Top Banner
JULIANA BELLINI MEIRELES PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internet CAMPINAS, 2015
138

PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Jul 06, 2020

Download

Documents

dariahiddleston
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

JULIANA BELLINI MEIRELES

PRIMAVERA PERIFÉRICA:

Discursos da Periferia na Internet

CAMPINAS,

2015

Page 2: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

ii

Page 3: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Estudos da Linguagem

Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

(Labjor)

JULIANA BELLINI MEIRELES

PRIMAVERA PERIFÉRICA:

Discursos da Periferia na Internet

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto

de Estudos da Linguagem da Universidade

Estadual de Campinas para a obtenção de título de

Mestre em Divulgação Científica e Cultural na

área de Divulgação Científica e Cultural.

Orientadora: Profa. Dra. Mónica Graciela Zoppi Fontana

CAMPINAS,

2015

iii

Page 4: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

iv

Page 5: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

v

Page 6: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

vi

Page 7: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

RESUMO

Esta pesquisa visa entender o modo como o poeta Sérgio Vaz se constitui enquanto sujeito e autor

nas redes sociais. Tal abordagem será discutida a partir de textos selecionados de autoria do poeta

e disseminados por ele no Twitter e Facebook. A orientação teórica que guiará os estudos será a

Análise do Discurso de perspectiva francesa e entre os aspectos observados estão os discursos

sobre trajetória de vida, direitos fundamentais ao ser humano, tradições e crenças na literatura, a

memória ressentida e o projeto pedagógico da literatura.

Palavras-chave: Literatura Marginal; Literatura e Internet; Análise do Discurso; Redes Sociais;

Sujeito

ABSTRACT

This research aims to understand how the poet Sergio Vaz is constituted as subject and author on

social networks. Such approach is going to be discussed from selected texts by the poet that he

disseminates on Twitter and Facebook. The theoretical orientation that guides the study is the

Discourse Analysis from the French perspective. In addiction, the observed aspects are the

discourses about life course, fundamental rights to human, traditions and beliefs in the literature,

the resentful memory and the pedagogical project of the literature.

Key Words: Marginal literature; Literature and Internet; Discourse analysis; Social networks;

Subject (Discourse analysis)

vii

Page 8: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

viii

Page 9: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................1

CAPÍTULO 1 – ANÁLISE DO DISCURSO....................................................................5

1.1. Sujeito, História e Linguagem...........................................................................6

1.2. Dispositivo de Análise.......................................................................................9

CAPÍTULO 2 - NOVAS TECNOLOGIAS....................................................................17

2.1. Internet e as Reconfigurações do Espaço........................................................20

2.2. A Internet Como Modificadora das Relações Sociais.....................................22

2.2.1. Twitter...............................................................................................23

2.2.2. Facebook...........................................................................................27

2.3. Internet e Hipertexto........................................................................................31

2.4. Internet e Política.............................................................................................33

2.4.1. Manifestações na Internet.................................................................35

2.5. Internet e Literatura.........................................................................................43

CAPÍTULO 3 - LITERATURA E MARGENS.............................................................49

3.1. Viagem pelas Margens....................................................................................51

3.2. O Aparecimento da Periferia...........................................................................58

3.3. Conexões.........................................................................................................60

3.4. Literatura Marginal: Questões de Terminologia.............................................61

3.5. Alguns Escritores em Cena.............................................................................64

3.5.1. Ferréz...............................................................................................64

3.5.2. Alessandro Buzo..............................................................................68

3.5.3. Sacolinha..........................................................................................71

3.5.4. Allan da Rosa...................................................................................73

3.5.5. Sérgio Vaz........................................................................................74

ix

Page 10: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

3.6. Cooperifa..........................................................................................................76

3.6.1. Ações Comunitárias...........................................................................78

a) Várzea Poética.............................................................................78

b) Cinema na Laje............................................................................79

c) Chuva de livros............................................................................80

d) Ajoelhaço.....................................................................................81

e) Poesia no Ar.................................................................................82

f) Semana de Arte Moderna da Periferia.........................................83

CAPÍTULO 4 - LITERATURA E VIDA........................................................................85

4.1. O Lugar do Artista e o Nome de Autor............................................................86

4.2. O Público, Efeito-Leitor e Circulação de Sentidos..........................................99

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................107

Referências Bibliográficas..............................................................................................111

x

Page 11: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Dedicatória

Aos meus pais Sérgio A. C. Meireles e Norma B. Meireles que me passaram valores, me

ensinaram a importância de não parar de estudar e sempre estiveram comigo, ainda que distantes.

À minha avó paterna Wanda C. Meireles pelo importante apoio.

Aos meus tios Caetano de Souza e Edina E. C. M. Souza pelo suporte em momentos tão

difíceis e por serem uma inspiração na minha carreira.

À minha tia Ana M. L. Bellini (in memorian).

Ao Ramon, por sempre acreditar, pelo companheirismo e pela incondicionalidade da

alegria.

xi

Page 12: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

xii

Page 13: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Agradecimentos

Ao Ramon, pela sua paciência e amor no período em que terminava este trabalho, bem

como, pela ajuda nesta dissertação, ideias nos momentos de crise e pela revisão final. Aos meus

pais, Sérgio e Norma, que durante momentos tumultuados de nossa vida, se desdobraram para dar

todo apoio que podiam nos meus estudos. À minha avó Wanda e meus tios Caetano, Edina,

Amaury e Ana (in memorian) pela ajuda sempre pronta e inspiração. Aos amigos Carolina

Teixeira e Paulo César, que sabendo da importância de nunca parar de estudar, flexibilizaram meu

horário de trabalho, fator determinante para que eu pudesse chegar até aqui. Aos professores da

graduação, Gilvan Procópio por me ensinar a gostar de literatura, Alexandre Faria pelas

oportunidades, Terezinha Scher pelos conselhos. À minha orientadora Mónica Zoppi pela

paciência em um momento decisivo de minha vida e pelo suporte. À professora Carolina Magaldi

pela amizade, pelo amparo e pelas importantes contribuições e ajuda nos momentos de dúvida. À

professora Cristiane Dias, pelas importantes considerações na qualificação, ao professor Rafael

Evangelista por aceitar o convite inesperado. A todos do Labjor, representados na figura da

professora Germana Barata, pelas oportunidades em momentos difíceis do primeiro ano de curso.

Aos professores Helio Sôlha e Adilson Ruiz, que abriram as portas do PED para mim. Aos meus

colegas do mestrado André, Graziele, Maysa, Carina e Marcos, pelo companheirismo e

colaboração durante o curso do mestrado e nos momentos difíceis que enfrentei.

xiii

Page 14: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

xiv

Page 15: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

“People think dreams aren't real just because they aren't made of matter, of particles.

Dreams are real. But they are made of viewpoints, of images, of memories and puns and lost

hopes.”

Neil Gaiman

xv

Page 16: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

xvi

Page 17: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

INTRODUÇÃO

Segundo Deleuze (1997), a literatura é como um empreendimento de saúde num mundo

que se apresenta como um conjunto de sintomas, cuja doença se confunde com o homem. Trata-

se de uma medida de saúde quando invoca para abrir um sulco em si “uma raça bastarda”

(Deleuze, 1997, p.15), oprimida, que não para de agitar-se sob dominações. A literatura é ainda a

arte de criar histórias, provocar reações de amor, ódio, espanto ou curiosidade: há quem se

identifique com uma frase no muro das travessas urbanas e, assim, o ato de ler aproxima o

homem de uma nova realidade, criando um diálogo entre o leitor e o texto, abrindo as portas para

um conhecimento infinito de possibilidades.

Atualmente estamos vivendo um dos períodos literários mais efervescentes das últimas

décadas com o surgimento de vozes vindas das periferias das grandes cidades. Heloísa Buarque

de Hollanda (2011) apresenta essa manifestação cultural como exemplo de resistência e produção

de novos sentidos políticos nos países globalizados em desenvolvimento, porque propõe

mudanças estruturais no sentido de sua criação e divulgação, principalmente via internet.

Pretendemos dissertar acerca do Poeta Sérgio Vaz e da Cooperifa, como exemplos em que a

própria noção de cultura, e por tabela a de literatura, é forçada a repensar seus parâmetros e até

mesmo sua função social, possibilitando a produção de sentidos que fascinam, como afirma

Foucault (2001), pelo que “se propõem a ser” (Foucault, 2001, p.234). Sérgio Vaz foi o poeta

selecionado porque, além de estar a frente da Cooperifa, um projeto que pode ser considerado

pioneiro e bem-sucedido no que se refere a ações de manifestação cultural na periferia de São

Paulo, é também um dos escritores mais ativos nas redes sociais. Sua poesia também se destaca

devido às mensagens de luta e felicidade, que são desenvolvidas de maneira peculiar em relação

aos demais autores estudados.

O objetivo dessa pesquisa então é abordar como o autor escolhido para análise se constitui

como sujeito ao englobar artes e letras, direitos fundamentais ao ser humano, modos de vida,

tradições e crenças na literatura sendo também ator no espaço que retrata nos textos com sua

trajetória de vida, a memória ressentida e o projeto pedagógico da literatura. Tal abordagem será

verificada em textos divulgados nas redes sociais, visando entender as relações do poeta com a

violência urbana, a carência de bens e equipamentos culturais, o cotidiano e as relações pessoais,

1

Page 18: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

tendo a internet como ferramenta de apoio à divulgação cultural promovida pelo poeta. A

pesquisa será consituída por quatro capítulos.

No primeiro capítulo será apresentado o dispositivo metodológico a ser utilizado na

dissertação: Análise do Discurso da perspectiva francesa. A escolha de tal teoria se baseia no

objetivo de não somente compreender a mensagem do poeta Sérgio Vaz e da Cooperifa com os

poemas divulgados nas redes sociais, mas reconhecer qual é o seu sentido, ou seja, o seu valor no

contexto da periferia nos dias atuais. Sujeito, história e linguagem serão conceitualizados sob o

embasamento de autores tais como Eni Orlandi (1983, 1995, 1996, 1997, 1998, 2005, 2007 e

2012) e Focault (1973, 1980, 1985, 1987, 1995, 2001), em diferentes obras, dentre outros.

O segundo capítulo pretende apresentar o suporte de divulgação mais popular da literatura

produzida na periferia: a internet. Introduziremos a origem da rede mundial de computadores e

diferenciaremos suas fases (estática, dinâmica e semântica), de modo a relacionar conceitos que

nos fazem entender seu funcionamento nos dias atuais. Os conceitos utilizados se embasam em

obras de autoes como Levy (1997, 1998), McLuhan (1972) e Prigogine (1996). Abordaremos

temas para a discussão, tais como a modificação das noções de espaço por meio da rede e as

reconfigurações das relações sociais, com enfoque nos sistemas que serão utilizados na análise da

divulgação dos poemas escolhidos: as populares redes sociais Twitter e Facebook, além das

relações entre internet e linguagem, permeando os conceitos hipertextuais. Também serão

tratadas questões referentes às relações da internet com a política, a literatura e a periferia.

Em continuidade, no terceiro capítulo abordaremos a Literatura Brasileira. Inicialmente,

traçaremos um breve histórico desde o final da década de 60, explicando as relações do povo com

a literatura e a tomada da palavra poética como instrumento de poder. Passaremos então pelo

Tropicalismo, movimento no qual a resistência se daria pela valorização dos aspectos marginais

das minorias urbanas. Percorreremos o Pós-Tropicalismo, abordando a produção cultural como

um modo de agressão ao sistema, no tenso cenário político repressivo que se seguiu até o final da

década de 80. Enfim, apresentaremos a literatura marginal produzida na periferia, que se

popularizou na década de 90, dando intensa visibilidade e força simbólica às periferias.

Discutiremos os compromissos que alguns de seus autores pretendem na literatura enquanto

agente de transformação social e como se articula no universo online das redes sociais, tomando

como base as atividades do poeta Sérgio Vaz em nome da Cooperativa Cultural da Periferia.

2

Page 19: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Finalmente, sucede o quarto capítulo, o qual abrangerá as relações entre literatura e vida,

reunindo os conceitos até então abordados na aplicação da análise de publicações selecionadas

das páginas no Twitter e Facebook da Cooperifa e do Poeta Sérgio Vaz. Esse estudo pretende ser

desenvolvido considerando o alargamento do conceito de cultura, a qual passou a ser concebida

como algo transversal, originando recortes temáticos dentro da própria definição do termo que,

no Brasil, segundo perspectivas da Mondiacult1 e de Canclini (1998), pode ser caracterizada

como conjuntos de rasgos distintivos materiais e espirituais, intelectuais e afetivos, que

caracterizam uma sociedade ou grupo social.

Portanto, esperamos com esta pesquisa concluir como se constituem, no contexto sócio-

histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação social, aspectos como o

lugar de artista, nome de autor, público, efeito-leitor e circulação de sentidos nas obras

produzidas e divulgadas pelo poeta Sérgio Vaz por meio de suas redes sociais e também dos

perfis online da Cooperifa.

1 Conferência Mundial de Políticas Culturais, ocorrida em 1982, onde se discutiu a relação entre cultura e desenvolvimento, esboçando assim, pela primeira vez, o princípio de uma política cultural baseada no respeito à diversidade cultural. Ver: MONDIACULT: A CULTURA COMO DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS in: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/bruno_wanderley_junior.pdf>

3

Page 20: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

4

Page 21: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

CAPÍTULO 1 - ANÁLISE DO DISCURSO

Para iniciar os estudos, apresentamos neste capítulo a Análise do Discurso da perspectiva

francesa, doravante AD. Trata-se de uma orientação teórica que visa problematizar as maneiras de

ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se questionarem sobre o que produzem e o que lêem nas

diferentes manifestações da linguagem. Estruturada principalmente por Michael Pêcheux, dos

anos 1960 em diante, a AD situa suas reflexões nas relações da linguagem com a exterioridade,

ou seja, como a condição de produção do discurso que intervém na textualidade e

conseqüentemente como a memória afeta o discurso. Neste processo pensamos também o

simbólico, pois seu comprometimento com o político é fundamental para compreender o

movimento dos sentidos. Em suma, o discurso é palavra em movimento, prática de linguagem.

Tal orientação teórica entende o discurso como mediação necessária entre o homem e a

realidade social, tornando sua transformação tão possível quanto a realidade em que vive.

Considera ainda a história, os processos e as condições da produção de linguagem, analisando a

relação estabelecida pela língua com os sujeitos. Por sua vez, o analista do discurso busca

entender como um texto significa, de que maneira a linguagem está materializada na ideologia

através do sujeito discursivo, uma vez que as palavras simples do cotidiano chegam carregadas de

sentidos sem que saibamos como se constituíram e, mesmo assim, significam. Gregolin (2001a)

afirma ao longo de sua pesquisa que os fundamentos teóricos da AD têm como conseqüência a

forma material sócio-histórica do discurso e fazem com que a linguagem seja entendida como

ação e transformação social incluindo, segundo Orlandi, “todas as suas implicações, conflitos,

reconhecimentos, relações de poder, constituições de identidade, etc.” (Orlandi, 1998, p.17).

A linguagem então é vista como um acontecimento do significante num sujeito afetado

pela historia através de complexos processos de produção de sentidos, envolvendo identificação

de sujeito, argumentação, subjetivação, construção de realidade, entre outros. É importante

observar que o sentido da linguagem se inscreve na história, sendo definido em relação a três

regiões de conhecimento, segundo a Análise do Discurso: a primeira delas é a Teoria da Sintaxe e

da Enunciação, noção mediadora que consiste na atividade dos sujeitos com e na língua; a

segunda é a Teoria da Ideologia, formulada como uma representação da relação imaginária dos

indivíduos com suas condições reais de existência; e a terceira, a Teoria do Discurso, que consiste

5

Page 22: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

na determinação histórica dos processos de significação. Tudo isso atravessado pela Teoria do

Sujeito que desperta a noção da leitura e interpretação, problematizando a sua relação com o

sentido – conseqüentemente, da língua com a história.

1.1. Sujeito, História e Linguagem

A leitura não é transparente, por isso a AD teoriza a interpretação, visando compreender

como os objetos simbólicos produzem sentido, analisando assim os gestos de interpretação

considerados como atos que intervêm no real. Ao tentar compreender o modo como um objeto

simbólico produz sentidos, a AD visa explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação,

tentando entender e explicar como se constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula

com a história e a sociedade que o produziu, de tal modo que a enunciação passa a ser um fator

relevante para a interpretação, que na noção de Pêcheux (1997) é um gesto no nível simbólico.

Enquanto a circunstância de enunciação é o contexto imediato, as condições de produção

compreendem o contexto sócio-histórico e ideológico: os sujeitos, a situação, a memória que

nessa perspectiva é tratada como interdiscurso. A memória discursiva segundo Orlandi (2012) é

aquilo que já foi dito antes e transformou-se no saber que sustenta a tomada da palavra,

representando o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva. Quando uma palavra

significa é porque ela deriva de um discurso que a sustenta, e nessa percepção podemos entender

a relação do interdiscurso com os sentidos.

Courtine (1984) estabelece o interdiscurso como o conjunto de formulações já esquecidas

e tem como efeito o esquecimento daquilo que foi dito por um sujeito específico, em um

momento particular, para re-significar nas palavras de um novo sujeito. O esquecimento pode

ocorrer de duas maneiras: a primeira é da ordem da enunciação e refere-se às escolhas dos

dizeres, que estabelecem uma relação entre palavra e coisa; a segunda é da instância do

inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Inferimos dos estudos de

Chauí (1981) que a ideologia é um conjunto de práticas usadas como mecanismo de mediação

que define o que as pessoas pensam e as incorpora na sociedade, numa construção ligada a

sistemas de poder através de discursos que podem ser vistos como regime organizado e

convencionado de verdade. Tal regime, de acordo com Foucault (1980), é constituído por práticas

6

Page 23: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

discursivas e pressupõe relações com instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos

econômicos que são determinantes no funcionamento da linguagem. Estabelecer essas relações

discursivas pode ser difícil, por isso há no discurso espaço para jogos entre paráfrase e

polissemia, cuja tensão confirma o paralelo entre o simbólico e o político.

Segundo Orlandi (2012), os processos parafrásticos se referem à memória, aquilo que em

todo dizer sempre se mantém. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do

dizer, à origem do sentido, uma vez que conta sempre com a repetição e a sustentação no saber.

Já a polissemia representa o deslocamento, a ruptura dos processos de significação, jogando com

o equívoco. Para a autora, trata-se da fonte de linguagem porque trata da própria condição de

existência dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos. Assim, a polissemia é justamente a

simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico e o Analista de

Discurso propõe compreender como o político e o linguístico se inter-relacionam na constituição

dos sujeitos nesses jogos da linguagem.

Os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam através

de alguns mecanismos imaginários. O primeiro mecanismo é o da antecipação, no qual todo

sujeito tem a capacidade de colocar-se no lugar de seu interlocutor, antecipando-o assim quanto

ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo dirige o processo de argumentação,

regulando o que o sujeito dirá de um modo ou de outro, segundo o efeito que visa produzir em

seu ouvinte por meio de determinadas relações de forças. De acordo com essa noção, podemos

dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. Assim, suas palavras

significam de um modo diferente a depender do lugar de onde fala, pois a sociedade é construída

por relações hierarquizadas, relações de força sustentadas no poder desses diferentes lugares, que

se fazem valer na comunicação.

As condições de produção implicam então o que é material (a língua), institucional (a

formação social e sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse é o segundo mecanismo do qual

falávamos, o que produz imagens dos sujeitos assim como do objeto do discurso associado a uma

conjuntura sócio-histórica. Pensando as relações de forças, de sentidos e a antecipação, são

perceptíveis diferentes possibilidades regidas pela maneira como a formação social está na

história, permitindo que se formem imagens e as associe ao discurso de modo a contribuir para o

processo de significação. Uma imagem se constitui no confronto do simbólico com o político em

7

Page 24: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

processos que ligam discursos e instituições, logo a análise é importante porque com ela torna-se

possível atravessar o imaginário que condiciona os sujeitos em suas discursividades, explicitando

o modo como os sentidos estão sendo produzidos, e consequentemente, compreendendo melhor o

que está sendo dito.

Assim, é preciso referir o dizer às suas condições de produção, estabelecer as relações que

ele mantém com sua memória e também remetê-lo a uma formação discursiva, onde os sentidos

se encontram. Desse modo, o sentido é pensado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no

processo sócio-histórico no qual as palavras são produzidas, seguindo as posições daqueles que

as empregam, se relacionando com as conjunturas ideológicas nas quais essas posições se

inserem em uma relação sócio-histórica dada, e finalmente sugerindo o que pode e o que deve ser

dito.

O trabalho da ideologia então é produzir evidências, colocando o homem numa relação

imaginária com suas condições materiais de existência. M. Pêcheux (1983) afirma que a

ideologia é a condição responsável para constituição do sujeito e dos sentidos, já que o indivíduo

em sujeito para que produza o dizer. Trata-se da relação necessária entre linguagem e mundo, do

efeito imaginário de um sobre o outro, e dissimula sua existência no interior do seu próprio

funcionamento em conjunto com o inconsciente, deixando visíveis apenas algumas evidências

que funcionam através dos esquecimentos, dando aos sujeitos a realidade como um sistema de

significações experimentadas.

A linguagem, os sentidos e os sujeitos não são transparentes: eles têm sua materialidade e

se constituem em processos nos quais a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente.

É preciso que a história intervenha para que a língua faça sentido, por isso os gestos de

interpretação são regulados em suas possibilidades, em suas condições e a ideologia intercede seu

modo de funcionamento imaginário. O gesto de interpretação do sujeito é garantido pela

memória, segundo Orlandi (2012) sob dois aspectos: o primeiro é a memória institucionalizada (o

arquivo), onde se separam quem tem e quem não tem direito a ela; o segundo é a memória

constitutiva (o interdiscurso), ou seja, o trabalho histórico da constituição do sentido (o saber

discursivo), sujeito à língua e a história, pois para se constituir, para produzir sentidos, o saber

discursivo é afetado por elas.

8

Page 25: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

O sujeito discursivo é pensado como lugar. Segundo Foucault (1969), trata-se da posição

que deve e pode ocupar todo individuo. Essa posição significa quando está sendo dita, e isso lhe

dá identidade relativa a outras. Acrescentamos ainda a noção do sujeito-de-direito, definida por

Orlandi (2012) como efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista.

Submetendo o sujeito, mas ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o

assujeitamento se realiza quando o discurso aparece como instrumento do pensamento e reflexo

da realidade. A ideologia fornece as evidências que apagam o caráter material do sentido e do

sujeito na transparência da linguagem, sustentando a noção de literariedade.

O sentido literal, na concepção linguística, é aquele que uma palavra tem

independentemente de seu uso em qualquer contexto, seu caráter básico. A ilusão do sentido

literal considera que as estratégias retóricas e as manobras estilísticas fazem o sujeito ter a

impressão de transparência. É tarefa do analista do discurso expor o olhar do leitor à opacidade

do texto, como diz M. Pêcheux (1983), para compreender como essa impressão é produzida e

quais seus efeitos.

1.2. Dispositivo de Análise

Os conceitos apresentados no item anterior agora serão utilizados para a reflexão sobre o

dispositivo da análise do discurso. Primeiramente, sobre o lugar da interpretação, que tem como

proposta procurar o sentido em sua materialidade linguística e histórica. Segundo Pêcheux

(1983), todo enunciado é descritível como uma série de pontos que oferecem lugar à

interpretação, a qual consiste na manifestação do inconsciente e da ideologia na produção de

sentidos e na constituição de sujeitos. A ligação que abre possibilidade à interpretação, também

dá espaço a ligações históricas capazes de se organizar em memórias, e ordenar relações sociais

em redes de significantes. As transferências presentes nos processos de identificação dos sujeitos

constituem uma pluralidade de filiações históricas, uma vez que dependendo da posição do

sujeito e da inscrição daquilo que diz, seus processos de identificação e suas filiações de sentido

descrevem a relação do sujeito com a memória.

9

Page 26: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Por definição de E. Orlandi (1998), todo discurso se estabelece na relação com um

discurso anterior e aponta para outro, pois do processo discursivo é possível recortar e analisar

estados diferentes. É importante considerar os fatos da linguagem e sua memória em relação à

análise e à sua temática, por isso a pesquisadora considera que a melhor maneira de atender a

constituição de corpus é construindo montagens discursivas que obedeçam a critérios os quais

decorrem de princípios teóricos da AD para mostrar como o discurso funciona produzindo

sentidos. Isso gera uma discussão acerca da diferença entre texto e discurso.

O texto é definido na obra de Orlandi como “uma unidade que o analista tem diante de si

e da qual ele parte” (Orlandi, 2012, p. 63). O analista visa remeter o texto a um discurso que, por

sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referencia a uma formação discursiva que,

enfim, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante na

dada conjuntura. Todo discurso é parte de um processo discursivo mais amplo que o analista

recorta de modo a determinar como a análise e o dispositivo teórico da interpretação é construído.

Logo, o dispositivo analítico pode ser diferente nas diferentes abordagens que fazemos do corpus:

é tudo uma questão de método.

Para analisarmos um discurso é necessário ir além da superfície do texto: verificamos

quem diz, como diz e em quais circunstâncias isso é feito durante o processo de enunciação, no

qual o sujeito se marca deixando pistas para compreendermos o modo como seu discurso se

textualiza. Com isso procuramos enquanto analistas, dar conta do esquecimento enunciativo,

analisando o que é dito num discurso, pois se em outras condições, são dizeres afetados por

diferentes memórias discursivas. A análise visa justamente entrar no processo discursivo para

deslocar o sujeito dos efeitos linguísticos e discursivos resultantes. Objetiva ainda compreender a

partir dos vestígios como um objeto simbólico produz sentidos, através da observação do modo

de construção e estruturação, o modo de circulação e os diferentes gestos de leitura que

constituem os sentidos do texto submetido à análise.

E. Orlandi (2012) argumenta que “fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se

movem entre o real da língua e o da histórica, entre o acaso e a necessidade (...), produzindo

gestos de interpretação.” (Orlandi, 2012, p. 68) Ora, é esperado do analista que encontre no texto

as pistas dos gestos de interpretação, que se tecem na história, explicitando o modo de

10

Page 27: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

constituição de sujeitos e de produção de sentidos, o que resulta na revelação do trabalho da

ideologia e das simbolizações de poder presentes no texto.

O texto se define na AD como uma unidade de sentido construído em relação a

determinada situação, pois tem historicidade, a qual consiste no acontecimento do texto como

discurso, incluindo o trabalho dos sentidos nele. O interessante nessa relação entre texto e

discursividade é o modo como o texto organiza a relação da língua com a história no trabalho do

significante do sujeito em sua relação com o mundo. Compreendendo como ele funciona e como

produz sentidos, podemos compreendê-lo enquanto objeto linguístico-histórico.

Todo texto é heterogêneo quanto à natureza dos diferentes materiais simbólicos, das

linguagens e das posições do sujeito, uma vez que o sujeito se subjetiva de maneiras diferentes

em seu decorrer. Orlandi (2012) retoma Maingueneau (1969) para explicar que o discurso é uma

dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir-se como um espaço de

regularidades enunciativas e discursivas, procurando remeter texto ao discurso e esclarecer as

relações deste com as formações discursivas pensando, por sua vez, as relações destas com a

ideologia.

