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1 PROCISSÕES Por: Rafael Magalhães
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Oct 18, 2019

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PROCISSÕES Por: Rafael Magalhães

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Cena I

FRANCISCO ESTÁ SENTADO EM UM TRONCO DE ÁRVORE SECA, TRAZ ÀS

MÃOS E AO REDOR ALGUMAS PEÇAS VELHAS, UM MOTOR DE MOTO, ALGUNS

TUBOS E CANOS MENORES. AOS POUCOS ANTÔNIA ENTRA EM CENA, ELA EM

CERTO PONTO PÁRA E OBSERVA FRANCISCO.

EM DADO MOMENTO ELE NOTA SUA PRESENÇA. DURANTE ALGUNS

INSTANTES ELES APENAS SE OLHAM.

Antônia – Vim lhe buscar

Francisco – Eu não vou

Antônia – E vai continuar aqui?

Francisco – É preciso

Antônia – Por quê?

Francisco – Eu ainda não terminei

Antônia – Já faz mais de dois anos

Francisco – o tempo passa depressa

Antônia – menos pros teus filhos

Francisco – (PAUSA) criança num percebe essas coisas

Antônia – eles sentem a tua falta

Francisco – Criança nessa idade só quer saber de pular e correr pelos cantos

Antônia – eu sinto sua falta também

Francisco – Quando eu era pequeno, num tinha tempo pra brincar não, meu pai punha a gente

pra trabalhar, dizia sempre que criança pobre num tinha direito a essas coisas não

Antônia – o mais maior perguntou quando tu volta

Francisco – esse aí é danado, num tome o menino de besta não, logo mais ele vai tá dando

volta...

Antônia – Francisco, volte pra casa

Francisco – se os outros dois saírem igual a Cícero vão...

Antônia – Tu tá me ouvindo? Volte pra casa

Francisco – ainda tenho que terminar a máquina...

Antônia – Que diabo de troço é esse que nunca termina?

Francisco – eu errei os cálculos...

Antônia – que cálculo?

Francisco – os cálculos pra acertar o maquinário das...

Antônia – que cálculo? Que cálculo? Homem tu nem se quer sabe ler

Francisco – (PAUSA) por conta desse erro, eu tive que fazer tudo do começo. Agora é questão

de fazer um ou outro acerto

Antônia – Quanto tempo ainda tu vai fazer teus filhos esperarem?

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Francisco – é só o tempo de fazer os acertos, tudo coisa pequena

Antônia – tu ficou aí, dia e noite, por dois anos e não deu conta de fazer esses acertos?

Francisco – tu tá falando como se fosse qualquer máquina, qualquer coisinha velha besta

Antônia – pra mim é

Francisco – pois pra mim não, dei a minha palavra e vou cumprir

Antônia – Homem pare com isso, deixe essa maluquice e volte pra junto da tua família

Francisco – Antônia tu bem sabe que num posso sair daqui sem ter feito a máquina, eu fiz uma

promessa

Antônia – Desfaça

Francisco – Tá ficando doida?

Antônia – Não fui eu que deixei três filhos pequenos e a mulher pra me embrenhar pelo sertão

por conta de uma maluquice

Francisco – Maluquice não!

Antônia – Maluquice sim! Tu tem filho, tem mulher, tem suas obrigações

Francisco – As coisas do divino vem em primeiro lugar

Antônia – Tu ainda continua com isso?

Francisco – Deus falou comigo

Antônia – isso foi sonho

Francisco – É assim que ele fala com as pessoas

Antônia – Mesmo se fosse, porque Ele ia falar justamente contigo?

Francisco – Porque Ele me escolheu e me disse isso em sonho

Antônia – isso é tudo bobagem

Francisco – Não levante falso sobre as providências de Deus

Antônia – Deus não existe

Francisco – Que conversa besta é essa Antônia?

Antônia – E se existe se esqueceu da gente faz muito tempo

Francisco – Se tivesse esquecido não tinha vindo falar comigo no sonho

Antônia – Isso é só coisa da tua cabeça

Francisco – Deus me disse pra ir até o sertão, me disse pra levar todas as coisas que eu ia

precisar e só levar o que fosse da minha precisão

Antônia – Disse também pra tu deixar a tua família largada á qualquer sorte?

Francisco – Me disse pra carregar essas peças e que ia me guiar assim como guiou Noé

Antônia – Não interessa o que tu acha que ouviu nesse sonho maluco

Francisco – Ele me fez promoter que ia cumprir o seu chamado

Antônia – Ouça o chamado da tua família, que ainda existe

Francisco – Eu nunca teria deixado tu ou os meninos se não fosse por um chamado de Deus

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Antônia – tu nunca foi de ficar falando de Deus

Francisco – É diferente agora, se o próprio veio falar comigo em sonho

Antônia – Já perdi a conta de quantas vezes lhe ouvi dizer que Ele não existe

Francisco – Mas existe! Agora eu tenho certeza

Antônia – como pode ter certeza de uma coisa que tu viu num sonho?

Francisco – Não foi pelo sonho

Antônia – E foi pelo quê?

Francisco – Ninguém sobrevive no sertão se não for pela fé

Antônia – e tu ainda quis voltar pra esse lugar

Francisco – A gente viveu aqui os piores anos das nossas vidas...

Antônia – mais um motivo pra não querer estar aqui

Francisco – só que é preciso eu tenho uma missão

Antônia – Todo mundo foi embora daqui e tu inventou de fazer justamente o contrário

Francisco – Pois se é aqui que devo ligar a máquina quando ela estiver pronta

Antônia – Essa máquina não vai ficar pronta nunca!

Francisco – pare de agourar

Antônia – Não estou agourando, até mesmo porque não precisa tanto

Francisco – Tu quer dizer o quê com isso?

Antônia – O que tu já deveria ter posto na tua cabeça

Francisco – Vai dar certo, eu vou fazer a máquina tal qual Deus me mostrou no sonho

Antônia – só sendo maluco mesmo, se Deus existisse Ele mesmo faria chover, não se daria o

trabalho de lhe pedir uma máquina

Francisco – Esse é o jeito do Homem de fazer as coisas, ele quer que a gente faça alguma

coisa pelo próximo

Antônia – e é tu esse um que vai fazer alguma coisa pelo próximo?

Francisco – Se for á vontade de Deus

Antônia – Pois diga á Deus, que Ele escolheu errado, que Noé não mora no sertão

Francisco – Que conversa é essa?

Antônia – Desde que eu cheguei, tu num sabe falar de outra coisa, se não dá tua máquina...

Francisco – Não, a máquina não é minha, eu vou fazer pras pessoas não terem que deixar o

seu canto pra fugir da morte

Antônia – Não fique se enganando, teu pensamento não pousou em nenhum momento sobre a

precisão dessas pessoas

Francisco – eu vou fazer isso pelas pessoas, e essa máquina, vai trazer a chuva pro sertão!

Antônia – desde que eu cheguei, tu nem se quer perguntou como estão teus filhos... Vai pensar

nas pessoas de que jeito?

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Francisco – tu é uma boa mãe

Antônia – eu queria poder dizer o mesmo

Francisco – não precisa

Antônia – tu sempre foi um bom pai, até inventar essa sandice

Francisco – num é sandice, tá tudo certo, eu vou terminar a máquina e vou voltar pra junto de tu

mais dos meninos

Antônia – E isso vai ser quando? Daqui três anos, quatro ou quando Deus lhe disser que o

sertão não tem mais jeito?

Francisco – Ele jamais desistiria...

Antônia – Ele já desistiu faz muito tempo!

Francisco – Não! Tá acontecendo igual o padre disse que aconteceu com Jesus quando Ele

tava no deserto...

Antônia – Francisco, deixe de maluquice

Francisco – Jesus foi tentado pelo demônio, que estava disfarçado...

Antônia – Francisco! Tu não é Jesus e Deus Não fala contigo!

Cena II

Antônia – O povo todo da cidade fica mangando dessa tua maluquice

Francisco – Num devo nada á ninguém

Antônia – Onde eu passo ficam gritando que eu sou a mulher do doido que pensa que é Jesus

Francisco – Povo besta, desde quando eu disse que sou Jesus?

