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POR QUE CONTINUAM ENSINANDO QUE AS CANTIGAS DE AMIGO FORAM
ESCRITAS POR HOMENS?
Rafael Hofmeister de Aguiar
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul/ Universitate de
Vigo)
[email protected]
[email protected]
RESUMO
Desde a tese de Ria Lemaire (1987), é notória a composição
feminina das cantigas de amigo
galego-portuguesas, como demonstram outros estudos da
pesquisadora. No entanto, os
materiais didáticos continuam ensinando três décadas depois de
que essas cantigas foram
composições de homens que “fingiram” o sentimento feminino.
Desde esse paradoxo,
estabeleceu-se, ainda no século XIX, o paradigma dos trovadores
que eram capazes de encarnar
o sentimento feminino. Todavia, esquece-se de que essas
composições revelam elementos
íntimos do feminino, como a sua latente sexualidade, o que seria
impossível um homem tão
bem exprimir. Nisso, há a necessidade de repensar não só o
ensino da história da literatura como
conteúdo da disciplina de Literatura, mas da História como
ciência lecionada nos ensinos
Fundamental, Médio e Superior, uma vez que recompõe o papel da
mulher na Idade Média,
revendo os aspectos cristãos e pagãos que permeavam o oeste e
noroeste da Península Ibérica
como aventou Freixedo (2017). Como principais aportes teóricos
do trabalho, situam-se os
trabalhos de Freixedo (2017) e Lemaire (1987, 2017). Este
trabalho faz parte do projeto
desenvolvido em estágio pós-doutoral na Universidade de Vigo
(Galiza/Espanha) com
financiamento via Edital de Capacitação pelo Instituto Federal
de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (Brasil).
Palavras-chave: Idade Média. Cantigas de amigo. Gênero.
Historiografia. Historiografia da
literatura.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A poesia em galego português desenvolveu-se entre o final do
século XII e o século
XIV (BERARDINELLI, 1953). Trata-se de uma poesia eminentemente
lírica, sem arroubos
épicos que se deram em outras literaturas europeias – caso do El
cantar del Cid (2010) da
literatura espanhola, difundida sobretudo através da oralização,
ocorrendo, inclusive, através
do improviso (AGUIAR, 2020, no prelo). Essa produção pode ser
agrupada em dois grandes
grupos: a poesia profana, composta pela lírica propriamente dita
e a sátira, e a poesi religiosa,
abarcando os poemas reunidos a mando de Afonso X de Castela e
Leão no cancioneiro
mailto:[email protected]:[email protected]
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conhecido como Cantigas de Santa Maria, que não tem sido o foco
das pesquisas que tenho
realizado. As cantigas líricas propriamente ditas manifestam-se,
maiormente, em dois gêneros:
a cantiga de amor, de origem provençal com um eu lírico
masculino que canta o seu amor
impossível por uma mulher nobre e idealizada, e a cantiga de
amigo, de origem galega e popular
com um eu lírico feminino que aborda o encontro ou desencontro
amoroso com o amigo
(namorado). As cantigas satíricas agrupam-se em dois gêneros
principais: as cantigas de
escárnio, uma crítica velada e indireta, e as cantigas de
maldizer, uma crítica mordaz e direta.
Toda essa poesia profana encontra-se registrada em três
cancioneiros: Cancioneiro da Vaticana
(V), Cancioneiro da Biblioteca Nacional – antigo
Colocci-Brancuti (B) e Cancioneiro da
Ajuda (A). Esses são cópias tardias de algum(ns) cancioneiro(s)
anterior(es), sendo posteriores,
no caso de B, quase dois séculos após o desaparecimento da
escola trovadoresca (OLIVEIRA,
1994), possuindo lacunas, falhas dos copistas, anotações
posteriores à composição dos
manuscritos, o que implica um labor filológico de crítica
textual e edição a fim de se chegar
próximo do que seria o texto original.
Desses gêneros poéticos, do ponto de vista da disciplina de
história, tem-se voltado
para as cantigas de escárnio e maldizer, impressa nos trabalhos
de Barros (2005, 2006a, 2006b,
2006c), concepção referendada há um bom tempo por literatos,
como Berardinelli (1953, p. 6)
que assevera que esses dois gêneros sejam “a mais importante
para o conhecimento da
sociedade da época, de vez que revela os ridículos, os defeitos,
os costumes em geral, numa
linguagem incisiva, violenta, crua até a obscenidade”.
