PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Adriana Tulio Baggio Mulheres de saia na publicidade: regimes de interação e de sentido na construção e valoração de papéis sociais femininos. DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. SÃO PAULO 2014
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Adriana Tulio Baggio
Mulheres de saia na publicidade: regimes de interação e de sentido na construção e valoração de papéis sociais femininos.
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.
SÃO PAULO 2014
FOLHA DE APROVAÇÃO
Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Idilia e Baggio, para vocês, com amor.
AGRADECIMENTOS
Recentemente, Ana Claudia de Oliveira publicou “As interações discursivas” (2013), trabalho
em que investiga os diferentes modos de presença do sujeito da enunciação nas situações
comunicacionais. Uma tese de doutorado é, também, um processo comunicacional, e ela não se faz
sozinha. É nas trocas de posição entre enunciador e enunciatário – nas aulas, nas orientações, nas
discussões em congressos, nas bancas avaliadoras – que se co-enuncia o seu sentido. Ana Claudia
está muito mais presente nesta tese do que revela o parecer construído pelas figuras de citações e
referências; as marcas que deixa em nós, pesquisadores com o privilégio de nos formar sob sua
orientação, ficam para sempre. Sua competência, dedicação à pesquisa, seu rigor científico, sua
honestidade e generosidade, são referência para mim. Muito obrigada!
Frequentar as aulas do doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP foi uma das
experiências mais enriquecedoras que já tive, e por isso agradeço aos professores Cecilia Almeida
Salles, José Luiz Aidar Prado, Norval Baitello Júnior e Oscar Angel Cesarotto; estes momentos eram
ainda mais felizes pela companhia dos colegas e pelas conversas e desabafos na hora do café.
Representando esta “categoria”, agradeço, especialmente, à Luciana Rossi Cotrim e à Taisa Vieira
Sena, colegas que se tornaram amigas.
Obrigada ao professor Francesco Marsciani, co-orientador no período do doutorado sanduíche
na Universidade de Bologna, e à professora Miriam Adelman, do doutorado em Sociologia da
Universidade Federal do Paraná. cuja disciplina ajudou a ampliar meus horizontes de pesquisa.
O apoio do Centro Universitário Uninter foi fundamental nestes anos. Agradeço à instituição
pelo tempo para a pesquisa, e sou especialmente grata aos colegas, pela força e pelas substituições;
aos alunos, pela paciência e empatia; e aos coordenadores, Paulo e Nivea, pelo inestimável suporte
e compreensão.
Tatá Vaz, obrigada pelo apoio de sempre e por “segurar as pontas” em tantos momentos deste
percurso, primeiro como companheiro e hoje como colega. Marilene, Heloisa e Henrique, obrigada
por sempre me receberem tão bem em São Paulo.
A pesquisa é um trabalho solitário, e ter amigos para conversar é uma preciosidade. Obrigada
a vocês que ouviram, deram atenção e ombro, serviram mais cerveja, contaram piadas e me
encorajaram.
Agradeço ao Juliano Henrique Bodão pela ajuda com a produção gráfica; à Karoline Américo
pela digitalização dos anúncios; à Idilia Tulio Baggio pela revisão; ao Carlos Eduardo Athayde, por
apontar os excessos e mostrar o que é realmente essencial.
Obrigada ao CNPq, pelo apoio financeiro para o desenvolvimento da pesquisa.
Por fim, agradeço à criatura que acompanha minha trajetória de pesquisadora desde o
mestrado, e que sem falar nada, oferece amor e conforto eloquentes: Ferrugem.
My short skirt is not an invitation a provocation an indication that I want it
or give it or that I hook.
My short skirt is not begging for it
it does not want you to rip it off me
or pull it down.
My short skirt is not a legal reason
for raping me although it has been before
it will not hold up in the new court.
My short skirt, believe it or not has nothing to do with you.
My short skirt is about discovering
the power of my lower calves about cool autumn air traveling
up my inner thighs about allowing everything I see
or pass or feel to live inside.
My short skirt is not proof that I am stupid
or undecided or a malleable little girl
My short skirt is my defiance I will not let you make me afraid My short skirt is not showing off
this is who I am before you made me cover it
or tone it down. Get used to it.
My short skirt is happiness I can feel myself on the ground.
I am here. I am hot.
My short skirt is a liberation flag in the women's army
I declare these streets, any streets my vagina's country.
My short skirt is turquoise water
with swimming colored fish a summer festival in the starry dark
a bird calling a train arriving in a foreign town
my short skirt is a wild spin a full breath a tango dip
my short skirt is initiation
appreciation excitation.
But mainly my short skirt and everything under it
is Mine. Mine. Mine.
Eve Ensler
“The Vagina Monologues”
RESUMO
Esta tese investiga a participação da saia na construção e valoração de papéis sociais femininos na publicidade de revistas. Ainda que estudos sobre representação feminina na publicidade e aspectos sociais da moda sejam frequentes, a saia aparece em poucas teses e é inédita como objeto específico de pesquisa na Comunicação. Algumas práticas sociais contemporâneas apresentam discursos de restrição à saia. Se a publicidade expressa valores e ideologias da sociedade que a produz, haveria que efeitos de sentido destes discursos nos anúncios? Que tipo de regimes de interação articulam os papéis sociais femininos a partir do uso da saia? A hipótese inicial é que aspectos da intolerância à saia devem-se à sua figurativização do feminino – oposto ao masculino na categoria cultural “gênero”. Seu uso seria mais restrito ou prescrito quando a “feminilidade” não é considerada competência desejável, o que intervém nos efeitos de sentido da saia na publicidade. Analisamos aspectos históricos, sociais e semióticos da saia, comprovando o discurso da intolerância, e propomos uma classificação desta roupa em configurações mais “femininas” ou mais “masculinas”. Em seguida, observamos nos anúncios que as questões anteriores se apresentavam nos simulacros de papéis sociais das mulheres. Tivemos como aporte teórico e metodológico a Semiótica Discursiva, na vertente Sociossemiótica (Greimas; Landowski; Oliveira), e conceitos da Moda, História e Sociologia (Castilho, Bard, Crane, Hollander, Giddens). Como corpus de teste selecionou-se anúncios veiculados em 2011 e 2012 nas revistas Veja, Exame e Claudia. Uma pré-seleção por análise quantitativa (2679 exemplares) testou a representatividade do corpus e mostrou a presença da saia em comparação com outras roupas. Os enunciados com a presença de saia, vestido e calça integraram o corpus semiótico (353 exemplares). Neste grupo, identificamos os papéis sociais femininos, as roupas que os figurativizam e sua presença nas revistas. Excluindo exemplares pouco significantes, obtivemos 44 anúncios com mulheres de saia – 12% dos anúncios das três publicações. Na observação deste conjunto chegamos a uma tipologia da saia articulada com a aceitação ou não de simulacros femininos, ancorada nos regimes de interação de Landowski. A saia, enquanto figura de um assumir a sexualidade feminina, marca os modos de seu uso nos papéis sociais na publicidade. A saia “feminina” está nas situações de cumplicidade com o simulacro, e também na situação de oposição a ele. A saia “masculina” figurativiza a situação de tolerância ao simulacro, enquanto saias em todas as configurações aparecem na situação de conivência.
Palavras-chave: Semiótica discursiva; Publicidade; Revistas; Papéis sociais femininos; Uso da saia; Axiologia.
ABSTRACT
This work investigates the involvement of skirts in women’s social roles construction and valuation in advertising in magazines. While research about the portrayal of women in advertising and about the social aspects of fashion is frequently seen, skirts are rarely shown in dissertations – and their investigation as a particular object in communication research is unprecedented. Some contemporary social practices present discourses of restriction to skirts. If advertising expresses the values and ideologies of the society it is produced by, what kind of meaning effects from those discourses can be seen in ad pieces? What kind of interaction regimens do women’s social roles articulate from skirt wearing? The first hypothesis was that some aspects of the intolerance to skirts are due to its figurativization of the feminine – an opposite of the masculine in the “gender” cultural category. Skirt wearing could be more restricted or prescribed when “femininity” is not considered to be a desirable competence, which intervenes with meaning effects of the skirt in advertising. Historical, social and semiotic aspects of the skirt were analyzed, proving that there is an discourse of intolerance – and a rating as more “feminine” or “masculine” configurations of that piece of clothing was proposed. As it was observed, the previous issues appear in simulacra of women’s social roles in the print ads. Discursive semiotic has worked as the theoretical and methodological support, through its sociosemiotic branch (Greimas; Landowski; Oliveira), as well as Fashion, History, and Sociology concepts (Castilho, Bard, Crane, Hollander, Giddens). Print ad pieces published in 2011 and 2012 in Veja, Exame and Claudia magazines were selected as a corpus test. The quantitative analysis pre-selection (2679 issues) has tested the corpus’ representation and has shown the presence of the skirt in comparison to other pieces of clothing. Enunciates containing skirts, dresses, and pants integrate the semiotic corpus (353 issues). In that group, women’s social roles, as well as the clothes that figurativize them and their appearance in magazines were identified. With the exception of less significant issues, 44 ads containing women in skirts were found – 12% of the ads in the three magazines. Through the analysis of that set, a skirt typology, articulated with the acceptance or the non-acceptance of a feminine simulacrum, was reached, based on Landowski’s interaction regimens. The skirt, while being a figure of the assuming of a feminine sexuality, marks the modes of its use in social roles in advertising. The “feminine” skirt is in the simulacrum complicity situations, and also in the situations where there is opposition to it. The “masculine” skirt figurativizes the simulacrum tolerance situation, while skirts in all of their configurations appear in the connivance situation.
1.1 Papel social 14 1.2 Saia e calça, feminino e masculino 18 1.3 Aspectos teóricos e metodológicos 20
2 A SAIA 27
2.1 Saia: substantivo e sinônimo feminino 27 2.2 A diferenciação das roupas por gênero 30 2.3 A saia e o vestido 34 2.4 Percursos polêmicos do uso da saia 42 2.5 A saia no Brasil e alhures: discursos e práticas de intolerância e de protesto 47 2.6 A saia no trabalho 57 2.7 Os diferentes tipos de saia e a expressão plástica do feminino 59 2.8 A base dos discursos intolerantes 65
3 AS REVISTAS E OS ANÚNCIOS 71
3.1 A seleção das revistas 73 3.2 Operações de análise de conteúdo quantitativa 76 3.3 Categorização: simulacro de gênero e aspectualização do corpo vestido 81 3.4 Constituição do corpus semiótico 85
4 AS ROUPAS E OS PAPÉIS SOCIAIS FEMININOS 89
4.1 A figuratividade dos ambientes nos anúncios publicitários 90 4.2 Tipologia de representação do espaço na publicidade impressa 95 4.3 Papéis sociais femininos: resgate dos discursos do senso comum 98 4.4 A construção dos papéis sociais em Veja 101 4.5 A construção dos papéis sociais em Claudia 127 4.6 A construção dos papéis sociais em Exame 141 4.7 Papéis sociais e roupas em Veja, Claudia e Exame: algumas conclusões 148 4.8 Tipologia dos papéis sociais femininos na publicidade 152
5 A MULHER DE SAIA 158
5.1 A saia no papel “profissional” 159 5.2 A saia no papel “esposa” 162 5.3 A saia “feminina” 163 5.4 O “sujeito provocante” 165 5.5 Configurações posturais 168 5.6 Tipologia do uso da saia 173 5.7 As roupas, os papéis sociais e as revistas 178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 181
APÊNDICE A – TABELAS 186
APÊNDICE B – CADERNO DE IMAGENS 193
!9
1 COMUNICAÇÃO, SEMIÓTICA E MODA
Quem debruça-se nos problemas atuais da semiótica não pode fazer o nó da gravata, pela
manhã mediante o espelho, sem ter a sensação de estar fazendo uma escolha ideológica; ou
pelo menos de dar uma mensagem, uma carta aberta aos passantes, e àqueles que encontrará
durante o dia.
Umberto Eco 1
The Good Wife é um seriado norte-americano lançado em 2009. A personagem
principal, Alicia Florrick, é uma advogada que abandonou a carreira logo depois do
nascimento dos filhos, tornando-se a “boa esposa” do título. Ela volta a atuar
profissionalmente depois que seu marido, um ex-promotor, é preso por envolvimento em um
escândalo de corrupção e sexo com prostitutas. Os 15 anos dedicados ao cuidado com a
casa e as crianças deixaram Alicia um pouco fora de forma, mas logo ela recupera o tino
profissional e começa a destacar-se na firma de advocacia onde conseguiu emprego. Na
segunda temporada do seriado os espectadores encontram uma Alicia bastante segura de
si, conduzindo casos com discrição, elegância e muito jogo de cintura. Tais qualidades do
caráter e do estilo da personagem são construídos com o auxílio de um parecer que envolve
trajes de bom corte e cores sóbrias, especialmente terninhos e tailleurs cujas saias
ajustadas sobem apenas alguns centímetros acima do joelho, como prescrevem as normas
do bem-trajar nos ambientes de trabalho mais formais. No início do quarto episódio da
segunda temporada (“Cleaning House”, que foi ao ar no dia 19 de outubro de 2010, nos
Estados Unidos, pelo canal CBS), vemos Alicia no tribunal, usando um terninho cinza
escuro. Logo após as primeiras argumentações, o juiz chama a atenção da personagem:
“Advogada, o que você está vestindo?”. Alicia não entende a pergunta, que é
despropositada no contexto, e o juiz esclarece: “Você está vestindo calça. No meu tribunal
eu solicito que os advogados usem gravata e as advogadas usem saia”. No decorrer do
episódio, veremos que a reprovação do juiz não tem a ver com regras dele ou do tribunal e
que, na verdade, sua intenção é intimidar Alicia.
Este pequeno trecho de um produto da cultura pop contemporânea exemplifica não
apenas como a roupa pode se tornar a justificativa para que uma pessoa desqualifique ou
agrida outra, mas também para apontar uma prescrição que rege o vestir saia em vias de
mudança. Se antes o uso da peça era destinado por um dever – costume que o juiz resgata
ECO, U. apud CASTILHO, Kathia. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009, 2. ed., p. 134.1
!10
para admoestar Alicia –, hoje há indícios da emergência de uma destinação relacionada a
um não-poder usar saia ou a um poder regulado por circunstâncias bastante específicas. Foi
a observação de certas situações que apresentam estas modalizações que nos levou a
questionar: se nas práticas sociais percebem-se algumas narrativas e discursos de restrição
à saia ou de uma valoração negativa desta peça e de quem a veste, o que estaria
significando a saia em um discurso tão imbricado com estas práticas, como é o da
publicidade?
Já faz algum tempo que a publicidade é considerada objeto relevante para
investigações orientadas por questões de ordem política, social e cultural. Nota-se, também,
um processo de constituição da publicidade como um campo de conhecimento da área de
Comunicação, e não apenas um objeto de pesquisa. No programa de pós-graduação onde
esta tese foi desenvolvida, o campo da Comunicação articula-se com o da Semiótica que,
enquanto teoria e epistemologia autônoma, não deixa de se fundar em processos
comunicativos, especialmente no que tange às condições de produção e apreensão do
sentido e às interações entre os sujeitos participantes. Se formos organizar os temas
principais desta pesquisa em um triângulo, faltaria especificar a terceira ponta, aquela que
envolve os aspectos comunicacionais e sociais da roupa: a Moda.
Importante alertar que não estamos realizando uma investigação sobre a publicidade
de (marcas de) moda ou da moda (fenômeno) na publicidade. Nosso foco de interesse é a
roupa como elemento integrante de um processo de comunicação interpessoal e como
integrante de um enunciado – o anúncio publicitário – produzido em um processo de
comunicação interdiscursivo. A roupa – e, neste caso, especialmente a saia – comunica nas
interações dos sujeitos nas práticas sociais, comunica nas interações dos sujeitos dentro do
enunciado e comunica na interação entre o enunciador-anunciante e o enunciatário-
consumidor. Já aventamos a hipótese de haver uma situação polêmica relacionada ao uso
da saia nas práticas sociais, questão que desenvolveremos no capítulo 2. Os sentidos e os
valores desta situação reiteram-se nos dois outros processos – dentro do enunciado e na
enunciação? Se sim, que tipo de configuração da mulher e dos papéis sociais femininos
essas reiterações ajudam a compor?
Este enunciado é produto de uma atividade que estamos chamando de publicidade.
Apesar de, em um sentido lato, poder denominar diversos tipos de manifestações e ações
destinadas a “publicizar” – “tornar pública” – uma marca, um produto ou um serviço,
incluindo aí estratégias de comunicação associadas às relações públicas, a definição de
publicidade à qual nos referimos é aquela adotada pelo mercado profissional e por boa parte
da literatura da área. Um termo que, no uso, pode alternar com o de propaganda, sem que
se diferencie o objeto ou o método da publicização. Um exemplo é o livro Comunicação
integrada de marketing: propaganda e promoção, que usa alternadamente os dois termos
!11
para se referir à mesma atividade. Nas palavras de Jef I. Richards e Catharine M. Curran, “A
propaganda é uma forma mediada e paga de comunicação a partir de uma fonte
identificável, elaborada para persuadir o receptor a tomar alguma atitude imediatamente ou
mais adiante” . Logo em seguida, ao esmiuçar a definição acima, o autor do livro usa o 2
termo “publicidade”. A diferenciação entre publicidade e propaganda que se encontra em
alguns livros – a primeira, para fins comerciais e institucionais, a segunda para fins políticos,
religiosos e ideológicos – é pouco relevante para os atores da prática publicitária.
Uma outra forma de uso do termo publicidade que se pode encontrar neste trabalho é
como sinônimo de anúncio publicitário. Ou seja, não para se referir à atividade ou ao
discurso, mas também ao produto desta atividade e ao texto que esse discurso manifesta.
Seja com o nome de publicidade ou de propaganda, o fato é que concordamos com o
antropólogo Everardo Rocha quando diz que
[…] estudar imagens, valores e ideologias que essas mensagens [publicitárias] expressam, ocupando espaços urbanos, páginas de revistas e jornais e se misturando às produções de rádio, televisão e cinema, é buscar conhecer valores, conceitos, modelos de ser, agir e se relacionar na sociedade contemporânea. 3
Dentre os estudos que procuram mostrar essa relação entre publicidade e sociedade,
ou que buscam entender a sociedade a partir da análise de uma de suas mais sofisticadas
produções, que é o anúncio publicitário, não são poucos os que se preocupam com a
representação da mulher ou com o espaço a ela destinado nas práticas e relações sociais.
Um dos mais emblemáticos é o trabalho do antropólogo Ervin Goffman, Gender
advertisements , cuja classificação dos estilos de fotografia auxilia na caracterização dos 4
papéis sociais no capítulo 4. Na vertente semiótica que nos dá suporte, destacam-se dois
trabalhos de Eric Landowski sobre os modos de presença das figuras femininas na
publicidade, como o ensaio “Masculino, Feminino, Social” e o artigo “O triângulo emocional 5
do discurso publicitário” . 6
Em “Masculino, Feminino, Social”, Landowski aponta que a leitura crítica das imagens
de mulheres na publicidade já foi (e ainda é, acrescentamos) feita exaustivamente, tanto em
RICHARDS, J. I.; CURRAN, C. M. apud SHIMP, T. Comunicação integrada de marketing: propaganda e 2
promoção (trad. Teresa Felix de Souza). Porto Alegre: Bookman, 2009, 7. ed, p. 262.
ROCHA, E., em prefácio a GASTALDO, E. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto 3
Alegre: Sulina, 2013, p. 10.
GOFFMAN, E. Gender advertisements. Nova York: Harper Torchbooks, 1987 (edição original 1976).4
LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002.5
LANDOWSKI, E. O triângulo emocional do discurso publicitário (trad. Adriana de Albuquerque Gomes). Revista 6
Comunicação Midiática, Bauru, n. 6, ano 3, dezembro 2006.
!12
abordagens “rigorosamente científicas quanto edificantes em termos morais” . 7
Consequentemente, talvez não houvesse mais nada de muito novo a se dizer sobre a
concepção de feminilidade presentificada pelos anúncios. Justamente por isso, neste ensaio
o semioticista formula um problema mais original e bastante pertinente, complementar ao da
representação, que é o consumo de imagens “sexistas”.
De nossa parte, assumimos que o presente estudo procura somar aos outros quanto à
preocupação com os simulacros de mulher que a publicidade apresenta e que, por
extensão, são modelos da nossa sociedade contemporânea. E ainda que esta pesquisa não
tenha como aporte a teoria feminista, o tratamento semiótico da relação entre masculino e
feminino na publicidade contribui para um incremento dos estudos feministas na
Comunicação que, segundo María José Sánchez Leyva e Alicia Reigada Olaizola, é a
disciplina que tem apresentado menor desenvolvimento deste tema (já normalmente
marginal) se comparada à frutífera produção encontrada nas áreas da Antropologia, da
Sociologia, da História e da Ciência Política . 8
Por outro lado, com tantos outros trabalhos da mesma seara, a recorrência do assunto
só se justifica, no nosso entender, porque buscamos explorar a participação da saia neste
processo. Aparentemente, as severas prescrições sobre o uso das roupas não existem mais
na sociedade Ocidental. Após a mulher ter conquistado o direito ao uso da calça, a opção
por esta peça ou pela saia teria se tornado uma questão de gosto ou de conforto térmico.
Aparentemente, pois a escolha da vestimenta é pautada por questões nada prosaicas. Uma
análise das mulheres e das roupas que vestem nos anúncios publicitários de diversos
segmentos, veiculados em revistas de diferentes temas, poderá nos dizer sobre os “valores
e ideologias” que o vestuário, e especialmente a saia, está auxiliando a figurar, e também
sobre os papéis sociais assumidos pelas mulheres, dependendo da roupa que usam.
Como mostra Kathia Castilho, mais do que qualquer outra linguagem, a roupa contribui
para a determinação do papel social, assegura o reconhecimento deste papel e orienta o
comportamento dos sujeitos-receptores . Abordamos essa situação em dois tipos de 9
interação: nas práticas sociais, observamos como o uso da saia destina o comportamento
do sujeito que a veste e do outro com quem interage, especialmente em relações polêmicas
(capítulo 2); nos anúncios publicitários, apreendemos como o uso desta peça
(considerando-a uma figurativização do feminino ou do não-feminino) orienta o
comportamento dos sujeitos no enunciado e como determina e assegura o reconhecimento
LANDOWSKI, 2002, p. 126.7
LEYVA, M. J. S.; OLAIZOLA, A. R. Revisitar la comunicación desde la crítica feminista. Notas introductorias. In: 8
LEYVA, M. J. S.; OLAIZOLA, A. R. (Coords.) Crítica feminista y comunicación. Sevilla/Zamora: Comunicación Social Ediciones y Publicaciones, 2007, p. 7.
CASTILHO, 2009, p. 134.9
!13
do papel social da mulher na comunicação destinada pelo anunciante para o consumidor
(capítulos 3 e 4). O objetivo é verificar se reitera-se nos anúncios publicitários a significação
da saia observada nas práticas sociais.
Dentre as diversas opções de meios para análise das mensagens publicitárias,
optamos pela revista. Em oposição aos anúncios oriundos de um meio eletrônico, como a
televisão, os de revistas são mais acessíveis em termos de manuseio, permitindo o
tratamento de maior número de exemplares, o que contribui para a representatividade da
amostra. Ainda que a opinião não seja isenta pois vem da parte interessada, a Editora Abril
ressalta um aspecto importante da relação entre os leitores e a revista:
Mais que na TV (na qual, de quebra, são altos os custos de veiculação), anúncios em revista prendem a atenção: “pegam” o leitor num momento de serenidade e dedicação à leitura. Podem, assim, ter uma carga maior de informação (e de resposta de consumo). Afinal, anúncios eloquentes, repletos de novidades ou tendências, também são informativos. 10
Para garantir esta “eloquência” silenciosa, o enunciador publicitário precisa arranjar de
maneira bastante sofisticada os elementos figurativos e plásticos que vão constituir a
mensagem sobre a marca ou o produto. É a partir desta riqueza que pensamos poder
apreender a forma de construção dos sentidos que nos darão as respostas que buscamos
encontrar. Não por acaso, duas das maiores referências investigativas da linha semiótica a
qual nos filiamos, Eric Landowski e Jean-Marie Floch , elegeram os anúncios de revista 11
como objeto de grande parte de suas pesquisas. Os modelos e formulações advindos
destes trabalhos são continuamente operados por pesquisadores em objetos de outras
materialidades, consolidando a validade do suporte revista para as pesquisas semióticas.
Para a constituição do corpus, selecionamos títulos de revistas com alguma
diversidade de tema e de público leitor e, ao mesmo tempo, com uma circulação que
proporcionasse abrangência numérica e geográfica deste público. Assim, escolhemos a
informativa semanal Veja, a de finanças e quinzenal Exame e a mensal e “feminina” Claudia.
Os anúncios selecionados pertencem às edições veiculadas entre agosto de 2011 e julho de
2012, formando o período de um ano. A opção pela linha temporal de 12 meses contínuos
deve-se à relação com as estações do ano, que por sua vez destinam as coleções de moda.
Por mais que o “negócio da moda” não seja o foco deste trabalho, não se pode
desconsiderar o efeito que seus lançamentos produzem nas escolhas paradigmáticas que
faz o enunciador. Quanto aos anos, especificamente, optamos por coletar os exemplares no
início do doutorado pela necessidade de um arco considerável de tempo para seleção,
tratamento e análise dos anúncios, processo que descrevemos no capítulo 3.
A revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000, p. 210.10
Como, por exemplo, alguns artigos apresentados em FLOCH, J-M. Sémiotique, marketing et 11
communication: sous les signes, les stratégies. Paris: PUF, 1990.
!14
Mais de uma vez nos apoiamos nos aspectos eminentemente metodológicos das
pesquisas realizadas por Landowski, e neste processo de seleção não foi diferente. Ao
explicar a metodologia de análise em “Masculino, Feminino, Social”, diz assim o
semioticista:
quando se empreende a análise de um material como o que acabou por acumular-se diante de nós por ocasião deste trabalho, composto de várias centenas de itens diferentes […], a primeira necessidade, somente para poder encontrar na massa um dado caso já entrevisto, mas que se precisaria examinar mais de perto é evidentemente classificar de alguma maneira esses itens. De um ponto de vista estritamente prático, todos os procedimentos de indexação podem no começo parecer bons. 12
Para chegar ao corpus de semiotização, operamos diversas fases de procedimentos
classificatórios, algumas delas orientadas por métodos da análise de conteúdo, com
objetivos “estritamente práticos” para seleção e indexação dos anúncios. Desta classificação
emergiram alguns resultados quantitativos, dentre os quais o mais importante permitiu a
verificação da representatividade do corpus para a análise semiótica, de acordo com um
parâmetro dado, também, por outro trabalho de Landowski. Tal parâmetro era de 200 a 300
anúncios; o corpus final teve 353 anúncios.
Neste corpus investigamos os papéis sociais femininos presentificados nos anúncios
(capítulo 4), com uma grade de leitura que privilegia o plano do conteúdo. Veremos que os
papéis sociais são caracterizados, entre outros aspectos, pelo ambiente onde o sujeito atua.
Para dar conta desta relação, a classificação dos papéis é antecedida por uma
categorização dos tipos de representação do espaço no anúncio publicitário a partir dos
diferentes graus de densidade figuratividade na tradução interssemiótica do ambiente do
mundo natural para a linguagem do anúncio.
Já o capítulo 5 debruça-se especificamente sobre os anúncios que apresentam
mulheres vestindo saia. Observamos, nestes enunciados, os tipos de saia utilizados, a
conformação entre a roupa e o corpo e os efeitos de sentido que produzem na interação
entre o feminino e o masculino. Deste estudo, extraímos uma tipologia de interações
baseada em uma axiologia da cumplicidade ou da oposição aos simulacros femininos.
1.1 Papel social
Nas ciências humanas, especialmente na psicologia social e na sociologia, o termo
“papel” designa um fenômeno inerente a qualquer sociedade; segundo o Dicionário de
Ciências Humanas, “num contexto determinado, cada um dos membros dessa sociedade
LANDOWSKI, 2002, p. 156.12
!15
tende a exibir uma série de condutas que caracteriza um personagem, como no teatro” . 13
Seja psicológico ou social, o papel sempre “é representado para um público, composto por
uma ou mais pessoas; é um comportamento social” . O papel social é definido em função 14
das expectativas das pessoas com as quais convivemos, corresponde a um modelo de
conduta estereotipado; em sentido metafórico neste dicionário, mas literal no contexto da
nossa pesquisa, assumir um papel social implica “vestir uma indumentária social, como o
ator que representa um papel em cena” [grifo nosso]. Ao mesmo tempo em que os papéis 15
normalizam e estabilizam as relações entre as pessoas, também podem bloquear a
espontaneidade e liberdade de ação. Novamente notamos que estes verbos, usados no
dicionário em sentido figurado, são tomados literalmente quando descrevem situações de
real bloqueio e espontaneidade do corpo feminino vestido para certos papéis sociais.
O Dicionário explica ainda que a noção de papel teria sido abandonada após os anos
1960, sendo substituída pela de “identidade”, que designa, entre outros fenômenos, uma
posição social relacionada ao sexo ou ao gênero e à qual correspondem “papéis e códigos
sociais mais ou menos claros ”. Diana Crane, que trata da influência da moda na sociedade 16
a partir da sociologia, trabalha com estes conceitos. Para a autora, a moda – uma forma de
cultura que “inclui normas rigorosas sobre a aparência que se considera apropriada num
determinado período” – é que possui um papel na construção social da identidade: 17
As roupas da moda são usadas para fazer uma declaração sobre classe e identidades sociais, mas suas mensagens principais referem-se às maneiras pelas quais mulheres e homens consideram seus papéis de gênero, ou a como se espera que eles os percebam. 18
Em outro momento, no entanto, é o termo mais próximo ao nosso uso de que a autora
se serve: a pauta da moda entre os anos 1920 e 1960 teria se revelado mais progressista
para as mulheres, “[…] ao reformular sua aparência em consonância com as mudanças
ocorridas em seus papéis sociais e no restante da sociedade” [grifo nosso]. 19
Já no campo da semiótica, especificamente na proposta de uma semiótica topológica,
Greimas usa o termo para designar o elemento do nível discursivo que recobre os actantes
coletivos na gramática do espaço urbano:
DORTIER, J-F. (Dir.). Dicionário de Ciências Humanas (rev. e coord. da trad. Márcia V. M. de Aguiar). São 13
Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 473, entrada “Papel”.
DORTIER, 2010, p. 473.14
DORTIER, 2010, p. 473.15
DORTIER, 2010, p. 283, entrada “Identidade”.16
CRANE, D. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas (trad. Cristiana Coimbra). São 17
Paulo: Senac São Paulo, 2006, 2. ed. p. 21.
CRANE, 2006, p. 47.18
CRANE, 2006, p. 53.19
!16
É bem verdade que, examinando o fazer dos sujeitos citadinos, pudemos reconhecer ao lado dos papéis individuais, papéis sociais através dos quais os indivíduos participam da realização das tarefas coletivas. Então, pode-se dizer que estes papéis sociais são "vividos" de uma maneira ou de outra, que estas atividades sociais são significantes para o indivíduo. [grifo 20
nosso]
Ao comparar a visão de Greimas sobre papéis sociais e os papéis sociais femininos
que encontramos nos anúncios, denominados a partir de categorias adotadas pelo senso
comum (cf. capítulo 4), nota-se que raramente a mulher assume um papel determinado por
sua participação em tarefas sociais coletivas. Veremos que os papéis mais frequentes –
“mãe” e “esposa” – são derivados de uma relação com um outro individual (em oposição ao
coletivo), em relacionamentos de caráter privado. Parece que os papéis femininos que
identificamos aproximam-se mais do conceito de identidade social do que de papel social.
No entanto, estes são os papéis sociais atribuídos às mulheres – ao menos na publicidade
–, e por isso é esta a terminologia que utilizaremos nas análises.
Apesar desta justificativa ser baseada em um caso específico, não nos distanciamos
do uso que é feito por outros trabalhos semióticos. Landowski, por exemplo, explica a
figuração de determinadas partes do corpo feminino nos anúncios como traduções “[…] de
uma visão determinada dos papéis sociais convencionalmente atribuídos ao ‘segundo
sexo’” . Castilho observa que “[…] a moda, em seu aspecto lúdico, possibilita ao sujeito a 21
protagonização de diferentes papéis sociais, como se ele fosse um ator capacitado a
representar diversos papéis, conforme a cenografia e do direcionamento das cenas das
quais participa” . Para Oliveira, o papel social é uma das motivações que determina a 22
relação entre corpo e roupa; neste caso, uma relação de subordinação que caracteriza um
vestir-se com fins simbólicos . 23
Portanto, quando falamos da construção de papéis sociais femininos na publicidade
por meio da roupa, estamos nos referindo às escolhas feitas pelo sujeito da enunciação
quanto ao vestuário que as mulheres devem usar nos anúncios para auxiliar a figurar um
determinado papel, que por sua vez precisa estar claro para o público-alvo. Tomados em
conjunto, estes anúncios não apenas reproduzem “uma visão determinada” dos papéis
atribuídos às mulheres como contribuem para a manutenção desta visão, que é no mínimo
limitante. Tal representação é um efeito colateral do papel da publicidade e de seu modo de
funcionamento enquanto actante dos percursos narrativos do consumo. Se a identificação
GREIMAS, A. J. Semiótica e Ciências Sociais (trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini). São Paulo: Cultrix, 20
1981, p. 130.
LANDOWSKI, 2002, p. 125.21
CASTILHO, 2009, p. 133.22
OLIVEIRA, A. C. de. Nas interações corpo e moda, os discursos da aparência. Caderno de Discussão do 23
Centro de Pesquisas Sociossemióticas, São Paulo, v. 1, n. 14, nov. 2008, 1-43, p. 41.
!17
entre o sujeito do enunciado e o público-alvo é uma das competências necessárias para a
aceitação do contrato manipulatório e a realização da performance de aprovação da marca
e consumo do produto ou serviço, a publicidade deve trabalhar com representações deste
público e do seu estilo de vida, com base no que considera serem os simulacros mais
comuns da “massa” com a qual pretende conversar. A reiteração de tais simulacros, que
Édison Gastaldo chama de “situações ideais”, implica em problemas de representação
social, especialmente para os grupos chamados minoritários. Assim, segundo o antropólogo,
por um efeito de conjunto, o discurso publicitário vai, no somatório dessas idealizações, sustentando uma representação da sociedade que reproduz as categorias hegemônicas no campo social, desempenhando, nesse sentido, um papel eminentemente conservador [e que] opera como uma espécie de “ideólogo”, apresentando sob uma retórica persuasiva a lógica dos interesses privados dos produtores das mercadorias anunciadas, isto é, uma retórica que pressupõe a manutenção das peculiares relações de poder que sustentam este modo [capitalista] de organização do trabalho na sociedade. 24
Ainda que estas questões sejam abordadas com frequência em trabalhos científicos,
oferecendo subsídios para um outro tipo de representação nos anúncios, a publicidade não
parece muito disposta a mudar suas configurações discursivas. A diferença entre a “mulher
real” e aquela representada nas propagandas é comumente justificada como uma estratégia
para atender o desejo “aspiracional” dos consumidores. No entanto, uma pesquisa de 2013
sobre representação da mulher nos comerciais de televisão aponta grande desaprovação
desta estratégia por parte do público, incluindo aí o masculino. No site do Instituto Patrícia
Galvão (que realizou a pesquisa em associação ao Data Popular), a apresentação dos
resultados aponta os prejuízos que a discrepância na representação pode gerar inclusive
para os anunciantes:
Segundo avaliação da diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, a pesquisa revela que a percepção dos entrevistados, mulheres e homens, é clara: a propaganda veicula modelos ultrapassados. “A irrealidade da representação da mulher é percebida pela absoluta maioria e há uma clara expectativa de mudança. Aqui se revela um paradoxo: se pensarmos a partir da lógica de mercado, pode-se dizer que anunciantes e publicitários, em razão de uma visão arcaica do lugar da mulher na sociedade e de um padrão antigo de beleza, não estão falando com potenciais consumidoras”, aponta. 25
Não sendo novidade que publicidade apresenta simulacros femininos que não
correspondem nem à aparência da mulher brasileira e nem às diversas identidades e papéis
sociais que exercem, talvez seja novo tentar entender como as roupas contribuem para a
construção desses simulacros e, se assim como aparência física, seu uso também está
GASTALDO, 2013, p. 74.24
Pesquisa Representações das mulheres nas propagandas na TV. Agência Patrícia Galvão, 23 set. 2013. 25
distante do que realmente acontece nas práticas cotidianas. Relembrando a afirmação de
Kathia Castilho, a moda é a competência que possibilita ao sujeito protagonizar papéis
sociais diferentes. Assim, chegaremos à identificação destes papéis nos anúncios a partir
dos papéis temáticos femininos, dos quais as roupas em articulação com o corpo são
importantes figuras constituintes. Considerando ainda que estes papéis obedecem, primeiro,
às regras dos papéis sexuais de mulher e homem, não se pode deixar de entender estas
questões fora de uma axiologia do masculino x feminino, temas que, por sua vez, são
figurativizados na vestimenta pela calça e pela saia.
1.2 Saia e calça, feminino e masculino
Apresentamos antes uma fala de Crane sobre a importância das roupas como
mensagem de declaração do gênero de pertencimento, considerando tanto as crenças
individuais quanto as expectativas coletivas. Castilho vai além e aponta que esta
manifestação se dá pela articulação entre duas plásticas, a da roupa e a do corpo. A roupa
vai enfatizar regiões de maneira a fazer-ver as partes do corpo que são foco da atenção
sexual, atendendo a uma das mais rígidas prescrições sociais, que é a classificação dos
sujeitos em homem e mulher. Assim,
[…] o caráter erótico, ligado ao chamamento do olhar sobre o atrativo sexual do corpo, estabelece uma distinção primordial da espécie humana, homem/mulher, que pode ser entendida como manifestação do instinto biológico. Masculino e feminino, como uma distinção fundamental estabelecida pela cultura, calcada na oposição biológica, revela uma hierarquia, uma distinção de papéis sociais, uma destinação, funções culturais, mitos, uma exaltação de funções rituais e, também, uma valorização estética. 26
Castilho situa o masculino e o feminino como duas categorias do termo complexo
“sexualidade” , que estabelecem entre si uma relação de contrariedade recíproca e que são 27
configurados por diferenças morfológicas aparentes acentuadas pela plástica da roupa.
Desenvolvendo um pouco mais este conceito, entendemos que as categorias da
sexualidade – que se refere a aspectos biológicos –, seriam “macho” e “fêmea”, e que
“masculino” e “feminino”, ou “homem” e “mulher”, na medida em que estes conceitos são
construídos culturalmente, pertenceriam ao termo complexo “gênero”. Enquanto os
subcontrários do paradigma da sexualidade poderiam originar conformações biológicas
diferentes da combinação de órgãos ou traços morfológicos que se costuma encontrar em
“machos” e “fêmeas” – com sobredeterminações como “anjo” ou “hermafrodita” –, no
paradigma do gênero estes subcontrários podem apontar justamente aquelas configurações
CASTILHO, 2009, p. 98.26
CASTILHO, 2009, p. 68.27
!19
corporais que tanto perturbam a ordem social calcada na oposição de gênero, porque
misturam elementos de uma e de outra categoria e dificultam a identificação e todas as
consequências e prescrições que dela advém. É por isso que as primeiras mulheres a usar
calça foram tão estigmatizadas.
Por mais paradoxal que seja, é pelo mesmo motivo que hoje não se usa saia com
tanta tranquilidade. A saia como figura de conteúdo do feminino ou, em alguns casos, a saia
em conformações plásticas que afirmam o feminino, é desencorajada nas situações ou
espaços onde são eufóricos os valores da masculinidade, como o espaço público da rua nos
grandes centros urbanos ou o mundo do trabalho. Aceita-se que a mulher participe de um e
de outro, desde que prevaleçam as marcas da masculinidade, ou as de um certo tipo de
feminilidade.
Observam-se algumas situações que nos levam a entender a saia como uma roupa
que não se escolhe vestir ingenuamente. Boa parte destas ocorrências foi percebida pela
historiadora francesa Christine Bard e reunidas no livro Ce que soulève la jupe . Bard conta 28
que esse livro teria “se imposto” a ela enquanto escrevia sua Histoire politique du pantalon , 29
como se a saia representasse uma oposição natural à calça, da mesma forma que a mulher
em oposição ao homem, o feminino ao masculino.
No livro, Bard desnaturaliza e problematiza o uso da saia, mostrando seu antigo papel
como figura de submissão à ordem masculina mas, também, como símbolo de resistência
aos ditames dessa mesma ordem. Se a saia ficou mais frequente em algumas
manifestações ligadas aos direitos femininos, ela estaria sendo evitada pelas mulheres no
dia-a-dia devido ao potencial risco de assédio ou de serem vistas como “disponíveis”.
Diferentemente da calça, a saia possui um aspecto de vulnerabilidade: as pernas ficam
menos protegidas; dependendo do tecido de que é feita ou da modelagem, pode levantar
com o vento; representa um limite corporal muito tênue em um ônibus ou metrô lotados;
deixa o corpo da mulher mais exposto, já que “a abertura da vestimenta feminina evoca a
facilidade de acesso ao sexo feminino, sua disponibilidade, sua penetrabilidade” . 30
Existem formas de assédio que acontecem justamente por essa vulnerabilidade do
corpo vestido com saia. Em 2011, a imprensa curitibana noticiou que um “tarado” estaria
filmando mulheres de saia e postando os vídeos na internet. Provavelmente havia uma
microcâmera instalada no pé do voyeur, ou mesmo em uma cesta de supermercado,
permitindo tomadas de baixo para cima. O fato de haver um nome para esta prática –
upskirting – é uma marca da sua recorrência. Um dos comentários sobre o assunto, postado
BARD, C. Ce que soulève la jupe. Paris: Éditions Autrement, 2010a.28
BARD, C. Une histoire politique du pantalon. Paris: Éditions du Seuil, 2010b.29
BARD, 2010a, p. 18. Tradução nossa para: “l’ouverture du vêtement féminin évoque la facilité de l’accès au 30
sexe féminin, sa disponibilité, sa pénétrabilité”.
!20
em um fórum online, vê a atitude como um “castigo” merecido, relacionado ao jeito de se
vestir: “[…] já faz tempo que as mulheres perderam a vergonha na cara e o respeito, elas
acham que podem andar pelas ruas praticamente nuas e que é normal brincarem com o
apetite sexual do homens” . 31
A maior parte das situações apresentadas por Bard refere-se à França, mas não
exclusivamente: a autora cita o caso Geisy Arruda, ocorrido no ano de 2009 em São
Bernardo do Campo; a estudante foi ameaçada por colegas por ter ido à faculdade com um
vestido muito curto. Não esquecendo que a roupa é enunciado que manifesta um discurso,
devemos entender, conforme aponta Castilho, que as escolhas do trajar do sujeito podem
tanto colocá-lo de acordo com o grupo quanto estabelecer um contrato polêmico entre si e
aqueles que não consideram adequada a prática vestimentar adotada , como ilustram os 32
casos de intolerância ao uso da saia que abordamos no capítulo 2.
As reações advindas da percepção da alteridade são tanto a da silenciosa rejeição
quanto a da objetificação, agressão e violência. Tal fenômeno pode ser mais um exemplo do
que tem sido visto como uma crise geral da identidade social provocada pela
desestabilização dos quadros de socialização, como a família, o trabalho, a religião e a
política. Crise essa que atinge os papéis sexuais e que também é abordada por Anthony 33
Giddens em A transformação da intimidade . Para o sociólogo, a violência de gênero 34
estaria relacionada a uma recusa da até então garantida “cumplicidade feminina”, conceito
que nos ajuda a entender a saia na constituição de regimes de interação entre o masculino
e o feminino.
Tanto para o estudo destas relações polêmicas do uso da saia nas práticas sociais
quanto para a investigação de seu processo de significação na identificação e construção
dos papéis sociais femininos na publicidade, é nos pressupostos da semiótica discursiva e
nos desenvolvimentos da sociossemiótica que nos apoiamos.
1.3 Aspectos teóricos e metodológicos
Os principais aportes científicos e metodológicos desta pesquisa estão na semiótica
postulada por Algirdas Julien Greimas e na sociossemiótica de Eric Landowski e Ana
Claudia de Oliveira – nossa filiação teórica no doutorado. Como vimos, o objeto do trabalho
Ver depoimento citado pelo usuário DeDz, postado às 13h15 do dia 28/4/2011, no tópico “Cara tira foto das 31
mulheres de saia em Curitiba” do site de fóruns HardMob. Disponível em <http://www.hardmob.com.br/threads/443717-Cara-tira-foto-das-mulheres-de-saia-em-Curitiba>. Acesso em 16 mai. 2011.
CASTILHO, 2009, p. 47-48.32
DORTIER, 2010, p. 283, entrada “Identidade”.33
GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (trad. 34
Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
!21
situa-se na articulação da moda e da publicidade. E é justamente na moda que se
inscrevem os primeiros estudos de Greimas, onde já se percebem as bases da semiótica
que desenvolveria nos anos seguintes. Em 1948, o semioticista lituano defenderia, na
Sorbonne, sua tese de doutorado intitulada La mode en 1830. Essai de description du
vocabulaire vestimentaire d’après les journaux de modes de l’époque. Trata-se de um
compêndio de mais de três mil vocábulos do discurso da moda, analisados de acordo com
sua origem, uso e sentido. Como explica Thomas F. Broden, em introdução ao volume onde
a tese foi publicada,
[…] este texto acusa um interesse particular [de Greimas] pelo valor de indicador social das vestimentas e das expressões, buscando frequentemente precisar as conotações culturais relacionadas aos diferentes cores e cortes, denominações e epítetos. 35
Greimas analisou, entre outros documentos, revistas femininas da época. Oliveira 36
destaca que esse é um trabalho pré-semiótico, porque a unidade mínima de análise são os
vocábulos, e não o texto como um todo, conforme um dos princípios básicos da disciplina.
Roland Barthes, inspirado por Greimas, desenvolverá, alguns anos mais tarde, seu Sistema
da moda . Basicamente, para Greimas os efeitos de sentido são dados pela articulação dos 37
termos durante o uso (processo), ou seja, em sua manifestação, e não pela combinação a
partir de um número limitado de regras (sistema), como vai postular Barthes. Uma diferença
que vai se materializar em duas propostas teóricas distintas, como pontua Oliveira:
Oriundas de um mesmo arcabouço teórico, essas perspectivas opostas edificaram as novas bases de disciplinas que se desenvolveram ao longo da segunda metade do século XX. Enquanto Greimas edificou a semiótica como teoria da significação, Barthes, a semiologia, como ciência dos signos. Em ambas concretiza-se a disciplina maior projetada por Saussure, da qual a lingüística seria só uma parte. 38
Broden mostra ainda que, diferente de outras teorias sobre a moda como um sistema
autônomo, onde as mudanças se dão internamente (incluindo a de Barthes), percebe-se que
La mode en 1830 considera que as toilettes e os discursos verbais que as “vendem” nas
revistas comunicam-se de maneira íntima com a história e a cultura , visão consolidada nos 39
estudos atuais sobre moda (ainda que Greimas não incluísse o gênero entre os diversos
aspectos sociológicos abordados na sua obra).
BRODEN, T. F. em introdução para GREIMAS, A. J. La mode en 1830. Essai de description du vocabulaire 35
vestimentaire d’après les journaux de modes de l’époque. Paris: PUF, 2000, p. XXVIII. Tradução nossa para: “(...) ce texte accuse un intérêt particulier pour la valeur d’indice social des habillements et des expressions, cherchant souvent à préciser les connotations culturelles qui s’attachent aux différentes coupes et couleurs, dénominations et épithètes.”
OLIVEIRA, 2008, p. 1-2.36
BARTHES, R. Sistema da moda. São Paulo: Martins Fontes, 2009.37
OLIVEIRA, 2008, p. 2.38
BRODEN em prefácio a GREIMAS, 2000, p. XIX-XX.39
!22
Este primeiro trabalho de Greimas é abordado por Oliveira em seu artigo sobre os
discursos da aparência que se manifestam pela interação entre corpo e roupa, a partir do
qual erige uma proposta de semiótica da moda. Uma das grandes contribuições desta
proposta é a metodologia para a análise do texto constituído pelo corpo vestido, dentro dos
pressupostos mais gerais da disciplina. No que se refere às instâncias do enunciado e da
enunciação, a semioticista diz:
enunciado é o que a roupa no corpo produz no sujeito ou no objeto, tanto um enunciado de estado quanto um enunciado de transformação, que participa da sua definição cognitiva, pragmática, patêmica. A enunciação é o como a roupa no corpo faz a visualidade gestual, postural, cinética daquele que, de uma dada maneira a portando significa para um outro. 40
Na instância do enunciado, a roupa no corpo produz o que o sujeito é ou realiza a
transformação para um outro estado. Oliveira vai explicar que essa transformação não se dá
somente pelo regime de junção, com base em um processo manipulatório, mas também
pelo ajustamento do regime de união, quando a roupa torna-se sujeito em interação com o
sujeito que veste. No caso do nosso corpus, teremos um enunciado onde a roupa não
somente faz ser o sujeito, mas faz o sujeito fazer algo no contexto do anúncio publicitário –
manipulatório por excelência.
Na instância da enunciação, pelo processo de actorialização, espacialização e
temporalização, percebemos as marcas deixadas pelo enunciador em relação com o
enunciatário, que constroem um modo de presença. Tais marcas se inscrevem em um
discurso mais amplo, cultural e social. É nesse momento que podemos verificar a
correspondência ou não com os modos de presença da saia nas práticas semiotizadas
antes. A visualidade, a postura, a gestualidade e a cinética do corpo vestido, bem como os
formantes plásticos dessas roupas, nos mostram os temas e valores que o enunciador
partilha com o enunciatário. No caso dos anúncios, devemos considerar que essa posição é
composta não pelo sujeito que escolhe a roupa que vai vestir, mas pelo anunciante, a
agência, os produtores da fotografia, os profissionais de criação envolvidos na elaboração
da publicidade.
De cada uma dessas impressões transmitidas pelas roupas pode-se depreender uma
ação, uma transformação no estado do sujeito, com o poder de gerar sentido e de mostrar
um modo de presença da mulher – e também de sua relação com o homem, seu outro.
Oliveira ilustra esse processo com a semiotização da obra da artista Sanghee Song
apresentada na 27ª Bienal de São Paulo . Segundo descrição da semioticista, 41
OLIVEIRA, 2008, p. 5.40
As instalações da artista nesta edição da bienal podem ser vistas no guia da exposição publicado no portal 41
UOL, disponível em <http://entretenimento.uol.com.br/27bienal/artistas/sanghee_song.jhtm>, acesso em 20 nov. 2014.