Antônia – E precisa dizer?

Francisco – Oxe, se nunca falei nada disso...

Antônia – Tu some de casa dizendo que vai fazer uma máquina que vai trazer a chuva pro

sertão e não quer que o povo diga que tu pensa que é Jesus?

Francisco – O próprio já dizia que o povo num sabe o que faz

Antônia – Só nessa tua cabeça de vento mesmo pra teimar com uma história dessas

Francisco – Me respeite!

Antônia – Tu acha certo eu pagar o preço das tuas invenções?

Francisco – Não foi eu que quis assim

Antônia – Mas é quem pode desfazer

Francisco – Vou continuar com a minha promessa

Antônia – Uma coisa que tu disse enquanto dormia num tem valia nenhuma

Francisco – num é só o que eu disse, mas também pra quem eu disse

Antônia – Ninguém vai lhe tirar isso da cabeça não é mesmo?

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Francisco – De jeito nem qualidade! Que não sou homem de entregar o couro às varas!

Antônia – vai passar mais quanto tempo longe da tua família?

Francisco – Agora falta pouco

Antônia – Quanto é esse teu pouco Chico?

Francisco – Se a gente ficar aqui conversando água vou demorar mais um ano

Antônia – é bom. Porque assim faz certinho três anos que tu deixou a tua casa

Francisco – Deus vai dar de volta tudo que a gente perdeu

Antônia – o povo diz que Jesus reviveu em três dias

Francisco – tá certo, no terceiro dia...

Antônia – eu sei a história

Francisco – e então?

Antônia – que dizem que Jesus do sertão vai reviver em três anos

Francisco – Jesus do sertão?

Antônia – É assim que eles lhe chamam

Francisco – quanta besteira

Antônia – É por essa gente que tu tá fazendo tudo isso?

Francisco – É o que eu tenho que fazer

Antônia – E essa gente merece tudo isso?

Francisco – As pessoas tem essa mania de falar as coisas sem pensar

Antônia – O problema é que na tua cabeça tudo é muito simples

Francisco – Então, não é problema

Antônia – ali não tem nenhum santo, eles falam com maldade, sabendo o que estão fazendo

Francisco – eu não preciso me preocupar com isso, o Homem só me mandou fazer a máquina

Antônia – podia vir aqui uma vez ou outra

Francisco – assim é que eu não ia terminar isso nunca

Antônia – oxe, o Homem não lhe deu todas as ordens, não está lhe guiando tal qual fez com

Noel?

Francisco – Noé!

Antônia – Quem é esse?

Francisco – foi aquele que o Homem guiou enquanto ele fazia a barca

Antônia – esse que fez a barca, não é aquele do tempo que a terra foi engolida pelas águas?

Francisco – Esse mesmo

Antônia – se essa tua máquina depois de ligada der problema?

Francisco – que problema?

Antônia – num sei, mas se essa coisa não parar mais de jorrar água na terra?

Francisco – isso num vai acontecer

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Antônia – e se acontecer? Não vai ter outro Moises pra fazer o tal do barco

Francisco – Noé!

Antônia – Que seja Francisco!

Francisco – Não vai dar problema nenhum

Antônia – Tu já pensou como tu vai voltar pra casa depois que essa máquina num fizer cair do

céu se quer uma gota?

Francisco – Eu só preciso terminar, não tenho porque duvidar que ela vai fazer aquilo que

precisa fazer

Antônia – o pior é que tem gente que acha que tu é santo

Francisco – o povo que fica falando que eu sou o Jesus do Sertão?

Antônia – não, esses acham que tu é doido

Francisco – e o padre José o que disse disso tudo?

Antônia – padre José num tá mais na igreja não

Francisco – e por causa de quê?

Antônia – por sua causa

Francisco – minha?

Antônia – o padre tava junto com esse pessoal que diz que tu é santo

Francisco – que pessoal é esse?

Antônia – a velharada que vivia na igreja, rezando e cuidando da vida alheia

Francisco – Ave Maria

Antônia – disseram que o padre queria ir até o tal lá dos estrangeiros

Francisco – dos estrangeiros, fazer?

Antônia – dizer ao papa que tu é santo, que recebeu um chamado de Deus

Francisco – Vala-me, padre José num tá batendo bem

Antônia – Antes fosse só ele

Francisco – Se isso foi pra mim, saiba que eu tô muito bem

Antônia – Tem gente que vem de fora pra conhecer a cidade do santo ou do maluco, depende

de quem conta a tua estória

Francisco – Por isso que vez ou outra pára umas pessoas estranhas e ficam aí me olhando

Antônia – Na certa nenhuma delas deve ter visto de perto uma estória que nem a tua

Francisco – Valei-me Padrinho Padre Cícero

Antônia – Eu acho até um desconjuro dizer que tu é santo

Francisco – Santo eu num sou mesmo não

Antônia – Acho até que fizeram bem em tirar o padre José da igreja

Francisco – Coitado, mas é assim mesmo, deve ser um teste

Antônia – teste? Que teste, homem?

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Francisco – O padre vivia falando nas missas que Deus vivia testando as pessoas, eu num sei

dizer direito não, mas ele falava bonito que só vendo

Antônia – Onde tu arrumou tempo pra ir á igreja?

Francisco – fui logo depois que tive o sonho

Antônia – Ave Maria! Imagina se o Homem aparece na tua frente de verdade, se só de aparecer

num sonho, já lhe fez ir pra igreja

Francisco – Quem vê pensa que sou um... Um... Eita! Esqueci a palavra, o padre José falava

toda vida, uma bonita que só vendo

Antônia – Bem sei que “um” fazia teu jeito

Francisco – Deixe dessa conversa

Antônia – Sei bem das vezes que tu andou fugindo pra tomar cachaça no boteco de Seu

Raimundo, de Seu Ananias, de Seu Tião...

Francisco – Isso é passado, antes eu era desse jeito aí, agora eu sou uma nova pessoa

Antônia – é bem capaz disso tudo que tu tá fazendo ser pra abaixar a tua culpa

Francisco – Culpa de quê, já me arrependi dos meus pecados

Antônia – E foi perdoado assim, sem mais nem menos?

Francisco – o Homem é generoso, se num fosse, num seria Deus

Antônia – conversa, tu tá fazendo tudo isso porque já fez muita coisa nessa vida

Francisco – Deixe de besteira, tu bem sabe que tirando a cachaça, num tem quem possa falar

nada da minha pessoa

Antônia – No começo eu achei que tu tinha inventado essa estória de sonho

Francisco – e porque é que eu ia fazer uma coisa dessas?

Antônia – Pra fugir de casa, se embrenhar nos lençóis de uma qualquer

Francisco – eita! Dá pra virar livro essa tua invenção

Antônia – minha irmã disse a mesma coisa assim que contei á ela do teu sonho

Francisco – se por um lado tua irmã disse isso, tua mãe me deu apoio e foi muito, viu?

Antônia – minha mãe queria te ver longe de mim

Francisco – rapaz! E eu achando que a velha tava de acordo

Antônia – e tava, minha mãe ia tá de acordo com qualquer coisa que te levasse pra bem longe

Francisco – Vixe Maria! Quem escuta isso, nem nota que tu tá falando da velha que vai todo dia

á igreja

Antônia – vai rezar como uma pessoa normal

Francisco – tenho até medo das rezas que tua mãe deve fazer

Antônia – tem porque não

Francisco – tá certa, o Homem se mostrou do meu lado

Antônia – Não, o pedido dela já foi atendido

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Francisco – (PAUSA) E o padre José tá fazendo o que da vida agora?

Antônia – tem um nome lá que ele diz que eu num lembro, é um tal de guia

Francisco – de guia?

Antônia – isso, ele fica andando com as pessoas que vem conhecer a cidade

Francisco – Eita! Que trabalho mais doido esse

Antônia – sai na frente de uma ruma de gente que vai seguindo ele

Francisco – Vixe Maria! Parece até procissão

Antônia – e ele vai mostrando a cidade e dizendo; “Foi aqui que o santo passou”

Francisco – Que santo?