Entretanto, as cantigas líricas
propriamente ditas também podem contribuir para a compreensão da
sociedade da época.
Dessas, volto-me para as cantigas de amigo em uma perspectiva de
repensar as relações de
gênero em um duplo movimento que se volta, ao mesmo tempo, para
uma revisão da
historiografia da literatura, através da perspectiva da autoria,
e da história como campo de
conhecimento específico, do ponto de vista de um filólogo que se
permite a propor conceber a
Idade Média para além de esquemas reducionistas e
estereotipados, o que, aliás, já tem sido
realizado por historiadores de ofício como Le Goff (2014).
Este trabalho, com o intuito de proporcionar uma
inteligibilidade da reflexão, está
divido em três partes. A primeira se volta para a perspectiva
tradicional sobre as cantigas de
amigo em livros didáticos e antologias. A segunda propõe uma
outra concepção acerca das
cantigas de amigo a partir da compreensão de Ria Lemaire (1987,
2017). A terceira, por fim,
aborda a simbologia sexual presente nas cantigas de amigo com o
intuito de contribuir para
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reexaminar a imagem da mulher medieval. Vale ressaltar que, nas
duas primeiras partes, volto-
me, sobretudo, para a questão da autoria das cantigas.
2 A PERSPECTIVA TRADICIONAL SOBRE AS CANTIGAS DE AMIGO:
LIVROS
DIDÁTICOS E ANTOLOGIAS
Nas abordagens tradicionais das cantigas de amigo, a sua autoria
é atribuída,
geralmente de maneira acrítica, a homens que, em uma intuição e
sensibilidade ímpares,
expressam sentimentos femininos, assumindo, inclusive, mormente,
a voz da mulher. É com
esse o enfoque que esse gênero poético é abordado nos livros
didáticos e nas antologias
dedicadas aos estudantes dos ensinos médio e superior, seja no
Brasil, em Portugal ou na Galiza.
Para elucidar isso, faço um breve exame de dois livros didáticos
brasileiros e três antologias –
uma galega, uma brasileira e uma portuguesa.
Inicio o exame pelo livro Português: linguagens, de Cereja e
Magalhães (2016), obra
com excelente apresentação gráfica e abordagem progressista
acerca da língua, mas de
abordagem reducionista no que tange à lírica profana
galego-portuguesa. Nele, são apresentadas
duas cantigas de amigo: (1) Ondas do mar de Vigo e (2) Vaiamos,
imãa, vaiamos dormir. Tanto
(1) quanto (2) são exploradas, quase que unicamente, nos
aspectos de construção formal,
inclusive, no caso de (1), as perguntas orientam o aluno a
identificar a diferença de voz poética
entre as cantigas de amigo e de amor
Considero essa abordagem um tanto reducionista, principalmente,
levando em conta
Ondas do mar de Vigo. Tal percepção se dá pelo completo silêncio
acerca do ciclo de cantigas
que enfocam a ria de Vigo e a condição social e artística dos
poetas medievais da ria de Vigo –
os três jograis João de Cangas, Martin Codax e Mendinho. Aliás,
esse enquadramento pode
proporcionar inferências importantes. Em primeiro lugar,
ressalta-se a necessidade de o jogral
satisfazer o público, uma vez que dele dependia o seu sustento
(OLIVEIRA, 2000), ao mesmo
tempo em que cumpria a função de “assegurar a manutenção das
tradições culturais em
comunidades onde, cada vez mais, o saber se transmitia de
geração em geração através da fala
e do canto” (OLIVEIRA, 2000, p. 339). Em segundo lugar,
registra-se a presença da cantiga no
Pergaminho de Vindel, em que constam sete cantigas de amigo
atribuídas a Martin Codax, seis
delas acompanhadas pelo registro das notações musicais
(FERREIRA, 2000, p. 536). Em
terceiro lugar, em um movimento de síntese, tendo em vista a
latente valorização da lírica
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popular nas cortes ibéricas, elucidada nas décadas de pesquisa
de Marguit Frenk, sintetizadas
em Poesía popular hispânica (2006), há de se cogitar que os
jograis viguenses atendiam ao
gosto do público, seja ele popular ou cortesão, executando as
cantigas de amigo de raiz popular
e feminina, inclusive – por sua dedicação “à parte instrumental”
(OLIVEIRA, 2000, p. 340) –
registrando a música em pergaminhos, como o de Vindel, como
suporte para a memória.
