuidadosobre a poltrona onde eles consentiam passar
a noite, aolado do leito, os copos com desenhos azuis, o
aucareiroparecido e a garrafa (sempre vazia, desde o dia seguinte
minha chegada, por ordem de minha tia que temia queeu a
"entornasse"), espcies de instrumentos do culto quase to santos
quanto o precioso licor de flor de laran-jeira posto ao lado deles
num frasco de vidro quepara mim era to proibido profanar e mesmo
utilizar parauso pessoal quanto se fossem cibrios consagrados,
masque eu olhava longamente, antes de me trocar de roupa,com medo
de derrub-los num gesto desavisado; estaspequenas estolas
iluminadas pelos vazios do croch quelanavam sobre o encosto das
poltronas um manto de
15
-
rosas brancas que no deviam ser sem espinhos, pois, cadavez que
eu terminava a leitura e queria me levantar, per-cebia que estava
preso poltrona; essa campnula devidro, sob a qual, isolada dos
contatos vulgares, o pndu-lo falava na intimidade para conchas
vindas de longe epara uma velha flor sentimental, mas que era to
pesadapara levantar que, quando o pndulo parava, ningum,exceto o
relojoeiro, era suficientemente imprudente paratentar faz-lo
funcionar; essa toalha branca toda em rendaque, lanada como um
revestimento de altar sobre a cmo-da ornada de dois vasos, de uma
imagem do Salvador ede um ramo bento, a fazia parecer com a mesa de
comu-nho (cuja ideia era ainda mais evocada, toda manh, porum
genuflexrio que era ali posto quando se terminavade "arrumar o
quarto"), mas cujas desfiaduras sempreenroscadas nas fendas das
gavetas emperravam-nas tocompletamente que eu no podia jamais pegar
um lenosem derrubar, com um s tranco, a imagem do Salvador,os vasos
sagrados, o ramo bento e sem escorregar agar-rando-me ao
genuflexrio; enfim, essa trplice superpo-sio de pequenas cortinas
de estamenha, de grandes l inhas quebradas, o brusco desenho. So
essas
- _ ; .1;iradas e tomadas prpria vida do passado quer: v i s i t
a r na obra de Racine como numa cidade anti-
r ::r.servada intacta. Experimentamos diante delas aemoo que
sentimos diante dessas formas aboli-
fas, e.as tambm so arquitetura que no podemos maisadmirar seno
nos raros e magnficos exemplares que noslegou o passado que os
modelou: como os velhos murosias cidades, os torrees e as torres,
os batistrios dasarejas; como no claustro, ou sob o ossrio do
Aitre, orr jueno cemitrio que esquece ao sol, sob suas borbole-tas
e suas flores, a urna funerria e a Lanterna dosMortos.
Alm disso, no so apenas as frases que desenham anossos olhos as
formas da alma antiga. Entre as frases e eu penso em livros muito
antigos que foram primeirorecitados, no intervalo que as separa
mora ainda hojecomo num hipogeu inviolado, preenchendo os
interst-cios, um silncio muitas vezes secular. Frequentementeno
Evangelho de So Lucas, encontrando os dois pontosque o interrompem
antes de cada trecho quase em formade cnticos de que ele est
recamado 19, ouvi o silncio dofiel, que acabava de parar sua
leitura em voz alta paraentoar os versculos seguintes ^ como um
salmo que a ele
49
-
lembrava os salmos mais antigos da Bblia. Esse silncioenchia
ainda a pausa da frase que, sendo cindida paracerc-lo, guardou-lhe
a forma; e mais de uma vez, enquan-to eu lia, trouxe-me o perfume
de uma rosa que a brisaentrando pela janela aberta havia espalhado
na sala altaonde ficava a Assembleia e que no tinha evaporado
pordezessete sculos.