Antônia – tu Chico

Francisco – Valei-me! Meu São José

Antônia – num demora nada eles devem dar por aqui

Francisco – aqui? Pra fazer o quê?

Antônia – pra ver de perto o santo

Francisco – Foi por isso que eu num abri a boca pra dizer pra onde eu ia

Antônia – é...

Francisco – Antônia! Tu disse pro padre onde eu tava?

Antônia – Não. Eu mesma pra te achar penei três dias e três noites

Francisco – e eu que vim com esse monte de cacareco?

Antônia – tudo por conta dessa gente que tá se aproveitando da tua sandice

Francisco – tão se aproveitando é nada

Antônia – Oxe! Se até o padre inventou um jeito de ganhar dinheiro com a tua estória

Francisco – que Deus tenha misericórdia da tua alma

Antônia – da minha?

Francisco – Da alma do padre, mulher!

Antônia – ah! Bom!

Francisco – e da tua também

Antônia – Oxe! (Pausa)

Francisco – Pelo visto a cidade ficou num rebuliço só

Antônia – e bota rebuliço nisso. Tem cão que pensa que é gato e gato que pensa que é gente

Francisco – Viu?

Antônia – O quê?

Francisco – É um sinal

Antônia – Sinal de quê?

Francisco – Oxe! Do fim dos tempos

Antônia – deixe de tanta besteira

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Francisco – besteira nada! Primeiro é o padre que deu uma de queixudo

Antônia – (para o público) deu pra levar todo mundo na conversa

Francisco – depois a velharada da igreja, que se mostrou um bando de garapeira

Antônia – (para o público) gente que se sai bem ás custas dos outros

Francisco – e o povo fazendo fuxico?

Antônia – (para o público) dizendo coisa pelas costas

Francisco – o padre queixudo, as velhas que andavam encangadas nele e o povo fuxiqueiro,

são tudo farinha do mesmo saco

Antônia – o padre...

Francisco – deixe disso mulher!

Cena III

ANTÔNIA COMEÇA A DAR VOLTAS EM TORNO DA MÁQUINA, FRANCISCO A OBSERVA,

ANTÔNIA MEXE EM ALGUMAS PEÇAS

Francisco – Num vá bulir aí não!

Antônia – Quem guarda com fome o gato vem e come

Francisco – Outra dessa e tu vai dormir com o couro quente!

Antônia – (PAUSA) Chico? Como é que vai ser?

Francisco – Como vai ser o quê?

Antônia – Depois que esse teu cacareco ficar pronto

Francisco – Minha missão vai ter se acabado

Antônia – Não homem, eu estou dizendo como é que essa coisa vai fazer chover

Francisco – Isso é fácil, é uma engrenagem muito simples de se entender

Antônia – pois então me diga como é

Francisco – se por um lado é simples de entender, por outro é complicado lhe dizer á risca

como funciona

Antônia – tu num sabe, num é mesmo?

Francisco – eu sei o que é preciso saber

Antônia – vá lá me diga

Francisco – como se monta e pra que serve

Antônia – pra fazer chover, essa parte todo mundo sabe e ninguém acredita

Francisco – Pois esse povo todo e a senhora também que veio pra cá só pra arengar...

Antônia – eu arengando?

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Francisco – A senhora sim! E esse povo mais a senhora, assim que virem o sol se deitar e a

chuva descer vão ficar tudo atroado sem saber o que pensar

Antônia – tu acredita mesmo que essa estrovenga vai fazer chover aqui no sertão, num é

mesmo?

Francisco – Se não acreditasse eu ia tá fazendo o quê aqui?

Antônia – Sei lá, o povo todo diz que tu tá variando

Francisco – E tu pensa que nem essa gente?

Antônia – Olhe Chico, tu deixou teus filhos, tua mulher e tua casa, pra se danar pelo sertão,

atrás dessa coisa doida que tu encasquetou aí na cabeça

Francisco – Olhe! Aí tá a prova de que eu tô muito bem das ideias

Antônia – não senhor, isso é prova de que o senhor abilolou de vez

Francisco – Vala-me Deus! Que mulher tinhosa!

Antônia – Oxe! Quer dizer que eu que sou a errada da estória?

Francisco – Mulher tu num se atenta que eu só saí de casa porque o próprio Nosso Senhor

Jesus Cristo, através de Nosso Padrinho Padre Cícero, me pediu pra fazer isso?

Antônia – Padre Cícero tava nesse teu sonho também?

Francisco – Se tava! Igualzinho a imagem que tem dele em Juazeiro, todo de branco segurando

um chapéu de vaqueiro branco, com os cabelinhos tudo branquinho

Antônia – E padre Cícero fazia o que nesse teu sonho?

Francisco – Vinha me dizer que o Chefe queria prosear mais eu

Antônia – Aí Deus veio e lhe disse que fizesse essa estrovenga... E padre Cícero?

Francisco – Só voltou depois que o Chefe tinha terminado a prosa mais eu

Antônia – e o que foi que ele lhe disse?

Francisco – Me disse que ele mais uma ruma de santo, anjo, fora o povo do sertão tava tudo

contando com esse feito

Antônia – ele disse isso?

Francisco – Se disse!

Antônia – Avia homem, faça logo essa coisa!

OS DOIS JUNTOS COMEÇAM A TRABALHAR NA MÁQUINA

Francisco – me passe essa coisa vermelha (chave de fenda)

Antônia – (ela passa outra ferramenta)

Francisco – a vermelha mulher! Essa que serve pra arrochar parafuso

Antônia –(ela entrega á ele)

Francisco – A de quatro pontas, mulher!

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Antônia – (ela enfim acerta) (PAUSA) Chico

Francisco – Que é Antônia?

Antônia – Posso lhe fazer uma pergunta?

Francisco – Pode dizer

Antônia – Nesse tempo que tu ficou fora, nunca lhe deu vontade de voltar pra casa?

Francisco – todo dia me vinha uma vontade de meter os pés na carreira só pra pousar os olhos

nos meninos e me achegar no teu abraço

Antônia – devia ter feito

Francisco – Endoidou mulher?

Antônia – é isso mesmo, tu devia ter posto os pés na carreira e ter deixado esse cacareco pra

outro fazer

Francisco – isso seria a mesma coisa que fazer uma promessa e pedir pra tu cumprir ela pra

mim

Antônia – tem é graça! É aí que a porca torce o rabo

Francisco – Que conversa é essa Antônia?

Antônia – Deus bem sabe que pra eu fazer uma promessa dessas num ia basta Ele aparecer só

no sonho não

Francisco – Eita mulher de pouca fé!

Antônia – Num é isso não, é que já desasnei há muito tempo

Francisco – tu quer dizer o quê com isso?

Antônia – que pra esse teu cacareco prestar só falta tu desasnar

Francisco – Olha mulher, a tua sorte é que eu tenho que terminar a máquina, se não...

Antônia – se não o quê?

Francisco – se não eu lhe mandava pra terra dos pés juntos nesse instante

Antônia – (PAUSA) Chico

Francisco – Que foi?

Antônia – tu ainda tá jururu?

Francisco – jururu, não. Eu tô é fulo da vida

Antônia – E por causa de quê?

Francisco – Oxe! Tu se embrenha no oco do mundo, pra me tirar o juízo

Antônia – se fosse isso, já tinha chegado tarde, teu juízo já levaram faz tempo

Francisco – Agora já deu! Prepara o couro mulher, que a peia vai comer

Antônia – Não!

Francisco – Então me respeite!

Antônia – tá certo, manda quem pode, obedece quem tem juízo

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ANTÔNIA SE AFASTA, FRANCISCO CONTINUA A ÁRDUA TAREFA DE TERMINAR A

MÁQUINA

Antônia – Chico

Francisco – o que é mulher?

Antônia – eu só tava querendo saber se tu ainda tava triste pela tua mãe

Francisco – e o que é que minha mãe fez pra eu ficar triste?

Antônia – Peraí! Tu ainda não ficou sabendo?