Após a abordagem reducionista, os autores apresentam um quadro
comparativo entre
as cantigas de amigo e as de amor. Nele, destaca-se como se
sintetiza o assunto das cantigas de
amigo: “lamento da moça cujo namorado partiu” (CEREJA,
MAGALHÃES, 2016, p. 87).
Nisso, há uma redução a um imaginado topoi que, como procurarei
examinar na sequência deste
trabalho, não corresponde à produção efetiva das cantigas de
amigo.
Cereja, junto com Vianna e Cadenhoto, possui outro livro
didático: Português
contemporâneo (2016). Nele, é apresentada a cantiga Levou-s’a
louçana que, assim como na
outra obra, é abordada através de um questionário centrado na
oposição da voz feminina nas
cantigas de amigo à voz masculina na cantiga de amor (nesse
caso, a cantiga Quantos an gran
coita d’amor) e aos aspectos formais da composição. Novamente,
deixa-se de se explorar
importantes elementos da cantiga, entre eles toda a simbologia
sexual do ato de lavar os cabelos
(vai lavar cabelos/ na fontana fria) que representa a realização
do ato sexual por iniciativa da
mulher (LEMAIRE, 1987, FREIXEDO, 2017).
Ambos livros didáticos possuem uma perspectiva comum: a
concepção da autoria
masculina das cantigas de amigo. Essa é uma perspectiva
tradicional acerca das cantigas de
amigo que foi questionada por Lemaire (1987) e que me deterei no
próximo item deste trabalho.
Aliás, a atribuição da autoria masculina das cantigas de amigo
encontra-se latente na
Antoloxía da lírica galego-portuguesa (FREIXEDO, 2003). Ela tem
por objetivo tornar a
produção medieval acessível a um público amplo, almejando que “o
lector poida ter unha visión
global da producción poética trovadoresca e ó mesmo tempo coñeza
as súas claves principais”
(FREIXEDO, 2003, p. 8). Mesmo que o autor declare que a
Introdução da antologia “non se
trata polo tanto dun manual” (FREIXEDO, 2003, p. 9), ele faz um
amplo estudo acerca das
cantigas galego-portuguesa, utilizando-se de sólida fortuna
crítica, e dá indícios de que a obra
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se constitui em um material com possível uso didático1. Na
referida introdução, pode-se ler o
excerto abaixo.
Entre estas cantigas de amigo de ‘estilo cortés’ atópanse
composicións nas que vemos
á muller padecer as mesmas ou similares coitas ás que sofre o
namorado das cantigas
de amor. Son cantigas coma a 179 de Pero da Ponte na que é a
muller a que recorre ó
tópico da morte libertadora da coita producida pola separación.
Tamém nunha cantiga
coma a 34 de Vasco Fernandes Praga de Sandín é a muller, e non o
poeta, quen declara
que non hai nada no mundo que a libere do desexo del, cando non
o pode ver; um
tópico moi recorrente nas cantigas de amor (FREIXEDO, 2003, p.
88).
Primeiramente, Freixedo (2003) divide as cantigas de amigo
naquelas com “estilo
popularizante” e noutras com “estilo cortês”, sendo estas a
grande parte da produção nesse
gênero. Fora a atribuição da autoria masculina das cantigas de
amigo, o filólogo segue a
concepção de Tavani (1986) de que esse gênero se constitui como
um reverso preciso das
cantigas de amor. Dessa forma, se nas cantigas de amor o homem é
submisso à mulher, tendo
os seus desejos e sentimentos contidos, segundo essa
compreensão, a mulher também seria
submissa ao homem e refrearia os seus desejos nas cantigas de
amigo. Todavia, mesmo com
sua perspectiva tradicional da autoria das cantigas de amigo,
Freixedo, como eminente
especialista da erótica na lírica medieval galego-portuguesa,
ressalta o simbolismo sexual
presentes nas cantigas de amigo, o que será retomado na terceira
parte deste artigo.