!23
A obra da artista coreana Sanghee Song era uma instalação composta de painéis fotográficos, vídeos, objetos e esculturas-máquinas, na qual o visitante circulava no interior de sua disposição quadrilátera. A montagem fazia com que, com o seu próprio corpo, o visitante fosse conduzido a defrontar a seqüência de coerções do corpo feminino na sociedade coreana contemporânea. A postura, a gestualidade e as mínimas expressões faciais destacam a expressividade dominada por um aprendizado que é executado e comandado por um destinador cultural que executa o programa do fazer ser e estar o sujeito no mundo social. Como que preso entre essas grandes fotografias, desse interior, ele deparava-se com objetos para se sentar. São instrumentos para fazer o corpo e sua expressão aprender a se conter em um molde. Destacadas dos painéis, reforçando o seu papel de molde, as máquinas de modelagem corpórea estavam aí diante dele: vazias, desocupadas, mas fazendo imaginar o seu agir torturante, operador da programação do ser e estar feminino segundo atitudes e comportamentos de uma axiologia patriarcal arcaica em plena abertura global do país. […] Como outrora, a autoridade patriarcal exerce ainda um comando físico e unilateral que molda uma mulher atemporal. 42
As coerções do corpo experimentadas pela mulher sul-coreana – que, na instalação,
usa saia – não são uma consequência exclusiva do conservadorismo que se costuma
atribuir às sociedades orientais. Christine Bard também ilustra com uma obra artística
europeia a coerção postural feminina implicada pelo uso da saia (figura 1).
Figura 1 – reprodução do livro Let’s Take Back Our Space: ‘Female’ and ‘Male’ Body Language as a Result of Patriarchal Structures (1979), de Marianne Wex.
A primeira linha de fotografias mostra homens sentados à vontade, de perna aberta. Na linha de baixo, fotos de mulheres em postura tensa, de pernas fechadas e ocupando pouco espaço. Fonte: disponível em: <http://
www.flickr.com/photos/o42/2677358657/>. A cesso: 6 jun. 2011.
No começo da década de 1970, a alemã Marianne Wex fotografou homens e mulheres
nas ruas de Hamburgo, eles de calça, elas principalmente de saia ou vestido. Há uma
OLIVEIRA, 2008, p. 10-12.42
!24
diferença marcante em suas posturas, devido ao tipo de roupa e à constrição corporal
provocadas por essas roupas. Enquanto as mulheres ocupam um mínimo de espaço, com
os joelhos fechados e as pernas cruzadas, os homens abrem as pernas “[…]
proporcionalmente ao seu grau de adesão à norma viril e tomam o máximo de espaço” . 43
Ainda que os exemplos pareçam distantes de nós, seja pela geografia ou pelo tempo,
a discrepância na ocupação do espaço público por homens e mulheres está longe de ser
uma questão ultrapassada. Alguns exemplos podem ser vistos em dois tumblrs que se 44
dedicam a documentar homens ocupando muito espaço no transporte público,
especialmente em trens e metrôs: o Men taking up too much space on the train – que tem 45
por slogan a frase “um clássico entre as asserções públicas de privilégio” –, e o Move the
fuck over, bro . 46
Figura 2 – fotografia mostrando formas diferentes de ocupação de espaço público (transporte público) com o corpo por homens e mulheres.
Fonte: imagem publicada no tumblr Move the fuck over, bro. Disponível em: <http://movethefuckoverbro.tumblr.com/post/85641318921/watch-out-gigantic-balls-on-the-loose>.
Acesso em: 20 nov. 2014.
BARD, 2010b, p. 14. Tradução nossa para: “[…] proportionnellement à leur degré d’adhésion à la norme virile 43
et prennent le maximum d’espace”.
Espécie de blog que, pela facilidade de postagem, é mais utilizado para publicação de fotos e vídeos, 44
acompanhados ou não por textos curtos. Os usuários podem seguir uns aos outros, “favoritando” e “curtindo” postagens e integrando as postagens de um outro tumblr ao seu. É uma plataforma bastante colaborativa.
Em tradução nossa, “Homens ocupando muito espaço no trem”. Disponível em: <http://45
PRADO, L. Diversidade. Clube de Criação de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2014. Disponível em: <http://48
w w w . c c s p . c o m . b r / s i t e / u l t i m a s / 6 8 1 7 2 / D i v e r s i d a d e ?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=1030>. Acesso em: 20 nov. 2014.
!26
profissionais da publicidade, esperamos que este trabalho seja competente também para
refletir sobre o papel e a responsabilidade desta disciplina. Trazendo as palavras de
Valdenise Leziér Martyniuk, semioticista que investiga a comunicação em marketing,
apreender esses sentidos [das práticas sociais] permite ser capaz de situar-se no mundo, ocupando um lugar, seja de observação, de manutenção ou de intervenção para mudanças, ou ainda dar a outros indivíduos a luz para criar continuidades ou descontinuidades na vida social. 49
Se esta pesquisa for competente para operar algum tipo de intervenção ou inspirar
descontinuidades nas representações publicitárias do feminino e de suas interações com o
masculino, terá contribuído para uma das vocações da Comunicação, que é a Social.
MARTYNIUK, V. L. Práticas de comunicação em marketing sob a luz dos regimes de sentido e de interação. In: 49
OLIVEIRA, Ana Claudia (Ed.) As interações sensíveis: ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013, p. 703.
!27
2 A SAIA
La gonna attillata […] non finirà mai di far discutere. Dipenderà forse dal fatto che l’equazione gonna-coprire, proteggere,
nascondere cose-di-cui-ci-si-deve-vergognare, ha scatenato per secoli
benpensanti e moralisti. […] La parentela, ve la do per certa, tra gonna e virtù femminile,
ha fatto sì che lo storico indumento fosse da sempre considerato più simbolo che oggetto
reale. Oggi, dopo anni di fortune e di sfortune, la mitica gonna sta vivendo il suo
momento di trionfo.
Chiara Boni 1
2.1 Saia: substantivo e sinônimo feminino
No Dicionário da enciclopédia Mirador Internacional, publicado no Brasil em meados
da década de 1970, a palavra “saia” é definida, em primeiro lugar, como uma “peça de
vestuário feminino, que se estende da cintura para baixo”; em segundo, como “vestidura que
usavam os guerreiros; saio”; e em terceiro, como “a mulher” . O dicionário online Priberam, 2
que considera as versões brasileira e portuguesa do português, também define o termo 3
como “pessoa do sexo feminino”, mas já relativiza a associação da roupa com o gênero e
descreve a saia como “peça de roupa, geralmente feminina, de comprimento variável, que
se prende na cintura e que cobre os membros inferiores” [grifo nosso]. Nesta entrada a saia
aparece também como “parte do vestido, de comprimento variável, que cobre da cintura
para baixo”.
Nos dois dicionários o verbete apresenta ainda exemplos de expressões populares
como “agarrado às saias”, significando estar sob proteção feminina; ser da “saia rasgada”,
uma gíria para indicar alguém que gosta de farra, bagunça (ambos no Dicionário Mirador
BONI, C.; SETTEMBRINI, L. Vestiti, usciamo. Milano: Edizione CDE spa, 1987, p. 14. Em tradução nossa: “A 1
saia justa [...] nunca deixará de provocar discussão Dependerá talvez do fato de que a equação saia-cobrir, proteger, esconder coisas-das-quais-se-deve-envergonhar, por séculos tem instigado hipócritas e moralistas. [...] O relacionamento, dou por certo, entre e saia virtude feminina, fez com que a histórica peça fosse considerada sempre mais como símbolo do que objeto real. Hoje, depois de anos de venturas e desventuras, a mítica saia está vivendo seu momento de triunfo.”
“Saia”, in Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Mirador Internacional, 1977, 2. ed.2
"Saia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (online), 2008-2013. Disponível em: <http://3
Internacional); e “saia justa”, no sentido de situação incômoda, que em Portugal usa-se
como “saia curta” (Dicionário Priberam). Do senso comum vêm também as expressões “rabo
de saia”, que significa “mulher” mas também o “homem mulherengo”, e o predicado “de
saias”, usado sempre que se quer designar uma mulher que possui as características de
algum homem célebre, tal como faz a poeta Florbela Espanca ao questionar os próprios
“delírios de grandeza”: “Napoleão de saias, que impérios desejas?” . 4
Alguns destes usos metafóricos da palavra saia tomam por base as situações vividas
pelo corpo feminino que veste esta peça de roupa: o desconforto, a dificuldade de
movimentos e a vulnerabilidade da saia justa ou curta; a exposição do corpo, quando a saia
é rasgada – especialmente de suas partes mais sexualizadas, já que em “rabo de saia”,
“rabo” é termo chulo para se referir à parte posterior do corpo, e o “rabo” das reses é
chamado de “saia” . 5
“Calça”, por sua vez, é definida pelo Mirador Internacional como “peça de vestuário
que começa na cintura, dividindo-se por baixo do tronco em dois canos que cobrem as
pernas mais ou menos até o tornozelo” , e pelo Priberam como “vestuário exterior que cobre 6
as pernas separadamente e desce da cintura até aos pés” . Não há associação da peça 7
com o gênero masculino. Na definição do Priberam, o adjetivo “exterior” serve para
diferenciar esta peça da “calcinha”, vestuário íntimo que também pode ser chamado de
“calça”.
Assim como se usa o predicado “de saias” para se referir à mulher que possui a
característica de algum homem célebre, servimo-nos do “de calças” quando a intenção é
fazer a comparação oposta. Por exemplo, para se referir a Robert Galbraith, heterônimo da
escritora inglesa J. K. Rowling, autora do série best-seller Harry Potter, um blog usa a
expressão “J. K. Rowling de calças” ; uma revista feminina chama de “Gisele Bündchen de 8
calças” um modelo brasileiro que faz sucesso no exterior. 9
Quanto às expressões populares, temos “calça curta” (“foi pego de calça curta”) e
“com as calças na mão” para significar situações embaraçosas em que o sujeito é
surpreendido em meio a alguma atividade que deveria ser realizada sem o conhecimento de
SILVA, P. N. da. Citações e pensamentos de Florbela Espanca. Alfragide: Casa das Letras, 2011, 1. ed., p. 4
68.
Entrada “saia”, in Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, op. cit.5
“Calça”, in Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, op. cit.6
"Calça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, op. cit.7
A escritora teria usado um pseudônimo masculino para poder desenvolver novos trabalhos literários após a 8
série Harry Potter. Post publicado no blog Café Distraído em 12 jul. 2014. Disponível em: >http://www.cafedistraido.com.br/livros/o-chamado-do-cuco-j-k-rowling-de-calcas/>. Acesso em: 13 ago. 2014.
Entrevista publicada na revista Donna em 14 mar. 2014. Disponível em: <http://revistadonna.clicrbs.com.br/9
outrem. Se a “calça curta” é a deselegância (por exemplo: o sujeito precisou dobrar a barra
para não sujar a calça enquanto andava na lama, e foi visto desta forma antes que pudesse
se recompor), a “calça na mão” sugere o corpo exposto de quem estava despido para fazer
as necessidades ou antes/após o ato sexual cercado de algum tipo de interdição.
Assim, saia e calça compõem expressões que metaforizam situações de
constrangimento. A calça “curta” ou “na mão” figurativiza um programa narrativo em que o
sujeito age sobre o objeto “roupa”; na saia “justa” e “curta”, é o objeto que age sobre o
sujeito, causando o desconforto. No caso da saia “rasgada”, há um sujeito 1 (pessoa ou
coisa que pode vir a rasgar a saia) que age sobre o sujeito 2 que veste saia. A calça é
objeto, enquanto a saia é sujeito (ou é objeto para um terceiro). De qualquer forma,
considerando que a saia é uma roupa exclusivamente feminina, de acordo com estas
expressões a mulher não é sujeito em relação à roupa que veste e, por extensão, em
relação ao próprio corpo, e sim um objeto na interação com outros sujeitos. Além disso,
enquanto a “calça curta” é apenas deselegante, a “saia curta” é imoral.
Retomando as definições dicionarizadas, tanto a saia quanto a calça são roupas
presas ao corpo na altura da cintura e que descem ao longo das pernas. O aspecto
realmente significante na diferenciação entre as peças é que a calça é bifurcada, e a saia é
inteiriça. Tais conformações apresentam certas diferenças quanto aos efeitos de sentido
estésicos (com evidentes influências no cognitivo): em termos visuais, a roupa bifurcada
mostra o entremeio de pernas, a roupa inteiriça esconde; em termos táteis, ainda que o
toque seja virtualizado, a roupa bifurcada impede o acesso ao entremeio de pernas,
enquanto a roupa inteiriça permite. Tanto que – emprestando novamente o sentido veiculado
pelos ditados populares – a expressão usada para designar o comportamento da mulher
que recusou sexo ao companheiro é “dormiu de calça jeans”.
Ainda que hoje as mulheres possam usar calças – e, de maneira geral, as usem com
mais frequência do que as saias – calça e saia, enquanto figuras do conteúdo, ajudam a
compor, respectivamente, os temas da masculinidade e da feminilidade. Isto fica claro ao
observarmos, por exemplo, a sinalização de banheiros em espaços públicos. Uma das mais
emblemáticas é a que mostra figuras humanas estilizadas, sendo a masculina com a parte
inferior do corpo bifurcada, mostrando o entremeio de pernas, e a feminina sem mostrar o
entremeio, conforme os dois exemplos que trazemos aqui. Na figura 1a o corpo é dividido na
cintura, formando dois trapézios, sendo o inferior a saia; na figura 1b, o corpo é formado por
apenas um trapézio, simulando um vestido. Considerando esta segunda figura, lembrando
que a parte inferior desta roupa é chamada de saia e que, atualmente, é uma peça usada
por mulheres, poder-se-ia argumentar que o vestido também é um sinônimo do feminino.
Veremos, no entanto, que ele não pode ocupar com a mesma pertinência a posição que tem
a saia no paradigma e nas operações simbólicas da feminilidade.
!30
Figuras 1a e 1b – exemplos de indicação de masculino e feminino em placas de sinalização de banheiros
Fonte: imagens obtidas por meio de download dos sites Postmania e JWM Elétrica, respectivamente. Interessante notar que na versão com vestido da primeira placa, a mulher está com as pernas unidas, enquanto o homem tem as pernas separadas, indicando mais um exemplo da configuração postural que vimos no capítulo
1. Disponível em <http://postmania.org/placas-de-sinalizacao-vistas-em-postos-empresas-fabricas/> e <http://jwmeletrica.com.br/Produto-SINALIZACOES-DIVERSAS-PLACA-SINALIZACAO-ALUMINIO-BANHEIRO-
A diferenciação de roupas masculinas e femininas pelo aspecto bifurcado da parte
inferior é um acontecimento relativamente recente na História ocidental. As túnicas gregas e
romanas eram bastante parecidas para homens e mulheres, variando o comprimento – mais
longas para elas, mais curtas para eles –, como mostra João Braga . O esquema europeu 10
de roupas similares, algo como “sacos curvilíneos sem costuras, seja para os braços ou
para criar qualquer ajuste em torno do corpo” , no dizer de Anne Hollander, permaneceu o 11
mesmo até por volta de 1300. É somente nesta época que os homens substituem esta
espécie de “camisolão” – termo usado por Daniela Calanca – por
[…] uma roupa constituída por um jaleco, uma espécie de casaco curto e estreito, e por meias-calças (dois tubos de tecido que chegam até a altura da virilha, onde se ligam à barra do jaleco por meio de alfinetes, cadarços e fitas que passavam por caseados) aderentes, que delineiam o contorno das pernas. As mulheres vestem um vestido longo como o “camisolão” tradicional, mas mais apertado e decotado. A grande novidade é que a indumentária masculina põe em evidência as pernas modeladas pelas meias-calças, estabelecendo uma diferença muito marcada entre roupas masculinas e femininas. 12
BRAGA, J. História da moda: uma narrativa. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2011, 9. ed.10
HOLLANDER, A. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno (trad. Alexandre Tort; rev. Gilda 11
Chataignier). Rocco: Rio de Janeiro, 2003, p. 60.
CALANCA, D. História social da moda (trad. Renato Ambrosio). São Paulo: Senac São Paulo, 2008, p. 51.12
!31
Durante o período compreendido entre o primeiro uso destas “meias-calças” até as
calças dos sans-culottes da Revolução Francesa, as roupas masculinas ocidentais
passaram por modificações, ainda que sem nunca deixar de mostrar a bifurcação da parte
inferior do corpo. Há todo um contexto histórico, político e social que conduz para o
abandono radical do estilo espalhafatoso do traje masculino do Antigo Regime e o 13
surgimento do terno, a composição clássica que permanece sendo usada até hoje, inclusive
pelas mulheres. Para Hollander,
Um anseio por uma integridade obrigatória no design parece ter surgido no Ocidente na segunda metade do século XVIII, após o declínio do gosto pelo rococó, relacionado com o Iluminismo. O corte masculino clássico agora tão universalmente familiar era originalmente neoclássico. Foi inventado e aperfeiçoado entre 1780 e 1820, exatamente quando os temas visuais mais simples do design clássico estavam sugerindo a força e a clareza da democracia grega e da tecnologia romana. Ambas tornaram-se erótica assim como politicamente atraentes; a forma ideal para expressar as novas aspirações emocionais e sociais do momento parecia ser a grega básica ou romana. 14
A mesma revolução estética de inspiração neoclássica teve uma influência breve na
moda feminina. Os amplos vestidos usados até a Revolução – que, dependendo da época
valorizavam mais ou menos os seios, ajustavam ou alargavam as mangas, apertavam a
cintura, ampliavam a região do quadril formando verdadeiras barreiras para a aproximação e
o contato corporal – deram lugar ao modelo chamado Império. Este modelo era
[…] um vestido simples à semelhança de uma camisola solta de cintura alta, logo abaixo do seio, normalmente de cor branca, em tecidos como mousseline ou a cambraia. A transparência fazia-se presente nos vestidos a ponto das mulheres usarem malhas coladas ao corpo não só para se protegerem do frio, como também para evitarem a exibição de sua silhueta. […] por volta de 1810, chegou à altura das canelas, deixando à mostra os pés calçados por sapatos baixos. Os decotes quadrados ou em “V” deixavam o colo todo em evidência. 15
Ao mesmo tempo em que a simplicidade neoclássica se consolida como característica
desejável para o traje masculino, há um movimento reacionário na moda feminina, que
acompanha, na França, uma diminuição nos direitos civis das mulheres. A marcante
distinção que passa a existir entre as roupas dos dois gêneros reflete, ou manifesta, um
discurso mais profundo de separação entre o masculino e feminino.
Em meados do século XIX, a diferença sexual e a necessidade de esferas separadas
de atuação de acordo com as competências físicas e mentais intrínsecas de cada sexo –
Tomamos os acontecimentos históricos franceses como marcos temporais pela importante influência deste 13
país na moda europeia, especialmente a partir de meados de 1600, no reinado de Luís XIV.
HOLLANDER, 2003, p. 16.14
BRAGA, 2011, p. 57-58.15
!32
forte, racional, ativa e equilibrada para os homens; frágil, emocional, passiva e instável para
as mulheres – atinge seu ápice. Desde o século XVI as mulheres de classe média e alta
vinham sendo gradualmente excluídas da vida política e comercial nas cidades. Por volta de
1840 em diante, a atuação da mulher destas classes restringe-se à casa, ao cuidado dos
filhos e ao agrado do marido, cuja atuação no trabalho e na vida pública demandavam, para
compensação, o conforto do lar e o carinho e a compreensão da esposa. Adrian Forty
comenta que até o design dos objetos da época servia para materializar estas supostas
diferenças, que confundiam diferenças físicas reais com diferenças psicológicas atribuídas,
e que eram discursivizadas tanto em romances quanto em obras científicas do século XIX.
Conforme aponta Forty,
As características não existiam como realidades, mas como ideias; para viver tranquilamente com elas, as pessoas precisavam de provas de sua verdade. A ficção, a educação e a religião contribuíram todas para isso, e o mesmo fez o design. 16
O papel das roupas na concretização e naturalização destas ideias foi ainda mais
importante. Os homens passaram a usar o traje de três peças, muito parecido com o que se
usa hoje, composto por calça, colete e paletó, em cores sóbrias, de tecido confortável e
elegante, permitindo grande liberdade de movimento. As mulheres retornaram às saias
volumosas e aos corpetes, em trajes extremamente ornamentados que dificultavam muito a
mobilidade.
O fenômeno da adoção da sobriedade e da praticidade pelos homens, deixando às
mulheres a fantasia e a “futilidade” da moda, recebeu do psicólogo inglês John Carl Flügel,
em 1930, a expressão de “A grande renúncia masculina”. Para Anne Hollander, no que
tange ao surgimento, sucesso e consolidação da alfaiataria masculina, tal explicação é
muito “fácil” . Para a historiadora Christine Bard, ao mesmo tempo em que tal renúncia 17
estabelecia a diferenciação radical das aparências de acordo com o sexo, também impunha
um sistema masculinista, reforçado pela proibição do uso da calça pelas mulheres . 18
As constrições sociais ou da moda, cada vez mais restritivas para as mulheres, e os
primeiros desenvolvimentos do socialismo e do feminismo, provocaram reações e a
demanda por mudanças. Como ressalta Bard, tais movimentos de emancipação tinham uma
dimensão internacional e o vestuário não era uma questão central neles, mas não se pode
ignorá-lo . É neste contexto que surgem as primeiras reivindicações ao uso social da calça 19
FORTY, A. Objeto de desejo: design e sociedade desde 1750 (trad. Pedro Maia Soares). São Paulo: Cosac 16
Naify, 2007, p. 95.
HOLLANDER, 2003, p. 37.17
BARD, Christine. Une histoire politique du pantalon. Paris: Seuil, 2010b, p. 11.18
BARD, 2010b, p. 91.19
!33
pelas mulheres , dentro de uma proposta mais ampla de reforma do vestuário feminino com 20
vistas a deixá-lo mais prático, saudável e confortável. Esta proposta, segundo Diana
Crane , contrariava a rígida separação de identidades de gênero da época e, portanto, não 21
obteve o apoio das mulheres em geral. A mais conhecida das propostas de reforma do
vestuário foi aquela apresentada pela americana Amelia Bloomer por volta de 1850, e
consistia numa saia curta usada sobre uma calça turca volumosa. As mulheres que
apareciam em público com o traje bloomer eram cercadas por uma multidão agressiva,
normalmente masculina. Devido ao grande assédio, pararam de usá-lo . 22
O uso da calça por mulheres é um tabu que começa a ser quebrado nos espaços
públicos isolados ligados ao esporte, ao lazer e à educação (faculdades, parques, praia,
campo), nos locais de trabalho das mulheres de classe operária e nas zonas de fronteira.
Em 1880, mulheres já usavam calças escuras, retas e longas por baixo da saia, para
cavalgar; na década de 1860, calças curtas ou bloomers eram usados como trajes de
banho; em meados do século XIX, estudantes de instituições femininas de ensino superior
nos Estados Unidos usavam saia-calça para a prática de ginástica. Em 1892, as francesas
ganham a permissão de usar saia-calça e, em 1893, calça coberta por saia, somente para a
prática do ciclismo (o uso da calça pelas mulheres, além de outras severas restrições aos 23
direitos civis, havia sido proibido pelo código civil francês de 1804). Modelos de artistas e
fotógrafos de Montmartre e Montparnasse, em Paris, usam calças a partir da Primeira
Guerra Mundial, mas não nas ruas; Chanel tenta criar um traje com calça para mulheres das
classes média e alta em 1920, mas sem sucesso. As calças são usadas com mais
frequência durante a Segunda Guerra, devido à escassez de roupas novas de qualquer tipo.
Porém, é só depois da metade da década de 1950 que passam a ser aceitáveis para a vida
urbana , contemporaneamente ao surgimento de outra peça-tabu no guarda-roupa 24
feminino: a minissaia.
Para Bard, a emergência do uso da calça pelas mulheres, concomitante à adoção da
minissaia, primeiro nos círculos artísticos e boêmios londrinos e depois em Paris, ofereceu à
mulher a sensação de poder fazer uma escolha entre uma roupa que esconde e outra que
Apesar da grande restrição ao uso público da calça ou à sua aceitação como parte do traje dominante, a peça 20
já vinha sendo usada, há algum tempo, em situações privadas ou de invisibilidade social. Mulheres de calça apareciam nas formas mais leves de pornografia no século XVIII; eram usadas pelas bailarinas, acrobatas, atrizes e cantoras quando o número artístico descobria a parte de trás do corpo; era associada ao Oriente, que por si só já evocava mistérios sexuais; e também havia sido usada por agricultoras, pescadoras e trabalhadoras das minas (HOLLANDER, 2003, p. 74).
CRANE, D. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas (trad. Cristiana Coimbra). São 21
Paulo: Senac, 2006, 2 ed., p. 227.
CRANE, 2006, p. 229-230.22
CRANE, 2006, p. 236-245.23
CRANE, 2006, p. 256-257.24
!34
desvela; entre um vestuário de conotação masculina e outro bastante feminino. Esta noção
de escolha é apreciada por um grande número de mulheres, desde os anos 1960 até os
dias de hoje . Agora, passada a primeira década do século XXI, se as mulheres ocidentais 25
podem escolher livremente a roupa que desejam usar, por que a saia, emblematicamente
feminina, tem sido preterida pela calça? Uma das possíveis respostas está, justamente, em
sua associação com o feminino, em um contexto de empoderamento social, político,
profissional e especialmente sexual da mulher. Mas antes de tratar disso, vale entender um
pouco mais a relação entre a saia e a feminilidade.
2.3 A saia e o vestido
Como já abordado no capítulo anterior, o que teria levado Bard a escrever um livro
sobre a saia foi a constatação de que as mulheres contemporâneas, especialmente as mais
jovens, usam muito pouco esta peça de roupa, e a percepção de que um dos motivos para
isso seria a aparência de vulnerabilidade e de acessibilidade ao corpo feminino: para quem
olha, seria um convite à violação; para quem veste, haveria a experimentação física desta
ameaça, seja pelo olhar ou efetivamente pelo contato.
Tal situação estaria intrinsecamente relacionada ao feminino. O assédio aconteceria
não apenas porque se trata de uma mulher, mas porque ao usar saia esta mulher assume e
exibe marcas da feminilidade, o que motivaria a necessidade de uma “ação corretiva”
efetuada por parte de segmentos intolerantes da sociedade. A historiadora apresenta
diversos exemplos destas situações e também nós trazemos alguns, logo adiante. No
entanto, como fica a diferença entre a saia e o vestido neste contexto, já que as duas peças
são "femininas" e possuem configuração similar da cintura para baixo?
Para situar a saia como símbolo do gênero feminino, Bard traz exemplos do emprego
metonímico da palavra para indicar “mulher” e também a etimologia do termo em francês,
jupe. A palavra teria vindo do árabe djoubba, que denominava um tipo de vestido usado por
homens ou mulheres, dependendo da região; jupe, inicialmente, designava uma roupa de
baixo composta por duas peças: “le corps de la jupe (corsage) et le bas de la jupe (allant de
la taille aux pieds)” – que podemos traduzir como “o corpo da saia (corpete) e a parte de
baixo da saia (indo da cintura aos pés)”. Jupe, no sentido contemporâneo de “saia”, ou seja,
uma peça de roupa que inicia na cintura, não havia sido usado antes do século XVII . 26
A autora mostra ainda a etimologia do termo em francês para “vestido” – robe –, que
originalmente designava um tipo de roupa comprida usada pelos dois gêneros, desde a
BARD, C. Ce que soulève la jupe. Paris: Autrement, 2010a, p. 34-35.25
BARD, 2010a, p. 9-10.26
!35
Antiguidade até o século XVI (como o “camisolão” que mencionamos antes). É a partir do
século XII que a palavra robe passa a denominar a veste feminina composta por apenas
uma peça, com ou sem mangas, de comprimento variável e para ser usada por cima (em
oposição às roupas “de baixo”). Bard conclui a descrição etimológica dizendo que, “hoje, é a
saia mais que o vestido, menos frequente, que simboliza a feminilidade vestimentar” . Logo 27
em seguida, questiona o conceito da saia como uma roupa que esconde o sexo quando, na
verdade, a calça é que é fechada e protetora. A saia é aberta, e o foi muito mais quando as
mulheres não podiam usar roupas de baixo fechadas (os culottes, antecessores da 28
calcinha, tinham o “gancho” aberto; só foram fechados no final do século XIX).
Tal abertura é a causa da vulnerabilidade e acessibilidade de que falamos, mas ela
pode acontecer tanto com o uso da saia quanto do vestido. De fato, a autora vai usar
genericamente, muitas vezes, o termo “vestimenta aberta”. Quando comenta que nem nos
anos 1920 – quando a silhueta magra e os cabelos curtos compuseram um estilo de
influência masculina, o “à la garçonne” –, a calça feminina foi aceita, Bard diz assim: “Saia
ou vestido, a roupa aberta resiste ao ataque de masculinização. É um indício da sua força
de inércia e da sua importância para o gênero feminino” [grifo nosso]. Depois, ao falar da 29
pretensa liberdade proporcionada pela minissaia – liberdade de movimento, mas exigência
de um corpo magro e pernas sem celulite, que não poderiam mais ficar escondidas sob
longas saias –, usa o termo “jupe”, quando sabemos que a altura da bainha indicada pelo 30
prefixo “mini” era adotada também em vestidos.
Portanto, também estão presentes no vestido alguns aspectos que fazem da saia uma
roupa que sugere acessibilidade, que sexualiza e que tem sido menos usada pelas
mulheres. Mas veremos que tais aspectos, especialmente em sua relação com o feminino e
com os modos de presença da mulher no mundo, são predominantes para a saia. A
começar porque a saia é uma roupa originalmente feminina, e o vestido não . O mesmo 31
procedimento que explica a transformação da calça como peça de roupa símbolo da
masculinidade, mostra a transformação da saia como símbolo da feminilidade. Este
procedimento baseia-se no arranjo da roupa no corpo.
BARD, 2010a, p. 10-11. Tradução nossa para: “Aujourd’hui, c’est la jupe plus que la robe, moins fréquente, qui 27
symbolise la féminité vestimentaire”.
BARD, 2010a, p. 11.28
BARD, 2010a, p. 30. Tradução nossa para: “Jupe ou robe, le vêtement ouvert résiste à l’assaut de 29
masculinisation. C’est un indice de sa force d’inertie et de son importance symbolique pour le genre féminin.”
BARD, 2010a, p. 33.30
Como já vimos, o vestido é uma roupa originalmente usada tanto por homens quanto por mulheres. Já as 31
saias sempre foram femininas, sem nunca terem sido tomadas de empréstimo pelos homens. Quanto ao kilt escocês, Anne Hollander diz: “O kilt, a peça de vestuário masculino que mais se parece com a saia, é de fato um sobrevivente de épocas antigas em que os homens usavam generalizadamente panos para cobrir-se, mesmo em tempos de guerra” (HOLLANDER, 1994, p. 80).
!36
Segundo o Dicionário de Semiótica , todo objeto cognoscível pode ser apreendido 32
sob dois aspectos fundamentais: como sistema ou processo. Quando o objeto é de natureza
semiótica, como é o caso do corpo humano vestido, o termo sintagmático serve para
designar o processo, que se estrutura em relações do tipo e…e. O sistema é designado pelo
termo paradigmático, que se estrutura em relações do tipo ou…ou. O eixo sintagmático é
constituído por unidades sintagmáticas, ou sintagmas, “definíveis pelas relações que os
elementos constituintes mantêm entre si e com a unidade que os subsume” . 33
Greimas, em seu trabalho sobre o vocabulário de moda que circulava na sociedade
francesa em 1830, já distinguia a articulação entre os eixos sintagmático e paradigmático na
constituição do traje. Sendo importante considerar o traje como uma unidade conceitual,
deixa de lado termos que podem tanto designar o traje completo quanto partes dele e opta
pela palavra costume, que melhor exprimiria o parecer conceitual construído pela roupa . 34
No decorrer do livro, apresenta este costume a partir da descrição de peças usadas ou
vestidas em diversas partes do corpo. O que compõe o costume, portanto, são estas peças,
que por sua vez estão relacionadas às divisões do corpo humano. Sendo o costume a
unidade principal, as unidades sintagmáticas são as posições, homologáveis a partes do
corpo humano, onde as peças são usadas. O costume, portanto, se define pela relação que
estas posições estabelecem entre si e com o costume propriamente dito. Cada posição, por
sua vez, pode ser ocupada por um certo número de opções vestimentares, ou seja, por
certas unidades paradigmáticas, oferecidas pelo sistema da moda. Assim, o costume
feminino poderia se apresentar como sendo um processo combinatório entre as unidades
sintagmáticas “vestíveis” da cabeça e do pescoço e do tronco e da cintura e das pernas e
dos pés. Na posição da cabeça, por exemplo, o paradigma do sistema de vestuário oferece,
como opções, o chapéu ou o véu ou o lenço ou o arranjo de cabelo.
Décadas mais tarde, ao analisar a identidade visual do total look Chanel, Jean-Marie
Floch vai listar os elementos característicos dos trajes da estilista considerando-os como
signos, ou como unidades sintagmáticas da composição total . Mesmo a expressão look é 35
usada com sentido similar ao costume de Greimas: algo que organiza o todo, ou o parecer,
da figura feminina ou da silhueta conforme concebida por Coco Chanel . 36
Relembrando a primeira revolução no modo de se vestir, destinada pela necessidade
da diferenciação dos gêneros e ocorrida no século XIV, vemos que foi uma mudança no eixo
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica (trad. A. D. Lima et. al.). São Paulo: Contexto, 2008, 32
entrada “Sintagmático”, p. 469.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J., 2008, p. 470.33
GREIMAS, A. J. La mode en 1830. Langage et société: écrits de jeunesse. Paris: PUF, 2000, p. 19.34
FLOCH, J-M. Visual identities (trad. Pierre Van Osselaer e Alec McHoul). New York: Continuum, 2000, p. 88.35
FLOCH, J-M., 2000, p. 83.36
!37
sintagmático do parecer masculino: tronco e pernas, que formavam uma única unidade
sintagmática recoberta pelo “camisolão”, passaram a constituir duas unidades separadas. As
meias-calças, braies, os gibões, calções e culottes tornaram-se elementos do paradigma
“vestes para as pernas”. Mais importante de tudo, eram opções que assumiam a estrutura
bifurcada da parte inferior do corpo, e que teve sua consolidação com a adoção da calça no
século XIX. O que vai marcar e simbolizar a masculinidade é a calça e a forma como revela
e expressa a articulação das unidades que compõem o sintagma do corpo masculino. Como
diz Hollander, especulando sobre uma possível mudança do modo de se vestir do homem
contemporâneo: “De modo notável, os homens ocidentais ainda não querem vestir panos
drapeados, camisões, robes, xales ou véus. O corpo deve permanecer articulado e nunca
encoberto, e ser unificado apenas pela ideia, e não pelo tecido solto” . 37
Já as mulheres continuarão um bom tempo a ter o corpo estruturado
sintagmaticamente com tronco e pernas formando uma unidade. É somente no início do
século XVI que o vestido passa a ser composto por duas partes, a de cima e a de baixo, e a
saia transforma-se em uma peça efetivamente individual, comumente chamada de anágua.
O termo anágua referia-se a uma “saia de usar embaixo”, mas não no sentido de roupa
íntima. Ela fazia parte da composição do traje e poderia aparecer abaixo da barra ou pelas
aberturas ou talhadas da roupa que vinha por cima. Assim explica Hollander, apontando a
saia e também o véu como peças-símbolo da mulher:
As mulheres pobres podiam usar somente uma camisa, uma anágua e um corpete sem mangas, ou mesmo não usar um corpete; mas certamente usariam um lenço para a cabeça. A anágua não era originalmente uma roupa para ser usada por baixo, mas simplesmente uma parte separada da saia. Como tal tornou-se, junto com o véu para a cabeça, aquela peça de roupa que define o vestuário feminino. 38
Ao tratar das origens rústicas da saia para o flamenco – a tradicional dança espanhola
– a pesquisadora Maria Alice Ximenes descreve a diferença entre os trajes da dama e da
camponesa, sendo o uso da saia separada uma característica do parecer desta última:
Tanto a camponesa quanto a dama usavam roupas compridas como segue a linha do tempo na história da moda, com diferenciais em tipos de tecidos e acabamentos. No entanto, especialmente a camponesa usava a roupa desde o século XV dividida em duas peças, pois usavam o “dessous”, ou seja, a “roupa de baixo”. […] A dama, por sua vez, somente usará o traje disposto em duas peças a partir do século XIX, em decorrência do surgimento do costume de usar vários trajes para um mesmo dia, propiciado pelo advento da vida urbana, que possibilitava maiores opções de passeio. 39
HOLLANDER, 2003, p. 143.37
HOLLANDER, 2003, p. 65.38
XIMENES, M. A. A saia motriz: um percurso nos mistérios da vestimenta e da representatividade espanhola. 39
2009. 120 f. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009, p. 101.
!38
Ainda que os vestidos pudessem ser compostos por duas partes separadas, havia
uma unidade cromática e de tecidos que provocava a ideia de continuidade no visual do
traje. A descontinuidade operada pela separação de tronco e pernas como unidades
sintagmáticas a serem cobertas por roupas diferentes será, durante muito tempo, um
parecer feminino mais associado às classes trabalhadoras. No inventário de Greimas sobre
a toilette feminina em 1830 – aquela usada pela francesa elegante, e não pela trabalhadora
– há um item que trata do vestido, com observações sobre as mangas, o corpete e os
enfeites; há também a descrição dos redingotes e túnicas, peças inteiriças usadas sobre o
vestido; mas não há um item específico para a saia, nem como parte do vestido, muito
menos como peça individual. A saia é mencionada apenas como integrante da roupa de
dormir . A única situação de uso público da saia é como parte do traje de caça . 40 41
Para Greimas, a moda da Restauração estava no contra-pé daquela do Império,
quando a saia dos vestidos caía mais naturalmente ao longo do corpo e tinha sua cintura
alta, logo abaixo do seio. Depois deste breve período, como vimos, as saias voltam a
assumir o formato avolumado. Greimas diz, em termos de inovação, que as saias foram
“abandonadas” e toda atenção foi dirigida para o corpete , ou seja, para os seios. 42
O seio estava como atrativo sexual para as mulheres assim como a genitália para os
homens, e isso se manifestava nas roupas. O destaque explícito do codpiece ou braguette –
espécie de suporte peniano que também servia para unir as duas pernas do calção bufante
usado no Renascimento – fica mais sutil, com o passar do tempo, e vai se transmutar na
braguilha da calça. Quando os paletós ficam mais longos e passam a esconder a braguilha,
surge a gravata comprida, que assume a função de referenciar o falo. Para a psicanalista
Eugénie Lemoine-Luccioni, citada por Bard, aquilo que se diz da braguilha pode ser dito do
decote feminino: é o ponto quente da vestimenta . 43
Mostrar ou destacar os seios nunca foi tão indecoroso quanto mostrar as pernas. Nas
épocas de maior amplidão e profundidade dos decotes, maiores também eram as saias dos
vestidos, como se para definitivamente esconder, negar e tornar o sexo feminino
inacessível. Considerando que o corpo feminino possui dois pontos de atenção sexual – os
seios e a genitália –, vemos que o primeiro é considerado eufórico, benigno, e deve ser
assumido, enquanto a segunda é disfórica, maligna, e deve ser negada.
Vemos esta oposição também no traje tradicional da espanhola, em que Ximenes
identifica uma operação semissimbólica: a parte superior é sacra; a inferior, profana.
GREIMAS, 2000, p. 73.40
GREIMAS, 2000, p. 77.41
GREIMAS, 2000, p. 57.42
LEMOINE-LUCCIONI apud BARD, 2010a, p. 9.43
!39
O corpo da espanhola está todo coberto da cabeça aos pés, ora por pudicícia, ou por tradição, por religiosidade, por proteção, ora por mesclas culturais. […] O decote não consistia em fatores sensuais, sempre denotou sinônimo de docilidade maternal, os fartos seios que nascem como colinas nos decotes, bem como a presença dos braços nus não constituem partes eróticas do corpo da espanhola, porém a saia é a cauda, é o centauro, é o segredo, é o sexo adulto coberto. […] A potencialidade presente no traje que, da cintura para cima, tem uma estrutura de significação e está mediado pela representatividade sacra, se contrapõe da cintura para baixo com a saia que, através do Flamenco, fantasia-se em movimentos que revelam inesperadamente suas pernas. [grifos nossos] 44
Para Hollander, a organização corporal em que a parte superior é descoberta e a
inferior, muito coberta, atinge seu auge no século XIX, retorna em meados do século XX
(acompanhando uma nova “romantização” da mulher) e permanece até hoje, nas situações
em que a temática romântica é desejável: bailes, casamento, no palco do teatro ou nas telas
do cinema. Esta visão romântica seria sustentada pela negação do sexo da mulher, ou ao
menos a parte dele considerada ameaçadora:
Isto corresponde a um mito muito tenaz sobre as mulheres, o mesmo que deu origem à imagem da sereia, o monstro feminino perniciosamente dividido, a criatura herdada pelos deuses somente até a cintura. Sua voz e seu rosto, seus seios e seus cabelos, seu pescoço e seus braços são todos fascinantes, oferecendo apenas o que é benigno dentre os prazeres concedidos pelas mulheres, tudo sugerindo o amor sem reservas, carinhoso e fisicamente delicioso das mães, ao mesmo tempo em que parece prometer uma tormentosa oportunidade de sexo adulto. A parte superior de uma mulher oferece prazer intenso e uma espécie de ilusão de doce segurança; mas é uma armadilha. Por baixo, sob a espuma, sob a saia adorável de ondas rodopiantes, seu corpo escondido causa repulsa, seus contornos são revestidos por uma degeneração escamosa, seu interior oceânico cheirando a imundície. [grifos nossos] 45
As palavras fortes da historiadora encontram eco em muitas expressões pejorativas do
senso comum que associam a mulher ou sua genitália com peixes e outros animais
aquáticos, sendo a mais emblemática, talvez, aquela que serve para designar a mulher
sexualmente liberada: “piranha”. Diferente de outros xingamentos com o mesmo objetivo,
este sugere uma genitália dentada, com poder de castração . 46
O fato é que o uso da saia separada por mulheres de classe média e alta – ou seja, da
aceitação social da saia – e depois o gradual ajustamento da saia ao corpo e o
encurtamento da bainha, parece corresponder a uma maior participação da mulher na vida
pública, a uma maior autonomia, à conquista de direitos civis e, principalmente, a um
assumir a existência de um corpo feminino abaixo da cintura, algo que a calça, segundo
Hollander, também vai ajudar a mostrar:
XIMENES, 2009, p. 117; 199.44
HOLLANDER, 2003, p. 81; 84.45
Há diversos estudos sobre este “medo” do feminino, como o da poeta americana Adrienne Rich: RICH, A. Of 46
woman born: motherhood as experience and institution. New York: Norton, 1986.
!40
mostrar que as mulheres têm pernas comuns que funcionam exatamente como a dos homens […] era também mostrar que elas tinham músculos e tendões que trabalhavam de modo comum, assim como o baço e fígado, pulmões e estômago e, por extensão, cérebro. 47
O traje das elegantes do Romantismo e depois da era Vitoriana apresentavam
diversos elementos que figurativizavam o controle social exercido sobre as mulheres,
especialmente na França. Um aspecto deste controle era o confinamento da mulher ao
espaço privado da casa e ao ócio, já que trabalhar não era de bom-tom. Algumas das
mudanças na moda de fins do século XIX terão sua origem no modo de se vestir adotado
por mulheres que não se encaixavam neste papel feminino mais tradicional. Diferente do
que ocorria com as reformistas do vestuário, as motivações deste grupo de mulheres não
eram destinadas por uma consciência feminista, e sim pela diferença de classe social.
Diana Crane defende que na segunda metade do século XIX existiam dois estilos de
roupas para mulheres: o estilo dominante, adotado pelas burguesas de classe alta, e um
estilo que a autora chama de “alternativo”, largamente adotado, como atestam diversas
fotografias do período, apesar de não ter substituído o estilo dominante. O estilo alternativo
se caracterizava pela incorporação de vários itens do vestuário masculino, como gravatas,
chapéus, paletós, coletes e camisas – mas não a calça . 48
Nos interessa especialmente o fato de que parte destes itens, como os paletós,
coletes e camisas, compõem o paradigma do vestuário para o tronco, pressupondo, então,
as pernas como uma unidade sintagmática separada, a ser vestida pela saia. Esta
composição distingue-se do vestido do estilo dominante em dois aspectos: pela diferença na
organização sintagmática e por usar tecidos e acessórios mais simples. Os vestidos exigiam
tal quantidade de tecidos e ornamentos que o tornavam financeiramente inacessível e
operacionalmente inviáveis para mulheres trabalhadoras das classes média e operária. O
estilo alternativo, portanto, era uma espécie de resistência simbólica ao dominante, operada
principalmente por “mulheres trabalhadoras solteiras das classes média e operária [que]
desempenhavam papéis que contradiziam o papel ideal de gênero, pois trabalhavam e
tinham alguma independência” . 49
Crane vai mostrar diversas composições de traje feminino com elementos do traje
masculino. Citando Xavier Chaumette, a historiadora aponta o conjunto saia e paletó como o
“símbolo da mulher emancipada do século XIX” , muito usado pelas jovens que 50
trabalhavam em escritórios. De origem inglesa, assim como o traje masculino da época, fez
HOLLANDER, 2003, p. 84.47
CRANE, 2006, p. 200.48
CRANE, 2006, p. 48-49.49
CHAUMETTE apud CRANE, 2006, p. 209.50
!41
com que, na França, as mulheres que se locomovessem muito livremente fossem chamadas
de l’anglaises. Também foi adotado pelas francesas com o nome de tailleur, que significava
“sob medida”. Diferentemente dos vestidos das elegantes, era confeccionado
preferencialmente por alfaiates, e não por estilistas ou modistas . Outra peça de roupa que 51
figurativizava o tema da emancipação era a chemisier, uma camisa masculina adaptada,
surgida nos anos 1870 nos desenhos de Charles Dana Gibson, nos Estados Unidos.
Chamada de blusa Gibson, foi largamente utilizada pelas mulheres americanas de classe
média e operária no final do século XIX, convertendo-se no “[…] ícone que representava a
jovem emancipada” . 52
O estilo de vestuário alternativo representava uma resistência, consciente ou não, ao
estilo dominante e às mulheres que podiam (ou deviam) usá-lo: mulheres de classe alta,
casadas e que não trabalhavam. Por isso, como já vimos, a inclusão de elementos
masculinos (simbolizando a independência e não necessariamente questionando a
autoridade masculina) no traje foi adotada, primeiramente, pelas jovens trabalhadoras de
classe média e operária e pelas mulheres solteiras, dois grupos relativamente “marginais”
considerando-se o ideal da época. Porém, enquanto o estilo dominante, dispendioso e
complexo, servia para manter as fronteiras de classe social existentes, “o estilo alternativo,
relativamente barato e descomplicado, cruzou as fronteiras de classe” , sendo um dos 53
primeiros casos em que a influência da moda se deu de baixo para cima. O conjunto de saia
e camisa, o tailleur, o paletó e a gravata acabaram por compor o estilo dominante na virada
do século XIX para o XX. Tanto que, em 1920, o look de Coco Chanel – que almejava
oferecer concorrência ao estilista Paul Poiret e seus vestidos limitadores do movimento
corporal – apresentava duas características do estilo alternativo do século XIX: a proposta
de uma combinação precisa de diferentes unidades sintagmáticas – partes do corpo ou
partes do traje –, que podiam ser valorizadas separadamente, e a inclusão de elementos do
vestuário masculino e do mundo do trabalho, inclusive a calça . Assim, o estilo antes 54
alternativo chegava à classe alta francesa e passava a compor o estilo dominante.
Além de romper as fronteiras de classe, o estilo alternativo contribuiu para minar as
barreiras de gênero. Assim como ocorreu com o corpo masculino, a separação de tronco e
pernas em duas unidades sintagmáticas vestimentares significou assumir que existe o sexo
na parte inferior do corpo feminino, constatação que ficará visualmente mais forte – e por
isso a interdição persistente por tanto tempo – com a adoção da calça. A calça, no entanto, é
CHAUMETTE apud CRANE, 2006, p. 210.51
CRANE, 2006, p. 213.52
CRANE, 2006, p. 268.53
FLOCH, 2000, p. 93.54
!42
uma peça masculina e assume o sexo de um jeito originalmente masculino. A saia é
feminina, e usar saia é uma afirmação da sexualidade feminina.
2.4 Percursos polêmicos do uso da saia
Podemos considerar diversos aspectos no uso contemporâneo da saia e em sua
relação com a temática do feminino. Um deles é abordado por Bard no segundo capítulo de
seu Ce que soulève la jupe: “La jupe fait de la résistance” , ou “A saia resiste”. 55
Como vimos, a autora aponta um menor uso da saia pelas mulheres neste início de
século XXI. Este “abandono” em detrimento da calça seria maior entre as adolescentes e
mulheres jovens, devido ao risco de assédio e violência. No entanto, apesar do uso
generalizado da calça, a saia não saiu de moda. Seu poder erótico de roupa aberta atrai,
estimula o jogo de sedução, proporciona o prazer estésico do contato da pele nua com o
tecido, enseja um vestir-se para si e também para o outro. Muito por conta disso, começa a
se estabelecer, em algumas práticas e discursos, a associação saia = puta. Mulheres,
especialmente as mais jovens, que usam saia e outros recursos de “feminilidade” (como a
maquiagem, por exemplo), são tachadas de “fáceis”, sanção aplicada por um destinador-
julgador que considera a expressão da sexualidade feminina como o descumprimento de um
certo tipo de contrato.
Em um estudo de 2008 sobre os jovens e o amor nas cidades , a socióloga Isabelle 56
Clair observa que as meninas devem obedecer a um determinado código com restrições
geográficas, de relacionamento e vestimentares. A saia, entre outras peças (bota,
especialmente as de bico fino; camiseta regata; tops justos e/ou decotados), pertence ao
grupo do vestuário interdito às jovens, porque são associados à uma sexualidade adulta. Na
lógica desta narrativa, o uso destas peças sinaliza uma provocação sexual e uma intenção
que justifica a culpabilização da vítima em caso de agressão. Ou, como vemos em muitas
falas de agressores: “usando estas roupas, ela estava ‘pedindo’”. A saia é usada somente
em condições muito específicas, quando a moça sai com o namorado, por exemplo. No dia-
a-dia e nos espaços públicos da escola e da vizinhança, para se fazer respeitar, as meninas
se vestem de forma parecida à dos meninos.