Francisco – Sabendo de quê?

Antônia – Do que aconteceu com tua mãe

Francisco – Oxe! Como que eu ia saber de alguma coisa metido no meio das brenhas?

Antônia – Valei-me! Meu são José

Francisco – Avia Antônia, me diga o acontecido que aconteceu a minha mãe

Antônia – Eu devia nem lhe contar

Francisco – Por quê?

Antônia – Num lhe deu na cabeça de fugir e deixar a tua família, então... Tua alma, tua palma,

teu coração, tua pindoba.

Francisco – Péra lá, quer dizer que tu num vai me contar o que aconteceu à minha mãe?

Antônia – Não!

Francisco – Mas, menino! É minha mãe!

Antônia – tivesse pensado nisso antes de sumir no mundo

Francisco – Valei-me Minha Nossa Senhora. Tu tá falando da minha mãe!

Antônia – eu tô deixando de falar da tua mãe

Francisco – mesma coisa!

Antônia – Isso é pra tu aprender

Francisco – isso lá é hora de me passar carão?

Antônia – Tu fez por merecer

Francisco – Eu já sei, eu lhe conheço

Antônia – sabe de quê?

Francisco – porque é que tu tá fazendo isso

Antônia – e porque é?

Francisco – porque a coisa tá feia mesmo

Antônia – De vera!

Francisco – Viu só?

Antônia – O quê?

Francisco – Tu disse “de vera”

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Antônia – e o que é que tem?

Francisco – tem que tu só diz “de vera” quando já tá tudo lascado de vez

Antônia – não é isso, é que...

Francisco – avia mulher, pode dizer á verdade que eu agüento o canjirão

Antônia – foi que... Que...

Francisco – minha mãe morreu, num foi?

Antônia – Chico...

Francisco – Desembucha mulher!

Antônia – Foi, tá mortinha

FRANCISCO COMEÇA A ARRUMAR AS COISAS, ORGANIZA DUAS PEÇAS DE ROUPA E

UM APARELHO DE BARBEAR ANTIGO TODO DE METAL NUM PANO QUE FAZ AS VIAS DE

MALA

Antônia – Tu tá fazendo o que homem?

Francisco – ajeitando as minhas coisas

Antônia – Pra quê?

Francisco – Pra ir-me embora daqui

Antônia – E a tua estrovenga?

Francisco – Deixa aí pra outro terminar

Antônia – Que outro Chico?

Francisco – Num sei, o homem num é Deus? Ele que ache outra pessoa

Antônia – mas Chico e a tua promessa?

Francisco – e eu lá vou cumprir promessa em nome do homem que levou minha mãe?

Antônia – tu num pode entregar a rapadura desse jeito não

Francisco – Que diabo é isso, Antônia? Isso num era o que tu queria?

Antônia – antes de saber que tu tinha prometido a nosso padrinho padre Cícero

Francisco – esse é outro, tudo farinha do mesmo saco

Antônia – Num diga isso homem! É pecado falar desse jeito

Francisco – eu digo mesmo, já fui muito escrachado, muito esculhambado, foi além do que eu

posso agüentar

Antônia – tá tiririca por causa da morte de tua mãe?

Francisco – Tô tiririca por tá aqui feito um burro de carga e Deus levando pra junto dele as

pessoas que eu gosto

Antônia – Mas Chico, o Homem é Deus...

Francisco – E Padrinho Padre Cícero, que sabia de tudo e num fez nada?

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Antônia – E ia fazer o quê?

Francisco – Ao menos me avisar

Antônia – Olhe, num fique assim, acabe essa geringonça, depois a gente volta pra casa

Francisco – Tem porque acabar nada não

Antônia – Claro que tem... E o povo, tu vai deixar que essa gente continue morrendo de sede e

de fome?

Francisco – Se morrer de fome, morrer de sede e morrer de outro jeito, dá tudo na mesma, tudo

é morte

Cena IV

Antônia – Olhe, eu não queria ter lhe contado isso

Francisco – e ia me deixar sem saber do acontecido?

Antônia – é que eu pensei que tu já sabia

Francisco – sabia... Ia saber disso como mulher, encangado aqui no sertão?

Antônia – Oxe! Num é tu que fala com tudo que é santo?

Francisco – Santo... Eu devia ter lhe ouvido

Antônia – Em quê?

Francisco – Quando tu disse que eu tava variando

Antônia – Não, mas agora eu acredito...

Francisco – Pois eu não acredito mais

Antônia – e por que isso agora?

Francisco – Ora mais, pois enquanto eu tava aqui no meio das brenhas, Deus levou minha mãe

pra terra dos pés juntos

Antônia – e tu pensava que tua mãe ia viver pra sempre?

Francisco – mãe é mãe, mãe num devia morrer nunca, pelo menos a minha não

Antônia – que é que tu quis dizer com isso?

Francisco – Neco.

Antônia – olhe se tu tava falando de minha mãe...

Francisco – Tua mãe tá viva, deixe o esbregue pra quando ela morrer

ELA DÁ AS COSTAS PARA ELE, MOSTRASSE EMBURRADA COM AS PALAVRAS DE

FRANCISCO

Francisco – Antônia?

Antônia – (ela não responde)

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Francisco – Antônia?

Antônia – (ela não responde)

Francisco – Antônia!

Antônia – O que é?

Francisco – Olhe me desculpa

Antônia – Não ouvi

Francisco – me desculpa, por ter falado da tua mãe

Antônia – tá certo

Francisco – ela pode ser o que for, mas é tua mãe

Antônia – melhor parar por aí, antes que tu me deixei tiririca da vida

Francisco – não, num fique não. Olhe eu senti tua falta

Antônia – e foi?

Francisco – foi sim, todo dia

Antônia – é tu disse...

Francisco – Oxe! Por que essa cara?

Antônia – que cara? Tem cara nenhuma

Francisco – lhe conheço, o que foi?

Antônia – tu diz que sentiu a minha falta, mas continuou aí embrenhado...

Francisco – foi culpa dessa promessa, eu tava era fora do meu juízo

Antônia – o que é que tu tá falando, homem?

Francisco – Eu devia tá variando, só pode é ser

Antônia – tu falou um livro e eu num entendi uma palavra

Francisco – tô dizendo que eu devia tá com a minha família, não tá embrenhado no oco do

mundo

Antônia – nisso aí tu tá certo

Francisco – no tempo que eu tava aqui, a pobre de minha mãezinha, tava indo pra junto de

Nosso Padrinho Padre Cícero

Antônia – só resta pedir que ele cuide bem dela

Francisco – é... E de que foi que ela morreu mesmo?

Antônia – de velhice

Francisco – Eita!

Antônia – é Chico ninguém se safa da morte

Francisco – é... A pobre já tava bem velhinha mesmo

Antônia – verdade, deve ter vivido muita coisa

Francisco – e... Aquela lá vai passar o dia todinho contando estória

Antônia – é desse jeito que se fala Chico

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Francisco – Como tu disse, num dá pra tapear a morte

Antônia – mas Deus sabe o que faz

Francisco – Oxe! Agora tu deu pra acreditar em Deus?

Antônia – Só disse aquele tudo porque tava tiririca

Francisco – com Deus?

Antônia – Não! Com um certo cabra que fugiu de casa

Francisco – Isso foi uma sandice sem tamanho

Antônia – de vera

Francisco – só de pensar que podia ter sido tu

Antônia – eu?

Francisco – Sim!

Antônia – tua mãe morreu de velhice

Francisco – de velhice, de morte morrida ou matada, dá tudo no mesmo, tudo é morte

Antônia – Valei-me meu São José

Francisco – eu não ia me perdoar

Antônia – mas num aconteceu nada... Uma pena pela tua mãe

Francisco – já era de se esperar

Antônia – talvez tenha sido melhor pra ela

Francisco – ah! Foi sim, a pobrezinha ia ficar aqui toda cheia das “dor” da idade

Antônia – então, homem, veja aí, só pode ter sido a mão de Deus

Francisco – ô Antônia, claro que foi Ele, quem mais...

