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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Adriana Tulio Baggio Mulheres de saia na publicidade: regimes de interação e de sentido na construção e valoração de papéis sociais femininos. DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. SÃO PAULO 2014
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Mar 21, 2023

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Adriana Tulio Baggio

Mulheres de saia na publicidade: regimes de interação e de sentido na construção e valoração de papéis sociais femininos.

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO 2014

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Banca Examinadora

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Idilia e Baggio, para vocês, com amor.

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AGRADECIMENTOS

Recentemente, Ana Claudia de Oliveira publicou “As interações discursivas” (2013), trabalho

em que investiga os diferentes modos de presença do sujeito da enunciação nas situações

comunicacionais. Uma tese de doutorado é, também, um processo comunicacional, e ela não se faz

sozinha. É nas trocas de posição entre enunciador e enunciatário – nas aulas, nas orientações, nas

discussões em congressos, nas bancas avaliadoras – que se co-enuncia o seu sentido. Ana Claudia

está muito mais presente nesta tese do que revela o parecer construído pelas figuras de citações e

referências; as marcas que deixa em nós, pesquisadores com o privilégio de nos formar sob sua

orientação, ficam para sempre. Sua competência, dedicação à pesquisa, seu rigor científico, sua

honestidade e generosidade, são referência para mim. Muito obrigada!

Frequentar as aulas do doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP foi uma das

experiências mais enriquecedoras que já tive, e por isso agradeço aos professores Cecilia Almeida

Salles, José Luiz Aidar Prado, Norval Baitello Júnior e Oscar Angel Cesarotto; estes momentos eram

ainda mais felizes pela companhia dos colegas e pelas conversas e desabafos na hora do café.

Representando esta “categoria”, agradeço, especialmente, à Luciana Rossi Cotrim e à Taisa Vieira

Sena, colegas que se tornaram amigas.

Obrigada ao professor Francesco Marsciani, co-orientador no período do doutorado sanduíche

na Universidade de Bologna, e à professora Miriam Adelman, do doutorado em Sociologia da

Universidade Federal do Paraná. cuja disciplina ajudou a ampliar meus horizontes de pesquisa.

O apoio do Centro Universitário Uninter foi fundamental nestes anos. Agradeço à instituição

pelo tempo para a pesquisa, e sou especialmente grata aos colegas, pela força e pelas substituições;

aos alunos, pela paciência e empatia; e aos coordenadores, Paulo e Nivea, pelo inestimável suporte

e compreensão.

Tatá Vaz, obrigada pelo apoio de sempre e por “segurar as pontas” em tantos momentos deste

percurso, primeiro como companheiro e hoje como colega. Marilene, Heloisa e Henrique, obrigada

por sempre me receberem tão bem em São Paulo.

A pesquisa é um trabalho solitário, e ter amigos para conversar é uma preciosidade. Obrigada

a vocês que ouviram, deram atenção e ombro, serviram mais cerveja, contaram piadas e me

encorajaram.

Agradeço ao Juliano Henrique Bodão pela ajuda com a produção gráfica; à Karoline Américo

pela digitalização dos anúncios; à Idilia Tulio Baggio pela revisão; ao Carlos Eduardo Athayde, por

apontar os excessos e mostrar o que é realmente essencial.

Obrigada ao CNPq, pelo apoio financeiro para o desenvolvimento da pesquisa.

Por fim, agradeço à criatura que acompanha minha trajetória de pesquisadora desde o

mestrado, e que sem falar nada, oferece amor e conforto eloquentes: Ferrugem.

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My short skirt is not an invitation a provocation an indication that I want it

or give it or that I hook.

My short skirt is not begging for it

it does not want you to rip it off me

or pull it down.

My short skirt is not a legal reason

for raping me although it has been before

it will not hold up in the new court.

My short skirt, believe it or not has nothing to do with you.

My short skirt is about discovering

the power of my lower calves about cool autumn air traveling

up my inner thighs about allowing everything I see

or pass or feel to live inside.

My short skirt is not proof that I am stupid

or undecided or a malleable little girl

My short skirt is my defiance I will not let you make me afraid My short skirt is not showing off

this is who I am before you made me cover it

or tone it down. Get used to it.

My short skirt is happiness I can feel myself on the ground.

I am here. I am hot.

My short skirt is a liberation flag in the women's army

I declare these streets, any streets my vagina's country.

My short skirt is turquoise water

with swimming colored fish a summer festival in the starry dark

a bird calling a train arriving in a foreign town

my short skirt is a wild spin a full breath a tango dip

my short skirt is initiation

appreciation excitation.

But mainly my short skirt and everything under it

is Mine. Mine. Mine.

Eve Ensler

“The Vagina Monologues”

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RESUMO

Esta tese investiga a participação da saia na construção e valoração de papéis sociais femininos na publicidade de revistas. Ainda que estudos sobre representação feminina na publicidade e aspectos sociais da moda sejam frequentes, a saia aparece em poucas teses e é inédita como objeto específico de pesquisa na Comunicação. Algumas práticas sociais contemporâneas apresentam discursos de restrição à saia. Se a publicidade expressa valores e ideologias da sociedade que a produz, haveria que efeitos de sentido destes discursos nos anúncios? Que tipo de regimes de interação articulam os papéis sociais femininos a partir do uso da saia? A hipótese inicial é que aspectos da intolerância à saia devem-se à sua figurativização do feminino – oposto ao masculino na categoria cultural “gênero”. Seu uso seria mais restrito ou prescrito quando a “feminilidade” não é considerada competência desejável, o que intervém nos efeitos de sentido da saia na publicidade. Analisamos aspectos históricos, sociais e semióticos da saia, comprovando o discurso da intolerância, e propomos uma classificação desta roupa em configurações mais “femininas” ou mais “masculinas”. Em seguida, observamos nos anúncios que as questões anteriores se apresentavam nos simulacros de papéis sociais das mulheres. Tivemos como aporte teórico e metodológico a Semiótica Discursiva, na vertente Sociossemiótica (Greimas; Landowski; Oliveira), e conceitos da Moda, História e Sociologia (Castilho, Bard, Crane, Hollander, Giddens). Como corpus de teste selecionou-se anúncios veiculados em 2011 e 2012 nas revistas Veja, Exame e Claudia. Uma pré-seleção por análise quantitativa (2679 exemplares) testou a representatividade do corpus e mostrou a presença da saia em comparação com outras roupas. Os enunciados com a presença de saia, vestido e calça integraram o corpus semiótico (353 exemplares). Neste grupo, identificamos os papéis sociais femininos, as roupas que os figurativizam e sua presença nas revistas. Excluindo exemplares pouco significantes, obtivemos 44 anúncios com mulheres de saia – 12% dos anúncios das três publicações. Na observação deste conjunto chegamos a uma tipologia da saia articulada com a aceitação ou não de simulacros femininos, ancorada nos regimes de interação de Landowski. A saia, enquanto figura de um assumir a sexualidade feminina, marca os modos de seu uso nos papéis sociais na publicidade. A saia “feminina” está nas situações de cumplicidade com o simulacro, e também na situação de oposição a ele. A saia “masculina” figurativiza a situação de tolerância ao simulacro, enquanto saias em todas as configurações aparecem na situação de conivência.

Palavras-chave: Semiótica discursiva; Publicidade; Revistas; Papéis sociais femininos; Uso da saia; Axiologia.

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ABSTRACT

This work investigates the involvement of skirts in women’s social roles construction and valuation in advertising in magazines. While research about the portrayal of women in advertising and about the social aspects of fashion is frequently seen, skirts are rarely shown in dissertations – and their investigation as a particular object in communication research is unprecedented. Some contemporary social practices present discourses of restriction to skirts. If advertising expresses the values and ideologies of the society it is produced by, what kind of meaning effects from those discourses can be seen in ad pieces? What kind of interaction regimens do women’s social roles articulate from skirt wearing? The first hypothesis was that some aspects of the intolerance to skirts are due to its figurativization of the feminine – an opposite of the masculine in the “gender” cultural category. Skirt wearing could be more restricted or prescribed when “femininity” is not considered to be a desirable competence, which intervenes with meaning effects of the skirt in advertising. Historical, social and semiotic aspects of the skirt were analyzed, proving that there is an discourse of intolerance – and a rating as more “feminine” or “masculine” configurations of that piece of clothing was proposed. As it was observed, the previous issues appear in simulacra of women’s social roles in the print ads. Discursive semiotic has worked as the theoretical and methodological support, through its sociosemiotic branch (Greimas; Landowski; Oliveira), as well as Fashion, History, and Sociology concepts (Castilho, Bard, Crane, Hollander, Giddens). Print ad pieces published in 2011 and 2012 in Veja, Exame and Claudia magazines were selected as a corpus test. The quantitative analysis pre-selection (2679 issues) has tested the corpus’ representation and has shown the presence of the skirt in comparison to other pieces of clothing. Enunciates containing skirts, dresses, and pants integrate the semiotic corpus (353 issues). In that group, women’s social roles, as well as the clothes that figurativize them and their appearance in magazines were identified. With the exception of less significant issues, 44 ads containing women in skirts were found – 12% of the ads in the three magazines. Through the analysis of that set, a skirt typology, articulated with the acceptance or the non-acceptance of a feminine simulacrum, was reached, based on Landowski’s interaction regimens. The skirt, while being a figure of the assuming of a feminine sexuality, marks the modes of its use in social roles in advertising. The “feminine” skirt is in the simulacrum complicity situations, and also in the situations where there is opposition to it. The “masculine” skirt figurativizes the simulacrum tolerance situation, while skirts in all of their configurations appear in the connivance situation.

Keywords: Discursive semiotics; Advertising; Magazines; Women’s social roles; Skirt wearing; Axiology.

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SUMÁRIO

1 COMUNICAÇÃO, SEMIÓTICA E MODA 9

1.1 Papel social 14 1.2 Saia e calça, feminino e masculino 18 1.3 Aspectos teóricos e metodológicos 20

2 A SAIA 27

2.1 Saia: substantivo e sinônimo feminino 27 2.2 A diferenciação das roupas por gênero 30 2.3 A saia e o vestido 34 2.4 Percursos polêmicos do uso da saia 42 2.5 A saia no Brasil e alhures: discursos e práticas de intolerância e de protesto 47 2.6 A saia no trabalho 57 2.7 Os diferentes tipos de saia e a expressão plástica do feminino 59 2.8 A base dos discursos intolerantes 65

3 AS REVISTAS E OS ANÚNCIOS 71

3.1 A seleção das revistas 73 3.2 Operações de análise de conteúdo quantitativa 76 3.3 Categorização: simulacro de gênero e aspectualização do corpo vestido 81 3.4 Constituição do corpus semiótico 85

4 AS ROUPAS E OS PAPÉIS SOCIAIS FEMININOS 89

4.1 A figuratividade dos ambientes nos anúncios publicitários 90 4.2 Tipologia de representação do espaço na publicidade impressa 95 4.3 Papéis sociais femininos: resgate dos discursos do senso comum 98 4.4 A construção dos papéis sociais em Veja 101 4.5 A construção dos papéis sociais em Claudia 127 4.6 A construção dos papéis sociais em Exame 141 4.7 Papéis sociais e roupas em Veja, Claudia e Exame: algumas conclusões 148 4.8 Tipologia dos papéis sociais femininos na publicidade 152

5 A MULHER DE SAIA 158

5.1 A saia no papel “profissional” 159 5.2 A saia no papel “esposa” 162 5.3 A saia “feminina” 163 5.4 O “sujeito provocante” 165 5.5 Configurações posturais 168 5.6 Tipologia do uso da saia 173 5.7 As roupas, os papéis sociais e as revistas 178

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 181

APÊNDICE A – TABELAS 186

APÊNDICE B – CADERNO DE IMAGENS 193

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1 COMUNICAÇÃO, SEMIÓTICA E MODA

Quem debruça-se nos problemas atuais da semiótica não pode fazer o nó da gravata, pela

manhã mediante o espelho, sem ter a sensação de estar fazendo uma escolha ideológica; ou

pelo menos de dar uma mensagem, uma carta aberta aos passantes, e àqueles que encontrará

durante o dia.

Umberto Eco 1

The Good Wife é um seriado norte-americano lançado em 2009. A personagem

principal, Alicia Florrick, é uma advogada que abandonou a carreira logo depois do

nascimento dos filhos, tornando-se a “boa esposa” do título. Ela volta a atuar

profissionalmente depois que seu marido, um ex-promotor, é preso por envolvimento em um

escândalo de corrupção e sexo com prostitutas. Os 15 anos dedicados ao cuidado com a

casa e as crianças deixaram Alicia um pouco fora de forma, mas logo ela recupera o tino

profissional e começa a destacar-se na firma de advocacia onde conseguiu emprego. Na

segunda temporada do seriado os espectadores encontram uma Alicia bastante segura de

si, conduzindo casos com discrição, elegância e muito jogo de cintura. Tais qualidades do

caráter e do estilo da personagem são construídos com o auxílio de um parecer que envolve

trajes de bom corte e cores sóbrias, especialmente terninhos e tailleurs cujas saias

ajustadas sobem apenas alguns centímetros acima do joelho, como prescrevem as normas

do bem-trajar nos ambientes de trabalho mais formais. No início do quarto episódio da

segunda temporada (“Cleaning House”, que foi ao ar no dia 19 de outubro de 2010, nos

Estados Unidos, pelo canal CBS), vemos Alicia no tribunal, usando um terninho cinza

escuro. Logo após as primeiras argumentações, o juiz chama a atenção da personagem:

“Advogada, o que você está vestindo?”. Alicia não entende a pergunta, que é

despropositada no contexto, e o juiz esclarece: “Você está vestindo calça. No meu tribunal

eu solicito que os advogados usem gravata e as advogadas usem saia”. No decorrer do

episódio, veremos que a reprovação do juiz não tem a ver com regras dele ou do tribunal e

que, na verdade, sua intenção é intimidar Alicia.

Este pequeno trecho de um produto da cultura pop contemporânea exemplifica não

apenas como a roupa pode se tornar a justificativa para que uma pessoa desqualifique ou

agrida outra, mas também para apontar uma prescrição que rege o vestir saia em vias de

mudança. Se antes o uso da peça era destinado por um dever – costume que o juiz resgata

ECO, U. apud CASTILHO, Kathia. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009, 2. ed., p. 134.1

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para admoestar Alicia –, hoje há indícios da emergência de uma destinação relacionada a

um não-poder usar saia ou a um poder regulado por circunstâncias bastante específicas. Foi

a observação de certas situações que apresentam estas modalizações que nos levou a

questionar: se nas práticas sociais percebem-se algumas narrativas e discursos de restrição

à saia ou de uma valoração negativa desta peça e de quem a veste, o que estaria

significando a saia em um discurso tão imbricado com estas práticas, como é o da

publicidade?

Já faz algum tempo que a publicidade é considerada objeto relevante para

investigações orientadas por questões de ordem política, social e cultural. Nota-se, também,

um processo de constituição da publicidade como um campo de conhecimento da área de

Comunicação, e não apenas um objeto de pesquisa. No programa de pós-graduação onde

esta tese foi desenvolvida, o campo da Comunicação articula-se com o da Semiótica que,

enquanto teoria e epistemologia autônoma, não deixa de se fundar em processos

comunicativos, especialmente no que tange às condições de produção e apreensão do

sentido e às interações entre os sujeitos participantes. Se formos organizar os temas

principais desta pesquisa em um triângulo, faltaria especificar a terceira ponta, aquela que

envolve os aspectos comunicacionais e sociais da roupa: a Moda.

Importante alertar que não estamos realizando uma investigação sobre a publicidade

de (marcas de) moda ou da moda (fenômeno) na publicidade. Nosso foco de interesse é a

roupa como elemento integrante de um processo de comunicação interpessoal e como

integrante de um enunciado – o anúncio publicitário – produzido em um processo de

comunicação interdiscursivo. A roupa – e, neste caso, especialmente a saia – comunica nas

interações dos sujeitos nas práticas sociais, comunica nas interações dos sujeitos dentro do

enunciado e comunica na interação entre o enunciador-anunciante e o enunciatário-

consumidor. Já aventamos a hipótese de haver uma situação polêmica relacionada ao uso

da saia nas práticas sociais, questão que desenvolveremos no capítulo 2. Os sentidos e os

valores desta situação reiteram-se nos dois outros processos – dentro do enunciado e na

enunciação? Se sim, que tipo de configuração da mulher e dos papéis sociais femininos

essas reiterações ajudam a compor?

Este enunciado é produto de uma atividade que estamos chamando de publicidade.

Apesar de, em um sentido lato, poder denominar diversos tipos de manifestações e ações

destinadas a “publicizar” – “tornar pública” – uma marca, um produto ou um serviço,

incluindo aí estratégias de comunicação associadas às relações públicas, a definição de

publicidade à qual nos referimos é aquela adotada pelo mercado profissional e por boa parte

da literatura da área. Um termo que, no uso, pode alternar com o de propaganda, sem que

se diferencie o objeto ou o método da publicização. Um exemplo é o livro Comunicação

integrada de marketing: propaganda e promoção, que usa alternadamente os dois termos

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para se referir à mesma atividade. Nas palavras de Jef I. Richards e Catharine M. Curran, “A

propaganda é uma forma mediada e paga de comunicação a partir de uma fonte

identificável, elaborada para persuadir o receptor a tomar alguma atitude imediatamente ou

mais adiante” . Logo em seguida, ao esmiuçar a definição acima, o autor do livro usa o 2

termo “publicidade”. A diferenciação entre publicidade e propaganda que se encontra em

alguns livros – a primeira, para fins comerciais e institucionais, a segunda para fins políticos,

religiosos e ideológicos – é pouco relevante para os atores da prática publicitária.

Uma outra forma de uso do termo publicidade que se pode encontrar neste trabalho é

como sinônimo de anúncio publicitário. Ou seja, não para se referir à atividade ou ao

discurso, mas também ao produto desta atividade e ao texto que esse discurso manifesta.

Seja com o nome de publicidade ou de propaganda, o fato é que concordamos com o

antropólogo Everardo Rocha quando diz que

[…] estudar imagens, valores e ideologias que essas mensagens [publicitárias] expressam, ocupando espaços urbanos, páginas de revistas e jornais e se misturando às produções de rádio, televisão e cinema, é buscar conhecer valores, conceitos, modelos de ser, agir e se relacionar na sociedade contemporânea. 3

Dentre os estudos que procuram mostrar essa relação entre publicidade e sociedade,

ou que buscam entender a sociedade a partir da análise de uma de suas mais sofisticadas

produções, que é o anúncio publicitário, não são poucos os que se preocupam com a

representação da mulher ou com o espaço a ela destinado nas práticas e relações sociais.

Um dos mais emblemáticos é o trabalho do antropólogo Ervin Goffman, Gender

advertisements , cuja classificação dos estilos de fotografia auxilia na caracterização dos 4

papéis sociais no capítulo 4. Na vertente semiótica que nos dá suporte, destacam-se dois

trabalhos de Eric Landowski sobre os modos de presença das figuras femininas na

publicidade, como o ensaio “Masculino, Feminino, Social” e o artigo “O triângulo emocional 5

do discurso publicitário” . 6

Em “Masculino, Feminino, Social”, Landowski aponta que a leitura crítica das imagens

de mulheres na publicidade já foi (e ainda é, acrescentamos) feita exaustivamente, tanto em

RICHARDS, J. I.; CURRAN, C. M. apud SHIMP, T. Comunicação integrada de marketing: propaganda e 2

promoção (trad. Teresa Felix de Souza). Porto Alegre: Bookman, 2009, 7. ed, p. 262.

ROCHA, E., em prefácio a GASTALDO, E. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto 3

Alegre: Sulina, 2013, p. 10.

GOFFMAN, E. Gender advertisements. Nova York: Harper Torchbooks, 1987 (edição original 1976).4

LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002.5

LANDOWSKI, E. O triângulo emocional do discurso publicitário (trad. Adriana de Albuquerque Gomes). Revista 6

Comunicação Midiática, Bauru, n. 6, ano 3, dezembro 2006.

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abordagens “rigorosamente científicas quanto edificantes em termos morais” . 7

Consequentemente, talvez não houvesse mais nada de muito novo a se dizer sobre a

concepção de feminilidade presentificada pelos anúncios. Justamente por isso, neste ensaio

o semioticista formula um problema mais original e bastante pertinente, complementar ao da

representação, que é o consumo de imagens “sexistas”.

De nossa parte, assumimos que o presente estudo procura somar aos outros quanto à

preocupação com os simulacros de mulher que a publicidade apresenta e que, por

extensão, são modelos da nossa sociedade contemporânea. E ainda que esta pesquisa não

tenha como aporte a teoria feminista, o tratamento semiótico da relação entre masculino e

feminino na publicidade contribui para um incremento dos estudos feministas na

Comunicação que, segundo María José Sánchez Leyva e Alicia Reigada Olaizola, é a

disciplina que tem apresentado menor desenvolvimento deste tema (já normalmente

marginal) se comparada à frutífera produção encontrada nas áreas da Antropologia, da

Sociologia, da História e da Ciência Política . 8

Por outro lado, com tantos outros trabalhos da mesma seara, a recorrência do assunto

só se justifica, no nosso entender, porque buscamos explorar a participação da saia neste

processo. Aparentemente, as severas prescrições sobre o uso das roupas não existem mais

na sociedade Ocidental. Após a mulher ter conquistado o direito ao uso da calça, a opção

por esta peça ou pela saia teria se tornado uma questão de gosto ou de conforto térmico.

Aparentemente, pois a escolha da vestimenta é pautada por questões nada prosaicas. Uma

análise das mulheres e das roupas que vestem nos anúncios publicitários de diversos

segmentos, veiculados em revistas de diferentes temas, poderá nos dizer sobre os “valores

e ideologias” que o vestuário, e especialmente a saia, está auxiliando a figurar, e também

sobre os papéis sociais assumidos pelas mulheres, dependendo da roupa que usam.

Como mostra Kathia Castilho, mais do que qualquer outra linguagem, a roupa contribui

para a determinação do papel social, assegura o reconhecimento deste papel e orienta o

comportamento dos sujeitos-receptores . Abordamos essa situação em dois tipos de 9

interação: nas práticas sociais, observamos como o uso da saia destina o comportamento

do sujeito que a veste e do outro com quem interage, especialmente em relações polêmicas

(capítulo 2); nos anúncios publicitários, apreendemos como o uso desta peça

(considerando-a uma figurativização do feminino ou do não-feminino) orienta o

comportamento dos sujeitos no enunciado e como determina e assegura o reconhecimento

LANDOWSKI, 2002, p. 126.7

LEYVA, M. J. S.; OLAIZOLA, A. R. Revisitar la comunicación desde la crítica feminista. Notas introductorias. In: 8

LEYVA, M. J. S.; OLAIZOLA, A. R. (Coords.) Crítica feminista y comunicación. Sevilla/Zamora: Comunicación Social Ediciones y Publicaciones, 2007, p. 7.

CASTILHO, 2009, p. 134.9

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do papel social da mulher na comunicação destinada pelo anunciante para o consumidor

(capítulos 3 e 4). O objetivo é verificar se reitera-se nos anúncios publicitários a significação

da saia observada nas práticas sociais.

Dentre as diversas opções de meios para análise das mensagens publicitárias,

optamos pela revista. Em oposição aos anúncios oriundos de um meio eletrônico, como a

televisão, os de revistas são mais acessíveis em termos de manuseio, permitindo o

tratamento de maior número de exemplares, o que contribui para a representatividade da

amostra. Ainda que a opinião não seja isenta pois vem da parte interessada, a Editora Abril

ressalta um aspecto importante da relação entre os leitores e a revista:

Mais que na TV (na qual, de quebra, são altos os custos de veiculação), anúncios em revista prendem a atenção: “pegam” o leitor num momento de serenidade e dedicação à leitura. Podem, assim, ter uma carga maior de informação (e de resposta de consumo). Afinal, anúncios eloquentes, repletos de novidades ou tendências, também são informativos. 10

Para garantir esta “eloquência” silenciosa, o enunciador publicitário precisa arranjar de

maneira bastante sofisticada os elementos figurativos e plásticos que vão constituir a

mensagem sobre a marca ou o produto. É a partir desta riqueza que pensamos poder

apreender a forma de construção dos sentidos que nos darão as respostas que buscamos

encontrar. Não por acaso, duas das maiores referências investigativas da linha semiótica a

qual nos filiamos, Eric Landowski e Jean-Marie Floch , elegeram os anúncios de revista 11

como objeto de grande parte de suas pesquisas. Os modelos e formulações advindos

destes trabalhos são continuamente operados por pesquisadores em objetos de outras

materialidades, consolidando a validade do suporte revista para as pesquisas semióticas.

Para a constituição do corpus, selecionamos títulos de revistas com alguma

diversidade de tema e de público leitor e, ao mesmo tempo, com uma circulação que

proporcionasse abrangência numérica e geográfica deste público. Assim, escolhemos a

informativa semanal Veja, a de finanças e quinzenal Exame e a mensal e “feminina” Claudia.

Os anúncios selecionados pertencem às edições veiculadas entre agosto de 2011 e julho de

2012, formando o período de um ano. A opção pela linha temporal de 12 meses contínuos

deve-se à relação com as estações do ano, que por sua vez destinam as coleções de moda.

Por mais que o “negócio da moda” não seja o foco deste trabalho, não se pode

desconsiderar o efeito que seus lançamentos produzem nas escolhas paradigmáticas que

faz o enunciador. Quanto aos anos, especificamente, optamos por coletar os exemplares no

início do doutorado pela necessidade de um arco considerável de tempo para seleção,

tratamento e análise dos anúncios, processo que descrevemos no capítulo 3.

A revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000, p. 210.10

Como, por exemplo, alguns artigos apresentados em FLOCH, J-M. Sémiotique, marketing et 11

communication: sous les signes, les stratégies. Paris: PUF, 1990.

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Mais de uma vez nos apoiamos nos aspectos eminentemente metodológicos das

pesquisas realizadas por Landowski, e neste processo de seleção não foi diferente. Ao

explicar a metodologia de análise em “Masculino, Feminino, Social”, diz assim o

semioticista:

quando se empreende a análise de um material como o que acabou por acumular-se diante de nós por ocasião deste trabalho, composto de várias centenas de itens diferentes […], a primeira necessidade, somente para poder encontrar na massa um dado caso já entrevisto, mas que se precisaria examinar mais de perto é evidentemente classificar de alguma maneira esses itens. De um ponto de vista estritamente prático, todos os procedimentos de indexação podem no começo parecer bons. 12

Para chegar ao corpus de semiotização, operamos diversas fases de procedimentos

classificatórios, algumas delas orientadas por métodos da análise de conteúdo, com

objetivos “estritamente práticos” para seleção e indexação dos anúncios. Desta classificação

emergiram alguns resultados quantitativos, dentre os quais o mais importante permitiu a

verificação da representatividade do corpus para a análise semiótica, de acordo com um

parâmetro dado, também, por outro trabalho de Landowski. Tal parâmetro era de 200 a 300

anúncios; o corpus final teve 353 anúncios.

Neste corpus investigamos os papéis sociais femininos presentificados nos anúncios

(capítulo 4), com uma grade de leitura que privilegia o plano do conteúdo. Veremos que os

papéis sociais são caracterizados, entre outros aspectos, pelo ambiente onde o sujeito atua.

Para dar conta desta relação, a classificação dos papéis é antecedida por uma

categorização dos tipos de representação do espaço no anúncio publicitário a partir dos

diferentes graus de densidade figuratividade na tradução interssemiótica do ambiente do

mundo natural para a linguagem do anúncio.

Já o capítulo 5 debruça-se especificamente sobre os anúncios que apresentam

mulheres vestindo saia. Observamos, nestes enunciados, os tipos de saia utilizados, a

conformação entre a roupa e o corpo e os efeitos de sentido que produzem na interação

entre o feminino e o masculino. Deste estudo, extraímos uma tipologia de interações

baseada em uma axiologia da cumplicidade ou da oposição aos simulacros femininos.

1.1 Papel social

Nas ciências humanas, especialmente na psicologia social e na sociologia, o termo

“papel” designa um fenômeno inerente a qualquer sociedade; segundo o Dicionário de

Ciências Humanas, “num contexto determinado, cada um dos membros dessa sociedade

LANDOWSKI, 2002, p. 156.12

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tende a exibir uma série de condutas que caracteriza um personagem, como no teatro” . 13

Seja psicológico ou social, o papel sempre “é representado para um público, composto por

uma ou mais pessoas; é um comportamento social” . O papel social é definido em função 14

das expectativas das pessoas com as quais convivemos, corresponde a um modelo de

conduta estereotipado; em sentido metafórico neste dicionário, mas literal no contexto da

nossa pesquisa, assumir um papel social implica “vestir uma indumentária social, como o

ator que representa um papel em cena” [grifo nosso]. Ao mesmo tempo em que os papéis 15

normalizam e estabilizam as relações entre as pessoas, também podem bloquear a

espontaneidade e liberdade de ação. Novamente notamos que estes verbos, usados no

dicionário em sentido figurado, são tomados literalmente quando descrevem situações de

real bloqueio e espontaneidade do corpo feminino vestido para certos papéis sociais.

O Dicionário explica ainda que a noção de papel teria sido abandonada após os anos

1960, sendo substituída pela de “identidade”, que designa, entre outros fenômenos, uma

posição social relacionada ao sexo ou ao gênero e à qual correspondem “papéis e códigos

sociais mais ou menos claros ”. Diana Crane, que trata da influência da moda na sociedade 16

a partir da sociologia, trabalha com estes conceitos. Para a autora, a moda – uma forma de

cultura que “inclui normas rigorosas sobre a aparência que se considera apropriada num

determinado período” – é que possui um papel na construção social da identidade: 17

As roupas da moda são usadas para fazer uma declaração sobre classe e identidades sociais, mas suas mensagens principais referem-se às maneiras pelas quais mulheres e homens consideram seus papéis de gênero, ou a como se espera que eles os percebam. 18

Em outro momento, no entanto, é o termo mais próximo ao nosso uso de que a autora

se serve: a pauta da moda entre os anos 1920 e 1960 teria se revelado mais progressista

para as mulheres, “[…] ao reformular sua aparência em consonância com as mudanças

ocorridas em seus papéis sociais e no restante da sociedade” [grifo nosso]. 19

Já no campo da semiótica, especificamente na proposta de uma semiótica topológica,

Greimas usa o termo para designar o elemento do nível discursivo que recobre os actantes

coletivos na gramática do espaço urbano:

DORTIER, J-F. (Dir.). Dicionário de Ciências Humanas (rev. e coord. da trad. Márcia V. M. de Aguiar). São 13

Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 473, entrada “Papel”.

DORTIER, 2010, p. 473.14

DORTIER, 2010, p. 473.15

DORTIER, 2010, p. 283, entrada “Identidade”.16

CRANE, D. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas (trad. Cristiana Coimbra). São 17

Paulo: Senac São Paulo, 2006, 2. ed. p. 21.

CRANE, 2006, p. 47.18

CRANE, 2006, p. 53.19

Page 16: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!16

É bem verdade que, examinando o fazer dos sujeitos citadinos, pudemos reconhecer ao lado dos papéis individuais, papéis sociais através dos quais os indivíduos participam da realização das tarefas coletivas. Então, pode-se dizer que estes papéis sociais são "vividos" de uma maneira ou de outra, que estas atividades sociais são significantes para o indivíduo. [grifo 20

nosso]

Ao comparar a visão de Greimas sobre papéis sociais e os papéis sociais femininos

que encontramos nos anúncios, denominados a partir de categorias adotadas pelo senso

comum (cf. capítulo 4), nota-se que raramente a mulher assume um papel determinado por

sua participação em tarefas sociais coletivas. Veremos que os papéis mais frequentes –

“mãe” e “esposa” – são derivados de uma relação com um outro individual (em oposição ao

coletivo), em relacionamentos de caráter privado. Parece que os papéis femininos que

identificamos aproximam-se mais do conceito de identidade social do que de papel social.

No entanto, estes são os papéis sociais atribuídos às mulheres – ao menos na publicidade

–, e por isso é esta a terminologia que utilizaremos nas análises.

Apesar desta justificativa ser baseada em um caso específico, não nos distanciamos

do uso que é feito por outros trabalhos semióticos. Landowski, por exemplo, explica a

figuração de determinadas partes do corpo feminino nos anúncios como traduções “[…] de

uma visão determinada dos papéis sociais convencionalmente atribuídos ao ‘segundo

sexo’” . Castilho observa que “[…] a moda, em seu aspecto lúdico, possibilita ao sujeito a 21

protagonização de diferentes papéis sociais, como se ele fosse um ator capacitado a

representar diversos papéis, conforme a cenografia e do direcionamento das cenas das

quais participa” . Para Oliveira, o papel social é uma das motivações que determina a 22

relação entre corpo e roupa; neste caso, uma relação de subordinação que caracteriza um

vestir-se com fins simbólicos . 23

Portanto, quando falamos da construção de papéis sociais femininos na publicidade

por meio da roupa, estamos nos referindo às escolhas feitas pelo sujeito da enunciação

quanto ao vestuário que as mulheres devem usar nos anúncios para auxiliar a figurar um

determinado papel, que por sua vez precisa estar claro para o público-alvo. Tomados em

conjunto, estes anúncios não apenas reproduzem “uma visão determinada” dos papéis

atribuídos às mulheres como contribuem para a manutenção desta visão, que é no mínimo

limitante. Tal representação é um efeito colateral do papel da publicidade e de seu modo de

funcionamento enquanto actante dos percursos narrativos do consumo. Se a identificação

GREIMAS, A. J. Semiótica e Ciências Sociais (trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini). São Paulo: Cultrix, 20

1981, p. 130.

LANDOWSKI, 2002, p. 125.21

CASTILHO, 2009, p. 133.22

OLIVEIRA, A. C. de. Nas interações corpo e moda, os discursos da aparência. Caderno de Discussão do 23

Centro de Pesquisas Sociossemióticas, São Paulo, v. 1, n. 14, nov. 2008, 1-43, p. 41.

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!17

entre o sujeito do enunciado e o público-alvo é uma das competências necessárias para a

aceitação do contrato manipulatório e a realização da performance de aprovação da marca

e consumo do produto ou serviço, a publicidade deve trabalhar com representações deste

público e do seu estilo de vida, com base no que considera serem os simulacros mais

comuns da “massa” com a qual pretende conversar. A reiteração de tais simulacros, que

Édison Gastaldo chama de “situações ideais”, implica em problemas de representação

social, especialmente para os grupos chamados minoritários. Assim, segundo o antropólogo,

por um efeito de conjunto, o discurso publicitário vai, no somatório dessas idealizações, sustentando uma representação da sociedade que reproduz as categorias hegemônicas no campo social, desempenhando, nesse sentido, um papel eminentemente conservador [e que] opera como uma espécie de “ideólogo”, apresentando sob uma retórica persuasiva a lógica dos interesses privados dos produtores das mercadorias anunciadas, isto é, uma retórica que pressupõe a manutenção das peculiares relações de poder que sustentam este modo [capitalista] de organização do trabalho na sociedade. 24

Ainda que estas questões sejam abordadas com frequência em trabalhos científicos,

oferecendo subsídios para um outro tipo de representação nos anúncios, a publicidade não

parece muito disposta a mudar suas configurações discursivas. A diferença entre a “mulher

real” e aquela representada nas propagandas é comumente justificada como uma estratégia

para atender o desejo “aspiracional” dos consumidores. No entanto, uma pesquisa de 2013

sobre representação da mulher nos comerciais de televisão aponta grande desaprovação

desta estratégia por parte do público, incluindo aí o masculino. No site do Instituto Patrícia

Galvão (que realizou a pesquisa em associação ao Data Popular), a apresentação dos

resultados aponta os prejuízos que a discrepância na representação pode gerar inclusive

para os anunciantes:

Segundo avaliação da diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, a pesquisa revela que a percepção dos entrevistados, mulheres e homens, é clara: a propaganda veicula modelos ultrapassados. “A irrealidade da representação da mulher é percebida pela absoluta maioria e há uma clara expectativa de mudança. Aqui se revela um paradoxo: se pensarmos a partir da lógica de mercado, pode-se dizer que anunciantes e publicitários, em razão de uma visão arcaica do lugar da mulher na sociedade e de um padrão antigo de beleza, não estão falando com potenciais consumidoras”, aponta. 25

Não sendo novidade que publicidade apresenta simulacros femininos que não

correspondem nem à aparência da mulher brasileira e nem às diversas identidades e papéis

sociais que exercem, talvez seja novo tentar entender como as roupas contribuem para a

construção desses simulacros e, se assim como aparência física, seu uso também está

GASTALDO, 2013, p. 74.24

Pesquisa Representações das mulheres nas propagandas na TV. Agência Patrícia Galvão, 23 set. 2013. 25

Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/mulher-e-midia/pautas-midia/pesquisa-revela-que-maioria-nao-ve-as-mulheres-da-vida-real-nas-propagandas-na-tv/. Acesso em: 11 ago. 2014.

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distante do que realmente acontece nas práticas cotidianas. Relembrando a afirmação de

Kathia Castilho, a moda é a competência que possibilita ao sujeito protagonizar papéis

sociais diferentes. Assim, chegaremos à identificação destes papéis nos anúncios a partir

dos papéis temáticos femininos, dos quais as roupas em articulação com o corpo são

importantes figuras constituintes. Considerando ainda que estes papéis obedecem, primeiro,

às regras dos papéis sexuais de mulher e homem, não se pode deixar de entender estas

questões fora de uma axiologia do masculino x feminino, temas que, por sua vez, são

figurativizados na vestimenta pela calça e pela saia.

1.2 Saia e calça, feminino e masculino

Apresentamos antes uma fala de Crane sobre a importância das roupas como

mensagem de declaração do gênero de pertencimento, considerando tanto as crenças

individuais quanto as expectativas coletivas. Castilho vai além e aponta que esta

manifestação se dá pela articulação entre duas plásticas, a da roupa e a do corpo. A roupa

vai enfatizar regiões de maneira a fazer-ver as partes do corpo que são foco da atenção

sexual, atendendo a uma das mais rígidas prescrições sociais, que é a classificação dos

sujeitos em homem e mulher. Assim,

[…] o caráter erótico, ligado ao chamamento do olhar sobre o atrativo sexual do corpo, estabelece uma distinção primordial da espécie humana, homem/mulher, que pode ser entendida como manifestação do instinto biológico. Masculino e feminino, como uma distinção fundamental estabelecida pela cultura, calcada na oposição biológica, revela uma hierarquia, uma distinção de papéis sociais, uma destinação, funções culturais, mitos, uma exaltação de funções rituais e, também, uma valorização estética. 26

Castilho situa o masculino e o feminino como duas categorias do termo complexo

“sexualidade” , que estabelecem entre si uma relação de contrariedade recíproca e que são 27

configurados por diferenças morfológicas aparentes acentuadas pela plástica da roupa.

Desenvolvendo um pouco mais este conceito, entendemos que as categorias da

sexualidade – que se refere a aspectos biológicos –, seriam “macho” e “fêmea”, e que

“masculino” e “feminino”, ou “homem” e “mulher”, na medida em que estes conceitos são

construídos culturalmente, pertenceriam ao termo complexo “gênero”. Enquanto os

subcontrários do paradigma da sexualidade poderiam originar conformações biológicas

diferentes da combinação de órgãos ou traços morfológicos que se costuma encontrar em

“machos” e “fêmeas” – com sobredeterminações como “anjo” ou “hermafrodita” –, no

paradigma do gênero estes subcontrários podem apontar justamente aquelas configurações

CASTILHO, 2009, p. 98.26

CASTILHO, 2009, p. 68.27

Page 19: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!19

corporais que tanto perturbam a ordem social calcada na oposição de gênero, porque

misturam elementos de uma e de outra categoria e dificultam a identificação e todas as

consequências e prescrições que dela advém. É por isso que as primeiras mulheres a usar

calça foram tão estigmatizadas.

Por mais paradoxal que seja, é pelo mesmo motivo que hoje não se usa saia com

tanta tranquilidade. A saia como figura de conteúdo do feminino ou, em alguns casos, a saia

em conformações plásticas que afirmam o feminino, é desencorajada nas situações ou

espaços onde são eufóricos os valores da masculinidade, como o espaço público da rua nos

grandes centros urbanos ou o mundo do trabalho. Aceita-se que a mulher participe de um e

de outro, desde que prevaleçam as marcas da masculinidade, ou as de um certo tipo de

feminilidade.

Observam-se algumas situações que nos levam a entender a saia como uma roupa

que não se escolhe vestir ingenuamente. Boa parte destas ocorrências foi percebida pela

historiadora francesa Christine Bard e reunidas no livro Ce que soulève la jupe . Bard conta 28

que esse livro teria “se imposto” a ela enquanto escrevia sua Histoire politique du pantalon , 29

como se a saia representasse uma oposição natural à calça, da mesma forma que a mulher

em oposição ao homem, o feminino ao masculino.

No livro, Bard desnaturaliza e problematiza o uso da saia, mostrando seu antigo papel

como figura de submissão à ordem masculina mas, também, como símbolo de resistência

aos ditames dessa mesma ordem. Se a saia ficou mais frequente em algumas

manifestações ligadas aos direitos femininos, ela estaria sendo evitada pelas mulheres no

dia-a-dia devido ao potencial risco de assédio ou de serem vistas como “disponíveis”.

Diferentemente da calça, a saia possui um aspecto de vulnerabilidade: as pernas ficam

menos protegidas; dependendo do tecido de que é feita ou da modelagem, pode levantar

com o vento; representa um limite corporal muito tênue em um ônibus ou metrô lotados;

deixa o corpo da mulher mais exposto, já que “a abertura da vestimenta feminina evoca a

facilidade de acesso ao sexo feminino, sua disponibilidade, sua penetrabilidade” . 30

Existem formas de assédio que acontecem justamente por essa vulnerabilidade do

corpo vestido com saia. Em 2011, a imprensa curitibana noticiou que um “tarado” estaria

filmando mulheres de saia e postando os vídeos na internet. Provavelmente havia uma

microcâmera instalada no pé do voyeur, ou mesmo em uma cesta de supermercado,

permitindo tomadas de baixo para cima. O fato de haver um nome para esta prática –

upskirting – é uma marca da sua recorrência. Um dos comentários sobre o assunto, postado

BARD, C. Ce que soulève la jupe. Paris: Éditions Autrement, 2010a.28

BARD, C. Une histoire politique du pantalon. Paris: Éditions du Seuil, 2010b.29

BARD, 2010a, p. 18. Tradução nossa para: “l’ouverture du vêtement féminin évoque la facilité de l’accès au 30

sexe féminin, sa disponibilité, sa pénétrabilité”.

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em um fórum online, vê a atitude como um “castigo” merecido, relacionado ao jeito de se

vestir: “[…] já faz tempo que as mulheres perderam a vergonha na cara e o respeito, elas

acham que podem andar pelas ruas praticamente nuas e que é normal brincarem com o

apetite sexual do homens” . 31

A maior parte das situações apresentadas por Bard refere-se à França, mas não

exclusivamente: a autora cita o caso Geisy Arruda, ocorrido no ano de 2009 em São

Bernardo do Campo; a estudante foi ameaçada por colegas por ter ido à faculdade com um

vestido muito curto. Não esquecendo que a roupa é enunciado que manifesta um discurso,

devemos entender, conforme aponta Castilho, que as escolhas do trajar do sujeito podem

tanto colocá-lo de acordo com o grupo quanto estabelecer um contrato polêmico entre si e

aqueles que não consideram adequada a prática vestimentar adotada , como ilustram os 32

casos de intolerância ao uso da saia que abordamos no capítulo 2.