Neste contexto, a insistência na expressão da feminilidade estaria na base de
episódios extremamente violentos que ocorreram ou vieram à tona em 2002, na França: o
caso de uma moça de 17 anos, queimada viva nas lixeiras de uma localidade no subúrbio
BARD, 2010a, p. 66-118.55
CLAIR apud BARD, 2010a, p. 68.56
!43
de Paris , e os constantes estupros coletivos que ocorreram na época. Estes eventos 57
levaram à realização de uma marcha contra a violência de gênero que mobilizou 30 mil
pessoas de todo país e chegou a Paris em 8 de março de 2003, e também à criação do
movimento Ni putes ni soumises . O Ni putes ni soumises surge para lutar pela liberdade 58
das mulheres se vestirem do jeito que desejarem, sem serem agredidas por isso. Entre as
peças que mais causam polêmica está, junto à saia, o véu islâmico. Mas é a saia que
“veste” o punho da manifestante no logotipo do movimento (figura 2a), e para suas
integrantes, “usar uma saia é um ato militante” . 59
Figuras 2a e 2b – logotipo do movimento Ni putes ni soumises e anúncio da programação do Canal+ dedicada ao aniversário do movimento
Fonte: imagens obtidas por meio de download, respectivamente, na loja virtual do movimento e no site de conteúdo educacional Cia France. Disponível em: <www.npns.fr/boutique/badges/le-badge-en-jupe-et-pas-soumise-blanc/> e <http://www.cia-france.com/francais-et-vous/sous_le_platane/19-la-jupe-publicite-pour-
Em fevereiro de 2005, o Canal+, emissora de TV a cabo francesa, dedicou um dia
inteiro de sua programação ao aniversário de dois anos do movimento. O anúncio
publicitário de divulgação, veiculado no jornal Libération, também traz a saia como figura
principal (figura 2b). O texto verbal no canto superior direito remete aos enunciados
publicitários: “Minissaia 24 €. 100% algodão, forro em poliamida. Riscos relacionados à
compra deste produto: insultos, cusparadas, agressões físicas”.
Sohane Benziane foi morta no dia 4 de outubro de 2002, em Vitry-sur Seine, por afrontar as normas de um 57
chefe de gangue local, de 19 anos. O site do Ministério francês que se ocupa dos direitos das mulheres publicou em 2 de outubro de 2012 um artigo para lembrar os 10 anos da morte da jovem. Disponível em: http://femmes.gouv.fr/il-y-a-10-ans-sohane/. Acesso em: 3 nov. 2014.
Em português, “Nem putas, nem submissas”. O site do movimento: http://www.npns.fr/. Acesso em: 14 jun. 58
2011.
BARD, 2010a, p. 71.59
!44
A advertência dos riscos faz referência ao texto obrigatório de produtos considerados
perigosos à saúde, como cigarro e bebidas alcoólicas. Pelo que se pode ver do corpo da
modelo e da forma como a saia se ajusta a ele, a moça está com a perna direita posicionada
à frente, dobrada, provavelmente apoiada na ponta do pé ou em um suporte mais alto que o
chão. Tal postura acentua a abertura e o efeito de acesso e vulnerabilidade deste tipo de
roupa. Esta situação não parece intimidá-la, já que sua mão direita está na cintura,
sugerindo que sua postura é intencional e até mesmo desafiadora, se considerarmos a
articulação da imagem com a advertência do texto verbal. Nota-se, também, que exceto pela
cor cinza, a expressão plástica da saia traz muitas figuras integrantes do tema da
feminilidade: o plissado; o ondulado da bainha, formando um babado; a leveza do tecido,
que parece prestes a levantar com qualquer deslocamento de ar mais forte; a forma
levemente ampla, e não ajustada. Este tipo de saia reitera aquela do logo do Ni pute si
soumise, que além de rosa, é também curta, mais evasé, de superfície ondulada.
Os episódios que deram origem às manifestações, ou ao menos aqueles que tiveram
maior visibilidade, aconteceram com mais frequência nos subúrbios parisienses habitados
por imigrantes de religião islâmica. Por conta disso, o movimento foi acusado de ter um viés
preconceituoso e ter sido usado politicamente pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy na sua
cruzada contra o uso público do véu islâmico . No entanto, Bard vai mostrar que as 60
constrições sociais que dificultam o uso da saia pelas mulheres jovens ultrapassa muito o
perímetro dos bairros pobres e densamente povoados de imigrantes. Na verdade, estas
constrições estão presentes em todos os meios e em todo território nacional.
Em março de 2006, alunos e professores de um colégio particular agrícola da região
de Rennes, na Bretanha, noroeste da França, instituíram o “dia da saia e do respeito”, para
discutir sobre representações da sexualidade, relação homem x mulher, erotização na
publicidade. Eles lembram que as alunas sempre vão para a aula de calça, ainda que fora
da escola algumas adorem usar saias. “A saia é colocada em evidência como um novo tabu,
e a calça como um meio de dissimular a feminilidade (estamos falando em dissimular a
masculinidade?). A saia significaria: ‘assumo meu corpo e minha feminilidade’” . A ação tem 61
boa repercussão e dá origem à Printemps de la jupe et du respect (“Primavera da saia e 62
do respeito” – figura 3), que acontece até hoje em diversas escolas e universidades
francesas. O público é formado por adolescentes e jovens de nacionalidade, etnia, religião e
classe socioeconômica bastante diversas daquelas que caracterizam os imigrantes oriundos
da África e Oriente Médio que habitam os subúrbios de Paris.
BARD, 2010a, p. 73.60
BARD, 2010a, p. 94.61
Site da ação: www.printempsdelajupe.com. Acesso em: 2 nov. 2014.62
!45
Figura 3 – identidade visual da ação Printemps de la jupe et du respect dos anos de 2007 a 2013
Fonte: imagens obtidas no site do evento. Vemos que, da edição de 2010 em diante, a saia é substituída pelo vestido, mas permanece no nome da iniciativa. Disponível em: <http://www.printempsdelajupe.com/
archives.php>. Acesso em: 3 nov. 2011.
Na primavera europeia de 2014, em Nantes, no oeste da França, outro protesto contra
o sexismo levou meninos a usar saia para ir à escola. A iniciativa se chamou Ce que soulève
la jupe, em alusão ao livro de Bard que chamou atenção para o atual aspecto discriminatório
do uso da saia . 63
Sem saber do Printemps de la jupe et du respect, o diretor Jean-Paul Lilienfeld produz
um filme em que a saia também é o tema. La journée de la jupe (em português, “O dia da
saia” – figura 4), estrelado por Isabelle Adjani, foi ao ar na França pelo canal Arte em 64
março de 2009, após enfrentar bastante rejeição por tratar de um tema considerado muito
sensível.
«Ce que soulève la jupe»: à Nantes, la polémique laisse la communauté éducative perplexe. Le Monde, 15 63
Rede de televisão franco-germânica com programação especializada em arte e cultura.64
!"#$%&'(")"*%&+,-+
!46
Figura 4 – cartaz do filme La journée de la jupe
Fonte: imagem obtida por meio de download no portal de cinema AlloCiné. Disponível em: <http://www.allocine.fr/film/fichefilm_gen_cfilm=142311.html>. Acesso em: 3 nov. 2014.
O filme se passa em uma escola no subúrbio de Paris. Adjani interpreta Sonia
Bergerac, professora de francês que se recusa a aceitar o comportamento desrespeitoso e
violento dos alunos e, maior de seus pecados, como se vê pela opinião que têm dela o
diretor e alguns colegas, insiste em ir trabalhar de saia. No desenrolar da história, Sonia
toma a arma que um dos alunos costuma portar e acaba por sequestrar a turma. Confinada
com eles em uma sala, fica sabendo de casos de intimidação, assédio e violência sexual.
Uma de suas reivindicações para soltar os adolescentes é política: ela pede que o governo
institua o “dia da saia”, um dia por ano em que as alunas poderão ir de saia à escola sem
medo, “um dia em que o estado afirma que se pode vestir uma saia e não ser puta” [grifo
nosso]. O pedido é ridicularizado pela ministra da Educação (que veste calça). A professora
acaba morrendo na operação de resgate, mas o filme termina sugerindo que sua
reivindicação teria surtido algum efeito: alunos e alunas comparecem ao seu enterro, e elas
usam saia.
Por ser ambientado na periferia de Paris – região que apresenta certas características
populacionais que mostramos acima –, e ter muitos islâmicos como personagens – inclusive
a professora –, o filme também foi acusado de um viés preconceituoso. No entanto, mostra
que as constrições para o uso da saia não atingem apenas as adolescentes. Para Bard, a
adoção da saia como símbolo de movimentos contra a violência sexual oriundos de
!47
diferentes meios franceses, mostra que a questão não é específica das populações de
imigrantes ou da periferia. Assim, apesar de o filme sublinhar uma faceta da realidade dos
colégios destas regiões, “[…] pudemos constatar, com a experiência bretã do Dia da Saia,
que o recurso à calça protetora concerne, no início do século XXI, a todas as juventudes:
Talvez possamos entender também que não é restrito à França ou a outros países
com as mesmas tensões sociais e políticas ligadas à imigração. Como já apontamos no
capítulo 1, ao falar da relação entre o uso da saia e atos de violência, Bard cita um exemplo
brasileiro, o da agressão à universitária Geisy Arruda. Há episódios em outros locais,
portanto, que reiteram a situação francesa.
2.5 A saia no Brasil e alhures: discursos e práticas de intolerância e de
protesto
A saia começou a se delinear como objeto de pesquisa após uma observação banal
sobre o menor uso desta peça nas ruas de Curitiba . Na época, fevereiro de 2011, 66
publicamos uma crônica abordando possíveis motivos para esta situação, que foi 67
comentada por algumas leitoras. Os comentários revelam que os modos de uso da saia são
destinados por fatores similares àqueles apontados por Bard, ainda que o contexto cultural e
geográfico seja diverso. Uma leitora diz que evita usar esta roupa por conta dos “velhos
tarados” que “continuam te comendo com olhos”, mesmo que a saia vá até o pé; deixa para
usar saia quando está com o namorado, que terá que se incomodar com os olhares . Outra 68
também restringe o uso da saia aos fins de semana, quando sai com o namorado e de
BARD, 2010a, p. 104. Tradução nossa para: “Mais nous avons pu constater, avec l’expérience bretonne de la 65
Journée de la jupe, que le recours au pantalon protecteur concerne, au début du XXIe siècle, toutes les jeunesses: rurale, urbaine, catholique, musulmane, blanche, noire…”.
Pelo jeito, não só em Curitiba. Um japonês que mora há alguns anos no Brasil, especificamente em Porto 66
Alegre, também comenta em seu blog o menor uso da saia pelas brasileiras, em comparação às japonesas. Para ele, além da maior uniformização da cultura japonesa (escola e locais de trabalho), a mulher oriental, por ter menos curvas, usa a saia para expressar sua feminilidade. Ele diz que as mulheres brasileiras deveriam usar mais esta peça, mas não para conforto delas, e sim para “atrair mais homens”, já que eles gostam mais de mulheres de saia. Post “Porque as mulheres brasileiras não usam saias no dia a dia!?” Japonês em Porto Alegre, 30 set. 2011. Disponível em: http://traducao-japones.blogspot.com.br/2011/09/porque-as-mulheres-brasileiras-nao-usam.html. Acesso em: 4 nov. 2014.
BAGGIO, A. T. Por que as curitibanas não usam saia? Digestivo Cultural, 22 fev. 2011. Disponível em: <http://67
Texto integral do comentário: “Eu sou curitibana e adoro saias, mas evito usá-las por um simples motivo: os 68
velhos tarados na rua. Por mais que sua saia vá até o pé, eles continuam te comendo com os olhos e te chamando de princesa... Então, evito. Uso mais quando estou com meu namorado, aí é ele quem se incomoda com olhares indiscretos, e não eu!”.
!48
carro; durante a semana, de ônibus, prefere calça . Uma terceira, vinda do nordeste, diz 69
que diminuiu o uso da saia quando chegou à capital paranaense por sentir hostilidade no
olhar das mulheres . Temos, portanto, a reiteração da questão da violência do olhar – 70
perpetrada por homens ou por mulheres –, a constrição do uso pelas condições de 71
vulnerabilidade nas ruas e no transporte público das grandes cidades e a relação entre a
saia e o papel temático da namorada (feminina e protegida pelo namorado).
O olhar e as “cantadas” de rua não têm nada de elogiosos e nem de inofensivos, como
alguns supõem. São manifestações de poder, pois o objetivo não é fazer o outro se sentir
bem. De fato, Eric Landowski trata da violência do olhar como uma das confrontações de
posições modais do Sujeito que vê e do Sujeito que é visto. Algumas destas confrontações
permitem
analisar situações em que o exercício do olhar, o próprio fato de “ver” ou”ser visto”, aparecerá como a ocasião ou o motivo de verdadeiros conflitos entre os sujeitos […] são situações críticas de “atentado à vida privada” e de “violação da intimidade”. 72
Ainda que a violência não seja relacionada exclusivamente a um certo tipo de
vestuário , os episódios e relatos franceses e brasileiros mostram que parece haver maior 73
risco quando a mulher usa peças “abertas”. Em uma reportagem sobre assédio publicada
em 2008 na revista TPM, dois depoimentos mostram que o medo é forte destinador da
decisão de não usar saia. Uma estudante paulistana, moradora de região nobre da cidade,
justifica: “tento não colocar saia nem quando está calor porque sei que os caras vão olhar de
um jeito que me agride ou vão falar baixarias nas ruas”. Uma jovem jornalista carioca diz
não usar mais saias quando sai à noite, para os bares e festas do bairro da Lapa, porque
Texto integral do comentário: “Moro em Curitiba e amo saias/vestidos, mas só uso nos fins de semana! E é 69
bem isso, durante a semana: saio de casa às 7h e só volto para casa lá pelas 22h. Ando de ônibus, cruzo a cidade umas 3 vezes... você acaba perdendo até o charme! Mas, no fim de semana, para pegar um cinema com o namorado (de carro!), aí, sim, de saia e vestidinho (e salto alto)!”
Texto integral do comentário: “Como boa nordestina que sou, cheguei em Curitiba de posse dos meus 70
shortinhos, saias, vestidinhos e logo senti a hostilidade do povo quando usava. Era incrível, os rapazes obviamente não reclamavam, mas as caras que as meninas faziam! Nossa, era constrangedor. Usar essas roupas aqui é um reflexo de personalidade forte! Como tenho, uso, com moderação, mas uso! Excelente texto!”
Sobre o assédio de rua como prática de um fazer o outro sentir-se mal, operada também por mulheres, ver 71
relato de nossa experiência nas ruas de duas cidades italianas, publicado em junho de 2013: “De mulher pra mulher: quando o assédio é feito por elas”. Disponível em: http://adrianabaggio.blogspot.com.br/2013/06/de-mulher-pra-mulher-quando-o-assedio-e.html. Acesso em: 4 nov. 2014.
LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: 72
Educ/Pontes, 1992, p. 95-96.
Em outubro de 2014 circulou pela internet um vídeo mostrando a quantidade de “cantadas” que uma mulher 73
recebe ao andar pelas ruas de Nova York. Vestida de calça e camiseta, a atriz andou por mais de 10 horas pela cidade e recebeu mais de 100 manifestações verbais de assédio, fora os olhares e assobios. Depois da repercussão gerada pelo material, algumas pessoas que comentaram o vídeo ameaçaram a atriz de estupro. Uma das diversas reportagens sobre o assunto pode ser vista no site da BBC Brasil: “Vídeo que mostra assédio a mulher nas ruas é visto mais de 14 milhões de vezes”, 30 out. 2014. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/10/141028_video_cantadas_rb. Acesso em: 4 nov. 2014.
!49
cansou de ser atacada . No documentário Femme de la rue, de 2012, sobre o assédio 74
sofrido por mulheres nas ruas de Bruxelas, alguns depoimentos apontam da mesma forma o
uso da calça ao invés de saia como forma de se evitar a violência . 75
Há um discurso recorrente de culpabilização da vítima pela violência sofrida, e de não-
responsabilização do agressor (ou de outros fatores, como a cultura ou a impunidade). Na
lógica deste discurso, o lugar por onde a mulher anda, sua decisão de estar sozinha e,
especialmente, a roupa que usa, motivariam ou justificariam a violência sofrida. Tal discurso
não parte apenas do criminoso, mas também da sociedade e do Estado, como é o caso do
episódio que originou a manifestação chamada SlutWalk.
A SlutWalk surgiu no Canadá, em janeiro de 2011, em protesto à fala de um policial
durante uma palestra a estudantes da Universidade de Toronto. Ele teria dito que, quando a
mulher não se veste como “vadia” (“slut”), os riscos de sofrer um estupro diminuem. À
manifestação canadense seguiram-se outras em mais de 200 cidades no mundo todo,
inclusive no Brasil, onde recebeu o nome de Marcha das Vadias . Apesar de algumas 76
pequenas diferenças de local para local, o ponto comum das Marchas das Vadias é
protestar contra o assédio e a violência dirigidos às mulheres por conta da roupa que
estiverem usando ou do seu comportamento sexual (se faz muito ou pouco sexo, com
quem, por prazer ou por trabalho), e contra a naturalização do pensamento de que a vítima
é culpada pela violência sofrida, conforme sugere o conselho do policial canadense. No
mesmo ano de de 2011, em junho, um outro discurso, também proferido por um policial,
desta vez na cidade de Nova York, motivou o Short Skirt Celebration Ride . A passeata foi 77
um protesto contra a advertência que uma mulher recebeu do policial por estar andando de
bicicleta de saia curta, “distraindo os motoristas” . 78
Algumas vezes a própria legislação acaba incentivando ou criando uma sensação de
permissividade sobre a violência praticada pelo olhar ou pela invasão da privacidade. Um
LEMOS, N.; TAMBELLINI, K. E aí, gostosa? TPM, São Paulo, ano 7, n. 74, mar. 2008, p. 31.74
MELRO, Ana. “Femme de la rue”, documentário sobre piropos gera polémica. Público, Lisboa, 19 ago. 2012. 75
A escolha do termo “vadia” causou rejeição em diversos segmentos da sociedade e até mesmo entre 76
integrantes dos movimentos feministas. A justificativa, além da intenção de dar visibilidade ao tema, é mostrar o poder da linguagem. O tipo de ataque sexual a que a Marcha se refere não é restrito à violência física, como o estupro. Como já pontuamos, “cantadas” e xingamentos sofridos por mulheres na rua também são formas de violência, o que coloca a linguagem como parte importante deste processo, seja pela maneira ofensiva e preconceituosa de se referir às mulheres e de justificar a violência física, seja pela linguagem como arma de ataque por si própria. Assim, a re-apropriação do termo por parte de quem é agredido por ele tem por objetivo desnaturalizar tanto a prática de classificação das mulheres por seu comportamento sexual quanto a ideia de que é compreensível que mulheres “vadias” sofram violência.
Algo como “Passeata em celebração à saia curta”.77
COLVILLE-ANDERSEN, Mikael. Short Skirts on Bicycles Celebration in New York City. Cycle Chic, 78
exemplo é a tardia criminalização do upskirting – ato de fotografar por baixo da saia em
espaços públicos –, prática que tem sido recorrente nos Estados Unidos.
Figura 5 – fotografia que flagra o upskirting
Fonte: fotografia publicada do site Photography is not a crime, em 5 de março de 2014, em reportagem intitulada “Massachusetts Supreme Court Rules it’s Legal to Record up Women’s Skirts in Public” . Dois dias depois seria 79
promulgada a lei que criminaliza o upskirting. A fotografia é de 2006 e foi retirada de um perfil público do site de compartilhamento de fotos Flickr.
Apenas em março de 2014 a lei do estado de Massachusetts passou a considerar o
upskirting como crime. Pessoas denunciadas anteriormente não haviam sido condenadas
por uma questão de interpretação do direito à privacidade. O primeiro homem preso após a
promulgação da lei usa, em sua defesa, o argumento de não saber que o upskirting havia se
tornado ilegal . Ou seja, é a falta de legislação adequada e a certeza da impunidade – que 80
podem ser vistas como sanções positivas ou não-negativas por parte do destinador Estado
em relação à invasão de privacidade –, que acaba incentivando ou motivando tais práticas.
O upskirting acontece quando a mulher está com uma roupa aberta, saia ou vestido, e
pode ser feito por baixo de outras peças, como blusas. Mas o exemplo usado por um site de
fotografia que condena a impunidade desta prática é de uma mulher que aparentemente
veste saia (figura 5), assim como é a saia que acaba se tornando figura emblemática dos
enunciados de protesto contra os diversos tipos de assédio e violência.
Conforme reportagem no site da emissora de TV norte-americana CNN: CROOK III, Lawrence. Boston transit 80
police make first arrest under new law banning “upskirting”. CNN, 26 jun. 2014. Disponível em: <edition.cnn.com/2014/06/25/us/upskirting-arrest-boston/>. Acesso em: 5 nov. 2014.
!51
Em passeatas como a Marcha das Vadias, para ressignificar o termo (cf. nota 76), a
proposta é que as mulheres vistam roupas consideradas provocantes. Muitas interpretam a
proposta por meio do uso da saia, especialmente aquelas com elementos plásticos
associados à feminilidade e à sexualidade – saias curtas, mais “rodadas”, com babados –
conforme observamos na edição da Marcha realizada em julho de 2011 em Curitiba . 81
A saia, como figura de conteúdo, também está presente nos enunciados de protesto
veiculados em sites de redes sociais, como o Facebook. Os enunciados foram coletados por
meio de nossa própria atuação como usuários desta rede , na medida em que postagens 82
de outros usuários com os quais estamos conectados apareciam em nossa timeline. A
timeline, ou página de cada perfil na rede, torna-se uma espécie de mural de notícias,
formado por conteúdos postados tanto pelo autor como pelos seus contatos. Para Fábio
Malini e Henrique Antoun, que tratam do ciberativismo e mobilização nas redes sociais,
[…] cada perfil é uma comunidade de autores, a informação criada termina por traduzir verdadeiras ‘quantidades sociais’, exprimindo uma amostra das crenças e dos desejos da sociedade em torno de algum tema, alguma hashtag ou alguma postagem. 83
É neste sentido que entendemos a pertinência da reiteração da figura da saia nos
discursos de protesto. Vejamos a presença da saia nos textos verbais e visuais de alguns
destes enunciados publicados no Facebook: “Meu corpo é uma festa para a qual você não
foi convidado, não importa o que minha saia ‘diga’” (figura 6).
BAGGIO, A. T. Pictures of Curitiba Slut Walk (Marcha das Vadias de Curitiba): an analysis of the re-signification 81
of the term "vadia". In: Congress of the International Association of Visual Semiotics, 10., 2012, Buenos Aires.
As imagens que trazemos aqui foram retiradas de perfis que classificaram a postagem como “pública”, ou seja, 82
disponível para ser visualizada por qualquer pessoa na internet, por isso indicamos o link da postagem original. No entanto, nem sempre temos a informação sobre a autoria das ilustrações, fotografias, cartazes e layouts.
MALINI, F.; ANTOUN, H. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: 83
Sulina, 2013, p. 214.
Figura 6 – fotografia de cartaz em manifestação publicada pelo perfil ArTIVISM
Fonte: download de imagem publicada em 12 de janeiro de 2013, sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=194687350675153&set=a.
“Minha saia curta e tudo que está embaixo dela é meu, meu, meu […]” (figura 7).
“Disseram que minha/Saia era de vagabunda/Sentiram no direito de passar/A mão na
minha bunda/Mas que coisa imunda!/Sou livre, sou mulher/Vou lutar de segunda/A segunda”
(figura 8).
“Suas roupas não são um convite! Ninguém deveria cruzar seus limites! Não há
desculpa para o abuso! Uma bela ilustração de Malika Favre. Uma ocasião para lembrar que
aquilo que se esconde ‘embaixo das saias das moças’ é assunto delas e que ninguém tem o
direito de lhes desrespeitar” (figura 9 – tradução nossa); “Sua saia tá muito curta./Sua língua
que tá muito grande” (figura 10).
Uma das imagens mais emblemáticas deste conjunto foi produzida pela estudante
canadense Rosea Posey, que mostra a parte de trás das pernas de uma mulher usando
saia. Uma das pernas está demarcada com os possíveis comprimentos de saia que se pode
usar e os julgamentos que serão atribuídos. O comprimento mais longo, já perto do
tornozelo, é chamado de “matronal”; em seguida vêm “pudica” e “antiquada”; na altura do
joelho é “adequada”; daí para cima os comprimentos levam a pessoa que usa a saia a ser
julgada como “sedutora”, “atrevida”, “provocante”, “está pedindo”, “vadia” e, no comprimento
mais curto, “prostituta” (figura 11 – tradução nossa).
Figura 11 – fotografia Judgements Fonte: download de imagem publicada em 5 de janeiro de 2013 no tumblr (espécie de blog) da autora da
Figura 8 – arte publicada pelo perfil Poesia Ativista
Fonte: download de imagem publicada em 9 de maio de 2013. A autora da arte e do texto, conforme indicado na imagem, é Juliane KR. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?
fotografia, Rosea Posey. A imagem foi amplamente compartilhada em diversas redes sociais. Disponível em: <http://roseaposey.tumblr.com/post/39795409283/judgments>. Acesso em: 6 nov. 2014.
As imagens que apresentamos em seguida trazem a mesma temática de protesto
contra a violência relacionada ao uso de determinado do tipo de roupa. Mas, dessa vez,
foram produzidas e veiculadas em reação aos resultados de uma pesquisa nacional
realizada pelo Ipea – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, sobre “Tolerância social
à violência contra as mulheres” . 84
A pesquisa foi divulgada no dia 28 de março de 2014. Um dos dados mais alarmantes
indicava que 65% dos brasileiros e brasileiras concordavam, ao todo ou em parte, que uma
mulher usando roupas curtas merecia ser atacada. No dia 4 de abril, o Ipea divulgou uma
errata, dizendo que uma troca de gráficos entre duas questões resultou em interpretação
incorreta dos dados. A parcela da população brasileira que concordava com o ataque a
mulheres com pouca roupa não era de 65%, e sim de 26% (um número menos assustador,
mas que ainda assim não justifica o uso da expressão “só 26%”, adotada por certos veículos
da imprensa).
Muitas das imagens e postagens produzidas em protesto à situação indicada pelos
dados da pesquisa vinha acompanhada da hashtag #NãoMereçoSerEstuprada. E apesar de
a pesquisa não se referir especificamente à saia, e sim ao procedimento mais generalizado
de culpabilização da vítima pela roupa que usa, é esta peça que ilustra a “roupa curta”
destinadora da violência, como figura verbal e/ou visual de enunciados publicados no
Facebook (figuras 12, 13, 14 e 15).
INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS. SIPS – Sistema de Indicadores de Percepção 84
Social: Tolerância social à violência contra as mulheres. Relatório de pesquisa. Brasília, 2014. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2014.
Figura 12 – imagem publicada no perfil Não aguento quando
Fonte: download de imagem publicada em 28 de março de 2014, sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/NaoAguentoQuando/
Fonte: download de imagem publicada em 28 de março de 2014, sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=704666709598886&set=a.
Figura 13 – imagem publicada no perfil Levante Popular da Juventude
!54
Figura 14 – imagem publicada no perfil Valesca Popozuda
Fonte: download de imagem publicada em 30 de março de 2014. No texto que acompanha a imagem, a postagem destaca outro dado da pesquisa do Ipea, que diz que 58,5% dos entrevistados concordam com a
frase: "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/150627568320763/photos/a.
Figura 15 – imagem publicada no perfil Camila Neves
Fonte: download de imagem publicada em 1º de abril de 2014, sem informação de autoria. O texto verbal dos cartazes forma o seguinte enunciado: “Nosso uniforme é uma das maiores fantasias sexuais que existem. Suas
cantadas na rua não são elogios e nem aumentam a nossa auto-estima. Você sabe qual é o peso de vesti-lo todo dia? #NãoMrecemosSerEstupradas”. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?
“Proibido de trabalhar de bermuda, homem vai de saia”. O Globo, 4 fev. 2014. Disponível em: <http://89
o g l o b o . g l o b o . c o m / e c o n o m i a / e m p r e g o / p r o i b i d o - d e - t r a b a l h a r - d e - b e r m u d a - h o m e m - v a i - d e -saia-11500233#ixzz3IP4kPlYU>. Acesso em: 7 nov. 2014.
!57
Fonte: imagem digitalizada da edição impressa do jornal Gazeta do Povo do dia 14 de fevereiro de 2014. Se, para os homens, usar saia no ambiente de trabalho é uma forma de protesto
contra as regras que os impedem de vestir roupas mais adequadas ao calor, para as
mulheres é uma opção de vestuário que, aparentemente, não apresenta nenhum risco. Na
verdade, segundo um estudo britânico realizado em 2011, mulheres usando saia no trabalho
têm uma imagem mais confiável e podem receber salários maiores . O motivo seria a 90
combinação entre profissionalismo e atratividade que as mulheres profissionais devem ter. A
interpretação de uma das coordenadoras do estudo é que os resultados contradizem a
noção de que mulheres devem se vestir como homens para ter sucesso no trabalho.
A associação entre a saia e a “atratividade” feminina parece reiterar outros discursos
que sexualizam esta peça de roupa. Sendo assim, de que tipo de saia estamos falando?
Será que o aparente estímulo ao uso da saia no ambiente profissional contradiz as
restrições ao uso da saia em outros espaços?
2.6 A saia no trabalho
Tratamos até agora das situações que poderiam estar levando as mulheres a usar
menos saia. De fato, a saia também não está muito presente em um recente exemplar do
discurso da moda: o guia de estilo A parisiense, com conselhos da ex-modelo Inès de La
Fressange . Nas ilustrações do livro, as figuras usando calça são maioria; das dez ideias 91
para “descombinar” o visual à moda parisiense, três se referem ao uso da calça, três ao
vestido e apenas uma à saia, e especificamente à saia-lápis; entre as dicas para conseguir
um visual “effortless style” (estilo sem esforço), nenhuma menciona a saia. A peça também
não está presente entre os sete clássicos apontados pela autora: blazer, capa de chuva,
suéter azul-marinho, camiseta sem manga, pretinho básico, jeans e jaqueta de couro. Em
todas as fotos que ilustram estes clássicos, exceto aquela referente ao vestido, a roupa na
parte de baixo do corpo é a calça. Quanto aos melhores trajes para cada ocasião – jantar na
cidade, noite romântica, festa black-tie, fim de semana no campo, coquetel –, a saia aparece
apenas como dica do que não usar: uma minissaia supermíni no encontro romântico. Por
fim, um conselho: “Nunca viaje de saia nem de vestido!”. De fato, se observarmos as
mulheres que embarcam em ônibus e aviões, será raro encontrar alguma usando estas
peças. Paradoxalmente, esta é a roupa mais confortável – e até a mais saudável – para
quem vai passar horas sentada. Parece que o destinador desta prescrição é, assim como
em outras, o risco representado pela vulnerabilidade da vestimenta aberta.
“Mulheres que usam saia estão mais propensas a ganhar salário maior, aponta estudo”. UOL, São Paulo, 19 90
LA FRESSANGE, I. de; GACHET, S. A parisiense: o guia de estilo de Inès de La Fressange (trad. Adalgisa 91
Campos da Silva). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.
!58
Um outro guia, desta vez brasileiro e relacionado à elegância no trabalho – A moda no
trabalho, de Inês de Castro –, não restringe o uso da saia, mas aponta uma certa 92
configuração desta peça de roupa que parece trazer elementos plásticos mais relacionados
ao paradigma do masculino. Apesar de as profissões e os ambientes de trabalho serem
muito diversos, e de haver graus diferentes de formalidade e de códigos de vestuário entre
eles, é o modo de se vestir no escritório o que mais recebe atenção quando se fala em
roupa para trabalhar. Nos anúncios que veremos no capítulo 4 e 5, a maioria das mulheres
profissionais é representada neste tipo de ambiente, exceto quando o anúncio pretende
mostrar um segmento específico de empresa – hospital, mineradora, concessionária de
rodovias – e a mulher ali presentificada não é um simulacro da consumidora do produto, e
sim um elemento metonímico da organização. Por exemplo, quando a empresa quer mostrar
que é socialmente responsável em termos de diversidade e igualdade de gênero.
Voltando ao guia de estilo no trabalho, o capítulo inicial trata das roupas mais
adequadas para o uso no escritório. A primeira dica da seção sobre saias e vestidos já traz
uma restrição geral à saia: “as calças são mais confortáveis para trabalhar, mas se você
adora saias, escolha os modelos retos, logo acima do joelho. Se for usar saltos, as meias
são parceiras indispensáveis” . O conforto, assim como nas viagens, parece estar mais 93
relacionado ao risco da vestimenta aberta do que à sensação de liberdade corporal. Já o
“modelo reto” sugere uma verticalidade que se opõe à horizontalidade das saias mais
amplas, que “abrem” a partir do quadril.
Outras restrições às saias e vestidos, neste item, podem ser resumidas nestes
conselhos: saias e vestidos curtos e vestidos esvoaçantes são proibidos; saias muito longas
são desconfortáveis; saias indianas não combinam com o visual bem-comportado e
executivo; saias justas são perigosas, mesmo na altura do joelho; vestidos podem
envelhecer, deixar muito sensual ou muito chique, exceto os chemisier – que, na verdade,
são longas camisas de botão, e camisa é originalmente uma peça do guarda-roupa
masculino.
Quanto às saias mais adequadas para uma entrevista de emprego, da mesma forma
como no item anterior, a primeira dica traz um proibição geral: “[saias] são permitidas desde
que obedeçam rigidamente a regra dos quatro dedos acima do joelho – no máximo. Isso se
você é alta e tem pernas bem torneadas” . Outras restrições vêm acompanhadas das 94
palavras “perigosas” (saias com fendas) e “arriscadas” (saias retas e afuniladas), e referem-
se ao potencial sexualizador da peça. Também inadequadas são as seguintes
CASTRO, I de. A moda no trabalho. São Paulo: Editora Panda, 2002.92
CASTRO, 2002, p. 16.93
CASTRo, 2002, p. 25.94
!59
configurações: modelos florais e fluidos demais sugerem “ar desatento, sonhador,
romântico”; modelos com pregas sugerem “ar colegial, quase infantil”.
De forma geral, mesmo nos discursos do cotidiano percebe-se que a mulher opta pela
saia como uma exceção na composição do seu vestuário profissional, e não como regra.
Usar este tipo de roupa ou o vestido é como “fazer cosplay de mulherzinha”, conforme
enunciado ilustrado na figura 17, o que, por oposição, coloca a calça como roupa mais
aceitável ou comum no trabalho. Ao usar noções como a de “fantasia” (cosplay é o ato de se
fantasiar de personagens de desenho animado) e de “mulherzinha”, inadvertidamente a
autora do comentário retoma a divisão no vestuário masculino e feminino do século XIX e a
concepção sobre a valoração de cada um dos gêneros figurativizada pela roupa – com a
mulher e seu traje sendo disfóricos.
Figura 17 – enunciado sobre saia e vestido como peças para se fantasiar de mulher
Fonte: impressão de tela de status do Facebook postado em 16 de outubro de 2014 e compartilhado em modo privado. A autora é uma jovem publicitária e trabalha em uma universidade pública.
2.7 Os diferentes tipos de saia e a expressão plástica do feminino
Apesar de todas as restrições ao uso da saia no trabalho, veremos que, no corpus de
nossa pesquisa (cf. capítulo 4), considerando os papéis sociais femininos identificados, a
saia é proporcionalmente mais frequente nos papéis profissionais, especialmente os
exercidos no escritório (ressalva-se que, de forma geral, a saia é minoria). Neste contexto,
os modelos têm corte mais reto (as profissionais do meio artístico, ao contrário, vestem
modelos mais amplos e ondulados), reiterando os conselhos de Inês de Castro (mas vão na
contramão deles em relação ao grau de ajustamento e de delineamento da silhueta). O corte
mais reto sugere a valorização de uma linha vertical, enquanto outros modelos acentuam a
horizontalidade.
De acordo com Kathia Castilho, podemos entender a verticalidade e a horizontalidade
como figuras topológicas nos enunciados do corpo e da roupa, que por sua vez recobrem os
temas da masculinidade e da feminilidade. A plástica da moda, ao considerar a articulação
entre roupa e corpo,
!60
induz um fazer-ver a sexualidade desses corpos. Nessa leitura, a
sexualidade seria um termo complexo, que se desmembra em duas categorias ou pólos extremos, o masculino e o feminino, que estabelecem entre si uma relação de contrariedade recíproca. 95
Como já vimos, a roupa sempre teve um papel importante na construção do parecer
de cada gênero. Ainda segundo a autora, a moda atua de maneira a manter os traços
distintivos de cada categoria. “No corpo feminino, ela [a moda] marca a presença constante
da linha horizontal […]; quanto ao masculino, “[…] parece-nos que a moda se ocupa em
recuperar a verticalidade” . Coqueline Courrèges, companheira e sócia do estilista André 96
Courrèges, que levou a minissaia para a alta costura francesa, tem bem esta noção da
horizontalidade como figura do feminino. Ela conta que, sobre o macacão colante que
costumava usar no final dos anos 1960, colocava uma faixa de tecido de modo a cobrir o
entremeio de pernas: “apenas uma faixa, mas importante, que dava quase o signo da
feminilidade” . E até mesmo na capa do livro de Bard (figura 18) as linhas horizontais são 97
predominantes: além daquelas que demarcam o corpo vestido da moça, como a barra da
saia, o elástico das meias, a parte do sapato sobre o peito dos pés, a forma da bolsa, temos
também as linhas horizontais na parede que serve de fundo para a fotografia. Já a alça da
CASTILHO, K. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009, 2. ed., p. 68.95
CASTILHO, 2009, p. 189.96
Entrevista de Coqueline Courrèges apresentada em LANG, B.; SCHRAML, T.; ELSTER, L. La minigonna: la 97
rivoluzione, gli stilisti, le icone (trad. Emanuela Damiani). Vercelli, Itália: Edizioni White Star, 2011, p. 97. Tradução nossa para: “[…] una striscia però importante, che dava quasi il segno della femminilità”.
Figura 7 – ilustração publicada pelo perfil Em Piro
Fonte: download de imagem publicada em 18 de janeiro de 2013. Não há indicação da autoria da arte, mas o texto que preenche as pernas da figura feminina é de Eve Ensler, autora da peça Os monólogos da vagina. O
texto pode ser lido na epígrafe deste trabalho. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10100143642456494&set=a.788664338514.2244009.33300569&type=1&theater>. Acesso em: 6 nov.
2014.
!61
bolsa forma um triângulo, que Coqueline Courrèges, na mesma entrevista mencionada
acima, reconhece como figura-símbolo da feminilidade expressa nas portas de banheiros.
Figura 18 – capa do livro Ce que soulève la jupe
Figura 9 – postagem do perfil SLUTWALK FRANCE 2011 - SEXISM IS A SOCIAL DISEASE
Fonte: impressão de tela de postagem publicada em 11 de dezembro de 2013. A autora da ilustração, conforme indicado na postagem, é Malika Favre. Disponível em: <https://www.facebook.com/
Figura 10 – ilustração publicada pelo perfil Mulheres nos Quadrinhos
Fonte: download de imagem publicada em 18 de janeiro de 2014. A autora do quadrinho é a cartunista mineira Bianca, que publica seus trabalhos na fan page intitulada Anna Bolena – A perturbada da corte. Neste
exemplo é interessante observar, conforme já mostramos antes, uma constrição ao uso da roupa pelas mulheres partindo de outra mulher. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?
Fonte: imagem obtida por meio de digitalização da capa do livro.
Na composição do paradigma de cada gênero, além da verticalidade e da
horizontalidade, poderíamos acrescentar outros elementos. Na marcante diferenciação dos
trajes de homens e mulheres no século XIX – cujos efeitos se mantêm até hoje –, a
sobriedade da roupa masculina foi acompanhada pelos chamados “exageros” na roupa
feminina. Por sobriedade entende-se cores escuras e neutras, ausência de adornos, tecidos
planos e estruturados; os exageros, por sua vez, se materializavam em cores vivas,
estampas, babados, adornos de todos os tipos, tecidos moles e vaporosos. Havia, ainda,
uma grande diferença de silhueta: ajustada para os homens, ampla para as mulheres. Logo
após a Segunda Guerra Mundial, quando há um resgate da “feminilidade” e dos papéis
domésticos da mulher, a silhueta verticalizada e ajustada da roupa feminina das décadas
anteriores volta a ser ampla e horizontalizada.
Considerando estes elementos e retomando a oposição básica entre calça e saia
como figuras mais emblemáticas de cada tema, poderíamos entender a composição
genérica da masculinidade e da feminilidade, no que se refere à roupa, como uma
combinação de figuras de conteúdo (calça e saia) e de expressão (elementos plásticos),
conforme a figura 19.
Figura 19 – Composição figurativa dos temas da masculinidade e feminilidade
!63
Fonte: produção da autora.
Assim como a calça feminina se diferencia da masculina por certos elementos
plásticos, propomos que existem certas saias mais “masculinas”. Não no sentido de
passarem a ser usadas por homens (o empréstimo que a mulher fez do guarda-roupa
masculino não teve, ainda, o caminho inverso), mas como saias que parecem ser
consideradas mais adequadas em situações onde as características do masculino são
valorizadas, como o ambiente do trabalho. Podemos perceber isso ao comparar os
discursos sobre as roupas mais adequadas para mulheres profissionais que vimos antes e
os modelos mais comuns de saia (figura 20).
De maneira geral, a saia, em oposição à calça, exponencia a horizontalidade, como
observa Castilho . Alguns modelos o fazem de maneira mais acentuada, especialmente as 98
de corte mais amplo e formas mais volumosas, como a evasê ou A, enviesada, balonê,
minissaia, e godê; outras figuras plásticas do feminino, como as ondulações e a as dobras,
estão presentes nas saias plissada, enviesada, balonê, maxissaia e godê; as saias mais
amplas e que formam ondulações sugerem o uso de tecidos mais leves e “moles”, que as
fazem balançar ou rodar de acordo com o movimento do corpo.
masculino calça
feminino saia
vertical sóbrio estreito pesado
cores neutras liso
“limpo” reto
contínuo
horizontal exagerado
amplo leve
cores chamativas estampado
com adornos ondulado
descontínuo
saia não-feminino
calça não-masculino
CASTILHO, 2009, p. 171.98
!64
Figura 20 – Modelos mais comuns de saia
Fonte: download de imagem publicada no blog Costurando com amor em 23 de abril de 2014, sem referência de autoria ou origem da imagem. Disponível em: <http://costurandoamor.blogspot.com.br/2014/04/tipos-de-
saia.html>. Acesso em: 8 nov. 2014.
Em oposição, as saias reta e lápis são mais verticalizadas e estruturadas. A saia
envelope também, mas a abertura frontal já oferece uma liberdade um pouco maior de
movimento. Esta seria uma saia intermediária entre os dois grupos, assim como a tulipa,
que é ajustada às pernas, mas um pouco ampliada no quadril, o que a deixa um pouco mais
“horizontal” nesta parte do corpo.
Comparando estes modelos com as prescrições do manual de Inês de Castro, vemos
que as saias mais adequadas – superando-se a restrição mais geral que é feita à peça –
são aquelas com uma plasticidade associada ao masculino. Saias que, considerando o
quadrado apresentado antes, colocaríamos na posição não-feminina. No entanto, tais saias
podem ser chamadas de sexies, como de fato elas são em muitos enunciados, e a
sensualidade é constantemente colocada como atributo da feminilidade.
As saias mais inadequadas, por outro lado, são aquelas que possuem uma
configuração plástica do feminino, sendo, portanto, saias femininas. Em última instância,
saias que reforçam o tema da feminilidade, constituído por figuras como “florais”, “fluidos”,
!65
“pregas”. A feminilidade expressa por estas figuras, por sua vez, é associada a qualificativos
disfóricos no ambiente de trabalho, como a sedução, a desatenção, o ar sonhador ou
romântico, o ar colegial e infantil. Lembramos ainda que são estes os modelos de saias que
ilustram o logotipo do movimento Ni putes ni soumises, que reivindica o direito ao exercício
e à manifestação da feminilidade, e a publicidade sobre a programação de TV comemorativa
ao aniversário do movimento, que aponta os riscos de se usar saia (figuras 2a e 2b).
As saias retas e lápis são apontadas pelo manual como sendo mais “confortáveis”. No
entanto, se pensarmos nas constrições corporais relacionadas ao uso desta peça, veremos
que as saias mais amplas e leves permitem maior liberdade de movimento das pernas; não
“sobem” quando a mulher senta; podem ser colocadas no entremeio das pernas para
escondê-lo, se a mulher decidir sentar com as pernas abertas; se ajustam às pernas
cruzadas. Saias retas e lápis, por outro lado, exigem pernas sempre unidas, que não podem
ser abertas e nem cruzadas. Também não facilitam o caminhar nem o subir escadas. E
enquanto as saias mais amplas e leves acompanham naturalmente a linha do corpo
feminino, as saias mais ajustadas marcam e delineiam. Ainda que Castro recomende que
estas saias não sejam muito justas, veremos que é precisamente nesta configuração que
elas aparecerão nos anúncios publicitários.
2.8 A base dos discursos intolerantes
Defendemos antes que a separação do corpo feminino vestido em dois sintagmas,
tronco e pernas, e o uso da saia e depois da calça, opera um fazer-assumir a sexualidade
da mulher, por muito tempo um mistério e uma ameaça do ponto de vista masculino.
Quando a mulher usa saia e, ainda por cima, “saias femininas”, assume não apenas a sua
sexualidade, mas uma sexualidade feminina e uma valoração do feminino.
Contemporaneamente, tal sexualidade tem escapado cada vez mais ao controle masculino,
o que é relativamente novo na História. Nos ambientes em que os valores da masculinidade
ainda predominam, como o mundo do trabalho e o espaço público – resquícios, ainda, da
ideologia das esferas separadas do século XIX –, a feminilidade aceita é aquela adequada
ao ponto de vista masculino. No trabalho, em termos de roupas, seria o uso de calças
(originalmente masculina) e de saias plasticamente “masculinizadas”, segundo nossa
proposta de organização vista na figura 19; as saias “femininas” são consideradas
inadequadas. No espaço público da rua – onde, em teoria, o indivíduo pode exercer a
liberdade –, a saia por si só tem sido vista como “inadequada”.
Conforme aponta Castilho, ao efetuar o programa narrativo da construção do parecer
pelo vestir-se, o sujeito pode se colocar em conjunção ou disjunção com os elementos da
plástica da moda, aproximando-se ou distanciando-se dos qualificativos requeridos para
!66
atuar no papel social que assume . A disjunção com as roupas adequadas e o consequente 99
distanciamento dos simulacros dos papéis sociais “femininos” podem causar, como vimos,
algumas interações arriscadas.
De acordo com certos relatos, a saia parece ser uma roupa aceitável quando a mulher
está em espaços mais controlados ou, principalmente, quando no está no papel social da
“namorada” (“Para o homem, uma mulher que veste minissaia é um troféu”, diz a estilista
Barbara Hulanicki ). Subentende-se aí um controle da sexualidade feminina pelo homem, 100
que é acompanhado por um fazer-proteger esta mulher. A mulher de saia sozinha na rua
assume que sua sexualidade – já que a saia é vista como peça “sexual” – é independente
do masculino. A saia é disjunta do papel social da mulher sozinha, pois ainda existe rejeição
em se aceitar a autonomia sexual da mulher. Outro aspecto é que a mulher de saia na rua
parece não aceitar um certo percurso manipulatório da intimidação, que prescreve a
necessidade de esconder sua sexualidade para não sofrer violência – já que não está com
um homem que a proteja.
De fato, o sociólogo Anthony Giddens atribui à falha do controle sexual exercido pelos
homens sobre as mulheres o atual grande fluxo de violência de gênero . A crescente 101
liberdade sexual da mulher – e, em oposição, a crescente perda de controle por parte dos
homens – está relacionada a fatores como a separação entre o sexo e a reprodução,
conquista da independência financeira, facilidade do divórcio. Tal situação possibilita a
emergência do que Giddens chama de “amor confluente”, diferente do amor romântico do
século XIX. No amor confluente, todos têm oportunidade de se tornar sexualmente
realizados; cai por terra a categorização das mulheres entre “respeitáveis” e aquelas
marginalizadas por um exercício da sexualidade em não-conformidade aos padrões
atribuídos ao gênero . A partir do momento em que a mulher conquista sua autonomia 102
sexual, deixa de cumprir um percurso narrativo que Giddens chama de cumplicidade
feminina, em que a mulher é objeto, mas não sujeito do desejo sexual . Uma das 103
consequências disso, para o sociólogo, é o exercício da violência como forma de controle
sexual. Antes, tal controle era garantido pelos direitos de propriedade. Nas sociedades
modernas, no entanto,
as coisas são muito diferentes. As mulheres vivem e trabalham em ambientes públicos anônimos com muito mais frequência do que antes, e as
CASTILHO, 2009, p. 182.99
Entrevista com Barbara Hulanicki apresentada em LANG, B.; SCHRAML, T.; ELSTER, L.; 2011, p. 120. 100
Tradução nossa para: “E poi per l’uomo una donna che indossa la minigonna è un trofeo”.
GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas 101
(trad. Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993, p. 11.
GIDDENS, 1993, p. 74.102
GIDDENS, 1993, p. 134.103
!67
divisões “isoladas e desiguais” que separavam os sexos foram substancialmente desfeitas. Faz mais sentido hoje em dia do que no passado a suposição de que a violência sexual masculina tornou-se a base do controle sexual. Em outras palavras, atualmente, grande parte da violência sexual masculina provém mais da insegurança e dos desajustamentos do que de uma continuação ininterrupta do domínio patriarcal. A violência é uma reação destrutiva ao declínio da cumplicidade feminina. [grifo nosso] 104
Sendo a violência praticada pelo homem uma reação à insegurança que sente ao
perder o controle sexual sobre a mulher – ou seja, ao constatar que a mulher não cumpre
mais o papel actancial esperado no percurso narrativo das relações homem x mulher que
ele sanciona como moralmente positivo –, podemos entender este tipo de caso como uma
das manifestações do discurso da intolerância modelizado por Diana Luz Pessoa de Barros.
Em seu estado inicial, o sujeito confia que vai conseguir certos valores por meio de um outro
sujeito. Ao perceber que o outro não fará ou até impedirá que ele obtenha tais valores, o
sujeito sofrerá decepção, frustração, desespero e, por fim, insegurança. Disjunto dos valores
e em crise de confiança, o sujeito busca resolver sua falta e fazer mal ao outro que é
“culpado” por este desenlace. Esta malevolência, segundo Barros, “parece ser o caminho
para que as coisas sejam postas em seus ‘devidos lugares’, mesmo que a falta primeira não
se resolva com isso” . 105
Acreditamos que tal percurso acontece não apenas nos discursos, mas também nas
práticas de violência contra a mulher. Especificamente no aspecto que aqui abordamos, o
papel actancial que a mulher não cumpre – que é o de objeto semiótico, mas também
sexual, considerando a proposição da não-cumplicidade de Giddens –, é figurativizado pelo
uso da saia fora de algumas prescrições de ocasião, local e companhia. Pois a saia, como
afirma Bard, é símbolo da liberdade vestimentar e sexual conquistada pela mulher com a
laicização da sociedade . Liberdade parcialmente conquistada, talvez. Como bem 106
observam Lang, Schraml e Elster sobre a minissaia,
depois de terem lutado para conseguir a liberdade das pernas na moda, as mulheres conheceram também os prejuízos de descobri-las. A luta pela minissaia é a luta das mulheres pelo controle do próprio corpo, e que portanto concerne também ao sexo. 107
A consolidação da igualdade social de gênero passa, então, pela aceitação da
GIDDENS, 1993, p. 138.104
BARROS, Diana Luz Pessoa de. A construção discursiva dos discursos intolerantes. In.: BARROS, Diana Luz 105
Pessoa de (Org.). Preconceito e intolerância: reflexões linguístico-discursivas. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011, p. 259.
