- 1 - Processos Endocíticos e Exocíticos nas Sinapses Faria, Joaquim; Loureiro, Mónica; Menezes, Ana; Santos, Cristiana Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, PORTUGAL Resumo: A libertação de neurotransmissores e a transmissão de informação por sinapse química requer todo um conjunto de endocitoses e exocitoses coordenadas. Quando um potencial de acção chega a uma terminação nervosa, o Ca 2+ flui para dentro desta através de canais de cálcio dependentes de voltagem, dando origem à libertação de neurotransmissores por exocitose das vesículas sinápticas. Paralelamente, ocorre uma renovação do número de vesículas sinápticas existentes no terminal nervoso por endocitose. Este processo permite criar um pool de vesículas para que, aquando da chegada de um novo potencial de acção, possa ocorrer nova libertação de neurotransmissores. A maquinaria celular envolvida desempenha um papel crucial no funcionamento deste processo. A calmodulina e a sinaptotagmina são ambas sensores de cálcio, sendo que a primeira actua nos processos endocíticos e a segunda nos exocíticos. O complexo de proteínas SNARE funciona como mediador da exocitose sináptica, ao passo que a sinaptofisina é necessária para que a endocitose ocorra de modo eficiente. Outras proteínas, como as Rab e o complexo exocisto, também exercem funções importantes no decorrer da estimulação neuronal. Todo este ciclo é desencadeado pelo cálcio: por um lado, este exerce um efeito regulador de retroacção negativa dos processos endocíticos; por outro, é este que dá origem à fusão das vesículas sinápticas por activação da sinaptotagmina. Introdução: A transmissão por sinapse química representa a principal forma de comunicação neuronal entre células e está na base de todas as funções do sistema nervoso, desde a percepção sensorial à memória. O processo inicia-se com a libertação de uma substância transmissora do neurónio pré-sináptico, como consequência de um potencial de acção. Segue- se a difusão desta substância ao longo da fenda sináptica extracelular que, posteriormente, se vai ligar a receptores localizados na membrana da célula pós-sináptica e induzir, assim, alterações nas propriedades eléctricas da mesma. Uma sinapse química de vertebrados particularmente bem estudada é a junção neuromuscular. São os processos endocíticos nos terminais nervosos que possibilitam a existência de um pool de vesículas para a libertação de neurotransmissores a partir de um terminal pré- sináptico. Após ocorrer a libertação de neurotransmissores, é necessário que o número de vesículas no terminal nervoso seja renovado, para que novas vesículas estejam disponíveis em
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Processos Endocíticos e Exocíticos nas Sinapses
Faria, Joaquim; Loureiro, Mónica; Menezes, Ana; Santos, Cristiana Departamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, PORTUGAL Resumo:
A libertação de neurotransmissores e a transmissão de informação por sinapse química
requer todo um conjunto de endocitoses e exocitoses coordenadas. Quando um potencial de
acção chega a uma terminação nervosa, o Ca2+ flui para dentro desta através de canais de
cálcio dependentes de voltagem, dando origem à libertação de neurotransmissores por
exocitose das vesículas sinápticas. Paralelamente, ocorre uma renovação do número de
vesículas sinápticas existentes no terminal nervoso por endocitose. Este processo permite criar
um pool de vesículas para que, aquando da chegada de um novo potencial de acção, possa
ocorrer nova libertação de neurotransmissores. A maquinaria celular envolvida desempenha
um papel crucial no funcionamento deste processo. A calmodulina e a sinaptotagmina são
ambas sensores de cálcio, sendo que a primeira actua nos processos endocíticos e a segunda
nos exocíticos. O complexo de proteínas SNARE funciona como mediador da exocitose
sináptica, ao passo que a sinaptofisina é necessária para que a endocitose ocorra de modo
eficiente. Outras proteínas, como as Rab e o complexo exocisto, também exercem funções
importantes no decorrer da estimulação neuronal. Todo este ciclo é desencadeado pelo cálcio:
por um lado, este exerce um efeito regulador de retroacção negativa dos processos
endocíticos; por outro, é este que dá origem à fusão das vesículas sinápticas por activação da
sinaptotagmina.