As reações advindas da percepção da alteridade são tanto a da silenciosa rejeição

quanto a da objetificação, agressão e violência. Tal fenômeno pode ser mais um exemplo do

que tem sido visto como uma crise geral da identidade social provocada pela

desestabilização dos quadros de socialização, como a família, o trabalho, a religião e a

política. Crise essa que atinge os papéis sexuais e que também é abordada por Anthony 33

Giddens em A transformação da intimidade . Para o sociólogo, a violência de gênero 34

estaria relacionada a uma recusa da até então garantida “cumplicidade feminina”, conceito

que nos ajuda a entender a saia na constituição de regimes de interação entre o masculino

e o feminino.

Tanto para o estudo destas relações polêmicas do uso da saia nas práticas sociais

quanto para a investigação de seu processo de significação na identificação e construção

dos papéis sociais femininos na publicidade, é nos pressupostos da semiótica discursiva e

nos desenvolvimentos da sociossemiótica que nos apoiamos.

1.3 Aspectos teóricos e metodológicos

Os principais aportes científicos e metodológicos desta pesquisa estão na semiótica

postulada por Algirdas Julien Greimas e na sociossemiótica de Eric Landowski e Ana

Claudia de Oliveira – nossa filiação teórica no doutorado. Como vimos, o objeto do trabalho

Ver depoimento citado pelo usuário DeDz, postado às 13h15 do dia 28/4/2011, no tópico “Cara tira foto das 31

mulheres de saia em Curitiba” do site de fóruns HardMob. Disponível em <http://www.hardmob.com.br/threads/443717-Cara-tira-foto-das-mulheres-de-saia-em-Curitiba>. Acesso em 16 mai. 2011.

CASTILHO, 2009, p. 47-48.32

DORTIER, 2010, p. 283, entrada “Identidade”.33

GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (trad. 34

Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993.

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situa-se na articulação da moda e da publicidade. E é justamente na moda que se

inscrevem os primeiros estudos de Greimas, onde já se percebem as bases da semiótica

que desenvolveria nos anos seguintes. Em 1948, o semioticista lituano defenderia, na

Sorbonne, sua tese de doutorado intitulada La mode en 1830. Essai de description du

vocabulaire vestimentaire d’après les journaux de modes de l’époque. Trata-se de um

compêndio de mais de três mil vocábulos do discurso da moda, analisados de acordo com

sua origem, uso e sentido. Como explica Thomas F. Broden, em introdução ao volume onde

a tese foi publicada,

[…] este texto acusa um interesse particular [de Greimas] pelo valor de indicador social das vestimentas e das expressões, buscando frequentemente precisar as conotações culturais relacionadas aos diferentes cores e cortes, denominações e epítetos. 35

Greimas analisou, entre outros documentos, revistas femininas da época. Oliveira 36

destaca que esse é um trabalho pré-semiótico, porque a unidade mínima de análise são os

vocábulos, e não o texto como um todo, conforme um dos princípios básicos da disciplina.

Roland Barthes, inspirado por Greimas, desenvolverá, alguns anos mais tarde, seu Sistema

da moda . Basicamente, para Greimas os efeitos de sentido são dados pela articulação dos 37

termos durante o uso (processo), ou seja, em sua manifestação, e não pela combinação a

partir de um número limitado de regras (sistema), como vai postular Barthes. Uma diferença

que vai se materializar em duas propostas teóricas distintas, como pontua Oliveira:

Oriundas de um mesmo arcabouço teórico, essas perspectivas opostas edificaram as novas bases de disciplinas que se desenvolveram ao longo da segunda metade do século XX. Enquanto Greimas edificou a semiótica como teoria da significação, Barthes, a semiologia, como ciência dos signos. Em ambas concretiza-se a disciplina maior projetada por Saussure, da qual a lingüística seria só uma parte. 38

Broden mostra ainda que, diferente de outras teorias sobre a moda como um sistema

autônomo, onde as mudanças se dão internamente (incluindo a de Barthes), percebe-se que

La mode en 1830 considera que as toilettes e os discursos verbais que as “vendem” nas

revistas comunicam-se de maneira íntima com a história e a cultura , visão consolidada nos 39

estudos atuais sobre moda (ainda que Greimas não incluísse o gênero entre os diversos

aspectos sociológicos abordados na sua obra).

BRODEN, T. F. em introdução para GREIMAS, A. J. La mode en 1830. Essai de description du vocabulaire 35

vestimentaire d’après les journaux de modes de l’époque. Paris: PUF, 2000, p. XXVIII. Tradução nossa para: “(...) ce texte accuse un intérêt particulier pour la valeur d’indice social des habillements et des expressions, cherchant souvent à préciser les connotations culturelles qui s’attachent aux différentes coupes et couleurs, dénominations et épithètes.”

OLIVEIRA, 2008, p. 1-2.36

BARTHES, R. Sistema da moda. São Paulo: Martins Fontes, 2009.37

OLIVEIRA, 2008, p. 2.38

BRODEN em prefácio a GREIMAS, 2000, p. XIX-XX.39

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Este primeiro trabalho de Greimas é abordado por Oliveira em seu artigo sobre os

discursos da aparência que se manifestam pela interação entre corpo e roupa, a partir do

qual erige uma proposta de semiótica da moda. Uma das grandes contribuições desta

proposta é a metodologia para a análise do texto constituído pelo corpo vestido, dentro dos

pressupostos mais gerais da disciplina. No que se refere às instâncias do enunciado e da

enunciação, a semioticista diz:

enunciado é o que a roupa no corpo produz no sujeito ou no objeto, tanto um enunciado de estado quanto um enunciado de transformação, que participa da sua definição cognitiva, pragmática, patêmica. A enunciação é o como a roupa no corpo faz a visualidade gestual, postural, cinética daquele que, de uma dada maneira a portando significa para um outro. 40

Na instância do enunciado, a roupa no corpo produz o que o sujeito é ou realiza a

transformação para um outro estado. Oliveira vai explicar que essa transformação não se dá

somente pelo regime de junção, com base em um processo manipulatório, mas também

pelo ajustamento do regime de união, quando a roupa torna-se sujeito em interação com o

sujeito que veste. No caso do nosso corpus, teremos um enunciado onde a roupa não

somente faz ser o sujeito, mas faz o sujeito fazer algo no contexto do anúncio publicitário –

manipulatório por excelência.

Na instância da enunciação, pelo processo de actorialização, espacialização e

temporalização, percebemos as marcas deixadas pelo enunciador em relação com o

enunciatário, que constroem um modo de presença. Tais marcas se inscrevem em um

discurso mais amplo, cultural e social. É nesse momento que podemos verificar a

correspondência ou não com os modos de presença da saia nas práticas semiotizadas

antes. A visualidade, a postura, a gestualidade e a cinética do corpo vestido, bem como os

formantes plásticos dessas roupas, nos mostram os temas e valores que o enunciador

partilha com o enunciatário. No caso dos anúncios, devemos considerar que essa posição é

composta não pelo sujeito que escolhe a roupa que vai vestir, mas pelo anunciante, a

agência, os produtores da fotografia, os profissionais de criação envolvidos na elaboração

da publicidade.

De cada uma dessas impressões transmitidas pelas roupas pode-se depreender uma

ação, uma transformação no estado do sujeito, com o poder de gerar sentido e de mostrar

um modo de presença da mulher – e também de sua relação com o homem, seu outro.

Oliveira ilustra esse processo com a semiotização da obra da artista Sanghee Song

apresentada na 27ª Bienal de São Paulo . Segundo descrição da semioticista, 41

OLIVEIRA, 2008, p. 5.40

As instalações da artista nesta edição da bienal podem ser vistas no guia da exposição publicado no portal 41

UOL, disponível em <http://entretenimento.uol.com.br/27bienal/artistas/sanghee_song.jhtm>, acesso em 20 nov. 2014.

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A obra da artista coreana Sanghee Song era uma instalação composta de painéis fotográficos, vídeos, objetos e esculturas-máquinas, na qual o visitante circulava no interior de sua disposição quadrilátera. A montagem fazia com que, com o seu próprio corpo, o visitante fosse conduzido a defrontar a seqüência de coerções do corpo feminino na sociedade coreana contemporânea. A postura, a gestualidade e as mínimas expressões faciais destacam a expressividade dominada por um aprendizado que é executado e comandado por um destinador cultural que executa o programa do fazer ser e estar o sujeito no mundo social. Como que preso entre essas grandes fotografias, desse interior, ele deparava-se com objetos para se sentar. São instrumentos para fazer o corpo e sua expressão aprender a se conter em um molde. Destacadas dos painéis, reforçando o seu papel de molde, as máquinas de modelagem corpórea estavam aí diante dele: vazias, desocupadas, mas fazendo imaginar o seu agir torturante, operador da programação do ser e estar feminino segundo atitudes e comportamentos de uma axiologia patriarcal arcaica em plena abertura global do país. […] Como outrora, a autoridade patriarcal exerce ainda um comando físico e unilateral que molda uma mulher atemporal. 42

As coerções do corpo experimentadas pela mulher sul-coreana – que, na instalação,

usa saia – não são uma consequência exclusiva do conservadorismo que se costuma

atribuir às sociedades orientais. Christine Bard também ilustra com uma obra artística

europeia a coerção postural feminina implicada pelo uso da saia (figura 1).

Figura 1 – reprodução do livro Let’s Take Back Our Space: ‘Female’ and ‘Male’ Body Language as a Result of Patriarchal Structures (1979), de Marianne Wex.

A primeira linha de fotografias mostra homens sentados à vontade, de perna aberta. Na linha de baixo, fotos de mulheres em postura tensa, de pernas fechadas e ocupando pouco espaço. Fonte: disponível em: <http://

www.flickr.com/photos/o42/2677358657/>. A cesso: 6 jun. 2011.

No começo da década de 1970, a alemã Marianne Wex fotografou homens e mulheres

nas ruas de Hamburgo, eles de calça, elas principalmente de saia ou vestido. Há uma

OLIVEIRA, 2008, p. 10-12.42

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diferença marcante em suas posturas, devido ao tipo de roupa e à constrição corporal

provocadas por essas roupas. Enquanto as mulheres ocupam um mínimo de espaço, com

os joelhos fechados e as pernas cruzadas, os homens abrem as pernas “[…]

proporcionalmente ao seu grau de adesão à norma viril e tomam o máximo de espaço” . 43

Ainda que os exemplos pareçam distantes de nós, seja pela geografia ou pelo tempo,

a discrepância na ocupação do espaço público por homens e mulheres está longe de ser

uma questão ultrapassada. Alguns exemplos podem ser vistos em dois tumblrs que se 44

dedicam a documentar homens ocupando muito espaço no transporte público,

especialmente em trens e metrôs: o Men taking up too much space on the train – que tem 45

por slogan a frase “um clássico entre as asserções públicas de privilégio” –, e o Move the

fuck over, bro . 46

Figura 2 – fotografia mostrando formas diferentes de ocupação de espaço público (transporte público) com o corpo por homens e mulheres.

Fonte: imagem publicada no tumblr Move the fuck over, bro. Disponível em: <http://movethefuckoverbro.tumblr.com/post/85641318921/watch-out-gigantic-balls-on-the-loose>.

Acesso em: 20 nov. 2014.

BARD, 2010b, p. 14. Tradução nossa para: “[…] proportionnellement à leur degré d’adhésion à la norme virile 43

et prennent le maximum d’espace”.

Espécie de blog que, pela facilidade de postagem, é mais utilizado para publicação de fotos e vídeos, 44

acompanhados ou não por textos curtos. Os usuários podem seguir uns aos outros, “favoritando” e “curtindo” postagens e integrando as postagens de um outro tumblr ao seu. É uma plataforma bastante colaborativa.

Em tradução nossa, “Homens ocupando muito espaço no trem”. Disponível em: <http://45

mentakingup2muchspaceonthetrain.tumblr.com/>. Acesso em: 20 nov. 2014.

Algo como “Sai pra lá, cara”. Disponível em: <http://movethefuckoverbro.tumblr.com/>. Acesso em: 20 nov. 46

2014.

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Voltando à imagem do livro de Marianne Wex, vemos que uma das mulheres (a última,

da esquerda para a direita) está usando calça, assim como a passageira de trem de uma

das fotografias postada no tumblr “Move over…” (figura 2). Nos dois casos, o fato de usarem

calça não faz com que se sintam à vontade para sentar de pernas abertas, ao contrário do

homem ao lado. Tanto para elas quanto para eles, a prescrição da postura já foi assimilada e

independe da roupa.

Talvez possamos dizer que essa gestualidade aprendida, a maneira de caminhar, os

movimentos que são permitidos e os que são interditos, são dados pela configuração de um

papel temático do ser mulher. Ou, pelo menos, de um dever-ser determinado tipo de mulher,

simulacro também presente na publicidade. Um exemplo é o anúncio da concessionária

Ecorodovias, que descrevemos no capítulo 4 (figura 4). A mulher no papel de “mãe” está

dentro do carro, no banco do passageiro; o marido dirige o carro e as crianças estão no

banco de trás. Mesmo usando calça comprida, mesmo na intimidade familiar, mesmo em um

espaço fechado, ela senta-se com a postura tensa e as pernas firmemente fechadas.

Se podemos entender os valores sociais a partir da publicidade, talvez possamos

entender também o enunciador-destinador publicitário a partir das escolhas que têm sido

feitas para a representação da mulher em seus discursos. Já vimos que a mulher brasileira

não se reconhece na publicidade, apesar de ser a mulher a determinar 85% do consumo da

família – uma discrepância entre potencial de consumo e formas de representação que é

bastante específico no mercado automotivo, como veremos no capítulo 5. Para Renato

Meirelles, diretor do Data Popular, que realizou a pesquisa em parceria com o Instituto

Patrícia Galvão, um dos motivos seria “[…] uma miopia das agências de publicidade, que

têm entre os seus criativos, em boa parte, homens que dialogam com o universo masculino

[…]” . Miopia que o mercado publicitário pode resistir a reverter, mas que não ignora 47

possuir. O site do Clube de Criação de São Paulo reconhece, em notícia sobre a falta de

diversidade nas campanhas publicitárias, que “a publicidade provou ser a última fronteira

quando se trata de refletir mudanças na sociedade” . 48

De nossa parte, temos outras hipóteses para essa motivação: insistir na representação

de tais simulacros ou na temática da “guerra dos sexos” – como fazem outros discursos

midiáticos, inclusive a imprensa – é uma forma de perpetuar modelos de interação entre

masculino e feminino que valoram negativamente a realização emocional (como apontamos

no final do capítulo 2), e que com isso atendem a certos interesses econômicos. Como

Renato Meirelles em entrevista a ARAÚJO, L. E a publicidade começa a divorciar-se da mulher… Outras 47

Palavras, 25 set. 2013. Disponível em: <http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/e-a-publicidade-comeca-a-divorciar-se-da-mulher/>. Acesso em: 20 nov. 2014.

PRADO, L. Diversidade. Clube de Criação de São Paulo, São Paulo, 11 mar. 2014. Disponível em: <http://48

w w w . c c s p . c o m . b r / s i t e / u l t i m a s / 6 8 1 7 2 / D i v e r s i d a d e ?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=1030>. Acesso em: 20 nov. 2014.

Page 26: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!26

profissionais da publicidade, esperamos que este trabalho seja competente também para

refletir sobre o papel e a responsabilidade desta disciplina. Trazendo as palavras de

Valdenise Leziér Martyniuk, semioticista que investiga a comunicação em marketing,

apreender esses sentidos [das práticas sociais] permite ser capaz de situar-se no mundo, ocupando um lugar, seja de observação, de manutenção ou de intervenção para mudanças, ou ainda dar a outros indivíduos a luz para criar continuidades ou descontinuidades na vida social. 49

Se esta pesquisa for competente para operar algum tipo de intervenção ou inspirar

descontinuidades nas representações publicitárias do feminino e de suas interações com o

masculino, terá contribuído para uma das vocações da Comunicação, que é a Social.

MARTYNIUK, V. L. Práticas de comunicação em marketing sob a luz dos regimes de sentido e de interação. In: 49

OLIVEIRA, Ana Claudia (Ed.) As interações sensíveis: ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013, p. 703.

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2 A SAIA

La gonna attillata […] non finirà mai di far discutere. Dipenderà forse dal fatto che l’equazione gonna-coprire, proteggere,

nascondere cose-di-cui-ci-si-deve-vergognare, ha scatenato per secoli

benpensanti e moralisti. […] La parentela, ve la do per certa, tra gonna e virtù femminile,

ha fatto sì che lo storico indumento fosse da sempre considerato più simbolo che oggetto

reale. Oggi, dopo anni di fortune e di sfortune, la mitica gonna sta vivendo il suo

momento di trionfo.

Chiara Boni 1

2.1 Saia: substantivo e sinônimo feminino

No Dicionário da enciclopédia Mirador Internacional, publicado no Brasil em meados

da década de 1970, a palavra “saia” é definida, em primeiro lugar, como uma “peça de

vestuário feminino, que se estende da cintura para baixo”; em segundo, como “vestidura que

usavam os guerreiros; saio”; e em terceiro, como “a mulher” . O dicionário online Priberam, 2

que considera as versões brasileira e portuguesa do português, também define o termo 3

como “pessoa do sexo feminino”, mas já relativiza a associação da roupa com o gênero e

descreve a saia como “peça de roupa, geralmente feminina, de comprimento variável, que

se prende na cintura e que cobre os membros inferiores” [grifo nosso]. Nesta entrada a saia

aparece também como “parte do vestido, de comprimento variável, que cobre da cintura

para baixo”.

Nos dois dicionários o verbete apresenta ainda exemplos de expressões populares

como “agarrado às saias”, significando estar sob proteção feminina; ser da “saia rasgada”,

uma gíria para indicar alguém que gosta de farra, bagunça (ambos no Dicionário Mirador

BONI, C.; SETTEMBRINI, L. Vestiti, usciamo. Milano: Edizione CDE spa, 1987, p. 14. Em tradução nossa: “A 1

saia justa [...] nunca deixará de provocar discussão Dependerá talvez do fato de que a equação saia-cobrir, proteger, esconder coisas-das-quais-se-deve-envergonhar, por séculos tem instigado hipócritas e moralistas. [...] O relacionamento, dou por certo, entre e saia virtude feminina, fez com que a histórica peça fosse considerada sempre mais como símbolo do que objeto real. Hoje, depois de anos de venturas e desventuras, a mítica saia está vivendo seu momento de triunfo.”

“Saia”, in Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Mirador Internacional, 1977, 2. ed.2

"Saia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (online), 2008-2013. Disponível em: <http://3

www.priberam.pt/dlpo/saia>. Acesso em: 12 ago. 2014.

Page 28: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

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Internacional); e “saia justa”, no sentido de situação incômoda, que em Portugal usa-se

como “saia curta” (Dicionário Priberam). Do senso comum vêm também as expressões “rabo

de saia”, que significa “mulher” mas também o “homem mulherengo”, e o predicado “de

saias”, usado sempre que se quer designar uma mulher que possui as características de

algum homem célebre, tal como faz a poeta Florbela Espanca ao questionar os próprios

“delírios de grandeza”: “Napoleão de saias, que impérios desejas?” . 4

Alguns destes usos metafóricos da palavra saia tomam por base as situações vividas

pelo corpo feminino que veste esta peça de roupa: o desconforto, a dificuldade de

movimentos e a vulnerabilidade da saia justa ou curta; a exposição do corpo, quando a saia

é rasgada – especialmente de suas partes mais sexualizadas, já que em “rabo de saia”,

“rabo” é termo chulo para se referir à parte posterior do corpo, e o “rabo” das reses é

chamado de “saia” . 5

“Calça”, por sua vez, é definida pelo Mirador Internacional como “peça de vestuário

que começa na cintura, dividindo-se por baixo do tronco em dois canos que cobrem as

pernas mais ou menos até o tornozelo” , e pelo Priberam como “vestuário exterior que cobre 6

as pernas separadamente e desce da cintura até aos pés” . Não há associação da peça 7

com o gênero masculino. Na definição do Priberam, o adjetivo “exterior” serve para

diferenciar esta peça da “calcinha”, vestuário íntimo que também pode ser chamado de

“calça”.

Assim como se usa o predicado “de saias” para se referir à mulher que possui a

característica de algum homem célebre, servimo-nos do “de calças” quando a intenção é

fazer a comparação oposta. Por exemplo, para se referir a Robert Galbraith, heterônimo da

escritora inglesa J. K. Rowling, autora do série best-seller Harry Potter, um blog usa a

expressão “J. K. Rowling de calças” ; uma revista feminina chama de “Gisele Bündchen de 8

calças” um modelo brasileiro que faz sucesso no exterior. 9

Quanto às expressões populares, temos “calça curta” (“foi pego de calça curta”) e

“com as calças na mão” para significar situações embaraçosas em que o sujeito é

surpreendido em meio a alguma atividade que deveria ser realizada sem o conhecimento de

SILVA, P. N. da. Citações e pensamentos de Florbela Espanca. Alfragide: Casa das Letras, 2011, 1. ed., p. 4

68.

Entrada “saia”, in Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, op. cit.5

“Calça”, in Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, op. cit.6

"Calça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, op. cit.7

A escritora teria usado um pseudônimo masculino para poder desenvolver novos trabalhos literários após a 8

série Harry Potter. Post publicado no blog Café Distraído em 12 jul. 2014. Disponível em: >http://www.cafedistraido.com.br/livros/o-chamado-do-cuco-j-k-rowling-de-calcas/>. Acesso em: 13 ago. 2014.

Entrevista publicada na revista Donna em 14 mar. 2014. Disponível em: <http://revistadonna.clicrbs.com.br/9

2014/03/14/conhecido-como-gisele-bundchen-de-calcas-marlon-teixeira-e-o-modelo-brasileiro-mais-importante-da-atualidade/>. Acesso em: 13 ago. 2014.

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outrem. Se a “calça curta” é a deselegância (por exemplo: o sujeito precisou dobrar a barra

para não sujar a calça enquanto andava na lama, e foi visto desta forma antes que pudesse

se recompor), a “calça na mão” sugere o corpo exposto de quem estava despido para fazer

as necessidades ou antes/após o ato sexual cercado de algum tipo de interdição.

Assim, saia e calça compõem expressões que metaforizam situações de

constrangimento. A calça “curta” ou “na mão” figurativiza um programa narrativo em que o

sujeito age sobre o objeto “roupa”; na saia “justa” e “curta”, é o objeto que age sobre o

sujeito, causando o desconforto. No caso da saia “rasgada”, há um sujeito 1 (pessoa ou

coisa que pode vir a rasgar a saia) que age sobre o sujeito 2 que veste saia. A calça é

objeto, enquanto a saia é sujeito (ou é objeto para um terceiro). De qualquer forma,

considerando que a saia é uma roupa exclusivamente feminina, de acordo com estas

expressões a mulher não é sujeito em relação à roupa que veste e, por extensão, em

relação ao próprio corpo, e sim um objeto na interação com outros sujeitos. Além disso,

enquanto a “calça curta” é apenas deselegante, a “saia curta” é imoral.

Retomando as definições dicionarizadas, tanto a saia quanto a calça são roupas

presas ao corpo na altura da cintura e que descem ao longo das pernas. O aspecto

realmente significante na diferenciação entre as peças é que a calça é bifurcada, e a saia é

inteiriça. Tais conformações apresentam certas diferenças quanto aos efeitos de sentido

estésicos (com evidentes influências no cognitivo): em termos visuais, a roupa bifurcada

mostra o entremeio de pernas, a roupa inteiriça esconde; em termos táteis, ainda que o

toque seja virtualizado, a roupa bifurcada impede o acesso ao entremeio de pernas,

enquanto a roupa inteiriça permite. Tanto que – emprestando novamente o sentido veiculado

pelos ditados populares – a expressão usada para designar o comportamento da mulher

que recusou sexo ao companheiro é “dormiu de calça jeans”.

Ainda que hoje as mulheres possam usar calças – e, de maneira geral, as usem com

mais frequência do que as saias – calça e saia, enquanto figuras do conteúdo, ajudam a

compor, respectivamente, os temas da masculinidade e da feminilidade. Isto fica claro ao

observarmos, por exemplo, a sinalização de banheiros em espaços públicos. Uma das mais

emblemáticas é a que mostra figuras humanas estilizadas, sendo a masculina com a parte

inferior do corpo bifurcada, mostrando o entremeio de pernas, e a feminina sem mostrar o

entremeio, conforme os dois exemplos que trazemos aqui. Na figura 1a o corpo é dividido na

cintura, formando dois trapézios, sendo o inferior a saia; na figura 1b, o corpo é formado por

apenas um trapézio, simulando um vestido. Considerando esta segunda figura, lembrando

que a parte inferior desta roupa é chamada de saia e que, atualmente, é uma peça usada

por mulheres, poder-se-ia argumentar que o vestido também é um sinônimo do feminino.

Veremos, no entanto, que ele não pode ocupar com a mesma pertinência a posição que tem

a saia no paradigma e nas operações simbólicas da feminilidade.

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Figuras 1a e 1b – exemplos de indicação de masculino e feminino em placas de sinalização de banheiros

Fonte: imagens obtidas por meio de download dos sites Postmania e JWM Elétrica, respectivamente. Interessante notar que na versão com vestido da primeira placa, a mulher está com as pernas unidas, enquanto o homem tem as pernas separadas, indicando mais um exemplo da configuração postural que vimos no capítulo

1. Disponível em <http://postmania.org/placas-de-sinalizacao-vistas-em-postos-empresas-fabricas/> e <http://jwmeletrica.com.br/Produto-SINALIZACOES-DIVERSAS-PLACA-SINALIZACAO-ALUMINIO-BANHEIRO-

MASCFEM-SINALIZE-versao-189-190.aspx>. Acesso em: 9 nov. 2014.

2.2 A diferenciação das roupas por gênero

A diferenciação de roupas masculinas e femininas pelo aspecto bifurcado da parte

inferior é um acontecimento relativamente recente na História ocidental. As túnicas gregas e

romanas eram bastante parecidas para homens e mulheres, variando o comprimento – mais

longas para elas, mais curtas para eles –, como mostra João Braga . O esquema europeu 10

de roupas similares, algo como “sacos curvilíneos sem costuras, seja para os braços ou

para criar qualquer ajuste em torno do corpo” , no dizer de Anne Hollander, permaneceu o 11

mesmo até por volta de 1300. É somente nesta época que os homens substituem esta

espécie de “camisolão” – termo usado por Daniela Calanca – por

[…] uma roupa constituída por um jaleco, uma espécie de casaco curto e estreito, e por meias-calças (dois tubos de tecido que chegam até a altura da virilha, onde se ligam à barra do jaleco por meio de alfinetes, cadarços e fitas que passavam por caseados) aderentes, que delineiam o contorno das pernas. As mulheres vestem um vestido longo como o “camisolão” tradicional, mas mais apertado e decotado. A grande novidade é que a indumentária masculina põe em evidência as pernas modeladas pelas meias-calças, estabelecendo uma diferença muito marcada entre roupas masculinas e femininas. 12

BRAGA, J. História da moda: uma narrativa. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2011, 9. ed.10

HOLLANDER, A. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno (trad. Alexandre Tort; rev. Gilda 11

Chataignier). Rocco: Rio de Janeiro, 2003, p. 60.

CALANCA, D. História social da moda (trad. Renato Ambrosio). São Paulo: Senac São Paulo, 2008, p. 51.12

Page 31: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

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Durante o período compreendido entre o primeiro uso destas “meias-calças” até as

calças dos sans-culottes da Revolução Francesa, as roupas masculinas ocidentais

passaram por modificações, ainda que sem nunca deixar de mostrar a bifurcação da parte

inferior do corpo. Há todo um contexto histórico, político e social que conduz para o

abandono radical do estilo espalhafatoso do traje masculino do Antigo Regime e o 13

surgimento do terno, a composição clássica que permanece sendo usada até hoje, inclusive

pelas mulheres. Para Hollander,

Um anseio por uma integridade obrigatória no design parece ter surgido no Ocidente na segunda metade do século XVIII, após o declínio do gosto pelo rococó, relacionado com o Iluminismo. O corte masculino clássico agora tão universalmente familiar era originalmente neoclássico. Foi inventado e aperfeiçoado entre 1780 e 1820, exatamente quando os temas visuais mais simples do design clássico estavam sugerindo a força e a clareza da democracia grega e da tecnologia romana. Ambas tornaram-se erótica assim como politicamente atraentes; a forma ideal para expressar as novas aspirações emocionais e sociais do momento parecia ser a grega básica ou romana. 14

A mesma revolução estética de inspiração neoclássica teve uma influência breve na

moda feminina. Os amplos vestidos usados até a Revolução – que, dependendo da época

valorizavam mais ou menos os seios, ajustavam ou alargavam as mangas, apertavam a

cintura, ampliavam a região do quadril formando verdadeiras barreiras para a aproximação e

o contato corporal – deram lugar ao modelo chamado Império. Este modelo era

[…] um vestido simples à semelhança de uma camisola solta de cintura alta, logo abaixo do seio, normalmente de cor branca, em tecidos como mousseline ou a cambraia. A transparência fazia-se presente nos vestidos a ponto das mulheres usarem malhas coladas ao corpo não só para se protegerem do frio, como também para evitarem a exibição de sua silhueta. […] por volta de 1810, chegou à altura das canelas, deixando à mostra os pés calçados por sapatos baixos. Os decotes quadrados ou em “V” deixavam o colo todo em evidência. 15

Ao mesmo tempo em que a simplicidade neoclássica se consolida como característica

desejável para o traje masculino, há um movimento reacionário na moda feminina, que

acompanha, na França, uma diminuição nos direitos civis das mulheres. A marcante

distinção que passa a existir entre as roupas dos dois gêneros reflete, ou manifesta, um

discurso mais profundo de separação entre o masculino e feminino.

Em meados do século XIX, a diferença sexual e a necessidade de esferas separadas

de atuação de acordo com as competências físicas e mentais intrínsecas de cada sexo –

Tomamos os acontecimentos históricos franceses como marcos temporais pela importante influência deste 13

país na moda europeia, especialmente a partir de meados de 1600, no reinado de Luís XIV.

HOLLANDER, 2003, p. 16.14

BRAGA, 2011, p. 57-58.15

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forte, racional, ativa e equilibrada para os homens; frágil, emocional, passiva e instável para

as mulheres – atinge seu ápice. Desde o século XVI as mulheres de classe média e alta

vinham sendo gradualmente excluídas da vida política e comercial nas cidades. Por volta de

1840 em diante, a atuação da mulher destas classes restringe-se à casa, ao cuidado dos

filhos e ao agrado do marido, cuja atuação no trabalho e na vida pública demandavam, para

compensação, o conforto do lar e o carinho e a compreensão da esposa. Adrian Forty

comenta que até o design dos objetos da época servia para materializar estas supostas

diferenças, que confundiam diferenças físicas reais com diferenças psicológicas atribuídas,

e que eram discursivizadas tanto em romances quanto em obras científicas do século XIX.

Conforme aponta Forty,

As características não existiam como realidades, mas como ideias; para viver tranquilamente com elas, as pessoas precisavam de provas de sua verdade. A ficção, a educação e a religião contribuíram todas para isso, e o mesmo fez o design. 16

O papel das roupas na concretização e naturalização destas ideias foi ainda mais

importante. Os homens passaram a usar o traje de três peças, muito parecido com o que se

usa hoje, composto por calça, colete e paletó, em cores sóbrias, de tecido confortável e

elegante, permitindo grande liberdade de movimento. As mulheres retornaram às saias

volumosas e aos corpetes, em trajes extremamente ornamentados que dificultavam muito a

mobilidade.

O fenômeno da adoção da sobriedade e da praticidade pelos homens, deixando às

mulheres a fantasia e a “futilidade” da moda, recebeu do psicólogo inglês John Carl Flügel,

em 1930, a expressão de “A grande renúncia masculina”. Para Anne Hollander, no que

tange ao surgimento, sucesso e consolidação da alfaiataria masculina, tal explicação é

muito “fácil” . Para a historiadora Christine Bard, ao mesmo tempo em que tal renúncia 17

estabelecia a diferenciação radical das aparências de acordo com o sexo, também impunha

um sistema masculinista, reforçado pela proibição do uso da calça pelas mulheres . 18

As constrições sociais ou da moda, cada vez mais restritivas para as mulheres, e os

primeiros desenvolvimentos do socialismo e do feminismo, provocaram reações e a

demanda por mudanças. Como ressalta Bard, tais movimentos de emancipação tinham uma

dimensão internacional e o vestuário não era uma questão central neles, mas não se pode

ignorá-lo . É neste contexto que surgem as primeiras reivindicações ao uso social da calça 19

FORTY, A. Objeto de desejo: design e sociedade desde 1750 (trad. Pedro Maia Soares). São Paulo: Cosac 16

Naify, 2007, p. 95.

HOLLANDER, 2003, p. 37.17

BARD, Christine. Une histoire politique du pantalon. Paris: Seuil, 2010b, p. 11.18

BARD, 2010b, p. 91.19

Page 33: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

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pelas mulheres , dentro de uma proposta mais ampla de reforma do vestuário feminino com 20

vistas a deixá-lo mais prático, saudável e confortável. Esta proposta, segundo Diana

Crane , contrariava a rígida separação de identidades de gênero da época e, portanto, não 21

obteve o apoio das mulheres em geral. A mais conhecida das propostas de reforma do

vestuário foi aquela apresentada pela americana Amelia Bloomer por volta de 1850, e

consistia numa saia curta usada sobre uma calça turca volumosa. As mulheres que

apareciam em público com o traje bloomer eram cercadas por uma multidão agressiva,

normalmente masculina. Devido ao grande assédio, pararam de usá-lo . 22

O uso da calça por mulheres é um tabu que começa a ser quebrado nos espaços

públicos isolados ligados ao esporte, ao lazer e à educação (faculdades, parques, praia,

campo), nos locais de trabalho das mulheres de classe operária e nas zonas de fronteira.

Em 1880, mulheres já usavam calças escuras, retas e longas por baixo da saia, para

cavalgar; na década de 1860, calças curtas ou bloomers eram usados como trajes de

banho; em meados do século XIX, estudantes de instituições femininas de ensino superior

nos Estados Unidos usavam saia-calça para a prática de ginástica. Em 1892, as francesas

ganham a permissão de usar saia-calça e, em 1893, calça coberta por saia, somente para a

prática do ciclismo (o uso da calça pelas mulheres, além de outras severas restrições aos 23

direitos civis, havia sido proibido pelo código civil francês de 1804). Modelos de artistas e

fotógrafos de Montmartre e Montparnasse, em Paris, usam calças a partir da Primeira

Guerra Mundial, mas não nas ruas; Chanel tenta criar um traje com calça para mulheres das

classes média e alta em 1920, mas sem sucesso. As calças são usadas com mais

frequência durante a Segunda Guerra, devido à escassez de roupas novas de qualquer tipo.

Porém, é só depois da metade da década de 1950 que passam a ser aceitáveis para a vida

urbana , contemporaneamente ao surgimento de outra peça-tabu no guarda-roupa 24

feminino: a minissaia.

Para Bard, a emergência do uso da calça pelas mulheres, concomitante à adoção da

minissaia, primeiro nos círculos artísticos e boêmios londrinos e depois em Paris, ofereceu à

mulher a sensação de poder fazer uma escolha entre uma roupa que esconde e outra que

Apesar da grande restrição ao uso público da calça ou à sua aceitação como parte do traje dominante, a peça 20

já vinha sendo usada, há algum tempo, em situações privadas ou de invisibilidade social. Mulheres de calça apareciam nas formas mais leves de pornografia no século XVIII; eram usadas pelas bailarinas, acrobatas, atrizes e cantoras quando o número artístico descobria a parte de trás do corpo; era associada ao Oriente, que por si só já evocava mistérios sexuais; e também havia sido usada por agricultoras, pescadoras e trabalhadoras das minas (HOLLANDER, 2003, p. 74).

CRANE, D. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas (trad. Cristiana Coimbra). São 21

Paulo: Senac, 2006, 2 ed., p. 227.

CRANE, 2006, p. 229-230.22

CRANE, 2006, p. 236-245.23

CRANE, 2006, p. 256-257.24

Page 34: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!34

desvela; entre um vestuário de conotação masculina e outro bastante feminino. Esta noção

de escolha é apreciada por um grande número de mulheres, desde os anos 1960 até os

dias de hoje . Agora, passada a primeira década do século XXI, se as mulheres ocidentais 25

podem escolher livremente a roupa que desejam usar, por que a saia, emblematicamente

feminina, tem sido preterida pela calça? Uma das possíveis respostas está, justamente, em

sua associação com o feminino, em um contexto de empoderamento social, político,

profissional e especialmente sexual da mulher. Mas antes de tratar disso, vale entender um

pouco mais a relação entre a saia e a feminilidade.

2.3 A saia e o vestido

Como já abordado no capítulo anterior, o que teria levado Bard a escrever um livro

sobre a saia foi a constatação de que as mulheres contemporâneas, especialmente as mais

jovens, usam muito pouco esta peça de roupa, e a percepção de que um dos motivos para

isso seria a aparência de vulnerabilidade e de acessibilidade ao corpo feminino: para quem

olha, seria um convite à violação; para quem veste, haveria a experimentação física desta

ameaça, seja pelo olhar ou efetivamente pelo contato.

Tal situação estaria intrinsecamente relacionada ao feminino. O assédio aconteceria

não apenas porque se trata de uma mulher, mas porque ao usar saia esta mulher assume e

exibe marcas da feminilidade, o que motivaria a necessidade de uma “ação corretiva”

efetuada por parte de segmentos intolerantes da sociedade. A historiadora apresenta

diversos exemplos destas situações e também nós trazemos alguns, logo adiante. No

entanto, como fica a diferença entre a saia e o vestido neste contexto, já que as duas peças

são "femininas" e possuem configuração similar da cintura para baixo?

Para situar a saia como símbolo do gênero feminino, Bard traz exemplos do emprego

metonímico da palavra para indicar “mulher” e também a etimologia do termo em francês,

jupe. A palavra teria vindo do árabe djoubba, que denominava um tipo de vestido usado por

homens ou mulheres, dependendo da região; jupe, inicialmente, designava uma roupa de

baixo composta por duas peças: “le corps de la jupe (corsage) et le bas de la jupe (allant de

la taille aux pieds)” – que podemos traduzir como “o corpo da saia (corpete) e a parte de

baixo da saia (indo da cintura aos pés)”. Jupe, no sentido contemporâneo de “saia”, ou seja,

uma peça de roupa que inicia na cintura, não havia sido usado antes do século XVII . 26

A autora mostra ainda a etimologia do termo em francês para “vestido” – robe –, que

originalmente designava um tipo de roupa comprida usada pelos dois gêneros, desde a

BARD, C. Ce que soulève la jupe. Paris: Autrement, 2010a, p. 34-35.25

BARD, 2010a, p. 9-10.26

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Antiguidade até o século XVI (como o “camisolão” que mencionamos antes). É a partir do

século XII que a palavra robe passa a denominar a veste feminina composta por apenas

uma peça, com ou sem mangas, de comprimento variável e para ser usada por cima (em

oposição às roupas “de baixo”). Bard conclui a descrição etimológica dizendo que, “hoje, é a

saia mais que o vestido, menos frequente, que simboliza a feminilidade vestimentar” . Logo 27

em seguida, questiona o conceito da saia como uma roupa que esconde o sexo quando, na

verdade, a calça é que é fechada e protetora. A saia é aberta, e o foi muito mais quando as

mulheres não podiam usar roupas de baixo fechadas (os culottes, antecessores da 28

calcinha, tinham o “gancho” aberto; só foram fechados no final do século XIX).

Tal abertura é a causa da vulnerabilidade e acessibilidade de que falamos, mas ela

pode acontecer tanto com o uso da saia quanto do vestido. De fato, a autora vai usar

genericamente, muitas vezes, o termo “vestimenta aberta”. Quando comenta que nem nos

anos 1920 – quando a silhueta magra e os cabelos curtos compuseram um estilo de

influência masculina, o “à la garçonne” –, a calça feminina foi aceita, Bard diz assim: “Saia

ou vestido, a roupa aberta resiste ao ataque de masculinização. É um indício da sua força

de inércia e da sua importância para o gênero feminino” [grifo nosso]. Depois, ao falar da 29

pretensa liberdade proporcionada pela minissaia – liberdade de movimento, mas exigência

de um corpo magro e pernas sem celulite, que não poderiam mais ficar escondidas sob

longas saias –, usa o termo “jupe”, quando sabemos que a altura da bainha indicada pelo 30

prefixo “mini” era adotada também em vestidos.

Portanto, também estão presentes no vestido alguns aspectos que fazem da saia uma

roupa que sugere acessibilidade, que sexualiza e que tem sido menos usada pelas

mulheres. Mas veremos que tais aspectos, especialmente em sua relação com o feminino e

com os modos de presença da mulher no mundo, são predominantes para a saia. A

começar porque a saia é uma roupa originalmente feminina, e o vestido não . O mesmo 31

procedimento que explica a transformação da calça como peça de roupa símbolo da

masculinidade, mostra a transformação da saia como símbolo da feminilidade. Este

procedimento baseia-se no arranjo da roupa no corpo.

BARD, 2010a, p. 10-11. Tradução nossa para: “Aujourd’hui, c’est la jupe plus que la robe, moins fréquente, qui 27

symbolise la féminité vestimentaire”.

BARD, 2010a, p. 11.28

BARD, 2010a, p. 30. Tradução nossa para: “Jupe ou robe, le vêtement ouvert résiste à l’assaut de 29

masculinisation. C’est un indice de sa force d’inertie et de son importance symbolique pour le genre féminin.”

BARD, 2010a, p. 33.30

Como já vimos, o vestido é uma roupa originalmente usada tanto por homens quanto por mulheres. Já as 31

saias sempre foram femininas, sem nunca terem sido tomadas de empréstimo pelos homens. Quanto ao kilt escocês, Anne Hollander diz: “O kilt, a peça de vestuário masculino que mais se parece com a saia, é de fato um sobrevivente de épocas antigas em que os homens usavam generalizadamente panos para cobrir-se, mesmo em tempos de guerra” (HOLLANDER, 1994, p. 80).