Na antologia Fremosos cantares, Mongelli (2009) apresenta um
enfoque ainda mais
tradicional na abordagem das cantigas de amigo. A estudiosa
apoia-se na antiga disputa das
teses acerca da origem da lírica galego-portuguesa – arábica,
folclórica, médio-latinista e
litúrgica/paralitúrgica (LAPA, 1970) – para, a partir disso, não
só questionar as possíveis
matrizes (e matizes) populares das cantigas de amigo como também
para afirmar a sua autoria
masculina. Reconhecendo que, nas cantigas de amigo, “no mínimo
confluem as heranças latina,
moçárabe e ocitânica” e aspectos da cultura popular ibérica, por
outro lado, declara que,
Contudo, esse magma de procedências diversas recebido da
tradição e adaptado ao
presente do medievo central é tratado esteticamente por poetas
cultos, que estilizam
motivos pré-trovadorescos segundo o instrumental erudito
oferecido pelas disciplinas
do trivium (Gramática/Retórica/Dialética).
[...]
1 Trabalhei com Freixedo na Universidade de Vigo que me relatou
que a Introdução de sua antologia era utilizada
por ele como material de estudo de seus alunos da disciplina de
Literatura medieval na Faculdade de Filologia e
Tradução.
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A segunda questão que nos sugere rever o conceito de “popular” é
o fato de as cantigas
de amigo serem compostas por homens, que usam da esplêndida
estratégia de se fazer
passar por mulheres para revelar o que ocorre no íntimo da
psique feminina
(MONGELLI, 2009, pp. 94-95).
No entendimento da medievalista, as cantigas de amigo foram
compostas por poetas
dotados, além de uma sensibilidade e de um profundo conhecimento
da psicologia feminina, de
uma erudição advindas do profundo domínio do trivium.
Entretanto, um rápido exame na obra
atribuída a Lourenço, jogral, “figura de relevo da jograria
medieval” (TAVANI, 1993, p. 426),
apresenta elementos que permitem questionar os argumentos da
autora. Nesse sentido, ao
mesmo tempo que a Lourenço é atribuída a autoria de seis
cantigas de amigo (TAVANI, 1993),
ele é acusado de nem dominar a escrita na tenção Rodrig'Eanes,
queria saber, entre o jogral
e Rodrigo Anes de Álvares. Este ataca Lourenço com os versos
“Com'esso dizes, ar di ũa rem:/
que és homem mui comprido de sem/ e bom meestr'[e] que sabes
leer” (“Como isso dizes, me
diz outra coisa:/ que és homem de muito bom senso/ e bom mestre
e que sabes ler – AGUIAR,
2020b, no prelo), insinuando o seu analfabetismo, o que não é
contestado pelo jogral na sua
resposta. Tais dados permitem não só questionar a concepção de
trovadores homens providos
de erudição a ponto de “revelar o que ocorre no íntimo da psique
feminina” (MONGELLI,
2009, pp. 94-95), mas também reforçar a hipótese que aventei
acima de que os jograis
executavam cantigas de amigo, alheias por serem canções
populares de mulheres, a pedido do
público que garantia o seu sustento.
Para finalizar esta seção do trabalho, refiro-me a uma antologia
de mais de 30 anos
atrás, mas não menos importante no percurso investigativo
proposto: trata-se da Antologia da
poesia trovadoresca galego-portuguesa, de Torres (1987),
publicada em Coimbra. Nela,
reafirma-se a abordagem tradicional da autoria masculina da
cantiga de amigo.
De que os trovadores galaico-portugueses não se puderam libertar
foi, obviamente,
dos maneirismos provençais. Por isso a cantiga de amor como
forma culta, é de
importação, indo opor-se às composições poéticas de raiz
autóctone, as cantigas de
amigo. Nestas, a donzela exprime os seus sentimentos pelo
namorado, mas tal forma
de lirismo é um travesti, no sentido em que o trovador coloca na
boca da rapariga as
palavras que exprimem os seus próprios sentimentos amorosos,
operando-se uma
inversão curiosa, seguindo linhas tradicionais muito antigas,
vindas do fundo dos
tempos, já que, desde sempre, os cantares de raiz popular sempre
foram entoados por
gargantas femininas, nas fainas da casa e do campo (TORRES,
1987, p. 10-11).