BARD, 2010a, p. 92.106
LANG et al., 2011, p. 158. Tradução nossa para: “Ma dopo aver lottato per ottenere la libertà delle gambe 107
nella moda, le donne conobbero anche gli svantaggi dello scoprirsi. La lotta per la minigonna è la lotta delle donne per il controllo del proprio corpo, e quindi riguarda anche il sesso.”
!68
autonomia da sexualidade feminina e do jeito – não apenas vestimentar, mas de
comportamento, atitudes, processos decisórios – feminino de operar em espaços ainda
regulados por uma lógica masculina, como o do trabalho. Para Giddens, esse tipo de
mudança na esfera pública poderia ser uma ramificação de mudanças na esfera pessoal
que já vêm acontecendo. A emancipação sexual, segundo o sociólogo, tem levado a um
processo de democratização radical da vida pessoal , entendida como uma equalização 108
do poder no relacionamento e o estabelecimento de limites, prerrogativas e
responsabilidades. Um processo em que as mulheres vêm desempenhando o papel
principal, mas com benefícios na esfera privada e na esfera pública abertos a todos.
Bard também acredita que as reivindicações femininas oferecem, na verdade,
benefícios que se estendem à organização social de uma maneira geral. Como já vimos, o
uso da vestimenta aberta provoca uma sensação de vulnerabilidade, em que o medo de que
alguém veja o que a saia esconde é um prelúdio do medo da violação. Bard se pergunta se
a consciência da vulnerabilidade feminina – e, portanto, da vulnerabilidade humana –, não
seria uma das condições para um modo de vida mais atento aos outros. A saia poderia levar
todos, homens e mulheres, a valorizar mais as qualidades e funções ditas femininas e,
especialmente, a generalizar sua prática entre os dois sexos . 109
Parece que estamos falando de empatia, da capacidade de se colocar no lugar do
outro, e isso se percebe quando alguns homens decidem usar a vestimenta aberta. Certa
vez, ouvimos um rapaz contando sobre o dia em que usou um kilt e o receio automático que
passou a ter de sentar de pernas abertas – o tipo de constrição que raramente os homens
experimentam. Já na época do “saiaço” que promovemos na faculdade curitibana, um dos
alunos relatou assim o seu uso da saia:
Foi a primeira vez que usei saia e foi bem direfente, pois não tinha nada agarra na perna, me senti bem feliz com a iniciativa e claro de participar, ter coragem ahah […] de uma forma bem direta, a sensação foi incrível, pois "tudo" ficou livre haah sem contar a questão do refresco não esquenta, rolava um ventinho haaha nas pernas ajuda bastante no calor ahusa 110
Quando vestem saia, os homens experimentam tanto o prazer estésico proporcionado
pela vestimenta aberta quanto as constrições e prescrições do seu uso. É o tipo de
consciência de si e do outro que tanto Bard quanto Giddens acreditam que pode ajudar a
construir uma sociedade melhor. Um fato que já vem acontecendo, ainda que
paulatinamente, e que não combina com os papéis sociais e com a “guerra dos sexos” que
GIDDENS, 1993, p. 200.108
BARD, 2010a, p. 163.109
Depoimento do aluno Diogo Andreatta, via chat do Facebook, no dia 17 de outubro de 2014. Mantivemos a 110
escrita conforme digitado pelo autor.
!69
alguns produtos midiáticos parecem insistir em promover. Podemos ver um exemplo disso
no estudo de José Luiz Aidar Prado sobre a construção da realidade operada pela revista
Veja . Uma realidade baseada na busca pelo sucesso que, por sua vez, implica um vencer 111
a concorrência. Uma das capas de Veja citadas no estudo tem como tema a “vitória” das
mulheres sobre os homens, figurativizada pelo enunciado “Elas venceram”. O enunciador
revista coloca-se fora do enunciado, tratando a mulher como um “Outro” (paradoxalmente,
“revista” é substantivo feminino, e nos referimos a ela como “a Veja”) e reforçando o
discurso da disputa de gênero.
Normalmente, tais discursos não tratam das questões mais essenciais e relevantes
que envolvem os conflitos entre masculino e feminino. Eles abordam simulacros de disputas
cuja reiteração pouco contribui para a construção de uma relação social harmônica entre os
gêneros, e que muitas vezes pouco têm a ver com as negociações bem-sucedidas que já
acontecem na esfera dos relacionamentos.
A publicidade também costuma operar desta forma, a exemplo de uma campanha dos
produtos Bombril veiculada em 2011. Sob o tema “mulheres evoluídas” e com três versões
de comerciais de TV, cada um protagonizado por uma comediante vestida de terno e
gravata, a campanha baseava-se na desqualificação dos homens, tratando-os como infantis,
bobos, porcos, irresponsáveis ou efeminados, para destacar as qualidades do produto . 112
Ao observar que o senso comum caracterizava o comercial como “feminista”, percebe-
se o quanto a luta pela autonomia e pela igualdade de direitos por parte das mulheres é
vista como um ataque aos homens e, consequentemente, o quanto esta “guerra dos sexos”
é estimulada, tornando muito distante a percepção de que as mudanças reivindicadas pelas
mulheres se revertem em benefícios para a sociedade como um todo. Se nos perguntarmos
a quais interesses servem estas estratégias discursivas midiáticas, que insistem em dar
visibilidade à oposição estereotipada ao mesmo tempo em que não reconhecem as práticas
e os discursos de conciliação, talvez encontremos uma resposta bem plausível nesta fala de
Giddens:
Um mundo social em que a realização emocional substituísse a maximização do crescimento econômico seria muito diferente daquele que conhecemos hoje. As mudanças que atualmente afetam a sexualidade são, na verdade, revolucionárias e muito profundas. 113
Quanto à saia, entendemos que os aspectos que desenvolvemos neste capítulo não
são os únicos relacionados a esta roupa, mas são os que chamam a atenção para os seus
PRADO, José Luiz Aidar. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo: Educ; 111
Fapesp, 2013, p. 110.
BAGGIO, A. T. Bombril: a marca que não evoluiu com as mulheres. Digestivo Cultural, 10 mai. 2011. 112
D i s p o n í v e l e m : < h t t p : / / w w w . d i g e s t i v o c u l t u r a l . c o m / c o l u n i s t a s / c o l u n a . a s p ?codigo=3326&titulo=Bombril:_a_marca_que_nao_evoluiu_com_as_mulheres>. Acesso em: 10 nov. 2014.
GIDDENS, 1993, p. 11.113
!70
modos e condições de uso na contemporaneidade. Por conta disso, justificam uma pesquisa
centrada nesta peça. Queremos saber até que ponto tais aspectos se articulam, se
confrontam ou se reiteram nos anúncios publicitários que analisamos nos capítulos 4 e 5, e
cujo processo de seleção descrevemos no capítulo seguinte.
!71
3 AS REVISTAS E OS ANÚNCIOS
O discurso da pesquisa é apanhado em sua própria contradição. Para poder dizer o que
busca, ser-lhe-ia preciso já o ter encontrado. Se fosse esse o caso, porém, só lhe restaria calar-
se, exceto se se tornasse outro, didático, por exemplo, ou, por que não, promocional.
Inversamente, se ele fala, e até, se não pára de falar, é porque seu próprio fim, em parte,
continua escapar-lhe. E, é claro, ao buscá-lo, ele está se buscando.
Eric Landowski 1
Um dos pontos específicos da Semiótica enquanto metodologia de pesquisa é o
caráter não necessariamente quantitativo da representatividade do corpus de investigação.
A. J. Greimas e J. Courtés, no Dicionário de Semiótica, apontam que ao lado da
amostragem estatística, um outro meio para se obter um corpus representativo é a partir da
saturação do modelo. Tal modelo é “construído a partir de um segmento intuitivamente
escolhido e aplicado ulteriormente, para confirmação, complemento ou rejeição, a outros
segmentos, até o esgotamento da informação […]” . Jean-Marie Floch, por exemplo, baseia-2
se em um conjunto de publicidades de automóveis para propor os quatro tipos de
valorização do produto nas práticas de consumo – prática e utópica, crítica e lúdica . Estas 3
categorias e suas características estão consolidadas e são extensamente utilizadas até hoje
nos estudos semióticos. Ou seja, o modelo de Floch parece ter alcançado o nível de
saturação que sanciona a pertinência e a representatividade do corpus escolhido para a sua
proposta, sem que fosse necessário haver no texto publicado uma discriminação dos
critérios usados para a seleção da sua amostra.
Apesar da validade, pertinência e até da tradição deste procedimento nas pesquisas
semióticas, alguns fatores relacionados aos nossos objetivos de investigação direcionaram
uma primeira constituição da amostra baseada em outros critérios, especialmente
quantitativos. Nossa amostra inicial não foi definida por cálculos estatísticos, mas buscamos
estabelecer parâmetros quantitativos oriundos de outros estudos semióticos. Encontramos
estes parâmetros em um trabalho de Eric Landowski que, assim como o nosso, tem por
! LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002, 1p. IX.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008, entrada “Corpus”, p. 105.2
FLOCH, J-M. Sémiotique, marketing et communication: sous les signes, les stratégies. Paris: PUF, 1990, p. 3
130-131.
!72
objeto a publicidade. Trata-se do “Encenação publicitária de algumas relações sociais”,
integrante de A sociedade refletida . Neste estudo, o que particularmente interessa a 4
Landowski é como a publicidade coloca em cena os tipos de relações que o anunciante
pretende estabelecer com seu público-alvo ou com uma opinião pública, a partir de uma
valorização de si mesmo. Para responder a esse objetivo, o autor se debruça sobre um
conjunto de anúncios veiculados durante um ano nas principais publicações impressas
francesas, cotidianas e semanais. Tal conjunto é formado por cerca de 200 a 300 anúncios,
assinados por empresas de seis setores econômicos.
Parece que, para Landowski, a representatividade da amostra constitui um importante
dever-fazer no percurso narrativo deste trabalho. Dificilmente o autor conseguiria analisar
aspectos da publicidade institucional como prática social se fosse preciso considerar toda a
publicidade institucional produzida no mundo, no ocidente, ou mesmo na França. Portanto,
apoia-se numa amostra e, para fazer-crer que as conclusões obtidas a partir de tal conjunto
podem ser consideradas como formulações gerais sobre a figuração de certas relações
sociais na publicidade, especifica que o material foi “recolhido e fornecido por um dos
grandes institutos parisienses de publicidade e sondagens – o que, de certa forma, garante
sua representatividade” . “Grande”, “parisiense” e especialista nos assuntos (em publicidade 5
e sondagens) são figuras que o enunciador escolhe para tematizar a credibilidade do
instituto e, por extensão, para tornar crível que a amostra fornecida é representativa.
Voltando à nossa pesquisa: quando iniciamos o processo de constituição do corpus
desta tese, refletimos sobre os critérios que poderíamos utilizar de modo a formar um
conjunto pertinente. Dentre os diversos suportes de veiculação da mensagem publicitária, já
havíamos optado pela revista. Faltava definir os títulos, período de coleta dos anúncios e a
quantidade de exemplares. Os critérios apresentados em “Encenação publicitária […]” nos
serviram de guia para essa decisão, por haver uma certa correspondência entre os objetos e
objetivos de investigação: a publicidade, o veículo impresso (revista) e a busca pela
compreensão das práticas sociais presentificadas no discurso publicitário.
Assim, a partir das características do corpus da pesquisa realizada por Landowski –
anúncios veiculados em 1984 (período de um ano) nos principais diários e semanários da
França (cobertura nacional) – definimos os primeiros critérios para seleção do nosso:
também o período de um ano e a seleção das principais revistas brasileiras, de circulação
nacional e de diferentes periodicidades. Consideramos ainda a quantidade da amostra – de
200 a 300 anúncios – como um parâmetro para o mínimo de unidades constitutivas de um
texto pertinente à análise semiótica. Nos próximos itens deste capítulo descrevemos o
LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: 4
Educ/Pontes, 1992.
LANDOWSKI, 1992, p. 104.5
!73
percurso que seguimos para a seleção dos exemplares e, ao final, delimitamos o conjunto
de anúncios que constituem o texto significante para a análise semiótica.
3.1 A seleção das revistas
Um aspecto essencial da pesquisa é a roupa usada pelas figuras femininas na
publicidade das revistas, especificamente a saia. Durante as primeiras discussões do projeto
de tese (com colegas, professores e outros interlocutores), foi comum haver a interpretação
de que se tratava de uma investigação sobre a publicidade de moda, em virtude do
destaque que damos à vestimenta. Na lógica desta interpretação, esperava-se que
trabalhássemos exclusivamente com revistas de moda, ou com “revistas femininas”, ou
apenas com anúncios de roupas, sapatos e afins. Nosso foco, porém, não é a “publicidade
de moda”, e sim a investigação sobre a construção de papéis sociais femininos por meio da
roupa. Portanto, foi preciso buscar títulos diversos no conteúdo e no público-alvo, e por
consequência e hipoteticamente, com mulheres em diferentes papéis sociais nas
publicidades veiculadas nestes títulos.
A informação sobre circulação e abrangência de periódicos brasileiros é auditada pelo
IVC - Instituto Verificador de Circulação. Os dados são passados pelos veículos associados
ao Instituto, verificados e sancionados por ele e depois enviados aos anunciantes, agências
e outras entidades, que se servem de tais informações para elaboração de suas estratégias
de marketing e comunicação. O IVC classifica as revistas brasileiras em 37 categorias:
artistas, modelos, celebridades, visto o destaque que esse tipo de publicação geralmente dá
às pessoas cujo papel social está baseado no corpo.
As figuras femininas do conteúdo editorial não são nosso foco, mas o conteúdo
editorial é destinador do público-alvo da revista e também de suas publicidades, levando a
uma provável reiteração dos papéis em um e outra.
3.1.1 Veja, Exame e Claudia: perfil dos títulos selecionados e de seus leitores
Definidas as categorias de revistas, fomos em busca de títulos de diferentes
periodicidades e com grande circulação (gráfico 1). Na categoria “Atualidades” optamos pela
semanal Veja, a revista de maior circulação do Brasil. Em “Finanças”, escolhemos a 7
Exame, quinzenal, a de maior circulação em seu segmento. Representando a categoria 8
“Feminina”, ficamos com Claudia, mensal. O título é o de maior circulação não apenas na 9
sua categoria, mas também entre as revistas mensais brasileiras. Todas são publicadas pela
Abril, a maior editora de revistas do Brasil e da América Latina. Os dados são de 2011, ano
em que iniciamos a seleção dos títulos para a pesquisa. Quanto à média de leitores por
edição, enquanto Exame e Claudia, mais segmentadas, possuem um índice similar, um
mesmo exemplar de Veja é lido por bem mais gente.
Quanto ao perfil do público (gráfico 2), as mulheres são a grande maioria entre os
leitores de Claudia e, por poucos pontos percentuais, também entre os de Veja. Os leitores
de Exame são principalmente homens e também os mais jovens, com maioria na faixa de 25
a 34 anos. Veja e Claudia possuem grande parcela de leitores na faixa de 35 a 44 anos e
acima de 50 anos. De maneira geral, Claudia tem o público com maior faixa etária.
Dados de circulação de Veja, Época e Isto É, respectivamente primeira, segunda e terceira colocadas entre as 7
revistas semanais de atualidades auditadas pelo IVC: 1.074.563, 398.628 e 329.997 exemplares (média de circulação dos meses de janeiro a dezembro de 2011, ano em que os títulos foram selecionadas para a pesquisa). Fonte: dados do IVC divulgados no site da ANER – Associação Nacional de Editores de Revistas. Disponível em: http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/. Acesso em: 21 jul. 2014.
Dados de circulação de Exame, Época Negócios e IstoÉ Dinheiro, respectivamente primeira, segunda e terceira 8
colocadas entre as revistas quinzenais de finanças auditadas pelo IVC: 142 mil exemplares, 64 mil e 47 mil. Fonte: dados do IVC de novembro de 2012 divulgados no mídia kit da revista Exame. Disponível em:http://www.publiabril.com.br/marcas/exame/revista/informacoes-gerais. Acesso em: 3 ago. 2013. Em 2011, ano de seleção dos títulos para pesquisa, a circulação média de Exame era de 160 mil exemplares, também conforme dados do IVC divulgados no item “Informações gerais” da revista no site PubliAbril. Disponível em: http://www.publiabril.com.br/marcas/exame/revista/informacoes-gerais. Acesso em: 12 jun. 2011.
Dados de circulação de Claudia, feminina, primeira colocada entre as revistas mensais auditadas pelo IVC: 9
405.943 exemplares. Para efeito comparativo, o segundo lugar na categoria feminina/mensal é da revista Nova, com circulação de 230.822 exemplares (média de circulação nos meses de janeiro a dezembro de 2011, ano em que os títulos foram selecionadas para a pesquisa). Fonte: dados do IVC divulgados no site da ANER. Disponível em: http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/. Acesso em: 21 jul. 2014.
!75
Gráfico 1 – Dados de circulação por edição, número de leitores por edição e média de leitores por edição das revistas Veja, Exame e Claudia – 2011
Fonte: ver tabela 1 – Apêndice A. Produção da autora.
Gráfico 2 – Sexo e faixa etária dos leitores, por revista (%) – 2011
Fonte: ver tabela 2 – Apêndice A. Produção da autora.
Os aspectos socioeconômicos e de distribuição geográfica dos leitores estão
figurativizados no gráfico 3. A classe B é maioria, representando por volta de 50% do público
nas três revistas. Exame é a que tem mais leitores de classe A e Claudia, a que tem mais
leitores na classe C. Todas as revistas têm a maior parte de seus leitores na região Sudeste,
sendo que a participação desta região é menor entre o público de Claudia.
Apesar da predominância da mesma classe socioeconômica e região entre os leitores,
há uma diversidade de perfil de público nos outros critérios. Somando a quantidade de
leitores de cada publicação, temos um total aproximado de 11,254 milhões de indivíduos
(sem levar em conta as sobreposições) para os quais as marcas vão se dirigir. Assim,
combinando o número de leitores das três revistas e as diferenças de perfil das revistas e do
público, parece-nos que um conjunto de anúncios oriundos dessas publicações apresenta
uma abrangência e uma diversidade que contribuem para a representatividade da amostra.
10
100
1000
10000
Veja Exame Claudia
Leitores por exemplar (média) Circulação (mil exemplares) Leitores (mil exemplares)
Gráfico 3 – Classe socioeconômica e região de domicílio dos leitores, por revista (%) – 2011
Fonte: ver tabela 2 – Apêndice A. Produção da autora.
A consulta aos títulos ocorreu entre agosto de 2011 e julho de 2012. Dentro deste
período coletamos todas as edições normais das publicações, formando um conjunto de 87
revistas: 52 exemplares de Veja, 23 de Exame e 12 de Claudia (ver tabelas 3 e 4 – Apêndice
A). Em muitas edições, as revistas são acompanhadas por suplementos ou edições
especiais, a exemplo do Veja Comer & Beber (guia de bares, restaurantes e outros
estabelecimentos alimentícios, veiculados regionalmente). Estas publicações não foram
consideradas. No caso de Exame, o especial Exames Melhores e Maiores foi veiculado em
substituição a uma edição normal e não foi considerado no corpus.
Na etapa inicial de observação das publicações, surgiram algumas questões
relacionadas à caracterização do anúncio publicitário e aos diferentes graus de visibilidade
das roupas vestidas pelas mulheres ali figuradas. Para responder estas questões, foi
necessário estabelecer critérios de seleção dos exemplares constituintes do corpus
semiótico. Especificamente para esta tarefa, utilizamos o método de análise de conteúdo,
que também auxiliou a verificar a relevância do corpus em seu aspecto quantitativo.
Entendemos este método como uma sequência de programas narrativos de uso a nos
fornecer certas competências para a aquisição do valor de base, que é a representatividade
do corpus semiótico.
3.2 Operações de análise de conteúdo quantitativa
O Dizionario dei metodi qualitativi nelle scienze umane e sociali define análise de
conteúdo como o “método por meio do qual se procura tornar explícito o sentido contido em
um documento e/ou o modo pelo qual tal documento pode ser transformado a fim de
25
50
75
100
A B C D N NE SE S CO
8
20
56
1333
31
48
177
17
62
1231
15
56
28
915
58
1443
24
49
23
Veja Exame Claudia
!77
oferecer um significado” [grifos nossos]. Servimo-nos da segunda funcionalidade para 10
estabelecer os critérios de transformação do conjunto de anúncios em um texto pertinente
para a análise semiótica. O Dizionario aponta ainda que “o pesquisador deve ter em conta
fatores diversos, como a escolha de palavras do locutor, a frequência de ocorrência de
certos termos, o aparato e o ritmo do discurso” . 11
Dentro deste conceito, a análise de conteúdo parece ser exclusiva dos signos
verbais de um texto. Ampliando um pouco o alcance, João Carlos Correia inclui a imagem –
um signo não-verbal – como um dos possíveis fenômenos ou ocorrências cuja frequência de
aparição em um texto pode ser quantificada . Quanto à matéria-prima da análise de 12
conteúdo, Roque Moraes diz que
pode constituir-se de qualquer material oriundo de comunicação verbal ou não-verbal, como cartas, cartazes, jornais, revistas, informes, livros, relatos auto-biográficos, discos, gravações, entrevistas, diários pessoais, filmes, fotografias, vídeos, etc. 13
No nosso caso, em termos de frequência, buscamos saber quais são e quantas
vezes aparecem nos anúncios as figuras humanas e as roupas usadas pelas figuras
femininas; tivemos a revista, mais especificamente suas publicidades, como matéria-prima,
e as fotografias e ilustrações como fenômenos a serem contados. Portanto, nossa análise
de conteúdo se deu por métodos quantitativos e extensivos que, na explicação de 14
Mucchielli, “se baseiam na análise de um amplo número de ‘informações sumárias’, pelas
quais a informação de base é dada a partir da frequência com a qual algumas
características do conteúdo se representam no discurso ”. 15
A análise de conteúdo foi destinada por duas questões bastante específicas: quantos
anúncios com a presença de mulheres vestindo saia conseguimos obter no levantamento
MUCCHIELLI, Alex (Org.). Dizionario dei metodi qualitativi nelle scienze umane e sociali (trad. Cesare 10
Caterisano). Roma: Edizioni Borla, 1999, p. 56. Tradução nossa para: “metodo attraverso cui si cerca di rendere esplicito il senso contenuto in un documento e/o il modo in cui tale documento può essere transformato al fine di offrire un significato”.
MUCCHIELLI, 1999, p. 56. Tradução nossa para: “il ricercatore deve tenere conto di diversi fattori quali le 11
parole prescelte dal locutore, la frequenza con cui ricorrono certi termini, l’apparato e l’andamento del discorso”.
CORREIA, João Carlos. O admirável mundo das notícias: teorias e métodos. Covilhã: UBI/LabCom, 2011, p. 12
Em oposição, os métodos qualitativos são intensivos, “porque se fundam sobre a análise de um grupo restrito 14
de informações aprofundadas e precisas” [tradução nossa para: “poichè si fondano sull’analisi di un gruppo ristretto di informazioni approfondite e precise”] (MUCCHIELLI, 1999, p. 57), e servem para captar o “sentido simbólico” (MORAES, 1999, p. 2) de um texto.
MUCCHIELLI, 1999, p. 57. Tradução nossa para: “ossia si fondano sull’analisi di un ampio numero di 15
‘informazioni sommarie’, per cui l’informazione di base è data dalla frequenza con la quale alcune caratteristiche del contenuto si ripresentano nel discorso”.
!78
das publicidades das revistas e se essa quantidade é suficiente para se constituir um corpus
relevante para a análise semiótica, dentro dos parâmetros já estabelecidos.
3.2.1 Etapas de tratamento do corpus
Moraes concebe a análise de conteúdo como constituída de cinco etapas : a) 16
preparação das informações, b) unitarização ou transformação do conteúdo em unidades, c)
categorização ou classificação das unidades em categorias, d) descrição e e) interpretação.
A primeira etapa envolve identificar as amostras, decidindo quais efetivamente estão
de acordo com os objetivos da pesquisa, e iniciar o processo de codificação dos materiais.
Considerando os aspectos do nosso objetivo, definimos como exemplo de amostra
adequada, em um primeiro momento, o anúncio que mostrasse pessoas (a categoria maior
da qual faz parte a figura “mulher”) expressas em fotografia ou ilustração. Por ser importante
perceber a relação entre a ocorrência de figuras masculinas e femininas nos anúncios, não
iniciamos a classificação pela busca exclusivamente da figura feminina.
Nessa primeira observação, nos deparamos com exemplares que mostram apenas
parte do corpo humano (mãos, por exemplo – figura 1a) e esses decidimos desconsiderar.
Mantivemos aqueles que mostram apenas a cabeça ou o rosto (figura 1b), por ser um
importante elemento de identidade e permitir comparar a presença de homens e mulheres
nas publicidades. Também excluímos os anúncios com figuras humanas dispostas em uma
multidão ou massa indistinta (figura 1c), que não permitem ou dificultam a visualização das
unidades de análise estabelecidas. Outro critério de adequação referiu-se ao tamanho do
MORAES, 1999.16
Figuras 1a, 1b, 1c e 1d – anúncios que exemplificam os critérios do corte de “adequação” na etapa de preparação da amostra de anúncios publicitários
Respectivamente: anúncio que apresenta parte do corpo (Veja, edição de 3/8/2011); anúncio em que a parte do corpo é a cabeça (Veja, edição de 3/8/2011); anúncio com multidão (Veja, edição de 12/10/2011); anúncio
com formato inferior a uma página (Veja, edição de 3/8/2011). Fonte: as revistas.
!79
anúncio. Deixamos de lado exemplares com formato menor que uma página, por não
apresentar de maneira significativa (em termos de visibilidade) o que desejamos investigar
(figura 1d). Chamaremos esse primeiro corte de “adequação”.
Continuando o processo de preparação da amostra, o conjunto obtido na fase de
“adequação” sofreu outros cortes, sendo o primeiro deles a exclusão dos exemplares que
não atendem ao simulacro do anúncio publicitário. Os meios de comunicação podem
veicular diferentes tipos de materiais publicitários. Nos impressos, como jornais e revistas,
existem os anúncios propriamente ditos; os encartes, que se distinguem da revista (ou do
jornal) por uma materialização diversa, como um papel mais encorpado ou de outra textura;
os conteúdos de comunicação paga apresentados em forma e linguagem semelhantes
àquelas do conteúdo editorial, chamados de informe publicitário ou publieditorial etc.
No publieditorial (figura 2a), a presença de elementos plásticos e figurativos que
remetem à forma e à linguagem do conteúdo editorial sugerem que, nesse tipo de
configuração, a publicidade opera na ordem do sigilo: apesar de ser, ela tenta fazer o
destinatário crer que aquele conteúdo não é um produto publicitário (não-ser),
possivelmente para adquirir uma certa credibilidade, que não possui enquanto discurso de
um enunciador que fala bem de si mesmo e, portanto, acaba recaindo num conflito de
interesses. Justamente por conta desse “disfarce”, o anúncio perde algumas das
características que devemos levar em conta ao tratar de uma semiótica da publicidade.
Muitas vezes, aliás, tais conteúdos nem são produzidos por agências ou profissionais de
propaganda, e sim por equipes da própria revista ou por empresas e profissionais de
relações públicas, orientados para essa disciplina. Assim, trabalhamos apenas com
anúncios publicitários explicitamente caracterizados como tal, cujo simulacro já é conhecido
e reconhecido pelo destinatário, e que se encaixam na posição do ser e parecer publicidade.
Outros anúncios eliminados foram os que divulgam revistas usando as capas das
publicações como elemento principal (figura 2b). Por mais que haja uma produção de
sentido importante na escolha das capas que ilustram os anúncios, é um tipo de enunciado
que também foge dos mecanismos mais característicos da linguagem publicitária, pois o
destaque na expressão é a capa da publicação – que manifesta uma outra linguagem. Já os
anúncios elaborados para “vender” a revista conceitualmente (figura 2c) foram mantidos.
O último grupo excluído foi o de anúncios que promovem novelas, filmes e seriados
por meio da apresentação dos personagens (figura 2d), pois mostram uma construção do
papel social no contexto das narrativas, e não no contexto social que investigamos.
Mantivemos, no entanto, os anúncios de produtos de entretenimento, como programas de
televisão, em que as pessoas retratadas (apresentadores, jornalistas) são elas mesmas, e
não personagens ficcionais. A este 2º corte demos o nome de “caracterização publicitária”.
!80
Seguindo as etapas propostas por Moraes, o passo seguinte foi a unitarização,
também chamada de transformação dos conteúdos em unidades. Consiste em definir as
unidades de análise ou de registro, identificar estas unidades nos materiais, isolá-las, e
definir as unidades de contexto. A unidade de contexto é de onde se retiram as unidades de
análise. No nosso caso, são os anúncios. Já as nossas unidades de análise são a figura
humana (em fotografia ou ilustração) e a roupa usada pela figura feminina. Depois de
definidas, estas unidades foram identificadas nos anúncios.
Para lidar adequadamente com o conjunto inicial de anúncios, começamos o trabalho
pela revista Veja. Já tínhamos definidas as categorias referentes às figuras humanas
(mulher adulta, homem adulto, criança/adolescente). As categorias de roupas foram se
formando a partir da identificação de cada tipo de peça que aparecia nos anúncios. As
outras revistas foram analisadas depois de já estabelecidos esses critérios.
Esta etapa de unitarização é intimamente ligada à de categorização que, segundo
Moraes, “é um procedimento de agrupar dados considerando a parte comum existente entre
eles. Classifica-se por semelhança ou analogia, segundo critérios previamente
estabelecidos ou definidos no processo” . E, ainda: 17
o processo de categorização deve ser entendido em sua essência como um processo de redução de dados. As categorias representam o resultado de um esforço de síntese de uma comunicação, destacando neste processo seus aspectos mais importantes. 18
Em nosso processo de categorização, realizamos algumas operações de
agrupamento para reduzir os dados a uma quantidade que atendesse aos objetivos de
MORAES, 1999, p. 6.17
OLABUENAGA; ISPIZÚA apud MORAES, 1999, p. 6.18
Figuras 2a, 2b, 2c e 2d – amostras que exemplificam os critérios do corte de “caracterização publicitária” na etapa de preparação da amostra de anúncios
Respectivamente: publieditorial (Claudia, edição de julho de 2012); anúncio divulgando revista com a capa da publicação como elemento principal (Veja, edição de 18/7/2012); anúncio com divulgação conceitual da
revista (Veja, edição de 18/4/2011); anúncio de produto de dramaturgia com personagem (Veja, edição de 1/2/2012). Fonte: as edições das revistas (ver tabelas 3 e 4 – Apêndice A).
!81
pesquisa e fosse viável analisar. Quanto à presença de figuras humanas nos anúncios, além
das categorias que se referem a anúncios com a presença de apenas “mulher”, apenas
“homem” ou apenas “criança/adolescente”, também estabelecemos categorias para
contemplar diferentes combinações de presenças dessas figuras: “mulher e homem”;
“mulher, homem e criança/adolescente”; “mulher e criança/adolescente”; “homem e criança/
adolescente”. A categoria “criança e adolescente” é um exemplo de agrupamento de dados,
visto que não é relevante para nós distinguir o gênero de não-adultos.
Quanto às roupas, as categorias iniciais foram definidas com base no senso comum
que se tem sobre sua denominação. Visto que nosso foco de investigação é o uso da saia,
as categorias se referem às peças usadas na parte de baixo do corpo (saia, calça, shorts,
bermuda), ou quando são inteiriças (vestido, macacão, maiô, biquini).
Na descrição, a quarta etapa da análise de conteúdo, as categorias e as frequências
de ocorrência das unidades são apresentadas em tabelas e gráficos. A última etapa
compreende a interpretação. No nosso trabalho, fizemos uma interpretação dos dados
quantitativos. Tais interpretações, como já alertamos, não pretendem responder as questões
essenciais da pesquisa. O resultado que nos interessa é a verificação da relevância do
corpus semiótico, em termos de representatividade. Estas duas últimas etapas são
apresentadas mais adiante.
3.3 Categorização: simulacro de gênero e aspectualização do corpo vestido
Voltamos à etapa de categorização e dedicamos a ela uma seção específica para
abordar alguns aspectos que nos parecem relevantes. Em sua explanação sobre os passos
da análise de conteúdo, Correia assim discorre sobre esta etapa:
Uma questão particularmente sensível é a busca de categorias de análise mutuamente exclusivas que exigem por vezes uma conceptualização exaustiva com recurso a dicionários, literatura especializada, pré-testes e o próprio senso comum. É preciso especificar com precisão estes conceitos estabelecendo indicadores (presença ou ausência de certas características), dimensões (proporção ou extensão de certas características) e atributos (natureza de certas características como sejam curto/longo, masculino/feminino). 19
Deparamo-nos com esse desafio da conceptualização justamente ao categorizar as
figuras humanas como “mulher” ou “homem”. Tal denominação encerra uma problemática
centrada nas questões de sexo e gênero e os elementos que caracterizam cada uma
dessas “categorias”. Segundo Judith Butler, mesmo que se considere que há uma
estabilidade do sexo binário – homem x mulher –,
CORREIA, 2011, p. 68.19
!82
não decorre daí que a construção de ‘homens’ aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo ‘mulheres’ interprete somente corpos femininos. [...] Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. [grifos da 20
autora]
Esta situação apareceu no levantamento dos anúncios. Uma das publicidades
mostrava o cartunista Laerte usando maquiagem e roupas comumente associadas ao jeito 21
de se vestir “feminino”, problematizando sua classificação nas categorias pré-determinadas
de “homem” e “mulher”.
Tal anúncio foi excluído do corpus por se encaixar no estilo publieditorial. Sua
ausência do conjunto, no entanto, não tira a relevância de se abordar sob quais critérios
definimos as categorias de sexo/gênero. Neste caso, nos apoiamos no conceito semiótico
de simulacro que, no dizer de Ana Claudia de Oliveira, é o “modelo de um modo de estar
que dá visibilidade ao sujeito no social e que [...] pode ser tomado como uma das
manifestações primeiras da construção identitária dos sujeitos no social ”. Ao falar em 22
“homem” ou “mulher”, em “masculino” ou “feminino”, estamos nos referindo a modelos
construídos social e culturalmente, cujas características são identificadas de maneira mais
ou menos uniforme pelos integrantes desta sociedade. Tal parecer é construído por traços
que vão da constituição corporal ao arranjo vestimentar. Assim, uma figura humana que se
parece com a ideia que temos de mulher foi classificada como “mulher”.
A dimensão das unidades de análise também representou uma problemática na
categorização. Não se considerou a dimensão eidética ou topológica da figura humana, que
podem ser marcas de sua importância no contexto do enunciado. Um anúncio com uma
figura masculina em destaque e uma figura feminina com pouca participação visual, como
aconteceu em Exame, foi categorizado como “mulher e homem”. O resultado final pode
mostrar uma grande presença feminina nas publicidades desta revista, ainda que muitas
vezes a mulher esteja em posição subalterna (por exemplo: secretária, telefonista etc.).
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (trad. Renato Aguiar). Rio de 20
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 1ª ed, p. 24-25.
Laerte Coutinho nasceu com o sexo biológico associado ao papel sexual “homem” e em 2004 iniciou o 21
processo de adequação de gênero. Passou a aparecer publicamente usando roupas e acessórios que figurativizam o gênero feminino, não como um homem que deseja ser mulher, mas como um homem que gosta de se vestir como mulher. Também mantinha um relacionamento heterossexual, o que ajudou a publicizar o debate sobre os equívocos que permeiam os conceitos de sexo, gênero e orientação sexual. Em recente entrevista, a cartunista (referir-se a Laerte no feminino é respeitar o gênero que manifesta) assumiu a orientação homossexual e o desejo de submeter-se a procedimentos corporais de adequação de gênero, como o implante de seios, conforme entrevista concedida ao site iGay. Disponível em: <http://igay.ig.com.br/2014-03-11/laerte-gostaria-de-nao-ter-renegado-minha-homossexualidade-por-40-anos.html>. Acesso em: 25 jul. 2014.
OLIVEIRA, A. C. de. Nas interações corpo e moda, os discursos da aparência. In: XIV Colóquio do Centro de 22
Pesquisas Sociossemióticas - Caderno de Discussão. São Paulo: Edições CPS, 2008, v. 1, p. 1-43, CD-ROM, p. 10.
!83
Quanto à categorização dos anúncios com base nas roupas usadas pelas mulheres,
levamos em conta os diferentes tipos de aspectualização da figura humana, manifestados
pelo enquadramento fotográfico. Alguns permitem a visualização completa da vestimenta,
outros apenas uma parte, e há ainda os que quase não mostram nada. Para realizar esta
classificação, poderíamos nos basear nos tipos de enquadramento já consolidados pela
fotografia e pelo cinema. Esta classificação, porém, não contempla uma situação: às vezes
temos uma mulher em plano americano, o que permitiria a visualização da parte de baixo da
sua vestimenta. Mas se ela estiver atrás de algum outro objeto, ou atrás de outra figura
humana, não conseguiremos identificar sua roupa com clareza. Mesmo que possamos
“adivinhar” a roupa, acreditamos que não serviria como elemento significante, visto que
buscamos a produção de sentido na relação da vestimenta com o corpo. E se parte
importante do corpo não é visível, não teremos o necessário para a análise.
Considerando, então, que a aspectualização do corpo vestido é uma das marcas da
enunciação, podemos dizer que cada grau de visibilidade da roupa no corpo corresponde a
uma modalização do destinador-enunciador, no sentido de um fazer-ver a vestimenta
presente no anúncio, levando a uma sistematização dos regimes de visibilidade da roupa no
corpo da figura feminina, conforme ilustra a figura 3.
A roupa que aparece por completo figurativiza uma intenção do enunciador fazer-ver.
Adotando um termo usado por Eric Landowski, podemos dizer que neste caso a vestimenta
é “exibida” pelo enunciador. 23
Em oposição, ao fazer o enunciatário não-ver a roupa, o enunciador opta por deixá-la
“escondida”. Entre essas situações, existem mais duas. A primeira é aquela em que a roupa
é mostrada quase por inteiro, ou quase claramente, em que não há um fazer não ver.
Porém, não se pode dizer que ela seja exibida totalmente. Essa posição denominamos
como “sugerida”. Por último, aquela em que a roupa é exibida claramente, mas o corpo é
mostrado apenas parcialmente. Assim, o que se vê da roupa é apenas o que veste a parte
do corpo presente no anúncio. Como nesses exemplares o corpo vestido é cortado, seja
pelos limites do anúncio, seja por outras figuras, a essa posição chamamos de “suprimida”.
LANDOWSKI, 1992, p. 100. O fazer ver e o fazer saber são modalizações que Landowski trata na penúltima 23
seção de “Jogos ópticos”, ao mostrar a necessidade de considerar a forma como cada sujeito administra suas condições de visibilidade na interação com o outro. Nessas condições, o “ser visto” e o “ver” deixam de ser relações escópicas para se tornarem manobras cognitivas, da ordem de um fazer saber/fazer crer. Esse fazer ver, no entanto, é reflexivo – se fazer ver – sendo diferente, portanto, do fazer o enunciatário ver operado no caso dos anúncios publicitários. Outra ressalva que fazemos é em relação ao empréstimo do termo “exibida”. Para Landowski, o seu oposto seria o “dissimulada”. Em nossa opinião, porém, tal termo sugere uma intenção mais suave do que o desejo explícito de fazer não ver. Por isso, optamos, nesta posição, pelo termo “escondida”.
!84
Figura 3 – representação gráfica do regime de visibilidade da roupa no corpo nos anúncios com presença de figuras femininas
Fonte: revista Veja. Anúncios onde a roupa é exibida (edição de 7/3/2012), escondida (edição de 7/12/2011), sugerida (edição de 7/12/2011) e suprimida (edição de 9/11/2011). Produção da autora.
Definidos os tipos de aspectualização, cada um deles foi adotado como uma categoria
para classificar os anúncios. Os anúncios com a presença de mulheres em mais de um tipo
de aspectualização foram categorizados pela mais “visível”. Os anúncios em que a roupa é
“exibida” passaram para outra categorização: aquela baseada no tipo de roupa usada pelas
figuras femininas. Por fim, deste último grupo, foram selecionados para o corpus semiótico
os anúncios que apresentam mulheres com saia, vestido ou calça.
Tratamos na seção seguinte das duas últimas fases da análise de conteúdo: a
descrição e a interpretação. Optamos por apresentar os dados das três revistas
simultaneamente, nos mesmos gráficos. Desta forma, podemos avaliar tanto as informações
referentes a cada publicação quanto estabelecer comparações entre elas.
fazer ver: a roupa é exibida
!
não fazer ver: a roupa é suprimida
!
fazer não ver: a roupa é escondida
!
não fazer não ver: a roupa é sugerida
!
!85
3.4 Constituição do corpus semiótico
Relembrando, dentre as revistas publicadas de agosto de 2011 e julho de 2012,
selecionamos para o estudo 52 edições normais da revista Veja, 23 da Exame e 12 da
Claudia. Após a adequação da amostra, obtivemos 1279 anúncios de Veja, 736 de Exame e
664 de Claudia, totalizando 2679 exemplares. Apesar de Claudia possuir a menor
participação quantitativa no conjunto das edições e dos anúncios, na média destes anúncios
por edição a proporção se inverte: esta revista apresentou a maior quantidade de
exemplares adequados, ou seja, com a presença da figura humana. Exame ocupa o
segundo lugar nesta relação, antes de Veja, mesmo sendo uma revista dirigida a um público
empresarial, o que poderia sugerir anúncios elaborados sem tanta preocupação com a
apresentação de um simulacro do destinatário-consumidor (gráfico 4).
Gráfico 4 – Participação das edições de cada revista no conjunto total das edições; participação dos anúncios adequados de cada revista no conjunto total de anúncios adequados; média de anúncios
adequados por edição de cada revista
Fonte: tabela 5 – Apêndice A. Produção da autora.
Após o segundo corte, de “caracterização publicitária”, restaram 1186 exemplares de
Veja (92,73% dos anúncios da etapa de adequação da amostra), 690 de Exame (93,75%) e
631 de Claudia (95,03%) – ver tabela 5 do Apêndice A. Nesta fase, classificamos os
anúncios por tipo de figuras humanas e por combinações de figuras humanas que
apresentaram (gráfico 5).
Em relação aos anúncios com presença exclusiva da figura feminina, há uma
predominância deles em Claudia. Já os que possuem a presença exclusiva da figura
masculina são predominantes em Exame e em Veja. Comparando a relação entre anúncios
só com mulheres e anúncios só com homens, a proporção reitera aquela do público-alvo
das revistas (cf. gráfico 2 em 3.1.1): em Veja, participação parecida de mulheres e homens;
em Exame, grande maioria de homens, em Claudia, grande maioria de mulheres.
0
15
30
45
60
Veja Exame Claudia
Média de anúncios com figuras humanas por edição de cada revistaParticipação das edições da revista no total das edições (%)Participação dos anúncios da revista no total dos anúncios adequados (%)
saia vestido calça shorts/bermuda lingerieginástica/collant praia sem roupa
Veja
Exame
Claudia
0% 25% 50% 75% 100%
23%
14%
12%
33%
59%
44%
7%
2%
8%
38%
25%
37%
Exibida Sugerida Suprimida Escondida
!88
exemplares que se repetiram em mais de uma edição da mesma revista. No entanto, para a
constituição do corpus (recorte “corpus”), esta exclusão foi feita. Mantivemos apenas um
exemplar de cada anúncio por revista.
Gráfico 8 – Participação dos anúncios mantidos em cada etapa de corte no total de anúncios da adequação da amostra (%)
Fonte: tabela 9 – Apêndice A. Produção da autora.
O gráfico 8 mostra a relação entre o conjunto de anúncios de cada corte e o conjunto
inicial – aquele obtido na adequação da amostra – nas três revistas. Dos 1279 anúncios
iniciais de Veja, permanecem 171 após o último corte (13%). Dos 736 iniciais de Exame,
permanecem 68 (9%). E dos 664 iniciais de Claudia, ficam 114 (17%). No total, então, o
corpus é formado por 353 anúncios, número superior ao parâmetro de 200 a 300
exemplares que adotamos como amostra significativa.
Veja
1º corte: caracterização da publicidade Exame
Claudia
Veja
2º corte: apenas mulher Exame
Claudia
Veja
3º corte: roupa “exibida” Exame
Claudia
Veja
4º corte: saia, vestido e calça Exame
Claudia
Veja
Corpus Exame
Claudia
0% 50% 100%
17%
9%
13%
19%
11%
16%
31%
12%
20%
85%
47%
55%
95%
94%
93%
Anúncios descartados Anúncios mantidos
!89
4 AS ROUPAS E OS PAPÉIS SOCIAIS FEMININOS
Guardiã do corpo segredoso da mulher, a vestimenta, ao mesmo tempo obstáculo e desejo de transgressão, é criadora de um espaço onde
o interdito – como em outros domínios – pode plenamente preencher seu papel de instaurador
do sentido, onde o imaginário pode se exercer livremente e até desenvolver a concepção
ocidental de amor.
Algirdas Julien Greimas 1
Já situamos o anúncio publicitário como um texto privilegiado para se apreender
aspectos das práticas e das relações sociais como as que investigamos neste trabalho.
Concordamos com Édison Gastaldo quando diz que, para isso, é fundamental analisar o uso
social do espaço dentro do mundo dos anúncios:
O modo pelo qual os atores posam em relação uns aos outros, a posição relativa que ocupam na imagem, assim como o cenário onde a ação ocorre podem dizer muito sobre a ‘vida cotidiana’ representada nos anúncios. A representação de um dado cenário como ‘espaço doméstico’, ‘local de trabalho’, ‘espaço público’ ou ‘privado’ fornece pistas sobre o que seria uma percepção ‘ideal’ de cada um desses ambientes no ponto de vista dos produtores dos anúncios. 2
O funcionamento da persuasão publicitária pauta-se fortemente pela identificação
entre o destinatário-consumidor e o sujeito da narrativa que se desenrola no interior do
anúncio. Neste sentido, procura-se atorializar o sujeito como um simulacro do consumidor
no mundo natural, um tipo “ideal”, como diz Gastaldo, que por sua vez também atua em
ambientes “ideais” e usa as roupas “ideias” para o papel social que desempenha. Podemos 3
associar essas roupas “ideais” ao figurino dos atores no teatro. Tal como ocorre no palco,
cada papel que desempenhamos requer uma indumentária que nos auxilie na construção do
parecer que desejamos comunicar ao mundo.
Estes papéis podem ser caracterizados no anúncio publicitário pela função que o
sujeito exerce (figurativizada por um instrumento de trabalho, indicando um papel
profissional), pela presença de outras pessoas (a interação de uma mulher com uma criança
! GREIMAS, A. J. Da imperfeição (pref. e trad. Ana Claudia de Oliveira; apres. Paolo Fabri, Raúl Dorra, Eric 1Landowski). São Paulo: Hacker Editores, 2002, p. 85.
! GASTALDO, E. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto Alegre: Sulina, 2013, p. 232-33.
Na fala de Gastaldo, os termos “espaço” e “ambiente” são utilizados como similares. Aqui já é importante 3
sinalizar uma distinção que detalharemos adiante: aquela entre a noção semiótica de espaço, que não necessariamente se refere ao local onde acontece a narrativa, e o espaço como ambiente, como lugar, como figura.
!90
pode indicar o papel de mãe) ou por um ambiente (uma cozinha sugerindo o papel de dona-
de-casa). Quando um desses elementos caracteriza o papel, poderemos entender também
a roupa vestida pelo sujeito como figura constituinte deste papel. Da mesma forma, quando
uma roupa ajuda a figurativizar um papel (uma roupa sexy, por exemplo), poderemos
relacionar o ambiente e outros elementos com este papel. É este imbricamento que vai
permitir, em muitos dos anúncios que analisamos adiante, a identificação e classificação dos
papéis assumidos pelas mulheres. Ou, melhor dizendo: que o enunciador escolheu para que
fossem assumidos pelas mulheres-sujeito das narrativas dos anúncios.
Assim, se estamos investigando a relação entre a roupa e o papel social, “o vestuário
deve ser observado na sua contextualização em um determinado meio social […] ”. Nos 4
anúncios, este meio (ou o ambiente “ideal”) pode se expressar em diferentes graus de
figuratividade, da mais densa até à quase abstração. No primeiro caso, teremos ambientes
claramente identificados, espaços públicos ou privados, profissionais ou domésticos,
externos ou internos. No segundo caso, sem esta identificação explícita, não haverá
ambiente reconhecível, talvez apenas sugerido ou inferido.
Tal diferenciação impacta tanto no fazer interpretativo de enunciatário-pesquisador – já
que demanda a definição de diferentes critérios para identificação dos papéis em relação ao
ambiente – quanto no fazer persuasivo do enunciador – já que a densidade figurativa implica
diferentes efeitos de realidade e, portanto, diferentes estratégias discursivas. Sendo assim,
a primeira tarefa desta etapa do trabalho consiste no levantamento dos tipos de
representação do espaço nos anúncios publicitários e na proposta de um modelo para sua
classificação.
Os procedimentos adotados neste capítulo têm por objetivo específico operar a
identificação dos papéis sociais em uma grande quantidade de anúncios, explorando
especialmente as reiterações de figuras de roupas e ambientes e demais elementos visuais
e verbais. Para isso, colocamos em suspensão outros aspectos significantes dos
enunciados.
4.1 A figuratividade dos ambientes nos anúncios publicitários
Para tratar do espaço no anúncio publicitário é importante considerar a distinção entre
o espaço de representação, que é determinado pelos limites físicos do próprio suporte, e o
espaço representado na publicidade , como mostra Maria Pia Pozzato. É neste segundo 5
espaço que ocorrem as ações do sujeito, que contribuem tanto para a produção de sentido
CASTILHO, K. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009, p. 37.4
POZZATO, M. P. Semiotica del testo: metodi, autori, esempi. Roma: Carocci, 2004, p. 178.5
!91
do seu papel social quanto para a o reconhecimento das funções que caracterizam e
possibilitam a identificação de um certo tipo de ambiente (sala, cozinha, escritório etc.).
Pode-se distinguir também o espaço narrado do espaço narrante. Enquanto o segundo
situa-se num nível mais abstrato e profundo e trata da espacialidade como dispositivo
estruturante de um texto, o primeiro pertence ao nível mais superficial e manifesta o mundo
sob forma de figuras. Conforme explica Patrizia Magli,
Faz parte do espaço narrado a localização espaço-temporal que tem a função de enquadrar um evento e de servir de fundo à narração. É um sistema englobante, frequentemente estático, que faz parte do revestimento figurativo do texto, como a caracterização somática dos personagens. Sua manifestação consiste em topônimos, em figuras como cidades, paisagens, montanhas, rios, estradas, interiores. Enquanto revestimento figurativo, este tipo de espaço contribui para criar a ilusão referencial. 6
Os conceitos de espaço representado e espaço narrado referem-se à descrição de um
local, à figuratividade de um ambiente, ou seja, a um espaço pragmático, que é diferente do
espaço cognitivo onde se observa a proxêmica. Segundo Greimas e Courtés, a
espacialização pragmática reúne procedimentos de localização espacial – debreagem e
embreagem – “efetuados pelo enunciador para projetar fora de si e aplicar no discurso
enunciado uma organização espacial mais ou menos autônoma, que serve de quadro para a
inscrição dos programas narrativos e de seus encadeamentos” . 7
Tais noções de espaço situam nosso objeto de estudo como sendo o espaço
representado no anúncio, ou seja, a construção figurativa de um ambiente que serve de
fundo para os programas narrativos assumidos por este sujeito e que, dependendo da
quantidade de traços figurativos, poderá produzir um efeito de ilusão referencial, de
reconhecimento do espaço representado como um determinado ambiente do mundo natural.