Page 36: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!36

Segundo o Dicionário de Semiótica , todo objeto cognoscível pode ser apreendido 32

sob dois aspectos fundamentais: como sistema ou processo. Quando o objeto é de natureza

semiótica, como é o caso do corpo humano vestido, o termo sintagmático serve para

designar o processo, que se estrutura em relações do tipo e…e. O sistema é designado pelo

termo paradigmático, que se estrutura em relações do tipo ou…ou. O eixo sintagmático é

constituído por unidades sintagmáticas, ou sintagmas, “definíveis pelas relações que os

elementos constituintes mantêm entre si e com a unidade que os subsume” . 33

Greimas, em seu trabalho sobre o vocabulário de moda que circulava na sociedade

francesa em 1830, já distinguia a articulação entre os eixos sintagmático e paradigmático na

constituição do traje. Sendo importante considerar o traje como uma unidade conceitual,

deixa de lado termos que podem tanto designar o traje completo quanto partes dele e opta

pela palavra costume, que melhor exprimiria o parecer conceitual construído pela roupa . 34

No decorrer do livro, apresenta este costume a partir da descrição de peças usadas ou

vestidas em diversas partes do corpo. O que compõe o costume, portanto, são estas peças,

que por sua vez estão relacionadas às divisões do corpo humano. Sendo o costume a

unidade principal, as unidades sintagmáticas são as posições, homologáveis a partes do

corpo humano, onde as peças são usadas. O costume, portanto, se define pela relação que

estas posições estabelecem entre si e com o costume propriamente dito. Cada posição, por

sua vez, pode ser ocupada por um certo número de opções vestimentares, ou seja, por

certas unidades paradigmáticas, oferecidas pelo sistema da moda. Assim, o costume

feminino poderia se apresentar como sendo um processo combinatório entre as unidades

sintagmáticas “vestíveis” da cabeça e do pescoço e do tronco e da cintura e das pernas e

dos pés. Na posição da cabeça, por exemplo, o paradigma do sistema de vestuário oferece,

como opções, o chapéu ou o véu ou o lenço ou o arranjo de cabelo.

Décadas mais tarde, ao analisar a identidade visual do total look Chanel, Jean-Marie

Floch vai listar os elementos característicos dos trajes da estilista considerando-os como

signos, ou como unidades sintagmáticas da composição total . Mesmo a expressão look é 35

usada com sentido similar ao costume de Greimas: algo que organiza o todo, ou o parecer,

da figura feminina ou da silhueta conforme concebida por Coco Chanel . 36

Relembrando a primeira revolução no modo de se vestir, destinada pela necessidade

da diferenciação dos gêneros e ocorrida no século XIV, vemos que foi uma mudança no eixo

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica (trad. A. D. Lima et. al.). São Paulo: Contexto, 2008, 32

entrada “Sintagmático”, p. 469.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J., 2008, p. 470.33

GREIMAS, A. J. La mode en 1830. Langage et société: écrits de jeunesse. Paris: PUF, 2000, p. 19.34

FLOCH, J-M. Visual identities (trad. Pierre Van Osselaer e Alec McHoul). New York: Continuum, 2000, p. 88.35

FLOCH, J-M., 2000, p. 83.36

Page 37: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!37

sintagmático do parecer masculino: tronco e pernas, que formavam uma única unidade

sintagmática recoberta pelo “camisolão”, passaram a constituir duas unidades separadas. As

meias-calças, braies, os gibões, calções e culottes tornaram-se elementos do paradigma

“vestes para as pernas”. Mais importante de tudo, eram opções que assumiam a estrutura

bifurcada da parte inferior do corpo, e que teve sua consolidação com a adoção da calça no

século XIX. O que vai marcar e simbolizar a masculinidade é a calça e a forma como revela

e expressa a articulação das unidades que compõem o sintagma do corpo masculino. Como

diz Hollander, especulando sobre uma possível mudança do modo de se vestir do homem

contemporâneo: “De modo notável, os homens ocidentais ainda não querem vestir panos

drapeados, camisões, robes, xales ou véus. O corpo deve permanecer articulado e nunca

encoberto, e ser unificado apenas pela ideia, e não pelo tecido solto” . 37

Já as mulheres continuarão um bom tempo a ter o corpo estruturado

sintagmaticamente com tronco e pernas formando uma unidade. É somente no início do

século XVI que o vestido passa a ser composto por duas partes, a de cima e a de baixo, e a

saia transforma-se em uma peça efetivamente individual, comumente chamada de anágua.

O termo anágua referia-se a uma “saia de usar embaixo”, mas não no sentido de roupa

íntima. Ela fazia parte da composição do traje e poderia aparecer abaixo da barra ou pelas

aberturas ou talhadas da roupa que vinha por cima. Assim explica Hollander, apontando a

saia e também o véu como peças-símbolo da mulher:

As mulheres pobres podiam usar somente uma camisa, uma anágua e um corpete sem mangas, ou mesmo não usar um corpete; mas certamente usariam um lenço para a cabeça. A anágua não era originalmente uma roupa para ser usada por baixo, mas simplesmente uma parte separada da saia. Como tal tornou-se, junto com o véu para a cabeça, aquela peça de roupa que define o vestuário feminino. 38

Ao tratar das origens rústicas da saia para o flamenco – a tradicional dança espanhola

– a pesquisadora Maria Alice Ximenes descreve a diferença entre os trajes da dama e da

camponesa, sendo o uso da saia separada uma característica do parecer desta última:

Tanto a camponesa quanto a dama usavam roupas compridas como segue a linha do tempo na história da moda, com diferenciais em tipos de tecidos e acabamentos. No entanto, especialmente a camponesa usava a roupa desde o século XV dividida em duas peças, pois usavam o “dessous”, ou seja, a “roupa de baixo”. […] A dama, por sua vez, somente usará o traje disposto em duas peças a partir do século XIX, em decorrência do surgimento do costume de usar vários trajes para um mesmo dia, propiciado pelo advento da vida urbana, que possibilitava maiores opções de passeio. 39

HOLLANDER, 2003, p. 143.37

HOLLANDER, 2003, p. 65.38

XIMENES, M. A. A saia motriz: um percurso nos mistérios da vestimenta e da representatividade espanhola. 39

2009. 120 f. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009, p. 101.

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!38

Ainda que os vestidos pudessem ser compostos por duas partes separadas, havia

uma unidade cromática e de tecidos que provocava a ideia de continuidade no visual do

traje. A descontinuidade operada pela separação de tronco e pernas como unidades

sintagmáticas a serem cobertas por roupas diferentes será, durante muito tempo, um

parecer feminino mais associado às classes trabalhadoras. No inventário de Greimas sobre

a toilette feminina em 1830 – aquela usada pela francesa elegante, e não pela trabalhadora

– há um item que trata do vestido, com observações sobre as mangas, o corpete e os

enfeites; há também a descrição dos redingotes e túnicas, peças inteiriças usadas sobre o

vestido; mas não há um item específico para a saia, nem como parte do vestido, muito

menos como peça individual. A saia é mencionada apenas como integrante da roupa de

dormir . A única situação de uso público da saia é como parte do traje de caça . 40 41

Para Greimas, a moda da Restauração estava no contra-pé daquela do Império,

quando a saia dos vestidos caía mais naturalmente ao longo do corpo e tinha sua cintura

alta, logo abaixo do seio. Depois deste breve período, como vimos, as saias voltam a

assumir o formato avolumado. Greimas diz, em termos de inovação, que as saias foram

“abandonadas” e toda atenção foi dirigida para o corpete , ou seja, para os seios. 42

O seio estava como atrativo sexual para as mulheres assim como a genitália para os

homens, e isso se manifestava nas roupas. O destaque explícito do codpiece ou braguette –

espécie de suporte peniano que também servia para unir as duas pernas do calção bufante

usado no Renascimento – fica mais sutil, com o passar do tempo, e vai se transmutar na

braguilha da calça. Quando os paletós ficam mais longos e passam a esconder a braguilha,

surge a gravata comprida, que assume a função de referenciar o falo. Para a psicanalista

Eugénie Lemoine-Luccioni, citada por Bard, aquilo que se diz da braguilha pode ser dito do

decote feminino: é o ponto quente da vestimenta . 43

Mostrar ou destacar os seios nunca foi tão indecoroso quanto mostrar as pernas. Nas

épocas de maior amplidão e profundidade dos decotes, maiores também eram as saias dos

vestidos, como se para definitivamente esconder, negar e tornar o sexo feminino

inacessível. Considerando que o corpo feminino possui dois pontos de atenção sexual – os

seios e a genitália –, vemos que o primeiro é considerado eufórico, benigno, e deve ser

assumido, enquanto a segunda é disfórica, maligna, e deve ser negada.

Vemos esta oposição também no traje tradicional da espanhola, em que Ximenes

identifica uma operação semissimbólica: a parte superior é sacra; a inferior, profana.

GREIMAS, 2000, p. 73.40

GREIMAS, 2000, p. 77.41

GREIMAS, 2000, p. 57.42

LEMOINE-LUCCIONI apud BARD, 2010a, p. 9.43

Page 39: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!39

O corpo da espanhola está todo coberto da cabeça aos pés, ora por pudicícia, ou por tradição, por religiosidade, por proteção, ora por mesclas culturais. […] O decote não consistia em fatores sensuais, sempre denotou sinônimo de docilidade maternal, os fartos seios que nascem como colinas nos decotes, bem como a presença dos braços nus não constituem partes eróticas do corpo da espanhola, porém a saia é a cauda, é o centauro, é o segredo, é o sexo adulto coberto. […] A potencialidade presente no traje que, da cintura para cima, tem uma estrutura de significação e está mediado pela representatividade sacra, se contrapõe da cintura para baixo com a saia que, através do Flamenco, fantasia-se em movimentos que revelam inesperadamente suas pernas. [grifos nossos] 44

Para Hollander, a organização corporal em que a parte superior é descoberta e a

inferior, muito coberta, atinge seu auge no século XIX, retorna em meados do século XX

(acompanhando uma nova “romantização” da mulher) e permanece até hoje, nas situações

em que a temática romântica é desejável: bailes, casamento, no palco do teatro ou nas telas

do cinema. Esta visão romântica seria sustentada pela negação do sexo da mulher, ou ao

menos a parte dele considerada ameaçadora:

Isto corresponde a um mito muito tenaz sobre as mulheres, o mesmo que deu origem à imagem da sereia, o monstro feminino perniciosamente dividido, a criatura herdada pelos deuses somente até a cintura. Sua voz e seu rosto, seus seios e seus cabelos, seu pescoço e seus braços são todos fascinantes, oferecendo apenas o que é benigno dentre os prazeres concedidos pelas mulheres, tudo sugerindo o amor sem reservas, carinhoso e fisicamente delicioso das mães, ao mesmo tempo em que parece prometer uma tormentosa oportunidade de sexo adulto. A parte superior de uma mulher oferece prazer intenso e uma espécie de ilusão de doce segurança; mas é uma armadilha. Por baixo, sob a espuma, sob a saia adorável de ondas rodopiantes, seu corpo escondido causa repulsa, seus contornos são revestidos por uma degeneração escamosa, seu interior oceânico cheirando a imundície. [grifos nossos] 45

As palavras fortes da historiadora encontram eco em muitas expressões pejorativas do

senso comum que associam a mulher ou sua genitália com peixes e outros animais

aquáticos, sendo a mais emblemática, talvez, aquela que serve para designar a mulher

sexualmente liberada: “piranha”. Diferente de outros xingamentos com o mesmo objetivo,

este sugere uma genitália dentada, com poder de castração . 46

O fato é que o uso da saia separada por mulheres de classe média e alta – ou seja, da

aceitação social da saia – e depois o gradual ajustamento da saia ao corpo e o

encurtamento da bainha, parece corresponder a uma maior participação da mulher na vida

pública, a uma maior autonomia, à conquista de direitos civis e, principalmente, a um

assumir a existência de um corpo feminino abaixo da cintura, algo que a calça, segundo

Hollander, também vai ajudar a mostrar:

XIMENES, 2009, p. 117; 199.44

HOLLANDER, 2003, p. 81; 84.45

Há diversos estudos sobre este “medo” do feminino, como o da poeta americana Adrienne Rich: RICH, A. Of 46

woman born: motherhood as experience and institution. New York: Norton, 1986.

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!40

mostrar que as mulheres têm pernas comuns que funcionam exatamente como a dos homens […] era também mostrar que elas tinham músculos e tendões que trabalhavam de modo comum, assim como o baço e fígado, pulmões e estômago e, por extensão, cérebro. 47

O traje das elegantes do Romantismo e depois da era Vitoriana apresentavam

diversos elementos que figurativizavam o controle social exercido sobre as mulheres,

especialmente na França. Um aspecto deste controle era o confinamento da mulher ao

espaço privado da casa e ao ócio, já que trabalhar não era de bom-tom. Algumas das

mudanças na moda de fins do século XIX terão sua origem no modo de se vestir adotado

por mulheres que não se encaixavam neste papel feminino mais tradicional. Diferente do

que ocorria com as reformistas do vestuário, as motivações deste grupo de mulheres não

eram destinadas por uma consciência feminista, e sim pela diferença de classe social.

Diana Crane defende que na segunda metade do século XIX existiam dois estilos de

roupas para mulheres: o estilo dominante, adotado pelas burguesas de classe alta, e um

estilo que a autora chama de “alternativo”, largamente adotado, como atestam diversas

fotografias do período, apesar de não ter substituído o estilo dominante. O estilo alternativo

se caracterizava pela incorporação de vários itens do vestuário masculino, como gravatas,

chapéus, paletós, coletes e camisas – mas não a calça . 48

Nos interessa especialmente o fato de que parte destes itens, como os paletós,

coletes e camisas, compõem o paradigma do vestuário para o tronco, pressupondo, então,

as pernas como uma unidade sintagmática separada, a ser vestida pela saia. Esta

composição distingue-se do vestido do estilo dominante em dois aspectos: pela diferença na

organização sintagmática e por usar tecidos e acessórios mais simples. Os vestidos exigiam

tal quantidade de tecidos e ornamentos que o tornavam financeiramente inacessível e

operacionalmente inviáveis para mulheres trabalhadoras das classes média e operária. O

estilo alternativo, portanto, era uma espécie de resistência simbólica ao dominante, operada

principalmente por “mulheres trabalhadoras solteiras das classes média e operária [que]

desempenhavam papéis que contradiziam o papel ideal de gênero, pois trabalhavam e

tinham alguma independência” . 49

Crane vai mostrar diversas composições de traje feminino com elementos do traje

masculino. Citando Xavier Chaumette, a historiadora aponta o conjunto saia e paletó como o

“símbolo da mulher emancipada do século XIX” , muito usado pelas jovens que 50

trabalhavam em escritórios. De origem inglesa, assim como o traje masculino da época, fez

HOLLANDER, 2003, p. 84.47

CRANE, 2006, p. 200.48

CRANE, 2006, p. 48-49.49

CHAUMETTE apud CRANE, 2006, p. 209.50

Page 41: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!41

com que, na França, as mulheres que se locomovessem muito livremente fossem chamadas

de l’anglaises. Também foi adotado pelas francesas com o nome de tailleur, que significava

“sob medida”. Diferentemente dos vestidos das elegantes, era confeccionado

preferencialmente por alfaiates, e não por estilistas ou modistas . Outra peça de roupa que 51

figurativizava o tema da emancipação era a chemisier, uma camisa masculina adaptada,

surgida nos anos 1870 nos desenhos de Charles Dana Gibson, nos Estados Unidos.

Chamada de blusa Gibson, foi largamente utilizada pelas mulheres americanas de classe

média e operária no final do século XIX, convertendo-se no “[…] ícone que representava a

jovem emancipada” . 52

O estilo de vestuário alternativo representava uma resistência, consciente ou não, ao

estilo dominante e às mulheres que podiam (ou deviam) usá-lo: mulheres de classe alta,

casadas e que não trabalhavam. Por isso, como já vimos, a inclusão de elementos

masculinos (simbolizando a independência e não necessariamente questionando a

autoridade masculina) no traje foi adotada, primeiramente, pelas jovens trabalhadoras de

classe média e operária e pelas mulheres solteiras, dois grupos relativamente “marginais”

considerando-se o ideal da época. Porém, enquanto o estilo dominante, dispendioso e

complexo, servia para manter as fronteiras de classe social existentes, “o estilo alternativo,

relativamente barato e descomplicado, cruzou as fronteiras de classe” , sendo um dos 53

primeiros casos em que a influência da moda se deu de baixo para cima. O conjunto de saia

e camisa, o tailleur, o paletó e a gravata acabaram por compor o estilo dominante na virada

do século XIX para o XX. Tanto que, em 1920, o look de Coco Chanel – que almejava

oferecer concorrência ao estilista Paul Poiret e seus vestidos limitadores do movimento

corporal – apresentava duas características do estilo alternativo do século XIX: a proposta

de uma combinação precisa de diferentes unidades sintagmáticas – partes do corpo ou

partes do traje –, que podiam ser valorizadas separadamente, e a inclusão de elementos do

vestuário masculino e do mundo do trabalho, inclusive a calça . Assim, o estilo antes 54

alternativo chegava à classe alta francesa e passava a compor o estilo dominante.

Além de romper as fronteiras de classe, o estilo alternativo contribuiu para minar as

barreiras de gênero. Assim como ocorreu com o corpo masculino, a separação de tronco e

pernas em duas unidades sintagmáticas vestimentares significou assumir que existe o sexo

na parte inferior do corpo feminino, constatação que ficará visualmente mais forte – e por

isso a interdição persistente por tanto tempo – com a adoção da calça. A calça, no entanto, é

CHAUMETTE apud CRANE, 2006, p. 210.51

CRANE, 2006, p. 213.52

CRANE, 2006, p. 268.53

FLOCH, 2000, p. 93.54

Page 42: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

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uma peça masculina e assume o sexo de um jeito originalmente masculino. A saia é

feminina, e usar saia é uma afirmação da sexualidade feminina.

2.4 Percursos polêmicos do uso da saia

Podemos considerar diversos aspectos no uso contemporâneo da saia e em sua

relação com a temática do feminino. Um deles é abordado por Bard no segundo capítulo de

seu Ce que soulève la jupe: “La jupe fait de la résistance” , ou “A saia resiste”. 55

Como vimos, a autora aponta um menor uso da saia pelas mulheres neste início de

século XXI. Este “abandono” em detrimento da calça seria maior entre as adolescentes e

mulheres jovens, devido ao risco de assédio e violência. No entanto, apesar do uso

generalizado da calça, a saia não saiu de moda. Seu poder erótico de roupa aberta atrai,

estimula o jogo de sedução, proporciona o prazer estésico do contato da pele nua com o

tecido, enseja um vestir-se para si e também para o outro. Muito por conta disso, começa a

se estabelecer, em algumas práticas e discursos, a associação saia = puta. Mulheres,

especialmente as mais jovens, que usam saia e outros recursos de “feminilidade” (como a

maquiagem, por exemplo), são tachadas de “fáceis”, sanção aplicada por um destinador-

julgador que considera a expressão da sexualidade feminina como o descumprimento de um

certo tipo de contrato.

Em um estudo de 2008 sobre os jovens e o amor nas cidades , a socióloga Isabelle 56

Clair observa que as meninas devem obedecer a um determinado código com restrições

geográficas, de relacionamento e vestimentares. A saia, entre outras peças (bota,

especialmente as de bico fino; camiseta regata; tops justos e/ou decotados), pertence ao

grupo do vestuário interdito às jovens, porque são associados à uma sexualidade adulta. Na

lógica desta narrativa, o uso destas peças sinaliza uma provocação sexual e uma intenção

que justifica a culpabilização da vítima em caso de agressão. Ou, como vemos em muitas

falas de agressores: “usando estas roupas, ela estava ‘pedindo’”. A saia é usada somente

em condições muito específicas, quando a moça sai com o namorado, por exemplo. No dia-

a-dia e nos espaços públicos da escola e da vizinhança, para se fazer respeitar, as meninas

se vestem de forma parecida à dos meninos.

Neste contexto, a insistência na expressão da feminilidade estaria na base de

episódios extremamente violentos que ocorreram ou vieram à tona em 2002, na França: o

caso de uma moça de 17 anos, queimada viva nas lixeiras de uma localidade no subúrbio

BARD, 2010a, p. 66-118.55

CLAIR apud BARD, 2010a, p. 68.56

Page 43: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!43

de Paris , e os constantes estupros coletivos que ocorreram na época. Estes eventos 57

levaram à realização de uma marcha contra a violência de gênero que mobilizou 30 mil

pessoas de todo país e chegou a Paris em 8 de março de 2003, e também à criação do

movimento Ni putes ni soumises . O Ni putes ni soumises surge para lutar pela liberdade 58

das mulheres se vestirem do jeito que desejarem, sem serem agredidas por isso. Entre as

peças que mais causam polêmica está, junto à saia, o véu islâmico. Mas é a saia que

“veste” o punho da manifestante no logotipo do movimento (figura 2a), e para suas

integrantes, “usar uma saia é um ato militante” . 59

Figuras 2a e 2b – logotipo do movimento Ni putes ni soumises e anúncio da programação do Canal+ dedicada ao aniversário do movimento

Fonte: imagens obtidas por meio de download, respectivamente, na loja virtual do movimento e no site de conteúdo educacional Cia France. Disponível em: <www.npns.fr/boutique/badges/le-badge-en-jupe-et-pas-soumise-blanc/> e <http://www.cia-france.com/francais-et-vous/sous_le_platane/19-la-jupe-publicite-pour-

%C2%AB-ni-putes-ni-soumises-%C2%BB.html>. Acesso em: 1 nov. 2014.

Em fevereiro de 2005, o Canal+, emissora de TV a cabo francesa, dedicou um dia

inteiro de sua programação ao aniversário de dois anos do movimento. O anúncio

publicitário de divulgação, veiculado no jornal Libération, também traz a saia como figura

principal (figura 2b). O texto verbal no canto superior direito remete aos enunciados

publicitários: “Minissaia 24 €. 100% algodão, forro em poliamida. Riscos relacionados à

compra deste produto: insultos, cusparadas, agressões físicas”.

Sohane Benziane foi morta no dia 4 de outubro de 2002, em Vitry-sur Seine, por afrontar as normas de um 57

chefe de gangue local, de 19 anos. O site do Ministério francês que se ocupa dos direitos das mulheres publicou em 2 de outubro de 2012 um artigo para lembrar os 10 anos da morte da jovem. Disponível em: http://femmes.gouv.fr/il-y-a-10-ans-sohane/. Acesso em: 3 nov. 2014.

Em português, “Nem putas, nem submissas”. O site do movimento: http://www.npns.fr/. Acesso em: 14 jun. 58

2011.

BARD, 2010a, p. 71.59

Page 44: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

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A advertência dos riscos faz referência ao texto obrigatório de produtos considerados

perigosos à saúde, como cigarro e bebidas alcoólicas. Pelo que se pode ver do corpo da

modelo e da forma como a saia se ajusta a ele, a moça está com a perna direita posicionada

à frente, dobrada, provavelmente apoiada na ponta do pé ou em um suporte mais alto que o

chão. Tal postura acentua a abertura e o efeito de acesso e vulnerabilidade deste tipo de

roupa. Esta situação não parece intimidá-la, já que sua mão direita está na cintura,

sugerindo que sua postura é intencional e até mesmo desafiadora, se considerarmos a

articulação da imagem com a advertência do texto verbal. Nota-se, também, que exceto pela

cor cinza, a expressão plástica da saia traz muitas figuras integrantes do tema da

feminilidade: o plissado; o ondulado da bainha, formando um babado; a leveza do tecido,

que parece prestes a levantar com qualquer deslocamento de ar mais forte; a forma

levemente ampla, e não ajustada. Este tipo de saia reitera aquela do logo do Ni pute si

soumise, que além de rosa, é também curta, mais evasé, de superfície ondulada.

Os episódios que deram origem às manifestações, ou ao menos aqueles que tiveram

maior visibilidade, aconteceram com mais frequência nos subúrbios parisienses habitados

por imigrantes de religião islâmica. Por conta disso, o movimento foi acusado de ter um viés

preconceituoso e ter sido usado politicamente pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy na sua

cruzada contra o uso público do véu islâmico . No entanto, Bard vai mostrar que as 60

constrições sociais que dificultam o uso da saia pelas mulheres jovens ultrapassa muito o

perímetro dos bairros pobres e densamente povoados de imigrantes. Na verdade, estas

constrições estão presentes em todos os meios e em todo território nacional.

Em março de 2006, alunos e professores de um colégio particular agrícola da região

de Rennes, na Bretanha, noroeste da França, instituíram o “dia da saia e do respeito”, para

discutir sobre representações da sexualidade, relação homem x mulher, erotização na

publicidade. Eles lembram que as alunas sempre vão para a aula de calça, ainda que fora

da escola algumas adorem usar saias. “A saia é colocada em evidência como um novo tabu,

e a calça como um meio de dissimular a feminilidade (estamos falando em dissimular a

masculinidade?). A saia significaria: ‘assumo meu corpo e minha feminilidade’” . A ação tem 61

boa repercussão e dá origem à Printemps de la jupe et du respect (“Primavera da saia e 62

do respeito” – figura 3), que acontece até hoje em diversas escolas e universidades

francesas. O público é formado por adolescentes e jovens de nacionalidade, etnia, religião e

classe socioeconômica bastante diversas daquelas que caracterizam os imigrantes oriundos

da África e Oriente Médio que habitam os subúrbios de Paris.

BARD, 2010a, p. 73.60

BARD, 2010a, p. 94.61

Site da ação: www.printempsdelajupe.com. Acesso em: 2 nov. 2014.62

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Figura 3 – identidade visual da ação Printemps de la jupe et du respect dos anos de 2007 a 2013

Fonte: imagens obtidas no site do evento. Vemos que, da edição de 2010 em diante, a saia é substituída pelo vestido, mas permanece no nome da iniciativa. Disponível em: <http://www.printempsdelajupe.com/

archives.php>. Acesso em: 3 nov. 2011.

Na primavera europeia de 2014, em Nantes, no oeste da França, outro protesto contra

o sexismo levou meninos a usar saia para ir à escola. A iniciativa se chamou Ce que soulève

la jupe, em alusão ao livro de Bard que chamou atenção para o atual aspecto discriminatório

do uso da saia . 63

Sem saber do Printemps de la jupe et du respect, o diretor Jean-Paul Lilienfeld produz

um filme em que a saia também é o tema. La journée de la jupe (em português, “O dia da

saia” – figura 4), estrelado por Isabelle Adjani, foi ao ar na França pelo canal Arte em 64

março de 2009, após enfrentar bastante rejeição por tratar de um tema considerado muito

sensível.

«Ce que soulève la jupe»: à Nantes, la polémique laisse la communauté éducative perplexe. Le Monde, 15 63

mai. 2014. Disponível em: <http://www.lemonde.fr/societe/article/2014/05/15/ce-que-souleve-la-juge-a-nantes-la-polemique-laisse-la-communaute-educative-perplexe_4419338_3224.html>. Acesso em: 9 nov. 2014.

Rede de televisão franco-germânica com programação especializada em arte e cultura.64

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Page 46: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

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Figura 4 – cartaz do filme La journée de la jupe

Fonte: imagem obtida por meio de download no portal de cinema AlloCiné. Disponível em: <http://www.allocine.fr/film/fichefilm_gen_cfilm=142311.html>. Acesso em: 3 nov. 2014.

O filme se passa em uma escola no subúrbio de Paris. Adjani interpreta Sonia

Bergerac, professora de francês que se recusa a aceitar o comportamento desrespeitoso e

violento dos alunos e, maior de seus pecados, como se vê pela opinião que têm dela o

diretor e alguns colegas, insiste em ir trabalhar de saia. No desenrolar da história, Sonia

toma a arma que um dos alunos costuma portar e acaba por sequestrar a turma. Confinada

com eles em uma sala, fica sabendo de casos de intimidação, assédio e violência sexual.

Uma de suas reivindicações para soltar os adolescentes é política: ela pede que o governo

institua o “dia da saia”, um dia por ano em que as alunas poderão ir de saia à escola sem

medo, “um dia em que o estado afirma que se pode vestir uma saia e não ser puta” [grifo

nosso]. O pedido é ridicularizado pela ministra da Educação (que veste calça). A professora

acaba morrendo na operação de resgate, mas o filme termina sugerindo que sua

reivindicação teria surtido algum efeito: alunos e alunas comparecem ao seu enterro, e elas

usam saia.

Por ser ambientado na periferia de Paris – região que apresenta certas características

populacionais que mostramos acima –, e ter muitos islâmicos como personagens – inclusive

a professora –, o filme também foi acusado de um viés preconceituoso. No entanto, mostra

que as constrições para o uso da saia não atingem apenas as adolescentes. Para Bard, a

adoção da saia como símbolo de movimentos contra a violência sexual oriundos de

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diferentes meios franceses, mostra que a questão não é específica das populações de

imigrantes ou da periferia. Assim, apesar de o filme sublinhar uma faceta da realidade dos

colégios destas regiões, “[…] pudemos constatar, com a experiência bretã do Dia da Saia,

que o recurso à calça protetora concerne, no início do século XXI, a todas as juventudes:

rurais, urbanas, católicas, muçulmanas, brancas, negras…” . 65

Talvez possamos entender também que não é restrito à França ou a outros países

com as mesmas tensões sociais e políticas ligadas à imigração. Como já apontamos no

capítulo 1, ao falar da relação entre o uso da saia e atos de violência, Bard cita um exemplo

brasileiro, o da agressão à universitária Geisy Arruda. Há episódios em outros locais,

portanto, que reiteram a situação francesa.

2.5 A saia no Brasil e alhures: discursos e práticas de intolerância e de

protesto

A saia começou a se delinear como objeto de pesquisa após uma observação banal

sobre o menor uso desta peça nas ruas de Curitiba . Na época, fevereiro de 2011, 66

publicamos uma crônica abordando possíveis motivos para esta situação, que foi 67

comentada por algumas leitoras. Os comentários revelam que os modos de uso da saia são

destinados por fatores similares àqueles apontados por Bard, ainda que o contexto cultural e

geográfico seja diverso. Uma leitora diz que evita usar esta roupa por conta dos “velhos

tarados” que “continuam te comendo com olhos”, mesmo que a saia vá até o pé; deixa para

usar saia quando está com o namorado, que terá que se incomodar com os olhares . Outra 68

também restringe o uso da saia aos fins de semana, quando sai com o namorado e de

BARD, 2010a, p. 104. Tradução nossa para: “Mais nous avons pu constater, avec l’expérience bretonne de la 65

Journée de la jupe, que le recours au pantalon protecteur concerne, au début du XXIe siècle, toutes les jeunesses: rurale, urbaine, catholique, musulmane, blanche, noire…”.

Pelo jeito, não só em Curitiba. Um japonês que mora há alguns anos no Brasil, especificamente em Porto 66

Alegre, também comenta em seu blog o menor uso da saia pelas brasileiras, em comparação às japonesas. Para ele, além da maior uniformização da cultura japonesa (escola e locais de trabalho), a mulher oriental, por ter menos curvas, usa a saia para expressar sua feminilidade. Ele diz que as mulheres brasileiras deveriam usar mais esta peça, mas não para conforto delas, e sim para “atrair mais homens”, já que eles gostam mais de mulheres de saia. Post “Porque as mulheres brasileiras não usam saias no dia a dia!?” Japonês em Porto Alegre, 30 set. 2011. Disponível em: http://traducao-japones.blogspot.com.br/2011/09/porque-as-mulheres-brasileiras-nao-usam.html. Acesso em: 4 nov. 2014.

BAGGIO, A. T. Por que as curitibanas não usam saia? Digestivo Cultural, 22 fev. 2011. Disponível em: <http://67

www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=3267&titulo=Por_que_as_curitibanas_nao_usam_saia?>. Acesso em: 16 mai. 2011.

Texto integral do comentário: “Eu sou curitibana e adoro saias, mas evito usá-las por um simples motivo: os 68

velhos tarados na rua. Por mais que sua saia vá até o pé, eles continuam te comendo com os olhos e te chamando de princesa... Então, evito. Uso mais quando estou com meu namorado, aí é ele quem se incomoda com olhares indiscretos, e não eu!”.

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carro; durante a semana, de ônibus, prefere calça . Uma terceira, vinda do nordeste, diz 69

que diminuiu o uso da saia quando chegou à capital paranaense por sentir hostilidade no

olhar das mulheres . Temos, portanto, a reiteração da questão da violência do olhar – 70

perpetrada por homens ou por mulheres –, a constrição do uso pelas condições de 71

vulnerabilidade nas ruas e no transporte público das grandes cidades e a relação entre a

saia e o papel temático da namorada (feminina e protegida pelo namorado).

O olhar e as “cantadas” de rua não têm nada de elogiosos e nem de inofensivos, como

alguns supõem. São manifestações de poder, pois o objetivo não é fazer o outro se sentir

bem. De fato, Eric Landowski trata da violência do olhar como uma das confrontações de

posições modais do Sujeito que vê e do Sujeito que é visto. Algumas destas confrontações

permitem

analisar situações em que o exercício do olhar, o próprio fato de “ver” ou”ser visto”, aparecerá como a ocasião ou o motivo de verdadeiros conflitos entre os sujeitos […] são situações críticas de “atentado à vida privada” e de “violação da intimidade”. 72

Ainda que a violência não seja relacionada exclusivamente a um certo tipo de

vestuário , os episódios e relatos franceses e brasileiros mostram que parece haver maior 73

risco quando a mulher usa peças “abertas”. Em uma reportagem sobre assédio publicada

em 2008 na revista TPM, dois depoimentos mostram que o medo é forte destinador da

decisão de não usar saia. Uma estudante paulistana, moradora de região nobre da cidade,

justifica: “tento não colocar saia nem quando está calor porque sei que os caras vão olhar de

um jeito que me agride ou vão falar baixarias nas ruas”. Uma jovem jornalista carioca diz

não usar mais saias quando sai à noite, para os bares e festas do bairro da Lapa, porque

Texto integral do comentário: “Moro em Curitiba e amo saias/vestidos, mas só uso nos fins de semana! E é 69

bem isso, durante a semana: saio de casa às 7h e só volto para casa lá pelas 22h. Ando de ônibus, cruzo a cidade umas 3 vezes... você acaba perdendo até o charme! Mas, no fim de semana, para pegar um cinema com o namorado (de carro!), aí, sim, de saia e vestidinho (e salto alto)!”

Texto integral do comentário: “Como boa nordestina que sou, cheguei em Curitiba de posse dos meus 70

shortinhos, saias, vestidinhos e logo senti a hostilidade do povo quando usava. Era incrível, os rapazes obviamente não reclamavam, mas as caras que as meninas faziam! Nossa, era constrangedor. Usar essas roupas aqui é um reflexo de personalidade forte! Como tenho, uso, com moderação, mas uso! Excelente texto!”

Sobre o assédio de rua como prática de um fazer o outro sentir-se mal, operada também por mulheres, ver 71

relato de nossa experiência nas ruas de duas cidades italianas, publicado em junho de 2013: “De mulher pra mulher: quando o assédio é feito por elas”. Disponível em: http://adrianabaggio.blogspot.com.br/2013/06/de-mulher-pra-mulher-quando-o-assedio-e.html. Acesso em: 4 nov. 2014.

LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: 72

Educ/Pontes, 1992, p. 95-96.

Em outubro de 2014 circulou pela internet um vídeo mostrando a quantidade de “cantadas” que uma mulher 73

recebe ao andar pelas ruas de Nova York. Vestida de calça e camiseta, a atriz andou por mais de 10 horas pela cidade e recebeu mais de 100 manifestações verbais de assédio, fora os olhares e assobios. Depois da repercussão gerada pelo material, algumas pessoas que comentaram o vídeo ameaçaram a atriz de estupro. Uma das diversas reportagens sobre o assunto pode ser vista no site da BBC Brasil: “Vídeo que mostra assédio a mulher nas ruas é visto mais de 14 milhões de vezes”, 30 out. 2014. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/10/141028_video_cantadas_rb. Acesso em: 4 nov. 2014.

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cansou de ser atacada . No documentário Femme de la rue, de 2012, sobre o assédio 74

sofrido por mulheres nas ruas de Bruxelas, alguns depoimentos apontam da mesma forma o

uso da calça ao invés de saia como forma de se evitar a violência . 75

Há um discurso recorrente de culpabilização da vítima pela violência sofrida, e de não-

responsabilização do agressor (ou de outros fatores, como a cultura ou a impunidade). Na

lógica deste discurso, o lugar por onde a mulher anda, sua decisão de estar sozinha e,

especialmente, a roupa que usa, motivariam ou justificariam a violência sofrida. Tal discurso

não parte apenas do criminoso, mas também da sociedade e do Estado, como é o caso do

episódio que originou a manifestação chamada SlutWalk.

A SlutWalk surgiu no Canadá, em janeiro de 2011, em protesto à fala de um policial

durante uma palestra a estudantes da Universidade de Toronto. Ele teria dito que, quando a

mulher não se veste como “vadia” (“slut”), os riscos de sofrer um estupro diminuem. À

manifestação canadense seguiram-se outras em mais de 200 cidades no mundo todo,

inclusive no Brasil, onde recebeu o nome de Marcha das Vadias . Apesar de algumas 76

pequenas diferenças de local para local, o ponto comum das Marchas das Vadias é

protestar contra o assédio e a violência dirigidos às mulheres por conta da roupa que

estiverem usando ou do seu comportamento sexual (se faz muito ou pouco sexo, com

quem, por prazer ou por trabalho), e contra a naturalização do pensamento de que a vítima

é culpada pela violência sofrida, conforme sugere o conselho do policial canadense. No

mesmo ano de de 2011, em junho, um outro discurso, também proferido por um policial,

desta vez na cidade de Nova York, motivou o Short Skirt Celebration Ride . A passeata foi 77

um protesto contra a advertência que uma mulher recebeu do policial por estar andando de

bicicleta de saia curta, “distraindo os motoristas” . 78

Algumas vezes a própria legislação acaba incentivando ou criando uma sensação de

permissividade sobre a violência praticada pelo olhar ou pela invasão da privacidade. Um

LEMOS, N.; TAMBELLINI, K. E aí, gostosa? TPM, São Paulo, ano 7, n. 74, mar. 2008, p. 31.74

MELRO, Ana. “Femme de la rue”, documentário sobre piropos gera polémica. Público, Lisboa, 19 ago. 2012. 75

Disponível em: <http://p3.publico.pt/actualidade/4135/femme-de-la-rue-documentario-sobre-piropos-gera-polemica>. Acesso em: 4 nov. 2014.

A escolha do termo “vadia” causou rejeição em diversos segmentos da sociedade e até mesmo entre 76

integrantes dos movimentos feministas. A justificativa, além da intenção de dar visibilidade ao tema, é mostrar o poder da linguagem. O tipo de ataque sexual a que a Marcha se refere não é restrito à violência física, como o estupro. Como já pontuamos, “cantadas” e xingamentos sofridos por mulheres na rua também são formas de violência, o que coloca a linguagem como parte importante deste processo, seja pela maneira ofensiva e preconceituosa de se referir às mulheres e de justificar a violência física, seja pela linguagem como arma de ataque por si própria. Assim, a re-apropriação do termo por parte de quem é agredido por ele tem por objetivo desnaturalizar tanto a prática de classificação das mulheres por seu comportamento sexual quanto a ideia de que é compreensível que mulheres “vadias” sofram violência.

Algo como “Passeata em celebração à saia curta”.77

COLVILLE-ANDERSEN, Mikael. Short Skirts on Bicycles Celebration in New York City. Cycle Chic, 78

Copenhagen, 11 jun. 2011. Disponível em: <http:// www.copenhagencyclechic.com/2011/06/short-skirts-on-bicycles-protest-in-new.html>. Acesso em: 15 jun. 2011.

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exemplo é a tardia criminalização do upskirting – ato de fotografar por baixo da saia em

espaços públicos –, prática que tem sido recorrente nos Estados Unidos.

Figura 5 – fotografia que flagra o upskirting

Fonte: fotografia publicada do site Photography is not a crime, em 5 de março de 2014, em reportagem intitulada “Massachusetts Supreme Court Rules it’s Legal to Record up Women’s Skirts in Public” . Dois dias depois seria 79

promulgada a lei que criminaliza o upskirting. A fotografia é de 2006 e foi retirada de um perfil público do site de compartilhamento de fotos Flickr.

Apenas em março de 2014 a lei do estado de Massachusetts passou a considerar o

upskirting como crime. Pessoas denunciadas anteriormente não haviam sido condenadas

por uma questão de interpretação do direito à privacidade. O primeiro homem preso após a

promulgação da lei usa, em sua defesa, o argumento de não saber que o upskirting havia se

tornado ilegal . Ou seja, é a falta de legislação adequada e a certeza da impunidade – que 80

podem ser vistas como sanções positivas ou não-negativas por parte do destinador Estado

em relação à invasão de privacidade –, que acaba incentivando ou motivando tais práticas.

O upskirting acontece quando a mulher está com uma roupa aberta, saia ou vestido, e

pode ser feito por baixo de outras peças, como blusas. Mas o exemplo usado por um site de

fotografia que condena a impunidade desta prática é de uma mulher que aparentemente

veste saia (figura 5), assim como é a saia que acaba se tornando figura emblemática dos

enunciados de protesto contra os diversos tipos de assédio e violência.

Disponível em: <http://photographyisnotacrime.com/2014/03/massachusetts-supreme-court-rules-upskirting-79

legal/>. Acesso em: 5 nov. 2014.

Conforme reportagem no site da emissora de TV norte-americana CNN: CROOK III, Lawrence. Boston transit 80

police make first arrest under new law banning “upskirting”. CNN, 26 jun. 2014. Disponível em: <edition.cnn.com/2014/06/25/us/upskirting-arrest-boston/>. Acesso em: 5 nov. 2014.

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Em passeatas como a Marcha das Vadias, para ressignificar o termo (cf. nota 76), a

proposta é que as mulheres vistam roupas consideradas provocantes. Muitas interpretam a

proposta por meio do uso da saia, especialmente aquelas com elementos plásticos

associados à feminilidade e à sexualidade – saias curtas, mais “rodadas”, com babados –

conforme observamos na edição da Marcha realizada em julho de 2011 em Curitiba . 81

A saia, como figura de conteúdo, também está presente nos enunciados de protesto

veiculados em sites de redes sociais, como o Facebook. Os enunciados foram coletados por

meio de nossa própria atuação como usuários desta rede , na medida em que postagens 82

de outros usuários com os quais estamos conectados apareciam em nossa timeline. A

timeline, ou página de cada perfil na rede, torna-se uma espécie de mural de notícias,

formado por conteúdos postados tanto pelo autor como pelos seus contatos. Para Fábio

Malini e Henrique Antoun, que tratam do ciberativismo e mobilização nas redes sociais,

[…] cada perfil é uma comunidade de autores, a informação criada termina por traduzir verdadeiras ‘quantidades sociais’, exprimindo uma amostra das crenças e dos desejos da sociedade em torno de algum tema, alguma hashtag ou alguma postagem. 83

É neste sentido que entendemos a pertinência da reiteração da figura da saia nos

discursos de protesto. Vejamos a presença da saia nos textos verbais e visuais de alguns

destes enunciados publicados no Facebook: “Meu corpo é uma festa para a qual você não

foi convidado, não importa o que minha saia ‘diga’” (figura 6).

BAGGIO, A. T. Pictures of Curitiba Slut Walk (Marcha das Vadias de Curitiba): an analysis of the re-signification 81

of the term "vadia". In: Congress of the International Association of Visual Semiotics, 10., 2012, Buenos Aires.

As imagens que trazemos aqui foram retiradas de perfis que classificaram a postagem como “pública”, ou seja, 82

disponível para ser visualizada por qualquer pessoa na internet, por isso indicamos o link da postagem original. No entanto, nem sempre temos a informação sobre a autoria das ilustrações, fotografias, cartazes e layouts.

MALINI, F.; ANTOUN, H. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: 83

Sulina, 2013, p. 214.

Figura 6 – fotografia de cartaz em manifestação publicada pelo perfil ArTIVISM

Fonte: download de imagem publicada em 12 de janeiro de 2013, sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=194687350675153&set=a.