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Apesar de reconhecer que as cantigas tradicionais são cantos de
mulheres, Torres
(1987) afirma que as cantigas de amigo foram compostas por
homens que colocavam na boca
das mulheres os seus sentimentos amorosos. Do discurso do
estudioso português, deriva uma
possível ambiguidade: as cantigas de amigo são uma versão em voz
feminina das cantigas de
amor (TAVANI, 1986) ou as cantigas de amigo constituem-se em uma
composição masculina
em que a mulher pronuncia o desejo sexual que o autor almejava
que ela tivesse por ele. Ambas
perspectivas são problemáticas e colocam o gênero feminino como
subalterno ao homem, ou
seja, sempre o desejo feminino está subordinado ao controle de
uma sociedade patriarcal, sendo
permitido ao homem fantasiar a sua sexualidade, enquanto à
mulher lhe é interdito.
Pelo que abordei até aqui, é imperativo cogitar uma outra
concepção sobre essas
cantigas de amigo. Isso não se constitui uma novidade, o que
demonstram os estudos de Ria
Lemaire que enfoco na próxima seção.
3 POR UMA OUTRA CONCEPÇÃO DAS CANTIGAS DE AMIGO: SEGUINDO AS
TRILHAS DE RIA LEMAIRE
Em 1987, Ria Lemaire publicou a sua tese de doutorado Passions
et positions:
contribuition à une sémiotique du sujet dans la poésie lyrique
médiévale em langues romanes
que trazia uma nova visão acerca das cantigas de amigo. Nesse
trabalho, a pesquisadora
holandesa defendia não só a hipótese da autoria feminina dessas
cantigas como também o
caráter oral e performático das cantigas, constituindo-se as
cantigas de amigo paralelísticas em
cantos de trabalho femininos originados na sociedade rural
galega. Aliás, dessa sociedade rural
galega, erigiu o idioma literário de toda a Península Ibérica do
período trovadoresco, sendo
utilizado desde jograis populares a soberanos de Castela, Afonso
X, e de Portugal, Dom Dinis.
Em uma publicação mais recente, Lemaire parte da obra de
Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, a “maior filóloga portuguesa da época da transição
do século XIX para o século
XX” (2017, p. 215), para reafirmar a sua tese de trinta anos
antes. Entre os inúmeros préstimos
de Michaëlis2, está a edição crítica do Cancioneiro da ajuda,
composto apenas de cantigas de
2 Não faço a referência pelo sobrenome Vasconcelos por dois
motivos: a filóloga ter ficado conhecida pelo seu
sobrenome alemão de família e para evitar a confusão com o seu
esposo, o intelectual português João Antônio da
Fonseca de Vasconcelos. Cabe nesta nota ressalvar que o
conhecido Dicionário Michaëlis se deve ao esforço de
sua irmã mais velha Henriette Michaëlis.
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amor, onde anuncia o intuito de publicar um Cancioneiro das
Donas, que nunca se conheceu.
Entretanto, Lemaire possui uma perspectiva verossímil sobre o
que seria a obra da filóloga.
Já podemos imaginar o que seria a tese do Livro das Donas que
Dona Carolina nunca
publicou: essas cantigas de amigo, presentes nos cancioneiros
medievais, são
originalmente cantigas de uma tradição oral de “autoria”
feminina, no sentido em que
elas foram versadas e musicadas pelas próprias mulheres do mundo
rural como
cantigas de dança ou de trabalho. Transcritas nos cancioneiros
medievais da nobreza
e corte, elas foram atribuídas aos trovadores da época. Essas
atribuições tardias foram
utilizadas, pelos literatos dos séculos XIX e XX, como provas de
autoria individual e
masculina, no sentido moderno da palavra. Esse erro
epistemológico – scriptocêntrico
– inicial obrigava os eruditos a inventar um novo quadro
interpretativo para essas
cantigas: tratar-se-iam de poesias escritas pelos trovadores,
poetas masculinos nobres,
que, com uma sensibilidade e intuição geniais da alma feminina
rural, as teriam posto
na boca das mulheres. A graça e o encanto, que tanto admirava
Dona Carolina nas
vozes das mulheres cantadoras, transformaram-se, no papel da
historiografia
acadêmica do século XX, em tristeza e infelicidade de mulheres
tristes, choronas,
sempre à espera, passivamente, de namorados ausentes. Difícil
imaginar tese mais
ridícula, mas a triste verdade é que, não só na época de Dona
Carolina, mas também
hoje em dia, o ensino nas faculdades de Letras e, por
conseguinte, nas escolas
secundárias, divulga esse preconceito cegamente positivista,
scripto e androcêntrico
(LEMAIRE, 2017, p. 216).