Conforme afirmado, o texto é a unidade de análise afetada pelas condições de produção, o

lugar da relação com a representação da linguagem e também espaço do significante (onde

funciona a discursividade). Um texto é uma peça de linguagem de um processo discursivo bem

mais abrangente e o produto de sua análise consiste na compreensão dos processos de produção

de sentidos e de constituição dos sujeitos em suas posições. O processo discursivo, por sua vez,

dá ao analista as indicações de que ele necessita para compreender a produção de sentidos.

Outra definição importante na explanação dos dispositivos de análise, diz respeito ao

autor e o sujeito. Orlandi (2012) define o sujeito como aquele que “está para o discurso assim

como o autor está para o texto” (Orlandi, 2012, p. 73), e também considera o sujeito como

resultado da interpelação do indivíduo pela ideologia, enquanto o autor é a representação de

unidade e delimita-se na prática social como uma função específica de sujeito. A especialista

recorre a Vignaux (1979) ao afirmar que o discurso tem como função assegurar a permanência de

certa representação, porque o autor é o lugar em que se constrói a unidade do sujeito.

Em termos do real do discurso, temos a descontinuidade, o equivoco, a contradição. Por

outro lado, na instância do imaginário, encontramos a unidade, a coerência. Trata-se de

11

Page 28: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

considerar a unidade (imaginária) na dispersão (real): “de um lado a dispersão dos textos e do

sujeito; de outro, a unidade do discurso e a identidade do autor” (Orlandi, 2012, p. 74). Assim, o

discurso é regido pela força do imaginário da unidade, estabelecendo uma relação de dominância

de uma formação discursiva com as outras, na sua constituição. Esse é mais um efeito discursivo

regido pelo imaginário, o que lhe dá uma direção ideológica, uma ancoragem política,

especialmente nas questões sobre autoria.

Podemos então dizer que a autoria é uma função do sujeito. A função-autor estabelece-se

ao lado das funções locutor e enunciador. Orlandi (2012) recorre a Ducrot (1984) para explicar o

locutor, como aquele que se representa como o “eu” do discurso, enquanto o enunciador é a

perspectiva que esse “eu” constrói. A função-autor tal como a concebemos foi dada por Foucault

(1973): o autor propõe que há no discurso processos internos de controle que se dão a princípio

de ordenação, e tal controle pode ser observado em noções como a do autor, de modo que este

seja considerado como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas

significações. Orlandi (2012) evidencia que “um texto pode até não ter um autor específico, mas

pela função-autor, sempre se imputa uma autoria a ele”(Orlandi, 2012, p.75). Ao imputar a

função-autor a qualquer texto, a AD trata o conceito como um sinônimo de autor, que é utilizado

como uma identidade autoral alternativa, um outro tipo de assinatura.

O princípio do autor limita o acaso do discurso pela identidade que tem forma na

individualidade do “eu”. Ora, se o locutor se representa como “eu” no discurso e o enunciador é a

perspectiva que esse “eu” assume, a função discursiva do autor é a função dele enquanto produtor

de linguagem, produtor de texto. A dimensão de sujeito está mais determinada pela exterioridade

(contexto sócio-histórico) e pelas exigências de coerência e responsabilidades frente ao texto, já

que sua função é mais afetada pelo social e está submetida às regras das instituições. Essas

exigências têm a finalidade de tornar o sujeito visível enquanto autor com suas intenções

argumentativas e, como autor, o sujeito ao mesmo tempo em que reconhece uma exterioridade à

qual ele deve se referir, também se reconhece em sua interioridade ao construir sua identidade.

Trabalhando a articulação entre esses dois pontos, o sujeito passa a assumir o papel de autor e

suas implicações. A esse processo, Orlandi (1998) deu o nome de assunção da autoria.

Segundo a pesquisadora, “o autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos

discursivos, representa, pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em

12

Page 29: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que diz e como diz.” (Orlandi, 2012, p.76). A

assunção da autoria implica então uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no

contexto histórico-social. Orlandi (2012) determina ainda que aprender a se representar como

autor é assumir, diante das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a

linguagem, logo, constituir-se e mostrar-se como autor. Podemos dizer que a função do sujeito

tem seu pólo correspondente: o leitor, de quem se cobra um modo de leitura especificado pois ele

está, como o autor, afetado pela sua inserção no social e na história. O leitor tem sua identidade

configurada enquanto tal pelo lugar social no qual se define sua leitura, trabalhando aí diferentes

formas do confronto do político com o simbólico.

As maneiras de ler quando se considera o discurso, indicam a relação entre o não-dizer e o

dizer. O primeiro refere-se ao que está implícito, ou seja, o que fica subentendido quando o autor

separa aquilo que deriva (o pressuposto) daquilo que se dá em contexto (subentendido). Já o

segundo, traz consigo necessariamente esse pressuposto, que o complementa. Uma formação

discursiva pressupõe outra e significa pela sua diferença e pela relação que se estabelece, ou seja,

o dizer se sustenta na memória discursiva. Mas essa não é a única forma de trabalhar o não-dito

na AD, há ainda o silêncio, pelo qual se entende o lugar de recuo necessário para que se possa

significar. Existem algumas formas do silêncio: o silêncio fundador, por exemplo, indica que o

sentido sempre pode ser outro. A política do silêncio assume duas formas, e são elas o silêncio

constitutivo, que traz o apagamento de outras palavras quando uma é dita, e o silêncio local, que

é a censura – aquilo que é proibido ser dito em certa conjuntura. Orlandi (2012, p.83) afirma que

“as relações de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre a censura, de tal modo

que há sempre silêncio acompanhando as palavras”.

Partimos das condições e relações do dizer com a memória para delinearmos as margens

do não-dito, a fim de encontrar o que é relevante em dada situação, do contrário, não haveria

limites para o processo de significação. As maneiras de estabelecer esses limites estão de certa

forma articuladas e elas são três: a primeira trata das diferentes concepções de línguas enquanto

sistema abstrato; enquanto isso, a segunda se relaciona às diferentes naturezas de exterioridade,

tais como contexto, condição de produção, circunstâncias de enunciação; e enfim, as diferentes

concepções do não-dito, com o silêncio e o implícito. Tudo isso sem que nos esqueçamos de que

13

Page 30: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

o discurso é efeito de sentido entre interlocutores, estabelecendo relações e construindo

consequentemente tipologias.

São variados os critérios pelos quais se constituem tipologias na AD. Temos o discurso

político, jurídico, religioso, jornalístico, pedagógico, médico, científico; há também suas

variáveis, como por exemplo, didático ou terapêutico, e ainda as diferenças disciplinares que

podem estar na base da tipologia, tais como o discurso sociológico, biológico; tem também as

diferenças de estilo, gênero, as subdivisões e uma infinita série de ramificações que nos levam a

crer que a tipologia pode até ser útil na análise, mas não é exatamente isso que caracteriza o

discurso, mas resultam de funcionamentos cristalizados que adquiriram uma visibilidade. O foco

está nas propriedades internas ao processo discursivo, dentre elas a remissão de formações

discursivas, o modo de funcionamento, formações discursivas, modo de funcionamento, seu

regime e validade.

Eni Orlandi (Orlandi, 1989, apud Orlandi, 2012, p. 86) procura estabelecer um critério

para distinguir esses diferentes modos de funcionamento do discurso, cuja referência está nos

elementos constitutivos de suas condições de produção e sua relação com o modo de produção de

sentidos, com seus efeitos, como podemos ver a seguir:

a. Discurso autoritário: aquele em que a polissemia está contida [...] o locutor se coloca como agenteexclusivo, apagando também sua relação com o interlocutor.

b. Discurso polêmico: aquele em que a polissemia é controlada, o referente é disputado pelos interlocutores[...], numa disputa tensa pelos sentidos

c. Discurso lúdico: aquele em que a polissemia está aberta [...] sendo que os interlocutores se expõem aosefeitos de sentido [...]

Logo, o que há são misturas do modo que podemos dizer que um discurso está em

funcionamento com certa característica dominante, pois a materialidade discursiva, as pistas do

processo de significação, trabalha com propriedades que referem a língua à história para

ressignificar, reunindo forma e conteúdo, analisando seu funcionamento.

Os discursos a serem analisados neste trabalho circulam nas redes sociais, e para entender

seu funcionamento, começaremos o próximo capítulo destrinchando a internet enquanto

plataforma e explicitando algumas das consequências de seu desenvolvimento e uso na sociedade

contemporânea. Para entender o modo como os processos que envolvem esse suporte afetam a

14

Page 31: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

sociedade, buscaremos uma visão crítica dos seus fundamentos e utilizações, desde sua criação

até os dias atuais, por isso decidimos abordar no segundo capítulo um pouco da história da rede

mundial de computadores, assim como a maneira que ela tem afetado sujeitos nas suas aspirações

culturais e sociais.

15

Page 32: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

16

Page 33: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

CAPÍTULO 2 - NOVAS TECNOLOGIAS

No capítulo anterior, foi feita uma apresentação inicial acerca do dispositivo teórico que

será usado nas análises literárias conseguintes, atentando para a noção de que a linguagem é uma

prática e intervém no real, podendo se situar em relação ao simbólico e o político, de tal maneira

que possibilita a constituição do sujeito e a significação do mundo pela história e pela ideologia, a

qual se materializa na linguagem como um lugar de descoberta. Um território fértil para estudar

tal funcionamento da linguagem é a internet, consequentemente, veremos ao longo deste trabalho

como a literatura, os escritores, a relação entre eles e o leitor está mudando desde a sua

popularização.

O desenvolvimento da linguagem como meio de comunicação foi o primeiro sinal de

mudança significativa na vida do ser humano, pois a linguagem permitiu que o homem

transmitisse conhecimento, melhorando sua compreensão do mundo entre as primeiras

comunidades. Com o passar do tempo, a linguagem teve seus sons codificados em símbolos e

alfabetos, que se desenvolveram na mesma medida em que a civilização tal como conhecemos

hoje originando a escrita e permitindo que o conhecimento fosse transmitido além do tempo e

espaço. Aperfeiçoou ainda a organização do pensamento, desenvolvendo a inteligência, a cultura

e a ciência, criando raízes que contribuíram para a evolução da civilização, tendo um impacto tão

forte que sua invenção determinou a passagem da Pré-história para o início da História da

humanidade.

Por sua vez, a Internet foi criada nos anos 60, durante a Guerra Fria, nos Estados Unidos,

quando o Departamento de Defesa americano precisava criar uma rede de comunicação de

computadores em pontos estratégicos com o objetivo de descentralizar informações valiosas. Em

1962, no MIT, falava-se em termos da criação de uma Rede Intergalática de Computadores2 e o

acesso à rede era restrito a militares e pesquisadores estatais. Apenas em 1991 a comunidade

acadêmica brasileira conseguiu, através do Ministério da Ciência e Tecnologia, acesso a redes de

pesquisas internacionais. Em 1995, a rede foi aberta para fins comerciais, ficando a cargo da

iniciativa privada a exploração dos serviços.

2 Brief History of the Internet; Disponível em: http://www.internetsociety.org/internet/what-internet/history-internet/brief-history-internet#JCRL62 (acessado em: 18/06/2013);

17

Page 34: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Nos anos 2000, a popularização do meio de comunicação provocou uma verdadeira

revolução em nossa história. McLuhan (1969;1972) havia dissertado que as novas tecnologias

eletrônicas encurtariam distâncias e que o progresso tecnológico reduziria todo o planeta à

mesma situação que ocorre numa aldeia: um mundo em que todos estão interligados de alguma

forma. Essa é a “Aldeia Global”, popularizada nas obras “A Galáxia de Gutenberg” (1972) e,

posteriormente, em “Os Meios de Comunicação como Extensão do Homem” (1969). Ele foi o

primeiro filósofo a tratar das transformações sociais provocadas pela revolução tecnológica do

computador e das telecomunicações, e acreditava que os meios eletrônicos reconstituiriam uma

tradição oral, colocando todos os nossos sentidos humanos em jogo – mas este conceito foi muito

além do que o autor previa. Segundo Levy (1998), o global se faz e se refaz o tempo inteiro,

colocando novos atores no cenário.

Em suma, a internet surgiu para informar e trocar informação, mas somente de maneira

estática. A chamada web 1.0 implica apenas leitura, ao passo que na web 2.0, os sites oferecem

interatividade e uma maneira de personalização da página como alterações de design, escolha de

notícias relevantes, inserção e alteração de informação. A divisão entre web 1.0 e 2.0 é mais uma

questão técnica, de interface: enquanto a programação da web 1.0 é estática, usando apenas

HTML, de forma que o usuário somente buscava informações, na web 2.0 a programação é

dinâmica, combinando vários recursos técnicos (tais como PHP, JavaScript, Flash, CSS, etc.) para

possibilitar a interação do usuário com o conteúdo.

Por sua vez, a terceira geração da internet é considerada interativa, pois um site consegue

ler as mensagens e utilizá-las de maneira mais complexa, como exemplo: inserindo publicidade

relevante com o conteúdo divulgado, reunindo resultados em mecanismos de busca apenas com

as palavras chaves ou ``lendo os pensamentos`` do internauta, como o site Akinator faz, conforme

a figura 1:

18

Page 35: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 1 - Akinator3

Também conhecida como Websemântica, a web 3.0 surgiu por volta de 2007 e é

caracterizada pela interatividade entre homem e máquina, melhorando as linguagens de

programação de modo a organizar e utilizar de maneira mais interativa e complexa toda a

informação já disponível na internet, funcionando como um banco de dados gigante e conectado.

Atualmente utilizamos a web 3.0, apesar de ainda conviver com sites gerados na 1.0 e 2.0.

Assim, a internet é formada por vias duplas nas quais podemos construir, dizer, escrever, falar e

ser ouvidos, vistos, lidos, de modo a organizar o pensamento hipertextual sob a forma de

associações complexas, e, consequentemente, tornando-o mais completo. O cyberespaço sugere

uma reconfiguração dos espaços já conhecidos, das relações entre a estrutura de poder e as

pessoas, porque a informação passou a constituir a matéria-prima de nossa sociedade, ganhando

um papel central tanto em termos de instâncias de poder do discurso, quanto em termos de

reconfiguração do espaço e das relações sociais.

3 pt.akinator.com/

19

Page 36: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

De acordo com McLuhan (1972), os meios de comunicação trabalham como extensões

das capacidades naturais dos seres humanos: a televisão exibe o que não podemos ver

fisicamente, como uma extensão de nossos olhos; o rádio seria uma extensão dos nossos ouvidos;

o telefone leva a nossa voz para longe; a Internet, através da Comunicação Mediada por

Computador (CMC), proporcionou a extensão de várias capacidades naturais, permitindo que

possamos interagir de diversas formas e por isso foi uma revolução. Logan (1999) utiliza a teoria

do caos, da linguagem e as idéias de McLuhan para definir a evolução da linguagem, afirmando

que todo o desenvolvimento da humanidade ocorreu sobre as tentativas de organização do caos,

assim como do raciocínio e da compreensão de mundo.

Sabendo que uma linguagem surge quando a anterior não era mais suficiente para explicar

os fenômenos do mundo, abriram-se uma infinidade de possibilidades e incertezas. Quando

Prigogine (1996) propõe a nova formulação das leis da natureza em termos de probabilidades e

não de certezas, nos mostra que estamos vivenciando um momento privilegiado da história,

decifrando a "atividade humana, criativa e inovadora [...] como uma amplificação de uma

intensificação de traços já presentes no mundo" (Prigogine, 1996, p.74). Enfim, a internet é um

exemplo de que a humanidade não está mais limitada a situações simplificadoras, idealizadas,

mas enfrentando a complexidade do mundo real que permite a criatividade humana.

2.1. Internet e as Reconfigurações do Espaço

Recuero (2000) afirma que uma das características mais marcantes que influenciam um

meio de comunicação nas sociedades é a reconfiguração dos espaços percebidos pela mesma, já

que a comunicação reduz as distâncias e permite que as pessoas se aproximem numa perspectiva

de percepção. Com a Internet essas distâncias são mínimas, pois é possível conversar com

alguém que esteja há muitos de quilômetros, trocar arquivos, fotos, vídeos, tudo em questão de

segundos ou até mesmo em tempo real, o que modifica a nossa noção de espaço, substituindo a

idéia da aldeia global de McLuhan por uma comunidade global. Além disso, a organização da

informação no ciberespaço faz com que a noção de território conhecida por séculos seja superada,

20

Page 37: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

visto que o movimento das informações acontece de modo quase instantâneo, proporcionando

uma reconfiguração da noção de espaço geográfico, com base num novo espaço: o virtual.

A característica fundamental da internet é o fato de ser híbrida. O sujeito vive a

possibilidade entre o local e o global, entre o lugar e o não-lugar, já que a internet é

simultaneamente real e representacional, estruturada pelos laços e valores sociopolíticos,

estéticos e éticos que a tornam um novo espaço, suportando processos cognitivos, sociais e

afetivos, nos quais sujeitos reconfiguram suas identidades e laços sociais num novo contexto

comunicativo, provocando novos valores que, por sua vez, reforçam novas sociabilidades. Por

um lado, o internauta se encontra num lugar físico, a partir do qual produz e compartilha

informações e, simultaneamente, está suspenso na pluralidade de lugares que a navegação na rede

permite.

Ao abordar a geração de novos espaços públicos, a territorialidade entra em questão,

tendo em vista que território é o ponto de ancoragem na construção de identidades, contudo,

pensar a existência de territórios na internet só é possível porque conceitualmente esses resultam

da construção de sistemas compostos por elementos simbólicos representativos. Se por um lado a

internet tem nos conduzido a repensar as fronteiras geográficas e a própria territorialidade por

causa da dimensão global do fluxo de informações e de comunicação, por outro, as interações

sociais presenciais também são afetadas, porque a rede fez com que surgissem novos espaços e

motivos de encontros presenciais, tais como os cibercafés, por exemplo.

O internauta concebe a rede como um espaço de pesquisa de informação, encontro e

compartilhamento, ou seja, a internet gera uma espacialidade reforçadas pelas metáforas de

navegação e site, termo em inglês traduzido como lugar. A proximidade então é representativa e,

em sínteses às afirmações de Lídia Silva (2001), a questão da territorialidade pode ser pensada

em três níveis:

I) A internet como um território abrangente, associado à globalização.

II) A reconfiguração da noção territorial que a internet proporciona.

III) A representação de territórios individuais na internet.

A observação desses três pontos faz com que a constituição de uma rede internacional

global tenha promovido a oportunidade de afirmação de identidades locais por meio da presença

do sujeito que ganha visibilidade global através da internet. Ainda segundo a autora, “as

21

Page 38: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

identidades locais afirmam-se pela especificidade simbólica, iconografia, ideologia, língua

(apesar de o inglês ser a língua dominante), etc.” (Silva, 2001, p.6) e cabe a cada sujeito usufruir

dessa nova dinâmica, a partir do modo como explora a informação e as teias que a internet

permite.

2.2. A Internet Como Modificadora das Relações Sociais

Uma das características mais importantes da Internet é a reorganização dos hábitos de

socialização. A rede tem sido um modificador das relações sociais que proporcionou uma

mudança de paradigmas que resultou, inclusive, no surgimento de comunidades virtuais como

conseqüência da interação entre o ser humano e o ciberespaço. Estas comunidades estruturam-se

fundamentalmente sobre o interesse em comum de seus membros e, a partir desse princípio, as

pessoas criam entre si relações sociais e com o tempo essas relações se tornam extremamente

poderosas.

Essas comunidades surgiram através da interação comunicativa entre seus membros.

Rheingold (1996), um dos primeiros a identificar este fenômeno, descreve que através das

comunidades virtuais, a Internet atua como um mecanismo de formação de grupos sociais. Com o

passar dos anos e o desenvolvimento das chamadas Redes Sociais, isso se tornou cada vez mais

forte, porque elas atuam como ponto de encontro para pessoas de todos os tipos, todos os gostos e

as mais diversas intenções. A vida cada vez mais atribulada nas metrópoles e o crescimento da

violência contribuem para o desaparecimento de lugares fundamentais para as sociedades

humanas: os lugares de prazer e lazer, onde surgem as relações sociais, e a internet seria uma

oportunidade do renascimento desses lugares, porém virtuais, como uma reação ao

individualismo. Essa modificação é muito importante, pois derruba a organização geográfica das

comunidades, devido a reconfiguração do espaço gerada pelo ciberespaço.

Para entender como acontece a divulgação da literatura de periferia na internet, traçamos

um panorama do locais na internet onde isso acontece de maneira mais efetiva: as redes sociais.

As redes são conceitualmente dinâmicas, isto é, seus elementos estão sempre em ação, evoluindo,

mudando com o tempo. Os estudos de Watts (2003) explicam um modelo de rede social muito

22

Page 39: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

próximo ao que conhecemos nos dias atuais: cada pessoa tem amigos, que por sua vez também

tem amigos, e essas conexões mostram que o grau de separação entre as pessoas é menor do que

imaginado. Barabási (2003) acrescentou que estas ligações seguem padrões, que estruturam

grupos sociais que se conectam a outros grupos em quantidades variáveis. Por sua vez, as redes

sociais na internet são sistemas que funcionam através da interação social, com o objetivo de

conectar pessoas e proporcionar sua comunicação, forjando assim, laços sociais.

2.2.1. Twitter

Figura 2 - Twitter4

A figura 2 mostra a página inicial do Twitter. Criado em 2006 por Jack Dorsey, Evan

Williams, Biz Stone e Noah Glass nos Estados Unidos com o objetivo inicial de desenvolver uma

espécie de SMS (Short Message Service) pela internet. O nome em inglês significa “gorjear” e a

ação de publicar uma mensagem é chamada de tweet (que originou ao verbo “tuitar” no Brasil),

ou seja, “piar” em até 140 caracteres. Constituído como uma rede social e servidor, as

atualizações são feitas e recebidas em tempo real, podendo ser lidas publicamente ou apenas por

4 www.twitter.com

23

Page 40: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

um grupo restrito pelo usuário – seus “seguidores”, aqueles que solicitam receber as atualizações

de um usuário em seu próprio feed de notícias. Em 2010 o Twitter publicou em sua própria

página o registro de 175 milhões de usuários, concentrados principalmente nos Estados Unidos,

Japão e Brasil.

A rede conta com uma série de ferramentas:

● Retweet: Replicar uma determinada mensagem de um usuário para a lista de seguidores,

dando crédito a seu autor original. Quando um texto é "retweetado", o termo "RT" aparece

no início da mensagem.● Twitter List: Permite ao usuário criar listas compartilháveis de usuários. O que dinamiza

a leitura dos tweets já que se torna possível ler o conteúdo postado por grupos de

seguidores.● Trending Topics: Chamados de TTs, a lista de assuntos mais populares do momento. São

incluídos nessa lista os marcadores, também conhecidos por hashtags (#) e nomes

próprios, e a classificação pode ser feita segundo a popularidade a nível mundial ou

nacional. ● API: Aplicações para o Twitter que proporcionam aos usuários maneiras e interfaces

alternativas para a utilização do microblog. Voltados para sorteios, promoções, e até

mesmo uma análise mais aprofundada da opinião dos usuários a respeito de uma marca ou

serviço, atraindo muitas empresas preocupadas com feedback e desenvolvimento.

A possibilidade de intercambio de informações entre o twitter e outras redes sociais

também chama a atenção. Há parcerias com o Facebook, de modo que as atualizações são

publicadas em ambas as plataformas simultaneamente. Alguns exemplos são o Formspring (em

que o usuário responde perguntas de outros usuários), Skoob (rede social brasileira colaborativa

para leitores) e o Tumblr (plataforma de blogging), que dá a opção de que o usuário escolha a

mensagem que será enviada para o Twitter. Além disso, com a criação do Twitter também

surgiram diversas redes sociais dependentes dele que permitem o envio de fotos e vídeos, como o

Twitpic e o Twitcam. Outros, como o TwitDraw, permitem que o usuário comece um desenho e

seus seguidores o completem, e o LOLquiz, que hospeda testes cujo resultado é enviado

diretamente para o Twitter. Muitas empresas também utilizam o Twitter para divulgação, devido à

possibilidade de atualizações constantes e a proximidade ao consumidor. A rede tem se mostrado

24

Page 41: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

um ótimo instrumento para o fortalecimento das marcas porque as empresas interessadas na

opinião dos clientes podem escutá-los diretamente e oferecer reações imediatas às reclamações.

O Twitter também enfrenta vários problemas. O slogan da empresa, “O que está

acontecendo?”, deve ser respondido em até 140 caracteres, espaço considerado muito curto por

diversas empresas que proibiram sua utilização por considerar uma forma de comunicação que

deixaria a desejar em termos de qualidade de informação. Há também alguns casos de suicidas

que tuitavam sobre seus sentimentos até momentos antes de cometerem tal ato, avisando seus

seguidores; e ainda casos envolvendo preconceito, direitos autorais e invasões de crackers

(hackers que roubam senhas de usuários). Apesar das divergências, a rede ainda é uma das mais

populares do Brasil e do mundo, tendo se destacado com muitos benefícios, inclusive uma

ferramenta produtiva, desde manifestações políticas até na comunicação de sobreviventes de

desastres naturais.

Um termo de uso relativamente recente que tem atraído atenção é a “twitteratura”, que

define as junções dos termos Twitter e literatura, caracterizando a hipótese de um gênero literário.

O título tem sido usado para definir todo e qualquer tipo de manifestação literária dentro da

plataforma em questão. O espaço de 140 caracteres permite a publicação de “microcontos” e

adaptações de narrativas, dentre diversos outros gêneros derivados, sendo alguns deles já

publicadas de forma impressa. Seguem identificadas as características particulares de alguns

exemplos:

- Microcontos: Narrativas sem regras de conteúdo, tendo o limite de 140 caracteres. Um

perfil é capaz de ter vários microcontos, desconectados um ao outro, como é o exemplo da figura

3.

25

Page 42: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 3 - Microconto no Twitter

https://twitter.com/jeniffersantos

- Adaptações: adaptações de obras publicadas em outros meios (como o impresso) através

de vários posts de até 140 caracteres. Com um toque de personalidade, as obras são adaptadas,

não são simplesmente copiados e colados, e costumam ser publicados com uma certa

temporalidade definida.

A Twitteratura é um gênero relativamente fácil, tanto para escrever como para ler, pois é

produzida numa ferramenta de fácil manuseio e acesso. O Twitter possibilita que qualquer

usuário publique sua literatura, sem burocracia. Em adição, proporciona a aproximação entre

escritores e leitores, misturando um pouco os papéis, porque a interação entre perfis literários faz

com que surja cada vez mais Twitteratura.