133181980159024.38202.133176126826276&type=1&theater>. Acesso em: 6 nov. 2014.

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“Minha saia curta e tudo que está embaixo dela é meu, meu, meu […]” (figura 7).

“Disseram que minha/Saia era de vagabunda/Sentiram no direito de passar/A mão na

minha bunda/Mas que coisa imunda!/Sou livre, sou mulher/Vou lutar de segunda/A segunda”

(figura 8).

“Suas roupas não são um convite! Ninguém deveria cruzar seus limites! Não há

desculpa para o abuso! Uma bela ilustração de Malika Favre. Uma ocasião para lembrar que

aquilo que se esconde ‘embaixo das saias das moças’ é assunto delas e que ninguém tem o

direito de lhes desrespeitar” (figura 9 – tradução nossa); “Sua saia tá muito curta./Sua língua

que tá muito grande” (figura 10).

Uma das imagens mais emblemáticas deste conjunto foi produzida pela estudante

canadense Rosea Posey, que mostra a parte de trás das pernas de uma mulher usando

saia. Uma das pernas está demarcada com os possíveis comprimentos de saia que se pode

usar e os julgamentos que serão atribuídos. O comprimento mais longo, já perto do

tornozelo, é chamado de “matronal”; em seguida vêm “pudica” e “antiquada”; na altura do

joelho é “adequada”; daí para cima os comprimentos levam a pessoa que usa a saia a ser

julgada como “sedutora”, “atrevida”, “provocante”, “está pedindo”, “vadia” e, no comprimento

mais curto, “prostituta” (figura 11 – tradução nossa).

Figura 11 – fotografia Judgements Fonte: download de imagem publicada em 5 de janeiro de 2013 no tumblr (espécie de blog) da autora da

Figura 8 – arte publicada pelo perfil Poesia Ativista

Fonte: download de imagem publicada em 9 de maio de 2013. A autora da arte e do texto, conforme indicado na imagem, é Juliane KR. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?

fbid=555959524448670&set=oa.480210882047951&type=1&ref=nf>. Acesso em: 6 nov. 2014.

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fotografia, Rosea Posey. A imagem foi amplamente compartilhada em diversas redes sociais. Disponível em: <http://roseaposey.tumblr.com/post/39795409283/judgments>. Acesso em: 6 nov. 2014.

As imagens que apresentamos em seguida trazem a mesma temática de protesto

contra a violência relacionada ao uso de determinado do tipo de roupa. Mas, dessa vez,

foram produzidas e veiculadas em reação aos resultados de uma pesquisa nacional

realizada pelo Ipea – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, sobre “Tolerância social

à violência contra as mulheres” . 84

A pesquisa foi divulgada no dia 28 de março de 2014. Um dos dados mais alarmantes

indicava que 65% dos brasileiros e brasileiras concordavam, ao todo ou em parte, que uma

mulher usando roupas curtas merecia ser atacada. No dia 4 de abril, o Ipea divulgou uma

errata, dizendo que uma troca de gráficos entre duas questões resultou em interpretação

incorreta dos dados. A parcela da população brasileira que concordava com o ataque a

mulheres com pouca roupa não era de 65%, e sim de 26% (um número menos assustador,

mas que ainda assim não justifica o uso da expressão “só 26%”, adotada por certos veículos

da imprensa).

Muitas das imagens e postagens produzidas em protesto à situação indicada pelos

dados da pesquisa vinha acompanhada da hashtag #NãoMereçoSerEstuprada. E apesar de

a pesquisa não se referir especificamente à saia, e sim ao procedimento mais generalizado

de culpabilização da vítima pela roupa que usa, é esta peça que ilustra a “roupa curta”

destinadora da violência, como figura verbal e/ou visual de enunciados publicados no

Facebook (figuras 12, 13, 14 e 15).

INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS. SIPS – Sistema de Indicadores de Percepção 84

Social: Tolerância social à violência contra as mulheres. Relatório de pesquisa. Brasília, 2014. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2014.

Figura 12 – imagem publicada no perfil Não aguento quando

Fonte: download de imagem publicada em 28 de março de 2014, sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/NaoAguentoQuando/

photos/a.210114225788193.56003.207427282723554/461264550673158/?type=1&theater>. Acesso em: 7 nov. 2014.

Fonte: download de imagem publicada em 28 de março de 2014, sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=704666709598886&set=a.

321629677902593.80868.162474053818157&type=1&theater>. Acesso em: 7 nov. 2014.

Figura 13 – imagem publicada no perfil Levante Popular da Juventude

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Figura 14 – imagem publicada no perfil Valesca Popozuda

Fonte: download de imagem publicada em 30 de março de 2014. No texto que acompanha a imagem, a postagem destaca outro dado da pesquisa do Ipea, que diz que 58,5% dos entrevistados concordam com a

frase: "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Sem informação de autoria. Disponível em: <https://www.facebook.com/150627568320763/photos/a.

197068783676641.65636.150627568320763/709942219055959/?type=1&theater>. Acesso em: 7 nov. 2014.

Figura 15 – imagem publicada no perfil Camila Neves

Fonte: download de imagem publicada em 1º de abril de 2014, sem informação de autoria. O texto verbal dos cartazes forma o seguinte enunciado: “Nosso uniforme é uma das maiores fantasias sexuais que existem. Suas

cantadas na rua não são elogios e nem aumentam a nossa auto-estima. Você sabe qual é o peso de vesti-lo todo dia? #NãoMrecemosSerEstupradas”. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?

fbid=653136341389563&set=a.625671107469420.1073741828.100000796091104&type=1&theater>. Acesso em: 7 nov. 2014.

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O uso da saia também tem sido reivindicado por alguns homens, ainda que muitas

vezes a adoção da peça gere atos de repúdio e violência, especialmente pela associação

com a homossexualidade. Da mesma forma que a violência contra a mulher, aquela

praticada contra os homossexuais também não está exclusivamente associada à saia. Mas

percebe-se que, ao vestir esta peça, seja hetero ou homossexual, o homem pode ser alvo

de ataques que não receberia caso cumprisse o código vestimentar socialmente atribuído ao

seu gênero. E nos protestos contra a proibição ou a violência, a saia também é símbolo.

Alguns episódios de maior repercussão aconteceram em instituições de ensino. Em

maio de 2013, um aluno do campus da Universidade de São Paulo na Zona Leste da capital

paulista foi ofendido pela internet por ter ido assistir aula de saia; em reação, estudantes de

outros cinco campi da universidade promoveram um protesto em que os homens vestiriam

saia, e as mulheres, roupas masculinas . Em maio do mesmo ano, dois alunos do Colégio 85

Bandeirantes, também em São Paulo, foram censurados pela instituição por terem usado

saia para ir à aula (haveria uma festa junina no intervalo). Moços e moças usaram saia

como protesto na semana seguinte ao episódio . E em setembro de 2014, alunos do 86

colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, também vestiram saia como protesto ao fato de a

instituição ter proibido uma aluna transgênero de ir à aula usando esta peça . 87

Homens também têm usado a saia para criticar a proibição do uso de bermudas no

trabalho em dias de muito calor. Não é uma reivindicação pelo direito ao uso da peça

feminina, e sim uma forma de questionar as normas vestimentares das organizações por

meio de uma quebra de um código de vestuário muito mais rígido, que é aquele baseado na

diferenciação de gênero. Este código é naturalizado de tal forma que algumas organizações

colocam a saia entre as peças-padrão de seus uniformes, mas sem especificar que só pode

ser usada por mulheres. A mesma rigidez na aplicação do código que restringe o uso da

bermuda faz com que não se possa proibir o uso da saia pelos empregados homens. Afinal,

eles estão dentro do regulamento.

A saia foi usada neste tipo de protesto pelos condutores de trem de Estocolmo, em

“Após ofensas, alunos da USP farão protesto com homens vestindo saia”. G1, 13 mai. 2013. Disponível em: 85

<http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/05/apos-ofensas-alunos-da-usp-farao-protesto-com-homens-vestindo-saia.html>. Acesso em: 7 nov. 2014.

“Como protesto, alunos fazem ‘saiaço’ no colégio Bandeirantes”. Folha de S. Paulo, 11 jun. 2013. Disponível 86

em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/113482-como-protesto-alunos-fazem-saiaco-no-colegio-bandeirantes.shtml>. Acesso em: 7 nov. 2014.

“Alunos do Colégio Pedro II fazem 'saiaço' em apoio a estudante transgênero proibida de usar saia na escola 87

do Rio”. Brasil Post, 10 set. 2014. Disponível em: <http://www.brasilpost.com.br/2014/09/10/alunos-saia-rio_n_5800304.html>. Acesso em: 7 nov. 2014.

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junho de 2013 (que, no fim das contas, experimentaram uma diminuição na liberdade de 88

movimentos provocada pelo uso desta peça, algo com o que as mulheres estão habituadas

a se defrontar em muitas situações). Outro episódio ocorreu no Brasil, em janeiro de 2014,

em um dos verões mais quentes dos últimos tempos. Um ilustrador de 41 anos, que trabalha

no edifício de um órgão público localizado no centro da capital carioca, foi trabalhar de saia,

já que homens são proibidos de entrar ali usando bermuda. O homem postou no Facebook

uma foto sua usando a peça e em poucas horas o fato alcançou enorme repercussão . 89

A visibilidade acabou estimulando o debate tanto sobre os códigos vestimentares dos

locais de trabalho quanto aqueles baseados na diferenciação de gênero. Aproveitando a

repercussão, em meados de fevereiro – também um mês excepcionalmente quente em

Curitiba –, propusemos aos alunos e professores homens do centro universitário onde

atuamos como docentes que fossem para a faculdade de saia (figura 16). Não há no

regulamento da instituição a proibição ao uso da bermuda; a intenção era promover a

discussão sobre o preconceito de gênero e orientação sexual. Ao falar sobre a experiência

de vestir uma roupa aberta, muitos relataram a paradoxal sensação de liberdade e

vulnerabilidade inerente ao uso da saia: o prazer estésico do contato da pele com o ar e

com o tecido, simultaneamente à insegurança de não ter nada “fechando” o meio das

pernas – e todas as constrições corporais advindas.

Figura 16 – notícia veiculada no jornal Gazeta do Povo sobre o uso de saia por alunos e professores de uma instituição de ensino superior de Curitiba

“BONNE CONDUITE – Privés de shorts, des conducteurs suédois viennent travailler en jupe”. Le Monde, 9 88

jun. 2013. Disponível em: <http://bigbrowser.blog.lemonde.fr/2013/06/09/bonne-conduite-prives-de-shorts-des-conducteurs-suedois-viennent-travailler-en-jupe/>. Acesso em: 7 nov. 2014.

“Proibido de trabalhar de bermuda, homem vai de saia”. O Globo, 4 fev. 2014. Disponível em: <http://89

o g l o b o . g l o b o . c o m / e c o n o m i a / e m p r e g o / p r o i b i d o - d e - t r a b a l h a r - d e - b e r m u d a - h o m e m - v a i - d e -saia-11500233#ixzz3IP4kPlYU>. Acesso em: 7 nov. 2014.

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Fonte: imagem digitalizada da edição impressa do jornal Gazeta do Povo do dia 14 de fevereiro de 2014. Se, para os homens, usar saia no ambiente de trabalho é uma forma de protesto

contra as regras que os impedem de vestir roupas mais adequadas ao calor, para as

mulheres é uma opção de vestuário que, aparentemente, não apresenta nenhum risco. Na

verdade, segundo um estudo britânico realizado em 2011, mulheres usando saia no trabalho

têm uma imagem mais confiável e podem receber salários maiores . O motivo seria a 90

combinação entre profissionalismo e atratividade que as mulheres profissionais devem ter. A

interpretação de uma das coordenadoras do estudo é que os resultados contradizem a

noção de que mulheres devem se vestir como homens para ter sucesso no trabalho.

A associação entre a saia e a “atratividade” feminina parece reiterar outros discursos

que sexualizam esta peça de roupa. Sendo assim, de que tipo de saia estamos falando?

Será que o aparente estímulo ao uso da saia no ambiente profissional contradiz as

restrições ao uso da saia em outros espaços?

2.6 A saia no trabalho

Tratamos até agora das situações que poderiam estar levando as mulheres a usar

menos saia. De fato, a saia também não está muito presente em um recente exemplar do

discurso da moda: o guia de estilo A parisiense, com conselhos da ex-modelo Inès de La

Fressange . Nas ilustrações do livro, as figuras usando calça são maioria; das dez ideias 91

para “descombinar” o visual à moda parisiense, três se referem ao uso da calça, três ao

vestido e apenas uma à saia, e especificamente à saia-lápis; entre as dicas para conseguir

um visual “effortless style” (estilo sem esforço), nenhuma menciona a saia. A peça também

não está presente entre os sete clássicos apontados pela autora: blazer, capa de chuva,

suéter azul-marinho, camiseta sem manga, pretinho básico, jeans e jaqueta de couro. Em

todas as fotos que ilustram estes clássicos, exceto aquela referente ao vestido, a roupa na

parte de baixo do corpo é a calça. Quanto aos melhores trajes para cada ocasião – jantar na

cidade, noite romântica, festa black-tie, fim de semana no campo, coquetel –, a saia aparece

apenas como dica do que não usar: uma minissaia supermíni no encontro romântico. Por

fim, um conselho: “Nunca viaje de saia nem de vestido!”. De fato, se observarmos as

mulheres que embarcam em ônibus e aviões, será raro encontrar alguma usando estas

peças. Paradoxalmente, esta é a roupa mais confortável – e até a mais saudável – para

quem vai passar horas sentada. Parece que o destinador desta prescrição é, assim como

em outras, o risco representado pela vulnerabilidade da vestimenta aberta.

“Mulheres que usam saia estão mais propensas a ganhar salário maior, aponta estudo”. UOL, São Paulo, 19 90

set. 2011. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2011/09/19/mulheres-que-usam-saia-estao-mais-propensas-a-ganhar-um-salario-maior-aponta-estudo.jhtm>. Acesso em: 7 nov. 2014.

LA FRESSANGE, I. de; GACHET, S. A parisiense: o guia de estilo de Inès de La Fressange (trad. Adalgisa 91

Campos da Silva). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.

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Um outro guia, desta vez brasileiro e relacionado à elegância no trabalho – A moda no

trabalho, de Inês de Castro –, não restringe o uso da saia, mas aponta uma certa 92

configuração desta peça de roupa que parece trazer elementos plásticos mais relacionados

ao paradigma do masculino. Apesar de as profissões e os ambientes de trabalho serem

muito diversos, e de haver graus diferentes de formalidade e de códigos de vestuário entre

eles, é o modo de se vestir no escritório o que mais recebe atenção quando se fala em

roupa para trabalhar. Nos anúncios que veremos no capítulo 4 e 5, a maioria das mulheres

profissionais é representada neste tipo de ambiente, exceto quando o anúncio pretende

mostrar um segmento específico de empresa – hospital, mineradora, concessionária de

rodovias – e a mulher ali presentificada não é um simulacro da consumidora do produto, e

sim um elemento metonímico da organização. Por exemplo, quando a empresa quer mostrar

que é socialmente responsável em termos de diversidade e igualdade de gênero.

Voltando ao guia de estilo no trabalho, o capítulo inicial trata das roupas mais

adequadas para o uso no escritório. A primeira dica da seção sobre saias e vestidos já traz

uma restrição geral à saia: “as calças são mais confortáveis para trabalhar, mas se você

adora saias, escolha os modelos retos, logo acima do joelho. Se for usar saltos, as meias

são parceiras indispensáveis” . O conforto, assim como nas viagens, parece estar mais 93

relacionado ao risco da vestimenta aberta do que à sensação de liberdade corporal. Já o

“modelo reto” sugere uma verticalidade que se opõe à horizontalidade das saias mais

amplas, que “abrem” a partir do quadril.

Outras restrições às saias e vestidos, neste item, podem ser resumidas nestes

conselhos: saias e vestidos curtos e vestidos esvoaçantes são proibidos; saias muito longas

são desconfortáveis; saias indianas não combinam com o visual bem-comportado e

executivo; saias justas são perigosas, mesmo na altura do joelho; vestidos podem

envelhecer, deixar muito sensual ou muito chique, exceto os chemisier – que, na verdade,

são longas camisas de botão, e camisa é originalmente uma peça do guarda-roupa

masculino.

Quanto às saias mais adequadas para uma entrevista de emprego, da mesma forma

como no item anterior, a primeira dica traz um proibição geral: “[saias] são permitidas desde

que obedeçam rigidamente a regra dos quatro dedos acima do joelho – no máximo. Isso se

você é alta e tem pernas bem torneadas” . Outras restrições vêm acompanhadas das 94

palavras “perigosas” (saias com fendas) e “arriscadas” (saias retas e afuniladas), e referem-

se ao potencial sexualizador da peça. Também inadequadas são as seguintes

CASTRO, I de. A moda no trabalho. São Paulo: Editora Panda, 2002.92

CASTRO, 2002, p. 16.93

CASTRo, 2002, p. 25.94

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configurações: modelos florais e fluidos demais sugerem “ar desatento, sonhador,

romântico”; modelos com pregas sugerem “ar colegial, quase infantil”.

De forma geral, mesmo nos discursos do cotidiano percebe-se que a mulher opta pela

saia como uma exceção na composição do seu vestuário profissional, e não como regra.

Usar este tipo de roupa ou o vestido é como “fazer cosplay de mulherzinha”, conforme

enunciado ilustrado na figura 17, o que, por oposição, coloca a calça como roupa mais

aceitável ou comum no trabalho. Ao usar noções como a de “fantasia” (cosplay é o ato de se

fantasiar de personagens de desenho animado) e de “mulherzinha”, inadvertidamente a

autora do comentário retoma a divisão no vestuário masculino e feminino do século XIX e a

concepção sobre a valoração de cada um dos gêneros figurativizada pela roupa – com a

mulher e seu traje sendo disfóricos.

Figura 17 – enunciado sobre saia e vestido como peças para se fantasiar de mulher

Fonte: impressão de tela de status do Facebook postado em 16 de outubro de 2014 e compartilhado em modo privado. A autora é uma jovem publicitária e trabalha em uma universidade pública.

2.7 Os diferentes tipos de saia e a expressão plástica do feminino

Apesar de todas as restrições ao uso da saia no trabalho, veremos que, no corpus de

nossa pesquisa (cf. capítulo 4), considerando os papéis sociais femininos identificados, a

saia é proporcionalmente mais frequente nos papéis profissionais, especialmente os

exercidos no escritório (ressalva-se que, de forma geral, a saia é minoria). Neste contexto,

os modelos têm corte mais reto (as profissionais do meio artístico, ao contrário, vestem

modelos mais amplos e ondulados), reiterando os conselhos de Inês de Castro (mas vão na

contramão deles em relação ao grau de ajustamento e de delineamento da silhueta). O corte

mais reto sugere a valorização de uma linha vertical, enquanto outros modelos acentuam a

horizontalidade.

De acordo com Kathia Castilho, podemos entender a verticalidade e a horizontalidade

como figuras topológicas nos enunciados do corpo e da roupa, que por sua vez recobrem os

temas da masculinidade e da feminilidade. A plástica da moda, ao considerar a articulação

entre roupa e corpo,

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induz um fazer-ver a sexualidade desses corpos. Nessa leitura, a

sexualidade seria um termo complexo, que se desmembra em duas categorias ou pólos extremos, o masculino e o feminino, que estabelecem entre si uma relação de contrariedade recíproca. 95

Como já vimos, a roupa sempre teve um papel importante na construção do parecer

de cada gênero. Ainda segundo a autora, a moda atua de maneira a manter os traços

distintivos de cada categoria. “No corpo feminino, ela [a moda] marca a presença constante

da linha horizontal […]; quanto ao masculino, “[…] parece-nos que a moda se ocupa em

recuperar a verticalidade” . Coqueline Courrèges, companheira e sócia do estilista André 96

Courrèges, que levou a minissaia para a alta costura francesa, tem bem esta noção da

horizontalidade como figura do feminino. Ela conta que, sobre o macacão colante que

costumava usar no final dos anos 1960, colocava uma faixa de tecido de modo a cobrir o

entremeio de pernas: “apenas uma faixa, mas importante, que dava quase o signo da

feminilidade” . E até mesmo na capa do livro de Bard (figura 18) as linhas horizontais são 97

predominantes: além daquelas que demarcam o corpo vestido da moça, como a barra da

saia, o elástico das meias, a parte do sapato sobre o peito dos pés, a forma da bolsa, temos

também as linhas horizontais na parede que serve de fundo para a fotografia. Já a alça da

CASTILHO, K. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009, 2. ed., p. 68.95

CASTILHO, 2009, p. 189.96

Entrevista de Coqueline Courrèges apresentada em LANG, B.; SCHRAML, T.; ELSTER, L. La minigonna: la 97

rivoluzione, gli stilisti, le icone (trad. Emanuela Damiani). Vercelli, Itália: Edizioni White Star, 2011, p. 97. Tradução nossa para: “[…] una striscia però importante, che dava quasi il segno della femminilità”.

Figura 7 – ilustração publicada pelo perfil Em Piro

Fonte: download de imagem publicada em 18 de janeiro de 2013. Não há indicação da autoria da arte, mas o texto que preenche as pernas da figura feminina é de Eve Ensler, autora da peça Os monólogos da vagina. O

texto pode ser lido na epígrafe deste trabalho. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10100143642456494&set=a.788664338514.2244009.33300569&type=1&theater>. Acesso em: 6 nov.

2014.

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bolsa forma um triângulo, que Coqueline Courrèges, na mesma entrevista mencionada

acima, reconhece como figura-símbolo da feminilidade expressa nas portas de banheiros.

Figura 18 – capa do livro Ce que soulève la jupe

Figura 9 – postagem do perfil SLUTWALK FRANCE 2011 - SEXISM IS A SOCIAL DISEASE

Fonte: impressão de tela de postagem publicada em 11 de dezembro de 2013. A autora da ilustração, conforme indicado na postagem, é Malika Favre. Disponível em: <https://www.facebook.com/

SLUTWALKFRANCE/posts/721686784515698:0>. Acesso em: 6 nov. 2014.

Figura 10 – ilustração publicada pelo perfil Mulheres nos Quadrinhos

Fonte: download de imagem publicada em 18 de janeiro de 2014. A autora do quadrinho é a cartunista mineira Bianca, que publica seus trabalhos na fan page intitulada Anna Bolena – A perturbada da corte. Neste

exemplo é interessante observar, conforme já mostramos antes, uma constrição ao uso da roupa pelas mulheres partindo de outra mulher. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?

fbid=663856440340962&set=a.408435809216361.92810.408425102550765&type=1&theater>. Acesso em: 6 nov. 2014.

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Fonte: imagem obtida por meio de digitalização da capa do livro.

Na composição do paradigma de cada gênero, além da verticalidade e da

horizontalidade, poderíamos acrescentar outros elementos. Na marcante diferenciação dos

trajes de homens e mulheres no século XIX – cujos efeitos se mantêm até hoje –, a

sobriedade da roupa masculina foi acompanhada pelos chamados “exageros” na roupa

feminina. Por sobriedade entende-se cores escuras e neutras, ausência de adornos, tecidos

planos e estruturados; os exageros, por sua vez, se materializavam em cores vivas,

estampas, babados, adornos de todos os tipos, tecidos moles e vaporosos. Havia, ainda,

uma grande diferença de silhueta: ajustada para os homens, ampla para as mulheres. Logo

após a Segunda Guerra Mundial, quando há um resgate da “feminilidade” e dos papéis

domésticos da mulher, a silhueta verticalizada e ajustada da roupa feminina das décadas

anteriores volta a ser ampla e horizontalizada.

Considerando estes elementos e retomando a oposição básica entre calça e saia

como figuras mais emblemáticas de cada tema, poderíamos entender a composição

genérica da masculinidade e da feminilidade, no que se refere à roupa, como uma

combinação de figuras de conteúdo (calça e saia) e de expressão (elementos plásticos),

conforme a figura 19.

Figura 19 – Composição figurativa dos temas da masculinidade e feminilidade

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Fonte: produção da autora.

Assim como a calça feminina se diferencia da masculina por certos elementos

plásticos, propomos que existem certas saias mais “masculinas”. Não no sentido de

passarem a ser usadas por homens (o empréstimo que a mulher fez do guarda-roupa

masculino não teve, ainda, o caminho inverso), mas como saias que parecem ser

consideradas mais adequadas em situações onde as características do masculino são

valorizadas, como o ambiente do trabalho. Podemos perceber isso ao comparar os

discursos sobre as roupas mais adequadas para mulheres profissionais que vimos antes e

os modelos mais comuns de saia (figura 20).

De maneira geral, a saia, em oposição à calça, exponencia a horizontalidade, como

observa Castilho . Alguns modelos o fazem de maneira mais acentuada, especialmente as 98

de corte mais amplo e formas mais volumosas, como a evasê ou A, enviesada, balonê,

minissaia, e godê; outras figuras plásticas do feminino, como as ondulações e a as dobras,

estão presentes nas saias plissada, enviesada, balonê, maxissaia e godê; as saias mais

amplas e que formam ondulações sugerem o uso de tecidos mais leves e “moles”, que as

fazem balançar ou rodar de acordo com o movimento do corpo.

masculino calça

feminino saia

vertical sóbrio estreito pesado

cores neutras liso

“limpo” reto

contínuo

horizontal exagerado

amplo leve

cores chamativas estampado

com adornos ondulado

descontínuo

saia não-feminino

calça não-masculino

CASTILHO, 2009, p. 171.98

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Figura 20 – Modelos mais comuns de saia

Fonte: download de imagem publicada no blog Costurando com amor em 23 de abril de 2014, sem referência de autoria ou origem da imagem. Disponível em: <http://costurandoamor.blogspot.com.br/2014/04/tipos-de-

saia.html>. Acesso em: 8 nov. 2014.

Em oposição, as saias reta e lápis são mais verticalizadas e estruturadas. A saia

envelope também, mas a abertura frontal já oferece uma liberdade um pouco maior de

movimento. Esta seria uma saia intermediária entre os dois grupos, assim como a tulipa,

que é ajustada às pernas, mas um pouco ampliada no quadril, o que a deixa um pouco mais

“horizontal” nesta parte do corpo.

Comparando estes modelos com as prescrições do manual de Inês de Castro, vemos

que as saias mais adequadas – superando-se a restrição mais geral que é feita à peça –

são aquelas com uma plasticidade associada ao masculino. Saias que, considerando o

quadrado apresentado antes, colocaríamos na posição não-feminina. No entanto, tais saias

podem ser chamadas de sexies, como de fato elas são em muitos enunciados, e a

sensualidade é constantemente colocada como atributo da feminilidade.

As saias mais inadequadas, por outro lado, são aquelas que possuem uma

configuração plástica do feminino, sendo, portanto, saias femininas. Em última instância,

saias que reforçam o tema da feminilidade, constituído por figuras como “florais”, “fluidos”,

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“pregas”. A feminilidade expressa por estas figuras, por sua vez, é associada a qualificativos

disfóricos no ambiente de trabalho, como a sedução, a desatenção, o ar sonhador ou

romântico, o ar colegial e infantil. Lembramos ainda que são estes os modelos de saias que

ilustram o logotipo do movimento Ni putes ni soumises, que reivindica o direito ao exercício

e à manifestação da feminilidade, e a publicidade sobre a programação de TV comemorativa

ao aniversário do movimento, que aponta os riscos de se usar saia (figuras 2a e 2b).

As saias retas e lápis são apontadas pelo manual como sendo mais “confortáveis”. No

entanto, se pensarmos nas constrições corporais relacionadas ao uso desta peça, veremos

que as saias mais amplas e leves permitem maior liberdade de movimento das pernas; não

“sobem” quando a mulher senta; podem ser colocadas no entremeio das pernas para

escondê-lo, se a mulher decidir sentar com as pernas abertas; se ajustam às pernas

cruzadas. Saias retas e lápis, por outro lado, exigem pernas sempre unidas, que não podem

ser abertas e nem cruzadas. Também não facilitam o caminhar nem o subir escadas. E

enquanto as saias mais amplas e leves acompanham naturalmente a linha do corpo

feminino, as saias mais ajustadas marcam e delineiam. Ainda que Castro recomende que

estas saias não sejam muito justas, veremos que é precisamente nesta configuração que

elas aparecerão nos anúncios publicitários.

2.8 A base dos discursos intolerantes

Defendemos antes que a separação do corpo feminino vestido em dois sintagmas,

tronco e pernas, e o uso da saia e depois da calça, opera um fazer-assumir a sexualidade

da mulher, por muito tempo um mistério e uma ameaça do ponto de vista masculino.

Quando a mulher usa saia e, ainda por cima, “saias femininas”, assume não apenas a sua

sexualidade, mas uma sexualidade feminina e uma valoração do feminino.

Contemporaneamente, tal sexualidade tem escapado cada vez mais ao controle masculino,

o que é relativamente novo na História. Nos ambientes em que os valores da masculinidade

ainda predominam, como o mundo do trabalho e o espaço público – resquícios, ainda, da

ideologia das esferas separadas do século XIX –, a feminilidade aceita é aquela adequada

ao ponto de vista masculino. No trabalho, em termos de roupas, seria o uso de calças

(originalmente masculina) e de saias plasticamente “masculinizadas”, segundo nossa

proposta de organização vista na figura 19; as saias “femininas” são consideradas

inadequadas. No espaço público da rua – onde, em teoria, o indivíduo pode exercer a

liberdade –, a saia por si só tem sido vista como “inadequada”.

Conforme aponta Castilho, ao efetuar o programa narrativo da construção do parecer

pelo vestir-se, o sujeito pode se colocar em conjunção ou disjunção com os elementos da

plástica da moda, aproximando-se ou distanciando-se dos qualificativos requeridos para

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atuar no papel social que assume . A disjunção com as roupas adequadas e o consequente 99

distanciamento dos simulacros dos papéis sociais “femininos” podem causar, como vimos,

algumas interações arriscadas.

De acordo com certos relatos, a saia parece ser uma roupa aceitável quando a mulher

está em espaços mais controlados ou, principalmente, quando no está no papel social da

“namorada” (“Para o homem, uma mulher que veste minissaia é um troféu”, diz a estilista

Barbara Hulanicki ). Subentende-se aí um controle da sexualidade feminina pelo homem, 100

que é acompanhado por um fazer-proteger esta mulher. A mulher de saia sozinha na rua

assume que sua sexualidade – já que a saia é vista como peça “sexual” – é independente

do masculino. A saia é disjunta do papel social da mulher sozinha, pois ainda existe rejeição

em se aceitar a autonomia sexual da mulher. Outro aspecto é que a mulher de saia na rua

parece não aceitar um certo percurso manipulatório da intimidação, que prescreve a

necessidade de esconder sua sexualidade para não sofrer violência – já que não está com

um homem que a proteja.

De fato, o sociólogo Anthony Giddens atribui à falha do controle sexual exercido pelos

homens sobre as mulheres o atual grande fluxo de violência de gênero . A crescente 101

liberdade sexual da mulher – e, em oposição, a crescente perda de controle por parte dos

homens – está relacionada a fatores como a separação entre o sexo e a reprodução,

conquista da independência financeira, facilidade do divórcio. Tal situação possibilita a

emergência do que Giddens chama de “amor confluente”, diferente do amor romântico do

século XIX. No amor confluente, todos têm oportunidade de se tornar sexualmente

realizados; cai por terra a categorização das mulheres entre “respeitáveis” e aquelas

marginalizadas por um exercício da sexualidade em não-conformidade aos padrões

atribuídos ao gênero . A partir do momento em que a mulher conquista sua autonomia 102

sexual, deixa de cumprir um percurso narrativo que Giddens chama de cumplicidade

feminina, em que a mulher é objeto, mas não sujeito do desejo sexual . Uma das 103

consequências disso, para o sociólogo, é o exercício da violência como forma de controle

sexual. Antes, tal controle era garantido pelos direitos de propriedade. Nas sociedades

modernas, no entanto,

as coisas são muito diferentes. As mulheres vivem e trabalham em ambientes públicos anônimos com muito mais frequência do que antes, e as

CASTILHO, 2009, p. 182.99

Entrevista com Barbara Hulanicki apresentada em LANG, B.; SCHRAML, T.; ELSTER, L.; 2011, p. 120. 100

Tradução nossa para: “E poi per l’uomo una donna che indossa la minigonna è un trofeo”.

GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas 101

(trad. Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993, p. 11.

GIDDENS, 1993, p. 74.102

GIDDENS, 1993, p. 134.103

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divisões “isoladas e desiguais” que separavam os sexos foram substancialmente desfeitas. Faz mais sentido hoje em dia do que no passado a suposição de que a violência sexual masculina tornou-se a base do controle sexual. Em outras palavras, atualmente, grande parte da violência sexual masculina provém mais da insegurança e dos desajustamentos do que de uma continuação ininterrupta do domínio patriarcal. A violência é uma reação destrutiva ao declínio da cumplicidade feminina. [grifo nosso] 104

Sendo a violência praticada pelo homem uma reação à insegurança que sente ao

perder o controle sexual sobre a mulher – ou seja, ao constatar que a mulher não cumpre

mais o papel actancial esperado no percurso narrativo das relações homem x mulher que

ele sanciona como moralmente positivo –, podemos entender este tipo de caso como uma

das manifestações do discurso da intolerância modelizado por Diana Luz Pessoa de Barros.

Em seu estado inicial, o sujeito confia que vai conseguir certos valores por meio de um outro

sujeito. Ao perceber que o outro não fará ou até impedirá que ele obtenha tais valores, o

sujeito sofrerá decepção, frustração, desespero e, por fim, insegurança. Disjunto dos valores

e em crise de confiança, o sujeito busca resolver sua falta e fazer mal ao outro que é

“culpado” por este desenlace. Esta malevolência, segundo Barros, “parece ser o caminho

para que as coisas sejam postas em seus ‘devidos lugares’, mesmo que a falta primeira não

se resolva com isso” . 105

Acreditamos que tal percurso acontece não apenas nos discursos, mas também nas

práticas de violência contra a mulher. Especificamente no aspecto que aqui abordamos, o

papel actancial que a mulher não cumpre – que é o de objeto semiótico, mas também

sexual, considerando a proposição da não-cumplicidade de Giddens –, é figurativizado pelo

uso da saia fora de algumas prescrições de ocasião, local e companhia. Pois a saia, como

afirma Bard, é símbolo da liberdade vestimentar e sexual conquistada pela mulher com a

laicização da sociedade . Liberdade parcialmente conquistada, talvez. Como bem 106

observam Lang, Schraml e Elster sobre a minissaia,

depois de terem lutado para conseguir a liberdade das pernas na moda, as mulheres conheceram também os prejuízos de descobri-las. A luta pela minissaia é a luta das mulheres pelo controle do próprio corpo, e que portanto concerne também ao sexo. 107

A consolidação da igualdade social de gênero passa, então, pela aceitação da

GIDDENS, 1993, p. 138.104

BARROS, Diana Luz Pessoa de. A construção discursiva dos discursos intolerantes. In.: BARROS, Diana Luz 105

Pessoa de (Org.). Preconceito e intolerância: reflexões linguístico-discursivas. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011, p. 259.

BARD, 2010a, p. 92.106

LANG et al., 2011, p. 158. Tradução nossa para: “Ma dopo aver lottato per ottenere la libertà delle gambe 107

nella moda, le donne conobbero anche gli svantaggi dello scoprirsi. La lotta per la minigonna è la lotta delle donne per il controllo del proprio corpo, e quindi riguarda anche il sesso.”

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autonomia da sexualidade feminina e do jeito – não apenas vestimentar, mas de

comportamento, atitudes, processos decisórios – feminino de operar em espaços ainda

regulados por uma lógica masculina, como o do trabalho. Para Giddens, esse tipo de

mudança na esfera pública poderia ser uma ramificação de mudanças na esfera pessoal

que já vêm acontecendo. A emancipação sexual, segundo o sociólogo, tem levado a um

processo de democratização radical da vida pessoal , entendida como uma equalização 108

do poder no relacionamento e o estabelecimento de limites, prerrogativas e

responsabilidades. Um processo em que as mulheres vêm desempenhando o papel

principal, mas com benefícios na esfera privada e na esfera pública abertos a todos.

Bard também acredita que as reivindicações femininas oferecem, na verdade,

benefícios que se estendem à organização social de uma maneira geral. Como já vimos, o

uso da vestimenta aberta provoca uma sensação de vulnerabilidade, em que o medo de que

alguém veja o que a saia esconde é um prelúdio do medo da violação. Bard se pergunta se

a consciência da vulnerabilidade feminina – e, portanto, da vulnerabilidade humana –, não

seria uma das condições para um modo de vida mais atento aos outros. A saia poderia levar

todos, homens e mulheres, a valorizar mais as qualidades e funções ditas femininas e,

especialmente, a generalizar sua prática entre os dois sexos . 109

Parece que estamos falando de empatia, da capacidade de se colocar no lugar do

outro, e isso se percebe quando alguns homens decidem usar a vestimenta aberta. Certa

vez, ouvimos um rapaz contando sobre o dia em que usou um kilt e o receio automático que

passou a ter de sentar de pernas abertas – o tipo de constrição que raramente os homens

experimentam. Já na época do “saiaço” que promovemos na faculdade curitibana, um dos

alunos relatou assim o seu uso da saia:

Foi a primeira vez que usei saia e foi bem direfente, pois não tinha nada agarra na perna, me senti bem feliz com a iniciativa e claro de participar, ter coragem ahah […] de uma forma bem direta, a sensação foi incrível, pois "tudo" ficou livre haah sem contar a questão do refresco não esquenta, rolava um ventinho haaha nas pernas ajuda bastante no calor ahusa 110

Quando vestem saia, os homens experimentam tanto o prazer estésico proporcionado

pela vestimenta aberta quanto as constrições e prescrições do seu uso. É o tipo de

consciência de si e do outro que tanto Bard quanto Giddens acreditam que pode ajudar a

construir uma sociedade melhor. Um fato que já vem acontecendo, ainda que

paulatinamente, e que não combina com os papéis sociais e com a “guerra dos sexos” que

GIDDENS, 1993, p. 200.108

BARD, 2010a, p. 163.109

Depoimento do aluno Diogo Andreatta, via chat do Facebook, no dia 17 de outubro de 2014. Mantivemos a 110

escrita conforme digitado pelo autor.

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alguns produtos midiáticos parecem insistir em promover. Podemos ver um exemplo disso

no estudo de José Luiz Aidar Prado sobre a construção da realidade operada pela revista

Veja . Uma realidade baseada na busca pelo sucesso que, por sua vez, implica um vencer 111

a concorrência. Uma das capas de Veja citadas no estudo tem como tema a “vitória” das

mulheres sobre os homens, figurativizada pelo enunciado “Elas venceram”. O enunciador

revista coloca-se fora do enunciado, tratando a mulher como um “Outro” (paradoxalmente,

“revista” é substantivo feminino, e nos referimos a ela como “a Veja”) e reforçando o

discurso da disputa de gênero.

Normalmente, tais discursos não tratam das questões mais essenciais e relevantes

que envolvem os conflitos entre masculino e feminino. Eles abordam simulacros de disputas

cuja reiteração pouco contribui para a construção de uma relação social harmônica entre os

gêneros, e que muitas vezes pouco têm a ver com as negociações bem-sucedidas que já

acontecem na esfera dos relacionamentos.

A publicidade também costuma operar desta forma, a exemplo de uma campanha dos

produtos Bombril veiculada em 2011. Sob o tema “mulheres evoluídas” e com três versões

de comerciais de TV, cada um protagonizado por uma comediante vestida de terno e

gravata, a campanha baseava-se na desqualificação dos homens, tratando-os como infantis,

bobos, porcos, irresponsáveis ou efeminados, para destacar as qualidades do produto . 112

Ao observar que o senso comum caracterizava o comercial como “feminista”, percebe-

se o quanto a luta pela autonomia e pela igualdade de direitos por parte das mulheres é

vista como um ataque aos homens e, consequentemente, o quanto esta “guerra dos sexos”

é estimulada, tornando muito distante a percepção de que as mudanças reivindicadas pelas

mulheres se revertem em benefícios para a sociedade como um todo. Se nos perguntarmos

a quais interesses servem estas estratégias discursivas midiáticas, que insistem em dar

visibilidade à oposição estereotipada ao mesmo tempo em que não reconhecem as práticas

e os discursos de conciliação, talvez encontremos uma resposta bem plausível nesta fala de

Giddens:

Um mundo social em que a realização emocional substituísse a maximização do crescimento econômico seria muito diferente daquele que conhecemos hoje. As mudanças que atualmente afetam a sexualidade são, na verdade, revolucionárias e muito profundas. 113

Quanto à saia, entendemos que os aspectos que desenvolvemos neste capítulo não

são os únicos relacionados a esta roupa, mas são os que chamam a atenção para os seus

PRADO, José Luiz Aidar. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo: Educ; 111

Fapesp, 2013, p. 110.

BAGGIO, A. T. Bombril: a marca que não evoluiu com as mulheres. Digestivo Cultural, 10 mai. 2011. 112

D i s p o n í v e l e m : < h t t p : / / w w w . d i g e s t i v o c u l t u r a l . c o m / c o l u n i s t a s / c o l u n a . a s p ?codigo=3326&titulo=Bombril:_a_marca_que_nao_evoluiu_com_as_mulheres>. Acesso em: 10 nov. 2014.

GIDDENS, 1993, p. 11.113

Page 70: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!70

modos e condições de uso na contemporaneidade. Por conta disso, justificam uma pesquisa

centrada nesta peça. Queremos saber até que ponto tais aspectos se articulam, se

confrontam ou se reiteram nos anúncios publicitários que analisamos nos capítulos 4 e 5, e

cujo processo de seleção descrevemos no capítulo seguinte.

Page 71: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!71

3 AS REVISTAS E OS ANÚNCIOS

O discurso da pesquisa é apanhado em sua própria contradição. Para poder dizer o que

busca, ser-lhe-ia preciso já o ter encontrado. Se fosse esse o caso, porém, só lhe restaria calar-

se, exceto se se tornasse outro, didático, por exemplo, ou, por que não, promocional.

Inversamente, se ele fala, e até, se não pára de falar, é porque seu próprio fim, em parte,

continua escapar-lhe. E, é claro, ao buscá-lo, ele está se buscando.

Eric Landowski 1

Um dos pontos específicos da Semiótica enquanto metodologia de pesquisa é o

caráter não necessariamente quantitativo da representatividade do corpus de investigação.

A. J. Greimas e J. Courtés, no Dicionário de Semiótica, apontam que ao lado da

amostragem estatística, um outro meio para se obter um corpus representativo é a partir da

saturação do modelo. Tal modelo é “construído a partir de um segmento intuitivamente

escolhido e aplicado ulteriormente, para confirmação, complemento ou rejeição, a outros

segmentos, até o esgotamento da informação […]” . Jean-Marie Floch, por exemplo, baseia-2

se em um conjunto de publicidades de automóveis para propor os quatro tipos de

valorização do produto nas práticas de consumo – prática e utópica, crítica e lúdica . Estas 3

categorias e suas características estão consolidadas e são extensamente utilizadas até hoje

nos estudos semióticos. Ou seja, o modelo de Floch parece ter alcançado o nível de

saturação que sanciona a pertinência e a representatividade do corpus escolhido para a sua

proposta, sem que fosse necessário haver no texto publicado uma discriminação dos

critérios usados para a seleção da sua amostra.