"
Quantas vezes, na Divina Comdia, em Shakespeare,tive esta
impresso de ter diante de mim, inserido nahora presente, atual, um
pouco do passado, esta impres-so de sonho que se tem em Veneza na
Piazzetta, diantede suas duas colunas de granito cinza e rosa que
trazemsobre seus capitis gregos, uma o Leo de So Marcos,outra, So
Teodoro calcando com os ps o crocodilo, belas estrangeiras vindas
do Oriente pelo mar que elasolham ao longe e que vm morrer a seus
ps e que,ambas, sem compreender as conversaes trocadas emtorno
delas numa lngua que no a do pas, nessa praapblica onde ainda
brilha o seu sorriso distrado, conti-nuam a retardar no meio de ns
os seus dias do sculoXII que elas intercalam nos nossos dias de
hoje. Sim, emplena praa pblica, no meio de hoje cujo imprio
inter-rompido nesse local, um pouco do sculo XII, do sculoXII, h
tanto tempo transcorrido ergue-se num duplo elade granito rosa. Em
torno, os dias atuais, os dias quevivemos circulam, agitam-se
zumbindo em volta das colu-nas, mas a, bruscamente, param, fogem
como abelhasespantadas; porque elas no esto no presente, estes
altose finos enclaves do passado, mas num outro tempo no
50
~_L. t r:;:bido ao presente penetrar. Em torno das colu-ta
r:;as. voltadas para os seus grandes capitis, os dias* w.-.^. e
zumbem. Mas neles interpostas, elas os afas-am, preservando de sua
fina espessura o lugar inviolveli: rasado: do Passado surgido
familiarmente no e.: do presente, com esta cor um pouco irreal das
coi-ii j u e uma espcie de iluso nos faz ver a alguns passos,
: que, na verdade, esto a sculos de distncia; orientan-;o-se em
todo seu aspecto um pouco diretamente demaisK esprito, exaltando-o
um pouco como, sem surpresa,_m espectro de um tempo sepultado; no
entanto, ali, no~eio de ns, prximo, tangvel, palpvel, imvel, ao
sol.
51
-
NOTAS
~' cue chamamos, no sei por que, uma vila a localidadeprincipal
de um canto ao qual o Guia Joanne atribui cerca;s 3000
habitantes.
I Confesso que um certo emprego do imperfeito do indicativo
deste tempo cruel que nos apresenta a vida como algoefmero e ao
mesmo tempo passivo, que, no momento mesmoem que retraa nossas aes,
toca-as de iluso, aniquila-as nopassado sem nos deixar como o
perfeito a consolao da ati-vidade permaneceu para mim uma fonte
inesgotvel demisteriosas tristezas. Hoje, ainda posso ter pensado
durantehoras na morte com calma; basta abrir um dos volumes
dosLundis de Sainte-Beuve e dar, por exemplo, com esta frasede
Lamartine (trata-se da sra. d'Albany): "Neh nada lembra-va nessa
poca. . . Era uma mulherzinha cujo talhe um poucoarcado sob seu
peso tinha perdido etc." para logo me sentirinvadido pela mais
profunda melancolia. Nos romances,a inteno de causar pena to visvel
no autor que a gentese insensibiliza um pouco mais.
3. Pode-se tent-lo, por uma espcie de desvio, para os livrosque
no so de imaginao pura e onde h um substratohistrico. Balzac, por
exemplo, cuja obra, de alguma formaimpura, mistura esprito e
realidade muito pouco transfor-mada, presta-se s vezes
singularmente a este tipo de leitura.Ou, ao menos, ele encontrou o
mais admirvel destes "leito-res histricos" no sr. Albert Sorel que
escreveu ensaios
53
-
incomparveis sobre Une Tnbreuse Affaire e sobre UEnversde
1'Histoire Contemporaine. Quanto leitura, de resto, essegozo ao
mesmo tempo ardente e tranquilo, parece convir aosr. Sorel, a este
esprito investigador, a este corpo calmo epoderoso, a leitura,
durante a qual mil sensaes de poesiae de bem-estar confuso que
esvoaam com alegria no fundoda boa sade vem compor em torno do
devaneio do leitorum prazer doce e dourado como o mel. Alis, essa
arte deencerrar tantas e fortes meditaes originais na leitura, no
seno a propsito de obras semi-histricas que o sr. Sorelatingiu essa
perfeio. Vou me lembrar sempre e comtotal reconhecimento que a
traduo da Bible d'Amiensfoi para ele o assunto das pginas mais
poderosas que eletalvez jamais escreveu.
4. Esta obra foi, em seguida, aumentada pela adio de umaterceira
conferncia s duas primeiras: The Mistery of Lifeand its Arts. As
edies populares continuaram a trazer ape-nas Ds Trsors ds Ris e Ds
Jardins ds Reines. Tradu-zimos no presente volume apenas essas duas
conferncias, sempreced-las de nenhum dos prefcios que Ruskin
escreveupara Ssame et ls Lys. As dimenses deste volume e aabundncia
de nosso prprio Comentrio no nos permitiramfazer diferente. Salvo
para quatro entre elas (Smith, Elderet C.") as numerosas edies de
Ssame et ls Lys aparece-ram todas por Georges Allen, o ilustre
editor de toda a obrade Ruskin, o mestre de Ruskin House.