Introdução:
A transmissão por sinapse química representa a principal forma de comunicação
neuronal entre células e está na base de todas as funções do sistema nervoso, desde a
percepção sensorial à memória. O processo inicia-se com a libertação de uma substância
transmissora do neurónio pré-sináptico, como consequência de um potencial de acção. Segue-
se a difusão desta substância ao longo da fenda sináptica extracelular que, posteriormente, se
vai ligar a receptores localizados na membrana da célula pós-sináptica e induzir, assim,
alterações nas propriedades eléctricas da mesma. Uma sinapse química de vertebrados
particularmente bem estudada é a junção neuromuscular.
São os processos endocíticos nos terminais nervosos que possibilitam a existência de
um pool de vesículas para a libertação de neurotransmissores a partir de um terminal pré-
sináptico. Após ocorrer a libertação de neurotransmissores, é necessário que o número de
vesículas no terminal nervoso seja renovado, para que novas vesículas estejam disponíveis em
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quantidade suficiente na ocorrência de um novo potencial de acção. Deste modo, é garantida
uma libertação eficiente do neurotransmissor.
A percepção da possível existência de dois tipos de endocitose remonta aos anos 70,
altura em que se iniciaram os estudos sobre a renovação das vesículas nos terminais nervosos.
Desde aí tem-se vindo a tentar perceber as diferenças entre os dois modelos endocíticos: a
endocitose mediada por clatrina e a endocitose do tipo kiss and run. As diferenças entre
ambos estão relacionadas não só com o mecanismo envolvido, como também com o local de
acção – locais activos ou nas proximidades –, e ainda com o tipo de proteínas envolvidas em
cada um dos processos, requerendo a endocitose mediada por clatrina uma maior maquinaria
proteica do que a de tipo kiss and run (Morgan J. R. et al., 2002).
Um outro processo fundamental para a transmissão sináptica é a exocitose, que define
a fusão de vesículas com a membrana plasmática da célula com consequente libertação dos
seus conteúdos. Este mecanismo constitui o passo final da via de secreção que se inicia,
geralmente, no retículo endoplasmático, passa pelo complexo de Golgi e termina no exterior
da célula. Tem como funções a adição de membrana extra e dos seus constituintes à
membrana plasmática, a partir das membranas das vesículas e, ainda, a libertação dos
conteúdos das mesmas no espaço extracelular (Lin & Scheller, 2000). A exocitose diferencia-se
em duas vias: exocitose constitutiva, que visa a manutenção dos constituintes da membrana
plasmática e do ambiente extracelular, ocorrendo na ausência de sinais externos; e exocitose
regulada que, ao contrário da anterior, não só é limitada a células que desempenham funções
mais específicas, como também se dá em resposta a certos estímulos, tal como o aumento da
concentração de cálcio (Lin & Scheller, 2000). É a partir deste tipo de exocitose que se dá a
libertação dos neurotransmissores nas sinapses.
A fusão exocítica de vesículas envolve a formação de um poro de fusão, canal este que
atravessa ambas as membranas plasmática e vesicular, e possibilita a libertação do conteúdo
para o exterior da célula. Todo este processo, desde a formação e transporte das vesículas
sinápticas à sua fusão, pode ser dividido em cinco passos: trafficking; tethering; docking;
priming e fusion. A maquinaria molecular interveniente é, de igual modo, de extrema
importância, e inclui pequenas GTPases das subfamílias Ral, Rab e Rho, que regulam os
processos da formação, tráfego e fusão de vesículas; o complexo exocisto, que participa no
encaminhar das vesículas para as zonas específicas de fusão na membrana plasmática; e as
proteínas SNARE, fundamentais na fusão vesicular. É a interacção entre estes dois últimos
intervenientes, SNAREs e exocisto, que permite a fusão das membranas nos domínios alvo da
membrana plasmática da célula, durante o processo de exocitose.
Neste artigo fazemos uma abordagem geral acerca dos processos endocíticos e
exocíticos fundamentais nas sinapses, descrevendo as variedades de mecanismos existentes
ao explorarem-se as diferenças fisiológicas que levam à ocorrência de cada. A importância e
modo de regulação da maquinaria molecular é outro tópico essencial, destacando-se as
proteínas sinaptofisina e calmodulina no caso da endocitose, e as SNAREs e sinaptotagmina na
exocitose. O papel fundamental do cálcio na regulação destes mesmos processos e, ainda, os
vários passos em que se desenrolam são igualmente desenvolvidos. Em suma, tentámos que o
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nosso trabalho fosse o mais útil possível para a compreensão do tema como um todo e que
abordasse uma grande variedade de assuntos dentro da Bioquímica.