Da longa citação de Lemaire (2017), assinalo algumas
contribuições importantes. Em
primeiro lugar, salienta-se a questionável atribuição de autoria
das cantigas não só as de amigo
como também as de outros gêneros em cancioneiros posteriores ao
fenômeno trovadoresco
ibérico3. Em segundo lugar, emerge a urgência de pensar a
literatura medieval como oral e não,
propriamente, escrita – o que está bem versado na obra de
Zumthor (1993, 2010). Em terceiro
lugar, a construção da imagem de uma mulher submissa, “chorona”,
que, destituída de poder
de ação, lamenta a ausência do amigo (namorado), o que ainda
perpassa o ensino de Literatura,
como procurei elucidar anteriormente, e que pretendo lançar
perspectivas de desconstrução no
item seguinte deste trabalho.
Aliás, considero necessário assinalar que toda a reflexão
crítico-teórica da intelectual
holandesa se encontra no escopo das renovações da crítica
feminista. Sobre essa corrente de
pensamento nos estudos literários, ainda em 1980, Jonathan
Culler (1997, p. 36) assinala com
propriedade que ela “teve o maior efeito sobre o cânone
literário do que qualquer outro
movimento crítico, e que comprovadamente foi uma das mais
poderosas forças de renovação
da crítica contemporânea”. A propósito, o trabalho de Lemaire
(1987, 2017) centra-se sobretudo
3 Na fortuna crítica sobre os cancioneiros, há inúmeros debates
acerca da autoria de incontáveis cantigas de
diferentes gêneros.
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na reestruturação do cânone da literatura medieval
galego-portuguesa sobre a ênfase nas
questões de gênero (mulher) e de oralidade.
4 A SIMBOLOGIA SEXUAL NAS CANTIGAS DE AMIGO: CONTRIBUIÇÕES SOBRE
A
IMAGEM DA MULHER MEDIEVAL
Para operar um caminho de desconstrução de uma mulher submissa
que chora e
lamenta a ausência do amigo/namorado, parto da cantiga utilizada
no livro didático Português
contemporâneo (CEREJA, VIANNA, CONHETO, 2016). Transcrevo o
texto na íntegra em
galego-português.
1. [Levou-s'aa alva], levou-s'a velida, 2. vai lavar cabelos na
fontana fria; 3. leda dos amores, dos amores leda. 4. [Levou-s'aa
alva], levou-s'a louçana, 5. vai lavar cabelos na fria fontana; 6.
leda dos amores, dos amores leda. 7. Vai lavar cabelos na fontana
fria, 8. passou seu amigo, que lhi bem queria; 9. leda dos amores,
dos amores leda.
10. Vai lavar cabelos na fria fontana, 11. passa seu amigo, que
[a] muit'a[ma]va; 12. leda dos amores, dos amores leda. 13. Passa
seu amigo, que lhi bem queria, 14. o cervo do monte a áugua volvia;
15. leda dos amores, dos amores leda. 16. Passa seu amigo que a
muit'amava, 17. o cervo do monte volvia [a] áugua; 18. leda dos
amores, dos amores leda (LOPES, FERREIRA, 2011a-).
Essa cantiga apresenta uma mulher ativa que vai até a “fontana
fria”, “lugar propicio
para o encontro amoroso” (FREIXEDO, 2003, p. 792), para lavar os
cabelos, ação recoberta de
conotações eróticas. Entretanto, “hai outro elemento simbólico
de marcadas connotacións
sexuais: o cervo do monte, símbolo da sexualidade masculina, que
avolve a auga, é unha clara
alusión simbólica para referir as relacións sexuais” (FREIXEDO,
2003, p. 792). Dessa forma,
a mulher chorona e passiva que lamenta a ausência do
amigo/namorado não é a que está
representada nessa cantiga. Também, não é a passividade feminina
que permeia as cantigas de
amigo, uma vez que nelas “si se explora de maneira notábel a
sensualidade erótica feminina.