Antônia – tô falando que isso tudo aconteceu pra tu aprender alguma coisa

Francisco – Oxe! E que coisa é essa?

Antônia – num sei, me diga o que tu aprendeu com esse acontecido

Francisco – aprender... Num aprendi nada, não

Antônia – nada?

Francisco – Neco. Mas vi que tu faz uma falta danada e que eu lhe tenho um amor que parece

que num se acaba nunca

Antônia – eu também

ELES SE ABRAÇAM DEPOIS DE ALGUNS INSTANTES ELES SE OLHAM E SE BEIJAM

Antônia – Chico e a tua geringonça?

Francisco – Deixe ela aí

Antônia – e tu vai largar tudo assim, sem se quer ver o que vai dar?

Francisco – agora falta pouco, Ele que arrume outro pra acabar o serviço

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Antônia – homem, mas e a tua promessa, teu sonho de ver teu povo poder ficar onde bem

quiser, sem ter que fugir da maldita seca

Francisco – eu tava era variando, se nem mesmo Deus conseguiu dar jeito no sertão...

Antônia – e esse num é o jeito dele fazer as coisas?

Francisco – ô mulher, eu vi que num tô muito de acordo com esse jeito

Antônia – ainda tá jururu por causa da morte de tua mãe?

Francisco – num tem jeito, por mais que a gente tenha no juízo que a vida é assim mesmo...

Antônia – eu entendo... Queria poder fazer alguma coisa

Francisco – Só de tu ter vindo aqui, já fez muito

Antônia – Só num vim antes, porque tu disse que ia voltar em um ano

Francisco – e esperou mais um ano por causa de quê?

Antônia – pus os pés na carreira assim que passou ainda mais tempo... Deixei os meninos com

a minha irmã e me danei por esse sertão

Francisco – tudo pra me encontrar...

Antônia – não, pra te levar de volta

Francisco – então vamos embora, meu serviço acabou

Antônia – não! Tu ainda não fez a chuva chover no sertão

Francisco – conversa! Todo mundo sabe que isso aqui num tem mais jeito

Antônia – besteira! O Homem deve tá lhe testando

Francisco – Como é isso, mulher?

Antônia – só pra ter certeza de que tu é mesmo o escolhido ou se é só mais um doido que fala

que vai fazer e acaba não fazendo nada

Francisco – minha fé se acabou, Antônia

Antônia – Num fale besteira Chico

Francisco – É besteira não, é só a verdade

Antônia – a verdade é que tu vai terminar essa estrovenga

Francisco – diabo de mulher tinhosa! (ele dá um tapa na máquina, ouve-se um estrondo como

se fosse um trovão)

Antônia – viu homem? A tua máquina vai prestar, tu só precisa acabar de fazer

Francisco – vai sim

Antônia – então se anime, parece até que não quer ver essa gente nadando em água da chuva

Francisco – Eu quero sim e muito, mas as mão que vão fazer isso não são as minhas

Antônia – não diga uma coisa dessas, porque isso num é verdade

Francisco – Antônia, essa sorte não é para Pedro

Antônia – É sim, Chico, tu tá jururu por causa de tua mãe...

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Francisco – E num é pra ficar? O Homem me pede uma coisa e nas minhas costas vai levando

embora a minha família

Antônia – tua mãe não era devota de Nosso Padrinho Padre Cícero?

Francisco – tão ou mais que tu

Antônia – então, Deus fez a benfeitoria de levar ela pra ficar junto do velho “Cíço”.

Francisco – é mesmo é?

Antônia – homem veja o acontecido por outro lado

Francisco – que lado? Lado de quê?

Antônia – o lado bom da história, tua mãe sempre quis conhecer o velho “Ciço” num é mesmo?

Francisco – Dizia a pobre que era o que ela mais queria na vida

Antônia – então, pois Deus atendeu o pedido de uma vida inteira

Francisco – E tinha precisão dela morrer?

Antônia – mas homem se Nosso Padrinho já se foi há muito tempo...

Francisco – é mesmo, num é?

Antônia – se é! Deus deu essa alegria a tua mãe, vai ver que até por conta do serviço que tu tá

prestando á Ele

Francisco – Vixe Maria! Eu num tinha me atentado á isso não

Antônia – então, Chico, acabe a máquina do Homem, pois Ele e nosso Padrinho Padre Cícero,

tão só lhe esperando

ELES TORNAM A TRABALHAR JUNTOS NA MÁQUINA, VÃO ENCAIXANDO PEÇAS,

APERTANDO PARAFUSOS E ROSQUEANDO PORCAS

Francisco – olhe seja lá o que foi lhe fez mesmo mudar de ideia

Antônia – foi que tu não disse antes que tinha feito promessa pro velho Ciço

Francisco – tá certo, só não fique dizendo essas coisas por aí

Antônia – por que não?

Francisco – Ora mais, porque o Homem pode se zangar

Antônia – e por que Ele haveria de se zangar com isso?

Francisco – Mulher, Deus é o chefe lá em riba, é Ele que manda, desmanda e comanda

Antônia – ainda não entendi que conversa é essa Chico

Francisco – Que Ele, o Homem, o Chefe, Deus... Pode num gostar dessa tua devoção por

Padre Cícero

Antônia – Tu acha?

Francisco – Num sei, mas melhor num arriscar

Antônia – Chico

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Francisco – O que foi?

Antônia – Eu tô com medo

Francisco – Oxe! Medo de quê?

Antônia – Deus costuma castigar as pessoas

Francisco – Isso é verdade

Antônia – então, Ele pode querer me castigar

Francisco – Por tu preferir recorrer á Padre Cícero que á Ele?

Antônia – É

Francisco – Num acredito não

Antônia – de vera?

Francisco – Oxe! Antônia, antes a devoção que a negação

Antônia – isso quer dizer o quê?

Francisco – Quer dizer que Deus acha melhor que tu seja devota de alguém de lá de riba que

não ser por ninguém ou ser devota do coisa ruim

Antônia – Valei-me!

Francisco – fique tranqüila. Padre José disse na missa que Deus só castiga quem merece

Antônia – quem merece?

Francisco – É! Gatuno, Matador, quem usa o nome dele em vão, mentiroso...

Antônia – mentiroso?

Francisco – É! O Padre disse que o Chefe num é chegado em mentira não

Antônia – Chico

Francisco – O que foi mulher?

Antônia – se eu não contar uma coisa pra uma pessoa é o mesmo que mentir?

Francisco – num sei não

Antônia – como num sabe?

Francisco – Oxe! Eu só fui em uma missa, o padre ficou de dizer mais dessas coisas na missa

da outra semana...

Antônia – Aí Meu Padrinho Padre Cícero!

Francisco – Antônia tu tá se sentindo bem?

Antônia – tô sim

Francisco – tem certeza?

Antônia – tenho sim!

Francisco – Antônia!

Antônia – tá tudo bem homem, só tô aperreada com os meninos

Francisco – Eita mulher danada! Três dias longe das crias...

Antônia – tô com o coração na mão de tanta saudade

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Francisco – Ô mulher, a gente já tá voltando, falta bem pouquinho

Antônia – Tá certo. E se esse trambolho não prestar?

Francisco – deixe de ficar agourando mulher!

Antônia – Num é agouro, mas o que vai ser se essa estrovenga num prestar?

Francisco – isso num vai acontecer, ela só precisa ficar pronta

Antônia – tu num me respondeu

Francisco – Oxe! Respondi sim, a bichinha há de prestar e trazer a chuva pra acabar com essa

seca maldita

Antônia – e se nada disso acontecer, tu vai ficar aqui pra fazer tudo do começo?

Francisco – eu fiz uma promessa...

Antônia – Chico me conte como foi esse teu sonho

Francisco – Padre Cícero apareceu e disse que Deus queria ter uma prosa mais eu

Antônia – foi aí que Deus apareceu?

Francisco – Nada, fiquei esperando um tanto, demorou um bocado

Antônia – vá pra parte em que Ele lhe falou da estrovenga

Francisco – Quando Ele apareceu, já tratou de me contar da tal da máquina, disse que tava

muito triste por conta do povo que morria no sertão

Antônia – Chico se avia homem! Vá pra parte que Ele lhe disse pra fazer a geringonça

Francisco – Ele me disse pra vir pra cá, nesse mesmo lugar onde nós estamos agora que desse

ponto ia acontecer o grande feito...