Apesar da validade, pertinência e até da tradição deste procedimento nas pesquisas

semióticas, alguns fatores relacionados aos nossos objetivos de investigação direcionaram

uma primeira constituição da amostra baseada em outros critérios, especialmente

quantitativos. Nossa amostra inicial não foi definida por cálculos estatísticos, mas buscamos

estabelecer parâmetros quantitativos oriundos de outros estudos semióticos. Encontramos

estes parâmetros em um trabalho de Eric Landowski que, assim como o nosso, tem por

! LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002, 1p. IX.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008, entrada “Corpus”, p. 105.2

FLOCH, J-M. Sémiotique, marketing et communication: sous les signes, les stratégies. Paris: PUF, 1990, p. 3

130-131.

Page 72: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!72

objeto a publicidade. Trata-se do “Encenação publicitária de algumas relações sociais”,

integrante de A sociedade refletida . Neste estudo, o que particularmente interessa a 4

Landowski é como a publicidade coloca em cena os tipos de relações que o anunciante

pretende estabelecer com seu público-alvo ou com uma opinião pública, a partir de uma

valorização de si mesmo. Para responder a esse objetivo, o autor se debruça sobre um

conjunto de anúncios veiculados durante um ano nas principais publicações impressas

francesas, cotidianas e semanais. Tal conjunto é formado por cerca de 200 a 300 anúncios,

assinados por empresas de seis setores econômicos.

Parece que, para Landowski, a representatividade da amostra constitui um importante

dever-fazer no percurso narrativo deste trabalho. Dificilmente o autor conseguiria analisar

aspectos da publicidade institucional como prática social se fosse preciso considerar toda a

publicidade institucional produzida no mundo, no ocidente, ou mesmo na França. Portanto,

apoia-se numa amostra e, para fazer-crer que as conclusões obtidas a partir de tal conjunto

podem ser consideradas como formulações gerais sobre a figuração de certas relações

sociais na publicidade, especifica que o material foi “recolhido e fornecido por um dos

grandes institutos parisienses de publicidade e sondagens – o que, de certa forma, garante

sua representatividade” . “Grande”, “parisiense” e especialista nos assuntos (em publicidade 5

e sondagens) são figuras que o enunciador escolhe para tematizar a credibilidade do

instituto e, por extensão, para tornar crível que a amostra fornecida é representativa.

Voltando à nossa pesquisa: quando iniciamos o processo de constituição do corpus

desta tese, refletimos sobre os critérios que poderíamos utilizar de modo a formar um

conjunto pertinente. Dentre os diversos suportes de veiculação da mensagem publicitária, já

havíamos optado pela revista. Faltava definir os títulos, período de coleta dos anúncios e a

quantidade de exemplares. Os critérios apresentados em “Encenação publicitária […]” nos

serviram de guia para essa decisão, por haver uma certa correspondência entre os objetos e

objetivos de investigação: a publicidade, o veículo impresso (revista) e a busca pela

compreensão das práticas sociais presentificadas no discurso publicitário.

Assim, a partir das características do corpus da pesquisa realizada por Landowski –

anúncios veiculados em 1984 (período de um ano) nos principais diários e semanários da

França (cobertura nacional) – definimos os primeiros critérios para seleção do nosso:

também o período de um ano e a seleção das principais revistas brasileiras, de circulação

nacional e de diferentes periodicidades. Consideramos ainda a quantidade da amostra – de

200 a 300 anúncios – como um parâmetro para o mínimo de unidades constitutivas de um

texto pertinente à análise semiótica. Nos próximos itens deste capítulo descrevemos o

LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: 4

Educ/Pontes, 1992.

LANDOWSKI, 1992, p. 104.5

Page 73: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!73

percurso que seguimos para a seleção dos exemplares e, ao final, delimitamos o conjunto

de anúncios que constituem o texto significante para a análise semiótica.

3.1 A seleção das revistas

Um aspecto essencial da pesquisa é a roupa usada pelas figuras femininas na

publicidade das revistas, especificamente a saia. Durante as primeiras discussões do projeto

de tese (com colegas, professores e outros interlocutores), foi comum haver a interpretação

de que se tratava de uma investigação sobre a publicidade de moda, em virtude do

destaque que damos à vestimenta. Na lógica desta interpretação, esperava-se que

trabalhássemos exclusivamente com revistas de moda, ou com “revistas femininas”, ou

apenas com anúncios de roupas, sapatos e afins. Nosso foco, porém, não é a “publicidade

de moda”, e sim a investigação sobre a construção de papéis sociais femininos por meio da

roupa. Portanto, foi preciso buscar títulos diversos no conteúdo e no público-alvo, e por

consequência e hipoteticamente, com mulheres em diferentes papéis sociais nas

publicidades veiculadas nestes títulos.

A informação sobre circulação e abrangência de periódicos brasileiros é auditada pelo

IVC - Instituto Verificador de Circulação. Os dados são passados pelos veículos associados

ao Instituto, verificados e sancionados por ele e depois enviados aos anunciantes, agências

e outras entidades, que se servem de tais informações para elaboração de suas estratégias

de marketing e comunicação. O IVC classifica as revistas brasileiras em 37 categorias:

Administração/Economia/Negócios; Adolescente; Agronegócios; Animais; Arquitetura/

Construção; Artesanato; Astrologia/Horóscopo; Atualidades; Automobilismo/Motociclismo;

Bebês; Beleza; Buscadores e agregadores; Comportamento; Comunicação/Publicidade/

Marketing; Culinária; Decoração; Ecologia; Educação; Feminina; Finanças; Fitness;

Fotografia; Futebol; Games; Informática; Jardinagem e Paisagismo; Kids; Masculina; Moda;

Música; Outdoor Sports; Outros; Running; Saúde; Serviços; Turismo; TV/Celebridades . 6

Escolhemos trabalhar com três categorias que conciliam os critérios de diversidade e

de abrangência, já que abrigam títulos entre os de maior circulação no país: “Atualidades”,

“Finanças” e “Feminina”. No aspecto editorial, na primeira categoria acreditamos ser

possível perceber uma variação maior dos papéis sociais femininos, justamente por não

haver um assunto específico tratado nos títulos deste segmento. Na segunda,

provavelmente encontraremos os papéis sociais ligados aos negócios, com a presença de

mulheres executivas, empresárias e profissionais liberais. No terceiro, estarão os atores nos

papéis que a imprensa dita feminina considera serem aqueles de interesse do seu público.

Por uma noção empírica, talvez encontremos mais nas revistas femininas a presença de

Disponível em: http://www.ivcbrasil.org.br/aPublicacoesAuditadasRevista.asp. Acesso em: 3 ago. 2013.6

Page 74: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!74

artistas, modelos, celebridades, visto o destaque que esse tipo de publicação geralmente dá

às pessoas cujo papel social está baseado no corpo.

As figuras femininas do conteúdo editorial não são nosso foco, mas o conteúdo

editorial é destinador do público-alvo da revista e também de suas publicidades, levando a

uma provável reiteração dos papéis em um e outra.

3.1.1 Veja, Exame e Claudia: perfil dos títulos selecionados e de seus leitores

Definidas as categorias de revistas, fomos em busca de títulos de diferentes

periodicidades e com grande circulação (gráfico 1). Na categoria “Atualidades” optamos pela

semanal Veja, a revista de maior circulação do Brasil. Em “Finanças”, escolhemos a 7

Exame, quinzenal, a de maior circulação em seu segmento. Representando a categoria 8

“Feminina”, ficamos com Claudia, mensal. O título é o de maior circulação não apenas na 9

sua categoria, mas também entre as revistas mensais brasileiras. Todas são publicadas pela

Abril, a maior editora de revistas do Brasil e da América Latina. Os dados são de 2011, ano

em que iniciamos a seleção dos títulos para a pesquisa. Quanto à média de leitores por

edição, enquanto Exame e Claudia, mais segmentadas, possuem um índice similar, um

mesmo exemplar de Veja é lido por bem mais gente.

Quanto ao perfil do público (gráfico 2), as mulheres são a grande maioria entre os

leitores de Claudia e, por poucos pontos percentuais, também entre os de Veja. Os leitores

de Exame são principalmente homens e também os mais jovens, com maioria na faixa de 25

a 34 anos. Veja e Claudia possuem grande parcela de leitores na faixa de 35 a 44 anos e

acima de 50 anos. De maneira geral, Claudia tem o público com maior faixa etária.

Dados de circulação de Veja, Época e Isto É, respectivamente primeira, segunda e terceira colocadas entre as 7

revistas semanais de atualidades auditadas pelo IVC: 1.074.563, 398.628 e 329.997 exemplares (média de circulação dos meses de janeiro a dezembro de 2011, ano em que os títulos foram selecionadas para a pesquisa). Fonte: dados do IVC divulgados no site da ANER – Associação Nacional de Editores de Revistas. Disponível em: http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/. Acesso em: 21 jul. 2014.

Dados de circulação de Exame, Época Negócios e IstoÉ Dinheiro, respectivamente primeira, segunda e terceira 8

colocadas entre as revistas quinzenais de finanças auditadas pelo IVC: 142 mil exemplares, 64 mil e 47 mil. Fonte: dados do IVC de novembro de 2012 divulgados no mídia kit da revista Exame. Disponível em:http://www.publiabril.com.br/marcas/exame/revista/informacoes-gerais. Acesso em: 3 ago. 2013. Em 2011, ano de seleção dos títulos para pesquisa, a circulação média de Exame era de 160 mil exemplares, também conforme dados do IVC divulgados no item “Informações gerais” da revista no site PubliAbril. Disponível em: http://www.publiabril.com.br/marcas/exame/revista/informacoes-gerais. Acesso em: 12 jun. 2011.

Dados de circulação de Claudia, feminina, primeira colocada entre as revistas mensais auditadas pelo IVC: 9

405.943 exemplares. Para efeito comparativo, o segundo lugar na categoria feminina/mensal é da revista Nova, com circulação de 230.822 exemplares (média de circulação nos meses de janeiro a dezembro de 2011, ano em que os títulos foram selecionadas para a pesquisa). Fonte: dados do IVC divulgados no site da ANER. Disponível em: http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/. Acesso em: 21 jul. 2014.

Page 75: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!75

Gráfico 1 – Dados de circulação por edição, número de leitores por edição e média de leitores por edição das revistas Veja, Exame e Claudia – 2011

Fonte: ver tabela 1 – Apêndice A. Produção da autora.

Gráfico 2 – Sexo e faixa etária dos leitores, por revista (%) – 2011

Fonte: ver tabela 2 – Apêndice A. Produção da autora.

Os aspectos socioeconômicos e de distribuição geográfica dos leitores estão

figurativizados no gráfico 3. A classe B é maioria, representando por volta de 50% do público

nas três revistas. Exame é a que tem mais leitores de classe A e Claudia, a que tem mais

leitores na classe C. Todas as revistas têm a maior parte de seus leitores na região Sudeste,

sendo que a participação desta região é menor entre o público de Claudia.

Apesar da predominância da mesma classe socioeconômica e região entre os leitores,

há uma diversidade de perfil de público nos outros critérios. Somando a quantidade de

leitores de cada publicação, temos um total aproximado de 11,254 milhões de indivíduos

(sem levar em conta as sobreposições) para os quais as marcas vão se dirigir. Assim,

combinando o número de leitores das três revistas e as diferenças de perfil das revistas e do

público, parece-nos que um conjunto de anúncios oriundos dessas publicações apresenta

uma abrangência e uma diversidade que contribuem para a representatividade da amostra.

10

100

1000

10000

Veja Exame Claudia

Leitores por exemplar (média) Circulação (mil exemplares) Leitores (mil exemplares)

1.861724

8.669

403160

1.089

4,624,537,9696969696969696969696967,7,7,7,7,7,7,7,969696967,96

5353535353535353534,4,4,4,4,4,4,4,4,4,53535353534,53 6262626262626262624,4,4,4,4,4,4,4,4,4,62626262626262624,62

25

50

75

100

M F 10/14 15/19 20/24 25/34 35/44 45/49 50+

27

7

2819

1072

91

91613

232618

31

39

61

23

10

22201210

3

5446

Veja Exame Claudia

Page 76: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!76

Gráfico 3 – Classe socioeconômica e região de domicílio dos leitores, por revista (%) – 2011

Fonte: ver tabela 2 – Apêndice A. Produção da autora.

A consulta aos títulos ocorreu entre agosto de 2011 e julho de 2012. Dentro deste

período coletamos todas as edições normais das publicações, formando um conjunto de 87

revistas: 52 exemplares de Veja, 23 de Exame e 12 de Claudia (ver tabelas 3 e 4 – Apêndice

A). Em muitas edições, as revistas são acompanhadas por suplementos ou edições

especiais, a exemplo do Veja Comer & Beber (guia de bares, restaurantes e outros

estabelecimentos alimentícios, veiculados regionalmente). Estas publicações não foram

consideradas. No caso de Exame, o especial Exames Melhores e Maiores foi veiculado em

substituição a uma edição normal e não foi considerado no corpus.

Na etapa inicial de observação das publicações, surgiram algumas questões

relacionadas à caracterização do anúncio publicitário e aos diferentes graus de visibilidade

das roupas vestidas pelas mulheres ali figuradas. Para responder estas questões, foi

necessário estabelecer critérios de seleção dos exemplares constituintes do corpus

semiótico. Especificamente para esta tarefa, utilizamos o método de análise de conteúdo,

que também auxiliou a verificar a relevância do corpus em seu aspecto quantitativo.

Entendemos este método como uma sequência de programas narrativos de uso a nos

fornecer certas competências para a aquisição do valor de base, que é a representatividade

do corpus semiótico.

3.2 Operações de análise de conteúdo quantitativa

O Dizionario dei metodi qualitativi nelle scienze umane e sociali define análise de

conteúdo como o “método por meio do qual se procura tornar explícito o sentido contido em

um documento e/ou o modo pelo qual tal documento pode ser transformado a fim de

25

50

75

100

A B C D N NE SE S CO

8

20

56

1333

31

48

177

17

62

1231

15

56

28

915

58

1443

24

49

23

Veja Exame Claudia

Page 77: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!77

oferecer um significado” [grifos nossos]. Servimo-nos da segunda funcionalidade para 10

estabelecer os critérios de transformação do conjunto de anúncios em um texto pertinente

para a análise semiótica. O Dizionario aponta ainda que “o pesquisador deve ter em conta

fatores diversos, como a escolha de palavras do locutor, a frequência de ocorrência de

certos termos, o aparato e o ritmo do discurso” . 11

Dentro deste conceito, a análise de conteúdo parece ser exclusiva dos signos

verbais de um texto. Ampliando um pouco o alcance, João Carlos Correia inclui a imagem –

um signo não-verbal – como um dos possíveis fenômenos ou ocorrências cuja frequência de

aparição em um texto pode ser quantificada . Quanto à matéria-prima da análise de 12

conteúdo, Roque Moraes diz que

pode constituir-se de qualquer material oriundo de comunicação verbal ou não-verbal, como cartas, cartazes, jornais, revistas, informes, livros, relatos auto-biográficos, discos, gravações, entrevistas, diários pessoais, filmes, fotografias, vídeos, etc. 13

No nosso caso, em termos de frequência, buscamos saber quais são e quantas

vezes aparecem nos anúncios as figuras humanas e as roupas usadas pelas figuras

femininas; tivemos a revista, mais especificamente suas publicidades, como matéria-prima,

e as fotografias e ilustrações como fenômenos a serem contados. Portanto, nossa análise

de conteúdo se deu por métodos quantitativos e extensivos que, na explicação de 14

Mucchielli, “se baseiam na análise de um amplo número de ‘informações sumárias’, pelas

quais a informação de base é dada a partir da frequência com a qual algumas

características do conteúdo se representam no discurso ”. 15

A análise de conteúdo foi destinada por duas questões bastante específicas: quantos

anúncios com a presença de mulheres vestindo saia conseguimos obter no levantamento

MUCCHIELLI, Alex (Org.). Dizionario dei metodi qualitativi nelle scienze umane e sociali (trad. Cesare 10

Caterisano). Roma: Edizioni Borla, 1999, p. 56. Tradução nossa para: “metodo attraverso cui si cerca di rendere esplicito il senso contenuto in un documento e/o il modo in cui tale documento può essere transformato al fine di offrire un significato”.

MUCCHIELLI, 1999, p. 56. Tradução nossa para: “il ricercatore deve tenere conto di diversi fattori quali le 11

parole prescelte dal locutore, la frequenza con cui ricorrono certi termini, l’apparato e l’andamento del discorso”.

CORREIA, João Carlos. O admirável mundo das notícias: teorias e métodos. Covilhã: UBI/LabCom, 2011, p. 12

65. Recurso eletrônico. Disponível em: http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110524-correia_manual_noticial.pdf. Acesso em: 10 abr. 2013.

MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999, p. 8. 13

Recurso eletrônico. Disponível em: http://cliente.argo.com.br/~mgos/analise_de_conteudo_moraes.html. Acesso em: 9 abr. 2013.

Em oposição, os métodos qualitativos são intensivos, “porque se fundam sobre a análise de um grupo restrito 14

de informações aprofundadas e precisas” [tradução nossa para: “poichè si fondano sull’analisi di un gruppo ristretto di informazioni approfondite e precise”] (MUCCHIELLI, 1999, p. 57), e servem para captar o “sentido simbólico” (MORAES, 1999, p. 2) de um texto.

MUCCHIELLI, 1999, p. 57. Tradução nossa para: “ossia si fondano sull’analisi di un ampio numero di 15

‘informazioni sommarie’, per cui l’informazione di base è data dalla frequenza con la quale alcune caratteristiche del contenuto si ripresentano nel discorso”.

Page 78: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!78

das publicidades das revistas e se essa quantidade é suficiente para se constituir um corpus

relevante para a análise semiótica, dentro dos parâmetros já estabelecidos.

3.2.1 Etapas de tratamento do corpus

Moraes concebe a análise de conteúdo como constituída de cinco etapas : a) 16

preparação das informações, b) unitarização ou transformação do conteúdo em unidades, c)

categorização ou classificação das unidades em categorias, d) descrição e e) interpretação.

A primeira etapa envolve identificar as amostras, decidindo quais efetivamente estão

de acordo com os objetivos da pesquisa, e iniciar o processo de codificação dos materiais.

Considerando os aspectos do nosso objetivo, definimos como exemplo de amostra

adequada, em um primeiro momento, o anúncio que mostrasse pessoas (a categoria maior

da qual faz parte a figura “mulher”) expressas em fotografia ou ilustração. Por ser importante

perceber a relação entre a ocorrência de figuras masculinas e femininas nos anúncios, não

iniciamos a classificação pela busca exclusivamente da figura feminina.

Nessa primeira observação, nos deparamos com exemplares que mostram apenas

parte do corpo humano (mãos, por exemplo – figura 1a) e esses decidimos desconsiderar.

Mantivemos aqueles que mostram apenas a cabeça ou o rosto (figura 1b), por ser um

importante elemento de identidade e permitir comparar a presença de homens e mulheres

nas publicidades. Também excluímos os anúncios com figuras humanas dispostas em uma

multidão ou massa indistinta (figura 1c), que não permitem ou dificultam a visualização das

unidades de análise estabelecidas. Outro critério de adequação referiu-se ao tamanho do

MORAES, 1999.16

Figuras 1a, 1b, 1c e 1d – anúncios que exemplificam os critérios do corte de “adequação” na etapa de preparação da amostra de anúncios publicitários

Respectivamente: anúncio que apresenta parte do corpo (Veja, edição de 3/8/2011); anúncio em que a parte do corpo é a cabeça (Veja, edição de 3/8/2011); anúncio com multidão (Veja, edição de 12/10/2011); anúncio

com formato inferior a uma página (Veja, edição de 3/8/2011). Fonte: as revistas.

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!79

anúncio. Deixamos de lado exemplares com formato menor que uma página, por não

apresentar de maneira significativa (em termos de visibilidade) o que desejamos investigar

(figura 1d). Chamaremos esse primeiro corte de “adequação”.

Continuando o processo de preparação da amostra, o conjunto obtido na fase de

“adequação” sofreu outros cortes, sendo o primeiro deles a exclusão dos exemplares que

não atendem ao simulacro do anúncio publicitário. Os meios de comunicação podem

veicular diferentes tipos de materiais publicitários. Nos impressos, como jornais e revistas,

existem os anúncios propriamente ditos; os encartes, que se distinguem da revista (ou do

jornal) por uma materialização diversa, como um papel mais encorpado ou de outra textura;

os conteúdos de comunicação paga apresentados em forma e linguagem semelhantes

àquelas do conteúdo editorial, chamados de informe publicitário ou publieditorial etc.

No publieditorial (figura 2a), a presença de elementos plásticos e figurativos que

remetem à forma e à linguagem do conteúdo editorial sugerem que, nesse tipo de

configuração, a publicidade opera na ordem do sigilo: apesar de ser, ela tenta fazer o

destinatário crer que aquele conteúdo não é um produto publicitário (não-ser),

possivelmente para adquirir uma certa credibilidade, que não possui enquanto discurso de

um enunciador que fala bem de si mesmo e, portanto, acaba recaindo num conflito de

interesses. Justamente por conta desse “disfarce”, o anúncio perde algumas das

características que devemos levar em conta ao tratar de uma semiótica da publicidade.

Muitas vezes, aliás, tais conteúdos nem são produzidos por agências ou profissionais de

propaganda, e sim por equipes da própria revista ou por empresas e profissionais de

relações públicas, orientados para essa disciplina. Assim, trabalhamos apenas com

anúncios publicitários explicitamente caracterizados como tal, cujo simulacro já é conhecido

e reconhecido pelo destinatário, e que se encaixam na posição do ser e parecer publicidade.

Outros anúncios eliminados foram os que divulgam revistas usando as capas das

publicações como elemento principal (figura 2b). Por mais que haja uma produção de

sentido importante na escolha das capas que ilustram os anúncios, é um tipo de enunciado

que também foge dos mecanismos mais característicos da linguagem publicitária, pois o

destaque na expressão é a capa da publicação – que manifesta uma outra linguagem. Já os

anúncios elaborados para “vender” a revista conceitualmente (figura 2c) foram mantidos.

O último grupo excluído foi o de anúncios que promovem novelas, filmes e seriados

por meio da apresentação dos personagens (figura 2d), pois mostram uma construção do

papel social no contexto das narrativas, e não no contexto social que investigamos.

Mantivemos, no entanto, os anúncios de produtos de entretenimento, como programas de

televisão, em que as pessoas retratadas (apresentadores, jornalistas) são elas mesmas, e

não personagens ficcionais. A este 2º corte demos o nome de “caracterização publicitária”.

Page 80: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!80

Seguindo as etapas propostas por Moraes, o passo seguinte foi a unitarização,

também chamada de transformação dos conteúdos em unidades. Consiste em definir as

unidades de análise ou de registro, identificar estas unidades nos materiais, isolá-las, e

definir as unidades de contexto. A unidade de contexto é de onde se retiram as unidades de

análise. No nosso caso, são os anúncios. Já as nossas unidades de análise são a figura

humana (em fotografia ou ilustração) e a roupa usada pela figura feminina. Depois de

definidas, estas unidades foram identificadas nos anúncios.

Para lidar adequadamente com o conjunto inicial de anúncios, começamos o trabalho

pela revista Veja. Já tínhamos definidas as categorias referentes às figuras humanas

(mulher adulta, homem adulto, criança/adolescente). As categorias de roupas foram se

formando a partir da identificação de cada tipo de peça que aparecia nos anúncios. As

outras revistas foram analisadas depois de já estabelecidos esses critérios.

Esta etapa de unitarização é intimamente ligada à de categorização que, segundo

Moraes, “é um procedimento de agrupar dados considerando a parte comum existente entre

eles. Classifica-se por semelhança ou analogia, segundo critérios previamente

estabelecidos ou definidos no processo” . E, ainda: 17

o processo de categorização deve ser entendido em sua essência como um processo de redução de dados. As categorias representam o resultado de um esforço de síntese de uma comunicação, destacando neste processo seus aspectos mais importantes. 18

Em nosso processo de categorização, realizamos algumas operações de

agrupamento para reduzir os dados a uma quantidade que atendesse aos objetivos de

MORAES, 1999, p. 6.17

OLABUENAGA; ISPIZÚA apud MORAES, 1999, p. 6.18

Figuras 2a, 2b, 2c e 2d – amostras que exemplificam os critérios do corte de “caracterização publicitária” na etapa de preparação da amostra de anúncios

Respectivamente: publieditorial (Claudia, edição de julho de 2012); anúncio divulgando revista com a capa da publicação como elemento principal (Veja, edição de 18/7/2012); anúncio com divulgação conceitual da

revista (Veja, edição de 18/4/2011); anúncio de produto de dramaturgia com personagem (Veja, edição de 1/2/2012). Fonte: as edições das revistas (ver tabelas 3 e 4 – Apêndice A).

Page 81: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!81

pesquisa e fosse viável analisar. Quanto à presença de figuras humanas nos anúncios, além

das categorias que se referem a anúncios com a presença de apenas “mulher”, apenas

“homem” ou apenas “criança/adolescente”, também estabelecemos categorias para

contemplar diferentes combinações de presenças dessas figuras: “mulher e homem”;

“mulher, homem e criança/adolescente”; “mulher e criança/adolescente”; “homem e criança/

adolescente”. A categoria “criança e adolescente” é um exemplo de agrupamento de dados,

visto que não é relevante para nós distinguir o gênero de não-adultos.

Quanto às roupas, as categorias iniciais foram definidas com base no senso comum

que se tem sobre sua denominação. Visto que nosso foco de investigação é o uso da saia,

as categorias se referem às peças usadas na parte de baixo do corpo (saia, calça, shorts,

bermuda), ou quando são inteiriças (vestido, macacão, maiô, biquini).

Na descrição, a quarta etapa da análise de conteúdo, as categorias e as frequências

de ocorrência das unidades são apresentadas em tabelas e gráficos. A última etapa

compreende a interpretação. No nosso trabalho, fizemos uma interpretação dos dados

quantitativos. Tais interpretações, como já alertamos, não pretendem responder as questões

essenciais da pesquisa. O resultado que nos interessa é a verificação da relevância do

corpus semiótico, em termos de representatividade. Estas duas últimas etapas são

apresentadas mais adiante.

3.3 Categorização: simulacro de gênero e aspectualização do corpo vestido

Voltamos à etapa de categorização e dedicamos a ela uma seção específica para

abordar alguns aspectos que nos parecem relevantes. Em sua explanação sobre os passos

da análise de conteúdo, Correia assim discorre sobre esta etapa:

Uma questão particularmente sensível é a busca de categorias de análise mutuamente exclusivas que exigem por vezes uma conceptualização exaustiva com recurso a dicionários, literatura especializada, pré-testes e o próprio senso comum. É preciso especificar com precisão estes conceitos estabelecendo indicadores (presença ou ausência de certas características), dimensões (proporção ou extensão de certas características) e atributos (natureza de certas características como sejam curto/longo, masculino/feminino). 19

Deparamo-nos com esse desafio da conceptualização justamente ao categorizar as

figuras humanas como “mulher” ou “homem”. Tal denominação encerra uma problemática

centrada nas questões de sexo e gênero e os elementos que caracterizam cada uma

dessas “categorias”. Segundo Judith Butler, mesmo que se considere que há uma

estabilidade do sexo binário – homem x mulher –,

CORREIA, 2011, p. 68.19

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!82

não decorre daí que a construção de ‘homens’ aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo ‘mulheres’ interprete somente corpos femininos. [...] Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. [grifos da 20

autora]

Esta situação apareceu no levantamento dos anúncios. Uma das publicidades

mostrava o cartunista Laerte usando maquiagem e roupas comumente associadas ao jeito 21

de se vestir “feminino”, problematizando sua classificação nas categorias pré-determinadas

de “homem” e “mulher”.

Tal anúncio foi excluído do corpus por se encaixar no estilo publieditorial. Sua

ausência do conjunto, no entanto, não tira a relevância de se abordar sob quais critérios

definimos as categorias de sexo/gênero. Neste caso, nos apoiamos no conceito semiótico

de simulacro que, no dizer de Ana Claudia de Oliveira, é o “modelo de um modo de estar

que dá visibilidade ao sujeito no social e que [...] pode ser tomado como uma das

manifestações primeiras da construção identitária dos sujeitos no social ”. Ao falar em 22

“homem” ou “mulher”, em “masculino” ou “feminino”, estamos nos referindo a modelos

construídos social e culturalmente, cujas características são identificadas de maneira mais

ou menos uniforme pelos integrantes desta sociedade. Tal parecer é construído por traços

que vão da constituição corporal ao arranjo vestimentar. Assim, uma figura humana que se

parece com a ideia que temos de mulher foi classificada como “mulher”.

A dimensão das unidades de análise também representou uma problemática na

categorização. Não se considerou a dimensão eidética ou topológica da figura humana, que

podem ser marcas de sua importância no contexto do enunciado. Um anúncio com uma

figura masculina em destaque e uma figura feminina com pouca participação visual, como

aconteceu em Exame, foi categorizado como “mulher e homem”. O resultado final pode

mostrar uma grande presença feminina nas publicidades desta revista, ainda que muitas

vezes a mulher esteja em posição subalterna (por exemplo: secretária, telefonista etc.).

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (trad. Renato Aguiar). Rio de 20

Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 1ª ed, p. 24-25.

Laerte Coutinho nasceu com o sexo biológico associado ao papel sexual “homem” e em 2004 iniciou o 21

processo de adequação de gênero. Passou a aparecer publicamente usando roupas e acessórios que figurativizam o gênero feminino, não como um homem que deseja ser mulher, mas como um homem que gosta de se vestir como mulher. Também mantinha um relacionamento heterossexual, o que ajudou a publicizar o debate sobre os equívocos que permeiam os conceitos de sexo, gênero e orientação sexual. Em recente entrevista, a cartunista (referir-se a Laerte no feminino é respeitar o gênero que manifesta) assumiu a orientação homossexual e o desejo de submeter-se a procedimentos corporais de adequação de gênero, como o implante de seios, conforme entrevista concedida ao site iGay. Disponível em: <http://igay.ig.com.br/2014-03-11/laerte-gostaria-de-nao-ter-renegado-minha-homossexualidade-por-40-anos.html>. Acesso em: 25 jul. 2014.

OLIVEIRA, A. C. de. Nas interações corpo e moda, os discursos da aparência. In: XIV Colóquio do Centro de 22

Pesquisas Sociossemióticas - Caderno de Discussão. São Paulo: Edições CPS, 2008, v. 1, p. 1-43, CD-ROM, p. 10.

Page 83: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!83

Quanto à categorização dos anúncios com base nas roupas usadas pelas mulheres,

levamos em conta os diferentes tipos de aspectualização da figura humana, manifestados

pelo enquadramento fotográfico. Alguns permitem a visualização completa da vestimenta,

outros apenas uma parte, e há ainda os que quase não mostram nada. Para realizar esta

classificação, poderíamos nos basear nos tipos de enquadramento já consolidados pela

fotografia e pelo cinema. Esta classificação, porém, não contempla uma situação: às vezes

temos uma mulher em plano americano, o que permitiria a visualização da parte de baixo da

sua vestimenta. Mas se ela estiver atrás de algum outro objeto, ou atrás de outra figura

humana, não conseguiremos identificar sua roupa com clareza. Mesmo que possamos

“adivinhar” a roupa, acreditamos que não serviria como elemento significante, visto que

buscamos a produção de sentido na relação da vestimenta com o corpo. E se parte

importante do corpo não é visível, não teremos o necessário para a análise.

Considerando, então, que a aspectualização do corpo vestido é uma das marcas da

enunciação, podemos dizer que cada grau de visibilidade da roupa no corpo corresponde a

uma modalização do destinador-enunciador, no sentido de um fazer-ver a vestimenta

presente no anúncio, levando a uma sistematização dos regimes de visibilidade da roupa no

corpo da figura feminina, conforme ilustra a figura 3.

A roupa que aparece por completo figurativiza uma intenção do enunciador fazer-ver.

Adotando um termo usado por Eric Landowski, podemos dizer que neste caso a vestimenta

é “exibida” pelo enunciador. 23

Em oposição, ao fazer o enunciatário não-ver a roupa, o enunciador opta por deixá-la

“escondida”. Entre essas situações, existem mais duas. A primeira é aquela em que a roupa

é mostrada quase por inteiro, ou quase claramente, em que não há um fazer não ver.

Porém, não se pode dizer que ela seja exibida totalmente. Essa posição denominamos

como “sugerida”. Por último, aquela em que a roupa é exibida claramente, mas o corpo é

mostrado apenas parcialmente. Assim, o que se vê da roupa é apenas o que veste a parte

do corpo presente no anúncio. Como nesses exemplares o corpo vestido é cortado, seja

pelos limites do anúncio, seja por outras figuras, a essa posição chamamos de “suprimida”.

LANDOWSKI, 1992, p. 100. O fazer ver e o fazer saber são modalizações que Landowski trata na penúltima 23

seção de “Jogos ópticos”, ao mostrar a necessidade de considerar a forma como cada sujeito administra suas condições de visibilidade na interação com o outro. Nessas condições, o “ser visto” e o “ver” deixam de ser relações escópicas para se tornarem manobras cognitivas, da ordem de um fazer saber/fazer crer. Esse fazer ver, no entanto, é reflexivo – se fazer ver – sendo diferente, portanto, do fazer o enunciatário ver operado no caso dos anúncios publicitários. Outra ressalva que fazemos é em relação ao empréstimo do termo “exibida”. Para Landowski, o seu oposto seria o “dissimulada”. Em nossa opinião, porém, tal termo sugere uma intenção mais suave do que o desejo explícito de fazer não ver. Por isso, optamos, nesta posição, pelo termo “escondida”.

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!84

Figura 3 – representação gráfica do regime de visibilidade da roupa no corpo nos anúncios com presença de figuras femininas

Fonte: revista Veja. Anúncios onde a roupa é exibida (edição de 7/3/2012), escondida (edição de 7/12/2011), sugerida (edição de 7/12/2011) e suprimida (edição de 9/11/2011). Produção da autora.

Definidos os tipos de aspectualização, cada um deles foi adotado como uma categoria

para classificar os anúncios. Os anúncios com a presença de mulheres em mais de um tipo

de aspectualização foram categorizados pela mais “visível”. Os anúncios em que a roupa é

“exibida” passaram para outra categorização: aquela baseada no tipo de roupa usada pelas

figuras femininas. Por fim, deste último grupo, foram selecionados para o corpus semiótico

os anúncios que apresentam mulheres com saia, vestido ou calça.

Tratamos na seção seguinte das duas últimas fases da análise de conteúdo: a

descrição e a interpretação. Optamos por apresentar os dados das três revistas

simultaneamente, nos mesmos gráficos. Desta forma, podemos avaliar tanto as informações

referentes a cada publicação quanto estabelecer comparações entre elas.

fazer ver: a roupa é exibida

!

não fazer ver: a roupa é suprimida

!

fazer não ver: a roupa é escondida

!

não fazer não ver: a roupa é sugerida

!

Page 85: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!85

3.4 Constituição do corpus semiótico

Relembrando, dentre as revistas publicadas de agosto de 2011 e julho de 2012,

selecionamos para o estudo 52 edições normais da revista Veja, 23 da Exame e 12 da

Claudia. Após a adequação da amostra, obtivemos 1279 anúncios de Veja, 736 de Exame e

664 de Claudia, totalizando 2679 exemplares. Apesar de Claudia possuir a menor

participação quantitativa no conjunto das edições e dos anúncios, na média destes anúncios

por edição a proporção se inverte: esta revista apresentou a maior quantidade de

exemplares adequados, ou seja, com a presença da figura humana. Exame ocupa o

segundo lugar nesta relação, antes de Veja, mesmo sendo uma revista dirigida a um público

empresarial, o que poderia sugerir anúncios elaborados sem tanta preocupação com a

apresentação de um simulacro do destinatário-consumidor (gráfico 4).

Gráfico 4 – Participação das edições de cada revista no conjunto total das edições; participação dos anúncios adequados de cada revista no conjunto total de anúncios adequados; média de anúncios

adequados por edição de cada revista

Fonte: tabela 5 – Apêndice A. Produção da autora.

Após o segundo corte, de “caracterização publicitária”, restaram 1186 exemplares de

Veja (92,73% dos anúncios da etapa de adequação da amostra), 690 de Exame (93,75%) e

631 de Claudia (95,03%) – ver tabela 5 do Apêndice A. Nesta fase, classificamos os

anúncios por tipo de figuras humanas e por combinações de figuras humanas que

apresentaram (gráfico 5).

Em relação aos anúncios com presença exclusiva da figura feminina, há uma

predominância deles em Claudia. Já os que possuem a presença exclusiva da figura

masculina são predominantes em Exame e em Veja. Comparando a relação entre anúncios

só com mulheres e anúncios só com homens, a proporção reitera aquela do público-alvo

das revistas (cf. gráfico 2 em 3.1.1): em Veja, participação parecida de mulheres e homens;

em Exame, grande maioria de homens, em Claudia, grande maioria de mulheres.

0

15

30

45

60

Veja Exame Claudia

Média de anúncios com figuras humanas por edição de cada revistaParticipação das edições da revista no total das edições (%)Participação dos anúncios da revista no total dos anúncios adequados (%)

24,8%27,5%

47,8%

13,8%

26,4%

59,8%

55,3

3224,6242424242424242424242424242424242424242424,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,6,624242424242424242424242424242424242424242424,6,6,6,6,6,6,6,6,6,624,6

323232323232323232323232323232323232323232

555555555555555555555555555555555555555555,3,3,3,3,3,3,3,3,3,3,3,3,3,3,3,355,3

Page 86: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!86

Gráfico 5 – Ocorrência de figuras humanas nos anúncios de Veja, Exame e Claudia, por tipo de figura e por combinação dos três tipos

Fonte: tabela 6 – Apêndice A. Produção da autora.

Anúncios com homens e mulheres juntos aparecem mais em Exame e Veja; anúncios

com homens, mulheres e crianças ou adolescentes juntos são mais frequentes em Veja,

bem como aqueles só com crianças e adolescentes. As publicidades em que aparecem

mulheres com crianças/adolescentes são maioria em Claudia. Interessante notar que

anúncios somente com crianças/adolescentes aparecem na mesma proporção em Exame e

Claudia – duas revistas com perfil editorial e de público bastante distintos.

Após esta classificação, o conjunto de anúncios sofreu um terceiro corte, que excluiu

todos os exemplares onde não houvesse a figura feminina. Foram descartados, portanto, os

anúncios com a presença apenas de homens, apenas de crianças/adolescentes e aqueles

com homens e crianças/adolescentes. Depois deste corte, o conjunto passou a ter 700

exemplares em Veja, 344 em Exame e 546 em Claudia e foi classificado pelas posições do

regime de visibilidade da roupa nos corpos femininos, no contexto do anúncio, em quatro

categorias: roupa “exibida”, roupa “escondida”, roupa “sugerida” e roupa “suprimida”.

Os anúncios da categoria “exibida”, onde é possível visualizar a roupa que a mulher

veste, são 256 em Veja, 87 em Exame e 205 em Claudia. O gráfico 6 mostra a participação

de anúncios desta categoria entre aqueles com a presença de figuras femininas em cada

revista. Neste sentido, Veja e Claudia têm o melhor aproveitamento: nelas, mais de ⅓ das

publicidades passam para o próximo recorte, pelo tipo de roupa.

No conjunto formado pelos exemplares onde a roupa é “exibida”, o objetivo foi

contabilizar as vestimentas presentes nos anúncios. Cada tipo de roupa foi considerado uma

unidade. Desta forma, no total, há um número maior de unidades em relação aos anúncios

que restaram do recorte anterior, porque em alguns anúncios há mais de um tipo de roupa

presente. Por exemplo, um anúncio com duas mulheres usando calça e uma usando saia:

nos recortes anteriores, ele foi considerado como uma unidade. No recorte por “tipo de

Veja

Exame

Claudia

0% 20% 40% 60% 80% 100%

5%

5%

8%

5%2%

5%5%2%

3%

7%

5%5%5%5%5%5%5%5%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%5%5%5%5%5%5%5%5%5%1%

3%3%3%3%3%4%

7%7%7%7%7%7%7%7%2%

1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%2%3%

8%

10%

22%

21%

4%

44%

30%

71%

23%

27%

Mulher HomemMulher e Homem Mulher, Homem e Criança/AdolescenteMulher e Criança/Adolescente Homem e Criança/AdolescenteCriança/Adolescente

Page 87: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!87

roupa”, ele se transforma em duas unidades, de acordo com as aparições dos tipos de

vestimenta: uma unidade de calça e uma unidade de saia.

Gráfico 6 – Participação dos anúncios pela visibilidade da roupa no contexto de cada revista (%).

Fonte: tabela 7 – Apêndice A. Produção da autora.

Comparando a ocorrência de saia, vestido e calça (gráfico 7), e considerando as duas

primeiras peças como um grupo, há uma ocorrência parecida em Veja (42% de saia e

vestido e 40% de calça). Na Exame, a diferença aumenta, com preponderância da calça

(43% de saia e vestido e 54% de calça). Em Claudia, saias e vestidos são a grande maioria.

Considerados separadamente, vemos que a saia é minoria e o vestido é maioria em Exame;

em Veja ocorre o inverso, praticamente quase na mesma proporção. E em Claudia, a

ocorrência das duas peças é equilibrada. De qualquer forma, a saia não é a roupa mais

frequente em nenhuma das publicações.

Gráfico 7 – Participação dos anúncios pelo tipo da roupa no contexto de cada revista (%).

Fonte: tabela 8 – Apêndice A. Produção da autora.

Após esta categorização, separamos os anúncios com a presença de saia, vestido ou

calça para a constituição do corpus de análise semiótica – recorte “saia, vestido & calça”.

Nesta contagem, a unidade de análise volta a ser o anúncio. Até então, como o objetivo era

contabilizar a ocorrência das unidades de análise, não houve preocupação em excluir os

Veja

Exame

Claudia

0% 25% 50% 75% 100%

0%

1%

6%

1%

7%

6%6%6%1%

1%1%1%1%1%1%1%2%

7%7%1%

20%

7%7%7%7%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%7%7%7%7%7%7%7%7%7%7%0%

11%

8%

21%

53%

40%

21%

15%

27%

20%

29%

15%

saia vestido calça shorts/bermuda lingerieginástica/collant praia sem roupa

Veja

Exame

Claudia

0% 25% 50% 75% 100%

23%

14%

12%

33%

59%

44%

7%

2%

8%

38%

25%

37%

Exibida Sugerida Suprimida Escondida

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!88

exemplares que se repetiram em mais de uma edição da mesma revista. No entanto, para a

constituição do corpus (recorte “corpus”), esta exclusão foi feita. Mantivemos apenas um

exemplar de cada anúncio por revista.

Gráfico 8 – Participação dos anúncios mantidos em cada etapa de corte no total de anúncios da adequação da amostra (%)

Fonte: tabela 9 – Apêndice A. Produção da autora.

O gráfico 8 mostra a relação entre o conjunto de anúncios de cada corte e o conjunto

inicial – aquele obtido na adequação da amostra – nas três revistas. Dos 1279 anúncios

iniciais de Veja, permanecem 171 após o último corte (13%). Dos 736 iniciais de Exame,

permanecem 68 (9%). E dos 664 iniciais de Claudia, ficam 114 (17%). No total, então, o

corpus é formado por 353 anúncios, número superior ao parâmetro de 200 a 300

exemplares que adotamos como amostra significativa.