-
Con frecuencia as mulleres protagonistas das cantigas de amigo
son conscientes de seu poder
erótico e toman a iniciativa sexual” (FREIXEDO, 2017, p.
31).
Apesar de Freixedo (2017) seguir, por um lado, o caminho
tradicional através da
atribuição da autoria masculina às cantigas de amigo, por outro,
reconhece o papel ativo da
mulher, como é perceptível no excerto abaixo.
Nunha cantiga do clérigo Roi Fernandiz de Santiago (B 972, V 515
[142, 7], unha
rapariga pídelle permiso a súa nai para poder ir encontrarse co
seu amigo, coitado,
que xa está esperando só, ‘no monte’. Para nós resulta difícil
percíbir se a moza se fai
de inocente – tanto como para pedirlle á propia nai un encontro
a soas co namorado,
nada menos que no monte –, ou se temos que ver nesa petición
unha mostra de que as
relacións dese tipo serían plenamente aceptadas na época, tal
como eran na nosa
sociedade rural galega até non hai moitos anos (FREIXEDO, 2017,
p. 31).
É difícil conceber que um clérigo assuma a voz feminina para
cantar o desejo da moça
de se encontrar com o namorado sozinha no monte, inclusive,
pedindo permissão a sua mãe
(nai em galego contemporâneo), o que reforça a hipótese da
autoria feminina e posterior
atribuição a poetas homens (LEMAIRE, 1987, 2017). Mesmo que Roi
Fernandiz de Santiago
tenha composto os versos ou não, essa cantiga permite aventar
uma outra concepção sobre a
mulher medieval, ao menos nas comunidades galegas, em que subjaz
uma liberdade sexual
aquém da moralidade cristã, geralmente usada como parâmetro
universal para se definir a Idade
Média, que é mais ampla do que se pensa e se tenta aprisionar em
topoi.
Acerca dessa não homogeneidade da moral cristã na Península
Ibérica, Freixedo
assinala:
Hai que ter presente, por outra parte, que na Península Ibérica
existían tres culturas
con tres relixións diferentes que, ainda que coincidan em darlle
á muller un papel
secundario e dependente em relación ao home, teñen un concepto
moi diferente do
pracer sexual. No mundo musulmán e tamén no xudeu o pracer
sexual é visto como
algo positivo. Do Oriente proceden libros que exolican as
múltiples formas de gozar
coas relacións sexuais e que, en última instancia, se remotan ao
Kama Sutra. Mentres,
no Occidente católico ortodoxo un autor como santo Alberte o
Magno, entre outros,
escribe sobre posturas sexuais, mais para condenalas todas menos
unha e sempre,
claro, que se trate do sexo marital con fins reprodutivos. Mais
tamén hai que
considerar que nos territorios teoricamente cristianizados ainda
pervivían entre a
poboación restos de antigos ritos pagáns nos que a compoñente
sexual era
fundamental (FREIXEDO, 2017, p. 23).
Correndo por fora das impregnações morais das três religiões
abraâmicas, o paganismo
de vários matizes subsiste na Galiza, vindo a ser perseguido
pela Inquisição na Península Ibérica
-
somente no século XV. Nesse sentido, há de se pensar o extremo
esforço de cristianização da
Galiza, representado de forma exemplar pelo mito dos restos
mortais de São Tiago Apóstolo
em Compostela e a construção de sua catedral. Embora tal
esforço,
En ocasións a moza proponlle ao amigo verse a soas nun lugar
apartado, que adoita a
contorna dun santuario. Cómpre lembrar que moitos santuarios
foron construídos para
tentar cristianizar antigos lugares de culto pagán onde se
celebran ritos de fecundidade
e fertilidade nos que a sexualidade era elemento fundamental. É
nunha ermida illada
onde a moza namorada da cantiga de Meendinho (B 852, V 438, [98,
1]) está a piques
de afogar nas ondas do mar maior da paixón amorosa insatisfeita,
pois o amigo
desexado non chega (FREIXEDO, 2017, p. 31).