5. Ssame et ls Lys, "Ds Trsors ds Ris", 6.
6. Na realidade, esta frase no se encontra, ao menos nessaforma,
no Capito Fracasso. Em vez de "como aparece naOdisseia de Homero,
poeta grego", h simplesmente "segun-do Homero" mas como as
expresses "aparece em Homero","aparece na Odisseia", que se
encontram em outras partesda mesma obra, me do um prazer de
qualidade semelhante,permito-me, para que o exemplo seja mais
tocante para oleitor, fundir todas essas belezas em uma s, hoje que
naverdade no tenho mais por elas respeito religioso. Em
outraspartes ainda no Capito Fracasso qualificado de poeta
ei que isto tambm me encantava. Todavia, no-r.;.? capaz de
reencontrar com muita exatido estas ale-
a esquecidas para assegurar-me que no forcei a mo e-1 rerdi a
medida acumulando numa s frase tantas ma-ravilhas! no o creio,
contudo. E eu penso com saudade quea exaltao com que eu repetia a
frase do Capito Fracassoi - lrios e s pervincas dependuradas nas
margens do rio,: . f indo os pedregulhos da alia, teria sido ainda
mais deli-;:;;a se eu pudesse ter encontrado em uma s frase
deGautier tanto dos seus charmes que o meu prprio artifciorene
hoje, sem chegar, infelizmente, a dar-me nenhum pra-
Sinto-a germinar em Fontanes, de quem Sainte-Beuve disse:"nele,
este lado epicurista era bastante f o r t e . . . sem esteshbitos
um pouco materiais, Fontanes, com seu talento, te-ria produzido
muito ma i s . . . e obras mais duradouras. preciso notar que o
impotente pretende sempre no s-lo.Fontanes diz:
"Perco meu tempo se lhes der crdito,Apenas eles so a honra do
sculo."
e garante que trabalha muito.O caso de Coleridge j mais
patolgico. "Nenhum
homem de seu tempo, nem talvez de tempo algum, diz Car-penter
citado pelo sr. Ribot no seu belo livro sobre as Doen-as da
Vontade, reuniu mais do que Coleridge o poder do ra-ciocnio do
filsofo, a imaginao do poeta, etc. E no entanto,no h ningum que
sendo to dotado de talento, dele tenhatirado to pouco. O seu grande
defeito de carter era a suafalta de vontade para tirar proveito de
seus dons naturais,se bem que ele sempre tivesse flutuando no
esprito proje-tos gigantescos, nunca procurou seriamente executar
nenhum.Assim, desde o incio de sua carreira ele encontrou um
li-vreiro generoso que lhe prometeu trinta guinus pelos poe-mas que
ele tinha recitado, etc. Ele preferiu vir todas assemanas mendigar
sem fornecer uma s linha do poema queele no precisava seno escrever
para se liberar."
54 55
-
8. No necessrio dizer que seria intil procurar esse con-vento
perto de Utrecht e que toda esta sequncia puramenteimaginria. No
entanto, foi-me sugerida pelas linhas seguin-tes, do sr. Lon Sch na
sua obra sobre Sainte-Beuve: "Ele(Sainte-Beuve) lembrou-se um dia,
enquanto estava em Lige,de comear a conversa com a pequena igreja
de Utrecht. Eraum pouco tarde, mas Utrecht ficava bem longe de
Paris e euno sei se Volupt teria bastado para abrir-lhe de par
empar os arquivos de Amersfoort. Duvido um pouco, porquemesmo aps
os dois primeiros volumes de seu Port-Royal, opiedoso sbio que
tinha ento a guarda desses arquivos, etc.Sainte-Beuve obtm com
dificuldade do bom sr. Karsten apermisso para abrir algumas pastas.
. . s abrir a segundaedio de Port-Royal para que se veja o
reconhecimento queSainte-Beuve tem pelo sr. Karsten" (Lon Sch,
Sainte-Beuve, tomo I, pginas 229 e seguintes). Quanto aos
detalhesda viagem, repousam todos sobre impresses verdadeiras.
Nosei se a gente passa por Dordrecht para ir a Utrecht, mas como a
vi que descrevo Dordrecht. No foi indo a Utrecht,mas a Vollendam,
que viajei de balsa, entre os canios. Ocanal que eu situei em
Utrecht em Delft. Vi no Hospitalde Beaune um Van der Weyden, e
religiosas de uma ordemoriginria, eu acho, de Flandres, que usam
ainda a mesmatouca, no como em Roger Van der Weyden, mas como
emoutros quadros vistos na Holanda.