A periferia também marca presença no Twitter. O poeta Sérgio Vaz, por exemplo, além de

publicar sua agenda e da Cooperifa, tuita comentários do cotidiano, usa a rede para expressar suas

opiniões e produzir literatura, com frases e poemas de sua autoria. Atualmente, as redes sociais

têm a opção de serem interligadas por mecanismos de publicação: o que você publica no seu

perfil do Twitter, também é mostrado na sua página do Facebook, e vice-versa. Por isso, boa parte

do conteúdo da página do poeta é compartilhada em ambos os suportes, como verificamos na

figura 4:

26

Page 43: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 4 - Twitter e Facebook do Poeta Sérgio Vaz5

2.2. Facebook

Figura 5 - Facebook6

5 www.twitter.com/poetasergiovaz e www.facebook.com/poetasergio.vaz2

6 https://www.facebook.com/zuck

27

Page 44: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

O Facebook, ilustrado na figura 5, é um site e rede social criado por Mark Zuckenberg e

seus colegas de quarto, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. A princípio a rede

era fechada aos estudantes da Universidade de Harvard, onde os desenvolvedores estudavam,

mas logo a plataforma foi ampliada para Stanford, Ivy League, até que qualquer pessoa com mais

de 13 anos pudesse se cadastrar, embora em 2011 tenha sido registrado mais de 7,5 milhões de

usuários com menos de 13 anos de idade. A rede mais usada no mundo registrou em 2012 mais

de 1 bilhão de usuários ativos e gera receita através de publicidade

Ao cadastrar-se no Facebook, o usuário é guiado a encontrar amigos por meio de

sincronização de contatos com seu e-mail e outras redes sociais, conectando-se e convidando

essas pessoas a compartilharem conteúdo. O perfil do usuário na rede social deve ser o mais

completo o possível para que receba sugestões de acordo com suas preferências e deve ser

preenchido com informações verdadeiras, ao contrário do Orkut, que tolerava fakes (perfis com

informações falsas). Os recursos do site são diversos, entre eles:

● Mural: um espaço na página de perfil do usuário que permite aos amigos postar

mensagens para os outros verem. Ele é visível para qualquer pessoa com permissão para

ver o perfil completo. ● Status: É o conteúdo compartilhado. Podem ser mensagens de texto, fotos, vídeos, além

de marcar o nome de um amigo para que ele veja a publicação, fazer check-in (indicar a

localização onde o evento postado ocorreu ou está ocorrendo), atualizar com informações

que envolvem o humor do usuário, o que está assistindo, lendo, ouvindo ou jogando. ● Mensagens privadas: são enviadas à caixa de entrada do usuário e são visíveis apenas ao

remetente e ao destinatário, bem como num e-mail. Quando ambos os usuários estão

online, funciona como um chat em tempo real. ● Botões: Curtir é um recurso através do qual os usuários demonstram ter gostado do

status. Há ainda as opções Comentar e Compartilhar. ● Cutucar: em inglês Poke, é uma forma de interação entre amigos no Facebook, sem

qualquer finalidade específica. A princípio, é usado para atrair a atenção de outro usuário,

dizer “oi”. ● Eventos: Um recurso para que os membros informem seus amigos sobre os próximos

eventos em sua comunidade, para organizar encontros sociais.

28

Page 45: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

● Aplicativos: O Facebook criou uma plataforma com framework para desenvolvedores

criarem aplicações que interajam com os recursos internos do site, e a cada dia o número

de aplicativos cresce, sejam eles jogos ou editores de imagens. ● Facebook Messenger: é uma plataforma independente para Android, IOS e BlackBerry

que permite conversar por mensagens com seus contatos da rede. Também foi lançada

uma versão para Windows.

O Estadão publicou em seu blog que o líder das redes sociais no Brasil, ao final de 2011,

tinha 35,1 milhões de usuários. Um ano depois, o número chegou perto de dobrar e foi para 64,8

milhões. Isso significa que a abrangência do Facebook no Brasil se aproxima a um terço (32,4%)

da população de 201,1 milhões de pessoas. Os dados são da Socialbakers, empresa de estatísticas

sobre mídias sociais. Avaliando somente a população com acesso a internet, o estudo afirma que

o Facebook abrange 82,32%. O maior grupo de brasileiros na rede tem entre 18 e 24 anos (20,8

milhões). Os perfis de mulheres são maioria (54%) do total. O número continua a aumentar, mais

962 mil brasileiros se cadastraram na rede no último mês de 2013.

O Facebook também se tornou um terreno fértil para a produção literária no Brasil.

Existem milhares de páginas dedicadas à paixão pela leitura, onde são publicados trechos de

livros, no formato de texto ou imagem, e compartilhados pelos usuários. Há ainda as páginas

dedicadas a autores e suas obras, que vão desde os clássicos como Clarice Lispector até o poeta

da periferia Sérgio Vaz. A propagação de citações é o modo mais utilizado para disseminar o

texto literário na rede social.

O consumo de literatura nas redes sociais também vem alterando o comportamento dos

escritores. Em seus perfis, os escritores, consagrados ou não, divulgam suas obras, e os mais

populares passaram a revelar bastidores de seu processo de produção, fazendo de sua página uma

espécie de diário, de modo que o público possa consumir não apenas a sua literatura, mas a sua

vida. É uma situação de alta visibilidade em tempo real. A avidez por comunicação que

caracteriza a sociedade atual cria uma geração de autores mais abertos em sua subjetividade

literária, motivados por um público que deseja vislumbrar a produção. Além disso, o público não

29

Page 46: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

só busca maior compreensão da obra de seus autores favoritos, como também gosta de observar

sua visão de mundo e suas posições políticas.

Outro aspecto interessante do consumo de literatura no Facebook é a disseminação de

obra cujos autores que já faleceram, tais como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade,

Clarice Lispector, Paulo Leminsky e Caio Fernando Abreu, que alavancam diferentes

apropriações pelos usuários. As citações que têm algo de autoajuda quando tiradas do seu

contexto fazem muito sucesso e em alguns casos, servem como indiretas ao serem

compartilhadas. Paulo Leminski é um exemplo de autor que começou a ser consideravelmente

citado no Facebook, especialmente na época em2013, quando as manifestações tomaram as ruas

do país. Esse movimento nas redes sociais levou a antologia “Toda Poesia” de Leminski a

aparecer diversas semanas na lista de mais vendidos.

As redes sociais têm contribuído consideravelmente para a popularização da poesia

brasileira, e Sérgio Vaz é um exemplo de autores contemporâneos que ganham cada vez maior

visibilidade. O autor da periferia e seus textos serão estudados adiante nesta pesquisa, porém vale

mencionar que eles repercutem com sucesso no Facebook. Veja na Figura 6:

30

Page 47: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 6 – Poesia no Facebook7

No Facebook, o poeta também publica suas opiniões, divulga os trabalhos da Cooperifa,

fotos, videos, entrevistas e uma infinidade de conteúdo curtido e compartilhado por todo tipo de

usuário. Entretanto, o efeito de sentido que mais chama atenção em suas postagens é o discurso

de autoajuda. Além de poeta, Sérgio Vaz passa a ser uma espécie de instância que detém respostas

para a compreensão do mundo e do homem, conselheiro de como viver a vida sem as decepções

do cotidiano.

2.3. Internet e Hipertexto

A linguagem escrita começou a conquistar seu próprio formato, com fontes, no caso dos

sites, aliadas às cores e aos diferentes tipos e tamanhos, que criam diferentes diagramações para

captar a atenção do leitor. Com a era tecnológica, como afirmou Prigogine (1996), não há mais

certezas absolutas. Conceitos são frequentemente desconstruídos de modo a questionar valores,

inclusive os estéticos e o espaço do hipertexto é um ambiente apropriado ao cruzamento destas

manifestações fenomenológicas. A perspectiva teórica de Prigogine (1996) propõe que

7 https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2?fref=ts

31

Page 48: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

determinadas ocorrências são acontecimentos complexos, que podem tanto significar o fim como

originar um novo começo. Podem ainda gerar o fenômeno da bifurcação de caminhos, que se

abrem em novas e intrincadas possibilidades. Sendo assim, a estrutura do hipertexto possibilita o

acesso a todo tipo de informação, mas sua transformação em conhecimento e reconfiguração de

repertório é opcional e intencional.

Ted Nelson (1992), citado por Landow (1992), define o termo hipertexto como “...

escritas associadas não-sequenciais, conexões possíveis de se seguir, oportunidades de leituras

em diferentes direções”. Assim, o texto hipertextual, quando se refere a um documento digital,

que apresenta maiores possibilidades e diferentes “planos” – também conhecidos como “blocos”

– que contêm informações as quais interagem por meio de ligações, links, que dialogam

coordenadamente, para compor novas estruturas narrativas conforme a intencionalidade do leitor

ou proposta do autor.

Segundo Landow (1992), o hipertexto desconstrói a rigidez, rompe com a linearidade

em que há uma predefinição do começo e fim, e propõe uma estrutura processual e móvel, de

acordo com as escolhas do leitor. Assim, rompe-se com a noção de unidade e surge o princípio da

interatividade – participação do leitor na elaboração do texto através da escolha de caminhos que

estruturam a narrativa. Os textos ficam disponíveis eletronicamente por meio de escanerização ou

digitação, enquanto os links são palavras destacadas ou ainda ícones.

A reprodutibilidade é especialmente polêmica quando falamos sobre o meio digital, pois

se volta à questão dos direitos autorais. Textos online dão maior abertura para que a lei seja

burlada, pois em diversas circunstâncias não há controle sobre sua reprodução, fazendo com que

o papel do autor muitas vezes seja questionado diante da intervenção de outro sujeito que se

constitui em relações diversas. A sequência de relações estabelecidas pelo leitor é o que vai

determinar o arranjo da narrativa ou poética. Assim, a estrutura da obra não é dada pelo autor, no

entanto são abertas possibilidades que podem completadas pelo leitor e quando o sistema

incorpora elementos das diversas mídias, tais como vídeo, música, fotografia etc, entra no campo

da Hipermídia, no qual a proliferação de sentidos ocorre dentro de princípios discutidos por

Pierre Levy (1997): Princípios de Metamorfose, Heterogeneidade, Multiplicidade e Encaixes de

escala, Exterioridade, Topologia e Mobilidade de centros.

32

Page 49: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

O Princípio da Metamorfose é o processo de constante construção e renegociação de

sentidos que se dá nos hipertextos. Segundo o autor, trata-se da própria dinâmica de disseminação

de informação na web, que faz com que os prazos de atualização sejam cada vez menores. Já o

Principio da Heterogeneidade refere-se às informações organizadas numa determinada sessão de

um hipertexto e o modo como as conexões que se estabelecem entre diversas partes dele que têm

caráter extremamente heterogêneo, ou seja, seus padrões apenas são definidos no âmbito do

discurso. Segundo o Princípio da Multiplicidade e Encaixes de Escala, cada conexão pode

revelar toda uma rede de novas conexões, por isso os eventos veiculados pela internet também

têm uma capacidade de mobilização social diferente de outras mídias: a progressão dos eventos e

seus efeitos ocorrem a partir de uma rede sinérgica e sensível da correlação de informações feitas

por usuários em diversos lugares. O Princípio de Exterioridade, por sua vez, afirma que a

construção, definição e manutenção de dados dependem das complexas e múltiplas interações

entre pessoas. Quanto ao Princípio da Topologia, refere-se ao curso dos acontecimentos que é

uma questão de construção de caminhos. Enfim, O Princípio da Mobilidade dos Centros afirma o

caráter rizomático da rede, com múltiplos e móveis centros, que se organizam de acordo com o

fluxo de leitura - logo, o leitor é o centro, seu interesse, seu tempo disponível, sua cognição.

2.4. Internet e Política

Já que muitas pessoas podem interagir através da internet, Pierre Lèvy (1997) conseguiu

ver nesse meio um futuro democrático para a humanidade através da idéia da “democracia

eletrônica”. A internet é um instrumento de transformação política, com o surgimento de uma

forma da democracia na qual a técnica é fundamental. Este novo sistema, segundo Recuero

(2000), seria estabelecido por pessoas que dominassem a técnica, o desenvolvimento das

máquinas, das tecnologias e sua aplicação na chamada Sociedade da Informação.

A Carta Capital publicou uma pesquisa8 em Fevereiro de 2014, após ouvir 2.201 eleitores

em 161 municípios de todas as regiões do país, revelando que a internet é a segunda fonte de

informação que os brasileiros utilizam quando querem saber sobre política, enquanto a televisão

ainda é a primeira. Os resultados da pesquisa Vox Populi indicam que 55% buscam noticiários

8 http://www.cartacapital.com.br/politica/internet-e-a-segunda-principal-fonte-de-informacao-sobre-politica-8912.html

33

Page 50: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

televisivos para se informar sobre os acontecimentos políticos, enquanto 12% procuram em sites

especializados na internet notícias e análises sobre os desdobramentos na política. A utilização de

jornais impressos e revistas aparece em terceiro na lista, sendo esta a primeira opção para apenas

7% dos entrevistados. Para 5%, a principal fonte de informação sobre o tema são blogs e redes

sociais, enquanto 4% buscam se informar por meio do rádio e 3% com ajuda de amigos, vizinhos

ou colegas de trabalho.

Por sua vez, as redes sociais são um poderoso instrumento para as manifestações políticas,

porque agilizam e amplificam a comunicação, especialmente o Twitter e o Facebook, que tem

sido chamados de agentes de mobilização nos artigos recentes que se referem ao assunto. Paolo

Gerbaudo (2012) atentou que, de certa forma, a mídia moderna constitui um canal através do qual

os movimentos sociais, não apenas se comunicam, mas também organizam suas ações e

mobilizavam seus partidários. Ao contrário da dispersão das sociedades contemporâneas,

Facebook e Twitter contribuíram para constituir um novo senso de centralidade social, voltado

para a ocupação das ruas e praças, transformadas em locais de referência para reuniões, com um

grande poder de atração emocional, segundo o autor.

Tal motivação emocional mobiliza ainda a construção simbólica de um senso de união entre

os ativistas, por isso o autor afirma que é necessário pensar a rede como um elemento

complementar aos encontros presenciais, bem como um veículo para a criação de novas formas

de interação. Contudo, na relação de forças políticas que concorrem para a vitória ou derrota de

um movimento, é importante estar atento às ilusões de auto-suficiência e ausência de mediação

que a estrutura da internet sugere, pois existem muitas forças em jogo, além da possibilidade do

processo de apropriação de discursos por meio de assessorias de imprensa. Enfim, trata-se de

considerações necessárias para manter em mente que as redes sociais são um instrumento

agregador para as lutas que se travam no enfrentamento cotidiano entre forças políticas, alertando

para os riscos da simplificação e imediatismo dos processos envolvidos.

34

Page 51: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

2.4.1 Manifestações na Internet

A internet é descrita por Romão (2006) como uma cadeia globalizada de arquivos

digitalizados, interconectados e dispostos em links organizados e endereços fixos, cuja

permanência online tem duração bastante volátil. A textualidade eletrônica tem a vantagem de

não precisar necessariamente ser aceita para estar num blog ou numa rede social, mas ainda assim

não traz consigo todos os sentidos: é preciso pensar a questão do arquivo em rede como uma

reflexão também sobre poder, que vai desde disponibilizar instrumentos de permanência de certos

sentidos, burocratizando e oficializando informações, até mesmo construir lugares de resistência,

de autorizar que alguns sentidos sejam divulgados e outros não, de servir para que algumas vozes

sejam caladas. Em suma, o poder de selecionar interesses, de emprestar prestígio e de

proporcionar ligações para que redes de conexões se construam ou se dissolvam.

Melo (2004) destaca que não basta os conteúdos estarem depositados na rede, é preciso

que eles circulem, entrem na ordem do discurso e não fiquem apenas à deriva na superfície. De

acordo com a autora,

Qualquer indivíduo, não importando sua origem geográfica e social, pode investir narede por conta própria e difundir nela todo tipo de informação que ache digna deinteresse, desde que para isso lance mão de um mínimo de competências técnicas. Asfacilidades para lançar uma publicação na web são, sem sombra de dúvidas,infinitamente maiores do que na mídia tradicional. (MELO, 2004, p.137)

Foi com a circulação de informações na rede que novas ações coletivas de protesto e

ativismo surgiram no ciberespaço. Até então estas ações, segundo Castells (2003), eram

relativizadas em fronteiras geográficas e extrapolavam o local, se conectando ao global, e, ao

mesmo tempo, retornando ao regional por meio da virtualidade digital. Por isso em 2013

pudemos presenciar o surgimento de diversos movimentos sociais na rede, tais como a Marcha

35

Page 52: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

da Maconha9, a Marcha das Vadias10, Movimento Passe Livre11, entre outros. São movimentos

que ganharam no Brasil muita visibilidade através das redes sociais e, posteriormente, nas mídias

tradicionais, recebendo o apoio de milhares de pessoas que saíram às ruas para somar aos mais

diversos movimentos em todo o país. Na medida que os protestos se tornavam maiores, eventos

eram criados nas redes sociais, incitando as pessoas a participar da luta, mas agregavam

particularidades: pautas diversas começaram a surgir e gritos de guerra como “o gigante acordou”

entoaram as manifestações virtuais e físicas, conforme vemos na figura 7:

Figura 7 – Manifestantes vão para as ruas12

Ativistas reforçaram a onda de indignação generalizada com os serviços públicos do país

e colocaram em pauta até mesmo reivindicações contra leis específicas em processo de votação

pelo poder legislativo. As ruas receberam a massa em marcha, porém com propósitos próprios,

que não necessariamente convergiam uns com os outros, e no dia 20 de Junho de 2013

9 Movimento que luta pela legalização da maconha10 A Marcha das Vadias protesta contra a crença de que as mulheres que são vítimas de estupro teriam provocado a violência por seu comportamento. Por isso, marcham contra o machismo, e durante a marcha usam não só roupas cotidianas, mas também roupas consideradas provocantes, como blusinhas transparentes, lingerie, saias, salto alto ou apenas o sutiã.11 O movimento social brasileiro que defende a adoção da tarifa zero para transporte coletivo.12 www.google.com/images

36

Page 53: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

totalizaram no país mais de um milhão, noticiados no mundo todo. Alsina (2009), citado por

Ávila (2013), reflete a respeito, afirmando que toda a atividade discursiva pressupõe a produção

de interpretações na construção do que se enuncia. Todas as pessoas constroem a realidade que as

cerca e cada sistema cultural define qual fato ou fenômeno merece ser considerado um

acontecimento. Direcionando estes movimentos sociais online, identificamos uma condição

tecnológica da plataforma de relacionamentos Twitter que passou a ser utilizada em outras redes

tais como o Facebook: a hashtag.

Mais um dos códigos da era virtual, a hashtag passou a ter um papel fundamental nas

comunicações de massa via redes sociais. Seu uso foi iniciado no Twitter e posteriormente se

estendeu ao Facebook (e outras redes), como palavras-chave (relevantes) ou termos associados a

uma determinada informação, possibilitando o acesso a um número infinito de links e

comentários. As tags têm papel importante na difusão de conteúdos e idéias pela rede, espalhando

através de conexões as informações e conteúdos mais relevantes na perspectiva da força de idéias

compartilhadas pela massa de usuário, exemplificado na figura 8:

Figura 8 - Manifestantes no Brasil em Junho de 201313

13 www.google.com/images

37

Page 54: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Conflitos e injustiças fazem parte da nossa história desde o início da humanidade, e

quando passamos a viver em rede, conectados com o que acontece em todo canto do mundo,

experimentamos uma nova forma de existência: o indivíduo se percebe como cidadão global, pois

se estende e integra um todo chamado consciência coletiva. Na medida em que aumenta o acesso

à informação, a tendência é que aumente também o senso de responsabilidade, pois somos cada

vez mais instigados a tomar uma iniciativa acerca dos problemas que permeiam a sociedade. A

internet e as redes sociais aumentaram a sensação de que qualquer pessoa pode fazer a sua parte e

diminuir a angústia da impotência em um click, demonstrando todo apoio (ou repúdio) a

determinada causa. Esse é o chamado slacktivism, também conhecido como ativismo de sofá. O

termo é utilizado para designar o comportamento das pessoas que, ao se depararem com qualquer

causa social, sentem-se participantes, manifestantes ou colaboradores da mesma simplesmente

por passá-la adiante de alguma forma. Porém, acreditamos que apenas compartilhar uma causa

nas redes sociais não necessariamente transforma o sujeito em ativista ou revolucionário.

A divulgação das causas na internet poderia gerar resultados mais efetivos se

funcionassem como uma ferramenta de busca pelo apoio da opinião pública para que seus

objetivos sejam atingidos, não como substituto das ações cotidianas. Compartilhar uma causa no

Facebook ou preencher um abaixo-assinado digital é, de certa forma, manifestar suporte a um

ideal. Lutar por uma causa implica a participação tanto daqueles que fazem quanto daqueles que

falam. Acreditamos que para mudar um país é necessário mais do que apenas passar ideias

adiante: precisamos de ações, desde as menores como não furar a fila do supermercado até o voto

consciente, por exemplo. Ainda assim, isso não diminui o papel de quem promove as causas,

contribuindo para que mais gente tome conhecimento delas ou pressionando o poder público.

Os artistas da periferia de São Paulo também tiveram seu papel nas manifestações. Os

versos de Sérgio Vaz, por exemplo, foram empunhados por professores da rede pública nas

manifestações pela reforma da educação, como podemos ver na figura 9:

38

Page 55: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 9 - Professores manifestam nas ruas14

Além disso, o poeta aproveitou a popularidade das hashtags nas redes sociais e convocou

seus seguidores a se manifestarem, numa campanha contra a falência da escola, clamando pelo

ensino público de qualidade, postando fotos com seus rostos e a mensagem

#NósQueremosEducaçãoPúblicaDeQualidade, ilustrado na figura 10:

14 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

39

Page 56: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 10 - #NósQueremosEducaçãoPúblicaDeQualidade15

Diversos coletivos culturais da periferia paulistana também organizaram na Cooperifa um

debate para discutir a atual situação do Brasil e se mobilizaram para articular ações que

fortalecessem o direito à livre participação democrática no país, e que conscientizassem os menos

politizados a respeito dos perigos que a intolerância, violência e desorganização acarretariam no

dado contexto. Seus discursos defendiam que somente com as pautas próprias das periferias é que

as manifestações poderiam ganhar novamente peso político direcionado e consistente, usando a

cultura, arte e política como elementos aglutinadores.

A cultura de resistência foi ressaltada pelo coordenador da Cooperifa, frisando que a

periferia vivia o momento de colocar em prática tudo o que o rap sempre colocou em ritmo, e

tudo o que tem sido escrito nas poesias periféricas. "O que me parece é que precisamos desse

sangue nos olhos [...]. E a gente sempre escreve sobre isso, fala sobre isso. Sempre cita Zumbi,

Marighella, Che Guevara, mas agora é a hora de colocar em prática tudo isso. Se não for assim,

pode rasgar tudo o que você já escreveu"16, provocou o poeta.

O poeta acredita que uma reforma política é necessária, sendo importante para alcançar esse

objetivo a reivindicação de questões que representem a população brasileira na situação caótica

15 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

16“Diante das mobilizações, coletivos criam frente periférica contra fascistas em SP”, por Sâmia Gabriela Teixeira. In: <http://www.brasildefato.com.br/node/13322>

40

Page 57: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

em que se encontra, sem disfarces nem procedimentos manipulatórios. Sérgio Vaz fica feliz que

“O Gigante” tenha acordado, mas lembra que existe uma parte que nunca dormiu, uma parte que

não recebe as balas de borracha, e sim as de verdade. A figura 11 ilustra o discurso e a ela

podemos acrescentar Gullar: “Só é justo cantar quando seu canto arrasta consigo pessoas e coisas

que não tem voz”.

Figura 11 – Poeta Sérgio Vaz frente às manifestações17

As palavras do poeta podem ser aprofundadas na teoria de Bittencourt (2011), ao afirmar

que as estratégias de resistência na contemporaneidade estão sendo vistas mais como lutas contra

as diferentes formas de assujeitamento, do que lutas contra formas de dominação (uma classe

sobre outra, por exemplo). Nessa direção, seguindo Deleuze e Guattari (2008), ele afirma que se

"busca compreender é a produção de subjetividades que derivam de técnicas cada vez mais

sofisticadas de assujeitamento, bem como as estratégias de resistências que fazem frente a esses

processos" (BITTENCOURT, 2011, p.13).

Recorremos a teoria do assujeitamento de Eni Orlandi (2007), a qual nos permite analisar

como se dá o processo de constituição dos sujeitos e como isso pode repercutir na sua relação

com o movimento e na sua relação com as manifestações. A autora explana que a constituição do

"sentido" e da "identificação do sujeito" se dá a partir das formações discursivas às quais o sujeito

está assujeitado, mas não de forma determinista, e sim na relação entre sua história de vida e a

história de suas relações institucionais.

17 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

41

Page 58: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Observamos que haviam dois núcleos articuladores principais dos protestos: um no campo

do sistema político e da respectiva necessidade de reformas, e outro no campo das políticas

sociais e da necessidade de prioridade governamental em relação a elas. Foi essa condição de

identificação de ser sujeito jurídico, sujeito de direitos e deveres – em outras palavras, sujeito

livre para as manifestações de rua e em reação a formas institucionais de contenção ou violação

desses direitos – que permitiu uma primeira articulação discursiva entre sujeitos plurais,

ideologicamente bastantes diferenciados e, às vezes, opostos, a qual justifica seu comparecimento

simultâneo às ruas. Tal unidade entre sujeitos se constituiu também na identificação quanto ao

questionamento e à reprovação das políticas institucionais. Esclarecendo através de Orlandi

(2007):

No caso do capitalismo, tem a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável,que deve assim responder, como sujeito de direito, frente ao Estado e aos outrossujeitos[...] [...] na individualização do sujeito pelo Estado, pode sim ocorrer a resistência. Hápossíveis deslocamentos do sujeito aos modos pelos quais o Estado o individualiza,deslocamentos que afetam os modos como o sujeito, com sua forma histórica, relaciona-se com as instituições e isso pode resultar em rupturas, transformações no processo desua individualização (2007, p. 3).

Além disso, essa ambiguidade também resulta em mais de uma forma de identificação na

política dos sujeitos-atores que compareceram às ruas em 2013: por um lado, os identificados

com movimentos sociais e (ou) partidos políticos; por outro, os participantes individuais,

convocados, sobretudo, pelas mídias digitais. Essas duas formas de ser sujeito político geraram as

contradições e os conflitos políticos presentes no processo mobilizatório. Além disso, o que

articulava a diversidade de atores ao evento era, num primeiro momento, o direito às vozes da

cidadania nos espaços públicos e às respectivas manifestações; num segundo momento, foram os

questionamentos e a reprovação às políticas institucionais de uma forma geral, os quais se

construíram através de uma espécie de articulação discursiva informal e efêmera, pois realizada

basicamente através de redes virtuais, com pouca organicidade, de uma forma geral.

Esse segundo tipo de articulação, pela forma como se deu, sem a existência ou com uma

frágil "identificação na política" (Mignolo, 2008, apud Scherer-Warren, 2014), ou seja, sem o

trabalho de construção de um compartilhamento ou uma articulação discursiva em torno de um

42

Page 59: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

projeto de mudança ainda que provisório, foi o que caracterizou a efemeridade do grito das ruas

de 2013 no Brasil, e a descrença sobre sua continuidade, ainda que se mantenha o desejo de

promover modificações no campo institucional da política e buscar caminhos para a ampliação no

campo dos direitos humanos, ouvindo-se as vozes da cidadania.

Em suma, percebemos então que tais manifestações se iniciaram em torno de pautas

semelhantes, relativas à necessidade de mudanças estruturais no sistema de mobilidade urbana e

dos direitos dos cidadãos à cidade e a seus equipamentos públicos. Como no passado, a luta

buscava mudanças no sistema social e no campo dos direitos humanos e da cidadania. Entretanto,

as manifestações foram se transformando numa diversidade de lutas específicas, mesclando

participantes de movimentos organizados, de partidos políticos, membros de grupos semi-

organizados e cidadãos individualizados, simpatizantes com as causas em pauta.