Antônia – a chuva ia chover no sertão?

Francisco – Isso mesmo

Antônia – e a promessa?

Francisco – O que é que tem?

Antônia – diga como foi!

Francisco – Oxe! Eu já num disse que prometi a Nosso Padrinho Padre Cícero que ia fazer a

máquina?

Antônia – Olhe aí! Tu prometeu que ia fazer não que ia fazer até ela prestar

Francisco – Que diabo de conversa é essa Antônia?

Antônia – Tô dizendo que se tu fizer o cacareco uma vez, já vai ter cumprido a tua promessa

Francisco – Oxe! E num foi o que eu disse?

Antônia – Não homem! Tô dizendo que mesmo que essa geringonça não preste tu vai ter

cumprido a tua promessa

Francisco – Antônia, já lhe disse que essa bichinha vai prestar

Antônia – e como é que tu tem tanta certeza?

Francisco – Ora mais! Pois se Deus, o próprio em toda sua santidade me disse

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Antônia – mas tu disse que errou da primeira vez

Francisco – e foi

Antônia – então, como sabe que num vai mais errar?

Francisco – Quando cheguei aqui, eu tava muito atroado

Antônia – atroado com o quê?

Francisco – era um aperto no coração que parecia que Deus ia me levar pra junto dele

Antônia – valei-me! E aí?

Francisco – Aí que era uma dor que parecia que num tinha fim

Antônia – Como é que tu fez pra isso passar?

Francisco – Eu mesmo nada

Antônia – E a dor, num foi embora?

Francisco – Foi embora só quando tu chegou

Antônia – e o que era essa dor?

Francisco – saudade

Antônia – Bóra terminar essa geringonça

Cena V

FRANCISCO E ANTÔNIA CONTINUAM ENCAIXANDO PEÇAS, ROSQUEANDO PORCAS...

ATÉ QUE ANTÔNIA PÁRA SUBTAMENTE O TRABALHO E VAI PARA O CANTO DO PALCO,

CHICO NÃO PERCEBE, ELA OLHA ALGUMAS VEZES PARA ELE TENTANDO CHAMAR A

SUA ATENÇÃO DE FORMA DISCRETA, NÃO OBTENDO SUCESSO

Antônia – Chico!

Francisco – Diz Antônia

Antônia – Eu tô pensando numa coisa

Francisco – Que coisa?

Antônia – Uma que tu disse ainda agora

Francisco – Desembucha mulher

Antônia – É verdade mesmo aquilo que tu disse sobre Deus?

Francisco – Tudo que ouvi sobre Deus, foi o Padre José que me falou

Antônia – Padre José é entendido nesses assuntos, não é?

Francisco – Eu achava que era

Antônia – Como assim achava?

Francisco – Depois que ele saiu por aí dizendo que eu sou santo e ainda levando uns trocados

com essa tapeação...

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Antônia – verdade, será que ele se esqueceu das coisas de Deus quando ficou abilolado?

Francisco – vai saber

Antônia – se foi assim, não dá pra levar a sério o que ele disse, não é mesmo?

Francisco – espere! O que foi que ele disse que não dá pra levar á sério?

Antônia – das pessoas que o Homem não gosta

Francisco – Valha-me Deus! Isso todo mundo sabe

Antônia – todo mundo não! Eu não sei!

Francisco – Nem tem como saber

Antônia – E por quê?

Francisco – Mas rapaz, tu num vai na igreja, num faz uma reza...

Antônia – como se eu indo na igreja, fosse encontrar Deus, sentado no banco dizendo o que ele

gosta e o que num gosta, como se fosse um desses artistas

Francisco – Quer saber, pra mim essa tua prosa é desculpa pra fugir do trabalho

Antônia – Eu não preciso de desculpa, quem fez a promessa foi tu, num fui eu

Francisco – Tá certo cada um que carregue a sua cruz, num é isso?

Antônia – é isso mesmo

Francisco – então, chega de prosa e me deixe terminar isso

ELE VAI PARA DETRÁS DA MÁQUINA, ANTÔNIA SENTA EM UMA PEÇA NA BOCA DE

CENA, FICA COM O QUEIXO APOIADO NAS MÃOS E OS COTOVELOS APOIADO NAS

COXAS, APÓS ALGUNS INSTANTES DE SILÊNCIO

Antônia – Mas como Deus sabe que alguém é mentiroso?

Francisco – Antônia, o Homem é Deus! Ele sabe de tudo

Antônia – mas mentira e verdade...

Francisco – Antônia, isso é muito fácil, se a pessoa não diz a verdade ela tá mentindo

Antônia – mas e se ela num diz nada, nem a verdade, nem uma mentira?

Francisco – Aí... Ela... Num sei

Antônia – “Num sei” é isso que tu tem pra dizer?

Francisco – Olhe, pra num ter erro, é melhor dizer a verdade

Antônia – Tu acha que Deus pode se confundir?

Francisco – Se confundir com o quê, mulher?

Antônia – Num sei, ficar sem saber o que faz com o mentiroso e com quem não diz nem a

verdade, nem inventa uma mentira e por isso dar o mesmo castigo pros dois

Francisco – Entendi, mas mentiroso é mentiroso e Deus num deve ter pena ao castigar esses aí

não

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Antônia – e se a pessoa, não diz nem a mentira e ...

Francisco – Esses são pior ainda

Antônia – e por quê?

Francisco – Como “por que”? Pois os cabra num tem decisão na palavra, se eu fosse o Chefe,

eu jogava tudo no mesmo balaio e castigava tanto o mentiroso, quanto esse sem decisão na vida

do mesmo jeito

Antônia – “de vera” tu é o santo, deve saber o que tá dizendo

Francisco – que é que tu disse aí?

Antônia – nada

Francisco – repete Antônia

Antônia – eu num disse nada

Francisco – disse sim!

Antônia – eu me esqueci que tu num gosta de ser chamado de santo, me desculpa eu pensei

que...

Francisco – Não foi isso, tu disse “de vera” e quando tu diz “de vera” é por que...

Antônia – porque alguma coisa de ruim aconteceu... Já sei disso

Francisco – desembucha

Antônia – eu num sei como lhe contar

Francisco – num pense muito não, só conte o que foi

Antônia – tu acha que se eu contar Deus vai se esquecer do meu castigo?

Francisco – Dependendo do que for, tu vai poder se entender com ele, frente a frente

Antônia – Ele vai aparecer aqui?

Francisco – Não, tu que vai aparecer por lá

Antônia – e como vai ser isso?

Francisco – Antônia, num se faça de besta, me diga logo o que é que tu tá me escondendo

Antônia – Tá certo. Tu deve conhecer o prefeito... O prefeito... Ele, ele teve lá em casa

Francisco – Que diabo o prefeito foi fazer em casa?

Antônia – foi comprar o nosso voto

Francisco – tu quis dizer foi PEDIR o nosso voto?

Antônia – não, foi comprar mesmo, ele deu pra todo mundo uma sacola de comida

Francisco – mas tu num disse que o sujeito num já era prefeito?

Antônia – é sim, mas pelo jeito ele queria continuar sendo

Francisco – e era isso que tu queria contar?

Antônia – Perainda (corruptela de espera ainda)... Tem mais. O prefeito quando chegou na

nossa casa, me ...

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Francisco – Nem precisa dizer mais nada, ele lhe buliu aquele safado, sem vergonha, mas eu

vou matar esse infeliz!

Antônia – Não, ele quis me dar dinheiro pra fazer aquelas coisas com ele

Francisco – Tu aceitou o dinheiro daquele safado, sua rapariga dos infernos!

Antônia – Chico

Francisco – Num fale mais comigo

Antônia – Mas Chico

Francisco – Eu já sei o que tu vai dizer...