9. O esnobismo puro mais inocente. Contentar-se com a rela-o de
algum porque ele teve um ancestral nas cruzadas vaidade, no tendo a
inteligncia nada a ver com isso. Master prazer com a relao de algum
porque o nome de seu avse encontra frequentemente em Alfred de
Vigny ou em Cha-teaubriand, ou (seduo verdadeiramente irresistvel
paramim, confesso) ter o braso de sua famlia (trata-se de umamulher
digna de ser admirada sem isso) na grande Rosa deNotre-Dame
d'Amiens, a est onde o pecado intelectual co-mea. J o analisei
bastante em outras circunstncias parainsistir sobre ele aqui, ainda
que tenha muito a dizer sobreo assunto.
56
Paul Stapfer: Souvenirs sur Victor Hugo, publicado em La:;'ue de
Paris.
. . >chopenhauer, O Mundo como Representao e como Von-tade
(captulo "Sobre a Vaidade e os Sofrimentos da Vida").
'.'. 'Lamento ter passado por Chartres sem ter podido ver
acatedral." (Voyage en Espagne, p. 2)
13. Ele se torna, dizem-me, o clebre almirante de Tinan, paida
sra. Pechet de Tinan, cujo nome permanece caro aosartistas, e av do
brilhante capito de cavalaria, acho que tambm ele que diante de
Gate garantiu durante algumtempo a revitalizao e as comunicaes de
Francisco II e daRainha de Npoles. Ver Pierre de Ia Gorce, Histoire
dusecond Empire.
14. De resto, a verdadeira distino finge no se dirigir senoa
pessoas distintas que conhecem os mesmos usos, e elano "explica".
Um livro de Anatole France subentende umamultido de conhecimentos
eruditos, encerra perptuas alu-ses que o vulgo no percebe e que
delas fazem, alm deoutras belezas, a incomparvel nobreza.
15. por isso, sem dvida, que, frequentemente, quando umgrande
escritor faz crtica, fala muito das edies de obrasantigas e muito
pouco de obras contemporneas. Exemplo:Os Lundis de Sainte-Beuve e a
Vie littraire de AnatoleFrance. Mas enquanto Anatole France tem em
alta conta seuscontemporneos, pode-se dizer que Sainte-Beuve
desconheceutodos os grandes escritores de seu tempo. E que no se
faaa objeo de que ele estava cego por dios pessoais. Depoisde ter
rebaixado incrivelmente o romancista em Stendhal, elecelebra, como
compensao, a modstia, os procedimentosdelicados do homem, como se
no houvesse nada mais defavorvel a dizer! Esta cegueira de
Sainte-Beuve, no queconcerne sua poca, contrasta singularmente com
suas pre-tenses de clarividncia e de precincia. "Todos so
fortes,diz ele em Ckateaubriand et son groupe littraire, quandose
pronunciam sobre Racine e Bossuet. . . Mas a sagacidade
57
-
do juiz, a perspiccia do crtico, se prova sobretudo
sobreescritos novos, ainda no testados pelo pblico. Julgar primeira
vista, adivinhar, avanar, eis o dom crtico. Quopoucos o
possuem."
16. E, reciprocamente, os clssicos no tm melhores comenta-dores
que os "romnticos". S os romnticos, na verdade,sabem ler as obras
clssicas, porque as lem como foramescritas, romanticamente, porque
para ler bem um poeta ouum prosador, preciso ser no um erudito, mas
poeta ouprosador. Isto vlido para as obras as menos "romnticas".Os
belos versos de Boileau, no foram os professores deretrica que nos
fizeram not-los, foi Victo Hugo:
"Et dans quatre mouchoirs de s beaut salisEnvoie au blanchisseur
ss roses et ss lys."(E em quatro lenos sujos com sua belezaEnvia ao
tintureiro suas rosas e seus lrios.)
o sr. Anatole France:
"L'ignorance et 1'erreur ss naissantes picesEn habits de
marquis, en robes de comtesses."(A ignorncia e o erro com suas peas
que nascemem hbitos de marqus, em roupas de condessas.)
O ltimo nmero de La Renaissance latine (15 de maio de1905) me
permite, no momento em que corrijo estas provas,estender, atravs de
um novo exemplo esta observao sbelas artes. Ela nos mostra, como
efeito, no sr. Rodin (ar-tigo do sr. Mauclair), o verdadeiro
comentador de estaturiagrega.