Em alguns anúncios, porém, tais traços são mais rarefeitos, diminuindo ou excluindo o efeito
de ilusão referencial. Como bem explica Francesco Marsciani, o espaço representado
poderá ter mais ou menos figuras de conteúdo que correspondam a unidades do plano de
expressão da macrossemiótica do mundo natural . Disso dependerá o processo de 8
identificação de simulacros de ambientes ou locais específicos representados nos anúncios.
Greimas aponta que, neste processo de identificação, normalmente alguns
MAGLI, P. Semiotica: teoria, metodo, analisi. Venezia: Marsilio Editori, 2009, p. 164-165. Tradução nossa para: 6
Fa parte dello spazio narrado la localizzazione spazio-temporale che ha il compito di inquadrare un evento e di fare da sfondo alla narrazione. È un sistema inglobante, spesso statico, che fa parte del rivestimento figurativo del testo, come la caratterizzazione somatica dei personaggi. La sua manifestazione consiste in toponimi, in figure come città, paesaggi, monti, fiumi, strade, interni. In quanto rivestimento figurativo, questo tipo di spazio contribuisce a creare l’illusione referenziale.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica (trad. Alceu Dias Lima et al). São Paulo: Contexto, 7
2008, p. 176-177, entrada “Espacialização”.
MARSCIANI, F. Elementi di semiotica generativa: processi e sistemi della significazione. Bologna: Progetto 8
Leonardo/Esculapio, 1991, p. 115.
!92
“esquematismos vagos” já são suficientes para estabelecer a relação de representação
entre figuras visuais e objetos de mundo. Em outras vezes exige-se “reprodução minuciosa
dos detalhes ‘verídicos’” . A diferença entre os “esquematismos vagos” e a “reprodução 9
minuciosa de detalhes” estaria condicionada pelo que já apontamos antes: a quantidade e
pertinência de traços heterogêneos que constituem a figura; em outras palavras, pela
densidade figurativa. Enquanto a reprodução minuciosa de detalhes caracteriza uma maior
densidade, resultando em uma iconicidade, os esquematismos vagos apresentam uma
densidade menor e, portanto, são da ordem de uma figuratividade normal. Nas palavras de
Greimas,
[...] poder-se-ia dizer que uma figura possui uma densidade “normal” ou, por outras palavras, que um formante figurativo é pertinente se o número de traços que reúne é mínimo, isto é, necessário e suficiente para permitir sua interpretação como representante de um objeto do mundo natural. 10
Tomando a figuratividade normal como ponto central num eixo de densidade figurativa
que vai da menor para a maior, à esquerda temos a abstração, “o despojamento das figuras
com a finalidade de tornar mais difícil o procedimento de reconhecimento, não deixando
transparecer [...] senão ‘objetos virtuais’ [...]”; e, à direita, a iconização, que se caracteriza
pela “adjunção e sobrecarga de traços visuais” para atender a um “desejo de fazer-parecido
– de fazer-crer [...]” . 11
Este conceito de ícone não se confunde com aquele da semiótica Peirceana. Greimas
e Courtés tratam a iconicidade em termos de intertextualidade entre semióticas construídas
e semióticas naturais , o que amplia sua operação para além da semiótica visual. Se 12
reconhecemos Londres em um anúncio cujo cenário é icônico, isto se deve, então, não por
uma semelhança preexistente entre dois enunciados – o da cidade, uma semiótica do
mundo natural, e o do anúncio, uma semiótica visual. De fato, já teremos visto Londres (a
partir de seus pontos emblemáticos) em outros textos que a manifestam ou representam,
seja no cinema, na televisão, na literatura, ou mesmo por visitarmos a capital britânica.
Quando há esse tipo de representação, o enunciador conta, para efeito de reconhecimento,
com o “referente imaginário global” da cidade, que já está consolidado pelos “discursos a
respeito da cidade” e “por transposições metassemióticas de toda espécie” . A publicidade 13
não só se utiliza deste referente imaginário como ajuda a constitui-lo.
No hipotético anúncio citado como exemplo, Londres poderia estar representada por
GREIMAS, A. J. Semiótica figurativa e semiótica plástica (trad. Ignacio Assis da Silva). In: OLIVEIRA, A. C. de 9
(Org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker, 2004, p. 80.
GREIMAS, 2004, p. 81.10
GREIMAS, 2004, p. 81.11
GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 250, entrada “Iconicidade”.12
GREIMAS, 1981, p. 139.13
!93
meio de ilustração, pintura, fotografia. As diferentes linguagens e as variações em suas
manifestações produzem maior ou menor grau de intertextualidade com o mundo natural.
Para Greimas e Courtés, quanto mais um texto de uma semiótica construída se parece com
outro de uma semiótica natural, mais se produz a “ilusão referencial” que já mencionamos
antes e que, segundo os autores, “é duplamente condicionada pela concepção
culturalmente variável da ‘realidade’ e pela ideologia realista assumida pelos produtores e
usuários desta ou daquela semiótica . O efeito de sentido de realidade que emerge da 14
iconicidade é, portanto, uma escolha do enunciador para as estratégias do seu fazer
persuasivo. Pozzato ressalta, inclusive, que tal estratégia é típica do contrato de veridicção
proposto pelo destinador publicitário. Uma representação icônica do objeto anunciado
procura mostrar ao destinatário-consumidor que se está dizendo a verdade sobre o
produto . Com base neste princípio, pode-se dizer que ocorre o mesmo quando há, no 15
anúncio, uma representação icônica do sujeito-consumidor e do ambiente onde se
desenrola o seu percurso narrativo.
A ambientação de anúncios publicitários também é problematizada por Eric
Landowski, mais especificamente nos enunciados da propaganda eleitoral. Ao tratar de
novas formas de intersubjetividade e sociabilidade na comunicação política, o autor destaca
dois anúncios que possuem o que chama de cenário legível, “isto é, a imagem de algum
objeto pertinente em relação aos ‘sujeitos’” [grifo do autor]. Estes se diferenciam de outros 16
anúncios cujo plano de fundo não possui nenhum objeto ou quando não se pode determinar
este objeto . No “cenário legível” de Landowski temos, portanto, os efeitos de iconicidade e 17
ilusão referencial apontados antes.
Se o trabalho de Landowski oferece subsídios para tratar de anúncios com ambientes
reconhecíveis – com um “cenário legível” que se pode identificar e determinar –, Pozzato
contribui para a definição do oposto, ao citar um anúncio onde o plano de fundo apresenta
baixa figuratividade. Trata-se da publicidade de uma marca de roupas femininas que a 18
autora descreve para ilustrar o procedimento de análise de semiótica plástica e figurativa:
Se consideramos agora o espaço de representação, veremos que ocupa as páginas inteiras, sem molduras nem outras delimitações. O colorido em azul é uniforme, com exceção da leve sombra de apoio dos pés da modelo, sem
GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 251, entrada “Iconicidade”.14
POZZATO, 2004, p. 178.15
LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: 16
Educ/Pontes, 1992, p. 139.
Landowski chama aqui de “objeto” tanto a bandeira da França, presente em um dos anúncios com cenário 17
legível, quanto a cidade de Paris, presente no outro. Um dos cartazes no qual não se pode determinar o objeto (segundo a classificação do autor) apresenta como cenário o que parece ser uma cidade, mas desfocada, sem “legibilidade”. Destacamos aqui essa diferença porque nos basearemos nela para organizar o corpus.
É um anúncio de página dupla, tendo na esquerda a fotografia de um caramujo de forma espiral e, na direita, 18
uma mulher cuja roupa e movimento corporal também sugerem uma espiralidade.
!94
a qual o significado do gesto mudaria de /dança/ para /voo/ ou /salto/. O fundo é caracterizado então por uma indeterminação quase total que exclui as figuras de qualquer contexto de verossimilhança, para confiá-las a uma dimensão mítica, como costuma acontecer no caso da dança. [grifos da 19
autora]
Greimas e Courtés situam o conceito intracultural de verossimilhança, ligado à
concepção de discurso, como “representação mais ou menos conforme a ‘realidade’
sociocultural”. Ela concerne ao aspecto sintagmático, a um encadeamento estereotipado e
esperado pelo enunciatário. E quando isso acontece, serve de caráter veridictório para a
avaliação dos discursos narrativos de caráter figurativo. Nessa perspectiva, o discurso
verossímil não é apenas uma representação ‘correta’ da realidade sociocultural, mas
também um simulacro montado para fazer parecer verdadeiro, e que se prende, por isso, à
classe dos discursos persuasivos . 20
Assim, o fundo neutro e sua ausência de uma iconicidade que provoca uma ilusão
referencial pode ser marca de uma indiferença (ou não-preocupação) pelo veridictório ou
pela apresentação de um simulacro de ambiente do mundo natural. Cada estratégia
figurativa – iconicidade ou abstração – manifesta, então, uma estratégia discursiva, uma
escolha de fazer persuasivo do enunciador, de um lado baseada no efeito de verdade e, de
outro, sem essa preocupação. Na articulação entre ser e parecer, talvez possamos situar a
primeira na posição da verdade (como o termo já diz) e a segunda na posição do segredo:
figuras que são, mas que não se preocupam tanto em “parecer”.
Estabelecidas estas duas (o)posições, seguimos com outros aspectos que influenciam
a identificação dos papéis sociais, como a interação entre os elementos do espaço
representado ou narrado, tenha ele um cenário legível ou um fundo com pouca ou nenhuma
figuratividade (que chamaremos de “fundo neutro”). A decisão por esta abordagem partiu da
percepção prévia de que, nos anúncios, um ambiente reconhecível não se caracteriza
apenas pela semelhança com o mundo natural. Para explicar melhor: nem sempre é
possível reconhecer e denominar um ambiente em alguns anúncios, mesmo apresentando
um fundo densamente figurativizado. A busca pelas invariâncias se deu, então,
considerando estes dois planos: o fundo (e sua densidade figurativa) e os objetos que
compõem o ambiente (e o contato/proximidade do sujeito com eles) . 21
POZZATO, 2004, p. 184. Tradução nossa para: “Se consideriamo ora la [sic] spazio di rappresentazione, 19
vediamo che occupa le pagine intere, senza cornici né altre delimitazioni. La campitura è uniforme, a parte la leggera ombra dell’appoggio del piede della modella, senza il quale sarebbe cambiato il significato del gesto che da /danza/ sarebbe diventato /volo/ o /salto/. Lo sfondo è caratterizzato dunque da una quasi totale indeterminazione che scorpora le figure da qualsiasi contesto di verosimiglianza per affidarle a una dimensione mitica, come spesso accade nel caso della danza.”
GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 534.20
Evidentemente, um estudo do espaço e das interações que nele ocorrem deve levar em conta todo o 21
enunciado. Conforme dito anteriormente, colocamos os outros aspectos em suspenso, neste momento, porque o objetivo aqui tem a especificidade metodológica de propor uma tipologia de representação do espaço no anúncio publicitário impresso.
!95
Na seção seguinte operamos a classificação e distribuição dos anúncios com base nos
conceitos abordados até agora, propondo uma tipologia de representação do espaço nos
anúncios publicitários. Como bem demonstram os termos utilizados até aqui, as linguagens
do teatro e do cinema são frequentemente apropriadas pela metalinguagem semiótica, e
também é nelas que nos inspiramos para denominar os tipos de representação propostos.
4.2 Tipologia de representação do espaço na publicidade impressa
Grande parte do potencial de reconhecimento de um ambiente está nos
procedimentos de prospectividade. Os efeitos de tridimensionalidade na visualidade planar
do anúncio são construídos a partir da colocação das figuras em planos. Há, entre outros, o
plano de fundo e o plano onde atua o sujeito. Nos ambientes internos dos anúncios com
“cenário legível”, o plano de fundo apresenta janelas, móveis, cortinas, paredes com
quadros – um plano de fundo de alta densidade figurativa (icônica), proporcionando a “ilusão
referencial” de um ambiente do mundo natural. A figura humana está localizada neste
ambiente, interagindo com outras figuras humanas e/ou com objetos que o caracterizam.
Pode estar sentada num sofá, cozinhando no fogão, olhando pela janela.
Nos ambientes externos, também o plano de fundo nos faz reconhecer este local (uma
cidade, o céu onde voam os aviões, a praia, o quintal de casa), bem como a interação das
figuras humanas com ele. Neste grupo, identificamos uma preocupação com a
verossimilhança, um fazer-interpretar tal espaço como sendo um espaço determinado e
nomeável, mesmo que a atuação dos sujeitos não seja verossímil ou que haja uma certa
fantasia na representação desses ambientes. A verossimilhança que caracteriza este
primeiro grupo de anúncios é a relacionada ao reconhecimento e à determinação do
ambiente, à sua figuratividade, e não necessariamente à realidade das ações que se
desenvolvem dentro dele e nem à sua materialidade.
Diremos que, nestes anúncios, a ação se desenrola em um local “real”, no sentido de
ser um local específico, como aqueles que buscam os cineastas para realizar alguma cena.
Quando fazem a filmagem em um ambiente já existente (e não em estúdio), o fazem em
uma locação, justamente pelo efeito de realidade. Emprestamos, pois, o conceito de
“locação” para denominar o primeiro tipo de representação do espaço no anúncio.
Os anúncios do segundo grupo apresentam um plano de fundo com baixíssima
densidade figurativa. Temos aqui a “ausência de contexto”, a “indeterminação quase total”
presente no anúncio analisado por Pozzato que mencionamos antes. Se há figuras do plano
de fundo, limitam-se a cores, formas geométricas ou a elementos gráficos que sugerem
alguma textura. Contribuem pouco, portanto, para a tradução de algum ambiente que possa
ser reconhecido ou nomeado. E quando o fazem, é pela correspondência de figuras de
!96
traços tão mínimos que se confundem com elementos plásticos, como o cromatismo. É a
posição oposta ao primeiro caso, no eixo da iconicidade ou ilusão referencial.
Neste grupo os anúncios podem apresentar outros elementos além das figuras
humanas, mas não são elementos que representam objetos constituintes de algum
ambiente no mundo natural. Quando estes elementos são figuras que traduzem objetos do
mundo, eles estão soltos, sem contato com o sujeito. Os sujeitos parecem estar apenas
sobrepostos ao fundo, mas não integrados em um ambiente. No teatro, o “fundo
indeterminado” seria o espaço cênico vazio, ou palco vazio de cenário. O palco é a base
física para a representação no teatro, o que corresponderia à tela no cinema. Sendo assim,
mantendo a associação com a metalinguagem do cinema, chamaremos este tipo de
representação do espaço como “tela”.
Há um terceiro grupo de anúncios em que a tradução interssemiótica apoia-se em
menos unidades de correspondência. Nestes anúncios, as figuras humanas interagem com
objetos característicos de um ambiente (num plano mais próximo), mas não há um plano de
fundo tão densamente figurativizado a ponto de podermos nomeá-lo (como sala, escritório,
piscina, rua). Pode até haver uma construção de prospectividade, mas o plano de fundo é
neutro. Enquanto nos anúncios do tipo “locação” há uma intenção de que os sujeitos sejam
representados nos espaços onde normalmente se realizam as ações que eles
protagonizam, neste terceiro grupo as marcas dos ambientes diminuem ou desaparecem.
Os sujeitos atuam em um espaço esvaziado, como é o espaço do estúdio fotográfico.
Este espaço, mesmo podendo ser transformado em ambientes reconhecíveis, muitas
vezes é apenas “decorado” com um móvel ou outro objeto com o qual o modelo irá interagir.
Aproveita-se a prospectividade que sugere um espaço tridimensional, mas sem caracterizar
um local específico. Seria uma forma de deixar transparecer o procedimento publicitário, de
assumir que a situação ali exposta é construída, e não um flagrante da vida real, como
outros anúncios pretendem. Este tipo de representação será chamado de “estúdio”.
O último grupo apresenta anúncios que possuem, no plano de fundo, figuras não muito
densas, mas com quantidade de traços suficientes para o reconhecimento como objeto do
mundo natural – o que Greimas chama de figuratividade normal. Porém, não se constrói um
efeito de realidade. Exemplificando: dois destes anúncios (figuras 20b e 20c deste capítulo)
apresentam um plano de fundo com figuras que se parecem com edifícios. O ambiente não
traz mais nenhum outro elemento que faça referência a uma cidade, ou até mesmo a uma
área externa. Nem as figuras humanas interagem com figuras de objetos do mundo natural.
Por sua qualidade matérica e pela diferença de proporção em relação às figuras humanas,
os edifícios parecem ter sido feitos de caixas de papelão (talvez as caixas que acondicionam
os calçados anunciados nesta publicidade). Não parecer haver a preocupação com a ilusão
referencial que caracteriza a figuratividade densa dos espaços do primeiro grupo de
!97
anúncios. Este tipo será chamado de “cenário” . Esta denominação toma por base uma das 22
configurações da cenografia no teatro, que é a utilização de elementos que figurativizem
apenas o suficiente para a identificação de um ambiente. Como exemplo do uso desta
técnica teatral no cinema, pode-se citar o filme Dogville (2003), de Lars von Trier. Os
espaços no filme eram delimitados por faixas brancas desenhadas no chão e pela inserção
de poucos móveis, apenas para caracterizar uma parte da cidade ou o aposento de alguma
casa . 23
Observando a distribuição desta tipologia de representação no quadrado semiótico
(figura 1) e retomando os termos do eixo de figuratividade proposto por Greimas, vemos que
a “locação” e o “cenário” situam-se no eixo vertical da figuratividade, enquanto o “tela” e o
“estúdio” estão no eixo da abstração. Enquanto os termos contraditórios superiores opõem-
se tanto na configuração do ambiente quanto no modo de interação entre sujeito e objetos
do ambiente, nos inferiores há uma alternância entre o termo assumido e o negado: o
cenário tem ambiente mas não tem interação; o estúdio tem interação, mas não tem
ambiente.
Figura 1 – representação gráfica dos tipos de representação do espaço pragmático nos anúncios publicitários
Fonte: produção da autora.
A partir desta tipologia, podemos classificar os anúncios pelo tipo de representação do
Como se pode ver, usamos o termo “cenário” de maneira diferente da que fez Landowski ao falar dos anúncios 22
com “cenários legíveis”. O semioticista usou a expressão não como sobredeterminação de uma posição em uma tipologia, mas apenas como forma de descrever um plano de fundo com alto grau de densidade figurativa. De nossa parte, adotamos o termo “cenário” para sobredeterminar a posição que estabelece relação de implicação com a posição “locação”. Se considerarmos que a nossa “locação” é o “cenário legível”, o termo “cenário” está implicado na expressão usada por Landowski.
Sobre o uso que fez Lars von Trier de elementos do teatro para tratar de questões relativas ao espaço no filme 23
Dogville, ver: FANK, J.; COSTA, J. C. da. Diálogos: teatro e cinema na peça-filme Dogville, de Lars von Trier. Revista de Literatura, História e Memória: Inter-relações entre a literatura e a sociedade, Cascavel, vol. 5, n. 6, p. 25-35, 2009. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/3088>. Acesso em: 20 jan. 2014.
fig
ura
tivi
dad
e
abst
raçã
o
Locação
Plano de fundo densamente figurativo, efeito de realidade na
tradução do ambiente (iconicidade)
Proximidade do sujeito com objetos de um ambiente
Tela
Plano de fundo com baixo grau de figuratividade, sem efeito de realidade na tradução do ambiente (abstração)
Distância do sujeito com objetos do ambiente
Cenário
Plano de fundo medianamente figurativo, pouco efeito de realidade na tradução do
ambiente (figuratividade normal)
Distância do sujeito com objetos do ambiente
Estúdio
Plano de fundo com baixo grau de figuratividade, sem efeito de realidade na tradução do ambiente (abstração)
Proximidade do sujeito com objetos de um ambiente
!98
espaço que apresentam. Os anúncios de cada revista passam por esta classificação. Devido
à importância do ambiente na caracterização de um papel social, haverá procedimentos
diferentes de identificação destes papéis dependendo do grau de figuratividade do espaço
apresentado no anúncio. Os anúncios do grupo “locação”, como já vimos, mostram
explicitamente o ambiente onde se desenrola a narrativa publicitária. Portanto, começamos
por identificar os ambientes. Depois, seguimos para a classificação destes ambientes pelo
regime de visibilidade dos sujeitos neles inseridos, já que os papéis sociais também se
articulam com espaços e situações do público e do privado.
Com a classificação dos papéis operada no corpus “locação”, partimos para a análise
dos anúncios alocados nos outros tipos de representação de espaço em que o ambiente
não é tão claramente identificado. A descoberta de reiterações de roupas ou posturas de
mulheres nos ambientes, ou de móveis e objetos relacionados a ambientes e a certos
papéis sociais, além do texto verbal e da assinatura dos anúncios, são marcas de
identificação dos papéis sociais construídos sem o auxílio da inserção do sujeito em um
simulacro de ambiente correspondente ao mundo natural. Quanto à categorização dos
papéis sociais, tomamos por base a sua discursivização em enunciados da mídia, conforme
explicamos a seguir.
4.3 Papéis sociais femininos: resgate dos discursos do senso comum
O papel que podemos identificar em um anúncio é apenas um dos papéis possíveis
para a mulher. Provavelmente, pelos motivos que já apontamos, será aquele mais afeito ao
senso comum, às “convenções sociais”, à associação com um simulacro de mulher mais
facilmente aceito pela massa de consumidores à qual a publicidade se dirige. Não se
pretende aqui afirmar que estes são os papéis que as mulheres efetivamente assumem.
A caracterização de tais papéis “convencionais” é aprendida desde a infância, a partir
das prescrições sobre quais roupas e cores se pode ou não usar, quais são as dos meninos
e das meninas, e por aí vai. Os produtos midiáticos, como a publicidade e a imprensa, são
bastante pedagógicos neste sentido. E assim como são superficiais e conservadoras as
disposições do senso comum, também o são os papéis sociais que cada roupa ajuda a
figurativizar nesses produtos, sem considerar as complexidades de personalidade e de
atuação social de cada indivíduo.
Esta situação é bem descrita por Kati Caetano em seu estudo sobre a representação
fotográfica das mulheres do Islã na imprensa ocidental, em reportagens que não tratam
especificamente destas mulheres. Caetano aponta que, na mídia, normalmente as mulheres
são agrupadas em diferentes papéis temáticos, que vão da dona-de-casa à mundana, da
intelectual à sedutora. E mesmo
!99
[…] nos raros momentos em que a mulher é retratada em sua totalidade humana, suscetível a ambiguidades, ambivalência e condicionada por estruturas socioeconômicas (nas artes e na literatura, por exemplo), tais representações selecionam ou enfatizam um dos papéis narrativos, do qual é derivada a figurativização de um modelo específico de mulher, com sua maneira de agir, olhar, gesticular ou se posicionar, de se vestir, andar e se arrumar. 24
É bem frequente na imprensa um tratamento convencional, ou do senso comum, dos
papéis sociais femininos, especialmente nos enunciados que abordam “os desafios de ser
mulher na contemporaneidade”. Estes textos costumam elencar os diversos papéis que as
mulheres devem assumir, abordando a dificuldade em conciliá-los. São, na maior parte,
papéis definidos pela relação da mulher com outras pessoas. Quase não se mencionam
atuações da mulher com a sociedade de uma maneira geral, exceto pelo papel
“profissional”. Vejamos alguns exemplos de configuração do sintagma que elenca os
sucedida, bonita, bem humorada e autossuficiente […] ”; 26
- “Hoje as mulheres têm que se dividir entre várias tarefas, ser mãe, esposa, amante,
profissional. Como conciliar todos esses papéis e ainda cumprir bem a missão de mãe? ”; 27
- “A mulher do século XXI vive uma jornada dupla ou às vezes até mais. Ela precisa
ser mãe, mulher, amante, profissional competente e estar sempre linda e disposta para
tudo .” 28
Nota-se que os sintagmas mantêm a mesma ordem de prioridade quanto aos
possíveis papéis femininos, sendo o de mãe na primeira posição, seguido pelo de esposa/
mulher e amante, e com o profissional em terceiro. Interessante observar que o papel de
“amante” fica separado dos demais, de “esposa” e “mãe”, mesmo estando a relação sexual
CAETANO, K. E. The women of Islam: The role of journalistic photography in the (re)production of character-24
type. Brazilian Journalism Research, v. 2, n. 1, semestre 1, 2006, p. 143. Tradução nossa para: “[…] in the rare moments in which a woman is portrayed in her human totality, susceptible to ambiguities, ambivalence, and conditioned by socioeconomic structures (in the arts and in literature, for instance), such representations select or emphasize one of the narrative roles, from which is derived the figurativeness of a specific model of woman, with her manner of acting, looking, gesticulating or positioning, dressing, walking and adorning herself.”
Entrevista com a antropóloga Mirian Goldenberg, publicada na revista Crescer. Disponível em: <http://25
na base dos três (o casamento pode ser anulado se não for “consumado” e a maternidade
só prescinde do sexo quando a fertilização é in vitro). É quase como se o mais importante
para a mulher fosse o aspecto “social” da relação de casal – o ser “esposa” –, ficando o
sexo como um opcional, evidentemente desejável, mas que não afeta o principal e, portanto,
pode eventualmente ser assumido por outra mulher.
A configuração vista nos sintagmas acima se mantém caso se busque mais
exemplares deste tipo de frases sobre papéis femininos. Tal reiteração – que acaba por
constituir um discurso bastante reconhecido sobre a mulher na sociedade – justifica nossa
adoção destes termos para a identificação dos papéis que faremos adiante: “mãe", “esposa”,
“amante”, “profissional”. Haverá outros papéis além desses, que serão nomeados e
justificados no momento em que “emergirem” na análise dos anúncios.
Vale ressaltar que o papel de “esposa” será atribuído quando a mulher estiver
acompanhada de um homem em uma interação que sugira um relacionamento pessoal,
mesmo que não haja marcas de um “casamento”. Justificamos essa decisão pela
importância que tem o parceiro no status social feminino, como vimos pela ordem dos
papéis nos sintagmas. Os enunciados só manifestam uma concepção que é assumida até
mesmo pelas próprias mulheres. Para Anthony Giddens, “ao contrário da maioria dos
homens, a maior parte das mulheres continua a identificar a sua inserção no mundo externo
com o estabelecimento de ligações” , e aqui o autor se refere à perspectiva do casamento. 29
Na sociedade brasileira, isso parece se acentuar: “ter um homem” é tão importante que
chega a se constituir num tipo de capital muito valioso, o “capital marital” , termo proposto 30
pela antropóloga Mirian Goldenberg. E, assim como na economia, o valor de tal “recurso”
está justamente na sua escassez: haveria poucos “homens disponíveis” no mercado. Desta
forma, parece-nos que existe um percurso narrativo de base obrigatório para a mulher, que
é o casamento (formal ou não), o que transforma qualquer interação com o sujeito
masculino em uma virtualização dessa busca, que em alguns anúncios já estará atualizada.
O processo que descrevemos até aqui será realizado com todas as revistas, iniciando
por Veja. Por ordem de quantidade de anúncios neste corpus de análise semiótica, a
segunda revista a ser trabalhada será Claudia, e por último Exame. Para realizar esta etapa,
partimos do conjunto de anúncios resultante da seleção apresentada no capítulo anterior.
Agora, no entanto, trabalharemos apenas com os mais significantes em termos de produção
de sentido, abrindo mão daqueles muito parecidos entre si (variações de formato de um
mesmo anúncio, ou apenas variação de chamada) e dos que não apresentam uma
GIDDENS, A. A transformação da identidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (trad. 29
Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993, p. 64.
GOLDENBERG, M. Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira. Revista Contemporânea, Rio de 30
Janeiro, ed. 18, v. 9, n. 2, 2011. Disponível em: http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_18/contemporanea_n18_06_Mirian_Goldenberg.pdf. Acesso em: 9 set. 2014.
!101
configuração produtiva para os procedimentos analíticos.
4.4 A construção dos papéis sociais em Veja
A tentativa de denominar os ambientes encontra alguma dificuldade quando os
elementos figurativos permitem a descrição do espaço, mas não a sua identificação com
algum ambiente correspondente no mundo natural. O tipo do ambiente, porém, como já
dissemos, influencia no papel social assumido pelos sujeitos, especialmente quanto aos
diferentes graus de visibilidade, o que nos leva a considerar as tipologias deste regime na
classificação dos anúncios de tipo “locação”. Os procedimentos justificados nos anúncios
deste grupo em Veja, depois serão operados nas outras revistas.
Em “Jogos ópticos”, Landowski associa o termo “papéis” aos modos de apresentação
de si, correlatos a uma “segmentação espaço-temporal implícita dos percursos do sujeito” . 31
Estes modos de apresentação, expressos em um quadrado semiótico cuja categoria
fundamental opõe público e privado, caracterizam-se pela localização do sujeito em espaços
que proporcionam a ele diferentes graus de visibilidade, de acordo com o seu querer. Os
modos de apresentação, ou papéis, fazem parte de um “trajeto culturalmente
estereotipado” . No nosso trabalho, tais papéis são aqueles assumidos pelas mulheres. No 32
texto de Landowski, a título ilustrativo, o papel é o do ator, que dependendo do espaço que
ocupa, assume papéis públicos, papéis privados, publiciza seu papel privado ou privatiza
seu papel público.
Na tipologia dos papéis públicos ou privados do ator, algumas posições são
caracterizadas por espaços, e outras por ações: coxia e camarim (espaços diferentes para
diferentes ações), e palco (mesmo espaço para diferentes ações – representação e ensaio).
Nos apoiamos neste procedimento de Landowski para organizar os ambientes
representados nos anúncios do grupo “locação” (figura 2), já levando em conta também os
papéis sociais que emergem a partir da presença das mulheres nestes locais. Para isso,
consideramos tanto a identificação do ambiente, quando for possível (nossos “coxias” e
“camarins”) quanto as ações que nele se desenrolam (nossos “ensaios” e
“representações”) . 33
LANDOWSKI, 1992, p. 91.31
LANDOWSKI, 1992, p. 91.32
Vale ressaltar que, neste momento, tratamos da visibilidade das mulheres na narrativa do enunciado, e não na 33
situação de enunciação.
!102
Figura 2 – representação gráfica dos regimes de visibilidade dos papéis sociais no contexto da tipologia de representação do espaço nos anúncios publicitários
Fonte: produção da autora.
4.4.1 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços
públicos (“representação”)
Papel “profissional”
Neste conjunto de anúncios, a mulher aparece majoritariamente no papel “profissional”
(figura 3a), conforme a terminologia que explicamos antes. Ela está em escritórios,
ambientes externos, na frente de edifícios comerciais, em viagens. Bem mais da metade
destas mulheres está usando calça. Em seguida vem o vestido e por último a saia, em
quantidade muito menor. De forma geral, a mulher no papel “profissional” veste calça e está
em pé, se movimentando, “fazendo” algo.
Papel “esposa”
Este é o segundo papel mais frequente. São anúncios onde a mulher está fisicamente
próxima de um homem, por vezes tocando-o ou sendo tocada por ele, de maneira a sugerir
um casal (figura 3b). Quando é possível identificar as atividades realizadas por estes casais,
elas são principalmente ligadas a situações de viagem ou consumo. A roupa mais utilizada
por estas mulheres também é a calça, depois o vestido e por último a saia. A distribuição, no
entanto, é mais equilibrada do que entre as mulheres “profissionais”. Neste papel, todas
estão se movimentando, como se o casal fosse “flagrado” no passeio ou nas compras.
Papel “independente”
O terceiro papel que mais aparece nos anúncios é o que chamaremos de
“independente” (figura 3c). Este termo soma-se aos demais no uso pelo senso comum e
refere-se à “mulher contemporânea”, que possui renda própria, faz as coisas
Locação Tela
Papéis sociais em espaços públicos (“representação”)
Papéis sociais em espaços privados
(“coxias”)
Papéis sociais na publicização do espaço
privado (“camarim”)
Papéis sociais na privatização do espaço
público (“ensaio”)
Cenário Estúdio
!103
“sozinha” (viaja, dirige), pode gastar dinheiro com si mesma. Esta independência é
principalmente financeira, o que, no entender do senso comum, seria um fator que “intimida”
os homens e, portanto, afasta-os de um relacionamento sério com esta mulher. Assim como
os outros papéis sociais estereotipados que citamos antes, este também é recorrente nos
textos da imprensa que tratam da “dificuldade” em ser mulher atualmente. Um destes textos,
intitulado “A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo que um homem não
quer” , associa a independência com situações presentes nos anúncios do nosso corpus 34
em que a mulher está sozinha – viagem e consumo, especialmente. Por exemplo, ao
descrever um hipotético homem que aceitasse uma mulher deste tipo, a autora da crônica
imagina que ele falaria assim: “Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende
com o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer uma
viagem sozinha pelo leste europeu”. Neste papel de “independente”, as mulheres usam
calça e vestido em igual proporção. A saia não aparece. Elas estão geralmente se
movimentando ou fruindo o ambiente de lazer ou férias que são os mais frequentes nestes
anúncios.
Papel “mãe”
O papel de “mãe” aparece em quarto lugar, com apenas um exemplar a menos que o
papel anterior. Em cinco anúncios a mãe integra o simulacro de família nuclear tradicional –
casal heterossexual com crianças (figura 3d) –, e em dois deles somente ela e os filhos. Um
destes anúncios é protagonizado pela atriz Camila Pitanga. Apesar de sabermos que não
são seus filhos, evoca-se a temática maternal. A maioria das “mães” está “fazendo algo”,
MANUS, Ruth. A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo que um homem não quer. O Estado 34
de São Paulo, São Paulo, 18 jun. 2014. Disponível em: < http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/a-incrivel-geracao-de-mulheres-que-foi-criada-para-ser-tudo-o-que-um-homem-nao-quer/>. Acesso em: 9 set. 2014.
Figuras 3a, 3b, 3c e 3d – exemplos de anúncios que figurativizam mulheres nos papéis “profissional”, “esposa”,“independente” e “mãe”, respectivamente
Anúncios veiculados na revista Veja, edições (respectivamente) de 29/9/2011, 30/5/2012, 28/3/2012 e 2/5/2012. Fonte: as edições das revistas.
!104
especialmente em situações de viagem ou passeio. Elas vestem calça comprida, exceto por
duas delas, uma das quais usa saia (a atriz Camila Pitanga) e a outra usa vestido.
Gostaríamos de destacar um anúncio com a mulher no papel de “mãe”, que é o da
Ecorodovias (figura 4).
A “mãe” deste anúncio usa calça; está sentada no carro, no banco do passageiro, e
tem as pernas unidas, as costas retas, a postura tensa, de uma forma que não é a natural
nesta circunstância. Pode-se comparar com a postura relaxada do motorista, homem. Essa
oposição entre a disposição das pernas de homens e mulheres e da ocupação dos espaços,
reitera o que vimos no capítulo 1, sobre a
situação de constrição corporal das
mulheres nos espaços públicos, e que
está presente até mesmo na sinalética
de banheiros, como vimos na figura 1 do
capítulo 2: homem e mulher em pé, mas
ele de pernas separadas, ela de pernas
unidas.
Por fim, existem anúncios em que
nem o ambiente, vestuário ou a postura
chegam a sugerir algum tipo de papel.
Neles a mulher está sozinha, em
posição estática, olhando para o
observador. Ela não está “fazendo”
Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 13/6/2012. Fonte: a edição da revista.
Figura 4 – anúncio Ecorodovias: exemplo de postura constrita da figura feminina
Figuras 5a e 5b – anúncios que figurativizam mulheres no papel social “manequim”
Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 2/11/2011 e 12/10/2011.
!105
nada. Não por coincidência, os dois anúncios são do varejo de moda – uma loja de
departamentos (figura 5a) e um shopping (figura 5b) – e possuem as marcas enunciativas
da publicidade deste segmento de mercado. Considerando isso, definimos o papel destas
mulheres como “manequim”: um papel com função demonstrativa, e não o simulacro da
consumidora do produto anunciado. A postura das duas é bastante parecida: ambas estão
apoiadas em um assento alto, com um dos joelhos dobrados e o vestido levantado sobre
ele. Olham para o leitor com um meio sorriso, o corpo sinuoso e jogado para frente. Nos
anúncios da revista Claudia, este papel vai aparecer em configurações um pouco diferentes,
onde a relação entre a postura, o ambiente e a “função” da modelo se complexificam.
Trataremos destas outras configurações na seção em que apresentamos os anúncios desta
revista (4.5).
4.4.2 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços
privados (“coxias”)
Em oposição aos papéis públicos, os privados são assumidos nos espaços da casa,
sejam internos ou externos. No primeiro caso temos a sala onde a família se reúne ou
assiste TV e a cozinha. Em transição entre as áreas internas e externas, temos a varanda. E
na parte externa, o quintal ou a frente da casa – frequentemente em um estilo que lembra as
casas de subúrbio norte-americanas, sem portão ou cerca para separá-las da rua. Aqui os
tipos de papéis se distribuem mais uniformemente, sem diferenças quantitativas marcantes,
se formos comparar com os anúncios com espaços públicos.
Papéis “mãe”, “esposa” e “amante”
O papel que mais aparece é o de “mãe”, que no grupo anterior era minoritário. Estas
mães usam calça e vestido, com uma pequena preponderância da primeira peça. Em
termos de postura também não há uma maioria marcante, mas é interessante observar que
as “mães” cujos corpos estão mais soltos e relaxados são aquelas acompanhadas apenas
pelos filhos, sem a figura do “pai”/“marido”. Quando a configuração é a de família tradicional,
a mulher assume uma postura menos “confortável”.
Em termos quantitativos, a segunda posição é compartilhada pelos papéis de “esposa”
e “amante”. As “esposas” estão principalmente sentadas e usando calça; as “amantes” estão
principalmente deitadas e usando vestido. O papel de “amante” caracteriza-se pelo
ambiente, pela postura e pela expressão corporal e gestual que sugere uma mulher à
espera do parceiro sexual, seja numa relação conjugal ou não. Como vimos antes, a
denominação se pauta pelo resgate dos papéis atribuídos às mulheres nos discursos do
senso comum. Nestes discursos, há uma separação entre os papéis de “esposa”, “mãe” e
!106
“amante” como se a sexualidade feminina só pudesse se expressar em condições (e para
pessoas) muito específicas.
Ainda sobre os anúncios com mulheres no papel de “amante”, três deles são
assinados pela marca de relógios Lince (figura 6a). Nestes, a mulher está deitada no chão
com as pernas ou a cabeça apoiadas em uma cadeira, os braços para trás e o quadril
jogado para o lado, em uma postura sinuosa. É um grande contraste com as mulheres
deitadas/sentadas nos espaços públicos (“representação”), que usam calça e têm uma
postura mais alinhada e contida. Neste caso, intui-se a presença de um outro sujeito no
plano do enunciado e parece que essa virtualidade logo se atualizará no corpo do amante
esperado – e que bem pode ser o leitor, lembrando da equivalência estrutural entre o
ausente da imagem e os inumeráveis e anônimos enunciatários . O quarto anúncio com 35
“amante”, da MTV (figura 6b), mostra uma mulher em trajes e em postura que se costuma
associar à prática do sexo sadomasoquista. Se é diferente dos outros ao apresentar
nuances de humor e irreverência, assemelha-se ao estabelecer a interação entre a mulher e
um objeto, no plano do enunciado, que corresponde ao leitor, no plano da enunciação.
Os papéis com menos ocorrência no espaço privado são os de “manequim”, “dona-de-
casa” e o “independente”. Quanto ao último, contrasta com a presença no grupo anterior,
que era muito mais numerosa. Parece que a mulher “independente” é aquela do espaço
público, talvez sugerindo que os papéis preferenciais da mulher em casa são aqueles em
que está acompanhada, do marido e/ou filhos ou à espera do amante. Dentro de casa, ela
está absorta na leitura ou no uso do celular e veste calça comprida.
Um dos dois anúncios onde aparece a “dona-de-casa”, o do Sindigás (figura 7), é
LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002, 35
p. 134-135.
Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 21/12/2011 e 19/10/2011. Fonte: as edições da revista.
Figuras 6a e 6b – exemplos de anúncios com a mulher no papel “amante”
!107
emblemático por mostrar a função da roupa na figurativização das regiões brasileiras e da
posição hierárquica da mulher na casa. O anúncio
está dividido ao meio. Do lado esquerdo, uma
mulher de roupa leve e fluida, em uma cozinha que
apresenta figuras de rusticidade e natureza,
representa o Oiapoque, extremo norte do país. Do
lado direito, uma mulher de calça, em uma cozinha
com marcas de modernidade e organização,
representa o Chuí, o extremo sul do país. As
roupas, aqui, ajudam a tematizar duas concepções
sobre a diversidade brasileira: a espontaneidade
das regiões ao norte e a organização das regiões
ao sul. A roupa homologa valores de formalidade e
informalidade, e há mais marcas de sensualidade
na mulher do norte do que na mulher do sul. E
enquanto a mulher do sul apenas toca na tampa
da panela – poderia somente estar controlando o
cozimento feito por outra pessoa –, a mulher do
norte regula a chama do fogão e mexe com a
colher no que está sendo cozido. Ela é, portanto, a pessoa que está cozinhando.
4.4.3 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” com
privatização dos espaços públicos (“ensaio”)
A situação de privatização dos papéis públicos parece acontecer em ambientes
residenciais que possuem algumas marcas da sala – não a íntima ou de TV, onde se reúne
a família, mas aquela social, também chamada de living – ou no hall de entrada. O
enquadramento escolhido para mostrar estas salas não abrange sofás, mesas ou outros
móveis que normalmente servem para acomodar os convidados. O que vemos são
elementos de decoração sem personalização – por exemplo, vasos, mas não porta-retratos.
Uma figura interessante que compõe estes ambientes é a cômoda, móvel que também
poderia estar no quarto de dormir. Ou então, no boudoir, a antessala do quarto, que nas
casas das famílias mais abastadas dos séculos XVIII e XIX servia para a mulher receber e
entreter seus convidados. O boudoir, o hall de entrada e living são aposentos mais
“públicos” dentro da privacidade da casa. Ambos antecedem os aposentos que abrigam as
atividades mais íntimas da família (o living vem antes da sala de TV, o boudoir vem antes do
quarto de dormir).
Anúncio veiculado na revista Veja, edição 11/4/2012. Fonte: a edição da revista.
Figura 7 – anúncio Sindigás
!108
Voltando à cômoda, que parece ser um conector de isotopia entre o living/hall de
entrada e o boudoir, é interessante notar sua presença em mais de um anúncio, de
diferentes segmentos de consumo. Nestes ambientes em que há uma privatização dos
papéis públicos, na maioria das vezes a mulher está sozinha. E em todos os anúncios de
Veja deste segmento, os produtos vendidos são aqueles que podem servir como objeto de
valor de uso de um programa narrativo calcado na obtenção do status, ou da admiração das
pessoas que visitam a casa. São eles: TV por assinatura, cortinas, aromatizador de
ambientes. Todos poderiam servir para a fruição dos habitantes da casa, mas a situação do
enunciado sugere um fazer o outro crer no status ou no bom gosto dos moradores. O status
é uma faceta dos papéis públicos, que aqui são encenados no espaço privado da
residência. Ainda sobre a cômoda, ela é figura que tematiza uma certa época histórica e o
gosto de decoração associado a esta época, que é a corte francesa do século XVIII, pré-
Revolução, conhecida pelo luxo.
Papel “anfitriã”
Nestes anúncios com situação de privatização dos papéis públicos (“ensaio”) percebe-
se a diferença entre a mulher que cuida da casa para os moradores e daquela que cuida da
casa para o olhar dos visitantes. Neste último, a mulher é majoritariamente dona da casa, ao
invés de dona de casa, o que nos leva a definir este papel como o de “anfitriã” (figuras 8a e
8b). Tanto o arranjo de seu vestuário quanto da residência mostram uma preocupação em
parecer bem publicamente, mesmo que no ambiente doméstico. Como dissemos antes, um
dos programas narrativos deste papel é a busca pelo status social por meio de valores de
uso como uma casa bem decorada, cheirosa, ao gosto de lugares emblemáticos como
Paris.
Figuras 8a e 8b – exemplos de anúncios com mulher no papel de “anfitriã”
Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 12/10/2011 e 16/5/2012. Fonte: as edições da revista.
!109
Nestas situações, a grande maioria das mulheres usa vestido. Em alguns anúncios
deste grupo vemos roupas transparentes e uma postura sinuosa que projeta o quadril para
trás ou para o lado, o que sugere sensualidade. Porém, não há uma espera assumida pelo
parceiro sexual como se percebe nas mulheres no papel de “amante”. O convidado é
esperado e observado pelas persianas por uma mulher que quer ver, mas não quer ser vista
– assim como os sentimentos que talvez nutra por esse convidado. Evidentemente os
papéis na vida real são muito mais complexos do que é possível tratar em um exercício de
categorização. Mas, no exercício, privilegiamos o de “anfitriã”, aquele que estas mulheres
expressam na camada que reveste uma possível segunda intenção.
4.4.4 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” com
publicização dos espaços privados (“camarim”)
A situação de publicização dos papéis privados aparece em apenas dois anúncios do
tipo “locação”. Em ambos há um grupo de mulheres que parecem ser amigas,
compartilhando algum segredo, seja uma história, um relacionamento entre elas ou mesmo
as formas dos próprios corpos. São situações que as mulheres vivem normalmente entre
“amigas”, por isso denominamos desta forma o papel que assumem aqui.
No das jóias Vivara (figura 9a), elas usam saia, sentam-se muito próximas, uma
tocando a outra, sugerindo grande intimidade e uma aura de sensualidade. O da Levis
(figura 9b) apresenta um grupo de moças que poderia estar comparando os corpos em
relação a como a calça jeans valoriza cada um deles. Interessante observar que os jeans
com modelagem para mulheres de quadris – e glúteos – maiores vestem as modelos que
estão com a parte posterior mais visível ao leitor. Aqui a sensualidade é oferecida ao outro,
Figuras 9a e 9b – exemplos de anúncio com mulher no papel de “amiga”
Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 12/10/2011 e 30/11/2011. Fonte: as edições da revista.
!110
enquanto no primeiro anúncio ela é partilhada entre as moças, e essa partilha é, por sua
vez, ofertada, expressando um outro discurso do senso comum: a fantasia masculina de
observar (ou participar) de uma relação sexual entre mulheres.
4.4.5 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “tela”
A “tela” é o tipo de representação do espaço no anúncio que se opõe ao “locação”.
Enquanto a “locação” apresenta uma densa figurativização do ambiente e a interação do
sujeito com este ambiente ou com os objetos que o compõem, nos anúncios do tipo “tela” a
figurativização é mais rarefeita e não há uma tradução do ambiente do mundo natural com
grande quantidade de traços pertinentes. Assim, a chave para a identificação dos papéis
sociais femininos não pode se apoiar na relação com ambientes reconhecíveis e com
situações propostas pelo regime de visibilidade. Considera-se, então, outros elementos: as
roupas, os objetos portados pelos sujeitos e o texto verbal.
Papel “profissional”
O papel social feminino predominante nos anúncios de tipo tela é o “profissional” e a
roupa mais presente é a calça, depois o vestido e por último saia. Um anúncio com exemplo
de identificação pelo texto verbal é o da companhia aérea Azul, que nomeia a figura humana
por meio de uma legenda, como a que vemos na figura 10a: “Natália Passi, cliente Azul,
analista de planejamento, São Paulo - SP”. No anúncio do programa Encontro, a
identificação se dá pelo reconhecimento da figura feminina como sendo a jornalista Fátima
Bernardes (figura 10b). A identificação por meio de objetos associados a certas atividades
pode ser exemplificada pelo anúncio da Nextel, onde os apetrechos e o uniforme
figurativizam a profissão de chefe de cozinha (figura 10c).
Figuras 10a, 10b e 10c – anúncios Azul, Encontro e Nextel
Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 7/12/2011, 11/7/2012 e 26/10/2011. Fonte: as edições da revista.
!111
Papel “manequim”
O segundo papel mais presente é o “manequim”, figurativizado por mulheres com a
postura, o olhar ou o sorriso que identificamos neste papel em “locação”, e sem marcas de
outros papéis. Nos exemplares daquele grupo as mulheres usavam vestido. Aqui também
esta é a roupa mais presente, seguida pela saia. Reitera-se ainda o segmento das marcas
que assinam anúncios com mulheres neste papel, que é a área de moda (indústria ou
varejo).
Um dos anúncios com mulheres neste papel, da marca de sapatos Campesí
(figura11), oferece uma oportunidade de verificar a relação entre os corpos que usam saia e
aqueles que usam vestido. Da esquerda para a direita vemos uma gradação na exposição
do corpo feminino, relacionada ao comprimento do traje e à postura da moça (é a mesma
moça nas três situações, fotografada em trajes e posturas diferentes).
Os dois primeiros trajes são vestidos, sobrepostos por casacos. O vestido da ponta
esquerda é mais comprido e o blazer que o
cobre também. A moça tem os braços em
frente ao tronco, cobrindo a área do peito. O
traje do meio é um vestido mais curto, assim
como a peça sobreposta. Tal peça também é
mais aberta que a primeira, o que, conjugado
aos braços afastados da frente do corpo,
oferece maior exposição do tronco na altura
do peito. A exposição aumenta na figura
feminina à direita, que veste saia, camisa
entreaberta até a altura do vão entre os seios
e que está com um dos braços elevado, e o
outro ao longo do corpo. Além de ser mais
curta que os vestidos, a saia tem babados,
ornamento que destoa da plasticidade lisa
das outras duas peças. E enquanto nas
moças de vestido os sapatos têm cores mais
neutras e sóbrias, a que veste saia usa um
modelo vermelho. Este anúncio é um exemplo
da associação entre saia e sensualidade que
exploramos no capítulo 2.
Papel “esposa”
Os anúncios com mulheres no papel “esposa” e “independente” ocupam o terceiro
Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 7/3/2012. Fonte: a edição da revista.
Figura 11 – anúncio Campesí
!112
lugar em ocorrência neste grupo “tela”. As “esposas” usam calça e saia em igual quantidade.
Nesta configuração, a mulher do anúncio tende a olhar para o parceiro ou interagir com ele.
São poucos os exemplares onde a mulher acompanhada olha para o leitor. Nota-se,
também, uma aproximação maior dos olhares ou dos corpos do casal quando a mulher está
de saia. Podemos notar essa diferença em dois anúncios da operadora de viagens CVC
(figuras 12a e 12b), do lado direito, onde estão os “casais”. A mulher de calça olha para
frente (assim como o homem), a de saia olha para o companheiro. Os dois homens abraçam
suas companheiras, mas de formas diferentes: a mulher que está com os braços para frente
e é abraçada por trás tem uma situação corporal mais livre; a que está sendo abraçada pela
cintura, e que tem um dos braços para trás, está mais presa. Nota-se, inclusive, que seu
ombro é elevado por este abraço, sugerindo uma interação não muito confortável. A primeira
mulher está de calça, a segunda está de saia.