2.5. Internet e Literatura

A popularização de novas tecnologias midiáticas despertou questionamentos sobre a

organização e a circulação do fenômeno literário, assim como diversos meios de comunicação

que afetam e transformam a infra-estrutura tecnológica e sociocultural. Isso porque os processos

de mediação entre indivíduo, sociedade e realidade perpassam os grandes tópicos temáticos da

literatura e também os circuitos de sua produção, transmissão e recepção, articulados com as

demais esferas da mídia.

Atualmente, a realidade da internet representa um grande desafio para a cultura do livro

e para as formas tradicionais de produção e recepção literária. Marshall McLuhan afirma que

propagação e a leitura do texto literário são favorecidas pela tecnologia midiática na medida em

que privilegiam a esfera intelectual, pois conquistam uma dimensão essencial da sensibilidade

que, além de enfatizar certa racionalidade, possibilita o exercício pleno de nossas capacidades de

ver, ouvir, tocar e sentir. Quanto ao desenvolvimento das relações entre a literatura e a

apresentação eletrônica dos textos, ainda é possível afirmar que arte passa a ser parte da vida

cotidiana porque tem uma inserção atuante na sociedade e nos processos que dialogam com ela,

reconfigurando o panorama cultural.

43

Page 60: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Diálogos entre tecnologia, cultura e leitura são também uma questão política, na medida

em que revelam sistemas de interação e polemizam conceitos cristalizados sobre a relação da

literatura com a sociedade, com os meios de produção, os produtores, os receptores e com sua

própria natureza e função, obrigando-nos a um questionamento sobre o livro e seus meios de

veiculação, e a uma mudança de horizontes de expectativas quanto à leitura.

Considerando que a tecnologia funciona como elemento central da contemporaneidade,

é necessário aprofundar as relações desta com as esferas da cultura, a literatura e o livro, por

consequência. Benjamin, citado por Gatto (2000), anunciou a crise do livro impresso, abordando,

por um lado, o valor simbólico-cultural que ele carrega e por outro, a sua configuração como

instituição. Entretanto, a experiência do leitor perpassa não só a relação que este tem com a obra,

logo o texto eletrônico oferece mais sensações e possibilidades interativas, mas não supre as

relações do texto impresso com todas as suas aberturas.

Provavelmente o livro impresso e o eletrônico conviverão juntos ainda por um longo

período, embora as publicações em formato eletrônico cresçam cada vez mais. Os e-readers18 não

eliminam o livro impresso como importante suporte informacional: um não supera o outro, cada

um detém seu espaço e, algumas vezes, se mesclam, como no caso do aplicativo para Ipad

Bridging Book19, por exemplo. Os leitores de livros eletrônicos não chegaram para superar

realmente o livro impresso, mas sim para somar: mais possibilidades, mais cultura, mais

disseminação da informação, mais oportunidades para editoras independentes.

É importante notar que as mudanças textuais promovidas pelo uso das novas tecnologias

promovem rizomas, redes hipertextuais, assim surge um suporte para o texto, um novo leitor e a

necessidade de uma nova linguagem: Gatto (2008) explica como uma estrutura complexa, repleta

de torneios linguísticos, jogos vocabulares, além de contar com a exploração do espaço não

somente da página, mas de um universo de informações possibilitadas pela rede: a estrutura

hipertextual. Descentralizadora, trata-se da abertura do texto a um jogo que, como afirma Derrida

(1973) apud Gatto (2000, p.8), “instala a possibilidade de desautomatização do controle sobre a

18Os “Leitores Eletrônicos” (Tradução da autora) são dispositivos criados para a leitura de livros e textos digitais. Um dos exemplos mais famosos é o Kindle, comercializado pela Amazon.com 19 Bridging Book consiste num aplicativo de Ipad no qual o dispositivo digital e um livro impresso, colocados ladoa lado, compartilham conteúdo sincronizado. Folheando as páginas do livro, o usuário-leitor aciona o dispositivo para exibir o conteúdo digital complementar. Na versão atual , as ilustrações impressas em cada página do livro físico são estendidos na tela do dispositivo.

44

Page 61: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

escritura” (Derrida, 1973, apud Gatto, 2000, p.8). Neste sentido, o papel do autor é questionado e

o leitor surge como uma figura que interage na leitura e na produção.

Para melhor apresentação da produção literária nos meios tecnológicos, a noção e

conceito de hipermídia – tecnologia que engloba as noções de hipertexto e multimídia - devem

ser retomados. Nos últimos tempos, a tecnologia consolidou-se no panorama brasileiro,

recebendo muitos incentivos, principalmente da iniciativa privada, pela necessidade de ampliação

das possibilidades de acesso ao conhecimento globalizado e das perspectivas de interação.

Escolas têm transformado seus currículos, ao incluir tecnologias, a fim de possibilitar ao aluno a

ampliação de seu universo, tornando-o cidadão do mundo. Realizam-se teleconferências.

Ampliam-se as salas de bate-papo e fóruns. A web tornou-se o lugar de encontro de milhões de

pessoas que buscam informações, divertimento, comodidade nas compras e pesquisas.

Com o crescimento das novas mídias, a literatura foi estabelecendo um espaço. Jornais

literários, sites pessoais de poetas/escritores, sites institucionais de divulgação de pesquisa,

bibliotecas virtuais com acervo para download, livrarias virtuais, e-books, que se proliferam cada

dia mais. Isto se deve, segundo Gatto (2000), a três fatores:

1. A Web é um campo aberto aos experimentos e vocações.

2. Muitos dos sites de autoria são amadores e respondem a um anseio subjetivo do

criador ser notado pela comunidade.

3. Algumas editoras oportunamente descobriram um nicho no mercado editorial

eletrônico: a possibilidade de publicação de livros com um custo bastante reduzido, possível em

decorrência da não impressão em papel e da distribuição facilitada, fatores que geram uma

elevação do custo.

Essas questões serão discutidas posteriormente, mas por hora elas ilustram a motivação

de uma interessante plataforma no ciberespaço, que se constitui de páginas na web e oferece

acesso facilitado aos usuários, proporcionando um espaço relativamente democrático para novos

escritores.

Beatriz Resende (2010), ao discutir o uso da internet como meio de divulgação da literatura

em seu artigo “A literatura brasileira num mundo de fluxos” destaca os recursos da internet no

papel de modificadores da linguagem literária:

45

Page 62: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Essas novas formas de circulação vêm impondo à produção literária e artística novos formatos, tributários, várias vezes da linguagem própria da internet. Assim como os quadrinhos (HQ), os espaços virtuais deixam marcas na própria estética literária até mesmo quando os escritos migram da internet para o papel. (RESENDE, 2010, P.111)

Ao se pensar em leitores em formação diante dessas modificações contínuas nas formas

de apresentação do texto e na maneira de lê-los, as novas tecnologias parecem se tornar mais

atraentes e capazes de interferir com maior rapidez nas escolhas de leitura das gerações que

crescem em meio a jogos eletrônicos e imagens de alta definição ou 3D. Interessa, neste trabalho,

refletir sobre as possibilidades de divulgação da poesia produzida na periferia, e pensar,

juntamente a Néstor García Canclini (2008, p.30) se os novos espaços para divulgação e seus

suportes avançados servem para diminuir ou ampliar as desigualdades culturais e de leitura,

partindo do questionamento feito por ele em seu livro Leitores, espectadores e internautas:

[...] os novos meios geram desafios para os quais a maioria dos cidadãos não foitreinada: como usar o software livre ou proteger a privacidade no mundo digital, o quefazer para que as brechas no acesso não agravem as desigualdades históricas entrenações ou etnias, campo e cidade, níveis econômicos e educacionais?

Seja pelo livro impresso, seja pelo ciberespaço o interesse do leitor em desvendar

novidades com as quais se identifica é o primeiro impulso para a busca de histórias, e poesias,

utilizando todos os meios de circulação a sua disposição. De acordo com Rubim (2008, p. 23)

apud Porto (2009):

A digitalização da cultura, a veloz expansão das redes e a proliferação viral do mundodigital realizam mutações culturais nada desprezíveis e desafiam, em profundidade, aspolíticas culturais na contemporaneidade. A aceleração do trabalho intelectual; aradicalização da autoria; as potencialidades do trabalho colaborativo; a interferência dodigital em procedimentos tradicionais (copyleat, por exemplo); a inauguração demodalidades de artes; a gestação de manifestações da cultura digital; a configuração decircuitos culturais alternativos; a intensificação dos fluxos culturais, possibilitando maisdiálogos e, também, mais imposições; enfim, os novos horizontes culturais possíveis,com o advento da cultura digital, colocam desafios de grande envergadura para aspolíticas culturais. Acompanhar e propor políticas culturais para este expansivo e velozmundo digital é, sem dúvida, um dos maiores desafios presentes na contemporaneidade.

46

Page 63: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Enfim percebemos a que sociedade contemporânea, com o advento das tecnologias da

informação, assiste a uma transformação, na qual muitos dos conceitos e definições estão em

mutação e, mesmo assim, dialogam entre si. A cultura, de modo geral, redimensiona sua maneira

de se colocar na sociedade e assistimos a uma maneira inovadora de pensar e fazer cultura.

47

Page 64: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

48

Page 65: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

CAPÍTULO 3 - LITERATURA E MARGENS

Até então percebemos que a análise do discurso se preocupa com o modo como o texto

está sendo usado e com as consequências deste uso, visando entender quem fala, para quem fala,

como fala e para que fala, pois o discurso pode ter inúmeras funções e significados. Além disso, a

AD permite-nos perceber de qual maneira se dá a interação entre emissor e receptor de uma

mensagem, identificando o receptor e interpretando o discurso produzido.

Entendemos que para a Análise do Discurso as entrelinhas são muito importantes, porque

é preciso levar em conta as intenções não verbalizadas, mas inseridas na prática discursiva. Por

isso, os textos analisados devem ser completos, incluindo a situação em que ele foi realizado, os

objetivos para o qual prestou o texto e como foi recebido, logo, neste capítulo pautaremos a

literatura brasileira contemporânea produzida na periferia, através de breve histórico e

conceitualização de seus afluentes.

Desde o seu início, o processo de modernização ocorrido no Brasil revelou uma face

conservadora e excludente, pois as tensões vindas da urbanização e da industrialização no país se

fizeram presentes com toda evidência nas representações literárias que acompanharam essas

grandes mudanças. O modernismo de 1922 já trazia na base de suas propostas a revelação dos

descompassos de uma modernidade que não rompia com o atraso, nem com as desigualdades

sociais e políticas. A partir da década de 50, na medida em que os limites da modernidade

brasileira se evidenciavam, a literatura não deixou de representar impasses.

Segundo Gumbretch (1998), há uma série de conceitos diferentes sobre modernidade que,

como cascatas, seguem um ao outro, e muitas vezes se cruzam, acumulando seus efeitos e

interferindo mútua e simultaneamente. Tal dinâmica aponta inicialmente para um tipo de

subjetividade que, num primeiro instante, se condensa no papel de observador e, posteriormente,

assume a função de produzir conhecimento. Assim, o sujeito moderno, ao invés de ser parte do

mundo, via a si mesmo como um excêntrico. Num segundo momento, chamado de modernidade

epistemológica, a complexidade do papel do sujeito moderno aumenta, dada a emergência do

observador autorreflexivo, consciente de que a observação depende da sua posição20 particular.

20 Considerando a multiplicidade de condições que o termo abrange.

49

Page 66: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Considerando que cada fenômeno pode produzir infinitas percepções, formas de

experiência e representações, uma delas não poderia ser superior à outra, e logo surgiu o que

Foucault (1995) chamou de “Crise de Representabilidade”. Segundo o autor, devido ao fato de

que toda representação nova poderia ser integrada em modelos cada vez mais complexos,

atribuiu-se ao tempo a função de ser um agente absoluto de mudança e inovação, “conectando o

tempo histórico ao papel de sujeito e criando a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’

sua própria história.” (Gumbretch, 1998, p.16).

Durante a segunda metade do século XIX, o crescente número de invenções, inovações e

experimentos despertou sintomas de desequilíbrio na representação entre o material significante e

o espírito do significado. Por isso, o modernismo dominado pelas vanguardas, nas primeiras

décadas do século XX foi o nível mais radical, dado que os poetas pareciam mais do que nunca

convencidos de estar desempenhando sua missão histórica de revolucionar e subverter, rompendo

com a função representacional da arte e da literatura, num período chamado por Gumbretch

(1998) de Alta Modernidade.

Na segunda metade do século XX, a subjetividade foi problematizada no pós-

modernismo, porque o ritmo da mudança desacelerou, fazendo com que o tempo não parecesse

mais um agente de mudança e mostrando que havíamos perdido a ambição de nos afastar das

ações e eventos do passado. Portanto, por mais que nossas observações do mundo continuassem a

produzir uma infinidade de representações, percebemos que elas já não se encontravam

sintetizadas em narrativas de desenvolvimento.

Por sua vez, os textos literários escritos na contemporaneidade apresentam “mundos” a

seus leitores, e acabamos atribuindo funções de representação a eles, mesmo que não as tenham

reivindicado, porque podem ser associados à presença, à intensidade, à percepção, à experiência e

à legibilidade21. Tratam-se de características inerentes à literatura produzida na periferia, que se

evidencia na cena cultural nacional, revelando a voz daqueles para quem os benefícios da vida

moderna ainda não havia chegado. As vozes da periferia, dotadas de forte teor de crítica à

exclusão social e cultural vigente no país, com seus valores, sua poética, sua história e sua ética,

serão o tema deste capítulo, no qual traçaremos um panorama da literatura brasileira

contemporânea, desde seus influentes nas décadas de 60/70 à Cooperifa.

21 Conceito de Luckás. Ver em Teoria do Romance, Lisboa, Presença, 1966.

50

Page 67: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

3.1 Viagem pelas Margens

A década de 60 foi um período conturbado na história de muitos países, inclusive no

Brasil, onde a palavra poética era vista como poderosa e instrumento de tomada de poder. Nessa

época a juventude se empenhava com grande entusiasmo no engajamento cultural como forma de

militância política e acreditava na eficácia da arte na propulsão da mudança social. Era difícil

para o Estado brasileiro fomentar os esquemas tradicionais de manipulação populista durante o

governo militar, mantendo o controle das massas, por isso questões como fé no povo,

democratização e nacionalismo entraram no centro das discussões dos artistas de vanguarda,

tanto nos anos que antecederam o golpe militar (durante o governo João Goulart), quanto nos que

o sucederam (antes do AI-5 ser decretado), incitando a produção de discursos radicais em todas

as áreas do saber, e delineando a necessidade de uma arte participante, de modo a forjar o mito do

alcance revolucionário da palavra poética.

No entanto, para revolucionar uma sociedade é preciso passar o poder ao povo. Os

intelectuais então propuseram ao proletariado que os aceitasse como companheiros e

caminhassem lado a lado, compartilhando sofrimentos, exercendo um movimento intencional de

denúncia, comoção e culpa sobre um sistema do qual os próprios escritores de classe média

faziam parte. A arte e a cultura produzidas pelo povo foram se transformando num canal que os

artistas tentavam penetrar e despojar-se do seu caráter burguês, visando conscientizar o

proletariado e denunciar as condições de exploração, tudo isso com base na ideologia

revolucionária presente naquele período.

Os intelectuais que mantinham tais objetivos não enxergavam as diferenças de classe e de

linguagem existentes entre as classes populares e o meio acadêmico. Berlick (1987) explica:

O homem não pode conhecer nada sem entrar em contato com a experiência,isto é, sem viver (praticar) nas circunstâncias do que pretende conhecer. Podematé conhecer a priori a consciência popular e as maneiras de alterá-la, poissendo de outra classe e estando distantes do povo, ainda lhes falta a práticacorrespondente. (Berlick, 1987, p.110)

51

Page 68: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

O maior problema é que quando o intelectual reivindica um lugar ao lado do povo, acaba

por dissimular as diferenças de classes, homogeneizando uma multiplicidade de contradições e

interesses. Heloísa Buarque de Hollanda (1981) explana que a “doutrina que se defende exige a

linguagem do intelectual” que “travestida em povo trai-se pelos signos do exagero e pela

regressão estilizada das formas de expressão provinciais ou arcaicas” (Hollanda, 1981, p. 23 –

24), produzindo uma “poesia metaforicamente pobre, codificada e esquemática” (1981, p. 30), o

que significa regressão para os estudos literários. A autora acredita que a função e a técnica

literária fornecem “acesso à análise dos produtos literários em seus contextos e é através dele que

se poderá dizer a função política dessa produção” (1981, p.32). Talvez “funcionamento” seja um

termo melhor para descrever como os discursos dessas manifestações defendem que a arte seria

do povo, quando na verdade trata-se de um discurso de uma elite intelectual.

Sobre essa fase da literatura brasileira, lembramos a trajetória de Ferreira Gullar, poeta

que se tornou figura-chave do Centro Popular de Cultura, doravante CPC22. Numa entrevista

concedida ao projeto Memória do Movimento Estudantil da Fundação Roberto Marinho, Cacá

Diegues explica que o objetivo do CPC era encontrar as raízes da cultura brasileira para que os

brasileiros pudessem superar a influência de culturas estrangeiras e criar uma identidade

nacional:

A idéia da cultura popular era o seguinte: existe um potencial cultural, de identidadenacional muito forte, que está subjugado pela hegemonia da cultura estrangeira que nosdomina há 500 anos, primeiro a portuguesa, depois a européia, sobretudo a francesa, edepois a norte-americana. Então, era preciso se libertar disso, e a forma de se libertarera se voltando para criação popular, para a criação original do povo brasileiro.23

Gullar, comprometido com o rigor formal concretista, procurou trabalhar uma linguagem

diretamente participante. João Boa Morte, por exemplo, é um poema no formato de cordel sobre

a reforma agrária, e foi o primeiro de uma série de obras notáveis nas quais o rigor formal

22 criado em 1961 na cidade do Rio de Janeiro por iniciativa de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman23 Entrevista de Cacá Diegues concedida ao projeto Memória do Movimento Estudantil da FundaçãoRoberto Marinho. Disponível em:<http://www.mme.org.br/main.asp?View=%7BD8F61CAF%2DFA6F%2D480C%2DB5B8%2D2B7E57510000%7D&Team=&params=itemID=%7B80252FA7%2D3450%2D480B%2D9F22%2DA9B6ECCD8BAD%7D%3B&UIPartUID=%7BD90F22DB%2D05D4%2D4644%2DA8F2%2DFAD4803C8898%7D>

52

Page 69: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

informa de maneira brilhante a participação literária engajada, inclusive na poesia. Em Gadet &

Pêcheux (2004), citado por Salles (2011), a poesia flui, no fio discursivo da língua, como efeitos

de deslizamentos próprios a seus processos de significação: “O poeta seria apenas aquele que

consegue levar essa propriedade da linguagem a seus últimos limites; ele é, segundo a palavra de

Baudrillard, suprimindo a sua acidez, um ‘acelerador de partículas da linguagem’” (Gadet & Pêcheux,

2004, apud Salles, 2011, p.16)

A língua, pensada pela teoria materialista da linguagem, tem sua ordem própria, apesar de

ser sujeita a deslizamentos e rupturas, em sua rede significante por onde incide a metáfora, o

efeito poético. Desse modo, os processos de subjetivação se dão em espaços de incompletude,

assim “[...] nenhuma língua pode ser pensada completamente se aí não se integra a possibilidade

de sua poesia” (PÊCHEUX, 2004, p. 51). Portanto, podemos pensar na língua a partir do

momento em que se abre a possibilidade da poesia, da criação, movimentos de transgressão e de

instauração de um devir. Outros poetas como Moacyr Felix e Paulo Mendes Campos também

começaram nesse momento a criar poemas participantes que, mais tarde, foram reunidos nos três

volumes de Violão de Rua, editados pelo CPC.

Depois da euforia desenvolvimentista, uma geração de jovens artistas começou a

expressar sua inquietação com os impasses do processo cultural brasileiro, desconfiando dos

mitos nacionalistas e discursos militantes, originando um movimento construído de fragmentos: o

Tropicalismo. Os principais traços desse movimento eram a crítica à intelligentsia, o namoro com

canais de massa e a recusa de padrões de bom comportamento. Quanto à construção literária, era

valorizada a técnica, a fragmentação, o alegórico, o moderno e a crítica. Em resumo, trata-se da

expressão de uma crise.

O proletariado recusava a promessa do futuro redentor que regia os movimentos literários

do modernismo até então e a preocupação com a momentaneidade reforçava a necessidade da

revolução pessoal antes de querer transformar qualquer outra coisa, principalmente, uma

sociedade. Isso era incentivado por meio da subversão de valores e comportamentos nos

movimentos de divulgação cultural, atitude essa originária da contracultura, a qual se

manifestava não só através do tropicalismo, como também do rock, hippies, beatniks, punks,

underground, Woodstock, entre outras expressões de valores e concepções de mundo que pudesse

dar sentido às suas vidas.

53

Page 70: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

O movimento da contracultura caracterizado pela agitação subversiva cresceu em diversos

países sob inspiração dos Provos, de Amsterdam (Guarnaccia, 2001). Precursor do ativismo

contemporâneo, Provos foi um movimento dos anos 60, no qual jovens agiram no território da

política de modo original: lúdico. Os agitadores se reuniam no "Centro Mágico" de Amsterdam

para celebrar ritos coletivos contra os fetiches da sociedade consumista e logo surgiram as

campanhas como antipublicidade ou antiautomóvel, que desenvolviam a idéia de que a subversão

funcionava melhor quando misturada com humor inesperado.

Esse momento proporcionou a oportunidade para originar os primeiros veículos de

informação alternativos, principalmente na prática jornalística - como, por exemplo, a publicação

dos jornais Pasquim, Flor do Mal, entre outros que, ao invés de buscar a suposta neutralidade

como de praxe, explicitavam a parcialidade e a subjetividade de seus autores, o que pode ser

encarado como um progressivo desinteresse pela política, uma vez que os caminhos para a busca

pela autenticidade haviam sido abertos.

Por outro lado, a realidade dos grandes centros urbanos era valorizada em seus aspectos

marginais, pois a identificação que o movimento tropicalista impulsionou era com as minorias:

negros, homossexuais, marginal do morro. Os textos aparecem com marcas de orgulho racial,

rituais africanos, cozinha sensual, o ócio, entre outros. Eram temáticas que misturavam uma

situação primitiva e ao mesmo tempo moderna, e nesse meio, as produções sobre a Bahia se

destacavam, estabelecendo certa cumplicidade entre a transgressão e a marginalidade.

Os destaques da tropicália se deram na relação da literatura e da música com os cantores-

compositores, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, com obras memoráveis: nos

discos, Tropicália (Caetano) e Geléia Geral (Torquato e Gil); nos festivais de música popular

exibidos pela televisão, entre as músicas que mais chamaram a atenção estavam Alegria, alegria

(Caetano) e Domingo no Parque (Gil).

A valorização da marginalidade urbana nas produções culturais dos anos 70 não era uma

saída alternativa, e sim tinha a intenção de ameaçar o sistema diretamente como uma opção de

violência no sentido da “rebeldia”, em suas possibilidades de agressão e transgressão, permitindo

uma contestação assumida conscientemente. O regime de violência e até a própria censura

atuaram de forma marcante na produção de toda uma geração de escritores e essa influência se

deu não só no campo temático, no qual a obra de ficção incorporou a violência social estabelecida

54

Page 71: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

e organizada como sistema, mas também no campo da estética. O escritor passou a procurar por

uma estética que compreendesse, dentro da própria estrutura textual, representativamente o

estado social fragmentado e atacasse, mesmo que indiretamente o Regime imposto, denunciando

e sendo utilizada como instrumento de conscientização crítica e política.

Nesse momento de desilusões com a política e descrença com a esquerda, a crítica pós-

tropicalista visava agredir o sistema por meio da subversão de linguagens e comportamento,

porém o movimento foi derrotado novamente, dessa vez pelo AI-524, que intensificou a repressão

no país. Consequentemente, a reação literária, movida pela esperança de instaurar mudança,

levou suas opções estéticas ao centro das experiências existenciais, e a loucura passou a ser vista

como uma perspectiva capaz de romper com a lógica política, tanto da direita quanto da esquerda,

resultando nas radicalizações do uso de tóxicos, experiências sensoriais e emocionais, que

aumentaram consideravelmente o número de internamentos e suicídios.

Os produtores culturais dessa cena de contradições e fragmentações agiam em cada área

possível de ser acessada, incentivando o trabalho coletivo e múltiplo embasado na inovação,

buscando intervir na cultura popular de massa, recusando assim as formas acadêmicas e

institucionais de racionalidade. A marginalidade era então vivida e definida por conceitos de

ordem institucional que estavam, ao mesmo tempo, fora e dentro do sistema, estabelecendo

tensões e estranhamentos, mais empenhados na produção e circulação de sentidos que nos

resultados os quais essas ações implicariam. O poeta do pós-tropicalismo “é um grande

batalhador: investe contra a ordem do cotidiano, contra os laços de família, a tradição religiosa,

os pais culturais. Recusa a hierarquização do poder literário, a atitude hipócrita” (Hollanda, 1981,

p.76). Assim, a função do saber passa a ser relativizada e a intervenção exige participação, ainda

que nos próprios circuitos do sistema e opondo-se à sua ordem.

O sonho de opor-se ao sistema deu lugar ao processo de abastecimento do mesmo. Os

novos heróis se apresentavam como indivíduos que diziam aquilo que o povo queria dizer e se

via impedido através da ambigüidade, fazendo alusões à situação política do país, o que

24 O Ato Institucional nº 5 foi baixado em 13 de Dezembro de 1968 durante o governo do general Costa e Silva, e representava o ápice da ditadura militar brasileira (que vigorou entre 1964-1985). O ato foi feito valer até dezembro de 1978 e instaurando uma gama de ações arbitrárias, dando o poder de exceção aos governantes para punir aqueles que fossem considerados inimigos do regime, além de impor a censura prévia a jornais, livros, músicas, peças de teatro e quaisquer manifestações culturais.

55

Page 72: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

despertava a cumplicidade entre artistas e público, no movimento de burlar a censura e ser

codificado. Esses artistas eram porta-vozes da desgraça do povo e mesmo assim foram

violentamente criticados, tidos como “desbundados”, tornando-se mártires da ditadura. As

linguagens e formas de conhecimento foram rejeitadas, assim como o discurso da esquerda que

passou a ser burocratizado e confundido com o discurso da cultura oficial do próprio sistema.