Introdução histórica:
As primeiras demonstrações de endocitose em terminais sinápticos foram realizadas
no início dos anos 70 por Heuser e Reese e pelo grupo de Ceccarelli. Nestes estudos, os
terminais sinápticos eram estimulados vigorosamente, de modo a conseguir causar o maior
número possível de fusão das vesículas com o terminal pré-sináptico. O que se observou foi
que, apesar de o número de eventos exocíticos ter sido muito elevado, apenas se deu uma
eliminação parcial do número de vesículas. Esta observação levou a concluir que o número de
vesículas no pool deve ter sido renovado de modo a responder à actividade exocítica. Porém,
apesar de ambos os grupos usarem métodos idênticos e o mesmo tipo de sinapses, foram
obtidas diferenças nos resultados referentes aos tempos, local e identidades moleculares.
Enquanto o grupo de Heuser e Reese defendia que a endocitose ocorria a partir de
vesículas revestidas, de modo relativamente lento e com ocorrência distante dos locais activos
das sinapses, o grupo de Ceccarelli defendia que não era necessária a formação de vesículas
revestidas, sendo o processo relativamente rápido e ocorrendo nas zonas activas.
No final dos anos 70 e 80, a investigação por parte de ambos os grupos incidiu nos
tempos envolvidos no processo, tendo sido também realizada em paralelo alguma
investigação sobre o local de acção no neurónio. Nos anos 80, outros grupos começaram
também a desenvolver estudos nesta área, tendo sido nos anos 90 que houve uma maior
incidência em estudos sobre a importância relativa de cada tipo de endocitose e as condições
que os favorecem, os mediadores proteicos requeridos para cada um dos modelos e os passos
do processo endocítico em que estão envolvidos. (Morgan J. R. et al., 2002).
Quanto ao processo de exocitose, os primeiros estudos começaram a ser
desenvolvidos na década de 50, maioritariamente ao nível neuronal, com a transmissão de
sinapses químicas. Por essa altura surgiu a ideia de se explicar a libertação de acetilcolina,
observada na junção neuromuscular, com a existência de vesículas sinápticas (Fatt & Katz,
1952). Contudo, os avanços iniciais nesta área, com recurso a técnicas como a electrofisiologia
e microscopia electrónica, foram sucedidos por um período de estagnação, tendo as mesmas
atingido todo o seu potencial.
Com o avançar dos anos, sobretudo por volta da década de 90, foram surgindo novas
técnicas para a medição e controlo da concentração pré-sináptica de cálcio com o uso de
corantes fluorescentes e compostos fotossensíveis que se ligam ao Ca2+, bem como o
aparecimento de métodos para simular a difusão do mesmo no neurónio pré-sináptico. Foram
também desenvolvidas novas técnicas para monitorar a secreção, tais como medições da área
da membrana pré-sináptica através da sua capacitância e, ainda, da absorção e libertação com
corantes fluorescentes em vesículas endocitadas (Zucker R, 1996), bem como a aplicação da
engenharia genética e biologia de membranas a proteínas que participam não só na fusão de
vesículas sinápticas, como também em outros passos do tráfego das mesmas (targeting,
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docking e priming). Modificações a cada um destes passos podem alterar a força das conexões
sinápticas e participar assim na plasticidade sináptica (Lin & Scheller, 2000).
A técnica de patch clamp permitiu, entretanto, a análise electrofisiológica de tecidos
outrora inacessíveis. Desta forma, o processo de exocitose foi sendo sucessivamente elucidado
ao longo dos anos, estabelecendo-se agora como uma nova fronteira na investigação biológica
(Zucker R, 1996).
Processos Endocíticos:
1- Comparação entre endocitose rápida (“Kiss and run”) e endocitose lenta (mediada por
clatrina):
- Diferenças de mecanismo de acção, mediadores proteicos, local de acção no neurónio,
rapidez de acção:
Existem dois tipos de processos endocíticos com características distintas nas sinapses,
a endocitose mediada por clatrina e a endocitose rápida denominada por kiss and run.