Papel “independente”
No grupo “locação”, as mulheres no papel “independente” estavam principalmente em
situações de lazer ou viagem. Apareceu apenas um exemplar com a mulher em ato de
consumo, situação que, neste grupo “tela”, é predominante. O tema consumo é
figurativizado diretamente por objetos portados por estas mulheres, como uma cesta de
compras de supermercado, um cartão de crédito e uma sacola de loja; e indiretamente, pela
felicidade da mulher ao saber da construção da fábrica da Hyundai no Brasil e pelo sorriso
de satisfação da usuária dos serviços de telefonia da Vivo. Nestas situações, a calça é
predominante e depois vem o vestido.
Reforçamos aqui a justificativa para atribuição de um papel chamado “independente”
e, para isso, exemplificamos com o anúncio assinado pela incorporadora Invespark (figura
Figuras 12a e 12b – anúncios CVC
Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 2/11/2011 e 26/10/2011. Fonte: as edições da revista.
!113
13). A mulher aqui é simulacro do destinatário-
consumidor, público-alvo do anúncio, e possui a
competência financeira para adquirir um imóvel,
uma das maiores conquistas da “mulher
independente”. Como vimos anteriormente, tal
condição caracteriza-se especialmente pelo
acesso ao consumo e pelo “morar sozinha”.
O anúncio da Hyundai (figura 14), assim
como outros que já descrevemos, também
possibilita o apontamento da relação entre
roupas e posturas e entre as posturas
masculinas e femininas. As duas mulheres e o
homem estão com os braços levantados, em
sinal de comemoração. Mas ele está alinhado
com o eixo do corpo e seus dois pés, que calçam
tênis, apoiam-se no chão. As mulheres, por sua
vez, têm o eixo corporal desalinhado ao “jogar” o
quadril para um dos lados; os joelhos estão
dobrados – para trás na mulher de calça, para
frente na mulher de vestido – e os pés estão fora do chão, vestidos em sapatos de salto,
Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 2/11/2011. Fonte: a edição da revista.
Figura 13 – anúncio Invespark
Figura 14 – anúncio Hyundai
Anúncio sequencial veiculado na revista Veja, edição de 14/12/2011. Fonte: a edição da revista.
!114
colocando-as em situação de marcante desequilíbrio. Interessante notar, também, que a
Hyundai promove neste anúncio a construção de sua fábrica no Brasil. Ou seja, ela estará
mais perto dos brasileiros, para que seus produtos sejam consumidos por nós. O brasileiro
consumidor aqui é figurativizado pelo homem que veste camisa verde e amarela e calça
azul. As mulheres, por sua vez, trazem roupas nas cores da Hyundai, figurativizando não só
uma parcela do público-alvo, como também a marca que será consumida.
Papel “mãe”
A mulher no papel de mãe é a que menos aparece neste grupo. Ao contrário das
“mães” do grupo “locação”, aqui elas usam especialmente o vestido. Duas delas estão nos
anúncios da CVC que vimos antes (figuras 12a e 12b). Nestes anúncios até mesmo as
crianças reiteram as diferenças posturais de homens e mulheres: o menino está com o eixo
vertical aprumado e não rotacionado; a menina, por outro lado, tem o corpo meio
rotacionado, as mãos na cintura, o quadril projetado para frente, a cabeça inclinada, os
joelhos flexionados e os pés em ponta.
Outra “mãe” de vestido aparece no anúncio da marca de automóveis Mitsubishi (figura
15), que vende um modelo esportivo da marca, conforme diz o texto verbal: “espírito de um
esportivo para a família inteira”. Mas a única pessoa “esportiva” no anúncio é o homem/pai,
que veste roupas de corrida; por carregar todos nas costas, supomos que seja um homem
forte; a mulher e as crianças vestem roupas não-esportivas. Ela, inclusive, está com um
sapato de salto alto e bico fino.
Figura 15 – anúncio Mitsubishi
Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 6/6/2012. Fonte: a edição da revista.
!115
4.4.6 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “estúdio”
“Locação” e “tela”, tratados até agora, ocupam posições contrárias no eixo superior
dos tipos de representação do espaço. As posições do eixo inferior são o “cenário” e o
“estúdio”. Relembrando, “estúdio” é a posição contraditória à “locação” e implicada pelo
“tela”. Seu plano de fundo, portanto, caracteriza-se por uma baixa figuratividade (quase
abstração), mas que exibe marcas de algum ambiente, ou melhor, do tipo de ambiente
neutro usado pelos fotógrafos em seus estúdios, a exemplo do fundo infinito. Há uma
interação do sujeito com algum objeto do ambiente, que normalmente é um elemento que
serve de apoio ou assento. Por trazerem características dos tipos de espaço com os quais
são implicados, cujos critérios para identificação do papel social feminino já foram
estabelecidos, a classificação nos anúncios destes termos inferiores – “estúdio” e “cenário” –
torna-se mais objetiva. Seguindo a ordem de apresentação das análise, começamos pelos
papéis no tipo “estúdio”.
Papel “manequim”
Nos grupos anteriores, não havia figuras femininas neste papel trajando calça. Aqui
esta roupa aparece, mas o vestido ainda é predominante. Destaca-se, mais uma vez, a
configuração corporal associada à iconografia da moda, incluindo a postura, o gestual e a
expressão facial que figurativizam o erotismo. Apesar de o anunciante ser deste segmento –
um shopping center –, o público-alvo do anúncio do Golden Square (figura 16a) não é o
consumidor, mas o investidor ou lojista: o material foi publicado em agosto de 2011,
Figuras 16a e 16b – anúncios Golden Square e Mitsubishi
Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 24/8/2011 e 11/7/2012. Fonte: as edições da revista.
!116
anunciando a inauguração para novembro de 2012. Neste anúncio, a legenda nos informa
que a mulher é a modelo Alessandra Ambrosio. Seu papel demonstrativo, de “manequim”,
sobrepõe-se ao profissional, que na vida real seria justamente o mesmo.
O erotismo aparece ainda no anúncio da marca de automóveis Mitsubishi (figura 16b).
A mulher ali presente não figura o público-alvo, mas sim o luxo, ou a luxúria, indicados na
chamada, já que o rinoceronte que a carrega figurativiza, por sua vez, o 4x4 indicado no
mesmo texto verbal. O chifre do animal, de forma fálica, também conduz para uma
tematização da luxúria, assim como a abundância de tecido, que parece ser uma voluptuosa
seda vermelha, jorrando da parte posterior do corpo feminino.
Nos anúncios da marca de sapatos Usaflex (17a e 17b), as mulheres não trazem de
maneira tão marcante as posturas e a gestualidade da iconografia da moda, até porque o
objetivo da empresa é mostrar “mulheres de verdade”, ou seja, mulheres que não
necessariamente seguem os “padrões de beleza” publicizados por diversos produtos
midiáticos . Mas também não há marcas que sugiram qualquer um dos papéis sociais que 36
A chave para tal leitura é a campanha da marca de produtos de cuidados pessoais Dove. Dove percebeu a 36
demanda por uma representação com maior efeito de verdade em relação à diversidade de corpos femininos e inaugurou um posicionamento inovador nesta indústria, ao colocar em seus anúncios mulheres que destoavam um pouco (mas não em essência) do simulacro de corpo feminino que se costuma classificar de “padrão de beleza” (jovens, brancos, magros, altos, de cabelos longos e lisos). Dove apresentava mulheres com mais curvas, corpos não tão proporcionais, modelos negras, ruivas, loiras etc. Apesar disso, nenhuma delas poderia ser chamada de “feia”, o que as coloca relativamente de acordo com os padrões questionados pela campanha.
Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 7/3/2012 e 2/5/2012. Fonte: as edições da revista.
Figuras 17a e 17b – anúncios Usaflex
!117
apareceram até agora. Evidentemente,
não é este o motivo que nos leva a
inclui-las entre as “manequins”, mas sim
o fato de que estão ali para figurativizar
uma diversidade de consumidoras,
especialmente consumidoras que
buscam “permissão” para desobedecer
as prescrições de beleza em termos de
sapatos, optando por modelos mais
confortáveis e menos “fashion” (como
são os sapatos de salto, ou de bico
fino). São, portanto, mulheres que
demonstram, uma característica deste
papel que estamos chamando de
“manequim”.
Nestes anúncios vemos mulheres de várias idades e com diferentes biotipos. As
mesmas mulheres estão nos dois anúncios, mas não com a mesma roupa, e algumas
trocam de posição. No anúncio em que vestem roupas claras, há três módulos no qual se
apoiam, sejam sentadas ou em pé. Naquele em que vestem roupas de tons azuis, há
apenas uma poltrona. Algumas estão sentadas nela, outras apoiadas e outra em pé, atrás.
A mulher mais jovem está na frente do anúncio, sentada ou apoiada, nas duas
versões. Em uma ela usa vestido, tem as pernas uma na frente da outra, uma mão na
cintura com o polegar e dedos para frente e outra apoiada no colo. No outro, usa calça, tem
as pernas cruzadas, uma mão apoiada na parte alta da coxa e outra na mesma perna, mais
próxima do joelho. Nas duas posturas, sua posição é frontal e há uma boa visão do seu
corpo. A outra posição da frente do anúncio é ocupada por mulheres diferentes, dependendo
da versão. Mas em ambos os casos, quando estão na frente, usam vestido. Quando estão
atrás, usam calça (ou bermuda, no anúncio com as roupas em azul). A mulher que
apresenta o maior corpo, tanto em peso quanto em altura, permanece atrás nos dois
anúncios, mas está um pouco mais visível naquele em que usa vestido. No anúncio em que
todas vestem azul, as duas mulheres das extremidades têm as mãos na cintura, do jeito
tradicional: dedos para frente, polegar para trás. A forma como a mão é colocada na cintura
parece sugerir o quanto de sensualidade que se quer reforçar ou atenuar. Aqui, a mulher
mais jovem, com roupa que mais expõe o corpo – o vestido curto – tem as mãos na cintura
de um jeito menos sensual; já as mulheres mais velhas que vestem roupas que expõem
menos o corpo – calça comprida e vestido longo – têm as mãos na cintura do jeito mais
“sensual”. O objetivo deste jogo de mão talvez seja equilibrar a sensualidade das roupas e
Figuras 18a e 18b – anúncios Avon e TRESemmé
Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 20/6/2012 e 15/2/2012. Fonte: as edições da revista.
!118
do próprio corpo feminino, de acordo com a idade.
Papel profissional
No papel “profissional” encontramos tanto a mulher figurativizada como trabalhadora
de um determinado setor (figura 18a) quanto atrizes e modelos que endossam produtos
(figuras 18b, 19a e 19b). Estas não estão “representando” um determinado papel e nem o
simulacro do público-alvo. Sua presença justifica-se pela profissão que exercem no mundo
“real” e que está verbalizada nestes anúncios – diferente do que ocorre em outros
exemplares, quando a simples função de “demonstradora” assumida pelas celebridades nos
anúncios sugere o papel de “manequim”, e não o “profissional”.
Neste papel, o uso da calça e do vestido distribui-se igualmente. Todas as mulheres
estão sentadas e olhando para o leitor, mas duas o fazem de maneira oblíqua e com um
meio sorriso no rosto: a modelo Gisele Bündchen e a atriz Nathalia Dill, respectivamente nos
anúncios da Sky (figura 19a) e dos relógios Orient (figura 19b). A postura de ambas é
bastante similar: pernas cruzadas, um braço apoiado sobre os joelhos, o cotovelo do outro
braço apoiado sobre o primeiro, a mão tocando o rosto na altura do queixo. Na parte de
cima, os dois trajes possuem decote em V cujo vértice desce até o meio dos seios, de
maneira mais profunda no traje de Nathalia Dill. Se formos comparar aos anúncios dos
relógios Lince, integrantes do grupo “locação” – situação de “papéis privativos”, temos uma
reiteração da temática do erotismo neste segmento de produto.
Figuras 19a e 19b – anúncios Sky e Orient
Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 6/6/2012 e 2/5/2012. Fonte: as edições da revista.
!119
4.4.7 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “cenário”
O grupo cujo tipo de representação de espaço é o “cenário” (figuratividade normal e
sem interação/proximidade com objetos de um ambiente do mundo natural) possui apenas
três exemplares, um com a mulher no papel “profissional” (figura 20a), e outros dois, de uma
mesma marca de tênis (figuras 20b e 20c), no papel “independente”. A figura masculina está
figurativizando a diversidade de modelos da marca e não há contato com a mulher de forma
a sugerir a constituição de um casal; também não se encaixa no papel “manequim” porque a
moça não é uma demonstradora. Ela figurativiza o simulacro da consumidora, a quem é
atribuída a competência da inteligência de fazer boas escolhas de consumo.
Quanto à roupa, a calça comprida é usada pelas três mulheres. Nota-se que a mulher
profissional, no anúncio dos Colégios Maristas, apresenta uma postura mais parecida com
as masculinas que temos visto até então: corpo alinhado no eixo vertical, apenas uma leve
angulação do quadril provocada pela perna estendida ao lado e um pouco à frente. Tal
postura, com pouca ou nenhuma marca de sensualidade, combina com o perfil religioso do
anunciante e com outros papéis desta mulher mencionados no texto verbal: é casada e mãe
de duas filhas. Sua organização corporal difere daquela adotada pela mulher no anúncio do
tênis Kolosh (na versão em que está em pé), que apresenta o quadril projetado para frente,
joelhos flexionados e o rosto virado em rotação diferente da do resto do corpo.
4.4.8 Roupas diferentes no mesmo anúncio: observação de aspectos significantes
Nas análises trabalhadas até agora, verificamos os papéis sociais e as roupas que
Figuras 21a, 21b e 21c – anúncios Colégios Maristas e Kolosh
Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 17/8/2011, 14/3/2012 e 18/4/2012. Fonte: as edições da revista.
!120
ocorrem nos anúncios dos quatro tipos de representação do espaço. Alguns destes
anúncios apresentam mais de uma mulher e mais de uma peça de roupa (considerando o
paradigma saia, vestido e calça), como o da Sindigás (figura 7 deste capítulo), onde
aparecem duas mulheres: uma de calça e outra de vestido. Tal estratégia parece expressar
um desejo do enunciador-destinador em mostrar diversidade: do público-alvo consumidor de
seus produtos, dos próprios produtos ou para ilustrar a proposta de valor oferecida ao
destinatário. Nestes casos, cada roupa e/ou pessoa, portanto, significa em relação à outra.
De fato, no anúncio mencionado o enunciador utiliza a diversidade para mostrar que atende
de norte a sul do país, e esta oposição é figurativizada pela oposição entre os biotipos e
trajes das duas mulheres. Além disso, a presença de mulheres usando diferentes peças de
roupa no mesmo anúncio permite comparar posturas, gestualidades e expressões faciais
associadas a cada traje. Diante do potencial significante de enunciados deste tipo,
selecionamos alguns deles para uma exploração mais detalhada. Para facilitar, chamaremos
estes anúncios de “mistos”.
Anúncio TAM (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)
O mais emblemático destes anúncios “mistos” talvez seja um sequencial da
companhia aérea TAM (figura 21). Em quatro páginas duplas e uma simples, a empresa
Anúncio sequencial veiculado na revista Veja, edição de 4/7/2012. Fonte: a edição da revista.
Figura 21 – anúncio TAM
!121
apresenta suas vantagens em textos verbais acompanhados por imagens dos passageiros
nos aviões, mas não dentro: eles estão no “céu”, sentados ou apoiados nas asas, em
relação desproporcional entre o tamanho humano e o da aeronave.
Quatro homens e duas mulheres (no papel “profissional”) ilustram o anúncio. Uma
delas está na primeira página dupla, acompanhada por um rapaz, um em cada asa. Ele está
sentado com as pernas cruzadas, em posição de “índio”. Seu corpo pende levemente em
direção à fuselagem do avião, tocando-a com o cotovelo. A mulher, de calça e sapatos
fechados de saltos grossos, está de cócoras, um pouco de lado, e seu equilíbrio depende
totalmente do apoio da parte de trás do corpo na fuselagem. Esta página fala dos serviços
de conectividade a bordo, e ambos carregam equipamentos de comunicação: ele um
telefone celular (provavelmente um smartphone), ela um tablet. A roupa dele é mais
informal; a dela, pelo sapato de salto, sugere mais formalidade. Se os serviços de
conectividade são benefícios importantes para passageiros em viagens pessoais e viagens
profissionais, o rapaz parece figurativizar o primeiro caso, e a mulher o segundo.
A segunda página dupla fala do programa de milhagem da companhia. Um homem em
trajes profissionais e um rapaz em trajes informais estão sentados, lado a lado, sobre a
fuselagem do avião. Parecem confortáveis e equilibrados. O rapaz usa tênis, bermuda e
carrega uma mochila, bagagem que figurativiza um tipo muito específico de viajante, o
“mochileiro”. O mochileiro viaja com pouco dinheiro e procura sempre os serviços mais
econômicos, ou com a melhor relação custo-benefício. O homem usa terno azul e gravata
da mesma cor. Se formos comparar com o homem de terno da página seguinte, tanto em
termos de traje quanto de postura, veremos que este aqui parece mais “simples”. O homem
de terno azul viaja por motivos profissionais, e é o oposto do mochileiro, que viaja por
motivos pessoais. Mas a passagem do homem de terno, mesmo viajando a trabalho,
também é paga por ele mesmo ou por sua pequena empresa. Daí a importância de
benefícios econômicos como as passagens adquiridas com milhas.
O homem da terceira página dupla está em pé, tocando na parte traseira do avião
apenas com as mãos, sem se apoiar. Ainda que também vista terno, parece ser de um nível
hierárquico ou socioeconômico superior ao do passageiro da página anterior. As marcas
disso são a combinação de cores do terno e da gravata, os cabelos grisalhos, o sorriso mais
convencional, a pasta, a postura mais rígida e composta. Ele figurativiza o sujeito que tem
por objeto de valor a pontualidade, a frequência e a regularidade dos voos. Provavelmente é
proprietário ou executivo de uma grande empresa. O preço da passagem, para ele, não é o
mais importante. Tanto este homem sozinho quanto os que estão sentados juntos foram
posicionados próximos à marca TAM impressa na aeronave.
A segunda mulher do anúncio aparece na quarta página dupla, sentada na asa do
avião e de coluna reta, apoiando as costas na fuselagem, assim como a mulher da primeira
!122
página. Ela usa uma sandália de salto alto e fino e saia-lápis. A saia, quando a mulher está
em pé, provavelmente vai até a altura do joelho, mas “sobe” para o início da coxa quando
ela se senta. A posição das pernas é a mesma dos anúncios onde as mulheres de vestido
estão em assentos mais baixos: joelhos unidos e tornozelos separados, para o lado e para
trás, sugerindo que se poderia ver o entremeio das pernas desta mulher se ela estivesse de
frente para nós. Tal postura permite que ela apoie o computador portátil sobre as pernas
para poder trabalhar.
O traje desta mulher contraria todas as recomendações dos manuais de elegância que
vimos no capítulo 2. Primeiro, a mulher está viajando de saia; esta saia é bastante justa e de
cor clara; usa sandálias de salto; está sem meias. A sensualidade expressa neste traje
contraria o conselho que se costuma oferecer às mulheres profissionais: que não devem
chamar a atenção para o próprio corpo. E a última coisa que se pode dizer deste modelo de
saia – contrariando a opinião de Inês de Castro –, é que seja “confortável”.
Nesta página que apresenta esta mulher, o benefício explorado não é relativo a
aspectos específicos da viagem – conectividade, milhas, pontualidade –, mas a facilidade
em se contratar os serviços da empresa, especialmente pela internet. Enquanto a
conectividade, valor proposto na página em que a mulher está de calça, faz parte de um
programa narrativo de uso em que a competência é o “poder”, a facilidade é um valor
relacionado à competência de um “saber”, ou seja, qualifica o sujeito como não-conjunto
com um saber usar a internet com facilidade.
Ainda em termos comparativos, mesmo que as mulheres usem roupas vermelhas
como a marca TAM, não se vê o logotipo nas situações em que a mulher aparece.
Comparando a mulher de calça e a de saia, a primeira está vestida de maneira mais
informal; usa sapatos fechados de salto grosso; está numa posição menos sedentária e não-
usual; uma de suas mãos está livre; seus cabelos são curtos e crespos. A segunda veste-se
de maneira mais formal; usa sapatos abertos de salto alto e fino; tem as duas mãos
ocupadas com o notebook, que está apoiado em seu colo, dificultando o movimento; seus
cabelos são lisos e compridos. Enquanto a mulher de calça parece ter a liberdade para se
levantar e mudar de posição a qualquer momento, a mulher de saia está mais “presa”.
Anúncio CCR (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)
Outro anúncio bastante interessante para observar a relação entre a postura corporal,
gestualidade e roupa é o da empresa CCR (figura 22), concessionária que administra
algumas das principais rodovias brasileiras. A peça mostra alguns trabalhadores da empresa
dispostos de maneira a formar uma seta inclinada, que começa no canto superior esquerdo
da página dupla e vai até o canto inferior direito, ou seja, aponta para o logotipo da
companhia. Podemos perceber o formato de seta porque o enunciador nos coloca num
!123
plano superior. Vemos essas pessoas de cima, e elas estão com a cabeça levantada,
olhando para nós. Das 10 pessoas, duas vestem roupas associadas ao trabalho em
escritório, enquanto as outras usam trajes de trabalho “de campo” – socorro, sinalização,
construção, limpeza, segurança. Dentre as 10, três são mulheres. Duas mulheres vestem
macacão, um uniforme sugestivo do trabalho “de campo”. Uma delas tem uma mão na
cintura e o outro braço ao longo do corpo; a outra, está de braços cruzados. Desta última
podemos ver os sapatos, que são escuros, fechados e pesados. Apesar de realizarem um
trabalho talvez mais sujeito a situações de risco, ambas têm os cabelos soltos (podem
enroscar, atrapalhar a visão, ficar presos etc.).
Enquanto as duas mulheres de macacão posicionam-se na parte da seta que “aponta”,
a terceira mulher está no eixo da seta, no final. Ela usa roupa de escritório – tailleur de saia,
camisa de botão, écharpe e sapato de salto com bico fino. Os cabelos estão presos e suas
mãos estão cruzadas à frente do corpo. Se a mão na cintura e os braços cruzados que
vemos nas mulheres de macacão sugerem, respectivamente, desafio e imposição de limites,
a posição das mãos da mulher de saia nos faz pensar em espera, disponibilidade e
aquiescência. A saia, aqui, é a roupa do trabalho de recepção, passivo, enquanto o macacão
é a roupa do trabalho ativo – de alguém que tem chefe ou superiores, mas sabe de antemão
Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 7/9/2011. Fonte: a edição da revista.
Figura 22 – anúncio CCR
!124
o que precisa fazer e não precisa “esperar” pelas ordens. O tailleur de cor sóbria, as mãos
unidas na frente do corpo e os cabelos presos ajudam a compor uma postura mais contida,
mais tensa, e estão alinhados aos conselhos do capítulo 2. Já os macacões de cores
vibrantes, os cabelos soltos e as mãos na cintura ou os braços cruzados ajudam a compor
uma postura mais relaxada, confortável, de movimentação latente.
Anúncio Cesumar (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)
A relação entre a roupa e a postura dos
braços também é interessante no anúncio da
faculdade Cesumar (figura 23). Duas moças
ladeiam um rapaz e os três andam pelo campus. A
moça do lado esquerdo, de vestido, carrega os
livros de lado, na altura do peito. Um dos braços
passa em frente ao corpo para ajudar a apoiar os
livros. A moça do lado direito, de calça, carrega
uma bolsa a tiracolo, que deixa suas mãos livres.
Ela está de “peito aberto”, relaxada, enquanto a
outra “se protege” e fica mais tensa, até pela força
necessária para carregar os livros.
Esta s i tuação de l iberdade corporal
relacionada à calça e constrição relacionada à saia
ou ao vestido que vemos aqui, reitera aquela dos
anúncios da TAM e da CCR que vimos de logo
antes: nos três casos, a mulher de calça tem as
mãos livres e pode se movimentar com mais
liberdade, enquanto a mulher de saia/vestido tem as mãos ocupadas e assume uma postura
mais rígida. Repete-se também a relação entre a roupa e o tipo de cabelo presente no
anúncio da TAM: a mulher de vestido tem cabelos lisos; a de calça, cabelos crespos.
Anúncio Banco do Brasil (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)
Outro anúncio onde a roupa parece homologar papéis sociais diversos é o do Banco
do Brasil (figura 24), que apresenta uma espécie de antes-e-depois da contratação de
crédito empresarial por uma loja. Tanto no “antes” como no “depois” a mulher no papel
profissional usa calça comprida. As mulheres de saia e vestido são as manequins da vitrina,
que estão, obrigatoriamente, “imóveis”, enquanto a proprietária (antes) e a funcionária
(depois) movimentam-se, fazem algo. As manequins de saia trazem, como já vimos em
outras situações, os braços à frente do corpo. A manequim de vestido está com os braços
Anúncio veiculado na revista Veja, edição 26/10/2011. Fonte: a edição da revista.
Figura 23 – anúncio Cesumar
!125
soltos, ao longo do corpo ligeiramente projetado à frente, num eixo diagonal. As mulheres de
calça estão mais de lado; as manequins de saia e vestido, mais de frente.
Anúncio Havan (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)
Anúncio veiculado na revista Veja, edição 14/9/2011. Fonte: a edição da revista.
Figura 24 – anúncio Banco do Brasil
Anúncio veiculado na revista Veja, edição 21/12/2011. Fonte: a edição da revista.
Figura 25 – anúncio Havan
!126
Neste exemplar podemos observar a relação entre a direção do olhar da mulher
acompanhada, dependendo da roupa que usa. O anúncio da loja de roupas Havan (figura
25) mostra dois casais e um homem andando em uma praia, talvez na manhã de Ano Novo,
pelo branco predominante dos trajes e porque um dos sujeitos carrega na mão uma garrafa
de espumante.
Pela proximidade dos corpos, o homem solteiro parece ser aquele que está no meio.
No casal da esquerda, a mulher usa uma saia que parece ser longa – o anúncio é cortado
na altura do seus joelhos, mas a saia continua. Ela está um pouco à frente do seu
companheiro e do outro rapaz e todos olham diretamente para nós. Já o outro casal está um
pouco atrás do trio. Neste casal, a mulher usa um vestido curto, deixando ver um pedaço da
perna antes do limite do anúncio. Ao contrário da sua amiga, ela não olha para nós, e sim
para o companheiro, que também olha para ela. Nos anúncios que vimos antes, é recorrente
a situação em que mulheres acompanhadas e usando vestido ou saia mais curtos não
olham para frente, e sim para o companheiro. Esta moça do anúncio da Havan também é
mantida afastada dos outros três integrantes do grupo. Só quem tem contato com ela é o
seu companheiro.
Anúncio Globo Comunidade (grupo “tela”)
Finalizamos esta parte com um anúncio
“misto” do grupo “tela”. A relação entre os
gestos de proteção do corpo e a roupa
também é aparente na publicidade do
programa de televisão Globo Comunidade
(f igura 26), com mulheres em papel
“profissional”. Das quatro figuras femininas,
podemos ver três com clareza, sendo duas
usando calça e com os braços na lateral do
corpo. Tais braços estão soltos ou na cintura,
mas de qualquer forma não cobrem o peito,
como fazem na mulher que usa vestido, na
ponta esquerda. A figura que não fica
totalmente visível está na parte central do
grupo de pessoas, e também tem os braços
cruzados. Não conseguimos ver totalmente
seu traje, mas percebemos que não é uma
calça. Anúncio veiculado na revista Veja, edição de
31/8/2011. Fonte: a edição da revista.
Figura 26 – anúncio Globo Comunidade
!127
4.5 A construção dos papéis sociais em Claudia
Uma primeira observação do conjunto de anúncios veiculados na revista Claudia
mostra a predominância de um tipo de organização de espaço e figuras humanas que
remete ao papel que denominamos como “manequim”. Como vimos em relação aos
anúncios de Veja, este papel se caracteriza pela mulher “posando”, estática, sem
configuração postural que indique a realização de alguma atividade – o que chamamos de
“não estar fazendo nada” –, sem a figurativização de um ambiente reconhecível e sem
outras marcas que sugeriam algum papel. Ela tem uma função “demonstradora” e, com
alguma frequência, as expressões corporais e faciais tematizam a sensualidade. Vimos,
também, que a maior parte dos anúncios com mulheres neste papel era assinada por
marcas do segmento de moda (indústria ou varejo).
Em Veja, estes segmentos não se destacavam mais do que outros. Porém, em
Claudia, como é tradicional nas revistas ditas “femininas”, os anunciantes de moda
aparecem em número bem maior. A quantidade de exemplares acabou mostrando a
ocorrência de anúncios em que as mulheres estão na configuração postural que associamos
ao papel “manequim”, mas atuam em ambientes identificáveis. Esta característica dos
ambientes, como visto antes, foi considerada como forte traço constitutivo do papel social
das mulheres que neles se inserem. Sendo assim, o que faz com que seja atribuída a
classificação “manequim” a mulheres com a configuração corporal deste papel, mas que
estão englobadas por um ambiente que poderia sugerir outro papel? Podem nos ajudar aqui
as caracterizações dos diferentes regimes de encenação do corpo na fotografia propostos
por Eric Landowski e Erving Goffman.
Em Gender advertisements , Goffman apresenta um estudo sobre os modos de 37
representação de homens e mulheres na publicidade a partir da análise da configuração
postural e interação entre os sujeitos nas fotografias dos anúncios. O antropólogo parte de
um conceito originário de estudos do reino animal – o display – para falar dos modos de
comportamento que adotamos para mostrar aos outros nossa identidade social, humor,
intenções, o que acaba por basear as interações e contratos entre os indivíduos. No
entanto, ao contrário do que acontece com os animais, os displays humanos não são
“instintivos”: eles são aprendidos e socialmente condicionados e moldados. É o que os faz
serem reconhecidos quando manifestados em diversos produtos culturais, como a
publicidade, auxiliando a definir a identidade social das figuras humanas nos anúncios e
reforçando os comportamentos na “vida real”.
Antes de tratar dos displays que compõem o corpus de sua pesquisa, Goffman discute
os diversos tipos de configuração da fotografia, a começar pela distinção entre a fotografia
GOFFMAN, E. Gender advertisements. Nova York: Harper Torchbooks, 1987 (edição original 1976).37
!128
privada, feita para circular entre aqueles presentes na foto ou no evento registrado , e as 38
fotografias públicas, assim designadas por captarem a audiência de pessoas não
conectadas a outras por relacionamentos ou interações pessoais, mas que compartilham o
mesmo alcance de apelo (por exemplo, o mercado ou jurisdição política). Neste segundo
caso, normalmente a fotografia não é o produto final, é o primeiro passo na reprodução de
revistas, livros etc. Uma fotografia deste tipo é a “fotografia comercial” usada por um
anunciante para vender produtos. Ou seja, a fotografia publicitária.
Ainda tratando da classificação proposta por Goffman, as fotografias se diferenciam
pelo modo como se comportam os modelos quando são registrados pela máquina: “retrato”,
quando o modelo posa, ou “flagrante”, quando os modelos não sabem que estão sendo
fotografados ou não se importam. Sejam os “flagrantes” espontâneos ou construídos,
autênticos ou falsificados, sempre se trata de uma cena (“slice of life”, ou “cenas da vida”),
da representação de eventos que estão acontecendo, onde um antes e um depois podem
ser inferidos e onde o local onde se desenrola a ação contribui para o contexto tanto quanto
os modelos e os demais objetos “cênicos”. Fotografias deste tipo diferenciam-se dos
“retratos”, onde a ação é ausente e não se pode dizer que há uma cena acontecendo.
Representa-se principalmente um sujeito e não um acontecimento . 39
Uma das características dos “retratos” é o sujeito com olhar sem expressão, ou uma
expressão congelada. Quando esse gênero aparece em fotografias comerciais que
apresentam um indivíduo e um produto, este olhar frequentemente dá lugar a um outro que
não parece estar alheio ao que acontece em volta: ele pode ser fixo ou conspiratório, como
se estivesse tentando estabelecer algum contato visual com o leitor do anúncio; pode ser
um olhar que aceita passivamente ou que se defende da “intrusão” do leitor; pode, ainda,
ser aquele que tenta chamar a atenção de outra pessoa no enunciado. Para Goffman, estas
simulações de correspondência de olhar fazem com que os retratos se transformem um
pouco em cenas (“cena”, para Goffman, é um vislumbre que temos do comportamento social
de um indivíduo e que nos oferece informação suficiente para reconhecer identidades
sociais, intenções).
Eric Landowski também vai tratar dos diferentes tipos de fotografia a partir da
encenação do corpo para mostrar a semelhança entre dois gêneros que deveriam ser
distintos: o discurso publicitário e o político. Os tipos de fotografia são o clichê
antropométrico, o flagrante delito e o retrato oficial . Enquanto o primeiro tipo preenche uma 40
simples função de identificação e reconhecimento, como é comum nas fotografias de
Conceito que deve oportunizar discussões em tempos de compartilhamento de fotos em sites de redes sociais.38
GOFFMAN, 1987, p. 16.39
LANDOWSKI, E. Flagrantes delitos e retratos. Galáxia, São Paulo, n. 8, p. 31-69, out. 2004. Disponível em: 40
passaporte e outros documentos de identidade, o flagrante delito atende a um desejo de
“penetrar o segredo ao divulgar certas facetas [do indivíduo fotografado] que, captadas no
instante, seriam mais reveladoras que outras” . Quanto ao retrato oficial, para Landowski 41
este tipo preenche uma função de ordem cosmética:
Ele trabalha o “perfil” do sujeito retratado — o engrandece, o “embeleza” se quisermos, ou antes o normaliza — de maneira a tornar sua aparência tão conforme quanto possível a um cânone de representação da função ou do estatuto que ele assume na sociedade. Ao impor assim ao indivíduo um modelo identitário pré-concebido, espécie de traje prêt-à-porter no interior do qual ele deverá se deixar moldar, tal regime iconográfico reserva, por definição, um lugar apenas marginal para a exploração das singularidades individuais. 42
Para Goffman, um olhar sem expressão ou uma expressão congelada são
características do retrato , configuração que se assemelha ao “boca fechada e olhar fixo” 43 44
do clichê antropométrico de Landowski. Para nós, este tipo de “artificialidade” na expressão
facial caracteriza o papel “manequim” mesmo naqueles anúncios onde se presentifica um
ambiente reconhecível. Quando tal artificialidade não está na expressão, estará na postura,
como a colocação dos corpos em situação de desequilíbrio ou que dificilmente seria adotada
“normalmente”. O efeito de artificialidade se constrói pela ausência das marcas de força
corporal – mãos crispadas, tensão muscular de braços e pernas – que seriam necessárias
para sustentar os corpos nestas posições. Quando estes signos de artificialidade aparecem,
juntos ou isoladamente, é como se a “cena” subentendida pelo ambiente fosse congelada
juntamente com a expressão da figura feminina, diluindo a sugestão de um papel associado
ao ambiente.
Por outro lado, as simulações de correspondência do olhar que transformam os
retratos de Goffman em cenas, e o retrato oficial de Landowski, que coloca “de forma geral
corpos em estado de comunicação” , nos dão base para definir outros papéis que não o 45
“manequim”, mesmo em anúncios que, aparentemente, seriam desta categoria. Nestes
anúncios, além da caracterização de um ambiente, temos figuras femininas que interagem
de alguma forma com outros sujeitos, dentro ou fora do enunciado, ou seja, são mulheres
que parecem “atuar” e representar outros papéis diferentes de uma simples demonstração.
Parece que temos, então, duas estratégias discursivas nos anúncios de moda: a
tradicional, que coloca os corpos em situações artificiais e reforça o simulacro da linguagem
postural dos discursos da moda, e a que procura ambientar e dar um ar de “naturalidade”
LANDOWSKI, 2004, p. 46.41
LANDOWSKI, 2004, p. 47-48.42
GOFFMAN, 1987, p. 16.43
LANDOWSKI, 2004, p. 52.44
LANDOWSKI, 2004, p. 52.45
!130
aos corpos. Enquanto esta última é mais pedagógica e informativa, a primeira é mais
conceitual e estética, qualificantes que talvez possamos associar, respectivamente, aos
valores prático e utópico . 46
Se organizarmos os anúncios e a forma como são identificados os papéis sociais a
partir das classificações apresentadas acima, teremos a seguinte distribuição:
Tabela 1 – Regimes iconográficos e sua influência na definição de papéis sociais em anúncios de revista
Fonte: Goffman (1987) e Landowski (2004). Produção da autora.
Em resumo, o papel “manequim” nos anúncios caracteriza-se pelos aspectos que já
havíamos delineado nas análises das publicidades veiculadas em Veja – mulher “posando”,
estática, sem “fazer nada”, sem a figurativização de um ambiente reconhecível e com função
“demonstradora” –, mas também por figuras femininas que, mesmo em ambientes
reconhecíveis, apresentem o olhar fixo ou sem expressão, ou uma postura corporal artificial,
negando um papel ou possível ação sugerida pelo ambiente, configurando uma outra forma
de função “demonstradora”.
4.5.1 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços
públicos (“representação”)
Papel “independente”
Neste papel, o mais frequente do grupo, as mulheres estão sozinhas, principalmente
em espaços públicos, fazendo alguma atividade física ou em deslocamento.
Defendemos que uma das marcas de identificação deste papel, e também de sua
denominação, é a temática do consumo: é a mulher que não depende financeiramente de
Tipo de regime iconográficoCritérios de identificação do papel
social da figura femininaLandowski Goffman
flagrante delitoflagrante (“cenas da vida”,
espontâneas ou construídas)
ação encenada, ambiente, objetos, interação entre sujeitos
retrato oficial retrato (com correspondência de olhar)
apesar de “não estar fazendo nada”, há um “estado de comunicação”; caracterização de um ambiente
clichê antropométrico retrato (sem correspondência de olhar)
olhar fixo, olhar sem expressão; ambiente não neutraliza artificialidade
(“manequim”)
Conforme FLOCH, J-M. Sémiotique, marketing e communication: sous les signes, les stratégies. Paris: 46
PUF, 1995. 2 ed. p. 149.
!131
outros, que anda só pelas ruas da cidade, que passeia e viaja. Se nas “independentes” de
Veja o consumo é figurativizado pelo texto verbal ou pela ambientação em lojas, aqui um
traço frequente é a bolsa – acessório que o senso comum diz ser o preferido das mulheres
(figura 27).
Evidentemente, muitos anúncios que apresentam este papel são de marcas que
produzem e vendem este produto. Mas, como já salientamos, houve uma preferência por
mostrar a mulher em algum tipo de ambiente ou atividade sugestivos de uma atuação social,
em detrimento daquelas outras configurações posturais mais “conceituais” (ou “míticas”)
típicas dos editoriais de moda. Faz parte desta estratégia discursiva uma intenção de fazer o
público-alvo se reconhecer um pouco no simulacro da consumidora que está no anúncio.
Uma outra configuração postural que quase não foi vista nos anúncios de Veja são as
pernas assumidamente abertas (figura 27). Os anúncios em que as mulheres estão nesta
posição também são, majoritariamente, do segmento de moda. No exemplar assinado pela
Le Lis Blanc, é interessante notar que a postura parece ter sido adotada muito mais para
conforto da mulher do que para seduzir o observador: ela parece estar à vontade. O uso da
máquina fotográfica sugere, inclusive, que as posições do sujeito da enunciação podem se
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente: Carrano, setembro de 2011; Lessô, dezembro de 2011; City Shoes, agosto de 2011; City Shoes, junho de 2012; Rexona, março de 2012; Vanish, agosto de
2011; Arezzo, maio de 2012. Fonte: as edições da revista.
Figura 27 – anúncios com a mulher no papel “independente” usando bolsa
!132
alternar a qualquer momento, com a modelo deixando de ser objeto da fotografia para se
tornar, por seu turno, a fotógrafa de algum outro corpo-objeto (o do fotógrafo e, por
extensão, o nosso?).
Em termos de roupas, o vestido é maioria neste grupo, seguido pela calça e pela saia
em quantidades bastante próximas. A maior parte destas mulheres está em pé e em
movimento.
Papel “amiga”
Em Veja, foi um papel de pouca presença. Em Claudia, é o segundo mais frequente.
Nas duas revistas, a “amiga” aparece mais em anúncios de marcas de moda e acessórios. A
diferença é que, em Claudia, estas “amigas” estão em espaços públicos, compartilhando a
Figura 28 – anúncios Clínica Rolfsen, Maria Valentina e Le Lis Blanc
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de novembro de 2011, outubro de 2011 e abril de 2012. Fonte: as edições da revista.
Figura 29 – anúncios Stroke
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de setembro de 2011, novembro de 2011 e abril de 2012. Fonte: as edições da revista.
!133
vida e não somente os segredos da vida que partilham com outros. Em muitos deles há uma
sugestão de movimento e um direcionamento do olhar que não é para o observador.
Na série de anúncios da marca Stroke (figura 29), as mulheres estão próximas
fisicamente, com seus corpos se tocando, configuração parecida com a do anúncio de
Vivara (figura 9a). No exemplar da marca de joias tal proximidade sugestiva de um
relacionamento amoroso era destinada à fruição do outro, remetendo ao senso comum do
repertório de fantasias sexuais masculinas (observar duas mulheres fazendo sexo, mas não
para deleite delas, e sim dele). Neste caso, as mulheres estão absorvidas entre si ou com o
ambiente, sem olhar para o observador. Por mais que o contato físico possa ser aquele que
acontece entre amigas íntimas, a configuração dos corpos e roupas sugere uma axiologia
masculino x feminino, ou seja, a de um casal, sendo que a modelo de cabelos escuros
ocupa a primeira posição e a de cabelos claros, a segunda. Em termos de ocorrência de
roupas, neste papel o vestido é maioria, seguido pela calça e pela saia.
Papel “manequim”
Neste papel, o vestido é grande maioria. A calça aparece duas vezes e a saia, apenas
uma. Quase metade dos anúncios deste grupo é de produtos de perfumaria e beleza
(fragrâncias, tintura para cabelo, esmalte), portanto, sem a obrigação de apresentar
determinada peça de roupa. Em todos eles a mulher está de vestido (a calça aparece em
anúncios de marcas de moda que podem estar querendo promover esta peça).
Em termos de postura, destacam-se as posições não naturais do corpo, que exigem
um esforço para serem mantidas, mas cujo esforço não se percebe na musculatura de
braços e pernas. A postura com o quadril jogado para o lado é obrigatória quando a mulher
está em pé e ocorre bastante mesmo quando está sentada. A cabeça normalmente está
Figura 30 – respectivamente, anúncios Corello, Maria Valentina e Avon
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de outubro de 2011, março de 2012 e fevereiro de 2012. Fonte: as edições da revista.
!134
inclinada para o lado ou para baixo, raramente alinhada com o eixo do tronco. O olhar é
vazio e distante ou semiaberto e sedutor. Muitas vezes, o quadril jogado para o lado é
acompanhado pela mão na cintura ou no quadril, do jeito “tradicional”, com o polegar para
trás (figura 30). Como já assinalamos, este parece ser um modo mais “sensual” do que
aquele em que o polegar fica para frente junto com os outros dedos.
Papel “profissional”
O papel “profissional”, que era o mais frequente nos anúncios deste grupo
(“locação”/“representação”) em Veja, em Claudia é bem menos representativo. Alguns deles
são os mesmos veiculados na revista semanal, como os do banco Santander e da marca de
computadores Dell. Um aspecto interessante é a comparação entre anúncios da marca
Panasonic veiculados nas duas revistas: enquanto em Claudia ele mostra a mulher
“profissional”, em Veja ele mostra a “dona-de-casa” (figuras 31a e 31b). Ambos, no entanto,
apresentam a mulher de calça, que é o vestuário mais presente entre as mulheres
profissionais das duas revistas e também entre as donas de casa de Veja.
Papel “mãe”
Mulheres no papel de “mãe” e “esposa” aparecem em último lugar entre os anúncios
que mostram ambientes identificáveis e espaços públicos. A maioria dos anúncios com
“mães” é assinada por uma marca de roupas para gestantes (figura 32). Neles, a mulher
está principalmente usando vestido e é acompanhada pelo “marido”. Este homem fica
próximo em uma atitude protetora. Quando a cena produz um efeito de sentido de
sensualidade – a versão em que o traje é preto e o homem está sem camisa –, o casal está
afastado. A mulher é olhada e admirada, mas está distante, quase em uma situação
Figuras 31a e 31b – respectivamente, anúncios Panasonic veiculados em Veja e em Claudia
Anúncios veiculados na revista Veja, edição de 28 de março de 2012, e na revista Claudia, edição de maio de 2012. Fonte: as edições das revistas.
!135
“santificada”, como se a gravidez exigisse que a relação sexual presumida ficasse apenas
no plano do desejo e do potencial, sem ser atualizada. É significante notar, também, que a
única gestante sozinha usa calça comprida, e não vestido.
Papel “esposa”
Nos anúncios de Claudia que apresentam o papel de “esposa”, todas as mulheres
estão de calça. Observa-se que os anúncios deste grupo se dividem entre aqueles que
promovem viagens (turismo) e os que promovem produtos destinados à chamada “terceira
idade”, como fraldas geriátricas e um suplemento alimentar. No caso do anúncios das
fraldas, a temática também é a de viagem (figura 33).
Figura 33 – anúncios Ensure, Plenitud, Turismo de Portugal e Samsonite
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de outubro de 2011, fevereiro de 2012, outubro de de 2011 e fevereiro de 2012. Fonte: as edições da revista.
Figura 32 – anúncios Mammy Gestante
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de setembro de 2011, dezembro de 2011, novembro de 2011 e agosto de 2011. Fonte: as edições da revista.
!136
4.5.2 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços
privados (“coxias”)
Papel “independente”
Neste mesmo grupo em Veja, o papel “independente” era o que menos aparecia. Em
Claudia, ainda que por pouca diferença em relação aos outros, ele é predominante. A mulher
é apresentada sozinha em sua casa, em três tipos de situação: satisfeita consigo mesma,
sorri para os objetos que são veículos dessa satisfação (figuras 34a e 34b); imersa em
pensamentos ou na leitura (figuras 35a e 35b); olhando para o leitor, sugerindo sensualidade
(figuras 35c e 35d). Em apenas um dos anúncios desta última situação a mulher usa
vestido. Nas outras, está de calça. Notamos aqui, de novo, a presença da mulher sentada
de pernas abertas.
Figuras 35a, 35b, 35c e 35d – anúncios Maria Valentina, Editora Abril, Estilo e Avon
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de novembro de 2011, novembro de 2011, abril de 2012 e abril de 2012. Fonte: as edições da revista.
Figuras 34a e 34b – anúncios Delícia e Caixa
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de junho de 2012 e outubro de de 2011. Fonte: as edições da revista.
!137
Papéis “esposa” e “mãe”
Mulheres no papel de “esposa” e “mãe” aparecem em segundo lugar. Aqui também
inverte-se a predominância das roupas em relação à Veja. Enquanto a revista semanal
apresentava “esposas” em espaços privativos
usando principalmente calça, em Claudia elas
usam principalmente vestido (e uma saia). No
caso das “mães”, a calça é maioria. Quanto à
roupa desse papel, as duas revistas são
similares.
Papéis “manequim” e “amante”
Estes papéis são os últimos em número
neste grupo. As mulheres nestes papéis usam
principalmente vestido (uma usa saia). O
papel “amante” ocorre em um anúncio
assinado pela marca de relógios Lince (figura
36), a mesma dos anúncios com este papel
em Veja (figura 6a). Apesar de a modelo, o
cenário e o cromatismo serem os mesmos,
nesta versão veiculada em Claudia a postura
é mais contida. A mulher não está no chão e
sua co rpo ra l i dade f i gu ra t i v i za uma
disponibilidade sexual menos explícita que a
dos outros anúncios da série.
4.5.3 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em
privatização dos espaços públicos (“ensaio”)
Papel “anfitriã”
Definimos o papel que ocupa este espaço como o de “anfitriã”, aquela que cuida dos
ambientes da casa que recebem pessoas estranhas e que estão nestes ambientes com um
tipo de roupa e postura que não configuram o estar à vontade em casa, e sim uma certa
tensão pela espera de um visitante – que pode até ser amoroso. Em Claudia, as mulheres
neste papel usam igualmente saia e vestido, mas diferente de Veja, estão principalmente
sentadas.
Anúncio veiculado na revista Claudia, edição de junho de 2012. Fonte: a edição da revista.
Figura 36 – anúncio Lince
!138
4.5.5 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “tela”
Papel “manequim”
É o papel predominante nos anúncios deste grupo, com a grande maioria das
mulheres usando vestido. A saia aparece apenas uma vez. As expressões faciais das figuras
femininas se dividem entre a combinação de olhar e sorriso que sugere sensualidade e
aquela de olhos e sorriso bem abertos que, associada à postura, indica uma função
demonstrativa do produto (figura 37a) ou dos benefícios que ele proporciona (figura 37b).
A contraposição destes dois anúncios ilustra também uma diferença recorrente quanto
à “respeitabilidade” da mulher. Sabemos que a apresentadora Angélica é mãe e o “produto”
que ajuda a promover é um concurso para bebês patrocinado pela marca de pomada
Hipoglós. A calça comprida é a roupa que tem vestido as mães em grande parte dos
anúncios analisados até agora. Já no anúncio de Veet, cujo benefício é um procedimento
mais s imples de uso do creme
depilatório, a mulher usa vestido e toca
a perna já mais lisa após a depilação.
Há um evidente prazer neste toque,
acompanhado de uma postura que
projeta o corpo para frente e o quadril
para o lado e para trás. Nota-se,
também a recorrência da cor rosa em
anúncios de produtos (creme depilatório,
sabonetes íntimos, absorventes) que
oferecem um poder-eliminar ou disfarçar
aspectos naturais do corpo, como
cheiros e pelos. Considerando que a cor
rosa, enquanto figura de conteúdo,
participa da construção de uma temática feminina, temos aí a questão da assepsia, ou de
uma desnaturalização do corpo, como valor associado à mulher.
Papéis “profissional” e “amiga”
As mulheres no papel “profissional” também estão prioritariamente de vestido. Suas
ocupações estão relacionadas às artes (uma pianista e uma cantora) e à moda
(“blogueiras”). Esta última ocupação aparece no anúncio dos relógios Dumont (figura 38a),
que se destaca por destoar de uma configuração frequente nos anúncios de relógios vistos
até então, que é a mulher com expressão facial e postura que sugerem disponibilidade
sexual. Esta configuração volta a aparecer no anúncio dos relógios Euro (figura 38b), onde
Figuras 37a e 37b – anúncios Hipoglós e Veet
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de setembro de 2011 e dezembro de 2011.
Fonte: as edições da revista.