Os jovens então começaram a atuar no modo de produção cultural em circuitos

alternativos, marginais, enfatizando o caráter coletivo e artesanal de suas experiências. A poesia

entrava em cena com livros que eram vendidos pelos próprios autores nas portas de museus,

cinemas e teatros, posteriormente passados de mão em mão. A Geração do Mimeógrafo

evidenciava não só os valores poéticos, como a novidade da subversão de padrões tradicionais da

produção, edição e distribuição de literatura. Esse acompanhamento colaborativo do autor em

todo o processo pretendia a aproximação com o público, um diálogo, apresentando uma face

afetiva, o que abriu portas para um novo público leitor de poesia, principalmente com o uso da

linguagem que traz marcas da experiência dos poetas, num relato do cotidiano capaz de quase

confundir a literatura com a vida. Essa foi uma das relações que despertaram a atenção à chamada

poesia marginal.25

O termo “marginal” nesse momento justificava-se pela condição alternativa, por estar à

margem da produção e veiculação no mercado, e não a partir apenas dos aspectos literários dos

textos. Esse grupo também não desejava a revolução como os engajados poetas anteriores, nem

mesmo se confrontam diretamente com o sistema, como os tropicalistas e pós-tropicalistas:

intentavam criar uma alternativa e não a oposição. Tratava-se de um descompromisso com a

ordem do sistema através da consolidação das relações entre arte e vida, e a presença de

coloquialismos era um procedimento literário que visava poetizar a experiência do cotidiano –

não se tratava do cotidiano poetizado como costumava ser até então. A poesia tornou-se a arte de

captar situações, valorizando a momentaneidade, proporcionando um deslocamento da crítica

social. A própria experiência artesanal da produção gráfica dos livros junto com a sua posterior

25 Segundo os conceitos de Hollanda, “Os então poetas se definiram marginais por uma poesia com fortes traços anti-literários: uma dicção poética empenhada em “brincar” com os padrões vigentes de qualidade literária, de densidade hermenêutica do texto poético, da exigência de um leitor qualificado para a plena fruição do poema e seus subtextos. Assim, os marginais, com um só gesto, desafiaram não apenas a crítica, mas também a instituição literária oferecendo uma poesia que não parecia importar-se nem com a permanência de sua produção, nem com o reconhecimento da crítica informada pelos padrões canônicos da historiografia literária.” (http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/a-poesia-marginal/, acesso em 04/11/2014)

56

Page 73: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

veiculação no mercado perdeu seu caráter técnico, de modo que a marginalidade era vivida e

sentida na ordem do cotidiano, numa proposta vitalista e instantânea, sendo influenciados pela

geração anterior a comparecer com uma avaliação mais crítica da prática poética, suas formas de

produção e circulação, inclusive no sentido da legitimação no campo intelectual. Recursos como

a metonímia, alegoria, ironia e paródia tornaram-se freqüentes visando uma literatura em favor do

distanciamento crítico.

Até o próprio aspecto gráfico entrou na mudança: poemas curtos como um flash de

episódios e sentimentos eram cada vez mais freqüentes. Mais do que um procedimento literário,

os poetas visam à transgressão à ordem do cotidiano, que é agredido pela eficaz subversão na

absorção do coletivo pelo individual. Vejamos o poema de Cacaso, Jogos Florais I:

Minha terra tem palmeirasonde canta o tico-tico.Enquanto isso o sabiávive comendo o meu fubá.Ficou moderno o Brasilficou moderno o milagre:a água já não vira vinho,vira direto vinagre.

A eficiência dos efeitos imediatos da proposta marginal foi identificada como um grito, e

não como uma forma de resistência planejada, ainda que na tentativa de criar uma nova

linguagem essa literatura promovesse uma reflexão sobre as linguagens até então já legitimadas.

É nesse sentido que os autores buscaram saídas do nacionalismo e da arte comprometida através

da recusa dos discursos do saber e do poder: através do humor, da paixão e da surpresa.

O que se seguiu nos anos 80 foi a reanimação do quadro político e das polêmicas e

incertezas do país, caracterizado pela identificação da repressão ideológica da produção cultural

pelo Estado, retomada dos discursos políticos na imprensa, mobilizações sindicais e

manifestações estudantis, e também das manifestações vindas das periferias do país.

57

Page 74: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

3.2 O Aparecimento da Periferia

Em 2001 o escritor Ferréz organizou textos para um projeto de literatura, em parceria com

a revista Caros Amigos, denominado “Caros Amigos / Literatura Marginal: A cultura de

periferia”, que vendeu 15.000 cópias e impulsionou a publicação de mais duas edições, reunindo

um total de 48 autores e 80 textos, que incluíam letras de rap, contos, crônicas e poemas de

escritores em sua maioria residentes da periferia de São Paulo. A revista Caros Amigos, mensal e

de circulação nacional, foi criada pela Editora Casa Amarela com o intuito de apresentar opiniões

críticas sobre diversos temas, variando de política a artes, com o objetivo de não só informar

como também formar leitores. Marcos Zibordi (ZIBORDI, 2004, p.82-83 apud NASCIMENTO,

2009, p. 15) analisou edições regulares e afirma:

[...] a literatura presta serviços à causa do homem, preferindo falar dele imerso emproblemas pessoais e sociais – geralmente os sociais incidindo nos pessoais –demonstrando maior preocupação com os motivos do mundo terreno, real e concreto, doque com a inquietação estritamente estetizante.

Nas edições especiais sobre literatura periférica, os textos focavam principalmente as

críticas sociais através de contos que relatam o cotidiano de moradores das favelas que passam

por situações violentas e intimidantes. Nos contos, os personagens que mais sofrem são também

aqueles que contestam a realidade social em que se encontram, seja por tornarem-se mais críticos

através do contato com a literatura ou pela busca da justiça e da vingança. As crônicas e o Rap,

por sua vez, aparecem marcados por uma linguagem muito próxima à oralidade, inclusive com

palavrões e gírias, num tom que parece visar a “conscientização” do leitor. Os poemas, por sua

vez, aparecem em maior número. É válido mencionar que as três edições totalizaram a

participação de quatro mulheres, sendo que apenas uma abordou experiências relacionadas ao

universo feminino em seus poemas.

Na terceira edição da coleção, foi maior a variedade dos textos e recursos literários, de

modo que a violência passou a ser o pano de fundo para histórias pessoais, fossem de superação

ou casos de amor. As publicações da revista pararam por ai, mas em 2005 foi organizado por

Ferréz e lançado pela Editora Agir, o livro Literatura Marginal: talentos da escrita periférica,

58

Page 75: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

uma coletânea de vinte e cinco textos dos autores participantes das edições especiais da revista. O

que se seguiu foi um estouro de lançamentos de obras individuais de vários autores da chamada

literatura periférica. Entre eles estão Graduado em Marginalidade (2005), de Sacolinha; Vão

(2005), de Allan da Rosa; O trem: contestando a versão oficial (2005), Alessandro Buzo; A

poesia dos deuses inferiores (2005), Sérgio Vaz.

Esses autores se destacaram por também atuarem nos espaços retratados em seus textos,

através dos quais encontraram uma maneira de se auto-representar com contos e poemas

marcados pelas seguintes características: seus textos eram descritivos ou biográficos,

relacionando problemas sociais à vida e práticas sociais do povo da periferia em temas como o

cotidiano, violência, carência de bens e equipamentos culturais, relações de trabalho e a

precariedade da infra estrutura urbana. As construções das narrativas remetem a memórias dos

escritores, retomando aspectos individuais, da infância, do trabalho, do bairro, entre outros.

A literatura dessa vez passou a ser usada como um ato político que visa dialogar com as

populações das periferias urbanas brasileiras. Refere-se à construção de um discurso que pretende

“ensinar” a capacidade crítica ao público, através de textos com fundo moral. São textos que

polemizaram também questões como o acesso dos membros das classes populares aos bens de

produção cultural e letramento, a aproximação com a linguagem do hip hop, a legitimidade de

“representar” certa realidade social e a valorização de escritores da periferia como produtores da

sua própria representação.

Quanto à crítica acadêmica, pode ser sintetizada pela valorização da produção dos

escritores originários da periferia, em geral conferindo-lhes autenticidade pela mistura da

“vontade documental, força do testemunho e ficcionalização das próprias experiências vividas

pelos autores marginais” (Eslava, 2004, p.36). Sobre os aspectos biográficos, assim como seus

variados envolvimentos profissionais, os autores sempre buscam evidenciar seus respectivos

currículos, não só nos textos publicados como em suas palestras, sinalizando para as

características marginais ou compromissos sociais dos quais fazem parte ou que “agitam”, como

eles e a imprensa andam dizendo. A maioria desses escritores é negra e, segundo a pesquisa de

Érica Nascimento, residentes na periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo e na Zona Leste.

A pesquisadora trouxe ainda em seus resultados informações relativas à trajetória literária

desses autores, que afirmam ter começado a se interessar por literatura ainda durante a infância

59

Page 76: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

ou adolescência, e tiveram nos familiares o incentivo para tal. Para começar a escrever, o bom

desempenho nas redações escolares, segundo a pesquisa, foi essencial, mesmo que os primeiros

textos tivessem sido produzidos já na idade adulta. Como dito, os autores da periferia afirmaram

em entrevista para Érica Nascimento que tem preferência por publicarem principalmente poemas,

seguidos por crônicas e contos. Suas inspirações literárias vão de Machado de Assis, Guimarães

Rosa e Mário Quintana até GOG e Mano Brown. Embora as edições especiais da revista Caros

Amigos não tenham sido a primeira veiculação impressa dos textos de todos os escritores,

provavelmente foi a que agregou prestigio social e fomentou reconhecimento público à maioria

deles.

3.3 Conexões

No universo das artes, algumas conexões foram estabelecidas com a literatura e

contribuíram bastante para a construção da imagem dos escritores como porta-vozes dos sujeitos

que vivenciam situações de marginalidade (principalmente moradores da periferia). A primeira (e

talvez mais relevante para esse estudo) foi o hip hop. O movimento surgido nos Estados Unidos

dos anos 80 inspirou o hip hop, que é um modo singular de apropriação do espaço urbano e do

agir coletivo dos moradores das periferias urbanas e está associado às experiências dos jovens.

No final da década de 80, as coreografias do break saíram dos bailes e foram levadas a locais

públicos como praças e estações de metrô das grandes capitais brasileiras. Desse modo, o rap se

tornou a expressão artística mais importante para a divulgação do movimento porque nas letras

deste gênero musical predominam versos engajados sobre temas relacionados às periferias

brasileiras, que motivam e mobilizam seus ouvintes. Esboçou-se então um movimento voltado

para a atuação política.

Associações de rappers e grafiteiros atualmente realizam oficinas culturais para a

divulgação de suas expressões artísticas, organizam shows beneficentes em prol da comunidade e

reuniões para discussões sobre questões raciais e políticas, além de se apresentarem

frequentemente nos saraus e realizarem ações conjuntas com os organizadores dos mesmos.

Sobre a relação entre o rap e a literatura, costumam serem abordadas nas letras as dificuldades

60

Page 77: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

dos moradores da periferia ao acesso a bens culturais, além do incentivo à produção de textos que

expressem a linguagem da periferia, visando assim a formação de leitores, entre outros.

A legitimidade desses agitadores culturais se posicionarem como porta-

vozes/representantes dos socialmente marginalizados, passou a ocupar também os canais das

mídias, tanto impressas quanto eletrônicas: Ferréz possui um quadro próprio no programa

Manos e Minas da TV Cultura, chamado "Interferência" onde entrevista pessoas para comentar

sobre rap é um dos debatedores, ao lado de Karina Buhr, Leonardo Sakamoto e PC Siqueira, do

"Programa Piloto", exibido mensalmente via internet pela TV Carta, da revista Carta Capital.

Alessandro Buzo também obteve sucesso na mídia, e desde outubro de 2011 colabora com o

jornal SPTV 1ª Edição, da Rede Globo, onde apresenta, às sextas-feiras, o quadro "SP Cultura",

sobre a cultura da periferia paulistana. A produção dos escritores da periferia começou a ganhar

espaço na ONG Ação Educativa. Dentre suas atividades há formação de educadores e jovens,

pesquisa e assessoria a políticas públicas ou projetos que fomentem a justiça social e o

desenvolvimento sustentável, e ainda a cessão dos seus espaços e equipamentos multimídias para

grupos organizados cujos objetivos se identificam com os da organização.

Em cada oportunidade, escritores como Alessandro Buzo, Sergio Vaz e Sacolinha buscam

apresentar seus produtos literários e projetos culturais: Favela toma Conta, Cooperifa e

Literatura no Brasil – respectivamente, que ajudam a viabilizar a comercialização de seus livros

e desenvolvimento de ações que combatam o acesso restrito dos moradores da periferia à

literatura. Esses e outros autores são os responsáveis pela formação do núcleo de Literatura

Periférica, que teve o seu primeiro encontro na realização de um sarau de poesia e música rap que

aconteceu no dia 20 de maio de 2006, dentro da programação da Virada Cultural de São Paulo. A

partir de então, visam desenvolver atividades com comunidades carentes, tais como oficina de

literatura, de dramaturgia, exposição de fotografias e debates.

3.4. Literatura Marginal: Questões de Terminologia

Para ser vista como literatura marginal, uma obra produzida a partir de 1990, de acordo

com os estudos de Érica Nascimento (2009), se associava de três maneiras: a primeira resultar da

61

Page 78: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

produção de escritores oriundos de espaços marginais; a segunda, ser composta por textos que

explorassem temas como violência, pobreza, carências culturais e sociais, cotidiano, entre outros;

a terceira e última, se refere às obras produzidas por contraventores e que narram as vivências de

seus autores no mundo da criminalidade.

Ora, literatura marginal é aquela que se coloca, propositalmente, fora do cânone ou que é

colocada fora dele para ir contra o mesmo. Isso não envolve necessariamente nem a periferia,

nem o marginalizado social. No entanto, tal terminologia pode referir-se também à literatura

daquele que foi excluído socialmente e que ganha voz. Ou pode ainda incorporar o termo

marginal no sentido de contraventor que começa a falar da sua própria voz. A autora identifica

essa voz que surge como aquela que começa a revelar a má consciência da sociedade brasileira,

aquilo que ela mesma tentou varrer pra debaixo do tapete e agora se transformara em tramas do

colapso social brasileiro, que voltam o olhar dos autores, leitores e estudiosos para espaços e

sujeitos marginalizados.

Existe um projeto editorial denominado Literatura marginal: a cultura da periferia, que

sugere a existência de um conjunto de escritores que atribuía ou adotava a “marca” literatura

marginal como parte importante da construção da autoimagem, como um signo sob o qual

gostariam de ser reconhecidos pelo mercado, pela imprensa e público-leitor. Seus textos podem

ser classificados como literatura marginal porque a expressão seria representativa do contexto da

marginalidade cultural e social ao qual estavam submetidos, relacionados não só à sua origem

quanto à temática dos textos, utilizando-se de um tipo de linguagem que destoa do padrão tido

como culto e com tom realista. Os textos são marginais, porém não inferiores.

Allan da Rosa, escritor da periferia do Rio de Janeiro, justifica em uma de suas entrevistas

que os escritores da periferia encontraram na atividade literária uma possibilidade de reverter a

própria condição de marginalidade social que os legitimara. Em entrevista para a pesquisadora

Érica Nascimento (2009), o autor afirma:

A gente é marginal, mas quer ter editora, quer ter doutorado. A margem pra mim é o quedesestabiliza o centro, por isso mesmo. [...] Marginal é pelo tema, é pela forma, é pelafonte, pela raiz, é pelo público que a gente imagina atingir. [...] Eu me identifico com otermo, mas não quero nem pra mim, nem pra você, ficar dormindo embaixo de goteira,passando perrengue.

62

Page 79: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

A partir do discurso dos autores em diversas entrevistas disponibilizadas na rede, é

possível apreender que há também algumas variações para o sentido da associação do termo

marginal à literatura, de modo que o uso da expressão literatura marginal por escritores que

moram na periferia é também uma referência ao seu contexto sócio-histórico: em primeiro lugar,

refere-se à origem socioeconômica; em segundo, à temática dos textos que buscam evidenciar as

práticas, o linguajar, o estilo de vida dos moradores das periferias urbanas e membros de classes

populares; em terceiro, à preferência por um tipo de linguagem que se contrapõe aos códigos

escritos tidos como cultos; e, enfim, a uma série de obras que não receberam legitimação por

parte da crítica especializada ou que estão sendo produzidas e divulgadas à margem do grande

corredor editorial. Da parte das editoras, o valor agregado às obras de “autenticidade” ao que está

sendo narrado e da parte dos autores, manifesta-se com o certo desejo de marginalidade na

escolha do tema ou do discurso assumido. É possível identificar na trajetória de alguns escritores

que a carreira literária foi alicerçada nos circuitos alternativos de produção e circulação,

construída com o apoio de sites e periódicos ligados ao movimento hip hop.

Veremos ainda neste capítulo alguns exemplos de escritores que protagonizam o

movimento literário-cultural que se desenvolveu principalmente a partir da mobilização de redes

extra-literárias, tornando-se parte da periferia tal como a autoria da própria imagem. A maior

parte dos escritores que entraram em cena de forma coletiva não encontrou espaço no mercado

editorial oficial e seguiu inventando suas próprias formas de produção, circulação e consumo,

desencadeando uma movimentação cultural que vem crescendo e tomando novas formas nos

últimos 15 anos.

Eles assumiram o papel de porta-vozes dos sujeitos marginais e periféricos no plano

literário, além de desenvolver ações pragmáticas voltadas para a produção e consumo de bens

culturais em bairros da periferia, com elementos que lhes conferiram singularidade o suficiente

para que possamos distingui-los de outros artistas. Devido a isso, buscamos significar a literatura

produzida na periferia.

63

Page 80: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

3.5. Alguns Escritores em Cena

3.5.1.Ferréz

Figura 12 - Ferrez26

O homem na figura 12 é Reginaldo Ferreira da Silva prefere ser chamado de Ferréz, numa

homenagem aos heróis brasileiros Virgulino Ferreira – o lampião (Ferre) e Zumbi dos Palmares

(Z). Nascido em São Paulo, no ano de 1975, o romancista, contista e poeta trabalhou em

diferentes ocupações: vendedor ambulante de vassouras, balconista em bares e padarias, auxiliar

geral de construção, arquivista e até mesmo chapeiro em rede de fast food. Em 1997, lançou o

livro de poemas influenciados pela poesia concreta, denominado Fortaleza da Desilusão e dois

anos depois fundou o grupo 1DaSul, interessado em promover eventos e ações culturais na região

do Capão Redondo, periferia da cidade de São Paulo.

Ligado ao movimento hip-hop, além da ação cultural e política que empreende desde

então, escreve letras de rap e canta em grupos locais. O artista estreou na prosa de ficção em 2000

com o romance Capão Pecado, em referência ao bairro paulistano, que tem no dia a dia da

periferia seu tema principal. Em 2003, lançou seu segundo romance, Manual Prático do Ódio.

Organizou e editou a revista Caros Amigos: Literatura Marginal, que deu origem à antologia

Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica, lançada em 2005, ano em que também

publicou o romance infanto-juvenil Amanhecer Esmeralda, seguido em 2006 pelo livro de contos

26 www.google.com/images

64

Page 81: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Ninguém É Inocente em São Paulo, com seis contos transformados em curtas-metragens e uma

animação. De 2001 a 2010, atuou ainda como cronista na revista Caros Amigos e publicou, em

2009, Cronista de um Tempo Ruim. No mesmo ano lançou o documentário “Literatura e

Resistência”, que conta os últimos 11 anos de sua história.

Em seus romances e contos, Ferréz apresenta problemas cotidianos vividos pela

população das regiões periféricas de São Paulo. Suas histórias expõem por meio da ficção os

dilemas relacionados à situação de pobreza desses habitantes. A obra revela a violência

vivenciada por seus personagens à medida que investiga criticamente esses sujeitos, sendo, ao

mesmo tempo, vítimas e agentes do processo social no qual se inserem. A prosa de Ferrez busca

reconstituir a variante linguística da periferia da cidade de São Paulo e constituir um ponto de

vista literário e crítico interno a essa realidade.

Na internet, Ferréz divulgou seu trabalho até 2011 no Twitter através da página

https://twitter.com/escritorferrez, mas ainda é bastante ativo no perfil do Facebook,

https://www.facebook.com/ferrez.escritor, onde divulga para aproximadamente 12 mil pessoas os

próximos eventos dos quais irá participar, fotos de ações culturais e até comentários sobre livros

que leu. O escritor tem ainda um blog, http://ferrez.blogspot.com.br/, também atualizado, onde

também posta alguns textos, crônicas, além das habituais fotos e chamadas de sua agenda.

Ferréz foi um dos primeiros escritores da periferia, tradicionalmente excluídos do sistema

literário, que começou a ganhar visibilidade na esfera editorial e no meio acadêmico,

problematizando em sua prosa questões como a auto-representação, afirmação identitária e

inserção nos circuitos canônicos e mercadológicos. Sua trajetória pode ser relacionada a

fenômenos importantes da segunda metade do século XX, tais como a intensa urbanização e o

crescimento das taxas de alfabetização e escolaridade, atingindo pela primeira vez na história do

Brasil amplos setores das populações pobres e marginalizadas. Um dos aspectos mais relevantes

que impulsionou a produção literária na periferia foi a associação das formas cantadas ao circuito

de leitura e escrita nas comunidades mais pobres, estimulando as condições de produção.

As condições de produção do escritor de periferia estão à margem das políticas oficiais:

dificuldades financeiras, carência de opções de lazer e cultura, falta de perspectiva profissional,

violência, criminalidade, e mais uma série de fatores que desfavorecem os moradores da favela.

Por isso, no caso do autor, a disposição de agir, colocar em prática o que projeta é uma de suas

65

Page 82: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

prerrogativas. Como afirma Orlandi (2005), as condições de produção envolvem o contexto

material e institucional, além do imaginário dos interlocutores, compreendem fundamentalmente

os sujeitos e a situação, bem como a memória que faz valer essas condições de produção. Assim

sendo, em uma prática de leitura à luz da Análise do Discurso, é importante considerar as

circunstâncias de enunciação: o contexto micro (imediato) em que o sujeito que assina o texto, o

meio e o suporte em que está sendo veiculado e o contexto macro (sócio, histórico, e ideológico

mais amplo).

Para que o dizer faça sentido, é necessário que este esteja sustentado por um saber

discursivo, um já dito, "aquele que fala antes, em outro lugar independentemente", isto é, o

interdiscurso, a memória discursiva. Tudo o que já foi dito sobre o assunto em questão, sobre a

violência, sobre a diferença entre ricos e pobres, de algum modo significa ali. "O dizer não é

propriedade particular, as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua.

O que é dito em outro lugar também significa em nossas palavras" (ORLANDI, 2012, p.32). Essa

relação do dizer com o já-dito é que torna possível na análise a compreensão do funcionamento

do discurso, a relação com os sujeitos e com a ideologia.

Ao ler, por exemplo, as crônicas publicadas por Ferréz no jornal Folha de São Paulo27 ou

um de seus romances, percebemos que à medida que o autor projeta a imagem de um leitor

(cidadão comum), ele usa o mecanismo da antecipação, ou seja, ele coloca-se no lugar de seu

interlocutor prevendo como seria sua reação diante de determinado discurso, com isso ele prevê

os efeitos de sentidos que podem ser produzidos, regulando seu discurso de acordo com os efeitos

de sentidos que deseja produzir em seu interlocutor. Há, portanto, aí um texto dirigido a um

público imaginário, virtual “aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele

se dirige” (ORLANDI, 1987, apud Salles, 2012, p.9), quando o leitor real lê o texto, ele entra em

contato com o leitor imaginário a quem este texto se destina. Nesse sentido, essa relação é crucial

para o efeito de sentido que será produzido: o de chocar o leitor, sensibilizá-lo frente a um fato

vivenciado pelo artista. É válido contrapor as condições de produção de discursos frequentes de

Ferréz, conforme segue:

27 Em anexo a crônica “Pensamentos de um Correria”, publicada no jornal Folha de São Paulo em resposta ao texto de Luciano Huck, que contou sobre como teve seu relógio roubado no trânsito.

66

Page 83: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

a) A imagem que o produtor do texto faz de si: Ferréz se constrói discursivamente

como sujeito que fala de um lugar social relacionado à periferia que segue regras bem diferentes

daquelas da classe média.

b) A imagem que o produtor do texto faz do seu leitor (público-alvo): Ferréz parte da

imagem de um leitor que passe a olhar o problema de outra perspectiva.

c) A imagem a respeito da questão da violência: a violência é tida como efeito de uma

sociedade desigual, excludente e preconceituosa ou ainda como única forma de sobrevivência

daqueles que não têm com quem contar. “NINGUÉM É INOCENTE EM SÃO PAULO. Somos

culpados. Culpados. Culpados também”28.

O importante é frisar que o locutor “antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido

que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito,

neste caso, representado por Ferréz, dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa

produzir em seu ouvinte” (ORLANDI, 2012, p. 39), pois o ouvinte/leitor participa do processo de

produção de sentidos em condições sócio-historicamente determinadas. O modo como o sujeito

irá ler depende de sua posição, seu lugar social e sua relação com ele, esse sujeito interpelado

pela ideologia constituiu-se de diferentes formas em diferentes momentos históricos. Esse

aspecto é chamado relação de força, em que o sujeito que fala exerce uma autoridade para fazê-

lo, o sujeito fala de um lugar social que lhe permite dizer e fazer sentido: o escritor da periferia,

fruto de um aspecto identitário marcado pelo dissabores como as drogas, a violência e a miséria.

Esse lugar social abre um canal comunicativo para o conhecimento de visões e experiências antes

silenciadas e até mesmo ignoradas.

Não é qualquer sujeito que fala, existem as formações imaginárias, é a imagem que se faz

dele e que permite que ele passe da posição empírica para a posição discursiva, significando em

relação ao contexto sócio-histórico e à memória discursiva. Esse imaginário, segundo Orlandi

(2012, p. 42), "assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são

regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder". Na sua mais recente

participação na Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), o autor se definiu sobre essas

28 O plano. Instituto Cultural Itaú. Disponível em www.itaucultural.org.br, acesso em 08 de Julho de 2013.

67

Page 84: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

questões com a seguinte declaração29:

“Se a literatura me dá o discurso, tem que me dar também a ação. Tragoo nome do Capão Redondo, com seus 380 mil moradores, do jeito que eu posso,escrevendo, publicando, fazendo palestra, vindo pra Flip. Se a gente reclamapor mudanças, é preciso que a gente tenha o compromisso de mudar as coisas.Trabalho com a informação. E a informação é uma grande arma, informaçãosalva vidas. Cura. Pode fazer pelo outro. Diante do tratamento desleal do ricocom o pobre, se a gente não faz pelo outro, se a gente guarda tudo para si, agente multiplica esse atropelo todo. Porque estamos num momento de atropelo.O que eu faço é manter meu compromisso.”

3.5.2 Alessandro Buzo

Figura 13 - Buzo30

Quem posa na figura 13 é Alessandro Buzo, que nasceu e mora até então no bairro de

Itaim Paulista, periferia de São Paulo. Está casado há mais de dez anos com Marilda Borges, com

quem tem um filho, Evandro Borges. Já fez parte de torcida organizada, foi baloeiro, e trabalhou

em diversas outras funções. Na televisão já apresentou uma série de reportagens do SPTV 1ª

edição, SP Cultura, e o quadro “Buzão – Circular Periférico” na TV Cultura. Também trabalha na

DGT Filmes, tem uma loja de livros, roupas, CDs e DVDs, chamada Suburbano Convicto, e

29 http://www.paraty.com.br/flip/noticias_flip.asp?id=5060 acesso em 03 de Agosto de 201430 www.google.com/images

68

Page 85: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

mantém ainda a Suburbano Convicto Produções que promove os eventos “Favela Toma Conta”,

“Suburbano no Centro” e “Encontro com o Autor”. Ele atualiza diariamente os blogs Suburbano

Convicto e Buzo Periferia, suas redes sociais, além de colaborar com outras páginas na Internet

entre eles três sites de hip hop. Entre seus livros independentes estão “O trem: baseado em fatos

reais”, “Guerreira” e “Suburbano Convicto: O cotidiano do Itaim paulista”. É também colunista

da revista Rap Brasil e empresário de grupos de Rap na Zona Leste de São Paulo.