Pelo tipo de endocitose kiss and run as vesículas apenas se fundem de modo
transiente e incompleto com a membrana plasmática, por meio de formação de um poro de
pequenas dimensões (Granseth B. et al., 2007), sendo posteriormente recuperadas quase
instantaneamente como estruturas intactas a partir da zona activa (Jung N. & Haucke V.,
2007).
Por outro lado, a endocitose mediada por clatrina, ocorre após fusão completa da
vesícula com a membrana, sendo um mecanismo bastante mais lento e que necessita da
presença de várias proteínas acessórias que se ligam à membrana antes de ocorrer a
endocitose (Zhu Y. et al., 2009). Ainda em contraste com a endocitose do tipo kiss and run, a
endocitose mediada por clatrina vai ocorrer não nas zonas activas, mas sim nas suas
proximidades (Brodin L. et al., 2000) (Morgan J. R et al., 2002).
Verificou-se que os dois processos de endocitose ocorrem em locais diferentes nos
terminais sinápticos. Enquanto que a endocitose rápida é observada nas zonas activas, a
endocitose mediada por clatrina ocorre em regiões usualmente conhecidas por zonas
periactivas que rodeiam as zonas activas e estendem-se cerca de um micrometro para além do
limite destas (Brodin L. et al., 2000).
Nestas zonas activas onde vesículas estão prontas para ser libertadas durante a
exocitose, também é observada a endocitose kiss and run, que acontece imediatamente após
a abertura do poro de fusão durante a exocitose, sendo recuperada a membrana da vesícula
sem a necessidade de recorrer a uma maquinaria mais complexa. Sendo então nas zonas
periactivas onde se concentra toda a maquinaria necessária para a endocitose mediada por
clatrina (Jarousse N. et al., 2001).
Na endocitose mediada por clatrina, a formação de uma vesícula revestida é um
processo altamente cooperativo e sob forte controlo regulatório, podendo dividir-se em 4
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fases: recrutamento do revestimento de clatrina, maturação, fissão da vesícula e libertação do
revestimento.
Os componentes do revestimento das vesículas servem principalmente para formar
uma membrana curva. São estes a clatrina, que reveste toda a vesícula, a AP-2, (AP – adaptor
protein) que associa a clatrina à membrana lipídica, e a AP-180, que deverá estar envolvida na
regulação do tamanho das vesículas e também possui domínios de reconhecimento de outras
proteínas.
Proteínas acessórias como a epsina, a sinaptotagmina e a endofilina vão sendo
recrutadas à medida que a invaginação aumenta de tamanho e de curvatura ajudando assim à
sua maturação. Antes da fissão a invaginação adopta uma conformação característica em que
existe um estrangulamento da membrana por acção da dinamina, julga-se que vai
constringindo ou esticando esta região da membrana até que finalmente se rompa e dê
origem a uma vesícula revestida de clatrina.
Poucas são as vesículas com o revestimento de clatrina que são detectadas em
terminais sinápticos o que leva a presumir que estas são rapidamente destituídas da sua
camada exterior. Pensa-se que a auxilina e a sinaptojanina tenham uma grande importância
neste processo afectando a estabilidade das ligações entre clatrina e AP-2 facilitando a
remoção destes (Takei K. & Haucke V., 2001).
Os mecanismos inerentes à endocitose rápida kiss and run, ainda não são totalmente
compreendidos e foram menos estudados do que o outro tipo de endocitose.
Estudos recentes indicam que os dois tipos de endocitoses são regulados pela mesma
cascata de sinalização cálcio/calmodulina/calcineurina e apontam para uma necessidade da
dinamina para que qualquer endocitose possa ser realizada. Estas observações revelam que
são partilhados mecanismos semelhantes nas fases de iniciação e de fissão evidenciando
também que a endocitose rápida não necessita de uma maquinaria proteica tão complexa pois
as vesículas já não precisam de se libertar de um revestimento intrincado como as
provenientes de uma endocitose lenta (Sun T. et al., 2010).
Fig. 1 - Representação esquemática das várias fases da endocitose mediada por clatrina e respectivas imagens por