Diante de tal paganismo, da utilização dos templos para práticas
sexuais próprias do
mundo medieval galego, Afonso X encomenda a reunião das cantigas
em louvor a Santa Maria
em um ou mais cancioneiros, provavelmente os conservados na
Biblioteca de El Escorial
(códices J. b. 1 e J. b. 2). Isso revela-se como um esforço de
cristianizar a língua literária de
toda Ibéria medieval – o galego ou galego-português, permeada
por motivos sexuais nas
cantigas de amigo que depunham contra a moral sexual cristã,
como é o caso da cantiga que
apresento abaixo.
1. Bailemos nós já todas três, ai amigas, 2. sô aquestas
avelaneiras frolidas, 3. e quem for velida, como nós, velidas, 4.
se amigo amar, 5. sô aquestas avelaneiras frolidas 6. verrá
bailar.
7. Bailemos nós já todas três, ai irmanas, 8. sô aqueste ramo
destas avelanas, 9. e quem for louçana, como nós, louçanas, 10. se
amigo amar, 11. sô aqueste ramo destas avelanas 12. verrá
bailar.
13. Por Deus, ai amigas, mentr'al nom fazemos 14. sô aqueste
ramo frolido bailemos, 15. e quem bem parecer, como nós parecemos,
16. se amigo amar, 17. sô aqueste ramo, sol que nós bailemos, 18.
verrá bailar (LOPES, FERREIRA, 2011b-).
Nessa cantiga, não só temos uma mulher ativa como também uma que
incita outras a
atividade (“Bailemos nós já todas três”). Essa atividade se
perfaz no encontro com outros
homens (talvez, amigos/namorados) para a realização do desejo
sexual, uma vez que o “ramo
-
destas avelanas” é uma referência clara ao órgão sexual
masculino. Em outros termos, a moça
convida as irmãs para irem até o verede de avelãs para
encontrarem amigos e com eles terem a
coita, estendendo essa possibilidade de realização do ato
erótico a todas as jovens belas: “e
quem for velida, como nós, velidas,/ se amigo amar,/ sô aquestas
avelaneiras frolidas/ verrá
bailar”. De certa forma, situada no ambiente rural, essa cantiga
retoma certos aspectos daquela
atribuída a Roi Fernandiz de Santiago a que se refere Freixedo
(2017), imprimindo uma
liberdade sexual feminina nos espaços rurais da Galiza da Idade
Média.
Em suma, como tentei fazer notar, as cantigas de amigo são
permeadas por uma alta
carga simbólica erótica. Esses dados permitem não só repensar as
relações de gênero na Ibéria
medieval como também rever o escopo da moralidade cristã na
medievalidade rural nesse
território, em que aspectos pagãos, advindos de diversos povos,
tal como os celtas, ainda se
faziam presentes no tempo das cantigas de amigo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar este artigo, é possível traçar algumas propostas
para repensar a
historiografia da literatura no que tange às cantigas
trovadorescas galego-portuguesas e a
historiografia acerca das relações de gênero e sobre a
moralidade religiosa e sexual na Idade
Média. Proponho, então:
• reconsiderar a questão da autoria nas cantigas de amigo,
reconhecendo o papel artístico
das mulheres no período medieval;
• proporcionar uma abordagem das cantigas de amigo em todas as
suas potencialidades
simbólicas em uma perspectiva nem moralista nem moralizante que
não feche os olhos
para a natureza erótica dessa produção;
• fugir das generalizações acerca de uma cristianização
homogênea e de um domínio
absoluto da moral cristã no período medieval;
• reconhecer o papel ativo da mulher durante a Idade Média;
e
• possibilitar que o estudante tenha contato com os aspectos
contraditórios do período
medieval, repensando o rótulo redutor Idade das trevas.
Essas proposições voltam-se, sobretudo, ao ensino de Literatura
e à pesquisa nesse
campo do saber. Entretanto, traz contribuições mais vastas que
podem não só atingir o ensino
-
de História como ciência específica como colaborar para se
pensar em uma antropologia
cultural da Idade Média, principalmente, no que se refere às
relações de gênero.
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