Na internet, Buzo é muito ativo, e está sempre publicando conteúdo diverso. No Twitter,

através da página https://twitter.com/Alessandrobuzo, ele divulga a agenda, fala para mais de 10

mil pessoas sobre o Sarau Suburbano, a vida pessoal, mas principalmente posta comentários e

opiniões acerca de assuntos em pauta na mídia. Também é ativo no perfil do Facebook,

https://www.facebook.com/alessandro.buzo.9, onde divulga para aproximadamente 5 mil pessoas

os eventos dos quais irá participar, fotos de ações culturais e até comentários sobre livros que leu.

O escritor tem ainda um blog, buzo 10.blogspot.com/, também atualizado com alguns textos,

habituais fotos e chamadas de sua agenda.

As obras de Buzo e seus discursos pela internet, assim como Ferréz, também

proporcionam reflexões acerca da existência de um sistema simbólico no qual a cultura, a

ideologia e a linguagem são pensadas a partir de complexas relações de poder e da emergência de

discursos de minorias, sejam elas etnicas, econômicas, sociais, de gênero ou de grupos culturais.

Como a literatura é um sistema simbólico de construção da identidade cultural, no qual tanto a

palavra quanto as idéias revelam um posicionamento do sujeito enunciador, a identidade é

marcada por ser “um conceito estratégico e posicional” (HALL, 2001, p.108). Observemos o que

declara Stuart Hall:

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; queelas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; queelas não não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo dediscursos, práticas e posições que podem se cruzer ou ser antagônicos. Asidentidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantementeem processo de mudança e transformação. (HALL, 2001, p.108)

69

Page 86: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Na modernidade tardia a globalização tem gerado um complexo processo de mudanças

que abalou e continua desestabilizando as identidades anteriormente fixas. E com o

“deslocamento” dos “quadros de referência” (HALL, 2001, p.7) há o surgimento de identidades

cambiantes, alterando a concepção hegemônica que se tinha acerca da cultura. Possibilitando uma

revisão de tais perspectivas a partir da multiplicidade, exemplificada com um dos personagens

literários de Buzo, a protagonista do romance Guerreira: Rose, uma mulher, negra, empregada

doméstica e assaltante, viciada em crack e outras drogas, que vive intensamente muitas histórias.

A situação específica do escritor suburbano faz da criação literária um exercício social e

político por meio do qual ele busca encontrar novos ângulos de aproximação da realidade, sem,

no entanto, promover o estabelecimento de lugares simbólicos e institucionais do discurso

literário, tal como é fixado no cânone, cuja tradição ocidental se pautou no preconceito existente

entre o conceito de literatura e o de classe social. A exclusão cultural da expressão artística da

periferia esteve, então, associada à submissão e à dependência econômica do centro. Se o talento

criador não era exclusividade dos detentores do cânone ocidental, os meios para desenvolvê-los,

com certeza, eram. Hoje, o suburbano tem uma livraria, no bairro do Bexiga, em São Paulo,

produz filmes (e vale mencionar Allan da Rosa, que abriu a própria editora, como veremos à

frente).

Diante disso, a relação entre o rap e a literatura, o acesso dos moradores da periferia aos

bens culturais, a produção de fanzines, o hip hop enquanto expressão cultural e a produção

literária com contornos próprios demonstram bem uma série de transformações, presentes nos

movimentos de contracultura. Buzo tenta abranger todas essas manifestações no Sarau Suburbano

e abre espaço para toda agitação que tenha como objetivo promover um chamamento para o

centro do que estava à margem, incrementando a política da diferença, da valoração das minorias

e das manifestações culturais marginais, sem que fossem percebidas sob o signo do exótico e do

inferior.

70

Page 87: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

3.5.3 Sacolinha

Figura 14 - Sacolinha31

Sacolinha é o nome artístico de Ademiro Alves de Sousa, representado na figura 14. Um

rapaz graduado em Letras pela Universidade de Mogi das Cruzes. Autor de dois livros: o

romance “Graduado em Marginalidade” e o livro de contos “85 letras e um disparo”, com

personagens curiosos, inferiorizados pela sociedade, tais como uma prostituta que lê Allan Poe,

um mendigo que faz dissertações, um ladrão mais instruído que qualquer presidente, e assim em

diante. Participou, ainda, de diversas publicações: revista “Caros Amigos”, antologia “No limite

da palavra” da editora Scortecci, antologias “Cadernos Negros”, entre outras. Com contos e

crônicas, foi ganhador de alguns prêmios literários, além de ser também o fundador da

Associação Cultural Literatura no Brasil, uma entidade que, desde 2002, busca incentivar a

leitura e divulgar os escritores independentes. Essa entidade tem hoje vários projetos, inclusive

em parceria com prefeituras, Petrobras e a Fundação Itaú Social. Ele é também o responsável pela

Coordenadoria Literária da Secretaria de Cultura do município de Suzano, em São Paulo, onde

busca desenvolver projetos de incentivo à leitura e de promoção aos escritores. Sacolinha já

publicou nessa função 132 autores, como Ariano Suassuna, Moacir Sclyar, Loyola Brandão, entre

outros. Também promoveu concursos literários, dezenas de oficinas e projetos para incentivar

crianças, jovens e adultos a lerem.

31 www.google.com/images

71

Page 88: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Sacolinha não é tão ativo na internet, pois não possui perfil em redes sociais. Utiliza-se

apenas do blog http://sacolagraduado.blogspot.com.br/, onde fala majoritariamente sobre sua

agenda, acompanhada por cartazes e fotografias. O escritor se concentra em questões

relacionadas à literatura e educação ao longo de seu trabalho. Muitos de seus trabalhos32 se

encaixam no gênero “Romance de formação”, termo que vem da estética alemã como

Bildungsroman. O conceito traduzido para o português como “romance de formação” ou

“romance de aprendizado”: trata-se do tipo de romance em que é exposto o processo de

desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem,

geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade. Entre

exemplos do romance de formação que perpassam a história da literatura, podemos citar Os anos

de aprendizado de Wilhelm Meister (Goethe), Jubiabá (Jorge Amado), Retrato do artista quando

jovem (James Joyce) e Ciranda de pedra (Lygia Fagundes Telles).

A literatura de Sacolinha visa diretamente o social, as populações da periferia econômica

e geograficamente, dialogando com elas. Daí vem os ingredientes do discurso literário que

pretende ensinar, direcionar a construção de um futuro com mais dignidade e ampliar a

capacidade crítica do público. Literatura para educar e influir. Os testemunhos e trajetórias de

vida através dos narradores cumprem a função exemplar do conselho, da lição sentida e

transmitida. Mas a idéia de formação, uma certa pedagogia intríseca, é mais ambiciosa e começa

no fato de que a instrução letrada é algo valioso, um investimento que o sujeito faz para si

mesmo, e que deveria ser priorizado. Educação é a chave para libertação.

32 A análise das obras de Sacolinha resultaram no meu trabalho de conclusão do curso de Especialização em Estudos Literários da UFJF, sob o título “Aspectos do Romance de Formação na Literatura Periférica”

72

Page 89: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

3.5.4 Allan da Rosa

Figura 15 – Allan da Rosa33

Na figura 15 encontramos o educador e capoerista Allan da Rosa é um dos

coordenadores da Edições Toró, uma editora que surgiu da necessidade de lançar os textos

de tantos e tantos escritores que participam do Sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo.

Para Allan, existe uma demanda por essa palavra que hoje está ‘fervendo’ na periferia de São

Paulo, e que também se faz sentir em outros pontos do país. No caso da Edições Toró , são

publicados livros de poesia, contos, romances, peça teatral e até livros de artes visuais que

primam por um design muito particular, que dão outra dimensão ao ato de manusear um

livro, utilizando tecidos, lãs, búzios ou que vem dentro de caixas, e proporcionam uma

relação lúdica com o objeto livro. Ele acredita que é muito importante investir num suporte

criativo para atrair o público que muitas vezes lê na internet, mas não é muito fã do papel. O

autor de cada livro participa intensamente do processo editorial e as publicações são lidas

em sua maioria pela população da periferia, mas também envia exemplares ao redor do

mundo.

Allan da Rosa disse em entrevista à Revista Raiz34 que gosta do termo “literatura da

periferia” porque foi atribuído pelos próprios autores, mas que o objetivo desses autores

atualmente não é reforçar o estereótipo de violência e criminalidade, e sim manter um

compromisso com a cultura e a história. Dentre suas obras publicadas estão Vão (2005), Da

Cabula (2006) e Morada (2007), além de diversas participações em antologias, que vão

33 www.google.com/images

34 A Palavra que Está “Fervendo”. Portal Raiz. <http://revistaraiz.uol.com.br/politicas/cooperifa.html> acesso em 05 de Mar. de 2013

73

Page 90: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

desde as edições especiais da revista Caros Amigos até “Literatura e afrodescendência no

Brasil: antologia crítica”, publicada por um pesquisador da UFMG.

O escritor e poeta comanda o site da editora que fundou, http://www.edicoestoro.net/,

com conteúdo diversificado. Além disso, uma página contendo uma agenda não tão

atualizada no facebook https://www.facebook.com/edicoestoro, e mantém um perfil pessoal,

https://www.facebook.com/allan.darosa.3, onde quase não faz postagens, mas comenta todas

as publicações enviadas pelos mais de 4 mil amigos.

3.5.5 Sérgio Vaz

Figura 16 – Sérgio Vaz35

O poeta e ativista cultural Sérgio Vaz, visto na figura 16, é autor de livros como Subindo a

Ladeira Mora a Noite (1988), A Margem do Vento (1992), A Poesia dos Deuses

Inferiores (1995), Pensamentos Vadios (1995), Colecionador de Pedras (2004) e Cooperifa:

Antropofagia Periférica (2008). Marido, pai e palmeirense, ele já trabalhou como auxiliar de

escritório, vendedor de vídeogame e assessor parlamentar. Nascido em Minas Gerais, o poeta é

morador de Taboão da Serra, grande São Paulo há mais de 20 anos e iniciou a Cooperifa com

outros artistas em uma fábrica desativada em fevereiro de 2001. Meses depois, o Sarau da

Cooperifa com o poeta Marco Pezão, dando início a um dos grandes movimentos literários de São

Paulo na contemporaneidade. Atualmente o sarau reúne cerca de 300 pessoas toda quarta-feira no

35 www.google.com/images

74

Page 91: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

bar do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo e funciona como um movimento dos artistas que até

então não tinham onde se expressar. “Antigamente a gente se mudava da periferia. Agora, a gente

quer mudar a periferia”, afirma o poeta em entrevista ao portal Produção Cultural36.

Sérgio Vaz explica em entrevista para a Revista Raiz37 que o povo brasileiro está

descobrindo a literatura como uma produção viva, através da voz, a linguagem da rua e do

conteúdo, pois a arte que os artistas da periferia produzem vem da angústia e do sofrimento

comum a grande parte da população brasileira. A literatura produzida na periferia tem fome e o

objetivo de seus autores é fazer com que as pessoas se identifiquem: se um escritor do bairro

mostra ao seu vizinho o texto que escreveu, despertando nele o interesse pela literatura, de modo

que essa pessoa busque mais, transformando o sentimento desfavorável que permeia sua vida em

algo favorável, então sua missão está cumprida. O poeta afirma que a arte da periferia é engajada

na medida em que busca representar os sujeitos sem voz, moradores da favela, através do olhar

semelhante, de quem vive o mesmo. Atualmente, quando o assunto é periferia, trata-se do Brasil

inteiro, por isso sua representatividade é muito maior.

Para o poeta, levar literatura para a periferia das grandes cidades era um movimento de

resistência: a busca pela igualdade de voz entre todos os cidadãos brasileiros. Nos últimos tempos

esta ação vem se reconfigurando como uma nova etapa do movimento antropofágico, criado pelo

poeta modernista Oswald de Andrade, como veremos nos próximos capítulos deste trabalho. Vaz

não fala em nome da burguesia como Oswald, mas contra a injusta e praticamente exclusiva

apropriação de capital tanto financeiro quanto cultural brasileiros. De acordo com Marilena Chauí

(1981), em termos nacionais, o que Oswald teria era o discurso competente, o qual:

é o discurso instituído. [...] O discurso competente confunde-se, pois, com alinguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual osinterlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, noqual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar eouvir... (CHAUÍ, 1981, p. 7)

Oswald, foi patrocinado pela burguesia cafeicultora de São Paulo, pois sua origem abria

asportas para um diálogo maior com as instituições de poder legitimadoras do discurso que ele

36 http://www.producaocultural.org.br/no-blog/entrevista-completa-com-sergio-vaz-para-o-producao-cultural-no-brasil/37 revistaraiz.uol.com.br/politicas/cooperifa_vaz.html

75

Page 92: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

utilizava, no caso, o discurso literário. A situação de Oswald se difere da tomada de voz por parte

de Vaz, que no Manifesto da Antropofagia Periférica diz que “Dos becos e vielas há de vir a voz

que grita contra o silêncio que nos pune” (Vaz, 2007, p. 2). Voz que se levanta contra uma cultura

dominante e manipuladora, tomada de espaço discursivo quase exclusivamente destinado à

burguesia na tentativa de revelar o subúrbio a partir do subúrbio.

Essa formação de grupos minoritários no chamado pós-moderno esclarece

satisfatoriamente a produção literária brasileira da periferia. Sérgio Vaz participa ativamente desta

formação identitária minoritária e, segundo Stuart Hall (2001), “Esta formação de ‘enclaves’

étnicos minoritários no interior dos estados-nação do Ocidente levou a uma ‘pluralização’ de

culturas nacionais e de identidades nacionais.” (HALL, 2001, p. 83).

Na internet, o poeta leva poesia à população através do perfil do facebook pessoal,

https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2, e da Cooperifa,

https://www.facebook.com/Cooperifa, pelo Twitter, https://twitter.com/poetasergiovaz, e pelo

blog http://colecionadordepedras2.blogspot.com.br/. Seu trabalho com a Cooperifa estimulou a

criação de diversos outros saraus de poesia na capital paulista e no Brasil, até então motivados

pela raiva, como quilombos culturais, mas cujo combustível se transformou em amor pela

cultura, pela periferia e pelas pessoas que lá vivem, com o objetivo de cooperar com a população

brasileira, fazendo com que “revolução" e “evolução” caminhem lado a lado.

3.6 – Cooperifa

“Nasceu da mesma Emergência de Mário Quintana

e antes que todos fossem embora pra Pasárgada,

transformamos o boteco do Zé Batidão num grande centro cultural.”

Sérgio Vaz

Em 2000, uma fábrica abandonada em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, foi

escolhida por Sérgio Vaz e Marco Pezão como um bom espaço para encontros culturais, dando

origem à Cooperativa Cultural da Periferia, doravante Cooperifa, um dos movimentos artísticos

mais ativos de São Paulo. Os primeiros encontros reuniram diversas atividades, mas o ponto forte

76

Page 93: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

eram os saraus de poesia, onde moradores da periferia expressavam em forma de arte a sua

indignação. “O poder público não nos deu nada? Então fizemos algo onde não tinha nada”,

explica Sérgio Vaz, “era o MSP- Movimento dos Sem Palco”. Atualmente os saraus ocorrem

semanalmente no bar Zé Batidão, zona sul de São Paulo.

O público é recepcionado pelo poeta Sérgio Vaz com os dizeres “Povo Lindo! Povo

Inteligente!”, exaltando as pessoas que se reunem na periferia em nome da cultura. O microfone

permanece aberto para qualquer um que queira se expressar, seja com poesia, seja com música,

para falar de arte é só chegar. O sarau costuma reunir uma média de 300 pessoas semanalmente,

segundo a organização e nesses 13 anos já foram publicados mais de 40 livros, além de CDs nos

quais poetas declamam sua poesia. A Cooperifa organiza ainda algumas outras ações culturais

significativas, como levar o sarau para escolas e para a Fundação Casa (ex-Febem), trabalho que

rendeu o prêmio Educador Inventor, concedido pela Unesco.

O sarau é de quem chegar: para se apresentar, basta dar o nome e aguardar ser chamado,

desde que o texto não seja muito longo devido ao tempo e a quantidade de poetas. Sérgio Vaz,

coordenador do projeto, acredita que o sucesso está no fato de os artistas se colocarem no mesmo

patamar que seus leitores e praticarem a cidadania, participando das ações da comunidade, além

de o sarau ser uma alternativa ao entretenimento aos canais de massa. A grande maioria dos

poetas que se apresentam são moradores do bairro que, segundo Vaz, aprendem dia após dia a

aproveitar a vida que levam na periferia e sentir prazer nesse meio. A filosofia que rege o projeto

é que “só o conhecimento liberta”: liberta do frio, do medo, da tristeza, da desesperança e da

mediocridade.

O símbolo da Cooperifa é uma criança empinando uma pipa. Este ato de liberdade

caracterísstico da infância é revisitado no pleno da afetividade na memória dos jovens e adultos.

Refere-se a uma atividade de lazer simples e popular, praticada nos espaços das ruas. Mensagens

que envolvem diferentes e singelas expressões afetivas são mobilizadas nas atividades da

Cooperativa: rua, diversão, liberdade, alegria, memória da infância, brincadeira. A ideia de se

eleger essa brincadeira como símbolo do sarau não nos parece aleatória, afinal, liberdade,

afetividade, diversão, alegria, o uso da rua, seriam componentes centrais dos eventos, saraus e das

prática poéticas em seu cerne.

77

Page 94: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

A idéia da Cooperifa desde o seu início era convidar pessoas de outras áreas que não

tinham acesso ao entretenimento, como cinema e teatro, por exemplo. O intuito de levar arte à

periferia refere-se não só à produção, mas também ao consumo, mantendo artistas e comunidade

sempre próximos, para que as pessoas tivessem um novo olhar para a arte. As ações da Cooperifa

visam formar leitores sem substituir o trabalho do Estado em relação à cultura, mas se

relacionando com ele ao criar uma ação cultural aberta à comunicação com as políticas públicas.

3.6.1 Ações Comunitárias

a) Várzea Poética

O Várzea Poética é simples: os moradores da comunidade que jogam futebol de várzea

estabelecem o compromisso de freqüentar o Sarau da Cooperifa durante pelo menos um mês, sem

faltas, para ganhar um jogo de camisas dos seus times preferidos. Ou seja, futebol e poesia juntos

na quebrada. A Cooperifa já tem outras parcerias com o Ponte Preta do Jd. leme, Unidos do

Morro (Pirajuçara), Sossêgo (Jd. Maria Rosa), Aliados (Chácara Santana), CDHU (Jd. São Luiz),

entre outros, que devido ao incentivo do projeto se tornaram frequentadores do sarau. Algumas

empresas apoiam o projeto, tais como o Itaú Cultural e a Global, incentivando essa parceria entre

esporte e leitura. Acreditamos que para ser leitor, assim como no caso de um atleta de alta

performance, são necessárias condições de treino e desenvolvimento para que a tarefa se

desenvolva por completo, no entanto, este projeto parece ser direcionado apenas ao público

masculino.

A Cooperifa entende que o futebol de Várzea é uma das maiores culturas da periferia, essa

é a razão para tanto sucesso. A metáfora da poesia e da bola é muito boa porque a palavra está no

ar e viva. Afirma Cacaso (1997):

O craque recebe a bola pelo alto, pula, mata no peito, domina, observa, apara o lance, eno terreno segue compondo a jogada. Uma poesia que requebra, que temespontaneidade e ao mesmo tempo a malícia de um drible de Garrincha: a imagem dopoeta aproxima-se da imagem do jogador, do sujeito que brinca e faz malabarismos,com a bola e com a palavra (...)

78

Page 95: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 17 - Várzea Poética38

Tanto o poeta quanto o jogador de futebol precisam de um toque de ginga e malandragem

para desenvolver sua arte, por isso o primeiro trabalha para dominar a palavra assim como o

segundo pula para dominar a bola. Esse trabalho também exige de ambos disposição e

concentração para elaborar um modo de atuação que acaba sendo ensaiado, treinado, com a

prática, o que pode proporcionar um estilo de brincar com a palavra e com a bola.

b) Cinema na Laje

Com esse projeto a periferia de São Paulo ganhou uma sala de cinema ao ar livre toda

primeira e terceira segunda-feira do mês, na laje do bar do Zé Batidão, e ganhou o nome de

“cinema Paradiso da Zona Sul Paulistana” 39. Trata-se de um espaço alternativo para a exibição de

filmes e documentários produzidos no Brasil e no mundo, especialmente na periferia, com

atenção especial aos jovens da região aproveitando a entrada franca e pipoca gratuita.

38 www.facebook.com/cooperifa

39 http://colecionadordepedras.blogspot.com.br/2009/02/cooperifa-apresenta-cinema-na-laje.html

79

Page 96: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 18 – Cinema na Laje40

Além dos filmes, acontecem também debate e visitas de alunos de escolas próximas.

c) Chuva de livros

Em Agosto de 2013 aconteceu a sexta edição da Chuva de Livros realizada pela

Cooperifa, para incentivar o hábito da leitura na periferia paulistana, , conforme ilustrado na

figura 19:

40 www.facebook.com/cooperifa

80

Page 97: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 19 – Chuva de Livros41

Neste dia todas as pessoas que comparecessem ao sarau, ganhariam um livro de presente e

a previsão era de que 800 livros fossem distribuídos, entre eles romances, contos, poesias, de

clássicos como Drummond até poetas da comunidade, infantis e adultos – para todos os gostos e

idades.

d) Ajoelhaço

A Cooperifa realiza uma vez ao ano uma edição do Ajoelhaço, em virtude da semana do

Dia Internacional da Mulher. Esse é o momento em que os poetas e todos os homens presentes no

sarau vão à frente e pedem perdão às mulheres por todas as injustiças, atrocidades e crimes

cometidos, desde a violência doméstica à história da humanidade, só que, de joelhos. Segue a

figura 20:

41 www.facebook.com/cooperifa

81

Page 98: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 20 - Ajoelhaço42

Embora no microfone, por meio das palavras, os homens declarem seu respeito e

admiração as mães, irmãs, avós, esposas e namoradas pelo dia da mulher, e se ajoelhem em

seguida, a mulher continua passiva, pois sua voz e seus discursos parecem chegar em minoria ao

microfone do sarau, ainda que na data celebrada.

e) Poesia no Ar

Em 2013 aconteceu a sétima edição do Poesia no Ar, evento que enche o céu de São

Paulo numa noite mágica para a periferia. O evento geralmente se inicia por volta das 23h,

quando cada participante precisa escrever num pedaço de papel uma mensagem, poesia, o que

melhor lhes convir e ler, bem como os autores convidados.

42 www.facebook.com/cooperifa

82

Page 99: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 21 - Poesia no ar43

Em seguida, os textos são colocados em balões de gás e soltos ao céu, na esperança de que

sejam enviados para toda a cidade, especialmente recebidos por aqueles que não podem

comparecer ao sarau.

f) Semana de Arte Moderna da Periferia

Inspirada na Semana de Arte Moderna de 22, a Cooperifa propôs uma semana inteira de

artes voltada para a periferia. A idéia é ir além, mostrando não só um novo tipo de linguagem,

como também de um artista que, embora humanizado, seja caracterizado pela sua obra e que esta

não seja prezada pela estética como também pelo conteúdo.

A “apropriação” da Semana de Arte Moderna funciona como uma “atualização” de um

acontecimento pontual e definitivo no campo estético. A Cooperifa, ao produzir esse evento, visa

estimular o interesse da população pela leitura, criação poética, gosto pelo teatro e pelo cinema,

aliando-se a escolas e universidades para que a cultura seja um elemento primordial na formação

de seres humanos melhores e mais conscientes.

O moderno aqui significa ousar para encarar novos desafios, e isso inclui novos suportes

para a produção e divulgação cultural. O poeta Sérgio Vaz, os membros da Cooperifa e diversos

43 www.facebook.com/cooperifa

83

Page 100: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

outros escritores utilizam-se cada vez mais da internet para difundir não só seus textos, como

também propagandear as atividades culturais que organizam nas quebradas através de seus blogs,

redes sociais, canais no youtube e uma série de recursos que estudaremos a seguir, na tentativa de

acionar a função social da literatura, aproximando-a de todas as maneiras possíveis da vida

cotidiana. O artifício mais frequente do poeta tem sido a postagem e compartilhamento de

poemas que entoam mensagens de auto-ajuda, como estudaremos no capítulo seguinte.

Abordaremos na quarta parte deste trabalho um recorte das publicações relativamente

recentes de Sérgio Vaz nas redes sociais, a fim de refletir sobre o elemento social que caracteriza

a poesia produzida pelo poeta, principalmente divulgadas durante o período das manifestações

políticas de 2013, ocorridas em nosso país. Verificaremos como o poeta manifesta os ideais de

conquista da felicidade na sociedade e no cotidiano da periferia por meio de uma literatura de

auto-ajuda, visando despertar nos leitores a motivação para o sucesso e para a vitória na vida

através da força e poder da palavra.

84

Page 101: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

CAPÍTULO 4 - LITERATURA E VIDA

Inferimos no capítulo anterior que na década de 60, sob a influência dos Provos e outros

movimentos de contracultura, alguns grupos de artistas manifestaram necessidade em responder à

situação política que se configuirava pela articulação da produção cultural caracterizada pelo

inconformismo e desmistificação. Tentavam relacionar a experimentação de linguagem às

possibilidades de uma arte participante, agenciando as ações na ordem do simbólico em relação

ao comportamento, visando a instaurar a vontade de um novo mito (Oiticica, 1986, apud

Favaretto, 2013), uma imagem da arte como atividade em que não se distinguiam estética e

exigências éticas e políticas. O objetivo era transformar a arte em algo além: uma proposta que

implicava mudanças nas referências à vida em projetos diversos de renovação da sensibilidade e

de participação social.

A proposta de participação coletiva, interessada tanto na reformulação do conceito de arte

como no redimensionamento cultural dos protagonistas pela integração do coletivo, era o que

mobilizava os artistas. Enquanto pretendiam liberar suas atividades do ilusionismo, eles

intervinham nas arguições do tempo, fazendo das propostas estéticas uma forma de intervenção

cultural. O simbolismo das atividades se fundamenta na densidade teórica e excede a imaginação

pessoal em prol do imaginativo coletivo, se cumpria na visão crítica da identificação de práticas

culturais com poder de transgressão, não apenas pela figuração das indeterminações e conflitos

sociais, ou pela denúncia da alienação dos discursos sobre a realidade.

Os artistas buscavam então compor um programa coerente que problematizava não apenas

a situação brasileira da criação, como também a internacional, e desenvolviam como versão da

produção contemporânea a exploração do caráter provisório do estético, ressignificando a criação

coletiva e o político da arte. A tendência básica era transformar a arte em exercícios para um

comportamento operado pela participação. Através dessa prática, a transmutação da arte em

comportamento se daria quando o cotidiano fosse fecundado pela imaginação, confrontando os

indivíduos com situações e concentrando-se nos comportamentos, ao recriarem-se como sujeitos.

Revisitando algumas idéias de Foucault, percebemos que tratava-se de conceber a vida

como arte; a constituição de modos de existência, de estilos de vida, que relevassem da estética e

da política. Portanto, ética e estética passaram a caminhar juntas, como queriam aqueles que viam

85

Page 102: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

nesse modo da arte a possibilidade de reinvenção da política e da vida. Esse princípio (e

procedimento) moderno consistia na intervenção do próprio ato artístico, já que o novo, o qual

abre o leque da significação, significava a ruptura com a representação.