!139
classificamos o papel feminino como o de “amiga”. A distribuição dos corpos de modo a
formar um triângulo, por sua vez, se assemelha àquela da publicidade da marca de jóias
Vivara (figura 9a, anúncios de Veja), cujas mulheres também foram categorizadas como
“amigas”. Aqui, neste grupo, as “amigas” aparecem majoritariamente de vestido.
Papel “esposa” e “independente”
Estes papéis aparecem com igual
q u a n t i d a d e d e m u l h e r e s . O p a p e l
“independente” é figurativizado pela prática
esportiva e pelo consumo, como acontece em
outros exemplares. O esporte aparece
também no anúncio onde a mulher está
“comprando” (figura 39), manifestado em uma
segunda figura feminina, que por usar shorts
não está sendo considerada na análise. A
comparação destas duas figuras, de seus
trajes e corpos, oferece alguns traços
significantes.
A esportista Rosângela Santos aparece
com uniforme de corrida e uma postura que
quase não se encontra nas figuras femininas
nos anúncios: não há torção do tronco, que
permanece alinhado em seu eixo vertical; as
Figuras 38a e 38b – anúncios Dumont e Euro
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de maio de 2012 e dezembro de 2011. Fonte: as edições da revista.
Anúncio veiculado na revista Claudia, edição de fevereiro de 2012. Fonte: a edição da revista.
Figura 39 – anúncio Caixa
!140
pernas estão separadas, mas não com o joelho dobrado, como é de praxe; as mãos na
cintura sugerem desafio, e não sensualidade. Ao contrário, a “consumidora” usa vestido,
está caminhando e, neste ato, dobra o joelho e “quebra” o quadril. Suas mãos estão
ocupadas com as sacolas, sugerindo um efeito de restrição de movimento (conforme
comparação entre as mulheres do anúncio TAM, figura 21) que contrasta com a “liberdade”
das mãos livres da esportista.
Como se pode observar até agora, as mulheres presentes nos anúncios são
majoritariamente magras, jovens e brancas. Tal figurativização não foge ao que outros
estudos e análises observam em relação às manifestações do discurso da publicidade no
que se refere às raças. Édison Gastaldo aponta um tipo de “retórica visual” da publicidade
com temática esportiva em que os negros são os atletas ou membros de torcida em 47
lugares públicos (geralmente sem camisa). Enquanto atletas, o desempenho físico
reconhecidamente destacado das pessoas negras é um tipo de sucesso “subalterno”, que
se opõe a um sucesso de maior valor, que é aquele obtido pelo trabalho “mental” dos
brancos. Já o torcedor-consumidor das televisões e outros produtos anunciados, e que
acompanha a transmissão esportiva de dentro de casa, junto à família, é branco.
No anúncio da Caixa, temos uma distribuição parecida: quem consome os produtos do
banco e o evento esportivo (trata-se das Olimpíadas de 2012, realizadas em Londres) é a
mulher de pele mais clara. A mulher negra é a atleta e está menos vestida. A apresentação
dos dois corpos, o mais escuro e o mais claro, valoriza diferentes aspectos desses corpos,
ainda que ambos, de alguma forma, sejam corpos para consumo.
4.5.6 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “estúdio”
Papéis “profissional”, “manequim” e “mãe”
Alguns anúncios que aparecem neste grupo em Claudia são os mesmos do respectivo
grupo em Veja: Avon (figura 18a), TRESemmé (figura 18b) e Orient (figura 19b) no papel
“profissional” e Usaflex (figura 17b) no papel “manequim”. Ainda da mesma forma que em
Veja, mulheres nestes dois papéis aparecem em igual quantidade.
No papel “profissional”, exceto pela figura feminina de Avon, as mulheres pertencem a
um conjunto que se costuma chamar de “celebridades” – atrizes, modelos e cantoras –, e
que raramente vão aparecer usando calça. Aqui se abre uma exceção, pois a calça é
maioria, seguida pelo vestido e pela saia. Já no papel “manequim” o vestido é a roupa em
maior quantidade.
Neste grupo, o papel de “mãe” aparece em uma configuração muito distinta daquela
GASTALDO, 2013, p. 88-99. O título do capítulo que apresenta este estudo é “Negros jogam, brancos torcem: 47
a ritualização das relações raciais na Copa do Mundo”. A Copa do Mundo a que o autor se refere é a de 1998.
!141
vista até agora. São dois anúncios
(figuras 40a e 40b) que promovem um
suplemento alimentar “emagrecedor”,
apesar desta palavra não estar presente
no texto. A promessa de diminuição de
medidas é sugerida pelos depoimentos
das mulheres retratadas, que fazem
menção à beleza e, especialmente, ao
uso de tamanhos de roupa menores. As
mulheres que dão esses depoimentos
são apresentadas como mães. Todas
usam roupas muito justas que deixam à
mostra colo, barriga e/ou pernas, e
a d o t a m p o s t u r a s b a s t a n t e
sensualizadas. Outro fator que diferencia as “mães” destes anúncios é a ausência dos filhos,
ou melhor, de crianças, nos enunciados. No anúncio em que aparecem mãe e filha, esta
última já é adulta e serve tanto para ajudar a mostrar os benefícios do produto quanto para
servir de parâmetro de beleza para a mãe: usar o mesmo manequim da filha.
O que há de semelhante entre esses e outros anúncios com a presença de mães é o
uso prioritário da calça, ainda que plasticamente se diferencie bastante das calças usadas
pelas mães com crianças. Destaca-se também o fato de que a única mulher de vestido está
sentada.
4.6 A construção dos papéis sociais em Exame
Uma das hipóteses levantadas em relação à diferença dos anúncios entre as revistas,
baseada na premissa de que a publicidade vai se adequar, tematicamente, ao estilo editorial
e ao público-alvo da publicação, confirma-se quando se observa os exemplares da revista
Exame. A figurativização de ambientes profissionais é muito presente, enquanto a
figurativização de ambientes domésticos é bem menos expressiva. Tanto um quanto outro
ambiente, no entanto, aparecem em anúncios que já havíamos encontrado na revista Veja.
Se a figurativização de ambientes profissionais sugere que as mulheres ali
caracterizadas serão aquelas em situação de trabalho, trajadas de acordo com o simulacro
deste papel temático e do perfil das leitoras da revista, ganham destaque alguns anúncios
em que a presença feminina é meramente decorativa, ou seja: enunciados que destoam
muito de um estilo discursivo que seria o adequado para uma publicação lida por homens e
mulheres profissionais. Detalhamos estas questões nas classificações seguintes.
Figuras 40a e 40b – anúncios Nutrilatina
Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de setembro de 2011 e outubro de 2011.
Fonte: as edições da revista.
!142
4.6.1 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços
públicos (“representação”)
Papel “profissional”
De maneira similar à Veja, o papel mais presente nos anúncios com figurativização de
espaços públicos é o “profissional” e a calça é a roupa mais usada pelas mulheres. No
entanto, diferente do que ocorre na revista semanal, em Exame a saia é bastante numerosa
neste papel (figura 41). Se formos considerar apenas as figuras femininas em escritórios, a
saia é maioria, e de dois tipos bastante específicos: a saia reta ou a saia-lápis de alfaiataria
(cf. capítulo 2). As cores são sóbrias e elas são usadas normalmente com camisa ou blusa
de tecido plano , às vezes sobrepostas por um cardigã ou paletó, neste último caso 48
compondo o tailleur. Os sapatos sempre são de saltos altos. De maneira superficial, já se
constata um tipo de traje que restringe os movimentos, em oposição a saias mais amplas e
fluidas e blusas de tecido “mole”. Já o vestido, que vem em segundo lugar como a roupa
mais usada pelas mulheres profissionais em Veja, aparece uma única vez em Exame.
Papel “independente”
O segundo papel mais frequente é o “independente”, no qual as mulheres usam
apenas calça. As atividades principais são as viagens, as atividades físicas ou de lazer e o
consumo. Se o consumo era preponderante entre as “independentes” de Claudia – tema
figurativizado pela bolsa –, a viagem o é em Exame. Delineia-se, também, a reiteração do
uso da calça como peça de roupa obrigatória para viagens, conforme recomenda Inès de La
Um exemplo de tecido plano é o tricoline, feito de fios de algodão e muito usado na confecção de camisas. 48
Este tipo de tecido difere da malha. A malha é mais “mole”, mais informal, delineia mais as formas do corpo. Ao mesmo tempo, é mais confortável.
Figura 41 – anúncios Samsung, TIM, FGV e Algar
Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 30/11/2011, 18/04/2012, 16/11/2011 e 10/08/2011. Fonte: as edições da revista.
!143
Fressange em seu guia de estilo (cf. capítulo 2).
Interessa destacar neste grupo um anúncio da Siemens (figura 42) com uma foto
“flagrante”, de estilo jornalístico, que não parece ter sido produzida, e que mostra o vai-e-
vem de pessoas em uma estação de metrô da Linha Amarela, em São Paulo. Esta imagem
manifesta uma observação que temos feito empiricamente: quando circulam pelas ruas dos
grandes centros urbanos, à pé ou no transporte público, as mulheres evitam a saia e o
vestido. O menor uso da vestimenta aberta nestas situações também foi abordada no
capítulo 2.
Este exemplar é ilustrativo de um tipo de aspectualização muito comum dos homens e
mulheres nos anúncios de Exame. Como havíamos dito no capítulo 3, o critério para a
classificação dos anúncios pela presença de figuras humanas não levava em conta o status
da participação desta figura no contexto do anúncio,
seja em termos de tamanho, seja pela colocação em
algum plano de destaque. A revista Exame apresentou
anúncios com uma considerável presença de mulheres.
Porém, não poucas vezes, quando as mulheres
aparecem nos anúncios é com menor destaque e em
posição subalterna ao homem (em termos plásticos e
de conteúdo). Nos anúncios que integram o corpus
semiótico isso quase não se percebe, visto que eles
forma selecionados justamente por apresentarem uma
aspectualização da mulher que permite observar sua
vestimenta. Conforme já apontamos no final do capítulo
3, dentre as três revistas, Exame é a que tinha menos
anúncios com mulheres destacadas o suficiente de
maneira a permitir a visualização completa de sua
roupa.
Papéis “esposa” e “mãe”
As “esposas” nas situações de papéis públicos em Veja e Claudia apareciam
principalmente de calça. Aqui, a roupa predominante é o vestido. Outro aspecto interessante
que ocorre nesta revista é a mulher acompanhada de dois homens em situação que não
seja de trabalho (figura 43). Tal distribuição de figuras femininas e masculinas é rara:
normalmente, é um único homem que aparece com mais mulheres. No papel de “mãe”,
assim como nas outras publicações, a roupa predominante é a calça.
Anúncio veiculado na revista Exame, na edição de 27/06/2012. Fonte: a
edição da revista.
Figura 42 – anúncio Siemens
!144
4.6.2 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços
privados (“coxias”)
Papel “independente”
Na revista Veja, a mulher quase não aparecia sozinha em casa, fazendo coisas para
si, caracterizando o papel “independente”. Em Claudia este é o principal papel das mulheres
nos espaços privados; em Exame, ainda que no contexto de poucos anúncios com
figurativização deste tipo de espaço, tal papel se destaca. As duas situações são de
consumo e as figuras femininas estão provando uma roupa que parecem ter comprado via
internet (figura 44).
Figura 44 – anúncios IBM e Correios/SEDEX
Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 13/06/2012 e 19/10/2011. Fonte: as edições da revista.
Figura 43 – anúncios Air France e VR com mulher acompanhada por mais de um homem
Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 19/10/2011 e 5/10/2011. Fonte: as edições da revista.
!145
Papel “esposa”
Outro papel deste grupo é o de “esposa”, em que as mulheres usam calça, como tem
sido recorrente. As situações deste papel também são de consumo, mas de bens de alto
valor, como casa e automóvel. Seja pela feliz surpresa (figura 46a) ou pelo gesto de grata
felicidade (figura 46b), parece que a mulher foi ausente, ou apenas coadjuvante, do
processo de aquisição destes bens.
Papel “dona-de-casa”
O último papel deste grupo é o de dona-de-casa, em um anúncio da Panasonic que
também foi veiculado em Veja. Na figura 31a (seção 4.3.1.1) podemos ver este anúncio ao
lado da versão que foi publicada em Claudia; naquele trecho, observamos que a revista
feminina traz a consumidora de Panasonic em um papel “profissional”, enquanto a revista
semanal apresenta-a em um papel doméstico – e agora, também a revista de negócios. O
anúncio de Veja foi publicado em março, o de Exame em abril e o de Claudia, em maio.
4.6.4 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “tela”
Papel “profissional”
Assim como em Veja, este é o papel mais frequente nos anúncios com ausência de
ilusão referencial de um ambiente do mundo natural. A grande maioria das mulheres neste
papel aparece de calça. Saia e vestido têm uma única ocorrência cada, diferente do que
observado nas mulheres do mesmo papel no grupo “locação”. O traje profissional é
especialmente a calça de alfaiataria, a camisa de tecido plano e, às vezes, o paletó (figura
46a). Quando o trabalho ou a profissão não são aqueles do escritório, o traje fica um pouco
Figuras 45a e 46b – anúncios Itaú e CRECI
Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 13/06/2012 e 5/10/2011. Fonte: as edições da revista.
!146
mais informal. A calça pode assumir uma modelagem diferente, mais larga e com mais
detalhes (figura 46b). E o conjunto saia-e-blusa, ainda que a peça de baixo seja estilo
“lápis”, distancia-se do aspecto de uniforme (figura 46c).
Quando se considera o uso da saia e do vestido pelas mulheres profissionais, a
diferença que vemos aqui reitera uma ocorrência mais geral das revistas: o vestido e a saia
com formas mais soltas, ou com estampas, ou mais vaporosos, são usados por profissões
ligadas às artes ou à mídia (incluindo as “celebridades”). Um certo tipo de saia, e também de
vestido e calça, de tecido não-maleável e ajustado ao corpo, são figuras que compõem uma
temática de seriedade associada ao mundo do trabalho corporativo e, como vimos,
constituem o paradigma da masculinidade (cf. capítulo 2).
Papéis “manequim” e “mãe”
Estes papéis têm pouca ocorrência. As mulheres como “manequim” apresentam a
função “demonstradora” e aparecem principalmente usando vestido, assim como ocorreu
em outros tipos de anúncios e em outras revistas.
O papel de “mãe” está em apenas dois exemplares. Um deles é o anúncio da fábrica
PSA Peugeot Citroën (figura 47a), e chama a atenção pela intertextualidade com um tipo de
adesivo de carro muito usado na época da coleta dos anúncios: aquele formado por
“bonecos”, figuras humanas e animais do mundo natural traduzidas por meio de
“esquematismos vagos” ou de uma “figuratividade normal”, que Greimas associa aos
desenhos infantis. Tal recurso foi utilizado em outro anúncio do segmento automotivo,
encontrado na revista Veja (Postos BR – figura 47b).
Figuras 46a, 46b e 46c – anúncios DHL e Nextel
Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 5/10/2011, 28/12/2011 e 16/11/2011. Fonte: as edições da revista.
!147
Os traços distintivos do feminino
nestes anúncios são a saia e o vestido –
semelhantes no que se refere à
ocultação da divisão entre as pernas. O
traço distintivo do masculino é a gravata.
A continuidade cromática do traje do
homem na figura 47b sugere o uso do
terno, peça mais formal e de valoração
social superior, em comparação com o
uso da camisa sem paletó na figura 47a.
Por extensão, a continuidade do vestido
sugere o mesmo tipo de valoração
superior em relação à saia.
4.6.5 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “estúdio”
Papel “manequim”
Este é o papel que mais aparece nos anúncios de tipo “estúdio”, graças a uma
sequência de publicidades assinada pelo shopping Golden Square (figura 48). O que nos faz
entender esta figura feminina como demonstradora e não como simulacro do público-alvo é
o fato de que tais anúncios são business-to-business, ou seja, têm o objetivo de atrair
lojistas para o empreendimento, argumento reforçado quando se observa a quantidade de
inserções em uma revista de negócios. Já havíamos feito essa ressalva quando um anúncio
desta série apareceu entre os publicados em Veja (figura 16a). A postura de apelo sensual,
que se reconhece como pertencente à iconografia dos editoriais de moda, tem aqui outra
função, que vai além da constatação do shopping como um negócio do segmento de moda.
Nestes anúncios a mulher veste calça (um deles como visto em Veja), saia e vestido. A
série talvez seja privilegiada para se apontar alguns aspectos posturais que sugerem a
oferta do corpo, no sentido de que partes do corpo são destacadas do alinhamento vertical
da cabeça, tronco e pernas, para frente ou para trás, para direita ou para a esquerda. O
tronco é projetado para frente, destacando os seios; o quadril é projetado para o lado ou
para trás. O efeito é complementado pelo olhar oblíquo e lábios entreabertos. Nesta série
tais aspectos aparecem quase que simultaneamente em todos os exemplares; em outros
anúncios eles podem aparecer separadamente, deixando marcas de uma escolha do
enunciador pelas posturas disponíveis no inventário de configurações sensuais do corpo.
Figuras 47a e 47b – anúncios PSA Peugeot Citroën e Postos BR
Anúncios veiculados respectivamente nas revistas Exame, edição de 25/01/2012, e Veja, edição de
27/06/2012. Fonte: as edições das revistas.
!148
Papéis “profissional”, “independente” e “esposa”
Os demais papéis deste grupo aparecem em pouca quantidade. No papel
“profissional”, todas as mulheres estão de calça; no “independente” estão de vestido, e o
anúncio coloca a mulher como protagonista da compra de um apartamento, diferente do
observado nos anúncios 45a e 45b. No papel “esposa”, a figura feminina está de calça,
reiterando a roupa usada pela maior parte das mulheres neste papel.
4.7 Papéis sociais e roupas em Veja, Claudia e Exame: algumas conclusões
Considerando a participação proporcional dos papéis em cada revista (gráfico 1),
vemos que em Veja a mulher que aparece com maior destaque é a “profissional”; em
Claudia, dois papéis têm uma grande presença, “manequim” e “independente”; em Exame, o
papel “independente” é o que mais aparece, seguido pelo de “esposa”.
Em termos de relação da predominância destes papéis com o público leitor das
revistas, aparecem algumas situações curiosas. Esperava-se que uma maioria de papéis
profissionais fosse proporcionalmente mais acentuada em Exame, que é uma revista de
conteúdo especialmente dirigido à atuação profissional dos leitores, homens e mulheres. Ao
Figura 48 – anúncios Golden Square
Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 8/02/2012, 14/12/2011, 5/10/2011 e 2/11/2011. Fonte: as edições da revista.
!149
invés disso, aparecem papéis que não estão relacionados à atuação profissional da mulher,
como o de “esposa” – que é o segundo mais presente –, o de “dona-de-casa” (que não está
em Claudia) e o de “mãe”. Este último aparece na revista de finanças na mesma proporção
que nas outras duas publicações. Como já havíamos apontado, em Claudia aparecem mais
mulheres sozinhas ou com “amigas”, em papéis que sugerem uma certa autonomia e um
cuidado de si mesma e a fruição da companhia de outras mulheres.
As observações acima apontam a participação proporcional dos papéis em cada
revista. Ou seja, quais os papéis mais presentes no contexto das publicações. Quando
destacamos que há muitos papéis não-profissionais em Exame, estamos chamando atenção
para o fato de que, dentre todos os anúncios que mostram claramente as mulheres e suas
roupas nesta revista, a principal não é a mulher “profissional”.
Uma outra abordagem analítica é verificar em quais publicações cada papel mais
aparece (gráfico 2). “Amante” aparece mais em Veja, apenas uma vez em Claudia e não em
Exame. Já havíamos apontado que em Claudia o anúncio que apresenta este papel integra
a mesma série que o apresenta em Veja, mas na revista feminina a figurativização da
disponibilidade sexual está suavizada. Há um interesse da marca que assina estes anúncios
em mostrar a mulher à espera do parceiro em uma publicação de alcance mais geral, o que
também generaliza este papel feminino.
Papéis em que a mulher está “fazendo algo” sozinha ou está na companhia de outras
mulheres aparecem mais em Claudia (“independente” e “amiga”). Vimos, também, que as
“amigas” de Claudia estão mais interessadas em si mesmas ou em algo que acontece no
enunciado, e menos em impressionar o leitor, como são as “amigas” de Veja. A mulher
independente tem também grande participação nos anúncios de Exame. Os papéis mais
“tradicionais” da mulher, como “esposa” e “mãe”, aparecem mais em Veja. Poderíamos
incluir o “dona-de-casa” neste grupo, mas a quantidade de exemplares é muito pequena.
Gráfico 1 – Participação proporcional dos papéis sociais no contexto de cada revista.
Fonte: tabela 10 – Apêndice A. Produção da autora.
Universidad de Lima, Fondo Editorial, 2009, 1. ed., p. 80. Tradução nossa para: “[É]l es quien decide la orientación, y con frecuencia incluso el resultado de los procesos en los que interviene”.
LANDOWSKI, 2009, p. 80.51
!154
Já nos papéis regidos pela manipulação, há uma intencionalidade de atrair o olhar do
Outro (por oposição, o masculino, atualizado ou virtualizado) que se manifesta na postura,
na interação entre a roupa e o corpo, no sorriso e nos modos de olhar. Nesta posição estão
os papéis de “amante” e “manequim”. Enquanto as duas posições do eixo superior estão
relacionadas ao ser, as do eixo inferior referem-se ao fazer. As configurações de roupa e
corpo constituem-se em competências modais para fazer o outro querer.
Por estar mais presente em Claudia (público feminino) poder-se-ia argumentar a
incoerência de alocar o papel “manequim” no mesmo regime que o da “amante” (mais
presente em Veja), já que este segundo papel atrai mais o olhar masculino. A iconografia
das fotografias de moda ou de produtos de beleza, no entanto (segmentos que dominam os
anúncios com o papel de “manequim”), apresenta um tipo de configuração postural bastante
sexualizada e considerada desejável do ponto de vista masculino (e assumida pelas
mulheres como um dever-fazer). Um exemplo é o anúncio do shopping Golden Square, que
usa esses recursos sem, no entanto, anunciar para mulheres: a configuração da iconografia
de moda serve para atrair o público masculino da revista Exame.
Por último, no regime de ajuste encontra-se o papel “profissional”, onde os sujeitos
atuam baseados em uma competência estésica com a intenção de fazer sentir. O ambiente
profissional talvez seja aquele mais cobrado por ajustes nas relações entre homens e
mulheres, devido à percepção ilusória de que no trabalho todos são iguais. Assim, há que se
adaptar aos estilos diferentes com os quais homens e mulheres realizam suas funções ou
quando trabalham em equipe; ambos precisam seguir regras vestimentares; mulheres não
podem ser demitidas quando engravidam; e por aí vai. Parece haver um senso comum de
que quando falham nos outros papéis, as mulheres se realizam no trabalho, oferecendo uma
possibilidade de trazer sentido à sua vida.
Outro aspecto é que o ambiente profissional, especialmente o corporativo e
especialmente se a mulher for bem-sucedida, é o lugar da manifestação da independência
feminina. No entanto, boa parte dos anúncios com este papel mostra a mulher em
companhia de homens. Profissionais que aparecem sozinhas são, na maior parte, da área
artística (ou “celebridades”), o que não representa o simulacro da leitora das revistas e nem
das mulheres com quem o leitor convive. Há um outro fator relacionado à roupa: o que os
manuais de elegância chamam de feminino apresenta, muitas vezes, uma configuração
plástica da ordem do masculino, como vimos no capítulo 2. Este tipo de “feminilidade”
estaria, parece, no tipo da roupa (saia ou vestido) e em uma certa capacidade de
sexualização do corpo. Um exemplo é o anúncio da FGV, que escolhemos para ilustrar esta
posição. Tanto a mulher executiva não está sozinha quanto sua saia, mesmo aquela que se
considera indicada para o escritório, é justa e delineia a curvatura posterior do corpo. A
posição das figuras humanas, de perfil, só ajuda a destacar este aspecto.
!155
Estabelecidos os regimes que regem as relações entre masculino e feminino em cada
grupo de papéis, podemos investir semanticamente cada posição justamente de acordo com
a dependência que mencionamos antes (figura 49).
Figura 49 – representação dos regimes de interação e da relação de dependência dos papéis femininos ao masculino
Fonte: produção da autora.
As interações programadas, como já vimos, são aquelas consideradas socialmente
ideais para a mulher. O conceito de “capital marital”, assumido pelas próprias mulheres
(ainda que a “economia” do amor ou do casamento não as beneficie, colocando-as em um
beco sem saída), está atrelado à posse, se não de fato, ao menos de direito, do homem.
Temos, portanto, papéis femininos baseados na dependência do masculino.
As interações acidentais, na posição oposta do eixo, baseiam-se na não-dependência
do masculino. O termo “independente”, no entanto, não é o mais adequado. A
regime de programação dependência
papéis “esposa” e “mãe”
regime de acidente autonomia
papéis “independente” e “amiga”
[papel “dona-de-casa”] [papel “anfitriã”]
regime de manipulação liberalidade
papéis “amante” e “manequim”
regime de ajuste liberdade
papel “profissional”
!
!
!
!
!156
independência refere-se à aquisição de competências como recursos materiais ou direitos
civis que permitem à mulher um poder-fazer as coisas. Mas nem sempre estes recursos são
acompanhados de competências pessoais. Por exemplo: a mulher pode comprar um carro
com os recursos do próprio trabalho, pode dirigi-lo sozinha, pode usá-lo para ir até um
restaurante. Mas muitas não entram sozinhas enquanto o acompanhante ou a amiga não
chegarem, pelo que vão pensar dela, especialmente por não quererem ser vistas como
“mulheres sozinhas”. Os papéis do regime de acidente são baseados, então, não na
independência, mas na autonomia. Como diz Landowski quanto ao actante deste tipo de
interação: não manipula o outro em uma direção particular, nem tampouco justifica suas
decisões . 52
A questão da independência parece, sim, estar na base do papel “profissional”, no
regime de ajuste. De acordo com algumas características das dinâmicas do mundo
corporativo que apontamos acima, este é o espaço em que parece se efetivar a
independência feminina, até porque é o lugar da aquisição da competência financeira. No
entanto, vimos que há uma reiteração significante de anúncios em que as mulheres neste
papel aparecem junto aos homens; e ainda que a competência desejável em tal ambiente
seja a profissional, a mulher é figurativizada em trajes e/ou posturas que destacam atributos
físicos, especialmente das partes do corpo sexualizadas culturalmente. Ou seja, ao menos
figurativamente nos simulacros destas publicidades, há uma “dependência”. O papel
profissional estaria baseado, então, na liberdade, que é a condição de poder-fazer, mas não
de poder-ser. Não basta ter dinheiro, se não tiver coragem de entrar sozinha no restaurante
sozinha para degustar um bom jantar.
Também dependentes do masculino são os papéis do regime de manipulação, que
aceitam o acordo tácito de um tipo de interação entre homem e mulher em que a segunda
se “oferece” ao olhar do primeiro, especialmente por seus atributos sexuais. Se mantivermos
a metalinguagem da economia, tal transação subsume um sistema de troca: o sexo pelo
casamento, já adiantando o percurso que pode se dar entre esta posição e a superior, do
regime de programação.
Quando surgiu a pílula anticoncepcional, muito se falou na conquista da “liberdade”
sexual pelas mulheres, o que de fato aconteceu, até certo ponto. Na prática, no entanto, a
maior facilidade na contracepção não conferiu real “autonomia” sexual da mulher, seja no
direito às decisões relativas ao próprio corpo, seja no exercício da sexualidade. Por
exemplo, a mulher ainda é julgada pela quantidade de parceiros sexuais, pelos modo como
faz sexo etc. Costuma-se dizer, então, que se trata muito mais de uma liberalidade sexual,
que facilita o acesso ao sexo, mas que ainda controla este acesso para as mulheres. Um
LANDOWSKI, 2009, p. 78.52
!157
bom exemplo é a personagem Peggy do seriado Mad Men, ambientado em uma grande
agência de propaganda norteamericana no início dos anos 1960. Ao conseguir o emprego
de secretária, seu exame admissional inclui uma visita ao ginecologista. O médico lhe
prescreve a pílula para que não engravide de seus chefes ou colegas de trabalho, visto que
manter relações sexuais com eles é algo tacitamente aceito e incentivado, ainda que não
explícito no contrato de trabalho. Nos papéis “amante” e “manequim”, então, o que se vê são
mulheres figurativizando uma visão masculina da disponibilidade sexual feminina desejável,
ou seja, da liberalidade.
Na representação gráfica dos regimes de interação, Landowski substitui as linhas
retas do quadrado semiótico por linhas curvas, de maneira a privilegiar o processo ao invés
do sistema e de considerar outros postos que não os quatro fixos do polígono . Tal 53
processo prevê que o sujeito pode ocupar diferentes posições no decorrer de um percurso,
como de fato é possível perceber na passagem de um a outro tipo de relação de
dependência do masculino. Da dependência programada a mulher pode passar para a
liberdade, que é alcançada, não exclusivamente, mas com grande importância, pela
independência financeira. De fato, para se atingir um estado de autonomia, tal recurso é
fundamental. Partindo da posição disfórica, a mulher pode se cansar da autonomia – que
não por nada é alocada no regime de acidente, com todo alto preço que isso acarreta na
interação com o outro –, seguindo para a liberalidade e aceitando participar do jogo de
manipulação entre masculino e feminino que pode ter, como um de seus resultados, o
casamento, a dependência e a programação.
Dois papéis encontrados em pouca quantidade nas revistas podem ser encaixados em
posições flutuantes na representação. O de “dona-de-casa”, no eixo vertical esquerdo, entre
os regimes de programação e manipulação. É um papel “tradicional” da mulher que, ainda
que o exerça sozinha, o faz para o marido e/ou os filhos. No eixo vertical contrário, o da
“anfitriã”, ou dona-da-casa, papel que exerce dentro de casa mas não para os outros
moradores, e sim para si e seus interesses.
Estabelecidas as articulações entre papéis sociais e as diversas configurações do
corpo vestido, partimos para o exame mais detalhado destes aspectos nas mulheres de
saia.
LANDOWSKI, 2009, p. 83.53
!158
5 A MULHER DE SAIA
A vida não é justa. É plissada, franzida, godê – e é curta.
Líria Porto
Um dos objetivos específicos deste trabalho é verificar a ocorrência da saia. Se há um
menor uso da saia pelas mulheres dos grandes centros urbanos, haveria também uma
menor presença da saia vestindo as mulheres na publicidade? Considerando os resultados
obtidos após a seleção dos anúncios para constituição do corpus semiótico, cujo
procedimento foi apresentado no capítulo 3, já se percebeu que a saia não era a peça de
roupa mais frequente em nenhuma das três publicações. No capítulo 4, este conjunto de
anúncios sofreu uma redução a partir da exclusão de alguns exemplares pouco significantes
para a análise (baixa visibilidade da roupa, anúncios muito similares entre si). Neste corpus
definitivo, a calça veste 50% das mulheres nos anúncios. O vestido é usado por 38% e a
saia por somente 12% (ver tabela 11 – Apêndice A).
Se classificarmos as roupas por sua função de fechar ou manter aberto o entremeio de
pernas, a calça estaria na primeira categoria, e saia e vestido na segunda. Tal oposição é
considerada tanto por Christine Bard, para falar da vulnerabilidade da vestimenta aberta,
quanto por Anne Hollander, para mostrar a evolução das roupas a partir da necessidade de
diferenciação de gênero.
Ainda que saia e vestido façam parte desta mesma categoria, não se pode dizer que
tenham a mesma posição na constituição do tema da feminilidade. O vestido, enquanto
roupa inteiriça, que une tronco e pernas em uma única unidade sintagmática do corpo
vestido, é uma peça usada originalmente, e durante muito tempo, tanto por homens quanto
por mulheres. É a substituição do “camisolão” por peças que cobriam individualmente cada
perna que vai dar origem à calça, figura de conteúdo e elemento metonímico da
masculinidade. E é a divisão do traje inteiriço em duas peças, corpete e anágua, que vai dar
origem à saia, figura de conteúdo e elemento metonímico da feminilidade.
Nossa premissa quanto a este papel da saia, que não pode ser ocupado pelo vestido,
é reiterado também por diversas práticas e enunciados que associam a saia com o feminino,
inclusive aqueles que demonstram uma intolerância ao feminino e aqueles que, em ação de
resistência, procuram afirmá-lo. Enquanto este último fato justifica o uso da saia em
situações de protesto, o primeiro é um dos motivos para que a saia seja menos utilizada, ou
utilizada em condições específicas (e mais “seguras”).
!159
Outro aspecto relevante da saia é sua associação com a sexualidade. Em termos
históricos, o uso da saia como peça individual – não como parte do traje cuja peça principal
era o vestido –, assumindo a parte inferior do corpo como uma unidade sintagmática
separada do tronco, implicou também assumir a sexualidade feminina adulta, coisa que os
amplos vestidos acabavam por negar ou esconder. Contemporaneamente, percebe-se este
aspecto da saia quando a mulher decide vesti-la para um encontro amoroso ou quando
decide usá-la em situações ou espaços dominados por uma lógica masculina. No primeiro
caso, o uso da saia é eufórico; no segundo, é disfórico, levando a situações de intolerância
baseadas no não-cumprimento de certos percursos narrativos desejáveis para a mulher, ou
no dizer de Anthony Giddens, a uma recusa da “cumplicidade feminina”.
Em adição a todos estes aspectos, já abordados no capítulo 2, uma certa preferência
do masculino pelo vestido ajuda a reforçar a diferenciação de discursos que as duas peças
manifestam. A pintora Frida Kahlo tinha um uso bastante político de suas roupas. Vestia um
tipo de saia no estilo de um povoado mexicano onde as mulheres tinham participação social
muito importante e eram consideradas fortes e sensuais. Já o vestido, usava para agradar o
marido, Diego Rivera . Vestidos também são as roupas que, segundo o jornalista Xico Sá, 54
“[…] nos põe, homens de todas as gerações e gostos, mais românticos. O mais tosco dos
canalhas sucumbe como um romeiro de joelhos diante de Nossa Senhora Aparecida” . 55
Enquanto a saia sinaliza a sexualidade e a autonomia femininas, o vestido “santifica” e torna
as mulheres inatingíveis – o que, de fato, é bem “romântico”, ainda que não no sentido
usado pelo jornalista.
Estabelecida a diferença entre vestido e saia e a reiteração da menor ocorrência de
saia também na publicidade (ao menos, aquela do nosso corpus), passamos à análise
específica das mulheres de saia nos anúncios, considerando os espaços em que atuam, os
papéis sociais que exercem e a articulação entre corpo e roupa. A partir desta grade leitura,
pretendemos observar se também ocorrem na publicidade os outros aspectos da saia que
desenvolvemos no capítulo 2, incluindo a associação entre as diferentes configurações
plásticas e os temas do masculino e do feminino.
5.1 A saia no papel “profissional”
Como já observado, o papel em que a saia é mais presente é o “profissional”. As saias
usadas neste papel, ao menos pelas mulheres que trabalham em escritórios, têm forma
Frida Kahlo: retratos de um estilo. Stylight, s/d. Disponível em: <http://www.stylight.com.br/Love/O-Estilo-De-54
verticalizada, textura de tecido plano, descendo ao longo das pernas sem ficar mais ampla,
como podemos ver na figura 1. Nos anúncios de Algar, TIM e CCR, as mulheres estão
quase de frente. Nos anúncios de Bradesco e FGV, o corpo posicionado diagonalmente faz
ressaltar a parte posterior, especialmente o contorno da saia justa sobre os glúteos.
Segundo as regras de vestimenta no trabalho, saias “reta” e “lápis” são as mais
adequadas para o ambiente do escritório (cf. capítulo 2); em contrapartida, a aderência ao
corpo é considerada inadequada, assim como sandálias e saltos altos. Nenhuma das
mulheres nestes anúncios aparenta usar meia-calça, também considerado incorreto. De
fato, o ato de olhar a pele nua das pernas destas mulheres acaba virtualizando o contato.
Tais modelos de saia são considerados mais “confortáveis”; porém, a postura mostra
uma certa tensão que destoa de um estar à vontade. Exceto pela mulher no anúncio TIM,
que pode flexionar os joelhos e abrir a perna porque a saia envelope permite isso, as
demais estão com as pernas unidas, ou separadas apenas do joelho para baixo. Quando
sentadas, a constrição é ainda mais forte. A saia atua como sujeito-destinador no corpo da
mulher, levando-a a adotar posturas e limitar seus movimentos de acordo com a roupa.
Outra situação que contraria os manuais é o uso da saia para viajar. Nos anúncios de
Azul e TAM as mulheres vestem esta peça, e no anúncio de TIM, apesar de não estar na
viagem-deslocamento, a mulher está em outra cidade. Estes três exemplos também são os
únicos em que a mulher não está acompanhada por um homem – ou seja, quando está fora
do escritório. No anúncio de Algar, o ambiente é o escritório e a mulher não está sozinha, e
sim acompanhada de outra mulher. Este exemplar, encena a relação entre um representante
da empresa-cliente e o funcionário da empresa-anunciante. Neste anúncio, a mulher de
saia, da direita, é a fornecedora, e a da esquerda, de calça, é a cliente. No anúncio do
Bradesco também percebemos a coincidência entre a disposição topológica esquerda x
direita (plano da expressão) com as figuras do conteúdo (calça/masculinidade x saia/
feminilidade) para caracterizar cliente e fornecedor. Neste anúncio, o banco diz que está
“lado a lado” com as empresas (ver anúncio completo no Apêndice B – Caderno de
Imagens). A mulher, à direita, usa o crachá de identificação de funcionária do banco; o
homem, à esquerda, como cliente, não usa crachá.
Se podemos entender aí um procedimento semissimbólico de alcance mais geral,
talvez ele autorize entender relações hierárquicas no anúncio da FGV, que divulga MBA
para executivos de todos os níveis gerenciais: o homem, à esquerda, de calça, com as
mãos livres, como superior; e a mulher, à direita, de saia, carregando uma pasta, como
subordinada. Neste sentido, sua saia muito justa, os sapatos de bico fino e a
aspectualização escolhida pelo enunciador para o seu corpo revelam um percurso narrativo
da sedução nas relações de trabalho.
!161
Anúncios ainda não referenciados: Bradesco (Exame, 5/10/2011); Samsung (Veja, 2/11/2011). Fonte: as edições das revistas. Os anúncios Bradesco, Samsung e TAM estão cortados nesta figura. A versão
completa pode ser vista no Apêndice 2 – Caderno de Imagens.
Figura 1 – anúncios com a saia vestindo o papel “profissional
!162
5.2 A saia no papel “esposa”
As mulheres no papel “esposa” (figura 2) já usam uma saia, ainda que o corte seja
reto, com um formato mais amplo, como acontece nos anúncios CVC e Petrobrás. Nos
demais exemplares, além de um certo volume, as saias também são onduladas, de tecidos
coloridos e com uma textura que atrai o toque, como nos anúncios de Chevrolet e Ford.
Neste último, o ondulado vai até acima do cós da saia. Como vimos no capítulo 2, tais
configurações plásticas compõem o tema da feminilidade. São saias para serem usadas
quando a mulher assume papéis mais tradicionais, como os de “dependência” (cf. capítulo
4). Assumir a feminilidade, neste papel, não representa risco, pois a presença do homem
sugere a ideia de propriedade tanto quanto oferece proteção. É uma interação que conta
com a “cumplicidade feminina”.
Anúncios ainda não referenciados: Mitsubishi (Veja, 3/8/2011); Chevrolet (Veja, 27/6/2012); Ford (Veja, 19/10/2011). Fonte: as edições das revistas. Os anúncios CVC, Mitsubishi e Chevrolet estão cortados nesta
figura. A versão completa pode ser vista no Apêndice 2 – Caderno de Imagens.
Figura 2 – anúncios com saia vestindo o papel “esposa”
!163
Além disso, é interessante observar que quatro destes anúncios são assinados por
marcas do segmento automotivo, sendo três especificamente de marcas de automóveis.
Nestes enunciados, repete-se a distribuição das figuras masculinas x femininas e lado
esquerdo x direito, que nos anúncios com papel “profissional” homologava os temas superior
x subordinado. Quanto ao papel da mulher como consumidora de carros, parece haver três
proposições distintas. O anúncio da Ford coloca a atriz Deborah Secco como “incentivo”
para o consumidor, ou seja, ignorando a mulher como possível compradora; no da
Mitsubishi, a esportividade do carro é de interesse dos homens (ver anúncio completo no
Apêndice B – Caderno de Imagens), enquanto as mulheres demonstram empolgação com o
porta-malas. Já o da Chevrolet, por simular uma configuração de editorial de moda (não
apenas a diagramação, mas a menção ao fotógrafo J. R. Duran e a postura dos modelos),
parece dialogar mais com o público feminino do que com o masculino. Este anúncio foi
veiculado em Veja e, desta forma, sugere que a marca possa estar mais atenta aos índices
de mercado, que apontam a mulher como influenciadora de 70% das compras de carros no
Brasil e como compradora direta de 40% deles . 56
5.3 A saia “feminina”
O terceiro grupo de anúncios que gostaríamos de mostrar (figura 3) reúne mulheres de
diferentes papéis, mas todas vestem a saia em configuração plástica mais “feminina” (cf.
tipologia do capítulo 2). Os dois primeiros anúncios, da Hering e do estado Pernambuco
(promoção do turismo), trazem mulheres em papéis profissionais: a cantora Cláudia Leite,
que está ali em seu papel na “vida real”, mencionado no texto verbal do anúncio, e a
dançarina de frevo.
Como já observado no capítulo 4, mulheres cujas profissões estão ligadas à área
artística, ou à mídia (atrizes, apresentadoras de programas de TV), que são modelos ou
“celebridades”, costumam aparecer com roupas que poderiam ser chamadas de mais
“sexualizadas”. Figurativamente, isso inclui roupas curtas, justas e saias (que por princípio já
é associada com este tema), especialmente nesta configuração mais “feminina”. Quando
temos estas mulheres assumindo outros papéis nos anúncios, como é o caso de Deborah
Secco no anúncio Ford (papel “esposa” – figura 2) ou da atriz Camila Pitanga no anúncio de
Lilica&Tigor (papel “mãe” – figura 3), a roupa difere daquela usada pela maioria das
mulheres nestes papéis. “Esposa" e “mãe” são papéis em que as mulheres vestem
prioritariamente calça e, em seguida, vestido (ver tabela 10 – Apêndice A). Parece haver,
FAGUNDEZ, Ingrid. Mulheres compram mais carros, mas Salão ainda é pensado para homens. Folha de S. 56
portanto, uma prescrição para que a roupa de mulheres cuja atividade profissional depende
da aparência física, e que costumam se encaixar – ou a ajudar a construir – um simulacro
de “mulher bonita”, também explore o erotismo de maneira “suavemente retorcida”, como diz
Landowski sobre os modos de presença da mulher na publicidade. Pois a sociabilidade
“vulgar” operada pela publicidade, segundo o semioticista, não está apenas neste tipo de
discurso: “[…] poderia tratar-se de garantir efeitos de presença análogos em benefício das
celebridades mais ‘conhecidas’ ou mais ‘amadas’, princesas e altezas, vedetes de todo
gênero, inclusive personalidades do mundo político” . 57
LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002, 57
p. 162.
Anúncios ainda não referenciados: Hering (Claudia, novembro de 2011); Pernambuco (Exame, 14/12/2011); Lilica&Tigor (Veja, 17/8/2011); Intimus (Claudia, fevereiro de 2012). Fonte: as edições das revistas. O anúncio
Pernambuco está cortado nesta figura. A versão completa pode ser vista no Apêndice 2 – Caderno de Imagens.
Figura 3 – anúncios com figuras usando “saia feminina”
!165
A saia “feminina” também veste as mulheres no papel “independente”, como nos
anúncios de Intimus, City Shoes e IBM. Na tipologia da relação de dependência do
masculino (cf. capítulo 4), este papel se insere na posição da “autonomia”. No regime de
interação, é a posição do acidente, do risco. E, de fato, exceto pelo anúncio de IBM, os
outros dois apresentam situações de “risco” para a mulher que usa saia – evidentemente,
tratadas de maneira muito mais suavizada pela publicidade. No anúncio de City Shoes, a
mulher está na rua e de pernas abertas. No anúncio de Intimus, a saia ajuda a figurativizar
tanto a sedução quanto o perigo que é combatido, ou atenuado, pelo uso do absorvente.
Faz parte da configuração discursiva desta marca construir enunciados em que uma mulher
anda por um espaço público usando roupas claras, ou justas, ou “rodadas” (como esta saia,
que parece poder levantar a qualquer momento), enquanto é olhada ostensivamente por um
homem. Contrariando as recentes manifestações pelo fim do assédio nas ruas , as 58
mulheres destes anúncios aparentam um gostar de ser olhadas desta forma. O absorvente é
um tipo de objeto modal que permite à mulher continuar cumprindo um percurso narrativo de
sedução (usando roupas que seduzem) mesmo no período menstrual . 59
Ainda sobre esta configuração de saias, no que tange à interação entre corpo e roupa,
percebe-se uma capacidade de mobilidade muito maior do que aquela proporcionada pela
saia mais ajustada do ambiente de trabalho corporativo. Vemos isso nas mulheres que
pulam nos anúncios de Petrobrás e Chevrolet (figura 2), na dançarina de frevo do anúncio
do turismo de Pernambuco, na moça que fica de pernas aberta em City Shoes e naquelas
que aparecem caminhando em Lilica&Tigor e em Intimus (figura 3). Alguns destes
movimentos sugerem também uma maior liberdade corporal, um jeito mais “moleca”, para
usar uma expressão popular, que é contrário a certas prescrições sobre o comportamento
adequado para a mulher: contido, suave e discreto.
5.4 O “sujeito provocante”
As mulheres usando saias longas parecem operar um modo de presença que
Landowski chama de “sujeito provocante” . O “sujeito provocante” olha o leitor diretamente. 60
Apesar disso, por sua iteratividade, o estado de comunicação é simulado, diferente das
situações embreadas caracterizadas pelo estabelecimento de um diálogo durativo entre
O site Chega de Fiu-Fiu é uma plataforma na internet do movimento de mesmo nome, que busca mapear os 58
casos de assédio nas ruas e combater esta prática. Disponível em: <http://chegadefiufiu.com.br/>. Acesso em: 16 nov. 2014.
BAGGIO, A. T. Significações do corpo (in)vestido em uma publicidade de absorvente feminino. In: 59
CONGRESSO MUNDIAL DE COMUNICAÇÃO IBERO-AMERICANA, 1., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos… São Paulo: CONFIBERCOM, 2011. Disponível em: <http://confibercom.org/anais2011/pdf/43.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2014.
LANDOWSKI, 2002, p. 160.60
!166
modelo e leitor (que seria o “sujeito socializado”). Em termos de ocorrência nas revistas,
este modo é mais frequente em Claudia, pois é uma das marcas da iconografia da moda.
O agrupamento destes anúncios pelo modo de olhar faz com que se atenuem bastante
as diferenças entre o papel “manequim” e os demais papéis deste conjunto. Na descrição
dos papéis sociais em Claudia, detalhamos melhor os critérios de atribuição do papel
“manequim”, com base nas configurações do olhar (e do corpo) nas fotografias, propostas
por Landowski e Goffman, bem como justificamos a não-atribuição deste papel em certos
anúncios com elementos que sugeriam outros papéis. Deste conjunto com anúncios
bastante semelhantes, no entanto, emergem duas situações significantes: o uso de saias
longas (figura 4) e a “sedução direta” em papéis profissionais (figura 5).
Anúncios ainda não referenciados: Clight (Claudia, dezembro de 2011); Stroke (Claudia, maio de 2012); City Shoes (árvore – Claudia, abril de 2012); Gregory (Claudia, setembro de 2011). Fonte: as edições das revistas.
Figura 4 – anúncios com o “sujeito provocante” usando saia longa
!167
Ainda que confeccionadas em um tecido pesado, como o modelo em jeans do anúncio
Clight, as saias longas “dançam” em volta do corpo com o caminhar da mulher. No geral,
nestes anúncios elas são mais amplas, plissadas ou onduladas, simulando babados, e feitas
de tecidos leves, tornando fácil levantá-las, o que de fato acontece no anúncio de Gregory.
O móvel e a situação de espera nos fez classificar a mulher neste anúncio como “anfitriã”. A
moça de City Shoes sentada na árvore assume o papel de “manequim”, pelo olhar e pela
constrição e não-naturalidade da postura. As demais estão no papel “independente”, pela
sugestão de mobilidade, do “estar fazendo alguma coisa”. De fato, a marca Clight diz que o
código X que a mulher possui (uma alusão ao cromossomo X) é o que “coloca o mundo em
movimento”.
Como já apontamos, apesar da classificação em diferentes papéis, postos em
conjunto os anúncios se assemelham no olhar provocante. A sedução direta deste olhar é
reforçada pelo modo de levantar a saia da mulher no anúncio de Gregory, procedimento que
já havíamos encontrado em mulheres usando vestido longo (figuras 5a e 5b - capítulo 4), e
que possuíam o mesmo tipo de olhar. O levantar da saia, que nestes exemplos realmente se
atualiza, está virtualizado nos outros, conferindo mais um aspecto de sexualidade àquela já
atribuída à saia enquanto figura de conteúdo.
Anúncios ainda não referenciados: Nextel (Exame, 16/11/2011); SBT (Veja, 17/8/2011). Fonte: as edições das revistas.
Figura 5 – anúncios do “sujeito provocante” no papel “profissional”
!168
Há prescrições bem rígidas sobre a aparência da mulher do trabalho, especialmente
quanto a um “parecer sensual”. Tais regras são relativizadas, ou até a sensualidade é
desejada, quando a profissão feminina é relacionada à aparência física, à valorização da
beleza e exposição do corpo, como entre as modelos, atrizes, cantoras, celebridades etc. Tal
sensualidade pode ser figurativizada pela saia. Nos anúncios da figura 5, além da saia –
que, nestes casos, não é aquela “feminina” –, a sedução está no olhar direto e “provocante”.
Em Nextel, a mulher é a escritora e apresentadora Fernanda Young. No anúncio do
SBT, é a ex-modelo Isabella Fiorentino, apresentadora do programa Esquadrão da Moda. A
postura e as roupas mudam bastante quando a mulher apresenta um programa jornalístico –
“sério”, portanto – ou um programa de variedades. A sensualidade parece não combinar com
a aparência de seriedade que algumas situações exigem – e os manuais de vestimenta no
trabalho reforçam bastante isso. No entanto, além de a sensualidade estar figurativizada nas
roupas e posturas das mulheres que trabalham em escritórios nos anúncios publicitários,
nota-se que também é uma competência exigida na prática.
5.5 Configurações posturais
Uma das posturas mais significantes encontradas nos anúncios é aquela em que as
mulheres têm a mão apoiada na cintura. Para o etólogo Desmond Morris, um dos principais
sinais indicativos do gênero feminino é o corpo em formato de ampulheta: busto e quadris
mais largos, intermediados por uma cintura mais fina . Tal proporção seria extremamente 61
atraente para o sexo masculino, mesmo que as medidas exatas não sejam aquelas das
misses. O motivo para a atração despertada por este tipo de corpo seria biológica. Como a
cintura se alarga com o nascimento dos bebês, durante muito tempo uma cintura fina foi
sinal de que a mulher ainda não havia engravidado; principalmente, que ainda era virgem.