Antônia – Homem me escute

Francisco – tu vai dizer que os meninos estavam passando fome, tu tava sem condição de

ajudar, tava necessitada

Antônia – isso é verdade...

Francisco – num diga, eu já sei, tu vai dizer que fez isso pros meninos num morrerem de fome

Antônia – é que...

Francisco – vai dizer também que a culpa foi minha por eu ter abandonado a minha família

Antônia – isso tu fez mesmo...

Francisco – e é verdade, se eu tivesse lá nada disso teria acontecido

Antônia – não mesmo, mas...

Francisco – mas eu não tava e a culpa só pode ser minha

Antônia – não...

Francisco – Agora tu tá tentando me tirar a culpa, mas ela é toda minha

Antônia – deixe disso...

Francisco – não, eu sou o culpado

Antônia – Chico!

Francisco – Me leva Meu Pai!

Antônia – Chico! (ELA DÁ UM TAPA NELE) Se acalme homem, olhe eu...

Francisco – Eu não quero saber de mais nada, vamos terminar a máquina e voltar pra casa

Antônia – mas Chico

Francisco – Eu já disse que num quero saber de mais nada

Antônia – eu só queria lhe dizer que...

Francisco – Num precisa, eu num quero saber de mais nada

Antônia – num é pra eu abrir minha boca então?

Francisco – Isso mesmo!

Antônia – tá certo

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ELES FICAM ALGUNS INSTANTES SEM SE FALAREM, SEMPRE TRABALHANDO NA

MÁQUINA, FRANCISCO COM MAIS AVIDEZ QUE ANTÔNIA

Antônia – Chico? (SILÊNCIO). Chico? (SILÊNCIO). Tu num vai me responder não?

Francisco – Tem precisão não

Antônia – Como num tem precisão? Eu vou ficar falando sozinha?

Francisco – Tu num quer ficar falando sozinha?

Antônia – Claro que não, nem endoidei ainda pra ficar cantando pro vento

Francisco – então, se aquiete

Antônia – isso é jeito de falar?

Francisco – na verdade nem tem o que falar

Antônia – a gente podia conversar sobre outra coisa

Francisco – agora tá me faltando ânimo

Antônia – e desde quando precisa de ânimo pra conversar?

Francisco – num teria precisão, mas uma pessoa estragou o meu dia

Antônia – uma pessoa estragou a minha vida e eu num tô de cara fechada

Francisco – quem vê até acha que isso é verdade

Antônia – eu nem vou voltar nessa conversa que tu já sabe o que eu penso

Francisco – tá certo

Antônia – melhor a gente mudar o rumo da prosa

Francisco – o melhor mesmo é a gente nem prosear

Antônia – diabo de homem tinhoso

Francisco – deixe de ficar botando boneco e me ajude a terminar a máquina

Antônia – ajudo é nada!

Francisco – como é?

Antônia – é isso mesmo, eu lhe ajudei o tanto que pude e em troca tu fica se fazendo de besta

Francisco – pois fique sabendo que quem me fez de besta foi a senhora, se embrenhando nos

lençóis de nossa cama com outro sujeito que não o seu marido

Antônia – deixe de besteira e me...

Francisco – lhe perdoar?

Antônia – não

Francisco – é isso mesmo, não vou... Como é?

Antônia – não tô lhe pedindo perdão

Francisco – Então é assim?

Antônia – é! É assim mesmo!

Francisco – pois tá certo

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Antônia – pois tá certo! (PAUSA)

Cena VI

Antônia – Falta muito pra essa estrovenga ficar pronta?

Francisco – Já tá pronta

Antônia – Como é?

Francisco – Se tu num tivesse ficado o tempo todo de prosa, teria percebido

Antônia – como eu vou perceber se mesmo essa coisa depois de pronta num parece com nada?

Francisco – E tu queria que parecesse com o quê?

Antônia – Com uma máquina de fazer chover

Francisco – E quantas máquinas de fazer chover, tu já viu nessa vida?

Antônia – eu mesma nenhuma, essa deve ser a primeira

Francisco – vai ver que é por isso que ela num se parece com nada

Antônia – se a máquina tá pronta, por que num tá chovendo?

Francisco – porque num tá ligada

Antônia – Então se havia homem, faça essa tranqueira funcionar

Francisco – num posso

Antônia – Deixe disso Chico!

Francisco – A última vez que eu tentei fazer essa bicha funcionar...

Antônia – Homem faça logo o que tu tem que fazer, pois eu não quero ficar a vida toda aqui

Francisco – Já disse que num posso

Antônia – Se num pudesse o Homem não teria vindo lhe dar esse serviço

Francisco – Se esqueceram de avisar pra Ele

Antônia – de avisar o quê Chico?

Francisco – Que eu não sirvo pra terminar essa geringonça

Antônia – Chico, isso que tu disse não faz sentido nenhum

Francisco – Antônia, o que não faz sentido...

Antônia – Homem pense bem...

Francisco – Antônia pense mais eu, se essa máquina não funcionar eu vou ter que começar

tudo outra vez

Antônia – mas Chico se...

Francisco – se num der certo, vou ter que ficar mais um ou dois anos no meio das brenhas

Antônia – Vala-me meu Padrinho Padre Cícero (usar a corruptela) E como vai ser?

Francisco – e eu que sei?

Antônia – tá me passando uma coisa aqui pela cabeça...

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Francisco – e o que é?

Antônia – tu tá teimando demais com essa história

Francisco – Antônia...

Antônia – Deixe eu terminar... Desde que eu cheguei, tu num sabe fazer outra coisa se não

botar defeito nas minhas ideias

Francisco – olhe só, é que...

Antônia – toda ideia que eu dou pra tu terminar essa maluquice, tu inventa alguma coisa pra se

desfazer dela e continuar entocado nesse fim de mundo

Francisco – invento coisa, invento é coisa nenhuma

Antônia – Inventa sim Chico e eu quero saber por que

Francisco – tu já tá variando Antônia?

Antônia – Variando, eu? Eu vou precisar contar a tua história?

Francisco – Não

Antônia – Então, desembucha

Francisco – num tem nada pra falar não

Antônia – tem sim e eu quero saber de tudo, tintim por tintim

Francisco – Pois eu vou lhe contar

Antônia – Pois então conte!

Francisco – Desde que eu vim parar nesse lugar que eu num penso em outra coisa que não em

voltar pra casa...

Antônia – e porque num voltou? Tá certo termine

Francisco – eu trabalhei nessa coisa, dia e noite, noite e dia. Quando eu pensei que tinha

conseguido, tive que começar tudo de novo

Antônia – tu deveria ter deixado isso de lado...

Francisco – é o que eu tô fazendo agora

Antônia – Não! Isso é diferente, é medo

Francisco – No fim dá tudo na mesma

Antônia – tu já fez o que tinha que fazer, agora só falta por essa coisa pra funcionar

Francisco – mas num é “só” isso é o mais importante

Antônia – então faça logo

Francisco – num posso

Antônia – Aaaah! Vamos Chico, me diga onde eu tenho que mexer pra isso poder funcionar

Francisco – Não! Nem pense em bulir nessa máquina

Antônia – Se tu num tem coragem pra ligar essa coisa...

Francisco – Se tu bulir nela e ela se quebrar vai ser pior ainda

Antônia – Eu não vou quebrar essa estrovenga, só vou ligar

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Francisco – Tá certo, gire essa...

Antônia – Girar o quê?

Francisco – Não dá Antônia!

Antônia – Chico deixe de ser mole

Francisco – Vala-me Deus! E se essa máquina num prestar?

Antônia – Se não prestar a gente faz outra

Francisco – Outra? Deus me livre, isso deu uma trabalheira danada, se eu tiver que fazer outra

dessa...

Antônia – pare de reclamar! E seja homem, tu num disse pra todo mundo da cidade que Deus

havia lhe escolhido? Então, não vá entregar o coro as varas

Francisco – É isso mesmo!

Antônia – Tu foi o escolhido

Francisco – Verdade, eu sou o escolhido!