Veja

1º corte: caracterização da publicidade Exame

Claudia

Veja

2º corte: apenas mulher Exame

Claudia

Veja

3º corte: roupa “exibida” Exame

Claudia

Veja

4º corte: saia, vestido e calça Exame

Claudia

Veja

Corpus Exame

Claudia

0% 50% 100%

17%

9%

13%

19%

11%

16%

31%

12%

20%

85%

47%

55%

95%

94%

93%

Anúncios descartados Anúncios mantidos

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!89

4 AS ROUPAS E OS PAPÉIS SOCIAIS FEMININOS

Guardiã do corpo segredoso da mulher, a vestimenta, ao mesmo tempo obstáculo e desejo de transgressão, é criadora de um espaço onde

o interdito – como em outros domínios – pode plenamente preencher seu papel de instaurador

do sentido, onde o imaginário pode se exercer livremente e até desenvolver a concepção

ocidental de amor.

Algirdas Julien Greimas 1

Já situamos o anúncio publicitário como um texto privilegiado para se apreender

aspectos das práticas e das relações sociais como as que investigamos neste trabalho.

Concordamos com Édison Gastaldo quando diz que, para isso, é fundamental analisar o uso

social do espaço dentro do mundo dos anúncios:

O modo pelo qual os atores posam em relação uns aos outros, a posição relativa que ocupam na imagem, assim como o cenário onde a ação ocorre podem dizer muito sobre a ‘vida cotidiana’ representada nos anúncios. A representação de um dado cenário como ‘espaço doméstico’, ‘local de trabalho’, ‘espaço público’ ou ‘privado’ fornece pistas sobre o que seria uma percepção ‘ideal’ de cada um desses ambientes no ponto de vista dos produtores dos anúncios. 2

O funcionamento da persuasão publicitária pauta-se fortemente pela identificação

entre o destinatário-consumidor e o sujeito da narrativa que se desenrola no interior do

anúncio. Neste sentido, procura-se atorializar o sujeito como um simulacro do consumidor

no mundo natural, um tipo “ideal”, como diz Gastaldo, que por sua vez também atua em

ambientes “ideais” e usa as roupas “ideias” para o papel social que desempenha. Podemos 3

associar essas roupas “ideais” ao figurino dos atores no teatro. Tal como ocorre no palco,

cada papel que desempenhamos requer uma indumentária que nos auxilie na construção do

parecer que desejamos comunicar ao mundo.

Estes papéis podem ser caracterizados no anúncio publicitário pela função que o

sujeito exerce (figurativizada por um instrumento de trabalho, indicando um papel

profissional), pela presença de outras pessoas (a interação de uma mulher com uma criança

! GREIMAS, A. J. Da imperfeição (pref. e trad. Ana Claudia de Oliveira; apres. Paolo Fabri, Raúl Dorra, Eric 1Landowski). São Paulo: Hacker Editores, 2002, p. 85.

! GASTALDO, E. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto Alegre: Sulina, 2013, p. 232-33.

Na fala de Gastaldo, os termos “espaço” e “ambiente” são utilizados como similares. Aqui já é importante 3

sinalizar uma distinção que detalharemos adiante: aquela entre a noção semiótica de espaço, que não necessariamente se refere ao local onde acontece a narrativa, e o espaço como ambiente, como lugar, como figura.

Page 90: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!90

pode indicar o papel de mãe) ou por um ambiente (uma cozinha sugerindo o papel de dona-

de-casa). Quando um desses elementos caracteriza o papel, poderemos entender também

a roupa vestida pelo sujeito como figura constituinte deste papel. Da mesma forma, quando

uma roupa ajuda a figurativizar um papel (uma roupa sexy, por exemplo), poderemos

relacionar o ambiente e outros elementos com este papel. É este imbricamento que vai

permitir, em muitos dos anúncios que analisamos adiante, a identificação e classificação dos

papéis assumidos pelas mulheres. Ou, melhor dizendo: que o enunciador escolheu para que

fossem assumidos pelas mulheres-sujeito das narrativas dos anúncios.

Assim, se estamos investigando a relação entre a roupa e o papel social, “o vestuário

deve ser observado na sua contextualização em um determinado meio social […] ”. Nos 4

anúncios, este meio (ou o ambiente “ideal”) pode se expressar em diferentes graus de

figuratividade, da mais densa até à quase abstração. No primeiro caso, teremos ambientes

claramente identificados, espaços públicos ou privados, profissionais ou domésticos,

externos ou internos. No segundo caso, sem esta identificação explícita, não haverá

ambiente reconhecível, talvez apenas sugerido ou inferido.

Tal diferenciação impacta tanto no fazer interpretativo de enunciatário-pesquisador – já

que demanda a definição de diferentes critérios para identificação dos papéis em relação ao

ambiente – quanto no fazer persuasivo do enunciador – já que a densidade figurativa implica

diferentes efeitos de realidade e, portanto, diferentes estratégias discursivas. Sendo assim,

a primeira tarefa desta etapa do trabalho consiste no levantamento dos tipos de

representação do espaço nos anúncios publicitários e na proposta de um modelo para sua

classificação.

Os procedimentos adotados neste capítulo têm por objetivo específico operar a

identificação dos papéis sociais em uma grande quantidade de anúncios, explorando

especialmente as reiterações de figuras de roupas e ambientes e demais elementos visuais

e verbais. Para isso, colocamos em suspensão outros aspectos significantes dos

enunciados.

4.1 A figuratividade dos ambientes nos anúncios publicitários

Para tratar do espaço no anúncio publicitário é importante considerar a distinção entre

o espaço de representação, que é determinado pelos limites físicos do próprio suporte, e o

espaço representado na publicidade , como mostra Maria Pia Pozzato. É neste segundo 5

espaço que ocorrem as ações do sujeito, que contribuem tanto para a produção de sentido

CASTILHO, K. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2009, p. 37.4

POZZATO, M. P. Semiotica del testo: metodi, autori, esempi. Roma: Carocci, 2004, p. 178.5

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!91

do seu papel social quanto para a o reconhecimento das funções que caracterizam e

possibilitam a identificação de um certo tipo de ambiente (sala, cozinha, escritório etc.).

Pode-se distinguir também o espaço narrado do espaço narrante. Enquanto o segundo

situa-se num nível mais abstrato e profundo e trata da espacialidade como dispositivo

estruturante de um texto, o primeiro pertence ao nível mais superficial e manifesta o mundo

sob forma de figuras. Conforme explica Patrizia Magli,

Faz parte do espaço narrado a localização espaço-temporal que tem a função de enquadrar um evento e de servir de fundo à narração. É um sistema englobante, frequentemente estático, que faz parte do revestimento figurativo do texto, como a caracterização somática dos personagens. Sua manifestação consiste em topônimos, em figuras como cidades, paisagens, montanhas, rios, estradas, interiores. Enquanto revestimento figurativo, este tipo de espaço contribui para criar a ilusão referencial. 6

Os conceitos de espaço representado e espaço narrado referem-se à descrição de um

local, à figuratividade de um ambiente, ou seja, a um espaço pragmático, que é diferente do

espaço cognitivo onde se observa a proxêmica. Segundo Greimas e Courtés, a

espacialização pragmática reúne procedimentos de localização espacial – debreagem e

embreagem – “efetuados pelo enunciador para projetar fora de si e aplicar no discurso

enunciado uma organização espacial mais ou menos autônoma, que serve de quadro para a

inscrição dos programas narrativos e de seus encadeamentos” . 7

Tais noções de espaço situam nosso objeto de estudo como sendo o espaço

representado no anúncio, ou seja, a construção figurativa de um ambiente que serve de

fundo para os programas narrativos assumidos por este sujeito e que, dependendo da

quantidade de traços figurativos, poderá produzir um efeito de ilusão referencial, de

reconhecimento do espaço representado como um determinado ambiente do mundo natural.

Em alguns anúncios, porém, tais traços são mais rarefeitos, diminuindo ou excluindo o efeito

de ilusão referencial. Como bem explica Francesco Marsciani, o espaço representado

poderá ter mais ou menos figuras de conteúdo que correspondam a unidades do plano de

expressão da macrossemiótica do mundo natural . Disso dependerá o processo de 8

identificação de simulacros de ambientes ou locais específicos representados nos anúncios.

Greimas aponta que, neste processo de identificação, normalmente alguns

MAGLI, P. Semiotica: teoria, metodo, analisi. Venezia: Marsilio Editori, 2009, p. 164-165. Tradução nossa para: 6

Fa parte dello spazio narrado la localizzazione spazio-temporale che ha il compito di inquadrare un evento e di fare da sfondo alla narrazione. È un sistema inglobante, spesso statico, che fa parte del rivestimento figurativo del testo, come la caratterizzazione somatica dei personaggi. La sua manifestazione consiste in toponimi, in figure come città, paesaggi, monti, fiumi, strade, interni. In quanto rivestimento figurativo, questo tipo di spazio contribuisce a creare l’illusione referenziale.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica (trad. Alceu Dias Lima et al). São Paulo: Contexto, 7

2008, p. 176-177, entrada “Espacialização”.

MARSCIANI, F. Elementi di semiotica generativa: processi e sistemi della significazione. Bologna: Progetto 8

Leonardo/Esculapio, 1991, p. 115.

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“esquematismos vagos” já são suficientes para estabelecer a relação de representação

entre figuras visuais e objetos de mundo. Em outras vezes exige-se “reprodução minuciosa

dos detalhes ‘verídicos’” . A diferença entre os “esquematismos vagos” e a “reprodução 9

minuciosa de detalhes” estaria condicionada pelo que já apontamos antes: a quantidade e

pertinência de traços heterogêneos que constituem a figura; em outras palavras, pela

densidade figurativa. Enquanto a reprodução minuciosa de detalhes caracteriza uma maior

densidade, resultando em uma iconicidade, os esquematismos vagos apresentam uma

densidade menor e, portanto, são da ordem de uma figuratividade normal. Nas palavras de

Greimas,

[...] poder-se-ia dizer que uma figura possui uma densidade “normal” ou, por outras palavras, que um formante figurativo é pertinente se o número de traços que reúne é mínimo, isto é, necessário e suficiente para permitir sua interpretação como representante de um objeto do mundo natural. 10

Tomando a figuratividade normal como ponto central num eixo de densidade figurativa

que vai da menor para a maior, à esquerda temos a abstração, “o despojamento das figuras

com a finalidade de tornar mais difícil o procedimento de reconhecimento, não deixando

transparecer [...] senão ‘objetos virtuais’ [...]”; e, à direita, a iconização, que se caracteriza

pela “adjunção e sobrecarga de traços visuais” para atender a um “desejo de fazer-parecido

– de fazer-crer [...]” . 11

Este conceito de ícone não se confunde com aquele da semiótica Peirceana. Greimas

e Courtés tratam a iconicidade em termos de intertextualidade entre semióticas construídas

e semióticas naturais , o que amplia sua operação para além da semiótica visual. Se 12

reconhecemos Londres em um anúncio cujo cenário é icônico, isto se deve, então, não por

uma semelhança preexistente entre dois enunciados – o da cidade, uma semiótica do

mundo natural, e o do anúncio, uma semiótica visual. De fato, já teremos visto Londres (a

partir de seus pontos emblemáticos) em outros textos que a manifestam ou representam,

seja no cinema, na televisão, na literatura, ou mesmo por visitarmos a capital britânica.

Quando há esse tipo de representação, o enunciador conta, para efeito de reconhecimento,

com o “referente imaginário global” da cidade, que já está consolidado pelos “discursos a

respeito da cidade” e “por transposições metassemióticas de toda espécie” . A publicidade 13

não só se utiliza deste referente imaginário como ajuda a constitui-lo.

No hipotético anúncio citado como exemplo, Londres poderia estar representada por

GREIMAS, A. J. Semiótica figurativa e semiótica plástica (trad. Ignacio Assis da Silva). In: OLIVEIRA, A. C. de 9

(Org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker, 2004, p. 80.

GREIMAS, 2004, p. 81.10

GREIMAS, 2004, p. 81.11

GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 250, entrada “Iconicidade”.12

GREIMAS, 1981, p. 139.13

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meio de ilustração, pintura, fotografia. As diferentes linguagens e as variações em suas

manifestações produzem maior ou menor grau de intertextualidade com o mundo natural.

Para Greimas e Courtés, quanto mais um texto de uma semiótica construída se parece com

outro de uma semiótica natural, mais se produz a “ilusão referencial” que já mencionamos

antes e que, segundo os autores, “é duplamente condicionada pela concepção

culturalmente variável da ‘realidade’ e pela ideologia realista assumida pelos produtores e

usuários desta ou daquela semiótica . O efeito de sentido de realidade que emerge da 14

iconicidade é, portanto, uma escolha do enunciador para as estratégias do seu fazer

persuasivo. Pozzato ressalta, inclusive, que tal estratégia é típica do contrato de veridicção

proposto pelo destinador publicitário. Uma representação icônica do objeto anunciado

procura mostrar ao destinatário-consumidor que se está dizendo a verdade sobre o

produto . Com base neste princípio, pode-se dizer que ocorre o mesmo quando há, no 15

anúncio, uma representação icônica do sujeito-consumidor e do ambiente onde se

desenrola o seu percurso narrativo.

A ambientação de anúncios publicitários também é problematizada por Eric

Landowski, mais especificamente nos enunciados da propaganda eleitoral. Ao tratar de

novas formas de intersubjetividade e sociabilidade na comunicação política, o autor destaca

dois anúncios que possuem o que chama de cenário legível, “isto é, a imagem de algum

objeto pertinente em relação aos ‘sujeitos’” [grifo do autor]. Estes se diferenciam de outros 16

anúncios cujo plano de fundo não possui nenhum objeto ou quando não se pode determinar

este objeto . No “cenário legível” de Landowski temos, portanto, os efeitos de iconicidade e 17

ilusão referencial apontados antes.

Se o trabalho de Landowski oferece subsídios para tratar de anúncios com ambientes

reconhecíveis – com um “cenário legível” que se pode identificar e determinar –, Pozzato

contribui para a definição do oposto, ao citar um anúncio onde o plano de fundo apresenta

baixa figuratividade. Trata-se da publicidade de uma marca de roupas femininas que a 18

autora descreve para ilustrar o procedimento de análise de semiótica plástica e figurativa:

Se consideramos agora o espaço de representação, veremos que ocupa as páginas inteiras, sem molduras nem outras delimitações. O colorido em azul é uniforme, com exceção da leve sombra de apoio dos pés da modelo, sem

GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 251, entrada “Iconicidade”.14

POZZATO, 2004, p. 178.15

LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: 16

Educ/Pontes, 1992, p. 139.

Landowski chama aqui de “objeto” tanto a bandeira da França, presente em um dos anúncios com cenário 17

legível, quanto a cidade de Paris, presente no outro. Um dos cartazes no qual não se pode determinar o objeto (segundo a classificação do autor) apresenta como cenário o que parece ser uma cidade, mas desfocada, sem “legibilidade”. Destacamos aqui essa diferença porque nos basearemos nela para organizar o corpus.

É um anúncio de página dupla, tendo na esquerda a fotografia de um caramujo de forma espiral e, na direita, 18

uma mulher cuja roupa e movimento corporal também sugerem uma espiralidade.

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a qual o significado do gesto mudaria de /dança/ para /voo/ ou /salto/. O fundo é caracterizado então por uma indeterminação quase total que exclui as figuras de qualquer contexto de verossimilhança, para confiá-las a uma dimensão mítica, como costuma acontecer no caso da dança. [grifos da 19

autora]

Greimas e Courtés situam o conceito intracultural de verossimilhança, ligado à

concepção de discurso, como “representação mais ou menos conforme a ‘realidade’

sociocultural”. Ela concerne ao aspecto sintagmático, a um encadeamento estereotipado e

esperado pelo enunciatário. E quando isso acontece, serve de caráter veridictório para a

avaliação dos discursos narrativos de caráter figurativo. Nessa perspectiva, o discurso

verossímil não é apenas uma representação ‘correta’ da realidade sociocultural, mas

também um simulacro montado para fazer parecer verdadeiro, e que se prende, por isso, à

classe dos discursos persuasivos . 20

Assim, o fundo neutro e sua ausência de uma iconicidade que provoca uma ilusão

referencial pode ser marca de uma indiferença (ou não-preocupação) pelo veridictório ou

pela apresentação de um simulacro de ambiente do mundo natural. Cada estratégia

figurativa – iconicidade ou abstração – manifesta, então, uma estratégia discursiva, uma

escolha de fazer persuasivo do enunciador, de um lado baseada no efeito de verdade e, de

outro, sem essa preocupação. Na articulação entre ser e parecer, talvez possamos situar a

primeira na posição da verdade (como o termo já diz) e a segunda na posição do segredo:

figuras que são, mas que não se preocupam tanto em “parecer”.

Estabelecidas estas duas (o)posições, seguimos com outros aspectos que influenciam

a identificação dos papéis sociais, como a interação entre os elementos do espaço

representado ou narrado, tenha ele um cenário legível ou um fundo com pouca ou nenhuma

figuratividade (que chamaremos de “fundo neutro”). A decisão por esta abordagem partiu da

percepção prévia de que, nos anúncios, um ambiente reconhecível não se caracteriza

apenas pela semelhança com o mundo natural. Para explicar melhor: nem sempre é

possível reconhecer e denominar um ambiente em alguns anúncios, mesmo apresentando

um fundo densamente figurativizado. A busca pelas invariâncias se deu, então,

considerando estes dois planos: o fundo (e sua densidade figurativa) e os objetos que

compõem o ambiente (e o contato/proximidade do sujeito com eles) . 21

POZZATO, 2004, p. 184. Tradução nossa para: “Se consideriamo ora la [sic] spazio di rappresentazione, 19

vediamo che occupa le pagine intere, senza cornici né altre delimitazioni. La campitura è uniforme, a parte la leggera ombra dell’appoggio del piede della modella, senza il quale sarebbe cambiato il significato del gesto che da /danza/ sarebbe diventato /volo/ o /salto/. Lo sfondo è caratterizzato dunque da una quasi totale indeterminazione che scorpora le figure da qualsiasi contesto di verosimiglianza per affidarle a una dimensione mitica, come spesso accade nel caso della danza.”

GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 534.20

Evidentemente, um estudo do espaço e das interações que nele ocorrem deve levar em conta todo o 21

enunciado. Conforme dito anteriormente, colocamos os outros aspectos em suspenso, neste momento, porque o objetivo aqui tem a especificidade metodológica de propor uma tipologia de representação do espaço no anúncio publicitário impresso.

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Na seção seguinte operamos a classificação e distribuição dos anúncios com base nos

conceitos abordados até agora, propondo uma tipologia de representação do espaço nos

anúncios publicitários. Como bem demonstram os termos utilizados até aqui, as linguagens

do teatro e do cinema são frequentemente apropriadas pela metalinguagem semiótica, e

também é nelas que nos inspiramos para denominar os tipos de representação propostos.

4.2 Tipologia de representação do espaço na publicidade impressa

Grande parte do potencial de reconhecimento de um ambiente está nos

procedimentos de prospectividade. Os efeitos de tridimensionalidade na visualidade planar

do anúncio são construídos a partir da colocação das figuras em planos. Há, entre outros, o

plano de fundo e o plano onde atua o sujeito. Nos ambientes internos dos anúncios com

“cenário legível”, o plano de fundo apresenta janelas, móveis, cortinas, paredes com

quadros – um plano de fundo de alta densidade figurativa (icônica), proporcionando a “ilusão

referencial” de um ambiente do mundo natural. A figura humana está localizada neste

ambiente, interagindo com outras figuras humanas e/ou com objetos que o caracterizam.

Pode estar sentada num sofá, cozinhando no fogão, olhando pela janela.

Nos ambientes externos, também o plano de fundo nos faz reconhecer este local (uma

cidade, o céu onde voam os aviões, a praia, o quintal de casa), bem como a interação das

figuras humanas com ele. Neste grupo, identificamos uma preocupação com a

verossimilhança, um fazer-interpretar tal espaço como sendo um espaço determinado e

nomeável, mesmo que a atuação dos sujeitos não seja verossímil ou que haja uma certa

fantasia na representação desses ambientes. A verossimilhança que caracteriza este

primeiro grupo de anúncios é a relacionada ao reconhecimento e à determinação do

ambiente, à sua figuratividade, e não necessariamente à realidade das ações que se

desenvolvem dentro dele e nem à sua materialidade.

Diremos que, nestes anúncios, a ação se desenrola em um local “real”, no sentido de

ser um local específico, como aqueles que buscam os cineastas para realizar alguma cena.

Quando fazem a filmagem em um ambiente já existente (e não em estúdio), o fazem em

uma locação, justamente pelo efeito de realidade. Emprestamos, pois, o conceito de

“locação” para denominar o primeiro tipo de representação do espaço no anúncio.

Os anúncios do segundo grupo apresentam um plano de fundo com baixíssima

densidade figurativa. Temos aqui a “ausência de contexto”, a “indeterminação quase total”

presente no anúncio analisado por Pozzato que mencionamos antes. Se há figuras do plano

de fundo, limitam-se a cores, formas geométricas ou a elementos gráficos que sugerem

alguma textura. Contribuem pouco, portanto, para a tradução de algum ambiente que possa

ser reconhecido ou nomeado. E quando o fazem, é pela correspondência de figuras de

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traços tão mínimos que se confundem com elementos plásticos, como o cromatismo. É a

posição oposta ao primeiro caso, no eixo da iconicidade ou ilusão referencial.

Neste grupo os anúncios podem apresentar outros elementos além das figuras

humanas, mas não são elementos que representam objetos constituintes de algum

ambiente no mundo natural. Quando estes elementos são figuras que traduzem objetos do

mundo, eles estão soltos, sem contato com o sujeito. Os sujeitos parecem estar apenas

sobrepostos ao fundo, mas não integrados em um ambiente. No teatro, o “fundo

indeterminado” seria o espaço cênico vazio, ou palco vazio de cenário. O palco é a base

física para a representação no teatro, o que corresponderia à tela no cinema. Sendo assim,

mantendo a associação com a metalinguagem do cinema, chamaremos este tipo de

representação do espaço como “tela”.

Há um terceiro grupo de anúncios em que a tradução interssemiótica apoia-se em

menos unidades de correspondência. Nestes anúncios, as figuras humanas interagem com

objetos característicos de um ambiente (num plano mais próximo), mas não há um plano de

fundo tão densamente figurativizado a ponto de podermos nomeá-lo (como sala, escritório,

piscina, rua). Pode até haver uma construção de prospectividade, mas o plano de fundo é

neutro. Enquanto nos anúncios do tipo “locação” há uma intenção de que os sujeitos sejam

representados nos espaços onde normalmente se realizam as ações que eles

protagonizam, neste terceiro grupo as marcas dos ambientes diminuem ou desaparecem.

Os sujeitos atuam em um espaço esvaziado, como é o espaço do estúdio fotográfico.

Este espaço, mesmo podendo ser transformado em ambientes reconhecíveis, muitas

vezes é apenas “decorado” com um móvel ou outro objeto com o qual o modelo irá interagir.

Aproveita-se a prospectividade que sugere um espaço tridimensional, mas sem caracterizar

um local específico. Seria uma forma de deixar transparecer o procedimento publicitário, de

assumir que a situação ali exposta é construída, e não um flagrante da vida real, como

outros anúncios pretendem. Este tipo de representação será chamado de “estúdio”.

O último grupo apresenta anúncios que possuem, no plano de fundo, figuras não muito

densas, mas com quantidade de traços suficientes para o reconhecimento como objeto do

mundo natural – o que Greimas chama de figuratividade normal. Porém, não se constrói um

efeito de realidade. Exemplificando: dois destes anúncios (figuras 20b e 20c deste capítulo)

apresentam um plano de fundo com figuras que se parecem com edifícios. O ambiente não

traz mais nenhum outro elemento que faça referência a uma cidade, ou até mesmo a uma

área externa. Nem as figuras humanas interagem com figuras de objetos do mundo natural.

Por sua qualidade matérica e pela diferença de proporção em relação às figuras humanas,

os edifícios parecem ter sido feitos de caixas de papelão (talvez as caixas que acondicionam

os calçados anunciados nesta publicidade). Não parecer haver a preocupação com a ilusão

referencial que caracteriza a figuratividade densa dos espaços do primeiro grupo de

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anúncios. Este tipo será chamado de “cenário” . Esta denominação toma por base uma das 22

configurações da cenografia no teatro, que é a utilização de elementos que figurativizem

apenas o suficiente para a identificação de um ambiente. Como exemplo do uso desta

técnica teatral no cinema, pode-se citar o filme Dogville (2003), de Lars von Trier. Os

espaços no filme eram delimitados por faixas brancas desenhadas no chão e pela inserção

de poucos móveis, apenas para caracterizar uma parte da cidade ou o aposento de alguma

casa . 23

Observando a distribuição desta tipologia de representação no quadrado semiótico

(figura 1) e retomando os termos do eixo de figuratividade proposto por Greimas, vemos que

a “locação” e o “cenário” situam-se no eixo vertical da figuratividade, enquanto o “tela” e o

“estúdio” estão no eixo da abstração. Enquanto os termos contraditórios superiores opõem-

se tanto na configuração do ambiente quanto no modo de interação entre sujeito e objetos

do ambiente, nos inferiores há uma alternância entre o termo assumido e o negado: o

cenário tem ambiente mas não tem interação; o estúdio tem interação, mas não tem

ambiente.

Figura 1 – representação gráfica dos tipos de representação do espaço pragmático nos anúncios publicitários

Fonte: produção da autora.

A partir desta tipologia, podemos classificar os anúncios pelo tipo de representação do

Como se pode ver, usamos o termo “cenário” de maneira diferente da que fez Landowski ao falar dos anúncios 22

com “cenários legíveis”. O semioticista usou a expressão não como sobredeterminação de uma posição em uma tipologia, mas apenas como forma de descrever um plano de fundo com alto grau de densidade figurativa. De nossa parte, adotamos o termo “cenário” para sobredeterminar a posição que estabelece relação de implicação com a posição “locação”. Se considerarmos que a nossa “locação” é o “cenário legível”, o termo “cenário” está implicado na expressão usada por Landowski.

Sobre o uso que fez Lars von Trier de elementos do teatro para tratar de questões relativas ao espaço no filme 23

Dogville, ver: FANK, J.; COSTA, J. C. da. Diálogos: teatro e cinema na peça-filme Dogville, de Lars von Trier. Revista de Literatura, História e Memória: Inter-relações entre a literatura e a sociedade, Cascavel, vol. 5, n. 6, p. 25-35, 2009. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/article/view/3088>. Acesso em: 20 jan. 2014.

fig

ura

tivi

dad

e

abst

raçã

o

Locação

Plano de fundo densamente figurativo, efeito de realidade na

tradução do ambiente (iconicidade)

Proximidade do sujeito com objetos de um ambiente

Tela

Plano de fundo com baixo grau de figuratividade, sem efeito de realidade na tradução do ambiente (abstração)

Distância do sujeito com objetos do ambiente

Cenário

Plano de fundo medianamente figurativo, pouco efeito de realidade na tradução do

ambiente (figuratividade normal)

Distância do sujeito com objetos do ambiente

Estúdio

Plano de fundo com baixo grau de figuratividade, sem efeito de realidade na tradução do ambiente (abstração)

Proximidade do sujeito com objetos de um ambiente

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espaço que apresentam. Os anúncios de cada revista passam por esta classificação. Devido

à importância do ambiente na caracterização de um papel social, haverá procedimentos

diferentes de identificação destes papéis dependendo do grau de figuratividade do espaço

apresentado no anúncio. Os anúncios do grupo “locação”, como já vimos, mostram

explicitamente o ambiente onde se desenrola a narrativa publicitária. Portanto, começamos

por identificar os ambientes. Depois, seguimos para a classificação destes ambientes pelo

regime de visibilidade dos sujeitos neles inseridos, já que os papéis sociais também se

articulam com espaços e situações do público e do privado.

Com a classificação dos papéis operada no corpus “locação”, partimos para a análise

dos anúncios alocados nos outros tipos de representação de espaço em que o ambiente

não é tão claramente identificado. A descoberta de reiterações de roupas ou posturas de

mulheres nos ambientes, ou de móveis e objetos relacionados a ambientes e a certos

papéis sociais, além do texto verbal e da assinatura dos anúncios, são marcas de

identificação dos papéis sociais construídos sem o auxílio da inserção do sujeito em um

simulacro de ambiente correspondente ao mundo natural. Quanto à categorização dos

papéis sociais, tomamos por base a sua discursivização em enunciados da mídia, conforme

explicamos a seguir.

4.3 Papéis sociais femininos: resgate dos discursos do senso comum

O papel que podemos identificar em um anúncio é apenas um dos papéis possíveis

para a mulher. Provavelmente, pelos motivos que já apontamos, será aquele mais afeito ao

senso comum, às “convenções sociais”, à associação com um simulacro de mulher mais

facilmente aceito pela massa de consumidores à qual a publicidade se dirige. Não se

pretende aqui afirmar que estes são os papéis que as mulheres efetivamente assumem.

A caracterização de tais papéis “convencionais” é aprendida desde a infância, a partir

das prescrições sobre quais roupas e cores se pode ou não usar, quais são as dos meninos

e das meninas, e por aí vai. Os produtos midiáticos, como a publicidade e a imprensa, são

bastante pedagógicos neste sentido. E assim como são superficiais e conservadoras as

disposições do senso comum, também o são os papéis sociais que cada roupa ajuda a

figurativizar nesses produtos, sem considerar as complexidades de personalidade e de

atuação social de cada indivíduo.

Esta situação é bem descrita por Kati Caetano em seu estudo sobre a representação

fotográfica das mulheres do Islã na imprensa ocidental, em reportagens que não tratam

especificamente destas mulheres. Caetano aponta que, na mídia, normalmente as mulheres

são agrupadas em diferentes papéis temáticos, que vão da dona-de-casa à mundana, da

intelectual à sedutora. E mesmo

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[…] nos raros momentos em que a mulher é retratada em sua totalidade humana, suscetível a ambiguidades, ambivalência e condicionada por estruturas socioeconômicas (nas artes e na literatura, por exemplo), tais representações selecionam ou enfatizam um dos papéis narrativos, do qual é derivada a figurativização de um modelo específico de mulher, com sua maneira de agir, olhar, gesticular ou se posicionar, de se vestir, andar e se arrumar. 24

É bem frequente na imprensa um tratamento convencional, ou do senso comum, dos

papéis sociais femininos, especialmente nos enunciados que abordam “os desafios de ser

mulher na contemporaneidade”. Estes textos costumam elencar os diversos papéis que as

mulheres devem assumir, abordando a dificuldade em conciliá-los. São, na maior parte,

papéis definidos pela relação da mulher com outras pessoas. Quase não se mencionam

atuações da mulher com a sociedade de uma maneira geral, exceto pelo papel

“profissional”. Vejamos alguns exemplos de configuração do sintagma que elenca os

possíveis papéis sociais femininos:

- “[…] mãe, mulher, amante, profissional, amiga […] ”; 25

- “[…] Acumulamos tantos papéis ser mãe, esposa, amante, profissional bem-

sucedida, bonita, bem humorada e autossuficiente […] ”; 26

- “Hoje as mulheres têm que se dividir entre várias tarefas, ser mãe, esposa, amante,

profissional. Como conciliar todos esses papéis e ainda cumprir bem a missão de mãe? ”; 27

- “A mulher do século XXI vive uma jornada dupla ou às vezes até mais. Ela precisa

ser mãe, mulher, amante, profissional competente e estar sempre linda e disposta para

tudo .” 28

Nota-se que os sintagmas mantêm a mesma ordem de prioridade quanto aos

possíveis papéis femininos, sendo o de mãe na primeira posição, seguido pelo de esposa/

mulher e amante, e com o profissional em terceiro. Interessante observar que o papel de

“amante” fica separado dos demais, de “esposa” e “mãe”, mesmo estando a relação sexual

CAETANO, K. E. The women of Islam: The role of journalistic photography in the (re)production of character-24

type. Brazilian Journalism Research, v. 2, n. 1, semestre 1, 2006, p. 143. Tradução nossa para: “[…] in the rare moments in which a woman is portrayed in her human totality, susceptible to ambiguities, ambivalence, and conditioned by socioeconomic structures (in the arts and in literature, for instance), such representations select or emphasize one of the narrative roles, from which is derived the figurativeness of a specific model of woman, with her manner of acting, looking, gesticulating or positioning, dressing, walking and adorning herself.”

Entrevista com a antropóloga Mirian Goldenberg, publicada na revista Crescer. Disponível em: <http://25

revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/1,,EMI276527-18514,00.html>. Acesso em: 29 jul. 2014.

Artigo publicado no portal Bolsa de Mulher. Disponível em: <http://www.mulher.com.br/bem-estar/essencia-26

feminina>. Acesso em: 29 jul. 2014.

Pergunta feita ao especialista em educação Içami Tiba, em entrevista publicada na revista Viver Brasil. 27

Disponível em: <http://www.revistaviverbrasil.com.br/impressao.php?edicao_sessao_id=56>. Acesso em: 29 jul. 2014.

Fala da psicóloga da Unimed Campo Grande, em release sobre o Dia da Mulher. Disponível em: <http://28

www.unimed.coop.br/pct/index.jsp?cd_canal=34473&cd_secao=34376&cd_materia=67713>. Acesso em: 29 jul. 2014.

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na base dos três (o casamento pode ser anulado se não for “consumado” e a maternidade

só prescinde do sexo quando a fertilização é in vitro). É quase como se o mais importante

para a mulher fosse o aspecto “social” da relação de casal – o ser “esposa” –, ficando o

sexo como um opcional, evidentemente desejável, mas que não afeta o principal e, portanto,

pode eventualmente ser assumido por outra mulher.

A configuração vista nos sintagmas acima se mantém caso se busque mais

exemplares deste tipo de frases sobre papéis femininos. Tal reiteração – que acaba por

constituir um discurso bastante reconhecido sobre a mulher na sociedade – justifica nossa

adoção destes termos para a identificação dos papéis que faremos adiante: “mãe", “esposa”,

“amante”, “profissional”. Haverá outros papéis além desses, que serão nomeados e

justificados no momento em que “emergirem” na análise dos anúncios.

Vale ressaltar que o papel de “esposa” será atribuído quando a mulher estiver

acompanhada de um homem em uma interação que sugira um relacionamento pessoal,

mesmo que não haja marcas de um “casamento”. Justificamos essa decisão pela

importância que tem o parceiro no status social feminino, como vimos pela ordem dos

papéis nos sintagmas. Os enunciados só manifestam uma concepção que é assumida até

mesmo pelas próprias mulheres. Para Anthony Giddens, “ao contrário da maioria dos

homens, a maior parte das mulheres continua a identificar a sua inserção no mundo externo

com o estabelecimento de ligações” , e aqui o autor se refere à perspectiva do casamento. 29

Na sociedade brasileira, isso parece se acentuar: “ter um homem” é tão importante que

chega a se constituir num tipo de capital muito valioso, o “capital marital” , termo proposto 30

pela antropóloga Mirian Goldenberg. E, assim como na economia, o valor de tal “recurso”

está justamente na sua escassez: haveria poucos “homens disponíveis” no mercado. Desta

forma, parece-nos que existe um percurso narrativo de base obrigatório para a mulher, que

é o casamento (formal ou não), o que transforma qualquer interação com o sujeito

masculino em uma virtualização dessa busca, que em alguns anúncios já estará atualizada.

O processo que descrevemos até aqui será realizado com todas as revistas, iniciando

por Veja. Por ordem de quantidade de anúncios neste corpus de análise semiótica, a

segunda revista a ser trabalhada será Claudia, e por último Exame. Para realizar esta etapa,

partimos do conjunto de anúncios resultante da seleção apresentada no capítulo anterior.

Agora, no entanto, trabalharemos apenas com os mais significantes em termos de produção

de sentido, abrindo mão daqueles muito parecidos entre si (variações de formato de um

mesmo anúncio, ou apenas variação de chamada) e dos que não apresentam uma

GIDDENS, A. A transformação da identidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (trad. 29

Magda Lopes). São Paulo: Editora da Unesp, 1993, p. 64.

GOLDENBERG, M. Corpo, envelhecimento e felicidade na cultura brasileira. Revista Contemporânea, Rio de 30

Janeiro, ed. 18, v. 9, n. 2, 2011. Disponível em: http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_18/contemporanea_n18_06_Mirian_Goldenberg.pdf. Acesso em: 9 set. 2014.

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configuração produtiva para os procedimentos analíticos.

4.4 A construção dos papéis sociais em Veja

A tentativa de denominar os ambientes encontra alguma dificuldade quando os

elementos figurativos permitem a descrição do espaço, mas não a sua identificação com

algum ambiente correspondente no mundo natural. O tipo do ambiente, porém, como já

dissemos, influencia no papel social assumido pelos sujeitos, especialmente quanto aos

diferentes graus de visibilidade, o que nos leva a considerar as tipologias deste regime na

classificação dos anúncios de tipo “locação”. Os procedimentos justificados nos anúncios

deste grupo em Veja, depois serão operados nas outras revistas.

Em “Jogos ópticos”, Landowski associa o termo “papéis” aos modos de apresentação

de si, correlatos a uma “segmentação espaço-temporal implícita dos percursos do sujeito” . 31

Estes modos de apresentação, expressos em um quadrado semiótico cuja categoria

fundamental opõe público e privado, caracterizam-se pela localização do sujeito em espaços

que proporcionam a ele diferentes graus de visibilidade, de acordo com o seu querer. Os

modos de apresentação, ou papéis, fazem parte de um “trajeto culturalmente

estereotipado” . No nosso trabalho, tais papéis são aqueles assumidos pelas mulheres. No 32

texto de Landowski, a título ilustrativo, o papel é o do ator, que dependendo do espaço que

ocupa, assume papéis públicos, papéis privados, publiciza seu papel privado ou privatiza

seu papel público.

Na tipologia dos papéis públicos ou privados do ator, algumas posições são

caracterizadas por espaços, e outras por ações: coxia e camarim (espaços diferentes para

diferentes ações), e palco (mesmo espaço para diferentes ações – representação e ensaio).

Nos apoiamos neste procedimento de Landowski para organizar os ambientes

representados nos anúncios do grupo “locação” (figura 2), já levando em conta também os

papéis sociais que emergem a partir da presença das mulheres nestes locais. Para isso,

consideramos tanto a identificação do ambiente, quando for possível (nossos “coxias” e

“camarins”) quanto as ações que nele se desenrolam (nossos “ensaios” e

“representações”) . 33

LANDOWSKI, 1992, p. 91.31

LANDOWSKI, 1992, p. 91.32

Vale ressaltar que, neste momento, tratamos da visibilidade das mulheres na narrativa do enunciado, e não na 33

situação de enunciação.

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!102

Figura 2 – representação gráfica dos regimes de visibilidade dos papéis sociais no contexto da tipologia de representação do espaço nos anúncios publicitários

Fonte: produção da autora.

4.4.1 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços

públicos (“representação”)

Papel “profissional”

Neste conjunto de anúncios, a mulher aparece majoritariamente no papel “profissional”

(figura 3a), conforme a terminologia que explicamos antes. Ela está em escritórios,

ambientes externos, na frente de edifícios comerciais, em viagens. Bem mais da metade

destas mulheres está usando calça. Em seguida vem o vestido e por último a saia, em

quantidade muito menor. De forma geral, a mulher no papel “profissional” veste calça e está

em pé, se movimentando, “fazendo” algo.

Papel “esposa”

Este é o segundo papel mais frequente. São anúncios onde a mulher está fisicamente

próxima de um homem, por vezes tocando-o ou sendo tocada por ele, de maneira a sugerir

um casal (figura 3b). Quando é possível identificar as atividades realizadas por estes casais,

elas são principalmente ligadas a situações de viagem ou consumo. A roupa mais utilizada

por estas mulheres também é a calça, depois o vestido e por último a saia. A distribuição, no

entanto, é mais equilibrada do que entre as mulheres “profissionais”. Neste papel, todas

estão se movimentando, como se o casal fosse “flagrado” no passeio ou nas compras.

Papel “independente”

O terceiro papel que mais aparece nos anúncios é o que chamaremos de

“independente” (figura 3c). Este termo soma-se aos demais no uso pelo senso comum e

refere-se à “mulher contemporânea”, que possui renda própria, faz as coisas

Locação Tela

Papéis sociais em espaços públicos (“representação”)

Papéis sociais em espaços privados

(“coxias”)

Papéis sociais na publicização do espaço

privado (“camarim”)

Papéis sociais na privatização do espaço

público (“ensaio”)

Cenário Estúdio

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!103

“sozinha” (viaja, dirige), pode gastar dinheiro com si mesma. Esta independência é

principalmente financeira, o que, no entender do senso comum, seria um fator que “intimida”

os homens e, portanto, afasta-os de um relacionamento sério com esta mulher. Assim como

os outros papéis sociais estereotipados que citamos antes, este também é recorrente nos

textos da imprensa que tratam da “dificuldade” em ser mulher atualmente. Um destes textos,

intitulado “A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo que um homem não

quer” , associa a independência com situações presentes nos anúncios do nosso corpus 34

em que a mulher está sozinha – viagem e consumo, especialmente. Por exemplo, ao

descrever um hipotético homem que aceitasse uma mulher deste tipo, a autora da crônica

imagina que ele falaria assim: “Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende

com o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer uma

viagem sozinha pelo leste europeu”. Neste papel de “independente”, as mulheres usam

calça e vestido em igual proporção. A saia não aparece. Elas estão geralmente se

movimentando ou fruindo o ambiente de lazer ou férias que são os mais frequentes nestes

anúncios.

Papel “mãe”

O papel de “mãe” aparece em quarto lugar, com apenas um exemplar a menos que o

papel anterior. Em cinco anúncios a mãe integra o simulacro de família nuclear tradicional –

casal heterossexual com crianças (figura 3d) –, e em dois deles somente ela e os filhos. Um

destes anúncios é protagonizado pela atriz Camila Pitanga. Apesar de sabermos que não

são seus filhos, evoca-se a temática maternal. A maioria das “mães” está “fazendo algo”,

MANUS, Ruth. A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo que um homem não quer. O Estado 34

de São Paulo, São Paulo, 18 jun. 2014. Disponível em: < http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/a-incrivel-geracao-de-mulheres-que-foi-criada-para-ser-tudo-o-que-um-homem-nao-quer/>. Acesso em: 9 set. 2014.

Figuras 3a, 3b, 3c e 3d – exemplos de anúncios que figurativizam mulheres nos papéis “profissional”, “esposa”,“independente” e “mãe”, respectivamente

Anúncios veiculados na revista Veja, edições (respectivamente) de 29/9/2011, 30/5/2012, 28/3/2012 e 2/5/2012. Fonte: as edições das revistas.

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especialmente em situações de viagem ou passeio. Elas vestem calça comprida, exceto por

duas delas, uma das quais usa saia (a atriz Camila Pitanga) e a outra usa vestido.

Gostaríamos de destacar um anúncio com a mulher no papel de “mãe”, que é o da

Ecorodovias (figura 4).