Em resumo, quando pensamos em literatura, levamos em conta o elemento social como

fator da própria construção artística, estudando no nível explicativo e assimilando a dimensão

social como fator de arte. Se considerarmos os fatores sociais no seu papel de formadores da

estrutura, veremos que são relevantes para a análise literária, pois a arte é social no sentido de

produzir sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de

mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isso decorre da própria natureza da

obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito dos artistas e receptores da

arte. Assim, investigamos as influências exercidas pelos fatores socioculturais, aos valores,

ideologias e às técnicas de comunicação.

Sociologicamente, Antônio Cândido (2006) afirma que a arte é um sistema simbólico de

comunicação humana, logo decorre fenômenos sociais importantes: o primeiro é a integração, um

conjunto de fatores que tendem a acentuar no individuo ou no grupo a participação nos valores

comuns da sociedade. O segundo é a diferenciação, que ao contrário, trata do conjunto que tende

a acentuar as peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processos

complementares, que Cândido afirma depender a socialização do homem.

4.1. O Lugar do Artista e o Nome de Autor

A posição social é definida por Antônio Cândido (2006) como um aspecto da estrutura da

sociedade. No nosso caso, vamos averiguar como esta atribui um papel ao autor, como define a

sua posição na escala social, como se desenvolve a função-autor e o nome de autor em relação ao

poeta Sérgio Vaz. O nome de autor funciona para designar/identificar um indivíduo e como um

princípio de classificação, de agrupamento, pois quando a dispersão dos textos é atribuída a um

nome de autor, passa a ser reconhecida como obra, que circula como fundadora de uma

discursividade. Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as

pessoas correspondem a necessidades coletivas, e estas agem permitindo que os indivíduos

possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo. Frequentemente as noções de escritor,

86

Page 103: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

autor e grupo são associados em pauta pelas circunstâncias de circulação e podem ser

esquematizadas dos modos a seguir.

A) A necessidade de um agente individual que tome a si a tarefa de criar e apresentar

a obra.

O nome de autor é explicado por Foucault (2001) como classificatório, permitindo

agrupar textos e relacioná-los entre si. Funciona para caracterizar um modo de ser para um

discurso, significando que deve ser recebido de certa maneira e que deve, em uma dada cultura,

receber certo status. Sérgio Vaz assina tudo como poeta: seu nome no blog, redes sociais,

entrevistas e poesias. Na sua entrevista para a Revista Forum44 explica que decidiu se tornar poeta

baseado numa frase de Ferreira Gullar, presente num disco do Milton Nascimento no qual diz que

“o canto não deve ser uma traição à vida. Só é justo cantar, quando seu canto arrasta consigo

pessoas e coisas que não têm voz”. Assim Sérgio Vaz descobriu que queria ser poeta e escrever

sobre liberdade.

Em seus textos, o poeta fala das pessoas com quem vive, do que observa e do que dói em

seu coração. Aborda temas da vida daqueles que considera seus semelhantes, negros e pobres que

moram na periferia, e também temas recorrentes no cotidiano, tanto da violência, quanto de amor,

alegria, amizade, sonhos possíveis e impossíveis. O poeta afirma45 que sua poesia que nasce das

ruas violentas, da saúde precária, do ensino de má qualidade, do racismo, do preconceito de

classe, do desemprego, das mazelas sociais, e tudo isso que exige denúncia de quem sofre na

pele. Essa expressão da literatura produzida na periferia é capaz de criar uma aproximação entre a

vida do poeta e a vida do leitor, supondo uma construção regulada e legitimada pela comunidade.

Em 2007, Sérgio Vaz escreveu o livro Cooperifa: Antropofagia Periférica, no qual conta

sua trajetória de vida e a história da Cooperifa, tecendo o que, a seu ver, representa a identidade

da literatura por ele produzida, inspirado no conceito de antropofagia da obra de Oswald de

Andrade. O Manifesto da Antropofagia Periférica, que pode ser encontrado em anexo neste

44 http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/05/sergio-vaz-o-poeta-sonhador-da-quebrada-completa-25-anos-de-carreira/45 http://www.panoramamercantil.com.br/a-periferia-e-um-uranio-enriquecido-sergio-vaz-poeta-e-fundador-da-cooperifa/

87

Page 104: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

trabalho, é uma boa ilustração para que se entenda a caracterização do poeta Sérgio Vaz quanto

ao seu discurso como autor. Essa relação com a antropofagia desperta o conceito de comer o

inimigo, selecionando o que ele tem de mais forte, nesse caso rejeitar o lado repressivo e

castrador da erudição e do culturalismo comercial sem negar totalmente seus possíveis

procedimentos, “a favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a

diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos” (Vaz, 2007).

A antropofagia periférica transforma o tabu em totem, passando de uma lógica opressiva

ao espírito de libertação. O Manifesto da Antropofagia Periférica distoa dos textos encontrados

nas redes sociais por ser consideravelmente mais combativo, e Sérgio Vaz propõe subverter a

ordem sem cair no discurso da pura negação ou opressão, um discurso semelhante ao do poeta

carioca Allan da Rosa (2011), que numa entrevista46 explicou:

[...] tem pessoas que estão a fim de escrever um texto para levantar a rapaziada elembrar que existiu o cangaço. E que quer que o livro seja uma parabélum mirada natesta do volante. E o outro que já quer perguntar “E se o passarinho não tivesse asas, ese o passarinho tivesse escamas?” Ele não está afim de trazer o cangaço. Ele está afimde trazer o impossível. [...]Acho que a princípio o movimento falava mais da parabélume hoje está percebendo que é importante falar dos passarinhos. Natural. A espiral vaicrescendo e a gente pode desconfiar das parabélum que a gente mesmo confeccionou,sabe?

As semelhanças no discurso de Allan da Rosa e Sérgio Vaz apontam para uma poesia que

massageia o coração, organiza a luta e leva o leitor a abrir a janela e ver a vala. O autor completa:

“Então eu acho que a gente vai desenvolver mais, o passarinho segurando a parabélum, ou a

parabélum soltando o passarinho” (Allan da Rosa, 2011). Nada de cabeçadas, porque fazer poesia

com pitadas de amor se mostrou uma bela arma contra as armadilhas do sistema capitalista, como

podemos ver no poema seguinte, no qual ao invés de trazer a poesia produzida na periferia como

uma poética negativa e “puramente expressiva”, o poeta constrói através de seu fazer poético e de

sua política literária uma ética do conviver, baseada na felicidade como algo capaz de transgredir

a opressão. Há uma semelhança com os discursos de auto-ajuda, de uma forma geral. Veja na

figura 22:

46 www.ufjf.br/darandina/files/2011/07/Entrevista-Allan-da-Rosa.pdf

88

Page 105: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 22 - Transgressão47

A poesia da periferia é literatura das letras descalças, mas de pés firmes e calejados que

não descansam nunca, capaz de criar a aproximação entre literatura e vida através da paixão. O

poeta Sérgio Vaz a define como aquela que apanha na cara, e não dá a outra face, porque apesar

da história e dos dias difíceis, sua poesia reflete a esperança e a luta por uma vida digna e feliz,

tal como prometeram os reacionários ao longo da história do nosso país.

O poder da palavra, segundo Prado, citado por Orlandi (1996, p. 98) é tão forte que é

capaz de modificar o comportamento das pessoas e transformar para o bem ou para o mal suas

vidas. Para expor seu pensamento sobre este poder explica o autor:

Se conhecêsseis o poder de vossas palavras, teríeis grande cuidado nas vossasescritas e conversas. Bastar-vos-á observardes a reação de vossas palavras paraverificardes que elas não voltam vazias. Por meio das palavras que escreveis oupronunciais, estais estabelecendo continuamente leis para vós mesmos. As forçasinvisíveis agem sempre a favor daquele que está continua e corajosamente avançandopara frente, embora não o saiba. Em virtude das forças vibratórias das palavras, quandoo indivíduo escreve ou fala alguma coisa, começa a atraí-la para si.

Toda palavra expressa a definição de um ser humano em relação ao outro, à coletividade,

como uma ponte lançada que passa a ser o território comum do locutor e do interlocutor. O

poema de Sérgio Vaz contitui-se como auto-ajuda por falar uma fórmula de perto ao seu leitor,

47 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

89

Page 106: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

procurando convencê-lo a assumir dada postura enquanto invoca inimigos reais e/ou psicológicos

- no caso do poema acima, a rotina da periferia seria o inimigo do seu morador.

No poema que se segue, é perceptível que Sérgio Vaz retoma e atualiza a memória do

movimento da inconfidência, símbolo máximo de resistência da história mineira, e um dos mais

importantes acontecimentos na história do Brasil, o qual se fundamentava nos ideais iluministas

de liberdade. Há no texto referência aos dizeres da bandeira de Minas Gerais – traduzidos do

Latim como “Liberdade, ainda que tardia” idealizada por aqueles que pretendiam eliminar a

dominação de seus colonizadores de elite, como mostra a figura 23:

Figura 23 - Felicidade48

48 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

90

Page 107: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Assim, pratica uma ética cuja lógica é compreendida como um motor contínuo da vida,

abrindo-se para além de uma moral identitária pré-estabelecida, experimentando a vida para além

do espelho reacionário de um eu – ou nós. Essa poesia assume a postura de um discurso

desierarquizante e proporciona o diálogo com o “outro”, com o conhecimento do “outro”, com o

que lhe é estranho, esse discurso propõe uma identidade plural. A poesia produzida por Sérgio

Vaz propõe viver em suas diferenças, e ao mesmo tempo, lutar para criar o encontro dessas

diferenças. É um caso de devir, um movimento, um diálogo com a vontade de potência de

Nietzsche49. Vontade de potência essa, como ensina Deleuze, que não é vontade de poder e nem

vontade de dominar ou cobiça, mas criação, e criar é um gesto de violência: o traço da palavra

rasga o espaço antes em branco.

Para Chagas (2001), textos de auto-ajuda pretendem que o indivíduo que deseja

conseguir seus desejos deve obedecer às determinações das fórmulas apresentadas, pois elas são

impositivas e miraculosas, preceitos que devem ser seguidos para que a pessoa tenha os

resultados positivos almejados – o poeta Sérgio Vaz frequentemente utiliza-se de verbos

conjugados no modo imperativo em suas mensagens positivistas. O crescimento e expansão dos

textos de auto-ajuda como os do poeta pode, nos dias atuais, ser visto como a expressão do

subjetivismo exacerbado, em que cada pessoa procura, por seus próprios artifícios, sobreviver em

meio aos problemas e ansiedades. Na grande maioria, os textos publicados pelo poeta no

Facebook e Twitter destacam-se pelo sentimento e pela intensidade de sujeitos que vivem num

lugar o qual, até há pouco tempo, era ignorado e agora querem mostrar do que se orgulham.

Observe o recado na figura 24:

49 Segundo Nietzsche, a Vontade de Potência é o modo como se comporta aquilo que não poderia ter finalidade ou sentido, e que vive sob sua própria responsabilidade. Advém da própria realidade das coisas e é a essência do impulso que resiste no interior de uma multiplicidade de forças que, em suas gradações, se manifestam em fenômenos políticos, culturais, permeando a natureza e o próprio homem.

91

Page 108: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 24 – Recado50

O suor, o amor e a liberdade são temas recorrentes na grande maioria dos textos,

mostrando como as manifestações culturais e artísticas são fundamentais na periferia, pois

proporcionam a criação de laços afetivos e o desenvolvimento de alternativas de socialização,

participação e construção da cidadania, deixando para trás as experiências tristes de exclusão e da

ignorância para dar lugar a um povo que fala, que assume a autoria da sua própria voz.

Assim, independentemente de quais forem os empecilhos enfrentados pelo leitor, o texto

dde auto-ajuda busca resolver, porque seu papel é fornecer ao sujeito alívio do mal-estar, com a

promessa de ordenar e organizar através do empreendedorismo de si próprio (CHAGAS, 2001).

Sendo assim, o discurso de Sérgio Vaz, assim como o de autoajuda, tem como objetivo fazer com

que o sujeito leitor sinta-se onipotente, capaz de colocar em prática tudo que fora ensinado

através da poesia. Como tais ensinamentos são apresentados de forma sedutora, com imagens

cativantes, muitos leitores podem se sentir confiantes de que conseguirão realizar seus desejos

apenas por acreditar que tudo é possível.

50 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

92

Page 109: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

B) O escritor é ou não reconhecido como autor pela sociedade, e o destino da obra

está ligado a esta circunstância.

O poeta Sérgio Vaz acredita exercer a função-autor por meio de um discurso transgressor,

na medida em que é reconhecido por suas obras e atividades relacionadas à periferia

(considerando o ato do discurso entre centro e margem), pois o sentido de uma obra, segundo

Focault (1969), se relaciona com questões históricas, sociais e ideológicas como, por exemplo, de

onde vem o texto, quem o escreveu, em que data, em que circunstancias ou a partir de que

projeto. Também em entrevista à revista Fórum, o poeta Sérgio Vaz declara: “A periferia é a

maioria, mano, sou o poeta da maioria, podem colocar na estante da livraria, ‘poeta da periferia’.

Sou da periferia.” Seu objetivo ao criar a Cooperifa era difundir cultura e sensibilizar pela

qualidade de vida nas favelas e áreas periféricas com os instrumentos que conseguia por si só e

com a ajuda de amigos.

Este poeta faz do pensamento seu trabalho, sua arma, sua presença e com isso abre

esquinas. Cada lugar tem sua lógica, cada cidade tem sua alma, e ser periferia em São Paulo,

antes desses movimentos culturais que temos estudado, era ter uma esperança cansada, mas no

discurso do Poeta Sérgio Vaz percebemos uma esperança muito mais vitalizada, feita a cada dia,

coletivamente, nos potenciais da arte e da história. A história demográfica, geográfica, histórica,

psicológica de São Paulo é de negação e sua identidade talvez não fosse tão contemplada com a

honra e o orgulho que se vê atualmente. A arte e a poesia fazem com que percebamos a

identidade da periferia de São Paulo mais dinâmica, pois tudo parece estar em movimento. Logo,

o discurso do autor Sérgio Vaz transparece fazer parte desse movimento literário que vem

florescendo há mais de dez anos mostra a necessidade de compreender melhor o lugar para que se

possa compreender os sujeitos, de modo que teoria e prática caminhem juntos, longe da

incoerência, como podemos ver na figura 25:

93

Page 110: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 25 - Caminhos51

O espaço em que vivemos nos identifica socialmente, de modo a caracterizar a área da

periferia como “espaço de identidade ideológico-cultural”, trabalhado em função dos interesses

daqueles que a reconhecem como base territorial, como afirma Haesbaert (1988), citado por

Ferreira (2014). Por sua vez, Raffestin (1993), também citado por Ferreira (2014), analisa o

território como espaço de relações de poder, que também é palco das ligações afetivas e de

identidade entre um grupo social e seu espaço. Os símbolos, imagens e aspectos culturais

representados nos poemas sob a autoria de Sérgio Vaz são na verdade valores que a população da

periferia materializa como uma identidade incorporada aos processos cotidianos, dando um

sentido de pertença e de defesa dos valores, do território, da identidade, utilizando-se das

vertentes político-cultural, que na verdade são relações de poder e defesa de uma cultura

adquirida, chamada hoje de “Cultura de Periferia”.

Seus textos contribuem para um tipo de educação “espiritual ” do leitor e auxiliam a sua

“escala evolutiva” na sua constituição enquanto sujeito. O sucesso desse aspecto de auto-ajuda é

atribuído ao desejo e a busca do ser humano pela felicidade, especialmente quando as condições

econômicas, políticas e sociais deixam a desejar. O resultado é a apropriação de um determinado

51 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

94

Page 111: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

espaço, que constitui-se a partir do momento em que Sérgio Vaz o representa na sua poesia para

si e para os outros. Enquanto espaço da ação, o território da periferia passa a ser a intervenção

dos atores sociais que, numa relação dialética, figuram o seu próprio movimento.

Figura 25 - Classe C52

Por meio do estudo da constituição das identidades, podemos compreender como o

território pode ser considerado enquanto símbolo ou uma imagem pela qual o autor se orienta,

com base na experiência de representação e ação. Isso define os contornos do processo de criação

de uma identidade, que ocorre ao longo da história, e acaba por ser representada no processo de

criação das obras, nas quais ao escrever, o autor coloca as suas impressões e suas verdades,

autenticando-a, conferindo-lhe um grau de credibilidade e valoração. Apreendemos da obra de

Foucault (2001) que o autor não é simplesmente aquele que escreve e assina os textos, mas sim

quem lhe confere uma espécie de aura, a qual segundo Walter Benjamin seria como a marca do

autor, presente nas entrelinhas. Vemos o poeta Sérgio Vaz como um autor fundador de

discursividade, que ocupa uma posição transdicursiva na ordem do discurso; seus textos

funcionam como possibilidade na formação de outros textos, abrindo espaço num número de

possibilidades, exigindo o retorno à origem, às potencialidades contidas no discurso fundador.

52 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

95

Page 112: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

A escrita partida da experiência (seja ou não do próprio autor) é freqüente na literatura

contemporânea, e parte do desejo de ver em ficção, prosa ou poesia, as temporalidades do

presente vividas por algumas subjetividades. Essa presentificação tem sido caracterizada pelo

retorno do trágico, mais marcante no início do movimento literário da periferia, segundo o

conceito de Beatriz Resende (2010), e que agora vem se reajustando com o discurso do mesmo. A

cultura de periferia, no sentido de valor, símbolo, linguagem, arte e identidade é o próprio ar que

os movimentos sociais como a Cooperifa respiram. Chagas (2001, p.98) ressalta a ingenuidade

dos leitores dos textos de auto-ajuda que sem perceberem acabam sendo persuadidos pelas

promessas que os poemas trazem. Ressalta ainda a seguinte idéia:

As promessas contidas nos livros são mencionadas de uma forma aparentementesimples, porém, são enaltecidas em cada livro por intermédio da capacidade depersuasão dos autores. Eles repetem a cada livro, a receita para quem deseja alcançar osucesso e a realização pessoal. Dizem, nas entrelinhas, da possibilidade da perfeiçãohumana, ou daquilo que, como se sabe pela psicanálise, é um desejo impossível de serrealizado, ou seja, o desejo de alcançar a felicidade plena, da reconciliação consigomesmo e com os outros.

Por sua vez, a poesia produzida por Sérgio Vaz é construída por uma linguagem voltada

simultaneamente para o pessoal e para o político, fazendo com que divergência seja a palavra de

ordem, incentivando o exercício da reflexão crítica sobre as práticas de insatisfação militante que

afetam a parte até então marginalizada do Brasil. Segundo Terry Eagleton (2005), a mudança

política tem que ser cultural para ser efetiva, pois assim se entranha nas percepções das pessoas

com o seu consentimento, engajando seus desejos e permeando seu senso de identidade. Como

exemplo, temos a figura 26:

96

Page 113: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 26 – Cinzas53

Observamos que a poesia de Sérgio Vaz também traz à luz questões por muito silenciadas,

com um modo de sentir e formas de representação cruciais no contexto da experiência e

identidade.

C) O autor utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas

aspirações individuais mais profundas.

Enquanto autor, o Sérgio Vaz estabelece uma enorme gama de possibilidades de discursos,

excedendo sua própria obra ao abranger seus ideais aos moradores da periferia através da poesia e

da divulgação de suas criações como principal representação do grupo: ele fundou a Cooperifa. O

poeta se orgulha dos leitores que lá formou, acreditando ser essa sua missão e o paradoxo da

contemporaneidade: desenvolver a cultura da leitura. Afirma o poeta, ainda na mesma entrevista:

“se o opressor leu, o oprimido tem que ler também”. A vontade de se libertar desse círculo

vicioso e obediente da história, que seria a posição de oprimido, não se concretiza pela

ignorância, mas sim pela rearticulação da ordem. Quem ataca precisa saber onde está pisando, até

53 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

97

Page 114: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

porque não se pode atacar algo que não se conhece. A Cooperifa, segundo o poeta, não é um

movimento, mas sim um sentimento, que aconteceu para aumentar a autoestima da periferia. Diz

o autor que “a Cooperifa é a nossa Tropicália”.54

As margens podem ser lugares indescritivelmente dolorosos para se estar, e há poucas

tarefas tão honrosas, em termos de cultura, quanto ajudar a criar uma oportunidade na qual o

descartado e ignorado possa encontrar um espaço de fala. Com a Cooperifa, o poeta Sérgio Vaz

viabiliza esse espaço para erguer sua própria voz. O que marca mais o discurso do poeta é o que

Chagas (2001, p.65) descreve como o tom encantador e fascinante, em que não é preciso por

parte dos leitores, exigir explicações e justificativas.

Acreditamos que o que legitima o discurso de Sérgio Vaz nas redes sociais seria, por parte

do leitor, seja o desejo de realização; a busca pela felicidade; o princípio de prazer, que

impulsiona o sujeito na busca dessa felicidade, uma tentativa de evitar o sofrimento inerente a

condição de existência do sujeito. Deduzimos que estes tópicos destacados podem delinear as

condições de produção das práticas discursivas de autoajuda que, inclusive, legitimam seus

dizeres, pois faz com que o discurso de possa adquirir tal sentido para seus sujeitos leitores

Na poesia de Sérgio Vaz há a necessidade de liberdade, mas também de tradição e

pertencimento, pois através de suas poesias se empenha de forma encorajadora a delinear novas

relações entre localidade, diversidade e solidariedade, encontrando na poesia a força necessária

para isso. Veja no trecho a seguir, retirado do facebook:

Perdoem nossos defeitos, respeitem nossas qualidades.Tudo é feito por amor à periferia.Vale a pena sonhar, vale a pena lutar por isso.Tem dias que a vida não dói, ontem foi um deles.A Cooperifa me faz acreditar num mundo melhor.Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa!

Sergio Vaz

Sejam quais forem as utilizações comunitárias ou práticas da arte, ela depende do

exercício do talento individual. Antônio Cândido (2006) afirma que a arte pressupõe um

indivíduo que assume a iniciativa da obra, mas precisa ele ser necessariamente um artista,

54 http://www.youtube.com/watch?v=aBEmwdt5TR4

98

Page 115: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

definido e reconhecido como tal? Ou, em termos sociológicos, a produção da arte depende de

posição social e papéis definidos em função dela? A resposta seria: conforme a sociedade, o tipo

de arte e a perspectiva considerada. Para o autor, isto significaria o reconhecimento da sua função

social. Uma função social, que realça certos aspectos da estrutura e reforça o sistema de

dominação, traduzindo-se pelos papéis atribuídos a tais “mensageiros”.

Nas sociedades modernas, a autonomia da arte permite atribuir a qualidade ao artista

mesmo a quem a pratique ao lado de outras atividades. O poeta é identificado socialmente pelo

papel de maior relevo na situação considerada, como eixo central da personalidade bem definida

para o desempenho de outros, mergulhado num sincretismo de funções. À medida que fala das

atividades e objetos impregnados de valor pelo grupo, o poeta assegura a sua posição de

intérprete.

4.2. O Público, Efeito-Leitor e Circulação de Sentidos.

Considerar o ponto do receptor da literatura na internet, que integra o público em seus

diferentes aspectos, é perceber as influências sociais marcadas. Fizemos algumas considerações

sobre a influência do fator sociocultural, a técnica acerca da composição e caracterização dos

públicos. No caso da literatura, as relações entre público, autor e obra tendem a se relacionar de

maneira indireta, de contatos secundários, mas não é o que acontece com o poeta Sérgio Vaz.

Percebemos a influência social, que se manifesta sob várias designações – gosto e valores – e

frequentemente exprimem as expectativas sociais, que tendem a cristalizar-se na rotina, desde os

pequenos atos como responder à violência do dia-a-dia na periferia com atitudes surpreendentes,

como o amor, que une seus moradores na batalha muitas vezes silenciosa de suas vidas duras,

ilustrado na capa do livro, na figura 27:

99

Page 116: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 28 - Literatura, pão e poesia55

A sociedade costuma estabelecer certos padrões, e não seria diferente para o público

amador de arte, pois muito do que julgamos ser reação espontânea da nossa sensibilidade acaba

por ser conformidade automática aos padrões pertencentes a uma massa, cujas reações obedecem

às condicionantes do momento e do meio. Como já vimos, todo discurso é produzido em

determinadas condições de produção que se inscrevem na sua materialidade como imagens, de

modo que as condições de produção intervêm na textualização e na prática de leitura dos textos.

Toda leitura se dá em condições de produção específicas que configuram o modo de ler e de

interpretar. Quando se fala de periferia, uma das primeiras referências que vem em mente é a

violência. O poeta Sérgio Vaz espera isso de seu leitor, e por isso utiliza-se de artifícios que

surpreendem, como no texto abaixo, onde conta a história do menino Bruno, num poema que fala

de morte sobre uma notícia de jornal com a suposta foto do garoto, e um título com um apelido

inusitado, muito comum aos moradores das favelas envolvidos na criminalidade. Em suma, os

entes queridos de Bruno morreram de saudade, porque o garoto conseguiu entrar na faculdade e

55 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

100

Page 117: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

dedicava seu tempo a isso. Uma surpresa ao leitor desprevenido dos propósitos do poeta, como

no poema da figura 28:

Figura 28 – Pé-de-pato56

Considerando as condições de produção (periferia) e a divulgação na internet, caberia

perguntar: o que esse novo suporte tecnológico implica em termos de prática de leitura? O leitor

de hipertexto, para Lévy (1998), é mais ativo do que o leitor de impressos, porque a leitura é mais

ágil e sem limites no caso do hipertexto, e em relação ao texto, se deve à infinidade de links

disponíveis. Poderíamos dizer que se trata de uma relação circunstancial: o leitor é capturado por

uma escrita fugaz que convoca uma leitura por lampejos, mas o poeta Sérgio Vaz soube tirar

vantagem dessas características em suas publicações. Colocando trechos de seus livros e poemas

em diferentes imagens, o poeta Sérgio Vaz consegue que essas montagens circulem com mais

facilidade nas redes sociais, tendo em vista que a cada nova imagem com a qual o texto é

apresentado, sua circulação resulta de maneira diferente, pois cada “conjunto” produz um novo

sentido que afeta o leitor.

56 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

101

Page 118: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

O mundo é mediado por vários símbolos, sinais, imagens que constituem a linguagem

não-verbal e a imagem exerce uma importante influência na área da comunicação, especialmente

em jornais e televisão, que têm a intenção de seduzir o público com uma enorme variedade de

linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação do

mundo (SANTAELLA, 2001, p.10). Com referência à linguagem verbal e imagem, Faria e

Zantchella Jr. (2002, p.75) afirmam que “títulos escritos com destaque, fotos coloridas, mapas e

gráficos, são conjugados intencionalmente para chamar a atenção do leitor e tudo isso é

''linguagem visual''. É comum o destinatário se interessar primeiramente pela imagem e, em

seguida, partir para o texto escrito ou mesmo falado. Especial nos livros de auto-ajuda, segundo

Benites (1996), há um recurso de transcrição de citações como estratégia para sensibilizar o leitor

com vários tipos de enunciadores: nesse caso, o poeta Sérgio Vaz sendo um deles.