Antônia – Agora ponha essa tranqueira pra fazer chover no sertão

FRANCISCO FAZ UM MOVIMENTO SECO DE QUE VAI LIGAR A MÁQUINA, MAS NO MEIO

DO MOVIMENTO DESISTE DA AÇÃO

Antônia – Diabo é isso Chico?

Francisco – Não é nada

Antônia – Então, ande ligue a bicha

ELE TENTA NOVAMENTE E MAIS UMA VEZ NÃO CONSEGUE COMPLETAR A AÇÃO

Antônia – o que foi agora?

Francisco – Já disse que não é nada

FRANCISCO SE AFASTA, SE SENTA NO CANTO LONGE DE ANTÔNIA, ELA SE APROXIMA

DELE DEVAGAR

Antônia – Chico!

Francisco – O que foi?

Antônia – Me conte o que tá acontecendo

Francisco – Já lhe disse...

Antônia – Não adianta me dizer que não é nada, eu lhe conheço

Francisco – é que... É que eu... Eu...

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Antônia – ande homem termine

Francisco – eu só tô acabrunhado

Antônia – acabrunhado com o quê? Tu acabou a tal máquina e assim que ela fizer o que tem

que fazer tu vai poder voltar pra casa

CHICO SAÍ DE ONDE ESTAVA E CAMINHA EM DIREÇÃO A MÁQUINA, FICA EM SILÊNCIO

POR ALGUNS INSTANTES ENQUANTO DESLIZA A MÃO SOBRE A MESMA

Antônia – Tu ainda tá com medo da estrovenga não prestar?

Francisco – Não é isso não

Antônia – Então me diga logo o que é, não me deixe nessa gastura

Francisco – é que eu vi tudo diferente

Antônia – tu tá falando de quê homem?

Francisco – eu vi na minha cabeça o dia que a máquina ia ficar pronta e ia fazer chover no meio

desse sertão de meu Deus

Antônia – e ela tá pronta, só falta tu deixar de tanto medo

Francisco – vi o dia que eu ia voltar pra casa pra descansar nos teus braços

Antônia – Chico isso tudo tá tão perto de acontecer

Francisco – Não, eu ia voltar por sua causa

Antônia – agora a gente vai voltar junto

Francisco – Mas eu não sei se quero isso

Antônia – Como tu num sabe se quer?

Francisco – Eu não sei se ainda sinto as mesmas coisas que eu sentia

Antônia – que conversa mais sem miolo

Francisco – eu tinha certo na minha cabeça e no meu coração que o amor que eu sentia por tu,

nunca ia se acabar

Antônia – e se acabou?

Francisco – que nem procissão que se desfaz quando chega no fim

Antônia – mas nosso fim ainda não chegou

Francisco – a gente já viveu uma ruma de coisa, mas tem uma hora que tudo se acaba

Antônia – quando foi que se acabou?

Francisco – quando tu botou outro no meu lugar

Antônia – mas eu não botei ninguém no teu lugar

Francisco – pior que eu nem posso lhe... Como é?

Antônia – é isso mesmo, é o que tô tentando lhe dizer já faz um bom tempo

Francisco – e a história do prefeito?

Page 31: PROCISSÕES - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/4216327.pdfCERTO PONTO PÁRA E OBSERVA FRANCISCO. EM DADO MOMENTO ELE NOTA SUA PRESENÇA. DURANTE

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Antônia – eu devia não lhe dizer nada

Francisco – Eita e por quê?

Antônia – tu ficou pensando que eu tinha me deitado com o prefeito

Francisco – foi o que tu me disse

Antônia – eu disse que ele tinha aparecido lá em casa

Francisco – e lhe dito que daria dinheiro pra se deitar com ele

Antônia – e quando foi que eu disse que tinha aceitado?

Francisco – Eita! Num disse mesmo não

Antônia – viu só...

Francisco – e por que é que tu num me disse logo que num tinha feito nada?

Antônia – porque tu num me deixou dizer nada, ficou resmungando, chorando os chifres que

num lhe botei

Francisco – Vala-me Deus, é como se eu tivesse tirado um peso da minha cabeça

Antônia – Eu nunca que ia fazer uma coisa dessas, num lhe trocaria por ninguém, nem por

dinheiro nenhum

Francisco – num sei onde eu tava com as ideias

Antônia – esqueça! Ponha logo esse cacareco pra funcionar

Francisco – É já!

A MÁQUINA COMEÇA A FAZER UM BARULHO, SE MEXE POR COMPLETO E DEPOIS DE

ALGUNS INSTANTES PÁRA

Antônia – O que foi que aconteceu?

Francisco – É só um tantinho, eu já vou ajeitar

A MÁQUINA VOLTA A FAZER BARULHOS E A MEXER-SE NOVAMENTE, PORÉM DEPOIS

DE ALGUNS INSTANTES ELA DESLIGA.

Antônia – Chico, o que foi?

Francisco – num tá prestando

Antônia – e num tá prestando por quê?

Francisco – porque num tá fazendo o que devia fazer

Antônia – E o que é que ela devia fazer?

Francisco – Eu não sei, acho que devia fazer chover

Antônia – Vala-me meu Padrinho Padre Cícero

Francisco – Que desgraceira

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Antônia – Agora a gente vai ter que fazer tudo de novo?

Francisco – a gente não, eu

Antônia – eu vou ficar do teu lado

Francisco – mas isso vai levar uma ruma de tempo

Antônia – eu não tenho pressa

Francisco – meu coração e minha cabeça tão certos de que o que eu sinto num vai se acabar

tão cedo

Antônia – eu espero

A MÁQUINA COMEÇA A SE MEXER E A FAZER BARULHO, CHICO E ANTÔNIA SE

APROXIMAM E A OBSERVAM COM ESPERANÇA DE QUE ELA TRAGA A CHUVA PARA O

SERTÃO, MAS ELA APÓS ALGUNS INSTANTES PÁRA DE FUNCIONAR, OS DOIS

MOSTRAM PROFUNDA DECEPÇÃO, A LUZ CAÍ LENTAMENTE, AS CORTINAS SE FECHAM.

A CORTINA SE ABRE APÓS UM BREVE MOMENTO, A PLATEIA SE MANIFESTA E A

MÁQUINA VOLTA A FUNCIONAR, UMA CHUVA DE LANTEJOULA CAÍ SOBRE CHICO,

ANTÔNIA E O PÚBLICO.

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MÚSICA PARA O FINAL;

CHOVER – O CORDEL DO FOGO ENCANTADO

(Composição: Lirinha; Clayton Barros)

"O sabiá no sertão

Quando canta me comove

Passa três meses cantando

E sem cantar passa nove

Porque tem a obrigação

De só cantar quando chove”

Chover, chover

Valei-me Ciço o que posso fazer

Chover, chover

Um terço pesado pra chuva descer

Chover, chover

Até Maria deixou de moer

Chover, chover

Banzo Batista, bagaço e bangüê!

Chover, chover

Cego Aderaldo peleja pra ver

Chover, chover

Já que meu olho cansou de chover

Chover, chover

Até Maria deixou de moer

Chover, chover

Banzo Batista, bagaço e bangüê!

Meu povo não vá simbora

Pela Itapemirim

Pois mesmo perto do fim

Nosso sertão tem melhora

O céu tá calado agora

Mais vai dar cada trovão

De escapulir torrão

De paredão de tapera

Bombo trovejou a chuva choveu

Choveu, choveu

Lula, Calixto virando Mateus

Choveu, choveu

O bucho cheio de tudo que deu

Choveu, choveu

suor e canseira depois que comeu

Choveu, choveu

Zabumba zunindo no colo de Deus

Choveu, choveu

Inácio e Romano meu verso e o teu

Choveu, choveu

Água dos olhos que a seca bebeu

Quando chove no sertão

O sol deita e a água rola

O sapo vomita espuma

Onde um boi pisa se atola

E a fartura esconde o saco

Que a fome pedia esmola

Seu boiadeiro por aqui choveu

Seu boiadeiro por aqui choveu

Choveu que amarrotou

Foi tanta água que meu boi nadou

FIM

Fundação Biblioteca Nacional

Nº do Registro: 549.167 Livro: 1.046 Folha: 5

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