A “mãe” deste anúncio usa calça; está sentada no carro, no banco do passageiro, e

tem as pernas unidas, as costas retas, a postura tensa, de uma forma que não é a natural

nesta circunstância. Pode-se comparar com a postura relaxada do motorista, homem. Essa

oposição entre a disposição das pernas de homens e mulheres e da ocupação dos espaços,

reitera o que vimos no capítulo 1, sobre a

situação de constrição corporal das

mulheres nos espaços públicos, e que

está presente até mesmo na sinalética

de banheiros, como vimos na figura 1 do

capítulo 2: homem e mulher em pé, mas

ele de pernas separadas, ela de pernas

unidas.

Por fim, existem anúncios em que

nem o ambiente, vestuário ou a postura

chegam a sugerir algum tipo de papel.

Neles a mulher está sozinha, em

posição estática, olhando para o

observador. Ela não está “fazendo”

Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 13/6/2012. Fonte: a edição da revista.

Figura 4 – anúncio Ecorodovias: exemplo de postura constrita da figura feminina

Figuras 5a e 5b – anúncios que figurativizam mulheres no papel social “manequim”

Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 2/11/2011 e 12/10/2011.

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nada. Não por coincidência, os dois anúncios são do varejo de moda – uma loja de

departamentos (figura 5a) e um shopping (figura 5b) – e possuem as marcas enunciativas

da publicidade deste segmento de mercado. Considerando isso, definimos o papel destas

mulheres como “manequim”: um papel com função demonstrativa, e não o simulacro da

consumidora do produto anunciado. A postura das duas é bastante parecida: ambas estão

apoiadas em um assento alto, com um dos joelhos dobrados e o vestido levantado sobre

ele. Olham para o leitor com um meio sorriso, o corpo sinuoso e jogado para frente. Nos

anúncios da revista Claudia, este papel vai aparecer em configurações um pouco diferentes,

onde a relação entre a postura, o ambiente e a “função” da modelo se complexificam.

Trataremos destas outras configurações na seção em que apresentamos os anúncios desta

revista (4.5).

4.4.2 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços

privados (“coxias”)

Em oposição aos papéis públicos, os privados são assumidos nos espaços da casa,

sejam internos ou externos. No primeiro caso temos a sala onde a família se reúne ou

assiste TV e a cozinha. Em transição entre as áreas internas e externas, temos a varanda. E

na parte externa, o quintal ou a frente da casa – frequentemente em um estilo que lembra as

casas de subúrbio norte-americanas, sem portão ou cerca para separá-las da rua. Aqui os

tipos de papéis se distribuem mais uniformemente, sem diferenças quantitativas marcantes,

se formos comparar com os anúncios com espaços públicos.

Papéis “mãe”, “esposa” e “amante”

O papel que mais aparece é o de “mãe”, que no grupo anterior era minoritário. Estas

mães usam calça e vestido, com uma pequena preponderância da primeira peça. Em

termos de postura também não há uma maioria marcante, mas é interessante observar que

as “mães” cujos corpos estão mais soltos e relaxados são aquelas acompanhadas apenas

pelos filhos, sem a figura do “pai”/“marido”. Quando a configuração é a de família tradicional,

a mulher assume uma postura menos “confortável”.

Em termos quantitativos, a segunda posição é compartilhada pelos papéis de “esposa”

e “amante”. As “esposas” estão principalmente sentadas e usando calça; as “amantes” estão

principalmente deitadas e usando vestido. O papel de “amante” caracteriza-se pelo

ambiente, pela postura e pela expressão corporal e gestual que sugere uma mulher à

espera do parceiro sexual, seja numa relação conjugal ou não. Como vimos antes, a

denominação se pauta pelo resgate dos papéis atribuídos às mulheres nos discursos do

senso comum. Nestes discursos, há uma separação entre os papéis de “esposa”, “mãe” e

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“amante” como se a sexualidade feminina só pudesse se expressar em condições (e para

pessoas) muito específicas.

Ainda sobre os anúncios com mulheres no papel de “amante”, três deles são

assinados pela marca de relógios Lince (figura 6a). Nestes, a mulher está deitada no chão

com as pernas ou a cabeça apoiadas em uma cadeira, os braços para trás e o quadril

jogado para o lado, em uma postura sinuosa. É um grande contraste com as mulheres

deitadas/sentadas nos espaços públicos (“representação”), que usam calça e têm uma

postura mais alinhada e contida. Neste caso, intui-se a presença de um outro sujeito no

plano do enunciado e parece que essa virtualidade logo se atualizará no corpo do amante

esperado – e que bem pode ser o leitor, lembrando da equivalência estrutural entre o

ausente da imagem e os inumeráveis e anônimos enunciatários . O quarto anúncio com 35

“amante”, da MTV (figura 6b), mostra uma mulher em trajes e em postura que se costuma

associar à prática do sexo sadomasoquista. Se é diferente dos outros ao apresentar

nuances de humor e irreverência, assemelha-se ao estabelecer a interação entre a mulher e

um objeto, no plano do enunciado, que corresponde ao leitor, no plano da enunciação.

Os papéis com menos ocorrência no espaço privado são os de “manequim”, “dona-de-

casa” e o “independente”. Quanto ao último, contrasta com a presença no grupo anterior,

que era muito mais numerosa. Parece que a mulher “independente” é aquela do espaço

público, talvez sugerindo que os papéis preferenciais da mulher em casa são aqueles em

que está acompanhada, do marido e/ou filhos ou à espera do amante. Dentro de casa, ela

está absorta na leitura ou no uso do celular e veste calça comprida.

Um dos dois anúncios onde aparece a “dona-de-casa”, o do Sindigás (figura 7), é

LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002, 35

p. 134-135.

Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 21/12/2011 e 19/10/2011. Fonte: as edições da revista.

Figuras 6a e 6b – exemplos de anúncios com a mulher no papel “amante”

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emblemático por mostrar a função da roupa na figurativização das regiões brasileiras e da

posição hierárquica da mulher na casa. O anúncio

está dividido ao meio. Do lado esquerdo, uma

mulher de roupa leve e fluida, em uma cozinha que

apresenta figuras de rusticidade e natureza,

representa o Oiapoque, extremo norte do país. Do

lado direito, uma mulher de calça, em uma cozinha

com marcas de modernidade e organização,

representa o Chuí, o extremo sul do país. As

roupas, aqui, ajudam a tematizar duas concepções

sobre a diversidade brasileira: a espontaneidade

das regiões ao norte e a organização das regiões

ao sul. A roupa homologa valores de formalidade e

informalidade, e há mais marcas de sensualidade

na mulher do norte do que na mulher do sul. E

enquanto a mulher do sul apenas toca na tampa

da panela – poderia somente estar controlando o

cozimento feito por outra pessoa –, a mulher do

norte regula a chama do fogão e mexe com a

colher no que está sendo cozido. Ela é, portanto, a pessoa que está cozinhando.

4.4.3 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” com

privatização dos espaços públicos (“ensaio”)

A situação de privatização dos papéis públicos parece acontecer em ambientes

residenciais que possuem algumas marcas da sala – não a íntima ou de TV, onde se reúne

a família, mas aquela social, também chamada de living – ou no hall de entrada. O

enquadramento escolhido para mostrar estas salas não abrange sofás, mesas ou outros

móveis que normalmente servem para acomodar os convidados. O que vemos são

elementos de decoração sem personalização – por exemplo, vasos, mas não porta-retratos.

Uma figura interessante que compõe estes ambientes é a cômoda, móvel que também

poderia estar no quarto de dormir. Ou então, no boudoir, a antessala do quarto, que nas

casas das famílias mais abastadas dos séculos XVIII e XIX servia para a mulher receber e

entreter seus convidados. O boudoir, o hall de entrada e living são aposentos mais

“públicos” dentro da privacidade da casa. Ambos antecedem os aposentos que abrigam as

atividades mais íntimas da família (o living vem antes da sala de TV, o boudoir vem antes do

quarto de dormir).

Anúncio veiculado na revista Veja, edição 11/4/2012. Fonte: a edição da revista.

Figura 7 – anúncio Sindigás

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Voltando à cômoda, que parece ser um conector de isotopia entre o living/hall de

entrada e o boudoir, é interessante notar sua presença em mais de um anúncio, de

diferentes segmentos de consumo. Nestes ambientes em que há uma privatização dos

papéis públicos, na maioria das vezes a mulher está sozinha. E em todos os anúncios de

Veja deste segmento, os produtos vendidos são aqueles que podem servir como objeto de

valor de uso de um programa narrativo calcado na obtenção do status, ou da admiração das

pessoas que visitam a casa. São eles: TV por assinatura, cortinas, aromatizador de

ambientes. Todos poderiam servir para a fruição dos habitantes da casa, mas a situação do

enunciado sugere um fazer o outro crer no status ou no bom gosto dos moradores. O status

é uma faceta dos papéis públicos, que aqui são encenados no espaço privado da

residência. Ainda sobre a cômoda, ela é figura que tematiza uma certa época histórica e o

gosto de decoração associado a esta época, que é a corte francesa do século XVIII, pré-

Revolução, conhecida pelo luxo.

Papel “anfitriã”

Nestes anúncios com situação de privatização dos papéis públicos (“ensaio”) percebe-

se a diferença entre a mulher que cuida da casa para os moradores e daquela que cuida da

casa para o olhar dos visitantes. Neste último, a mulher é majoritariamente dona da casa, ao

invés de dona de casa, o que nos leva a definir este papel como o de “anfitriã” (figuras 8a e

8b). Tanto o arranjo de seu vestuário quanto da residência mostram uma preocupação em

parecer bem publicamente, mesmo que no ambiente doméstico. Como dissemos antes, um

dos programas narrativos deste papel é a busca pelo status social por meio de valores de

uso como uma casa bem decorada, cheirosa, ao gosto de lugares emblemáticos como

Paris.

Figuras 8a e 8b – exemplos de anúncios com mulher no papel de “anfitriã”

Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 12/10/2011 e 16/5/2012. Fonte: as edições da revista.

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Nestas situações, a grande maioria das mulheres usa vestido. Em alguns anúncios

deste grupo vemos roupas transparentes e uma postura sinuosa que projeta o quadril para

trás ou para o lado, o que sugere sensualidade. Porém, não há uma espera assumida pelo

parceiro sexual como se percebe nas mulheres no papel de “amante”. O convidado é

esperado e observado pelas persianas por uma mulher que quer ver, mas não quer ser vista

– assim como os sentimentos que talvez nutra por esse convidado. Evidentemente os

papéis na vida real são muito mais complexos do que é possível tratar em um exercício de

categorização. Mas, no exercício, privilegiamos o de “anfitriã”, aquele que estas mulheres

expressam na camada que reveste uma possível segunda intenção.

4.4.4 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” com

publicização dos espaços privados (“camarim”)

A situação de publicização dos papéis privados aparece em apenas dois anúncios do

tipo “locação”. Em ambos há um grupo de mulheres que parecem ser amigas,

compartilhando algum segredo, seja uma história, um relacionamento entre elas ou mesmo

as formas dos próprios corpos. São situações que as mulheres vivem normalmente entre

“amigas”, por isso denominamos desta forma o papel que assumem aqui.

No das jóias Vivara (figura 9a), elas usam saia, sentam-se muito próximas, uma

tocando a outra, sugerindo grande intimidade e uma aura de sensualidade. O da Levis

(figura 9b) apresenta um grupo de moças que poderia estar comparando os corpos em

relação a como a calça jeans valoriza cada um deles. Interessante observar que os jeans

com modelagem para mulheres de quadris – e glúteos – maiores vestem as modelos que

estão com a parte posterior mais visível ao leitor. Aqui a sensualidade é oferecida ao outro,

Figuras 9a e 9b – exemplos de anúncio com mulher no papel de “amiga”

Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 12/10/2011 e 30/11/2011. Fonte: as edições da revista.

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enquanto no primeiro anúncio ela é partilhada entre as moças, e essa partilha é, por sua

vez, ofertada, expressando um outro discurso do senso comum: a fantasia masculina de

observar (ou participar) de uma relação sexual entre mulheres.

4.4.5 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “tela”

A “tela” é o tipo de representação do espaço no anúncio que se opõe ao “locação”.

Enquanto a “locação” apresenta uma densa figurativização do ambiente e a interação do

sujeito com este ambiente ou com os objetos que o compõem, nos anúncios do tipo “tela” a

figurativização é mais rarefeita e não há uma tradução do ambiente do mundo natural com

grande quantidade de traços pertinentes. Assim, a chave para a identificação dos papéis

sociais femininos não pode se apoiar na relação com ambientes reconhecíveis e com

situações propostas pelo regime de visibilidade. Considera-se, então, outros elementos: as

roupas, os objetos portados pelos sujeitos e o texto verbal.

Papel “profissional”

O papel social feminino predominante nos anúncios de tipo tela é o “profissional” e a

roupa mais presente é a calça, depois o vestido e por último saia. Um anúncio com exemplo

de identificação pelo texto verbal é o da companhia aérea Azul, que nomeia a figura humana

por meio de uma legenda, como a que vemos na figura 10a: “Natália Passi, cliente Azul,

analista de planejamento, São Paulo - SP”. No anúncio do programa Encontro, a

identificação se dá pelo reconhecimento da figura feminina como sendo a jornalista Fátima

Bernardes (figura 10b). A identificação por meio de objetos associados a certas atividades

pode ser exemplificada pelo anúncio da Nextel, onde os apetrechos e o uniforme

figurativizam a profissão de chefe de cozinha (figura 10c).

Figuras 10a, 10b e 10c – anúncios Azul, Encontro e Nextel

Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 7/12/2011, 11/7/2012 e 26/10/2011. Fonte: as edições da revista.

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Papel “manequim”

O segundo papel mais presente é o “manequim”, figurativizado por mulheres com a

postura, o olhar ou o sorriso que identificamos neste papel em “locação”, e sem marcas de

outros papéis. Nos exemplares daquele grupo as mulheres usavam vestido. Aqui também

esta é a roupa mais presente, seguida pela saia. Reitera-se ainda o segmento das marcas

que assinam anúncios com mulheres neste papel, que é a área de moda (indústria ou

varejo).

Um dos anúncios com mulheres neste papel, da marca de sapatos Campesí

(figura11), oferece uma oportunidade de verificar a relação entre os corpos que usam saia e

aqueles que usam vestido. Da esquerda para a direita vemos uma gradação na exposição

do corpo feminino, relacionada ao comprimento do traje e à postura da moça (é a mesma

moça nas três situações, fotografada em trajes e posturas diferentes).

Os dois primeiros trajes são vestidos, sobrepostos por casacos. O vestido da ponta

esquerda é mais comprido e o blazer que o

cobre também. A moça tem os braços em

frente ao tronco, cobrindo a área do peito. O

traje do meio é um vestido mais curto, assim

como a peça sobreposta. Tal peça também é

mais aberta que a primeira, o que, conjugado

aos braços afastados da frente do corpo,

oferece maior exposição do tronco na altura

do peito. A exposição aumenta na figura

feminina à direita, que veste saia, camisa

entreaberta até a altura do vão entre os seios

e que está com um dos braços elevado, e o

outro ao longo do corpo. Além de ser mais

curta que os vestidos, a saia tem babados,

ornamento que destoa da plasticidade lisa

das outras duas peças. E enquanto nas

moças de vestido os sapatos têm cores mais

neutras e sóbrias, a que veste saia usa um

modelo vermelho. Este anúncio é um exemplo

da associação entre saia e sensualidade que

exploramos no capítulo 2.

Papel “esposa”

Os anúncios com mulheres no papel “esposa” e “independente” ocupam o terceiro

Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 7/3/2012. Fonte: a edição da revista.

Figura 11 – anúncio Campesí

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lugar em ocorrência neste grupo “tela”. As “esposas” usam calça e saia em igual quantidade.

Nesta configuração, a mulher do anúncio tende a olhar para o parceiro ou interagir com ele.

São poucos os exemplares onde a mulher acompanhada olha para o leitor. Nota-se,

também, uma aproximação maior dos olhares ou dos corpos do casal quando a mulher está

de saia. Podemos notar essa diferença em dois anúncios da operadora de viagens CVC

(figuras 12a e 12b), do lado direito, onde estão os “casais”. A mulher de calça olha para

frente (assim como o homem), a de saia olha para o companheiro. Os dois homens abraçam

suas companheiras, mas de formas diferentes: a mulher que está com os braços para frente

e é abraçada por trás tem uma situação corporal mais livre; a que está sendo abraçada pela

cintura, e que tem um dos braços para trás, está mais presa. Nota-se, inclusive, que seu

ombro é elevado por este abraço, sugerindo uma interação não muito confortável. A primeira

mulher está de calça, a segunda está de saia.

Papel “independente”

No grupo “locação”, as mulheres no papel “independente” estavam principalmente em

situações de lazer ou viagem. Apareceu apenas um exemplar com a mulher em ato de

consumo, situação que, neste grupo “tela”, é predominante. O tema consumo é

figurativizado diretamente por objetos portados por estas mulheres, como uma cesta de

compras de supermercado, um cartão de crédito e uma sacola de loja; e indiretamente, pela

felicidade da mulher ao saber da construção da fábrica da Hyundai no Brasil e pelo sorriso

de satisfação da usuária dos serviços de telefonia da Vivo. Nestas situações, a calça é

predominante e depois vem o vestido.

Reforçamos aqui a justificativa para atribuição de um papel chamado “independente”

e, para isso, exemplificamos com o anúncio assinado pela incorporadora Invespark (figura

Figuras 12a e 12b – anúncios CVC

Anúncios veiculados na revista Veja, respectivamente nas edições de 2/11/2011 e 26/10/2011. Fonte: as edições da revista.

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13). A mulher aqui é simulacro do destinatário-

consumidor, público-alvo do anúncio, e possui a

competência financeira para adquirir um imóvel,

uma das maiores conquistas da “mulher

independente”. Como vimos anteriormente, tal

condição caracteriza-se especialmente pelo

acesso ao consumo e pelo “morar sozinha”.

O anúncio da Hyundai (figura 14), assim

como outros que já descrevemos, também

possibilita o apontamento da relação entre

roupas e posturas e entre as posturas

masculinas e femininas. As duas mulheres e o

homem estão com os braços levantados, em

sinal de comemoração. Mas ele está alinhado

com o eixo do corpo e seus dois pés, que calçam

tênis, apoiam-se no chão. As mulheres, por sua

vez, têm o eixo corporal desalinhado ao “jogar” o

quadril para um dos lados; os joelhos estão

dobrados – para trás na mulher de calça, para

frente na mulher de vestido – e os pés estão fora do chão, vestidos em sapatos de salto,

Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 2/11/2011. Fonte: a edição da revista.

Figura 13 – anúncio Invespark

Figura 14 – anúncio Hyundai

Anúncio sequencial veiculado na revista Veja, edição de 14/12/2011. Fonte: a edição da revista.

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colocando-as em situação de marcante desequilíbrio. Interessante notar, também, que a

Hyundai promove neste anúncio a construção de sua fábrica no Brasil. Ou seja, ela estará

mais perto dos brasileiros, para que seus produtos sejam consumidos por nós. O brasileiro

consumidor aqui é figurativizado pelo homem que veste camisa verde e amarela e calça

azul. As mulheres, por sua vez, trazem roupas nas cores da Hyundai, figurativizando não só

uma parcela do público-alvo, como também a marca que será consumida.

Papel “mãe”

A mulher no papel de mãe é a que menos aparece neste grupo. Ao contrário das

“mães” do grupo “locação”, aqui elas usam especialmente o vestido. Duas delas estão nos

anúncios da CVC que vimos antes (figuras 12a e 12b). Nestes anúncios até mesmo as

crianças reiteram as diferenças posturais de homens e mulheres: o menino está com o eixo

vertical aprumado e não rotacionado; a menina, por outro lado, tem o corpo meio

rotacionado, as mãos na cintura, o quadril projetado para frente, a cabeça inclinada, os

joelhos flexionados e os pés em ponta.

Outra “mãe” de vestido aparece no anúncio da marca de automóveis Mitsubishi (figura

15), que vende um modelo esportivo da marca, conforme diz o texto verbal: “espírito de um

esportivo para a família inteira”. Mas a única pessoa “esportiva” no anúncio é o homem/pai,

que veste roupas de corrida; por carregar todos nas costas, supomos que seja um homem

forte; a mulher e as crianças vestem roupas não-esportivas. Ela, inclusive, está com um

sapato de salto alto e bico fino.

Figura 15 – anúncio Mitsubishi

Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 6/6/2012. Fonte: a edição da revista.

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4.4.6 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “estúdio”

“Locação” e “tela”, tratados até agora, ocupam posições contrárias no eixo superior

dos tipos de representação do espaço. As posições do eixo inferior são o “cenário” e o

“estúdio”. Relembrando, “estúdio” é a posição contraditória à “locação” e implicada pelo

“tela”. Seu plano de fundo, portanto, caracteriza-se por uma baixa figuratividade (quase

abstração), mas que exibe marcas de algum ambiente, ou melhor, do tipo de ambiente

neutro usado pelos fotógrafos em seus estúdios, a exemplo do fundo infinito. Há uma

interação do sujeito com algum objeto do ambiente, que normalmente é um elemento que

serve de apoio ou assento. Por trazerem características dos tipos de espaço com os quais

são implicados, cujos critérios para identificação do papel social feminino já foram

estabelecidos, a classificação nos anúncios destes termos inferiores – “estúdio” e “cenário” –

torna-se mais objetiva. Seguindo a ordem de apresentação das análise, começamos pelos

papéis no tipo “estúdio”.

Papel “manequim”

Nos grupos anteriores, não havia figuras femininas neste papel trajando calça. Aqui

esta roupa aparece, mas o vestido ainda é predominante. Destaca-se, mais uma vez, a

configuração corporal associada à iconografia da moda, incluindo a postura, o gestual e a

expressão facial que figurativizam o erotismo. Apesar de o anunciante ser deste segmento –

um shopping center –, o público-alvo do anúncio do Golden Square (figura 16a) não é o

consumidor, mas o investidor ou lojista: o material foi publicado em agosto de 2011,

Figuras 16a e 16b – anúncios Golden Square e Mitsubishi

Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 24/8/2011 e 11/7/2012. Fonte: as edições da revista.

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anunciando a inauguração para novembro de 2012. Neste anúncio, a legenda nos informa

que a mulher é a modelo Alessandra Ambrosio. Seu papel demonstrativo, de “manequim”,

sobrepõe-se ao profissional, que na vida real seria justamente o mesmo.

O erotismo aparece ainda no anúncio da marca de automóveis Mitsubishi (figura 16b).

A mulher ali presente não figura o público-alvo, mas sim o luxo, ou a luxúria, indicados na

chamada, já que o rinoceronte que a carrega figurativiza, por sua vez, o 4x4 indicado no

mesmo texto verbal. O chifre do animal, de forma fálica, também conduz para uma

tematização da luxúria, assim como a abundância de tecido, que parece ser uma voluptuosa

seda vermelha, jorrando da parte posterior do corpo feminino.

Nos anúncios da marca de sapatos Usaflex (17a e 17b), as mulheres não trazem de

maneira tão marcante as posturas e a gestualidade da iconografia da moda, até porque o

objetivo da empresa é mostrar “mulheres de verdade”, ou seja, mulheres que não

necessariamente seguem os “padrões de beleza” publicizados por diversos produtos

midiáticos . Mas também não há marcas que sugiram qualquer um dos papéis sociais que 36

A chave para tal leitura é a campanha da marca de produtos de cuidados pessoais Dove. Dove percebeu a 36

demanda por uma representação com maior efeito de verdade em relação à diversidade de corpos femininos e inaugurou um posicionamento inovador nesta indústria, ao colocar em seus anúncios mulheres que destoavam um pouco (mas não em essência) do simulacro de corpo feminino que se costuma classificar de “padrão de beleza” (jovens, brancos, magros, altos, de cabelos longos e lisos). Dove apresentava mulheres com mais curvas, corpos não tão proporcionais, modelos negras, ruivas, loiras etc. Apesar disso, nenhuma delas poderia ser chamada de “feia”, o que as coloca relativamente de acordo com os padrões questionados pela campanha.

Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 7/3/2012 e 2/5/2012. Fonte: as edições da revista.

Figuras 17a e 17b – anúncios Usaflex

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apareceram até agora. Evidentemente,

não é este o motivo que nos leva a

inclui-las entre as “manequins”, mas sim

o fato de que estão ali para figurativizar

uma diversidade de consumidoras,

especialmente consumidoras que

buscam “permissão” para desobedecer

as prescrições de beleza em termos de

sapatos, optando por modelos mais

confortáveis e menos “fashion” (como

são os sapatos de salto, ou de bico

fino). São, portanto, mulheres que

demonstram, uma característica deste

papel que estamos chamando de

“manequim”.

Nestes anúncios vemos mulheres de várias idades e com diferentes biotipos. As

mesmas mulheres estão nos dois anúncios, mas não com a mesma roupa, e algumas

trocam de posição. No anúncio em que vestem roupas claras, há três módulos no qual se

apoiam, sejam sentadas ou em pé. Naquele em que vestem roupas de tons azuis, há

apenas uma poltrona. Algumas estão sentadas nela, outras apoiadas e outra em pé, atrás.

A mulher mais jovem está na frente do anúncio, sentada ou apoiada, nas duas

versões. Em uma ela usa vestido, tem as pernas uma na frente da outra, uma mão na

cintura com o polegar e dedos para frente e outra apoiada no colo. No outro, usa calça, tem

as pernas cruzadas, uma mão apoiada na parte alta da coxa e outra na mesma perna, mais

próxima do joelho. Nas duas posturas, sua posição é frontal e há uma boa visão do seu

corpo. A outra posição da frente do anúncio é ocupada por mulheres diferentes, dependendo

da versão. Mas em ambos os casos, quando estão na frente, usam vestido. Quando estão

atrás, usam calça (ou bermuda, no anúncio com as roupas em azul). A mulher que

apresenta o maior corpo, tanto em peso quanto em altura, permanece atrás nos dois

anúncios, mas está um pouco mais visível naquele em que usa vestido. No anúncio em que

todas vestem azul, as duas mulheres das extremidades têm as mãos na cintura, do jeito

tradicional: dedos para frente, polegar para trás. A forma como a mão é colocada na cintura

parece sugerir o quanto de sensualidade que se quer reforçar ou atenuar. Aqui, a mulher

mais jovem, com roupa que mais expõe o corpo – o vestido curto – tem as mãos na cintura

de um jeito menos sensual; já as mulheres mais velhas que vestem roupas que expõem

menos o corpo – calça comprida e vestido longo – têm as mãos na cintura do jeito mais

“sensual”. O objetivo deste jogo de mão talvez seja equilibrar a sensualidade das roupas e

Figuras 18a e 18b – anúncios Avon e TRESemmé

Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 20/6/2012 e 15/2/2012. Fonte: as edições da revista.

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do próprio corpo feminino, de acordo com a idade.

Papel profissional

No papel “profissional” encontramos tanto a mulher figurativizada como trabalhadora

de um determinado setor (figura 18a) quanto atrizes e modelos que endossam produtos

(figuras 18b, 19a e 19b). Estas não estão “representando” um determinado papel e nem o

simulacro do público-alvo. Sua presença justifica-se pela profissão que exercem no mundo

“real” e que está verbalizada nestes anúncios – diferente do que ocorre em outros

exemplares, quando a simples função de “demonstradora” assumida pelas celebridades nos

anúncios sugere o papel de “manequim”, e não o “profissional”.

Neste papel, o uso da calça e do vestido distribui-se igualmente. Todas as mulheres

estão sentadas e olhando para o leitor, mas duas o fazem de maneira oblíqua e com um

meio sorriso no rosto: a modelo Gisele Bündchen e a atriz Nathalia Dill, respectivamente nos

anúncios da Sky (figura 19a) e dos relógios Orient (figura 19b). A postura de ambas é

bastante similar: pernas cruzadas, um braço apoiado sobre os joelhos, o cotovelo do outro

braço apoiado sobre o primeiro, a mão tocando o rosto na altura do queixo. Na parte de

cima, os dois trajes possuem decote em V cujo vértice desce até o meio dos seios, de

maneira mais profunda no traje de Nathalia Dill. Se formos comparar aos anúncios dos

relógios Lince, integrantes do grupo “locação” – situação de “papéis privativos”, temos uma

reiteração da temática do erotismo neste segmento de produto.

Figuras 19a e 19b – anúncios Sky e Orient

Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 6/6/2012 e 2/5/2012. Fonte: as edições da revista.

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4.4.7 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “cenário”

O grupo cujo tipo de representação de espaço é o “cenário” (figuratividade normal e

sem interação/proximidade com objetos de um ambiente do mundo natural) possui apenas

três exemplares, um com a mulher no papel “profissional” (figura 20a), e outros dois, de uma

mesma marca de tênis (figuras 20b e 20c), no papel “independente”. A figura masculina está

figurativizando a diversidade de modelos da marca e não há contato com a mulher de forma

a sugerir a constituição de um casal; também não se encaixa no papel “manequim” porque a

moça não é uma demonstradora. Ela figurativiza o simulacro da consumidora, a quem é

atribuída a competência da inteligência de fazer boas escolhas de consumo.

Quanto à roupa, a calça comprida é usada pelas três mulheres. Nota-se que a mulher

profissional, no anúncio dos Colégios Maristas, apresenta uma postura mais parecida com

as masculinas que temos visto até então: corpo alinhado no eixo vertical, apenas uma leve

angulação do quadril provocada pela perna estendida ao lado e um pouco à frente. Tal

postura, com pouca ou nenhuma marca de sensualidade, combina com o perfil religioso do

anunciante e com outros papéis desta mulher mencionados no texto verbal: é casada e mãe

de duas filhas. Sua organização corporal difere daquela adotada pela mulher no anúncio do

tênis Kolosh (na versão em que está em pé), que apresenta o quadril projetado para frente,

joelhos flexionados e o rosto virado em rotação diferente da do resto do corpo.

4.4.8 Roupas diferentes no mesmo anúncio: observação de aspectos significantes

Nas análises trabalhadas até agora, verificamos os papéis sociais e as roupas que

Figuras 21a, 21b e 21c – anúncios Colégios Maristas e Kolosh

Anúncios veiculados na revista Veja, edições de 17/8/2011, 14/3/2012 e 18/4/2012. Fonte: as edições da revista.

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ocorrem nos anúncios dos quatro tipos de representação do espaço. Alguns destes

anúncios apresentam mais de uma mulher e mais de uma peça de roupa (considerando o

paradigma saia, vestido e calça), como o da Sindigás (figura 7 deste capítulo), onde

aparecem duas mulheres: uma de calça e outra de vestido. Tal estratégia parece expressar

um desejo do enunciador-destinador em mostrar diversidade: do público-alvo consumidor de

seus produtos, dos próprios produtos ou para ilustrar a proposta de valor oferecida ao

destinatário. Nestes casos, cada roupa e/ou pessoa, portanto, significa em relação à outra.

De fato, no anúncio mencionado o enunciador utiliza a diversidade para mostrar que atende

de norte a sul do país, e esta oposição é figurativizada pela oposição entre os biotipos e

trajes das duas mulheres. Além disso, a presença de mulheres usando diferentes peças de

roupa no mesmo anúncio permite comparar posturas, gestualidades e expressões faciais

associadas a cada traje. Diante do potencial significante de enunciados deste tipo,

selecionamos alguns deles para uma exploração mais detalhada. Para facilitar, chamaremos

estes anúncios de “mistos”.

Anúncio TAM (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)

O mais emblemático destes anúncios “mistos” talvez seja um sequencial da

companhia aérea TAM (figura 21). Em quatro páginas duplas e uma simples, a empresa

Anúncio sequencial veiculado na revista Veja, edição de 4/7/2012. Fonte: a edição da revista.

Figura 21 – anúncio TAM

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apresenta suas vantagens em textos verbais acompanhados por imagens dos passageiros

nos aviões, mas não dentro: eles estão no “céu”, sentados ou apoiados nas asas, em

relação desproporcional entre o tamanho humano e o da aeronave.

Quatro homens e duas mulheres (no papel “profissional”) ilustram o anúncio. Uma

delas está na primeira página dupla, acompanhada por um rapaz, um em cada asa. Ele está

sentado com as pernas cruzadas, em posição de “índio”. Seu corpo pende levemente em

direção à fuselagem do avião, tocando-a com o cotovelo. A mulher, de calça e sapatos

fechados de saltos grossos, está de cócoras, um pouco de lado, e seu equilíbrio depende

totalmente do apoio da parte de trás do corpo na fuselagem. Esta página fala dos serviços

de conectividade a bordo, e ambos carregam equipamentos de comunicação: ele um

telefone celular (provavelmente um smartphone), ela um tablet. A roupa dele é mais

informal; a dela, pelo sapato de salto, sugere mais formalidade. Se os serviços de

conectividade são benefícios importantes para passageiros em viagens pessoais e viagens

profissionais, o rapaz parece figurativizar o primeiro caso, e a mulher o segundo.

A segunda página dupla fala do programa de milhagem da companhia. Um homem em

trajes profissionais e um rapaz em trajes informais estão sentados, lado a lado, sobre a

fuselagem do avião. Parecem confortáveis e equilibrados. O rapaz usa tênis, bermuda e

carrega uma mochila, bagagem que figurativiza um tipo muito específico de viajante, o

“mochileiro”. O mochileiro viaja com pouco dinheiro e procura sempre os serviços mais

econômicos, ou com a melhor relação custo-benefício. O homem usa terno azul e gravata

da mesma cor. Se formos comparar com o homem de terno da página seguinte, tanto em

termos de traje quanto de postura, veremos que este aqui parece mais “simples”. O homem

de terno azul viaja por motivos profissionais, e é o oposto do mochileiro, que viaja por

motivos pessoais. Mas a passagem do homem de terno, mesmo viajando a trabalho,

também é paga por ele mesmo ou por sua pequena empresa. Daí a importância de

benefícios econômicos como as passagens adquiridas com milhas.

O homem da terceira página dupla está em pé, tocando na parte traseira do avião

apenas com as mãos, sem se apoiar. Ainda que também vista terno, parece ser de um nível

hierárquico ou socioeconômico superior ao do passageiro da página anterior. As marcas

disso são a combinação de cores do terno e da gravata, os cabelos grisalhos, o sorriso mais

convencional, a pasta, a postura mais rígida e composta. Ele figurativiza o sujeito que tem

por objeto de valor a pontualidade, a frequência e a regularidade dos voos. Provavelmente é

proprietário ou executivo de uma grande empresa. O preço da passagem, para ele, não é o

mais importante. Tanto este homem sozinho quanto os que estão sentados juntos foram

posicionados próximos à marca TAM impressa na aeronave.

A segunda mulher do anúncio aparece na quarta página dupla, sentada na asa do

avião e de coluna reta, apoiando as costas na fuselagem, assim como a mulher da primeira

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página. Ela usa uma sandália de salto alto e fino e saia-lápis. A saia, quando a mulher está

em pé, provavelmente vai até a altura do joelho, mas “sobe” para o início da coxa quando

ela se senta. A posição das pernas é a mesma dos anúncios onde as mulheres de vestido

estão em assentos mais baixos: joelhos unidos e tornozelos separados, para o lado e para

trás, sugerindo que se poderia ver o entremeio das pernas desta mulher se ela estivesse de

frente para nós. Tal postura permite que ela apoie o computador portátil sobre as pernas

para poder trabalhar.

O traje desta mulher contraria todas as recomendações dos manuais de elegância que

vimos no capítulo 2. Primeiro, a mulher está viajando de saia; esta saia é bastante justa e de

cor clara; usa sandálias de salto; está sem meias. A sensualidade expressa neste traje

contraria o conselho que se costuma oferecer às mulheres profissionais: que não devem

chamar a atenção para o próprio corpo. E a última coisa que se pode dizer deste modelo de

saia – contrariando a opinião de Inês de Castro –, é que seja “confortável”.

Nesta página que apresenta esta mulher, o benefício explorado não é relativo a

aspectos específicos da viagem – conectividade, milhas, pontualidade –, mas a facilidade

em se contratar os serviços da empresa, especialmente pela internet. Enquanto a

conectividade, valor proposto na página em que a mulher está de calça, faz parte de um

programa narrativo de uso em que a competência é o “poder”, a facilidade é um valor

relacionado à competência de um “saber”, ou seja, qualifica o sujeito como não-conjunto

com um saber usar a internet com facilidade.

Ainda em termos comparativos, mesmo que as mulheres usem roupas vermelhas

como a marca TAM, não se vê o logotipo nas situações em que a mulher aparece.

Comparando a mulher de calça e a de saia, a primeira está vestida de maneira mais

informal; usa sapatos fechados de salto grosso; está numa posição menos sedentária e não-

usual; uma de suas mãos está livre; seus cabelos são curtos e crespos. A segunda veste-se

de maneira mais formal; usa sapatos abertos de salto alto e fino; tem as duas mãos

ocupadas com o notebook, que está apoiado em seu colo, dificultando o movimento; seus

cabelos são lisos e compridos. Enquanto a mulher de calça parece ter a liberdade para se

levantar e mudar de posição a qualquer momento, a mulher de saia está mais “presa”.

Anúncio CCR (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)

Outro anúncio bastante interessante para observar a relação entre a postura corporal,

gestualidade e roupa é o da empresa CCR (figura 22), concessionária que administra

algumas das principais rodovias brasileiras. A peça mostra alguns trabalhadores da empresa

dispostos de maneira a formar uma seta inclinada, que começa no canto superior esquerdo

da página dupla e vai até o canto inferior direito, ou seja, aponta para o logotipo da

companhia. Podemos perceber o formato de seta porque o enunciador nos coloca num

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plano superior. Vemos essas pessoas de cima, e elas estão com a cabeça levantada,

olhando para nós. Das 10 pessoas, duas vestem roupas associadas ao trabalho em

escritório, enquanto as outras usam trajes de trabalho “de campo” – socorro, sinalização,

construção, limpeza, segurança. Dentre as 10, três são mulheres. Duas mulheres vestem

macacão, um uniforme sugestivo do trabalho “de campo”. Uma delas tem uma mão na

cintura e o outro braço ao longo do corpo; a outra, está de braços cruzados. Desta última

podemos ver os sapatos, que são escuros, fechados e pesados. Apesar de realizarem um

trabalho talvez mais sujeito a situações de risco, ambas têm os cabelos soltos (podem

enroscar, atrapalhar a visão, ficar presos etc.).

Enquanto as duas mulheres de macacão posicionam-se na parte da seta que “aponta”,

a terceira mulher está no eixo da seta, no final. Ela usa roupa de escritório – tailleur de saia,

camisa de botão, écharpe e sapato de salto com bico fino. Os cabelos estão presos e suas

mãos estão cruzadas à frente do corpo. Se a mão na cintura e os braços cruzados que

vemos nas mulheres de macacão sugerem, respectivamente, desafio e imposição de limites,

a posição das mãos da mulher de saia nos faz pensar em espera, disponibilidade e

aquiescência. A saia, aqui, é a roupa do trabalho de recepção, passivo, enquanto o macacão

é a roupa do trabalho ativo – de alguém que tem chefe ou superiores, mas sabe de antemão

Anúncio veiculado na revista Veja, edição de 7/9/2011. Fonte: a edição da revista.

Figura 22 – anúncio CCR

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o que precisa fazer e não precisa “esperar” pelas ordens. O tailleur de cor sóbria, as mãos

unidas na frente do corpo e os cabelos presos ajudam a compor uma postura mais contida,

mais tensa, e estão alinhados aos conselhos do capítulo 2. Já os macacões de cores

vibrantes, os cabelos soltos e as mãos na cintura ou os braços cruzados ajudam a compor

uma postura mais relaxada, confortável, de movimentação latente.

Anúncio Cesumar (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)

A relação entre a roupa e a postura dos

braços também é interessante no anúncio da

faculdade Cesumar (figura 23). Duas moças

ladeiam um rapaz e os três andam pelo campus. A

moça do lado esquerdo, de vestido, carrega os

livros de lado, na altura do peito. Um dos braços

passa em frente ao corpo para ajudar a apoiar os

livros. A moça do lado direito, de calça, carrega

uma bolsa a tiracolo, que deixa suas mãos livres.

Ela está de “peito aberto”, relaxada, enquanto a

outra “se protege” e fica mais tensa, até pela força

necessária para carregar os livros.

Esta s i tuação de l iberdade corporal

relacionada à calça e constrição relacionada à saia

ou ao vestido que vemos aqui, reitera aquela dos

anúncios da TAM e da CCR que vimos de logo

antes: nos três casos, a mulher de calça tem as

mãos livres e pode se movimentar com mais

liberdade, enquanto a mulher de saia/vestido tem as mãos ocupadas e assume uma postura

mais rígida. Repete-se também a relação entre a roupa e o tipo de cabelo presente no

anúncio da TAM: a mulher de vestido tem cabelos lisos; a de calça, cabelos crespos.

Anúncio Banco do Brasil (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)

Outro anúncio onde a roupa parece homologar papéis sociais diversos é o do Banco

do Brasil (figura 24), que apresenta uma espécie de antes-e-depois da contratação de

crédito empresarial por uma loja. Tanto no “antes” como no “depois” a mulher no papel

profissional usa calça comprida. As mulheres de saia e vestido são as manequins da vitrina,

que estão, obrigatoriamente, “imóveis”, enquanto a proprietária (antes) e a funcionária

(depois) movimentam-se, fazem algo. As manequins de saia trazem, como já vimos em

outras situações, os braços à frente do corpo. A manequim de vestido está com os braços

Anúncio veiculado na revista Veja, edição 26/10/2011. Fonte: a edição da revista.

Figura 23 – anúncio Cesumar

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soltos, ao longo do corpo ligeiramente projetado à frente, num eixo diagonal. As mulheres de

calça estão mais de lado; as manequins de saia e vestido, mais de frente.

Anúncio Havan (grupo “locação”, situação de papéis públicos - “representação”)

Anúncio veiculado na revista Veja, edição 14/9/2011. Fonte: a edição da revista.

Figura 24 – anúncio Banco do Brasil

Anúncio veiculado na revista Veja, edição 21/12/2011. Fonte: a edição da revista.

Figura 25 – anúncio Havan

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Neste exemplar podemos observar a relação entre a direção do olhar da mulher

acompanhada, dependendo da roupa que usa. O anúncio da loja de roupas Havan (figura

25) mostra dois casais e um homem andando em uma praia, talvez na manhã de Ano Novo,

pelo branco predominante dos trajes e porque um dos sujeitos carrega na mão uma garrafa

de espumante.

Pela proximidade dos corpos, o homem solteiro parece ser aquele que está no meio.

No casal da esquerda, a mulher usa uma saia que parece ser longa – o anúncio é cortado

na altura do seus joelhos, mas a saia continua. Ela está um pouco à frente do seu

companheiro e do outro rapaz e todos olham diretamente para nós. Já o outro casal está um

pouco atrás do trio. Neste casal, a mulher usa um vestido curto, deixando ver um pedaço da

perna antes do limite do anúncio. Ao contrário da sua amiga, ela não olha para nós, e sim

para o companheiro, que também olha para ela. Nos anúncios que vimos antes, é recorrente

a situação em que mulheres acompanhadas e usando vestido ou saia mais curtos não

olham para frente, e sim para o companheiro. Esta moça do anúncio da Havan também é

mantida afastada dos outros três integrantes do grupo. Só quem tem contato com ela é o

seu companheiro.