As publicações com imagens do Facebook que o poeta Sérgio Vaz fazia até o ano de 2013

tinham uma circulação relativamente em alto índice: sua página tem 43.676 pessoas curtindo,

enquanto o perfil da Cooperifa tem 4.970 amigos e 6.153 seguidores. No Twitter, 21.800 pessoas

seguem o perfil pessoal do poeta, enquanto apenas 57 seguem a Cooperifa, cujo perfil está

abandonado desde 2010. Os tuítes do poeta Sérgio Vaz atualmente circulam relativamente pouco,

cerca de 20 a 30 retuítes nos melhores dias, mas acreditamos que isso se deva à redução de

número de usuários e sua migração para o Facebook. Os números nesta segunda rede social são

um pouco melhores: apesar de algumas publicações atingirem cerca de 600 curtidas e mais de

300 compartilhamentos até o ano de 2013, esse número se reduziu consideravelmente (150 a 200

compartilhamentos nos posts mais populares). Também acreditamos que isso seja consquencia da

mudança da política de monetização do site, que agora exige o pagamento de valores absurdos

para viabilizar a disseminação dos posts entre todos os usuários que seguem determinada página

(trata-se da nova ferramenta “impulsionar”). Sobre a circulação do poema, Cacaso (1997)

observa:

Muito mais do que apresentar um livro, o poeta apresenta-se atavés dele, vale-se dele como se fosse seu cartão de visitas. (...) o poeta e o eventual leitor já nasce como pretexto para uma conversinha; está quebrada a tradicional distância que costumasepará-los. Fora do convencionalismo que marca a relação entre obra e leitor, torna-seagora possível conversar sobre poesia, livre de esquemas professorais e do obscuropalavreado técnico (...) O efeito de distensão e afrouxamento operado neste movimentocontém, virrtualmente, os germes da atitude revolucionária diante da cultura: esta deixa

102

Page 119: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

de ser tratada como fetiche, com oalgo apartado e alheio à vida, para recuperar seuposto e significado na continuidiade da experiência social. (...) modificandofuncionalmente a relação entre obra, autor e público e reaproximando e recuperandonexois qualitativos de convivio. (Cacaso, 1997, p.25)

Considerando tais informações, sabemos que o público dá sentido à realidade e à obra, e

sem ele o autor não se realiza por completo, pois de certo modo trata-se do espelho que reflete

sua imagem enquanto criador. A obra, por sua vez, relaciona o autor ao público, já que seu

interesse é despertado por ela, mas se estende à personalidade que a produziu depois de

estabelecido aquele contato indispensável. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra

que criou e o público a que se dirige, na medida em que cria algo a que pode afetar outro ser

humano, em outro lugar e tempo. Para reforçar essa afirmação, é importante lembrar o que

Mónica Fontana explica sobre esta relação com outros discursos, com outros sentidos

historicamente constituídos: um texto produz sentidos para um sujeito, em um movimento

incessante de retomadas, reformulações, deslocamentos, inversões ou silenciamentos. É, também,

por essa relação constitutiva com o interdiscurso que não há um sentido fixo, intrínseco à palavra,

ao texto, à língua ou à intenção de significar do falante, pois os sentidos são produzidos na sua

relação com outros sentidos no interdiscurso. Por isso, um texto pode significar diferentemente

para diferentes sujeitos em diferentes condições de produção, dependendo de quais discursos são

retomados ou silenciados.

103

Page 120: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Figura 29 - Vingança 57

No exemplo da figura 29, vemos como a literatura deriva da elaboração do simbólico que

transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos adequados, exprimindo

representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no

patrimônio do grupo. Isso ocorre de modo que a grandeza de uma literatura depende da sua

relativa atemporalidade e universalidade, que dependem, por sua vez, da função final que pode

exercer, desligando-se dos aspectos que a prendem a um momento determinado e a um lugar

determinado. Amor e vingança são sentimentos e aspirações conhecidos pela grande maioria,

principalmente no que diz respeito à literatura, pois são temas das mais diversas narrativas e

poesias encontradas ao longo da história, porém sua dialética é desconstruída e reconfigurada

pelo autor na possibilidade de existir vingança com boas conseqüências, sendo ela o amor ao

próximo.

O leitor, na medida que lê, se constitui, se representa, se identifica. Ler não é só questão

de obter informação, mas uma ação que faz entrar num processo de interação relacionado com a

ideologia através de um interlocutor constituído no ato da escrita. Orlandi afirma que na medida

em que o leitor real se encontra com o leitor virtual, começa o jogo de significação do texto, se

pensarmos a escrita como interação. A coincidência entre leitor real e virtual depende da distância

57 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

104

Page 121: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

entre ambos, que nos poemas de Sérgio Vaz parece ser pequena, pois a linguagem de fácil

entendimento, interpelada pela ideologia de luta, felicidade e amor, se constitui como um

processo comunicativo que determina a prática dos indivíduos leitores como sujeitos,que

abrangem seus horizontes por meio da leitura. ”. Nesse sentido, vemos emergir um discurso

diante de determinado contexto sócio-histórico que pretende oferecer aos seus leitores um lugar

de identificação idealizado do sujeito bem sucedido. São palavras que produzem efeitos de

sentidos que visam o encorajamento dos leitores, buscando despertar-lhes a esperança e lhes

oferecer, assim, não só o cuidado, mas o caminho para mudanças que os levem a saúde

emocional, a felicidade e ao sucesso nas suas atuações. Segue na figura 30:

Figura 30 – Leitura58

Enfim, percebemos que a função social comporta o papel que a obra executa na definição

das relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou

mudança de certa ordem na sociedade, decorrendo da sua própria natureza, da sua inserção no

complexo de valores culturais e do seu caráter de expressão. No entanto, quase sempre, tanto os

artistas quanto o público estabelecem certas escolhas conscientes, que compõem camadas de

significado da obra. O poeta querendo atingir determinado fim; o leitor desejando que ele lhe

mostre determinado aspecto da realidade. Essa é a função ideológica, exposta pela estrutura

objetiva do que escreveu, referindo-se a um sistema definido de idéias.

58 www.facebook.com/poetasergio.vaz2

105

Page 122: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

106

Page 123: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo dessa pesquisa era abordar como o autor escolhido para análise se constitui

como sujeito ao englobar artes e letras, modos de vida, direitos fundamentais ao ser humano,

tradições e crenças na literatura sendo também ator no espaço que retrata nos textos com sua

trajetória de vida, a memória ressentida e o projeto pedagógico da literatura. Pretendíamos que tal

abordagem fosse verificada em textos de Sérgio Vaz divulgados nas redes sociais, visando

entender as relações do poeta com o cotidiano, a violência urbana, a carência de bens e

equipamentos culturais, relações pessoais e a precariedade da estrutura urbana, tendo a internet

como ferramenta de apoio à divulgação cultural.

Ao longo da pesquisa, percebemos à luz da Análise do Discurso que Sérgio Vaz exerce a

função autor na posição ideológica de poeta. Isso significa que ele vivencia a poesia e direciona

seus discursos principalmente para os moradores da comunidade e jovens, utilizando-se de

linguagem lúdica e de fácil entendimento que é capaz de tocar um público abrangente. O poeta

faz sua poesia como quem confecciona asas, e as divulga por meio das redes sociais como quem

se dispõe a ensinar cada sujeito, enquanto leitor, a voar também, com mensagens de autoestima,

alegria e esperança. No entanto, assina cada uma dessas mensagens como o poeta Sérgio Vaz,

algumas vezes incluindo sua própria foto na mensagem, constituindo-se como autor e sujeito por

meio da mensagem.

Entendemos que o poeta acredita ter se tornado uma bandeira a favor do inconformismo, e

percebe sua poesia como suporte às ideologias de lutar pela vida com cultura, educação, amor e

um sorriso no rosto, que, segundo o poeta, é a melhor forma de confundir um inimigo durante a

luta do movimento social que não visa tomar o poder, mas dissolvê-lo por meio da transformação

interior. Acreditar: essa é a palavra chave no discurso do poeta. Cremos que o trabalho de Sérgio

Vaz constitui sentido porque ele acredita no que faz e escreve, de modo que a convicção de que a

realidade pode não ser como queremos, mas o nosso mundo é como o fazemos dele, seja a

característica que conecta o poeta ao leitor. Além disso, os projetos sociais e culturais atrelados às

divulgações no facebook indicam um ativismo que vai além do sofá, algo que merece nossa

atenção, principalmente nos dias de hoje.

107

Page 124: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Percebemos que o poeta Sérgio Vaz utiliza consideravelmente as redes sociais, mais

frequentemente o Facebook, tendo tal uso justificado devido à significativa quantidade de acessos

pelos usuários e pela facilidade de desenvolver e divulgar suas ações culturais e educativas na

rede. Em relação ao público-alvo, percebemos que o Facebook do poeta funciona como uma

janela para fora da periferia, porque a minoria dos usuários que curtem e compartilham seus posts

são frequentadores do sarau da Cooperifa, embora um número considerável esteja ligado a

movimentos culturais, além de um número razoável de educadores. Com relação ao conteúdo das

postagens, notamos que está intensamente relacionado com a poesia e a Cooperifa, desde a

agenda cultural até poemas do próprio Sérgio Vaz.

Quanto à frequência da atualização do conteúdo postado, bem como o estabelecimento

prévio de uma linha de publicação, não identificamos um padrão, sendo observada a realização

de postagens diariamente ou várias vezes ao dia. Em ocasiões quando não há nenhuma

publicação, o poeta compensa seu público o quanto antes com diversas postagens. A divulgação

das ações do poeta realizada através das redes sociais Twitter e Facebook foi considerada

relevante nos resultados, pois foi notado, num intervalo de um ano, um aumento de

aproximadamente 30.000 curtidas na página.

Concluímos, por meio das análises, que há muito em comum nos discursos do poeta

Sérgio Vaz com a busca política das reconfigurações do sensível comum, que Jacques Rancière

(2005) entende como contribuição "para a formação de coletivos de enunciação que repõem em

questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens [...] desses sujeitos políticos

que recolocam em causa a partilha já dada do sensível" (Rancière, 2005, p.60). Frequentemente

acreditava-se no valor simbólico das ações, na força do instante e do gesto. Ora, esses atos eram

produzidos para substituir o mito da criação artística pela idéia de que a invenção é trabalho, é

produção. Considerava-se, assim, a arte um trabalho que contribuiria para realizar a

"transformação do pensamento em experiência sensível da comunidade” (Rancière, 2005, p.61), e

conseqüentemente, a literatura como um elemento social.

Notamos que muitos coletivos culturais aconteceram na comunidade nas últimas décadas

na periferia de São Paulo, disse o poeta Sérgio Vaz em entrevista, “eu acho que hoje a gente vive

a nossa primavera periférica, nossa Primavera de Praga. Eu acho que estamos vivendo nossa

108

Page 125: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Tropicália, nossa Bossa Nova, nossa Nouvelle Vague. Todos os movimentos que viveu a classe

média nos anos 60 e 70 estamos vivendo agora. Talvez menos midiáticos, talvez à sombra da

grande mídia, do grande público, mas estamos vivendo”59 Existem atualmente mais de 40 saraus

na periferia de São Paulo, espaços diversos agora são compartilhados com a cultura: bares que

abrigam bibliotecas, lajes que viram cinemas,... se antes a periferia produzia cultura e ia para o

centro mostrar, nos dias de hoje a periferia produz e consome a sua própria cultura.

Inferimos que ações como as que a Cooperifa e o Poeta Sérgio Vaz promovem, mostram

uma mudança de autoestima, tanto pessoal como espiritual, fazendo com que o morador da

periferia tenha orgulho das pessoas com quem convive, enfatizando que o governo deve se

envergonhar da situação social e de infraestrutura da favela, não seus moradores. A ideologia que

rega os discursos do poeta implica que a mudança começa dentro de cada indivíduo. Ele acredita

que é preciso lutar, sonhar com as mãos, numa atitude positiva que tem a educação e a cultura

como guias, por mais difícil que seja.

A literatura de Sérgio Vaz que encontramos atualmente no facebook apresenta uma

mensagem divergente àquela que o poeta propõe no Manifesto da Literatura Periférica (em

anexo), pois é muito menos combativa, entoando mais mensagens de auto-ajuda como um

ingrediente para suprir as necessidades individuais do homem, indivíduo pós-moderno, morador

de periferia, que busca suas realizações e êxito no “ter”, em detrimento do “ser”. A mensagem do

poeta floresce por mostrar ao indivíduo que ele “tem” o poder de buscar seu próprio sucesso, sua

realização pessoal, seu bem estar e riqueza sem precisar daquilo que está ao redor e compartilha

sentimentos semelhantes em momentos de desespero e ansiedade. O poeta propõe um leitor

poderoso e capaz, que embora não consiga chegar a essa felicidade, em contato com a poesia,

pensa que mudará sua condição de existência frágil para uma melhor estruturada e organizada por

isso.

Algumas limitações foram enfrentadas ao longo desta pesquisa, tais como a carência de

fontes teóricas acerca da literatura brasileira contemporânea produzida na periferia,

especialmente sobre a Cooperifa e o poeta Sérgio Vaz. No entanto, esperamos que esse estudo

contribua com outros que futuramente venham a somar ao tema. Ainda há muito o que ser

59 http://www.viomundo.com.br/politica/sergio-vaz-negros-da-periferia-vivem-a-sua-primavera-de-praga.html

109

Page 126: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

pensado, e podemos sugerir alguns caminhos como a as configurações de gênero no discurso do

poeta Sérgio Vaz e da Cooperifa.

Enfim foi possível concluir que os discursos da primavera periférica combatem as

diferenças com o crescimento interior e autoestima, deixando de transferir as responsabilidades

para terceiros, para líderes. Cada indivíduo é líder de si mesmo, tem poder e transformar o seu

espaço e espalhar essa proposta de mudança. Enfim, supõe-se que nessa luta, a arte seja pensada

como resistência segundo dois sentidos conceituados por Ranciere: a arte como uma capacidade

de autonomia e, simultaneamente, como uma potência de saída e de transformação de si.

110

Page 127: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

REFERÊNCIAS

AMARAL, A; RECUERO, R; MONTARDO, S. Blogs: mapeando um objeto. In: _______

(Org.) Blogs.Com: estudos sobre blogs e comunicação. São Paulo: Momento Editorial, 2009. p.

27-53.

ÁVILA, M.R. Mídias alternativas VS Mídias tradicionais: as manifestações de junho de

2013. Centro Internacional de Semiótica e Comunicação – CISECO II COLÓQUIO

SEMIÓTICA DAS MÍDIAS.

BARABÁSI, A.L. Linked. How Everything is Connected to Everything else and What it

means for Business, Science and Everyday Life. Cambridge: Plume, 2003.

BERLICK, M. T. O Centro Popular de Cultura da UNE. – Campinas: Papirus, 1984

BITTENCOURT, J. B. M. A lógica das linhas ou da cartografia como leitura de mundos

possíveis. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ALAS: Grupo de Trabalho: Metodologia e

Epistemologia das Ciências Sociais,28., 2011, Recife. UFPE, 2011.

CANCLINI, N.G. Culturas Híbridas. 2ª edição, Edusp: São Paulo, 1998

CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. Disponível em <

http://www.academia.edu/4827010/Antonio_Candido_-_Literatura_e_Sociedade>

CASTELLS, M. A Sociedade em Rede. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura.

Vol.1. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

CHAGAS, A. T. S. das. A ilusão no discurso da auto-ajuda e o sintoma social. 2.ed. revisada,

Ijuí: UNIJUÍ, 2001. 128p.

CHAUÍ, M. O que é ideologia. São Paulo (SP): Brasiliense, 1981.

DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

EAGLETON, T. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-modernismo.

Trad. Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005

111

Page 128: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

ESLAVA, F. Literatura Marginal : o assalto ao poder da escrita. In: Estudos de Literatura

Brasileira Contemporânea. N.24. 2004.

<http://seer.bce.unb.br/index.php/estudos/article/view/2151> (08/05/2014)

FARIA M.A.; ZANTCHELLA JR. J. Para ler e fazer o jornal na sala de aula .São Paulo:

contexto, 2002. p. 75-140.

FERREIRA, D.S. Territorio, Territorialiedade e seus múltiplos enfoques na ciência

geográfica. CAMPO-TERRITÓRIO: revista de geografia agrária, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr.,

2014

FAVARETTO, C. Incorformismo estético, inconformismo social: Hélio Oiticica, In Seguindo

Fios Soltos: caminhos na pesquisa sobre Hélio Oiticica (org.) Paula Braga, edição especial

da Revista do Fórum Permanente Martin Grossmann.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso.Tradução de Sírio Possenti . Ijuí: Fidene, 1973.

_____. Arqueologia do Saber. 3ª edição. Tradução brasileira de Baeta Neves, Petrópolis: Vozes.

1987.

_____ . As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

_____ . Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

_____. O que é um autor? Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 p. 219-242. (Ditos &

Escritos. v. III).

______. Truth and power. In: C. Gordon (Ed.). Power/knowledge: Selected interviews and other

writings 1972-1977. Nova York: Pantheon Books, 1980. p. 109-133.

GATTO, S.M.G. Do Texto ao Hipertexto: a literatura na era eletrônico-digital. São Paulo,

UMESP, 2000. nº 3 (Temática: Novas Tecnologias). Disponível em: < http://alb.com.br/arquivo-

morto/edicoes_anteriores/anais14/Cohilile/H113.doc> acesso em Out. 2013

GERBAUDO, P. Tweets and the Streets: Social Media and Contemporary Activism. London:

PlutoPress, 2012.

GREGOLIN, M. R. V. Olhares oblíquos sobre o sentido no discurso. In: Análise do

discurso,interpretação e memória: olhares oblíquos (no prelo). 2001.

112

Page 129: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

_____ Sentido, sujeito e memória: com o que sonha nossa vã autoria? In: GREGOLIN, M. R.

V. & BARONAS, R. (orgs.) Análise do discurso: as materialidades do sentido. São Carlos:

Claraluz. 2001b. p.60-80.

GUMBRETCH, H. U. Cascatas de modernidade, In: Modernização dos sentidos. São Paulo:

Editora 34, 1998.

GUARNACCIA, M. Provos – Amsterdam e o nascimento da contracultura. Tradução de

Roberta Barni. São Paulo: Conrad Livros, 2001.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira

Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A,2001

HOLLANDA, H.B. Impressões de viagem CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. 2a ed.

São Paulo, Brasiliense, 1981.

KOMESU, F. Entre o público e o privado: um jogo enunciativo na construção do escrevente

de blogs da internet. Campinas - SP, 2005, 271 p. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto

de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2005.

LANDOW, George . Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and

technology. Baltimore: The Johns Hopkins, 1992.

LÉVY, P. O que é o virtual? Coleção Trans. Editora 34. São Paulo, 1997.

______. A Inteligência Coletiva. Edições Loyola. São Paulo, 1998.

LOGAN, R. K. The Extended Mind: Understanding Languages and Thought in Terms of

Complexity and Chaos Teory. Disponível na Web em

<http://www.mcluhan.utoronto.ca/~mmri/papers/logan/extendmind.html>(11/10/2013)

MCLUHAN, M. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo,

Editora Nacional, Editora da USP, 1972.

MELO, C.T.V. A Análise do Discurso em contraponto à noção de acessibilidade ilimitada da

internet. 2004 Disponível em < https://www.ufpe.br/nehte/artigos/%C0%20NO%C7%C3O

%20DE%20ACESSIBILIDADE%20ILIMITADA%20DA%20INTERNET.pdf>

113

Page 130: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

______. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1969

MORAES, D. (org.) Globalização, Mídia e Cultura Contemporâneas. Ed. Letra Livre. Campo

Grande, 1997.

NASCIMENTO, E. P. do. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009

ORIHUELA, J. L. Blogs e blogosfera: o meio e a comunidade. In: ORDUÑA, Octavio I. Rojas.

et al. Blogs: revolucionando os meios de comunicação. Trad. Vertice Translate; Ver. Técnica: Ana

Carmen T. Faschini. São Paulo: Thomson Learning, 2007. p. 1-20.

ORLANDI, E. P. A leitura e os leitores possíveis. In: ORLANDI (org.) A Leitura e os Leitores.

Campinas: Pontes. 1998. p. 07-24.

______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4.ed. São Paulo: Pontes,

1996. 276p.

______. A questão do assujeitamento: um caso de determinação histórica. Com Ciência: revista

Eletrônica de Jornalismo Científico. 2007. Disponível em <http://www.

comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=26&id=296.>

______. Análise do Discurso: Princípios e Procedimentos. 10ª Ed. Campinas: Pontes, 2012

______. Análise do discurso: sentidos e fundamentos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2005

______. Interpretação; autoria. leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes,

1996.

PÊCHEUX. M. Discours: Structure ou Evennement, Illinois University Pres. Trad. Bras.,

Discurso: Estrutura ou Acontecimento, Orlandi, E. Campinas: Pontes, 1983.

______. Ler o arquivo hoje In: ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de Leitura: da História para o

Discurso. Trad. de Bethania, S. C. Mariani. 2ª edição. Campinas: UNICAMP, 1997. p.55-66.

PÊCHEUX, M.; GADET, F. A língua inatingível: O discurso na história da Linguística.

Campinas: Pontes Editora, 2004.

PRIGOGINE, I. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da

UNESP, 1996.

114

Page 131: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

PORTO, CM., org. Difusão e cultura científica: alguns recortes. Salvador: EDUFBA, 2009.

Disponível em < http://books.scielo.org/id/68/pdf/porto-9788523209124-05.pdf>

RESENDE, B. A literatura brasileira num mundo de fluxos. Terceira Margem. Rio de Janeiro.

Número 23. p. 103-112 • julho/dezembro 2010

______. Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro:

Casa da Palavra, 2008.

RHEINGOLD, H. La Comunidad Virtual. Una sociedad sin fronteras. Colección Limites de

La Ciencia. Gedisa Editorial. Espanha. 1996.

_________. A Slice of Life in My Virtual Community.

1992. Gopher://gopher.well.sf.ca.us/00/Community/virtual_communities92 (06/10/2013

ROMÃO, L. M. S.; MOREIRA, V. Weblog: a inscrição da heterogeneidade e do sujeito na

rede. In: Linguasagem. Revista Eletrônica. Letras. Universidade Federal de São Carlos. 2 ed. set.

2008. Disponível em: < http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao02/02ai_vlmlmsr.php>.

(30/01/2013)

_________. O cavalete, a tela e o branco: introdução à autoria na rede eletrônica. Revista Delta.

v. 22, n. 2, p. 303-328, 2006.

SALLES, A. C. Jornal e poesia: o Alencar espelhado no discurso da língua. RUA [online].

2012, no. 18. Volume 1

SCHERER-WARREN, I. Manifestações de rua no Brasil 2013: encontros e desencontros na

política. Cad. CRH vol.27 no.71 Salvador June/Aug. 2014. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010349792014000200012&script=sci_arttext>

SILVA, L. J. O. L. A Internet – a geração de um novo espaço antropológico. In: Biblioteca

Online de Ciências da Comunicação, 2001. <http://www.bocc.uff.br/pag/silva-lidia-oliveira-

Internet-espaco-antropologico.pdf> (08/05/2014)

VAZ, Sérgio. Antropofagia Periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

115

Page 132: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

WATTS, D. J. Six Degrees: The Science of a Connected Age. New York: W. W. Norton

&Company, 2003.

116

Page 133: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

ANEXO I

Somos Nós - Sérgio Vaz60

Vocês dizem que não entendemQue barulho é esse que vem das ruas

Que não sabem que voz é essaque caminha com pedras nas mãos

em busca de justiça, porque não dizer, vingança.

Dentro do castelo às custas da miséria humanaAlega não entender a fúria que nasce dos sem causas, dos sem comidas e dos sem casas.

O capitão do mato dispara com seu chicote A pólvora indigna dos tiranos

Que se escondem por trás da cortina do lacrimogêneo,O CHICOTE ESTRALA, MAS ESSE POVO NÃO SE CALA..

Quem grita somos nós,Os sem educação, os sem hospitais e sem segurança.

Somos nós, órfãos de pátriaOs filhos bastardos da nação.

Somos nós, os pretos, os pobres,Os brancos indignados e os índios

Cansados do cachimbo da paz.Essa voz que brada que atordoa seu sono

Vem dos calos da mãos, que vão cerrando os punhosAté que a noite venha

E as canções de ninar vão se tornando hinosNa boca suja dos revoltados.

Tenham medo sim,Somos nós, os famintos,

Os que dormem na calçadas frias,Os escravos dos ônibus negreiros,

Os assalariados esmagados no trem,

60 http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/sergio-vaz-quem-grita-somos-nos/

117

Page 134: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Os que na tua opinião,Não deviam ter nascido.

Teu medo faz sentido,Em tua direção

Vai as mães dos filhos mortosO pai dos filhos tortos

Te devolverem todos os crimesCausados pelo descaso da sua consciência.

Quem marcha em tua direção?

Somos nós, os brasileirosQue nunca dormiram

E os que estão acordando agora.

Antes tarde do que nunca.

E para aqueles que acharam que era nunca, agora é tarde.

118

Page 135: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

ANEXO II

Pensamentos de um correria61 – Ferréz

ELE ME olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o

amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro

pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole

só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto. Se voltar com algo, seu filho,

seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de

onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos. Quando o filho chora de fome, moral não vai

ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com

sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não

consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.

O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36

prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra

entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se

morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.

Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e

sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.

Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que

estão vivos e num país legal.

Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá

homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão

triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado

jogado no chão, atrapalhando o trânsito.

61 http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0810200708.htm

119

Page 136: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo

todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a

beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles,

ninguém sofre por beber. Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase

nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que

estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado? Ainda menino, quando assistia às

propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco

como alguém do que morrer velho como ninguém. Leu em algum lugar que São Paulo está

ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de

guerra. Não acreditava em heróis, isso não!

Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia

respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.

Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na

cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora. Era da seguinte opinião: nunca

iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa

tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não

pode ser medido por isso.

Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do

lixo, não fazia parte dele, não era lixo. A hora estava se aproximando, tinha um braço ali

vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas

na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de

meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final,

ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!

Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra

quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está

cercado de mulheres seminuas em seu programa.

Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao

seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.

120

Page 137: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais

valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação, afinal,

num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.

ANEXO III

Manifesto da Antropofagia Periférica - Sérgio Vaz

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. dos

becos e vielas há de vir a voz que grita contra o

silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um

povo lindo e inteligente galopando contra o passado.

A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.

A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura,

e universidade para a diversidade. Agogôs e

tamborins acompanhados de violinos, só depois da

aula.

Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a

liberdade de opção. Contra a arte fabricada para

destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade

que nasce da múltipla escolha.

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e

sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na

porta do bar.

Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do

cinema real que transmite ilusão.

Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir

os barracos de madeiras.

Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.

Da Música que não embala os adormecidos.

Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.

A Periferia unida, no centro de todas as coisas.

Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais

das quais a arte vigente não fala.

Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.

É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o

artista-cidadão. Aquele que na sua arte não

revoluciona o mundo, mas também não compactua

com a mediocridade que imbeciliza um povo

desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da

comunidade, do país. Que armado da verdade, por si

só exercita a revolução.

Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e

121

Page 138: PRIMAVERA PERIFÉRICA: Discursos da Periferia na Internetrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270795/1/... · histórico da resistência e da poesia enquanto agente de transformação

nos hipnotiza no colo da poltrona.

Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas,

cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à

produção cultural.

Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril

avantajado.

Contra o capital que ignora o interior a favor do

exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.

Contra os carrascos e as vítimas do sistema.

Contra os covardes e eruditos de aquário.

Contra o artista serviçal escravo da vaidade.

Contra os vampiros das verbas públicas e arte

privada.

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e

pela cor. É TUDO NOSSO!

122