Por outro lado, as formas arredondadas do corpo indicavam uma mulher pronta para o sexo.
A saia, em si, já é um tipo de peça que demarca a cintura e, portanto, assume a
sexualidade feminina (cf. capítulo 2), efeito que o vestido não produz da mesma forma.
Vestidos usados com cintos talvez se aproximem. A contribuição do cinto para este efeito é
ainda maior quando usado com a saia. Além do cós da saia e do cinto, a mão na cintura
também ajuda a demarcar a cintura feminina, chamando atenção para esta parte do corpo e
acentuando sua atratividade.
Apesar de usarmos a expressão “mão na cintura”, o que facilita e torna natural esta
posição é o acomodamento da mão no alto do quadril. É a amplidão desta parte que permite
o apoio da mão e que, em relação com a cintura, constrói o corpo em forma de ampulheta.
MORRIS, D. L’animale donna: la complessità della forma femminile (trad. Cecilia Scerbanenco). Milano: 61
Oscar Mondadori, 2012, p. 190.
!169
Morris, no entanto, descreve esta posição como um sinal de desafio, de desconfiança, de
enfrentamento, ou de afastamento e defesa. Por outro lado, o quadril jogado para o lado,
que acompanha algumas das mãos na cintura nos nossos anúncios (figura 6), seria uma
maneira de dizer “olha como é bonito meu quadril” . 62
MORRIS, 2012, p. 201. Tradução nossa para: “guarda che bei fianchi che ho”.62
Anúncios: A – C&A (Veja, 14/3/2012); B – Lessô (Claudia, setembro de 2011); C – Hering; D – Nextel; E – Corello; F – SBT; G – Mitsubishi. Os anúncios completos podem ser vistos no Apêndice B – Caderno de
Imagens. Fonte: as edições das revistas.
Figura 6 – mulheres de saia com mão na cintura (recorte de anúncios)
A B C
D E F G
!170
A postura é obtida com um desequilíbrio no apoio de pernas e pés: se o quadril é
jogado para o lado direito (do nosso ponto de vista), como nos recortes A, B e C da figura 6,
a perna direita ficará esticada e encaixada, se responsabilizando pela maior parte da
sustentação do corpo. A perna esquerda, por sua vez, será flexionada na altura do joelho.
Nestas imagens, no entanto, a mão na cintura está colocada do lado oposto àquele para
onde aponta o quadril, diminuindo o efeito de chamar atenção para a sua curvatura.
Nas imagens D, E, F e G, a mão é apoiada do lado em que o quadril fica mais
protuberante, ou seja, do lado em que a perna está esticada. Na imagem G, a mulher com a
mão na cintura acaba apontando o cotovelo para as outras (visualizar o anúncio na figura 2).
Para Morris, este seria um exemplo de uso “defensivo” da mão na cintura, quando é
colocada de maneira a apontar o cotovelo para outras pessoas com quem o sujeito divide o
espaço . De fato, o rosto desta mulher possui uma expressão mais contida, que contrasta 63
com a aberta empolgação de suas companheiras de enunciado. Talvez seja a proprietária do
carro – já conhece seus atributos, por isso não se surpreende mais com eles – e esteja
enciumada com a situação.
Em todas estas mulheres de saia com a mão na cintura, a mão é posicionada com o
polegar para trás e os outros quatro dedos para frente (exceto no recorte A, em que o
polegar parece estar enganchado no cinto). Parece ser a posição mais natural e confortável,
pelo acomodamento que a abertura entre polegar e indicador proporcionam à mão no
contorno do quadril. No entanto, em alguns anúncios apresentados no capítulo 4, vimos um
outro tipo de configuração, em que todos os dedos ficam visíveis. A mão não se acomoda na
curvatura do quadril, é colocada mais para frente do corpo. Na ocasião, levantamos a
hipótese de que esta configuração seria um jeito menos “sensual” de “mão na cintura”, o que
parece fazer sentido se considerarmos tanto a função de atratividade sexual da cintura –
para a qual contribui a mão apoiada na curvatura do quadril – quanto a presença do jeito
“sensual” nas posturas das mulheres de saia (lembrando, sempre, da associação da saia
com a sexualidade). O jeito “menos sensual” teria, portanto, a função de não provocar esta
associação quando ela não é desejável para a figura feminina – como é o caso da jornalista
Fátima Bernardes (figura 10b, capítulo 4) – ou de atenuar um parecer que já possuía algum
elemento de sensualidade (Usaflex – figuras 17a e 17b, capítulo 4).
Outra postura recorrente é aquela em que a mulher toca ou chega perto dos cabelos e
da cabeça, como mostra a figura 7. Morris aponta que as culturas que obrigam a mulher a
cobrir a cabeça o fazem porque a exposição dos cabelos excita os homens . 64
MORRIS, 2012, p. 202.63
MORRIS, 2012, p. 29.64
!171
Para Anne Hollander , durante muito tempo os cabelos femininos foram mantidos 65
presos e cheios de adorno, de modo a disfarçar o contorno real da cabeça e a relação com
o pescoço. Havia uma relação entre o cabelo solto e a disponibilidade sexual – associação
que, para a historiadora, permanece até hoje:
HOLLANDER, A. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno (trad. Alexandre Tort; rev. Gilda 65
Chataignier). Rocco: Rio de Janeiro, 2003. p. 68.
Anúncios: A – Campesí; B – Nextel; C – Gregory; D – Vivara; E – C&A; F – Shopping Golden Square; G – Algar; H – CCR. Os anúncios completos podem ser vistos no Apêndice B – Caderno de Imagens.
Fonte: as edições das revistas.
Figura 7 – mulheres de saia com mão na cabeça ou no cabelo (recorte de anúncios)
A B C D
E F G H
!172
O cabelo feminino solto era sempre uma referência especificamente sexual, sinal de descontração emocional, suscetibilidade em relação ao sexo e convite sexual padrão – Maria Madalena usa o cabelo solto. Ainda é assim no caso da moda atual, um outro sinal da dependência feminina de temas antigos. 66
Morris distingue, no entanto, os efeitos produzidos por cabelos longos e curtos.
Enquanto os longos sugerem a sexualidade, liberdade de espírito, rebelião pacífica e
criatividade, os curtos são associados com disciplina, autocontrole, eficiência, conformismo,
autoridade . Dentre as mulheres de saia que estão com as mãos atrás da cabeça (figura 7 67
– A e B), que tocam os cabelos (C, D e E), ou que chegam perto de tocá-los (recorte F),
todas têm cabelos compridos. As mulheres dos recortes G e H têm, respectivamente, cabelo
curto e cabelo preso. Seu papel é profissional e sua configuração postural caracteriza-se
pela ausência de outras marcas de “sensualidade”: a saia é reta, verticalizada; o quadril não
está jogado para o lado; os joelhos não estão flexionados (apenas levemente, no recorte H).
E suas mãos, que não seguram nada, não estão ao longo do corpo e não fazem outros
gestos – e que, combinadas ao sorriso aberto –, assumem uma posição de disponibilidade
profissional, em que a diferença entre os braços cruzados (recorte G) e as mãos unidas na
frente do corpo (recorte H) indicam, somente, como se manifesta a disponibilidade nos
diferentes níveis hierárquicos.
Os anúncios apresentados até agora também permitem observar as posições das
pernas. Em pé, a configuração principal consiste em manter uma das pernas esticadas e
outra flexionada, o que provoca uma sinuosidade corporal, menos ou mais exagerada,
dependendo do caso. As pernas retas, ou quase, como vimos, estão nos anúncios em que a
mulher veste a saia “profissional”, mais verticalizada, sem ser aquela versão aderente ao
corpo (figuras 7G e 7H). Em uma das versões aderentes, presente no anúncio da FGV
(figura 1), uma das pernas está afastada, aumentando o efeito de sensualidade. Quando a
mulher está sentada, as saias verticalizadas forçam uma postura de constrição para o
fechamento do entremeio das pernas, sugerindo que a posição é tensa e não relaxada,
muito menos confortável. No anúncio da Gregory (figura 7C) em que a mulher usa saia
longa, é o fato de levantá-la que obriga a sentar com as pernas cruzadas, postura que, por
sua vez, tem a função de mostrar à consumidora que mesmo uma saia longa pode ser
“sensual” – considerando que este é o objeto de valor buscado pelas mulheres.
Evidentemente, há diversos outros aspectos de expressão do rosto, gestualidades e
posturas que poderiam ser observados. Os que apontamos aqui, no entanto, mostram a
relação entre a saia, por si só uma roupa que figurativiza a sexualidade, com outros
HOLLANDER, 2003, p. 78.66
MORRIS, 2012, p. 30-31.67
!173
elementos que constituem o mesmo tema, presentes na maneira como se organiza a
postura nas encenações do corpo. E como veremos, haverá tipos diferentes de sexualidade
desejáveis para cada papel.
5.6 Tipologia do uso da saia
Nossa pesquisa partiu da hipótese de que estaria havendo uma restrição ao uso da
saia por mulheres, especialmente nos grandes centros urbanos. A premissa teve origem no
trabalho de Christine Bard, exaustivamente citado neste estudo. Considerando a verificação
de nossa hipótese principal como um programa narrativo de base, foi preciso, antes,
observar se as situações descritas pela historiadora francesa faziam sentido no contexto
brasileiro, e se poderíamos encontrar outros enunciados e práticas que dessem consistência
a este discurso. Esta pesquisa intermediária, que podemos entender como um programa
narrativo de uso, está descrita no capítulo 2, onde não apenas comprovamos a questão da
intolerância (e da resistência), do menor uso da saia e das condições de seu uso, como
também propomos um regime de produção de sentido em que uma das posições
axiológicas é ocupada por esta peça de roupa. Tal regime articula os temas (e valores) da
feminilidade e da masculinidade e as figuras de conteúdo (a saia e a calça em si) e plásticas
que compõem estes temas, gerando posições que são ocupadas por saias “femininas” e
saias “masculinas” e, logicamente, ainda que delas não tratemos no momento, por calças
“femininas” e “calças femininas”.
Existindo a intolerância à saia nas práticas e discursos na “vida real”, ela produziria
efeitos de sentido na publicidade? – nos perguntamos. Diretamente, vimos que não. A saia
aparece em menor número do que outras peças, o que reitera o menor uso da peça no
cotidiano. Mas a publicidade não manifesta discursos de não-uso à saia. Indiretamente,
porém, os papéis sociais que usam saia, os valores destes papéis, as condições de uso e os
tipos de saia escolhidos para vestir as mulheres nos anúncios, apontam para uma
construção de sentido da saia que está na base de muitos dos discursos da intolerância. Os
sentidos são o da sexualidade e o da feminilidade.
A segunda questão gira em torno dos regimes de interação que articulam a relação
entre os papéis sociais e o uso da saia. No capítulo 4, já havíamos proposto uma
distribuição dos papéis sociais femininos de acordo com a relação de dependência que
possuem do masculino (lembrando que há um uso muito específico dos termos
“dependência” e “masculino”, conforme já explicitamos). Nesta distribuição, os papéis mais
valorizados socialmente são os de “esposa” e “mãe”, que obedecem a um regime de
programação e dependência do masculino; em oposição, neste contexto, está o papel que
chamamos de “independente”, caracterizado pelo “fazer as coisas sozinha”, sem o
!174
masculino. É o papel dos regimes de autonomia e, consequentemente, de acidente,
justamente pelas diversas quebras de expectativas quanto às posturas e práticas mais
adequadas ao simulacro de mulher. Negando esta posição está o regime de manipulação e
de liberalidade, que destina os papéis de “amante” e “manequim”. Ainda que nestes papéis
as mulheres apareçam sozinhas, elas buscam, por meio da sedução, conquistar um papel
do regime de programação e dependência. Literalmente, o papel “amante” faz mais sentido
nesta narrativa; porém, as configurações corporais do papel “manequim” figurativizam,
justamente, essa busca pelo olhar e pelo desejo masculinos. Oposto a esta posição, e
implicada com os regimes de acidente e autonomia, está o regime de ajuste e liberdade. É
ocupado pelo papel “profissional”, no qual a mulher pode conquistar independência
financeira, mas não autonomia. E, de fato, as mulheres neste papel raramente aparecem
sem um homem; além disso, muitas de suas configurações posturais e de vestimenta
remetem à sensualidade – tema proscrito das relações de trabalho, ao menos nos manuais
de elegância.
A chave para se decifrar a oposição entre os discursos da vestimenta adequada para o
trabalho e a figurativização da vestimenta de trabalho na publicidade é, justamente, a saia.
Como já mostramos na figura 1 deste capítulo, existem saias que delineiam o corpo
feminino de maneira totalmente contrária ao que é considerado “adequado” em termos de
roupa para o ambiente profissional. O enunciador também coloca a mulher profissional em
certas aspectualizações e posturas que destacam partes do corpo relacionadas à
sexualidade. Além de sensuais, tais roupas são desconfortáveis, o que novamente destoa
do que se diz nos manuais sobre as saias “retas”. Isso sem falar que a saia, por si só, já não
é considerada a melhor roupa de trabalho.
Tais prescrições contra a sensualidade não destoam apenas do que mostram os
anúncios, mas também de algumas práticas, como revela o depoimento de uma executiva
da Sony concedido à autora de um livro sobre “mulheres chauvinistas”:
meus maiores mentores sempre foram homens. Por quê? Porque eu tenho pernas lindas, seios maravilhosos e um grande sorriso que Deus me deu. Porque eu quero fazer meu primeiro milhão antes dos 35. Então é claro que sou uma FCP [Female Chauvinist Pig]. Você acha que esses homens queriam que eu tivesse lá falando sobre melhorias na carreira, departamentos de marketing, demografia? Não. Eles queriam brincar no meu jardim secreto. Mas eu apliquei meu batom de guerra da Chanel, abri as portas com saltos altos da Gucci, trabalhei, me esforcei muito e subi na ladeira. E fiz a diferença! Tudo isso num terninho curto da Prada. [grifos 68
nossos]
O livro, escrito por Ariel Levy, jornalista do The New Yorker, chama-se Female Chauvinist Pigs: Women and the 68
Rise of Raunch Culture. O trecho acima foi retirado de um artigo publicado em blog, que apresenta as principais ideias do livro: WOLFF, C. A falácia da liberação sexual e as novas formas de dominação. Doce, São Paulo, 30 jun. 2014. Disponível em: <http://www.catarticos.com.br/doce/liberacao-sexual-vs-novas-formas-de-dominacao/>. Acesso em: 17 nov. 2014.
!175
O estudo citado no capítulo 2 (ver nota 90) contraria a ideia de que a saia é
inadequada para o trabalho, dizendo que mulheres de saia podem ganhar mais. A
justificativa seria que as mulheres devem passar uma imagem de profissionalismo e
atratividade. A saia seria considerada “atrativa”, porém não qualquer saia. É aquela que, em
nossa tipologia, ocupa a posição da “saia masculinizada”: verticalizada, sóbria, que, também
figurativiza a seriedade. Ou seja, aquela com figuras plásticas da masculinidade.
Nos discursos em que se promove a sensualidade como um valor desejável para a
mulher profissional, a saia não muda: ainda é a reta e ajustada, só que muito mais aderente,
usada com saltos altos e sem meia. Muitas vezes esse tipo de aparência é definida como
“feminina”. Trata-se, porém, de uma versão do feminino que atende a certas destinações da
masculinidade, o que envolve tanto uma negação da “feminilidade feminina” quanto o
controle desta feminilidade, já que tais saias implicam uma situação corporal literalmente de
menor mobilidade física – para que não confunda com a menor mobilidade profissional
vertical para as mulheres, que também ocorre no mercado de trabalho.
Este tipo de presença da mulher profissional na publicidade nos diz muito sobre o
simulacro que se constrói deste papel e a importância da saia nesta construção. A aceitação
deste simulacro pela executiva da Sony – sem que se faça qualquer juízo moral – manifesta
bem uma posição de tolerância às regras de interação entre masculino e feminino no
mercado de trabalho, uma interação que tende ao ajuste. Com isso, iniciamos a responder a
segunda questão fundamental de nossa pesquisa, sobre os regimes de interação e de
sentido que articulam a relação entre os papéis sociais femininos e o uso da saia, com base
nas situações de aceitação ou não destes simulacros. A “tolerância” é o sub-contrário da
“cumplicidade” (termo que emprestamos, pela pertinência, ao “cumplicidade feminina” de
Giddens), que por sua vez é contrário da “oposição”, que tem por sub-contrário a
“conivência” (figura 8).
A palavra “tolerância” designa tanto um sofrimento que não deveríamos permitir ou
que não temos coragem de impedir, quanto a ação de “deixar pra lá”. Tolera-se, ainda que
não se concorde com a situação. As diferenças discursivas entre as regras de
comportamento no trabalho, a presentificação da mulher profissional na publicidade e as
práticas efetivas, mostram que não há uma situação de “conivência”, muito menos de
“cumplicidade”, e sim de um “deixar passar”, seja por interesse ou impotência. A consciência
da situação faz da mulher um não-objeto dela.
Já a “oposição” (que implica a “intolerância”) é uma interação da ordem do acidente,
como tem acontecido com o uso da saia feminina em situações ou papéis em que a
feminilidade não é desejada. Por exemplo, nos espaços ainda dominados por uma lógica ou
por valores do masculino, como o mundo do trabalho, a rua, o transporte público, o sexo.
Assumir a feminilidade e o jeito feminino de fazer as coisas, quando a mulher está nestes
!176
espaços, implica uma autonomia em relação ao masculino e, consequentemente, segundo
Giddens, a perda do controle sexual do homem sobre a mulher. No mundo do trabalho, isso
se manifesta nos discursos sobre a inadequação tanto da saia em si quanto dos seus
modelos com elementos plásticos do feminino: leve, estampada, com babados, rodada,
vaporosa, longa etc. Tais roupas sugerem frivolidade, infantilidade, estar “avoada” etc.
Figura 8 – regimes de interação, aceitação dos simulacros e tipos de saia
programação cumplicidade com o simulacro
objeto saia”feminina”
acidente oposição ao simulacro
sujeito saia “feminina”
manipulação conivência com o simulacro
não-sujeito todas as saias
ajuste tolerância ao simulacro
não-objeto saia “masculina”
Fonte: produção da autora. Anúncios já referenciados.
!177
E, no entanto, não se pode encontrar motivos concretos para essa restrição, ainda
mais se considerarmos que tais roupas seriam, de verdade, as mais confortáveis e até
mesmo menos “sexualizadas” – se esta fosse a preocupação. Uma saia ampla, do mesmo
comprimento do modelo usado pela mulher no anúncio TAM (figura 1), não “subiria” a ponto
de mostrar uma parte da coxa, e nem obrigaria a uma constrição corporal tão tensa como
aquela. O motivo parece ser, então, uma resistência mesmo ao feminino e seus valores.
Talvez esta ideia fique mais clara a partir do relato de uma atleta amadora que corre
maratonas e passou a usar saia na prática do esporte. Ela diz que os rapazes já ficam
chateados quando são ultrapassados por uma mulher, e ficam ainda pior quando esta
mulher está correndo de saia . 69
Quanto à rua, o anúncio Intimus (figura 3) manifesta o risco que tem a mulher ao usar
a saia, e mais ainda, a saia que assume a sexualidade feminina, na rua, sem a companhia
de um homem. O olhar da mulher é de aquiescência, como sempre vai acontecer na
publicidade, mas o risco permeia toda a temática deste enunciado. Usar a saia nestas
circunstâncias é, portanto, se opor a um simulacro feminino e assumir a função de sujeito.
Nos anúncios, mulheres acompanhadas por homens na situação de marido e/ou pai
de seus filhos vestem majoritariamente calça, depois vestido. No papel de “mãe”, a calça é
ainda mais frequente. Nos relatos sobre o uso da saia, vimos que a peça é usada quando a
mulher está com o namorado, tanto para agradá-lo quanto pela proteção. Nos anúncios,
vemos que a saia mais feminina é usada nos papéis de “esposa”, reiterando esta prescrição.
Ou, ainda, é usada por mulheres profissionais mundo artístico, do show business ou da
televisão, quando a mulher é “consumida”, quando veste-se para o outro, e não para si.
Como vimos, papéis sociais nos quais a saia não era predominante – o de “mãe” –, ou
naqueles em que o modelo de saia mais frequente é o “masculino – papel “profissional” –,
quando são assumidos por atrizes, modelos ou celebridades, elas vestem a saia “feminina”.
Estes casos são exemplares da “cumplicidade” quanto aos simulacros femininos,
ancorados no regime de programação. A mulher assume sua “feminilidade” e sexualidade
quando está com o parceiro ou quando é objeto da atenção masculina, como acontece na
publicidade: as posturas que acompanham saias usadas pelas artistas também auxiliam a
tematizar a sensualidade. Nestes casos a mulher é “objeto” de valor do masculino.
Por fim, temos a posição de “conivência”, baseada na manipulação. Diferente da
tolerância, que aceita mas discorda, a conivência permite que o “delito” aconteça, quando
poderia fazer com que não fosse cometido. São as situações de aberta sedução, melhor
explicadas pelo modo de presença que caracteriza o “sujeito provocante” na publicidade,
ZISSU, Alexandra. Running Skirts Go Girly. The New York Times, 12 out. 2011. Disponível em: <http://69
www.nyt imes.com/2011/10/13/fashion/more-fr i l ls-and-f lounces-for-running-skir ts-not iced.html?_r=2&scp=1&sq=skirt&st=cse&>. Acesso em: 17 nov. 2014.
!178
conforme classificação de Landowski. Uma das principais características deste tipo de
encenação do corpo é o olhar direto, simulando um estado de comunicação com o leitor.
Ainda que não seja apenas este modo de presença na publicidade a “objetificar” a
mulher, é nele que mais transparece essa “objetificação”, pelas marcas de sensualidade, de
disponibilidade sexual e de convite (olhar, sorriso, postura sinuosa do corpo etc.).
Considerando que tais representações são prejudiciais para a mulher, deveriam ser negadas
ou rejeitadas por elas. No entanto, fazem parte da iconografia não só da publicidade como
dos editoriais de revistas consumidas pelas mulheres, como é o caso de Claudia, em nosso
contexto. Se existe aí um “delito” praticado pelo modo masculino de organizar as coisas, o
feminino é, portanto, “conivente”. Ainda que assumir esta conivência e utilizá-la para os
próprios fins possa não ser uma posição da maior autonomia, que confere à figura o status
de sujeito, é menos dependente do masculino do que as situações no regime de
programação em que a relação de dependência implica a posição de “objeto”.
Organizando estas situações no quadrado semiótico, temos, em resumo, a seguinte
relação entre os papéis sociais, a saia e as posições de aceitação dos simulacros femininos:
saia “feminina” usada em situações de cumplicidade com o simulacro feminino (objeto), em
um regime de programação; saia “feminina” usada em situações de oposição ao simulacro
(sujeito), em um regime de acidente; saia “masculina” usada em situações de tolerância ao
simulacro (não-objeto), caracterizando o ajuste; e qualquer tipo de saia em conivência com o
simulacro (não-sujeito), no regime de manipulação.
5.7 As roupas, os papéis sociais e as revistas
De forma geral , parece que o vestido ajuda a figurativizar papéis mais passivos, nos 70
quais também aparece uma maior configuração postural sexualizada. As mulheres
“profissionais” que usam vestido, por exemplo, em sua maioria são atrizes, apresentadoras
de TV, “celebridades”, atividades muito calcadas na exposição do corpo. Mulheres
estudantes (que entraram neste papel), que trabalham em escritórios, lojas ou outros locais
que não sejam do mundo artístico-midiático-cultural, normalmente usam calça. No caso de
Exame, como vimos, estas mulheres também usam bastante a saia.
A calça veste estas mulheres profissionais e aquelas que fazem as coisas por si só,
(“independente”), ou seja, mulheres em situações mais arriscadas em termos de interação,
como são os espaços públicos e o ambiente de trabalho (ou a vida de “solteira”). Esta
também é a roupa das mulheres “de respeito”, que cuidam da casa, do marido e/ou dos
filhos, em papéis mais privados.
Os dados quantitativos que dão base para estas conclusões podem ser verificados nas tabelas 10 e 11 do 70
Apêndice A.
!179
Se a ocorrência de papéis, roupas e algumas corporalidades na publicidade veiculada
em cada revista puder nos dizer algo sobre os modos de ser mulher figurativizados pelas
publicações, temos em Veja a proposição mais conservadora, em que as mulheres nos
papéis de “mãe” ou “esposa” usam calça, uma roupa “masculina” e protetora, como vimos
no capítulo 2. E mesmo de calça, quando está no carro, suas pernas estão fechadas. Se a
saia é uma peça sexualizada por si só, sua ausência nestes papéis nega, também, a
sexualidade feminina na “mãe” e na “esposa”. Como uma outra face da mesma tendência de
apresentação de simulacros femininos mais dependentes do masculino (cf. tipologia
apresentada no capítulo 4), Veja coloca mulheres em situação de exposição do corpo para o
leitor, como a “amante” e as “amigas”. E ainda que o papel “profissional” seja o principal
nesta publicação, há uma diferença entre as profissões que usam calça e as que usam saia,
como já apontamos.
Claudia apresenta, evidentemente, muitas mulheres em situação de exposição do
corpo, como as “manequins”. No entanto, tal presença no contexto desta revista é diferente
da sua presença em Veja, já que é dirigida a um público majoritariamente feminino, ao
contrário da revista semanal. Por outro lado, há mais mulheres sozinhas em Claudia,
sozinhas dentro de casa e aproveitando a interação com outras amigas – o que aparece
pouco nas outras publicações. A “amante” da marca de relógios Lince aqui é mais contida do
que em Veja. E ainda comparando com a revista semanal, em Claudia vemos mulheres
assumidamente de pernas abertas, indicando uma maior liberdade postural, e não
necessariamente como uma postura de convite. A mulher de Claudia, portanto, pode ser
“escrava” dos padrões de beleza promovidos pela revista, mas é mais “livre” em termos de
comportamento.
A presença do papel “manequim” em Exame também possui função diferente daquele
visto em Claudia. A série de anúncios Golden Square utiliza a temática da sensualidade para
oferecer lojas de um shopping em uma revista cujo público é majoritariamente masculino.
Em Exame se observa uma maior presença da saia no papel profissional. Há que se
destacar, no entanto, que o modelo de saia é aquele verticalizado, ajustado ao corpo, de
tecido plano e cores sóbrias. Se podemos considerar a saia como figura de conteúdo da
feminilidade, estas conformações plásticas expressam a masculinidade, valor importante no
mercado do trabalho. Quando muito aderentes e combinadas a posturas mais
“sexualizadas”, estas saias reiteram um senso comum sobre o uso da sensualidade pelas
mulheres como forma de obter sucesso profissional.
Voltando a falar de Veja, quando se considera que a axiologia dos modos de ser
mulher aparece em uma revista de grande alcance de público, dividido de maneira
equilibrada entre homens e mulheres e distribuído em diversas faixas etárias, entende-se o
protagonismo da mídia na apresentação de prescrições do masculino, e especialmente do
!180
feminino, que nem sempre contribuem para uma diminuição de problemas sociais
relacionados à desigualdade de gênero (cf. parte final do capítulo 2).
Claudia mostrar uma forma diferente de ser mulher, mas isso é visto somente por
mulheres e com alcance muito menor. Deve-se considerar, ainda, que uma revista semanal
de informações é vista como “séria”, enquanto a revista feminina é considerada “fútil”.
Por último, ainda que Exame promova com destaque um terceiro tipo de mulher, a
profissional, o faz com a negação de alguns aspectos do feminino. Exame tem uma
circulação bastante segmentada, mas com grande penetração no mundo corporativo e,
portanto, com grande poder de prescrição dos modos de ser mulher neste ambiente. Modos
que serão assumidos como o “certo” pela maioria do seu público leitor, que é masculino.
Para finalizar, reforçamos que os procedimentos de análise e as conclusões deste
trabalho referem-se a alguns simulacros de papéis sociais femininos que fazem parte de um
discurso do senso comum sobre a mulher, discurso que a publicidade não apenas toma por
base como reforça, pela sua intrínseca necessidade de aceitação. Sobre imagens e o senso
comum, diz Jacques Rancière, citado por José Luiz Aidar Prado:
Aquilo a que se chama imagem é um elemento dentro de um dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo senso comum. Um “senso comum” é antes de mais nada uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade supostamente é partilhada por todos, modos de percepção dessas coisas e significações igualmente partilháveis que lhes são conferidas. 71
Portanto, ainda que as imagens femininas nos anúncios não correspondam à
realidade dos modos de ser mulher no “mundo real” e que as mulheres brasileiras não se
reconheçam na publicidade (cf. capítulo 1 – nota 25), estes são os papéis femininos
oferecidos por estas revistas aos homens e mulheres que as leem. E não se pode negar o
efeito prescritivo e pedagógico destas manifestações. Para alterar os modos de presença da
mulher na publicidade de maneira a confluir com as práticas sociais do ser feminino, muito
mais ricas e complexas do que mostra a mídia, não bastaria distribuir pelas revistas mais
conservadoras anúncios com papéis baseados na autonomia, ou com figuras usando saia
de maneira a se opor ao simulacro, com a justificativa de que o regime de acidente os
coloca como papéis “críticos”. Na verdade, na publicidade, de forma alguma eles o são.
Como diz Prado,
Não é possível alterar a política das imagens e dos textos sincréticos sem alterar a forma de distribuição dessas formas no senso comum. Sem alterar as percepções, a divisão ou a partilha do sensível, não é possível mudar o senso comum que constrói e repõe esse sensível. 72
RANCIÈRE apud PRADO, J. L. A. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São 71
Paulo: Educ; Fapesp, 2013, p. 171.
PRADO, 2013, p. 171.72
!181
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A REVISTA no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000.
ARAÚJO, Luciana. E a publicidade começa a divorciar-se da mulher… Outras Palavras, 25 set. 2013. Disponível em: <http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/e-a-publicidade-comeca-a-divorciar-se-da-mulher/>. Acesso em: 20 nov. 2014.
BAGGIO, Adriana Tulio. Por que as curitibanas não usam saia? Digestivo Cultural, 22 fev. 2011. Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=3267&titulo=Por_que_as_curitibanas_nao_usam_saia?>. Acesso em: 16 mai. 2011.
___. Pictures of Curitiba Slut Walk (Marcha das Vadias de Curitiba): an analysis of the re-signification of the term "vadia". In: Congress of the International Association of Visual Semiotics, 10., 2012, Buenos Aires.
___. Bombril: a marca que não evoluiu com as mulheres. Digestivo Cultural, 10 mai. 2011. D isponíve l em: <h t tp : / /www.d iges t i vocu l tu ra l .com/co lun is tas /co luna .asp?codigo=3326&titulo=Bombril:_a_marca_que_nao_evoluiu_com_as_mulheres>. Acesso em: 10 nov. 2014.
___. Significações do corpo (in)vestido em uma publicidade de absorvente feminino. In: CONGRESSO MUNDIAL DE COMUNICAÇÃO IBERO-AMERICANA, 1., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos… São Paulo: Confibercom, 2011. Disponível em: <http://confibercom.org/anais2011/pdf/43.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2014.
BARD, Christine. Ce que soulève la jupe. Paris: Éditions Autrement, 2010a.
___. Une histoire politique du pantalon. Paris: Éditions du Seuil, 2010b.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. A construção discursiva dos discursos intolerantes. In.: BARROS, Diana Luz Pessoa de (Org.). Preconceito e intolerância: reflexões linguístico-discursivas. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011.
BARTHES, Roland. Sistema da moda (trad. Ivone C. Benedetti). São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BRAGA, João. História da moda: uma narrativa. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2011, 9. ed.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (trad. Renato Aguiar). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 1ª ed.
CAETANO, Kati E. The women of Islam: The role of journalistic photography in the (re)production of character-type. Brazilian Journalism Research, v. 2, n. 1, semestre 1, 2006, p. 143.
!182
CALANCA, Daniela. História social da moda (trad. Renato Ambrosio). São Paulo: Senac São Paulo, 2008.
CASTILHO, Kathia. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009.
CASTRO, Inês de. A moda no trabalho. São Paulo: Editora Panda, 2002.
CORREIA, João Carlos. O admirável mundo das notícias: teorias e métodos. Covilhã: UBI/LabCom, 2011. p. 65. Recurso eletrônico. Disponível em: http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110524-correia_manual_noticial.pdf. Acesso em: 10 abr. 2013.
CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas (trad. Cristiana Coimbra). São Paulo: Senac São Paulo, 2006, 2. ed.
DICIONÁRIO Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Mirador Internacional, 1977, 2. ed.
DICIONÁRIO Priberam da Língua Portuguesa (online), 2008-2013. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/saia. Acesso em: 12 ago. 2014.
DORTIER, Jean-François (Dir.). Dicionário de Ciências Humanas (rev. e coord. da trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar). São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FANK, Julie; COSTA, José Carlos da. Diálogos: teatro e cinema na peça-filme Dogville, de Lars von Trier. Revista de Literatura, História e Memória: Inter-relações entre a literatura e a sociedade, Cascavel, vol. 5, n. 6, p. 25-35, 2009. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/3088>. Acesso em: 20 jan. 2014.
FLOCH, Jean-Marie. Sémiotique, marketing et communication: sous les signes, les stratégies. Paris: PUF, 1990.
___. Visual identities (trad. Pierre Van Osselaer e Alec McHoul). New York: Continuum, 2000.
FORTY, Adrian. Objeto de desejo: design e sociedade desde 1750 (trad. Pedro Maia Soares). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
GASTALDO, Édison. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto Alegre: Sulina, 2013.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (trad. Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
GOFFMAN, Erving. Gender advertisements. Nova York: Harper Torchbooks, 1987 (edição original 1976). GOLDENBERG, Mirian. Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira. Revista Contemporânea, Rio de Janeiro, ed. 18, v. 9, n. 2, 2011. Disponível em: http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_18/contemporanea_n18_06_Mirian_Goldenberg.pdf. Acesso em: 9 set. 2014.
!183
GREIMAS, Algirdas Julien. La mode en 1830. Essai de description du vocabulaire vestimentaire d’après les journaux de modes de l’époque. Paris: PUF, 2000.
___. Semiótica e Ciências Sociais (trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini). São Paulo: Cultrix, 1981.
___. Da imperfeição (pref. e trad. Ana Claudia de Oliveira; apres. Paolo Fabri, Raúl Dorra, Eric Landowski). São Paulo: Hacker Editores, 2002
___. Semiótica figurativa e semiótica plástica (trad. Ignacio Assis da Silva). In: OLIVEIRA, A. C. de (Org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker, 2004.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica (trad. A. D. Lima et. al.). São Paulo: Contexto, 2008.
HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno (trad. Alexandre Tort; rev. Gilda Chataignier). Rocco: Rio de Janeiro, 2003.
INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS. SIPS – Sistema de Indicadores de Percepção Social: Tolerância social à violência contra as mulheres. Relatório de pesquisa. Brasília, 2014. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2014.
LA FRESSANGE, Inès de; GACHET, Sophie. A parisiense: o guia de estilo de Inès de La Fressange (trad. Adalgisa Campos da Silva). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.
LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: Educ/Pontes, 1992.
___. O triângulo emocional do discurso publicitário (trad. Adriana de Albuquerque Gomes). Revista Comunicação Midiática, Bauru, n. 6, ano 3, dezembro 2006.
___. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002.
___. Flagrantes delitos e retratos. Galáxia, São Paulo, n. 8, p. 31-69, out. 2004. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1392/870. Acesso em: 17 jul. 2011.
___. Interacciones arriesgadas (trad. Desiderio Blanco; rev. Verónica Estay Stange). Lima: Universidad de Lima, Fondo Editorial, 2009, 1. ed.
LANG, Bianca; SCHRAML, Tina; ELSTER, Lena. La minigonna: la rivoluzione, gli stilisti, le icone (trad. Emanuela Damiani). Vercelli, Itália: Edizioni White Star, 2011.
LEMOS, Nina; TAMBELLINI, Karina. E aí, gostosa? TPM, São Paulo, ano 7, n. 74, mar. 2008.
LEYVA, María José Sánchez; OLAIZOLA, Alicia Reigada. Revisitar la comunicación desde la crítica feminista. Notas introductorias. In: LEYVA, M. J. S.; OLAIZOLA, A. R. (Coords.)
!184
Crítica feminista y comunicación. Sevilla/Zamora: Comunicación Social Ediciones y Publicaciones, 2007.
MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.
MARSCIANI, Francesco. Elementi di semiotica generativa: processi e sistemi della significazione. Bologna: Progetto Leonardo/Esculapio, 1991.
MARTYNIUK, Valdenise Leziér. Práticas de comunicação em marketing sob a luz dos regimes de sentido e de interação. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de (Ed.) As interações sensíveis: ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013.
MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999, p. 8. Recurso eletrônico. Disponível em: http://cliente.argo.com.br/~mgos/analise_de_conteudo_moraes.html. Acesso em: 9 abr. 2013.
MORRIS, Desmond. L’animale donna: la complessità della forma femminile (trad. Cecilia Scerbanenco). Milano: Oscar Mondadori, 2012.
MUCCHIELLI, Alex (Org.). Dizionario dei metodi qualitativi nelle scienze umane e sociali (trad. Cesare Caterisano). Roma: Edizioni Borla, 1999.
OLIVEIRA, Ana Claudia de. As interações discursivas. In: OLIVEIRA, A. C. de (Ed.) As interações sensíveis: ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013.
___. Nas interações corpo e moda, os discursos da aparência. XIV Colóquio do Centro de Pesquisas Sociossemióticas - Caderno de Discussão. São Paulo: Edições CPS, 2008, v. 1, p. 1-43, CD-ROM.
PESQUISA representações das mulheres nas propagandas na TV. Agência Patrícia Galvão, 23 set. 2013. Disponível em: >http://agenciapatriciagalvao.org.br/mulher-e-midia/pautas-midia/pesquisa-revela-que-maioria-nao-ve-as-mulheres-da-vida-real-nas-propagandas-na-tv/>. Acesso em: 11 ago. 2014.
POZZATO, Maria Pia. Semiotica del testo: metodi, autori, esempi. Roma: Carocci, 2004.
PRADO, José Luiz Aidar. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo: Educ; Fapesp, 2013.
PRADO, Laís. Diversidade. Clube de Criação de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2014. D isponíve l em: <h t tp : / /www.ccsp .com.br /s i te /u l t imas /68172/D ivers idade?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=1030>. Acesso em: 20 nov. 2014.
!185
RICH, Adrienne. Of woman born: motherhood as experience and institution. New York: Norton, 1986.
SILVA, Paulo Neves da. Citações e pensamentos de Florbela Espanca. Alfragide: Casa das Letras, 2011, 1. ed.
SHIMP, Terence. Comunicação integrada de marketing: propaganda e promoção (trad. Teresa Felix de Souza). Porto Alegre: Bookman, 2009, 7. ed.
WOLFF, Clarissa. A falácia da liberação sexual e as novas formas de dominação. Doce, São Paulo, 30 jun. 2014. Disponível em: <http://www.catarticos.com.br/doce/liberacao-sexual-vs-novas-formas-de-dominacao/>. Acesso em: 17 nov. 2014.
XIMENES, Maria Alice. A saia motriz: um percurso nos mistérios da vestimenta e da representatividade espanhola. 2009. 120 f. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
!186
APÊNDICE A – TABELAS
Tabela 1 – Dados de circulação, número de leitores e média de leitores por revista – Brasil –
2011;
Fonte: PubliAbril. Disponível em: http://www.publiabril.com.br/. Acesso em: 12 jun. 2011. Produção da autora.
Tabela 2 – Sexo, faixa etária, classe social e região de domicílio dos leitores, por revista –
Brasil – 2011;
Fonte: PubliAbril. Disponível em: http://www.publiabril.com.br/. Acesso em: 12 jun. 2011. Produção da autora.
Revista Veja Exame Claudia
Circulação 1,089 milhão 160 mil 403 mil
Leitores 8,669 milhões 724 mil 1,861 milhão
Média de leitores p/ edição
7,96 4,53 4,62
RevistaSexo (%) Faixa etária (%)
M F 10/14 15/19 20/24 25/34 35/44 45/49 50+
Veja 46 54 3 10 12 20 22 10 23
Exame 61 39 1 3 18 26 23 13 16
Claudia 9 91 2 7 10 19 28 7 27
RevistaClasse social (%) Região (%)
A B C D N NE SE S CO
Veja 23 49 24 3 4 14 58 15 9
Exame 28 56 15 1 3 12 62 17 7
Claudia 17 48 31 3 3 13 56 20 8
!187
Tabela 3 – Edição e data de publicação dos exemplares de Veja integrantes do corpus de
pesquisa – Brasil – 2011/2012;
Fonte: dados indicados nas capas das edições de Veja. Produção da autora.
Notas: (1) Edições digitais da revista.
Veja Veja
Edição Data de publicação Edição Data de publicação
2228 – ano 44 – nº 31 3/8/2011 2254 – ano 45 – nº 5 (1) 1/2/2012
2229 – ano 44 – nº 32 10/8/2011 2255 – ano 45 – nº 6 (1) 8/2/2012
2230 – ano 44 – nº 33 17/8/2011 2256 – ano 45 – nº 7 (1) 15/2/2012
2231 – ano 44 – nº 34 24/8/2011 2257 – ano 45 – nº 8 (1) 22/2/2012
2232 – ano 44 – nº 35 31/8/2011 2258 – ano 45 – nº 9 (1) 29/2/2012
2233 – ano 44 – nº 36 7/9/2011 2259 – ano 45 – nº 10 (1) 7/3/2012
2234 – ano 44 – nº 37 14/9/2011 2260 – ano 45 – nº 11 (1) 14/3/2012
2235 – ano 44 – nº 38 21/9/2011 2261 – ano 45 – nº 12 (1) 21/3/2012
2236 – ano 44 – nº 39 28/9/2011 2262 – ano 45 – nº 13 (1) 28/3/2012
2237 – ano 44 – nº 40 5/10/2011 2263 – ano 45 – nº 14 (1) 4/4/2012
2238 – ano 44 – nº 41 12/10/2011 2264 – ano 45 – nº 15 11/4/2012
2239 – ano 44 – nº 42 19/10/2011 2265 – ano 45 – nº 16 18/4/2012
2240 – ano 44 – nº 43 26/10/2011 2266 – ano 45 – nº 17 25/4/2012
2241 – ano 44 – nº 44 2/11/2011 2267 – ano 45 – nº 18 2/5/2012
2242 – ano 44 – nº 45(1) 9/11/2011 2268 – ano 45 – nº 19 9/5/2012
2243 – ano 44 – nº 46 16/11/2011 2269 – ano 45 – nº 20 16/5/2012
2244 – ano 44 – nº 47 23/11/2011 2270 – ano 45 – nº 21 23/5/2012
2245 – ano 44 – nº 48 30/11/2011 2271 – ano 45 – nº 22 30/5/2012
2246 – ano 44 – nº 49 (1) 7/12/2011 2272 – ano 45 – nº 23 (1) 6/6/2012
2247 – ano 44 – nº 50 14/12/2011 2273 – ano 45 – nº 24 (1) 13/6/2012
2248 – ano 44 – nº 51 21/12/2011 2274 – ano 45 – nº 25 (1) 20/6/2012
2249 – ano 44 – nº 52 28/12/2011 2275 – ano 45 – nº 26 27/6/2012
2250 – ano 45 – nº 1 4/1/2012 2276 – ano 45 – nº 27 4/7/2012
2251 – ano 45 – nº 2 11/1/2012 2277 – ano 45 – nº 28 11/7/2012
2252 – ano 45 – nº 3 18/1/2012 2278 – ano 45 – nº 29 18/7/2012
2253 – ano 45 – nº 4 25/1/2012 2279 – ano 45 – nº 30 25/7/2012
!188
Tabela 4 – Edição e data de publicação dos exemplares de Exame e Claudia integrantes do
corpus de pesquisa – Brasil – 2011/2012;
Exame Claudia
Edição Data de publicação
Edição Data de publicação
997 – ano 45 – nº 14 10/8/2011 599 – ano 50 – nº 8 agosto 2011
998 – ano 45 – nº 15 24/8/2011 600 – ano 50 – nº 9 setembro 2011
999 – ano 45 – nº 16(1) 14/9/2011 601 – ano 50 – nº 10 outubro 2011
1000 – ano 45 – nº 17 21/9/2011 602 – ano 50 – nº 11 novembro 2011
1001 – ano 45 – nº 18 5/10/2011 603 – ano 50 – nº 12 dezembro 2012
1002 – ano 45 – nº 20(2) 19/10/2011 604 – ano 51 – nº 1 janeiro 2012
1003 – ano 45 – nº 21 2/11/2011 605 – ano 51 – nº 2 fevereiro 2012
1004 – ano 45 – nº 22 16/11/2011 606 – ano 51 – nº 3 março 2012
1005 – ano 45 – nº 23 30/11/2011 607 – ano 51 – nº 4 abril 2012
1006 – ano 45 – nº 24 14/12/2011 608 – ano 51 – nº 5 maio 2012
1007 – ano 45 – nº 25 28/12/2011 609 – ano 51 – nº 6 junho 2012
1008 – ano 46 – nº 1 25/1/2012 610 – ano 51 – nº 7 julho 2012
1009 – ano 46 – nº 2 8/2/2012 - -
1010 – ano 46 – nº 3 22/2/2012 - -
1011 – ano 46 – nº 4 7/3/2012 - -
1012 – ano 46 – nº 5 21/3/2012 - -
1013 – ano 46 – nº 6 4/4/2012 - -
1014 – ano 46 – nº 7 18/4/2012 - -
1015 – ano 46 – nº 8 2/5/2012 - -
1016 – ano 46 – nº 9 9/5/2012 - -
1017 – ano 46 – nº 10 30/5/2012 - -
1018 – ano 46 – nº 11 13/6/2012 - -
1019 – ano 46 – nº 12 27/6/2012 - -
1019-2 – ano 46 – nº 13(3) 11/7/2012 - -
1020 – ano 46 – nº 14 25/7/2012 - -
!189
Fonte: dados indicados nas capas das revistas Exame e Claudia. Produção da autora.
Notas: (1) Edição da revista Exame não encontrada e não integrada ao corpus de pesquisa. (2) Na capa desta revista Exame, a edição 1002 está numerada como “20”, apesar de a ordem indicar
que deveria ser o número 19. Supomos que deve ter havido um engano na colocação do número durante a produção da capa. A sequência de numeração parte do número equivocado: 21, 22, 23 etc.
(3) Edição Especial Exame Melhores e Maiores: as 1000 maiores empresas do Brasil – por ser edição especial, não foi incluída no corpus.
Tabela 5 – Etapas de corte do conjunto de anúncios de Veja, Exame e Claudia e relação
entre as quantidades resultantes em cada etapa – Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
Etapas de corte do corpus Veja Exame Claudia Total
Edições pesquisadas 52 23 12 87
Relação com o total de edições das três revistas 59,8% 26,4% 13,8% 100%
Adequação da amostra (A) 1279 736 663 2678
Relação com o universo de anúncios 47,8% 27,5% 24,8% -
Média de anúncios adequados por edição 24,60 32,00 55,25 -
Caracterização publicitária (B) 1186 690 626 -
Relação com os anúncios adequados 92,73% 93,75% 94,42% -
Apenas anúncios com mulheres (C) 700 343 560 1603
Apenas anúncios com a roupa “exibida” (D) 256 86 210 552
Apenas anúncios com mulheres vestindo saia/vestido e/ou calça (E)
207 83 128 418
Conjunto de anúncios para análise semiótica (F) 171 65 118 354
Participação dos anúncios do corpus semiótico no contexto da revista (relação entre A e F)
13,37% 8,83% 17,80% -
!190
Tabela 6 – Ocorrência de figuras humanas nos anúncios de Veja, Exame e Claudia, por tipo
de figura e por combinação dos três tipos – Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
Tabela 7 – Quantidade de anúncios pelo grau de visibilidade da roupa nas revistas Veja,
Exame e Claudia – Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
Tabela 8 – Quantidade de anúncios pelo tipo de roupa nas revistas Veja, Exame e Claudia –
Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
Figuras humanas Veja Exame Claudia
Mulher 315 161 443
Homem 357 301 25
Mulher e Homem 245 155 61
Mulher, Homem e Criança/Adolescente 92 18 13
Mulher e Criança/Adolescente 48 9 43
Homem e Criança/Adolescente 36 13 10
Criança/Adolescente 93 33 31
Total de anúncios 1186 690 626
RevistaTipo de visualização da roupa
Exibida Sugerida Suprimida Escondida
Veja 256 56 306 82
Exame 86 6 203 48
Claudia 210 37 186 127
Revista
Tipo de roupa
saia vestido calçashorts/
bermuda lingerieginástica/
collant praiasem
roupa
Veja 44 80 119 25 1 3 20 3
Exame 30 16 56 0 0 2 1 0
Claudia 46 50 50 25 48 2 13 1
!191
Tabela 9 – Quantidade de anúncios das revistas Veja, Exame e Claudia excluídos e
mantidos em cada corte do conjunto de anúncios – Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
Etapas de corte RevistaAnúncios
descartados Anúncios mantidos
Conjunto inicial: adequação da amostra
Veja 0 1279
Exame 0 736
Claudia 0 663
1º recorte: caracterização
publicitária
Veja 93 1186
Exame 45 690
Claudia 33 626
2º recorte: apenas mulher
Veja 579 700
Exame 392 343
Claudia 100 560
3º recorte: roupa “exibida”
Veja 1023 256
Exame 649 86
Claudia 459 210
4º recorte: saia & calça
Veja 1072 207
Exame 652 83
Claudia 541 128
Corpus
Veja 1108 171
Exame 668 65
Claudia 550 118
Total de anúncios do corpus 354
!192
Tabela 10 – Participação proporcional dos papéis sociais no contexto de cada revista (Veja,
Exame e Claudia) – Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
Tabela 11 – Participação proporcional dos tipos de roupa por papel social nas revistas Veja,
Claudia e Exame – Brasil – 2011/2012;
Fonte: as revistas. Produção da autora.
PapelOcorrências dos papéis em cada revista
TotalVeja Claudia Exame
Amante 4 1 0 5
Amiga 4 19 0 23
Anfitriã 7 4 0 11
Dona-de-casa 3 0 1 4
Esposa 27 10 10 47
Independente 17 29 15 61
Manequim 23 36 9 68
Mãe 16 13 5 34
Profissional 57 17 7 81
PapelOcorrência da roupa
saia vestido calça
Amante 0 5 1
Amiga 3 12 9
Anfitriã 2 8 1
Dona-de-casa 0 1 3
Esposa 6 14 23
Independente 7 16 37
Manequim 8 46 13
Mãe 1 15 18
Profissional 17 18 73
Total 44 135 178
!193
APÊNDICE B – CADERNO DE IMAGENS
O primeiro conjunto de imagens apresenta os anúncios analisados no capítulo 5; o
segundo conjunto contém os anúncios analisados no capítulo 4, exceto aqueles já