17. Predileo que eles prprios julgam geralmente fortuita;supem
que os mais belos livros foram escritos por acasopelos autores
antigos; e sem dvida, isso pode acontecer poisos livros antigos que
lemos so escolhidos no passado intei-ramente vasto ao lado da "poca
contempornea". Mas umarazo, de algum modo, acidental, no pode ser
suficiente paraexplicar uma atitude de esprito to geral.
58
Creio que o encanto que nos habituamos a ver nestes ver-sos de
Andromaque:
"Pourquoi 1'assassiner? Qu'a-t-il fait? A quel titre?Qui te l'a
dit?"(Por que assassin-lo? Que foi que ele fez? A que ttulo?Quem
lhe disse?)
vem precisamente do fato de que o elo habitual da sintaxe
voluntariamente rompido. "A quel titre?" relaciona-se noa
"Qu'a-t-il fait'?" que o precede imediatamente, mas a "Pour-quoi
rassassinerf" E "Qui te l'a dit?" relaciona-se tambma
"assassitier". (Pode-se, lembrando um outro verso de Andro-maque:
"Qui vous l'a dit, Seigneur, qu'il me rnprise?"(Quem lhe disse,
Senhor, que ele me despreza?) supor que:"Qui te l'a dit?" est por
"Qui te l'a dit, de 1'assassiner?")Ziguezagues da expresso (a linha
recorrente e quebrada deque falo acima) que no deixam de obscurecer
um pouco osentido, se bem que ouvi uma grande atriz, mais
preocupadacom a clareza do discurso do que com a exatido da
pro-sdia, dizer convictamente: "Pourquoi l'assassiner? A queltitre?
Qu'a-t-il fait?" Os mais clebres versos de Racine, narealidade so
clebres porque encantam por uma certa audciafamiliar de linguagem
lanada como uma ponte ousada entreduas margens de doura. "Je
t'aimais inconstant, qu'aurais-jefait fidle?" (Eu a amava
inconstante, o que teria feito,fiel?) E que prazer causa encontrar
estas belas expressescuja simplicidade quase comum d ao sentido,
como a certosrostos em Mantcgna, uma plenitude to doce e cores
tolindas:
"Et dans un foi amour ma jeunesse embarques. . .Runissons trois
cceurs qui n'ont pu s'accorder."(E num louco amor minha juventude
levadaReunimos trs coraes que no puderam se pr de
acordo.)
E por isso que convm ler escritores clssicos no textooriginal, e
no se contentar com trechos selecionados. Aspginas ilustres do*
escritores so, no mais das vezes, aque-
59
-
Ias em que esta contextura ntima de sua linguagem dis-simulada
pela beleza, de um carter quase universal, dotrecho. No creio que a
essncia particular da msica deGluck se deixe surpreender tanto numa
ria sublime comonuma cadncia de seus recitativos em que a harmonia
comoo prprio som da voz de seu gnio quando recai sobre umaentonao
involuntria em que se marca toda a sua ingnuagravidade e sua
distino, cada vez que se lhe houve, porassim dizer, tomar flego.
Quem viu fotografias de So Mar-cos em Veneza pode crer (no falo,
entretanto, seno doexterior do monumento) que teve uma ideia dessa
igreja comcpulas, quando somente se aproximando, at poder toc-las
com a mo, o reposteiro recamado dessas colunas gracio-sas, somente
vendo o poder estranho e grave desses capi-tis, que se enrolam
folhas ou empoleiram pssaros, que nose podem distinguir seno de
perto, somente tendo noprprio local a impresso desse monumento
baixo, ao longode toda a fachada, com seus mastros floridos e sua
decoraode festa, seu aspecto de "palcio de exposio" que se
senteexplodir nesses traos significativos mas acessrios e que
ne-nhuma fotografia capta sua verdadeira e complexa
individua-lidade.
19. E Maria diz: Minha alma exalta o Senhor e se regozija
emDeus, meu Salvador, etc. Zacarias seu pai foi tomado peloSanto
Esprito e profetizou nestas palavras: Bendito seja oSenhor, o Deus
de Israel por sua remisso, etc. Ele a re-cebeu em seus braos,
bendito Deus e disse: Agora, Senhor,deixe seu servidor ir em paz. .
.
20. Na verdade, nenhum testemunho positivo permite afirmarque
nestas leituras o recitante cantasse as espcies de salmosque So
Lucas introduziu no seu evangelho. Mas parece queisso tem
suficientemente a ver com diversas passagens deRenan e
principalmente de So Paulo, p. 257 e seguintes: osApstolos, p. 99 e
100, Marco Aurlio, p. 502, 503, etc.
60