Anúncio Globo Comunidade (grupo “tela”)

Finalizamos esta parte com um anúncio

“misto” do grupo “tela”. A relação entre os

gestos de proteção do corpo e a roupa

também é aparente na publicidade do

programa de televisão Globo Comunidade

(f igura 26), com mulheres em papel

“profissional”. Das quatro figuras femininas,

podemos ver três com clareza, sendo duas

usando calça e com os braços na lateral do

corpo. Tais braços estão soltos ou na cintura,

mas de qualquer forma não cobrem o peito,

como fazem na mulher que usa vestido, na

ponta esquerda. A figura que não fica

totalmente visível está na parte central do

grupo de pessoas, e também tem os braços

cruzados. Não conseguimos ver totalmente

seu traje, mas percebemos que não é uma

calça. Anúncio veiculado na revista Veja, edição de

31/8/2011. Fonte: a edição da revista.

Figura 26 – anúncio Globo Comunidade

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4.5 A construção dos papéis sociais em Claudia

Uma primeira observação do conjunto de anúncios veiculados na revista Claudia

mostra a predominância de um tipo de organização de espaço e figuras humanas que

remete ao papel que denominamos como “manequim”. Como vimos em relação aos

anúncios de Veja, este papel se caracteriza pela mulher “posando”, estática, sem

configuração postural que indique a realização de alguma atividade – o que chamamos de

“não estar fazendo nada” –, sem a figurativização de um ambiente reconhecível e sem

outras marcas que sugeriam algum papel. Ela tem uma função “demonstradora” e, com

alguma frequência, as expressões corporais e faciais tematizam a sensualidade. Vimos,

também, que a maior parte dos anúncios com mulheres neste papel era assinada por

marcas do segmento de moda (indústria ou varejo).

Em Veja, estes segmentos não se destacavam mais do que outros. Porém, em

Claudia, como é tradicional nas revistas ditas “femininas”, os anunciantes de moda

aparecem em número bem maior. A quantidade de exemplares acabou mostrando a

ocorrência de anúncios em que as mulheres estão na configuração postural que associamos

ao papel “manequim”, mas atuam em ambientes identificáveis. Esta característica dos

ambientes, como visto antes, foi considerada como forte traço constitutivo do papel social

das mulheres que neles se inserem. Sendo assim, o que faz com que seja atribuída a

classificação “manequim” a mulheres com a configuração corporal deste papel, mas que

estão englobadas por um ambiente que poderia sugerir outro papel? Podem nos ajudar aqui

as caracterizações dos diferentes regimes de encenação do corpo na fotografia propostos

por Eric Landowski e Erving Goffman.

Em Gender advertisements , Goffman apresenta um estudo sobre os modos de 37

representação de homens e mulheres na publicidade a partir da análise da configuração

postural e interação entre os sujeitos nas fotografias dos anúncios. O antropólogo parte de

um conceito originário de estudos do reino animal – o display – para falar dos modos de

comportamento que adotamos para mostrar aos outros nossa identidade social, humor,

intenções, o que acaba por basear as interações e contratos entre os indivíduos. No

entanto, ao contrário do que acontece com os animais, os displays humanos não são

“instintivos”: eles são aprendidos e socialmente condicionados e moldados. É o que os faz

serem reconhecidos quando manifestados em diversos produtos culturais, como a

publicidade, auxiliando a definir a identidade social das figuras humanas nos anúncios e

reforçando os comportamentos na “vida real”.

Antes de tratar dos displays que compõem o corpus de sua pesquisa, Goffman discute

os diversos tipos de configuração da fotografia, a começar pela distinção entre a fotografia

GOFFMAN, E. Gender advertisements. Nova York: Harper Torchbooks, 1987 (edição original 1976).37

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privada, feita para circular entre aqueles presentes na foto ou no evento registrado , e as 38

fotografias públicas, assim designadas por captarem a audiência de pessoas não

conectadas a outras por relacionamentos ou interações pessoais, mas que compartilham o

mesmo alcance de apelo (por exemplo, o mercado ou jurisdição política). Neste segundo

caso, normalmente a fotografia não é o produto final, é o primeiro passo na reprodução de

revistas, livros etc. Uma fotografia deste tipo é a “fotografia comercial” usada por um

anunciante para vender produtos. Ou seja, a fotografia publicitária.

Ainda tratando da classificação proposta por Goffman, as fotografias se diferenciam

pelo modo como se comportam os modelos quando são registrados pela máquina: “retrato”,

quando o modelo posa, ou “flagrante”, quando os modelos não sabem que estão sendo

fotografados ou não se importam. Sejam os “flagrantes” espontâneos ou construídos,

autênticos ou falsificados, sempre se trata de uma cena (“slice of life”, ou “cenas da vida”),

da representação de eventos que estão acontecendo, onde um antes e um depois podem

ser inferidos e onde o local onde se desenrola a ação contribui para o contexto tanto quanto

os modelos e os demais objetos “cênicos”. Fotografias deste tipo diferenciam-se dos

“retratos”, onde a ação é ausente e não se pode dizer que há uma cena acontecendo.

Representa-se principalmente um sujeito e não um acontecimento . 39

Uma das características dos “retratos” é o sujeito com olhar sem expressão, ou uma

expressão congelada. Quando esse gênero aparece em fotografias comerciais que

apresentam um indivíduo e um produto, este olhar frequentemente dá lugar a um outro que

não parece estar alheio ao que acontece em volta: ele pode ser fixo ou conspiratório, como

se estivesse tentando estabelecer algum contato visual com o leitor do anúncio; pode ser

um olhar que aceita passivamente ou que se defende da “intrusão” do leitor; pode, ainda,

ser aquele que tenta chamar a atenção de outra pessoa no enunciado. Para Goffman, estas

simulações de correspondência de olhar fazem com que os retratos se transformem um

pouco em cenas (“cena”, para Goffman, é um vislumbre que temos do comportamento social

de um indivíduo e que nos oferece informação suficiente para reconhecer identidades

sociais, intenções).

Eric Landowski também vai tratar dos diferentes tipos de fotografia a partir da

encenação do corpo para mostrar a semelhança entre dois gêneros que deveriam ser

distintos: o discurso publicitário e o político. Os tipos de fotografia são o clichê

antropométrico, o flagrante delito e o retrato oficial . Enquanto o primeiro tipo preenche uma 40

simples função de identificação e reconhecimento, como é comum nas fotografias de

Conceito que deve oportunizar discussões em tempos de compartilhamento de fotos em sites de redes sociais.38

GOFFMAN, 1987, p. 16.39

LANDOWSKI, E. Flagrantes delitos e retratos. Galáxia, São Paulo, n. 8, p. 31-69, out. 2004. Disponível em: 40

http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1392/870. Acesso em: 17 jul. 2011.

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passaporte e outros documentos de identidade, o flagrante delito atende a um desejo de

“penetrar o segredo ao divulgar certas facetas [do indivíduo fotografado] que, captadas no

instante, seriam mais reveladoras que outras” . Quanto ao retrato oficial, para Landowski 41

este tipo preenche uma função de ordem cosmética:

Ele trabalha o “perfil” do sujeito retratado — o engrandece, o “embeleza” se quisermos, ou antes o normaliza — de maneira a tornar sua aparência tão conforme quanto possível a um cânone de representação da função ou do estatuto que ele assume na sociedade. Ao impor assim ao indivíduo um modelo identitário pré-concebido, espécie de traje prêt-à-porter no interior do qual ele deverá se deixar moldar, tal regime iconográfico reserva, por definição, um lugar apenas marginal para a exploração das singularidades individuais. 42

Para Goffman, um olhar sem expressão ou uma expressão congelada são

características do retrato , configuração que se assemelha ao “boca fechada e olhar fixo” 43 44

do clichê antropométrico de Landowski. Para nós, este tipo de “artificialidade” na expressão

facial caracteriza o papel “manequim” mesmo naqueles anúncios onde se presentifica um

ambiente reconhecível. Quando tal artificialidade não está na expressão, estará na postura,

como a colocação dos corpos em situação de desequilíbrio ou que dificilmente seria adotada

“normalmente”. O efeito de artificialidade se constrói pela ausência das marcas de força

corporal – mãos crispadas, tensão muscular de braços e pernas – que seriam necessárias

para sustentar os corpos nestas posições. Quando estes signos de artificialidade aparecem,

juntos ou isoladamente, é como se a “cena” subentendida pelo ambiente fosse congelada

juntamente com a expressão da figura feminina, diluindo a sugestão de um papel associado

ao ambiente.

Por outro lado, as simulações de correspondência do olhar que transformam os

retratos de Goffman em cenas, e o retrato oficial de Landowski, que coloca “de forma geral

corpos em estado de comunicação” , nos dão base para definir outros papéis que não o 45

“manequim”, mesmo em anúncios que, aparentemente, seriam desta categoria. Nestes

anúncios, além da caracterização de um ambiente, temos figuras femininas que interagem

de alguma forma com outros sujeitos, dentro ou fora do enunciado, ou seja, são mulheres

que parecem “atuar” e representar outros papéis diferentes de uma simples demonstração.

Parece que temos, então, duas estratégias discursivas nos anúncios de moda: a

tradicional, que coloca os corpos em situações artificiais e reforça o simulacro da linguagem

postural dos discursos da moda, e a que procura ambientar e dar um ar de “naturalidade”

LANDOWSKI, 2004, p. 46.41

LANDOWSKI, 2004, p. 47-48.42

GOFFMAN, 1987, p. 16.43

LANDOWSKI, 2004, p. 52.44

LANDOWSKI, 2004, p. 52.45

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!130

aos corpos. Enquanto esta última é mais pedagógica e informativa, a primeira é mais

conceitual e estética, qualificantes que talvez possamos associar, respectivamente, aos

valores prático e utópico . 46

Se organizarmos os anúncios e a forma como são identificados os papéis sociais a

partir das classificações apresentadas acima, teremos a seguinte distribuição:

Tabela 1 – Regimes iconográficos e sua influência na definição de papéis sociais em anúncios de revista

Fonte: Goffman (1987) e Landowski (2004). Produção da autora.

Em resumo, o papel “manequim” nos anúncios caracteriza-se pelos aspectos que já

havíamos delineado nas análises das publicidades veiculadas em Veja – mulher “posando”,

estática, sem “fazer nada”, sem a figurativização de um ambiente reconhecível e com função

“demonstradora” –, mas também por figuras femininas que, mesmo em ambientes

reconhecíveis, apresentem o olhar fixo ou sem expressão, ou uma postura corporal artificial,

negando um papel ou possível ação sugerida pelo ambiente, configurando uma outra forma

de função “demonstradora”.

4.5.1 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços

públicos (“representação”)

Papel “independente”

Neste papel, o mais frequente do grupo, as mulheres estão sozinhas, principalmente

em espaços públicos, fazendo alguma atividade física ou em deslocamento.

Defendemos que uma das marcas de identificação deste papel, e também de sua

denominação, é a temática do consumo: é a mulher que não depende financeiramente de

Tipo de regime iconográficoCritérios de identificação do papel

social da figura femininaLandowski Goffman

flagrante delitoflagrante (“cenas da vida”,

espontâneas ou construídas)

ação encenada, ambiente, objetos, interação entre sujeitos

retrato oficial retrato (com correspondência de olhar)

apesar de “não estar fazendo nada”, há um “estado de comunicação”; caracterização de um ambiente

clichê antropométrico retrato (sem correspondência de olhar)

olhar fixo, olhar sem expressão; ambiente não neutraliza artificialidade

(“manequim”)

Conforme FLOCH, J-M. Sémiotique, marketing e communication: sous les signes, les stratégies. Paris: 46

PUF, 1995. 2 ed. p. 149.

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outros, que anda só pelas ruas da cidade, que passeia e viaja. Se nas “independentes” de

Veja o consumo é figurativizado pelo texto verbal ou pela ambientação em lojas, aqui um

traço frequente é a bolsa – acessório que o senso comum diz ser o preferido das mulheres

(figura 27).

Evidentemente, muitos anúncios que apresentam este papel são de marcas que

produzem e vendem este produto. Mas, como já salientamos, houve uma preferência por

mostrar a mulher em algum tipo de ambiente ou atividade sugestivos de uma atuação social,

em detrimento daquelas outras configurações posturais mais “conceituais” (ou “míticas”)

típicas dos editoriais de moda. Faz parte desta estratégia discursiva uma intenção de fazer o

público-alvo se reconhecer um pouco no simulacro da consumidora que está no anúncio.

Uma outra configuração postural que quase não foi vista nos anúncios de Veja são as

pernas assumidamente abertas (figura 27). Os anúncios em que as mulheres estão nesta

posição também são, majoritariamente, do segmento de moda. No exemplar assinado pela

Le Lis Blanc, é interessante notar que a postura parece ter sido adotada muito mais para

conforto da mulher do que para seduzir o observador: ela parece estar à vontade. O uso da

máquina fotográfica sugere, inclusive, que as posições do sujeito da enunciação podem se

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente: Carrano, setembro de 2011; Lessô, dezembro de 2011; City Shoes, agosto de 2011; City Shoes, junho de 2012; Rexona, março de 2012; Vanish, agosto de

2011; Arezzo, maio de 2012. Fonte: as edições da revista.

Figura 27 – anúncios com a mulher no papel “independente” usando bolsa

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alternar a qualquer momento, com a modelo deixando de ser objeto da fotografia para se

tornar, por seu turno, a fotógrafa de algum outro corpo-objeto (o do fotógrafo e, por

extensão, o nosso?).

Em termos de roupas, o vestido é maioria neste grupo, seguido pela calça e pela saia

em quantidades bastante próximas. A maior parte destas mulheres está em pé e em

movimento.

Papel “amiga”

Em Veja, foi um papel de pouca presença. Em Claudia, é o segundo mais frequente.

Nas duas revistas, a “amiga” aparece mais em anúncios de marcas de moda e acessórios. A

diferença é que, em Claudia, estas “amigas” estão em espaços públicos, compartilhando a

Figura 28 – anúncios Clínica Rolfsen, Maria Valentina e Le Lis Blanc

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de novembro de 2011, outubro de 2011 e abril de 2012. Fonte: as edições da revista.

Figura 29 – anúncios Stroke

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de setembro de 2011, novembro de 2011 e abril de 2012. Fonte: as edições da revista.

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vida e não somente os segredos da vida que partilham com outros. Em muitos deles há uma

sugestão de movimento e um direcionamento do olhar que não é para o observador.

Na série de anúncios da marca Stroke (figura 29), as mulheres estão próximas

fisicamente, com seus corpos se tocando, configuração parecida com a do anúncio de

Vivara (figura 9a). No exemplar da marca de joias tal proximidade sugestiva de um

relacionamento amoroso era destinada à fruição do outro, remetendo ao senso comum do

repertório de fantasias sexuais masculinas (observar duas mulheres fazendo sexo, mas não

para deleite delas, e sim dele). Neste caso, as mulheres estão absorvidas entre si ou com o

ambiente, sem olhar para o observador. Por mais que o contato físico possa ser aquele que

acontece entre amigas íntimas, a configuração dos corpos e roupas sugere uma axiologia

masculino x feminino, ou seja, a de um casal, sendo que a modelo de cabelos escuros

ocupa a primeira posição e a de cabelos claros, a segunda. Em termos de ocorrência de

roupas, neste papel o vestido é maioria, seguido pela calça e pela saia.

Papel “manequim”

Neste papel, o vestido é grande maioria. A calça aparece duas vezes e a saia, apenas

uma. Quase metade dos anúncios deste grupo é de produtos de perfumaria e beleza

(fragrâncias, tintura para cabelo, esmalte), portanto, sem a obrigação de apresentar

determinada peça de roupa. Em todos eles a mulher está de vestido (a calça aparece em

anúncios de marcas de moda que podem estar querendo promover esta peça).

Em termos de postura, destacam-se as posições não naturais do corpo, que exigem

um esforço para serem mantidas, mas cujo esforço não se percebe na musculatura de

braços e pernas. A postura com o quadril jogado para o lado é obrigatória quando a mulher

está em pé e ocorre bastante mesmo quando está sentada. A cabeça normalmente está

Figura 30 – respectivamente, anúncios Corello, Maria Valentina e Avon

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de outubro de 2011, março de 2012 e fevereiro de 2012. Fonte: as edições da revista.

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inclinada para o lado ou para baixo, raramente alinhada com o eixo do tronco. O olhar é

vazio e distante ou semiaberto e sedutor. Muitas vezes, o quadril jogado para o lado é

acompanhado pela mão na cintura ou no quadril, do jeito “tradicional”, com o polegar para

trás (figura 30). Como já assinalamos, este parece ser um modo mais “sensual” do que

aquele em que o polegar fica para frente junto com os outros dedos.

Papel “profissional”

O papel “profissional”, que era o mais frequente nos anúncios deste grupo

(“locação”/“representação”) em Veja, em Claudia é bem menos representativo. Alguns deles

são os mesmos veiculados na revista semanal, como os do banco Santander e da marca de

computadores Dell. Um aspecto interessante é a comparação entre anúncios da marca

Panasonic veiculados nas duas revistas: enquanto em Claudia ele mostra a mulher

“profissional”, em Veja ele mostra a “dona-de-casa” (figuras 31a e 31b). Ambos, no entanto,

apresentam a mulher de calça, que é o vestuário mais presente entre as mulheres

profissionais das duas revistas e também entre as donas de casa de Veja.

Papel “mãe”

Mulheres no papel de “mãe” e “esposa” aparecem em último lugar entre os anúncios

que mostram ambientes identificáveis e espaços públicos. A maioria dos anúncios com

“mães” é assinada por uma marca de roupas para gestantes (figura 32). Neles, a mulher

está principalmente usando vestido e é acompanhada pelo “marido”. Este homem fica

próximo em uma atitude protetora. Quando a cena produz um efeito de sentido de

sensualidade – a versão em que o traje é preto e o homem está sem camisa –, o casal está

afastado. A mulher é olhada e admirada, mas está distante, quase em uma situação

Figuras 31a e 31b – respectivamente, anúncios Panasonic veiculados em Veja e em Claudia

Anúncios veiculados na revista Veja, edição de 28 de março de 2012, e na revista Claudia, edição de maio de 2012. Fonte: as edições das revistas.

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“santificada”, como se a gravidez exigisse que a relação sexual presumida ficasse apenas

no plano do desejo e do potencial, sem ser atualizada. É significante notar, também, que a

única gestante sozinha usa calça comprida, e não vestido.

Papel “esposa”

Nos anúncios de Claudia que apresentam o papel de “esposa”, todas as mulheres

estão de calça. Observa-se que os anúncios deste grupo se dividem entre aqueles que

promovem viagens (turismo) e os que promovem produtos destinados à chamada “terceira

idade”, como fraldas geriátricas e um suplemento alimentar. No caso do anúncios das

fraldas, a temática também é a de viagem (figura 33).

Figura 33 – anúncios Ensure, Plenitud, Turismo de Portugal e Samsonite

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de outubro de 2011, fevereiro de 2012, outubro de de 2011 e fevereiro de 2012. Fonte: as edições da revista.

Figura 32 – anúncios Mammy Gestante

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de setembro de 2011, dezembro de 2011, novembro de 2011 e agosto de 2011. Fonte: as edições da revista.

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4.5.2 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços

privados (“coxias”)

Papel “independente”

Neste mesmo grupo em Veja, o papel “independente” era o que menos aparecia. Em

Claudia, ainda que por pouca diferença em relação aos outros, ele é predominante. A mulher

é apresentada sozinha em sua casa, em três tipos de situação: satisfeita consigo mesma,

sorri para os objetos que são veículos dessa satisfação (figuras 34a e 34b); imersa em

pensamentos ou na leitura (figuras 35a e 35b); olhando para o leitor, sugerindo sensualidade

(figuras 35c e 35d). Em apenas um dos anúncios desta última situação a mulher usa

vestido. Nas outras, está de calça. Notamos aqui, de novo, a presença da mulher sentada

de pernas abertas.

Figuras 35a, 35b, 35c e 35d – anúncios Maria Valentina, Editora Abril, Estilo e Avon

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de novembro de 2011, novembro de 2011, abril de 2012 e abril de 2012. Fonte: as edições da revista.

Figuras 34a e 34b – anúncios Delícia e Caixa

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente das edições de junho de 2012 e outubro de de 2011. Fonte: as edições da revista.

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Papéis “esposa” e “mãe”

Mulheres no papel de “esposa” e “mãe” aparecem em segundo lugar. Aqui também

inverte-se a predominância das roupas em relação à Veja. Enquanto a revista semanal

apresentava “esposas” em espaços privativos

usando principalmente calça, em Claudia elas

usam principalmente vestido (e uma saia). No

caso das “mães”, a calça é maioria. Quanto à

roupa desse papel, as duas revistas são

similares.

Papéis “manequim” e “amante”

Estes papéis são os últimos em número

neste grupo. As mulheres nestes papéis usam

principalmente vestido (uma usa saia). O

papel “amante” ocorre em um anúncio

assinado pela marca de relógios Lince (figura

36), a mesma dos anúncios com este papel

em Veja (figura 6a). Apesar de a modelo, o

cenário e o cromatismo serem os mesmos,

nesta versão veiculada em Claudia a postura

é mais contida. A mulher não está no chão e

sua co rpo ra l i dade f i gu ra t i v i za uma

disponibilidade sexual menos explícita que a

dos outros anúncios da série.

4.5.3 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em

privatização dos espaços públicos (“ensaio”)

Papel “anfitriã”

Definimos o papel que ocupa este espaço como o de “anfitriã”, aquela que cuida dos

ambientes da casa que recebem pessoas estranhas e que estão nestes ambientes com um

tipo de roupa e postura que não configuram o estar à vontade em casa, e sim uma certa

tensão pela espera de um visitante – que pode até ser amoroso. Em Claudia, as mulheres

neste papel usam igualmente saia e vestido, mas diferente de Veja, estão principalmente

sentadas.

Anúncio veiculado na revista Claudia, edição de junho de 2012. Fonte: a edição da revista.

Figura 36 – anúncio Lince

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4.5.5 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “tela”

Papel “manequim”

É o papel predominante nos anúncios deste grupo, com a grande maioria das

mulheres usando vestido. A saia aparece apenas uma vez. As expressões faciais das figuras

femininas se dividem entre a combinação de olhar e sorriso que sugere sensualidade e

aquela de olhos e sorriso bem abertos que, associada à postura, indica uma função

demonstrativa do produto (figura 37a) ou dos benefícios que ele proporciona (figura 37b).

A contraposição destes dois anúncios ilustra também uma diferença recorrente quanto

à “respeitabilidade” da mulher. Sabemos que a apresentadora Angélica é mãe e o “produto”

que ajuda a promover é um concurso para bebês patrocinado pela marca de pomada

Hipoglós. A calça comprida é a roupa que tem vestido as mães em grande parte dos

anúncios analisados até agora. Já no anúncio de Veet, cujo benefício é um procedimento

mais s imples de uso do creme

depilatório, a mulher usa vestido e toca

a perna já mais lisa após a depilação.

Há um evidente prazer neste toque,

acompanhado de uma postura que

projeta o corpo para frente e o quadril

para o lado e para trás. Nota-se,

também a recorrência da cor rosa em

anúncios de produtos (creme depilatório,

sabonetes íntimos, absorventes) que

oferecem um poder-eliminar ou disfarçar

aspectos naturais do corpo, como

cheiros e pelos. Considerando que a cor

rosa, enquanto figura de conteúdo,

participa da construção de uma temática feminina, temos aí a questão da assepsia, ou de

uma desnaturalização do corpo, como valor associado à mulher.

Papéis “profissional” e “amiga”

As mulheres no papel “profissional” também estão prioritariamente de vestido. Suas

ocupações estão relacionadas às artes (uma pianista e uma cantora) e à moda

(“blogueiras”). Esta última ocupação aparece no anúncio dos relógios Dumont (figura 38a),

que se destaca por destoar de uma configuração frequente nos anúncios de relógios vistos

até então, que é a mulher com expressão facial e postura que sugerem disponibilidade

sexual. Esta configuração volta a aparecer no anúncio dos relógios Euro (figura 38b), onde

Figuras 37a e 37b – anúncios Hipoglós e Veet

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de setembro de 2011 e dezembro de 2011.

Fonte: as edições da revista.

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classificamos o papel feminino como o de “amiga”. A distribuição dos corpos de modo a

formar um triângulo, por sua vez, se assemelha àquela da publicidade da marca de jóias

Vivara (figura 9a, anúncios de Veja), cujas mulheres também foram categorizadas como

“amigas”. Aqui, neste grupo, as “amigas” aparecem majoritariamente de vestido.

Papel “esposa” e “independente”

Estes papéis aparecem com igual

q u a n t i d a d e d e m u l h e r e s . O p a p e l

“independente” é figurativizado pela prática

esportiva e pelo consumo, como acontece em

outros exemplares. O esporte aparece

também no anúncio onde a mulher está

“comprando” (figura 39), manifestado em uma

segunda figura feminina, que por usar shorts

não está sendo considerada na análise. A

comparação destas duas figuras, de seus

trajes e corpos, oferece alguns traços

significantes.

A esportista Rosângela Santos aparece

com uniforme de corrida e uma postura que

quase não se encontra nas figuras femininas

nos anúncios: não há torção do tronco, que

permanece alinhado em seu eixo vertical; as

Figuras 38a e 38b – anúncios Dumont e Euro

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de maio de 2012 e dezembro de 2011. Fonte: as edições da revista.

Anúncio veiculado na revista Claudia, edição de fevereiro de 2012. Fonte: a edição da revista.

Figura 39 – anúncio Caixa

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pernas estão separadas, mas não com o joelho dobrado, como é de praxe; as mãos na

cintura sugerem desafio, e não sensualidade. Ao contrário, a “consumidora” usa vestido,

está caminhando e, neste ato, dobra o joelho e “quebra” o quadril. Suas mãos estão

ocupadas com as sacolas, sugerindo um efeito de restrição de movimento (conforme

comparação entre as mulheres do anúncio TAM, figura 21) que contrasta com a “liberdade”

das mãos livres da esportista.

Como se pode observar até agora, as mulheres presentes nos anúncios são

majoritariamente magras, jovens e brancas. Tal figurativização não foge ao que outros

estudos e análises observam em relação às manifestações do discurso da publicidade no

que se refere às raças. Édison Gastaldo aponta um tipo de “retórica visual” da publicidade

com temática esportiva em que os negros são os atletas ou membros de torcida em 47

lugares públicos (geralmente sem camisa). Enquanto atletas, o desempenho físico

reconhecidamente destacado das pessoas negras é um tipo de sucesso “subalterno”, que

se opõe a um sucesso de maior valor, que é aquele obtido pelo trabalho “mental” dos

brancos. Já o torcedor-consumidor das televisões e outros produtos anunciados, e que

acompanha a transmissão esportiva de dentro de casa, junto à família, é branco.

No anúncio da Caixa, temos uma distribuição parecida: quem consome os produtos do

banco e o evento esportivo (trata-se das Olimpíadas de 2012, realizadas em Londres) é a

mulher de pele mais clara. A mulher negra é a atleta e está menos vestida. A apresentação

dos dois corpos, o mais escuro e o mais claro, valoriza diferentes aspectos desses corpos,

ainda que ambos, de alguma forma, sejam corpos para consumo.

4.5.6 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “estúdio”

Papéis “profissional”, “manequim” e “mãe”

Alguns anúncios que aparecem neste grupo em Claudia são os mesmos do respectivo

grupo em Veja: Avon (figura 18a), TRESemmé (figura 18b) e Orient (figura 19b) no papel

“profissional” e Usaflex (figura 17b) no papel “manequim”. Ainda da mesma forma que em

Veja, mulheres nestes dois papéis aparecem em igual quantidade.

No papel “profissional”, exceto pela figura feminina de Avon, as mulheres pertencem a

um conjunto que se costuma chamar de “celebridades” – atrizes, modelos e cantoras –, e

que raramente vão aparecer usando calça. Aqui se abre uma exceção, pois a calça é

maioria, seguida pelo vestido e pela saia. Já no papel “manequim” o vestido é a roupa em

maior quantidade.

Neste grupo, o papel de “mãe” aparece em uma configuração muito distinta daquela

GASTALDO, 2013, p. 88-99. O título do capítulo que apresenta este estudo é “Negros jogam, brancos torcem: 47

a ritualização das relações raciais na Copa do Mundo”. A Copa do Mundo a que o autor se refere é a de 1998.

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vista até agora. São dois anúncios

(figuras 40a e 40b) que promovem um

suplemento alimentar “emagrecedor”,

apesar desta palavra não estar presente

no texto. A promessa de diminuição de

medidas é sugerida pelos depoimentos

das mulheres retratadas, que fazem

menção à beleza e, especialmente, ao

uso de tamanhos de roupa menores. As

mulheres que dão esses depoimentos

são apresentadas como mães. Todas

usam roupas muito justas que deixam à

mostra colo, barriga e/ou pernas, e

a d o t a m p o s t u r a s b a s t a n t e

sensualizadas. Outro fator que diferencia as “mães” destes anúncios é a ausência dos filhos,

ou melhor, de crianças, nos enunciados. No anúncio em que aparecem mãe e filha, esta

última já é adulta e serve tanto para ajudar a mostrar os benefícios do produto quanto para

servir de parâmetro de beleza para a mãe: usar o mesmo manequim da filha.

O que há de semelhante entre esses e outros anúncios com a presença de mães é o

uso prioritário da calça, ainda que plasticamente se diferencie bastante das calças usadas

pelas mães com crianças. Destaca-se também o fato de que a única mulher de vestido está

sentada.

4.6 A construção dos papéis sociais em Exame

Uma das hipóteses levantadas em relação à diferença dos anúncios entre as revistas,

baseada na premissa de que a publicidade vai se adequar, tematicamente, ao estilo editorial

e ao público-alvo da publicação, confirma-se quando se observa os exemplares da revista

Exame. A figurativização de ambientes profissionais é muito presente, enquanto a

figurativização de ambientes domésticos é bem menos expressiva. Tanto um quanto outro

ambiente, no entanto, aparecem em anúncios que já havíamos encontrado na revista Veja.

Se a figurativização de ambientes profissionais sugere que as mulheres ali

caracterizadas serão aquelas em situação de trabalho, trajadas de acordo com o simulacro

deste papel temático e do perfil das leitoras da revista, ganham destaque alguns anúncios

em que a presença feminina é meramente decorativa, ou seja: enunciados que destoam

muito de um estilo discursivo que seria o adequado para uma publicação lida por homens e

mulheres profissionais. Detalhamos estas questões nas classificações seguintes.

Figuras 40a e 40b – anúncios Nutrilatina

Anúncios veiculados na revista Claudia, respectivamente nas edições de setembro de 2011 e outubro de 2011.

Fonte: as edições da revista.

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4.6.1 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços

públicos (“representação”)

Papel “profissional”

De maneira similar à Veja, o papel mais presente nos anúncios com figurativização de

espaços públicos é o “profissional” e a calça é a roupa mais usada pelas mulheres. No

entanto, diferente do que ocorre na revista semanal, em Exame a saia é bastante numerosa

neste papel (figura 41). Se formos considerar apenas as figuras femininas em escritórios, a

saia é maioria, e de dois tipos bastante específicos: a saia reta ou a saia-lápis de alfaiataria

(cf. capítulo 2). As cores são sóbrias e elas são usadas normalmente com camisa ou blusa

de tecido plano , às vezes sobrepostas por um cardigã ou paletó, neste último caso 48

compondo o tailleur. Os sapatos sempre são de saltos altos. De maneira superficial, já se

constata um tipo de traje que restringe os movimentos, em oposição a saias mais amplas e

fluidas e blusas de tecido “mole”. Já o vestido, que vem em segundo lugar como a roupa

mais usada pelas mulheres profissionais em Veja, aparece uma única vez em Exame.

Papel “independente”

O segundo papel mais frequente é o “independente”, no qual as mulheres usam

apenas calça. As atividades principais são as viagens, as atividades físicas ou de lazer e o

consumo. Se o consumo era preponderante entre as “independentes” de Claudia – tema

figurativizado pela bolsa –, a viagem o é em Exame. Delineia-se, também, a reiteração do

uso da calça como peça de roupa obrigatória para viagens, conforme recomenda Inès de La

Um exemplo de tecido plano é o tricoline, feito de fios de algodão e muito usado na confecção de camisas. 48

Este tipo de tecido difere da malha. A malha é mais “mole”, mais informal, delineia mais as formas do corpo. Ao mesmo tempo, é mais confortável.

Figura 41 – anúncios Samsung, TIM, FGV e Algar

Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 30/11/2011, 18/04/2012, 16/11/2011 e 10/08/2011. Fonte: as edições da revista.

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Fressange em seu guia de estilo (cf. capítulo 2).

Interessa destacar neste grupo um anúncio da Siemens (figura 42) com uma foto

“flagrante”, de estilo jornalístico, que não parece ter sido produzida, e que mostra o vai-e-

vem de pessoas em uma estação de metrô da Linha Amarela, em São Paulo. Esta imagem

manifesta uma observação que temos feito empiricamente: quando circulam pelas ruas dos

grandes centros urbanos, à pé ou no transporte público, as mulheres evitam a saia e o

vestido. O menor uso da vestimenta aberta nestas situações também foi abordada no

capítulo 2.

Este exemplar é ilustrativo de um tipo de aspectualização muito comum dos homens e

mulheres nos anúncios de Exame. Como havíamos dito no capítulo 3, o critério para a

classificação dos anúncios pela presença de figuras humanas não levava em conta o status

da participação desta figura no contexto do anúncio,

seja em termos de tamanho, seja pela colocação em

algum plano de destaque. A revista Exame apresentou

anúncios com uma considerável presença de mulheres.

Porém, não poucas vezes, quando as mulheres

aparecem nos anúncios é com menor destaque e em

posição subalterna ao homem (em termos plásticos e

de conteúdo). Nos anúncios que integram o corpus

semiótico isso quase não se percebe, visto que eles

forma selecionados justamente por apresentarem uma

aspectualização da mulher que permite observar sua

vestimenta. Conforme já apontamos no final do capítulo

3, dentre as três revistas, Exame é a que tinha menos

anúncios com mulheres destacadas o suficiente de

maneira a permitir a visualização completa de sua

roupa.

Papéis “esposa” e “mãe”

As “esposas” nas situações de papéis públicos em Veja e Claudia apareciam

principalmente de calça. Aqui, a roupa predominante é o vestido. Outro aspecto interessante

que ocorre nesta revista é a mulher acompanhada de dois homens em situação que não

seja de trabalho (figura 43). Tal distribuição de figuras femininas e masculinas é rara:

normalmente, é um único homem que aparece com mais mulheres. No papel de “mãe”,

assim como nas outras publicações, a roupa predominante é a calça.

Anúncio veiculado na revista Exame, na edição de 27/06/2012. Fonte: a

edição da revista.

Figura 42 – anúncio Siemens

Page 144: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!144

4.6.2 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “locação” em espaços

privados (“coxias”)

Papel “independente”

Na revista Veja, a mulher quase não aparecia sozinha em casa, fazendo coisas para

si, caracterizando o papel “independente”. Em Claudia este é o principal papel das mulheres

nos espaços privados; em Exame, ainda que no contexto de poucos anúncios com

figurativização deste tipo de espaço, tal papel se destaca. As duas situações são de

consumo e as figuras femininas estão provando uma roupa que parecem ter comprado via

internet (figura 44).

Figura 44 – anúncios IBM e Correios/SEDEX

Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 13/06/2012 e 19/10/2011. Fonte: as edições da revista.

Figura 43 – anúncios Air France e VR com mulher acompanhada por mais de um homem

Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 19/10/2011 e 5/10/2011. Fonte: as edições da revista.

Page 145: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!145

Papel “esposa”

Outro papel deste grupo é o de “esposa”, em que as mulheres usam calça, como tem

sido recorrente. As situações deste papel também são de consumo, mas de bens de alto

valor, como casa e automóvel. Seja pela feliz surpresa (figura 46a) ou pelo gesto de grata

felicidade (figura 46b), parece que a mulher foi ausente, ou apenas coadjuvante, do

processo de aquisição destes bens.

Papel “dona-de-casa”

O último papel deste grupo é o de dona-de-casa, em um anúncio da Panasonic que

também foi veiculado em Veja. Na figura 31a (seção 4.3.1.1) podemos ver este anúncio ao

lado da versão que foi publicada em Claudia; naquele trecho, observamos que a revista

feminina traz a consumidora de Panasonic em um papel “profissional”, enquanto a revista

semanal apresenta-a em um papel doméstico – e agora, também a revista de negócios. O

anúncio de Veja foi publicado em março, o de Exame em abril e o de Claudia, em maio.

4.6.4 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “tela”

Papel “profissional”

Assim como em Veja, este é o papel mais frequente nos anúncios com ausência de

ilusão referencial de um ambiente do mundo natural. A grande maioria das mulheres neste

papel aparece de calça. Saia e vestido têm uma única ocorrência cada, diferente do que

observado nas mulheres do mesmo papel no grupo “locação”. O traje profissional é

especialmente a calça de alfaiataria, a camisa de tecido plano e, às vezes, o paletó (figura

46a). Quando o trabalho ou a profissão não são aqueles do escritório, o traje fica um pouco

Figuras 45a e 46b – anúncios Itaú e CRECI

Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 13/06/2012 e 5/10/2011. Fonte: as edições da revista.

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!146

mais informal. A calça pode assumir uma modelagem diferente, mais larga e com mais

detalhes (figura 46b). E o conjunto saia-e-blusa, ainda que a peça de baixo seja estilo

“lápis”, distancia-se do aspecto de uniforme (figura 46c).

Quando se considera o uso da saia e do vestido pelas mulheres profissionais, a

diferença que vemos aqui reitera uma ocorrência mais geral das revistas: o vestido e a saia

com formas mais soltas, ou com estampas, ou mais vaporosos, são usados por profissões

ligadas às artes ou à mídia (incluindo as “celebridades”). Um certo tipo de saia, e também de

vestido e calça, de tecido não-maleável e ajustado ao corpo, são figuras que compõem uma

temática de seriedade associada ao mundo do trabalho corporativo e, como vimos,

constituem o paradigma da masculinidade (cf. capítulo 2).

Papéis “manequim” e “mãe”

Estes papéis têm pouca ocorrência. As mulheres como “manequim” apresentam a

função “demonstradora” e aparecem principalmente usando vestido, assim como ocorreu

em outros tipos de anúncios e em outras revistas.

O papel de “mãe” está em apenas dois exemplares. Um deles é o anúncio da fábrica

PSA Peugeot Citroën (figura 47a), e chama a atenção pela intertextualidade com um tipo de

adesivo de carro muito usado na época da coleta dos anúncios: aquele formado por

“bonecos”, figuras humanas e animais do mundo natural traduzidas por meio de

“esquematismos vagos” ou de uma “figuratividade normal”, que Greimas associa aos

desenhos infantis. Tal recurso foi utilizado em outro anúncio do segmento automotivo,

encontrado na revista Veja (Postos BR – figura 47b).

Figuras 46a, 46b e 46c – anúncios DHL e Nextel

Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 5/10/2011, 28/12/2011 e 16/11/2011. Fonte: as edições da revista.

Page 147: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!147

Os traços distintivos do feminino

nestes anúncios são a saia e o vestido –

semelhantes no que se refere à

ocultação da divisão entre as pernas. O

traço distintivo do masculino é a gravata.

A continuidade cromática do traje do

homem na figura 47b sugere o uso do

terno, peça mais formal e de valoração

social superior, em comparação com o

uso da camisa sem paletó na figura 47a.

Por extensão, a continuidade do vestido

sugere o mesmo tipo de valoração

superior em relação à saia.

4.6.5 Papéis sociais nos anúncios com representação de espaço tipo “estúdio”

Papel “manequim”

Este é o papel que mais aparece nos anúncios de tipo “estúdio”, graças a uma

sequência de publicidades assinada pelo shopping Golden Square (figura 48). O que nos faz

entender esta figura feminina como demonstradora e não como simulacro do público-alvo é

o fato de que tais anúncios são business-to-business, ou seja, têm o objetivo de atrair

lojistas para o empreendimento, argumento reforçado quando se observa a quantidade de

inserções em uma revista de negócios. Já havíamos feito essa ressalva quando um anúncio

desta série apareceu entre os publicados em Veja (figura 16a). A postura de apelo sensual,

que se reconhece como pertencente à iconografia dos editoriais de moda, tem aqui outra

função, que vai além da constatação do shopping como um negócio do segmento de moda.

Nestes anúncios a mulher veste calça (um deles como visto em Veja), saia e vestido. A

série talvez seja privilegiada para se apontar alguns aspectos posturais que sugerem a

oferta do corpo, no sentido de que partes do corpo são destacadas do alinhamento vertical

da cabeça, tronco e pernas, para frente ou para trás, para direita ou para a esquerda. O

tronco é projetado para frente, destacando os seios; o quadril é projetado para o lado ou

para trás. O efeito é complementado pelo olhar oblíquo e lábios entreabertos. Nesta série

tais aspectos aparecem quase que simultaneamente em todos os exemplares; em outros

anúncios eles podem aparecer separadamente, deixando marcas de uma escolha do

enunciador pelas posturas disponíveis no inventário de configurações sensuais do corpo.

Figuras 47a e 47b – anúncios PSA Peugeot Citroën e Postos BR

Anúncios veiculados respectivamente nas revistas Exame, edição de 25/01/2012, e Veja, edição de

27/06/2012. Fonte: as edições das revistas.

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!148

Papéis “profissional”, “independente” e “esposa”

Os demais papéis deste grupo aparecem em pouca quantidade. No papel

“profissional”, todas as mulheres estão de calça; no “independente” estão de vestido, e o

anúncio coloca a mulher como protagonista da compra de um apartamento, diferente do

observado nos anúncios 45a e 45b. No papel “esposa”, a figura feminina está de calça,

reiterando a roupa usada pela maior parte das mulheres neste papel.

4.7 Papéis sociais e roupas em Veja, Claudia e Exame: algumas conclusões

Considerando a participação proporcional dos papéis em cada revista (gráfico 1),

vemos que em Veja a mulher que aparece com maior destaque é a “profissional”; em

Claudia, dois papéis têm uma grande presença, “manequim” e “independente”; em Exame, o

papel “independente” é o que mais aparece, seguido pelo de “esposa”.

Em termos de relação da predominância destes papéis com o público leitor das

revistas, aparecem algumas situações curiosas. Esperava-se que uma maioria de papéis

profissionais fosse proporcionalmente mais acentuada em Exame, que é uma revista de

conteúdo especialmente dirigido à atuação profissional dos leitores, homens e mulheres. Ao

Figura 48 – anúncios Golden Square

Anúncios veiculados na revista Exame, respectivamente nas edições de 8/02/2012, 14/12/2011, 5/10/2011 e 2/11/2011. Fonte: as edições da revista.

Page 149: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!149

invés disso, aparecem papéis que não estão relacionados à atuação profissional da mulher,

como o de “esposa” – que é o segundo mais presente –, o de “dona-de-casa” (que não está

em Claudia) e o de “mãe”. Este último aparece na revista de finanças na mesma proporção

que nas outras duas publicações. Como já havíamos apontado, em Claudia aparecem mais

mulheres sozinhas ou com “amigas”, em papéis que sugerem uma certa autonomia e um

cuidado de si mesma e a fruição da companhia de outras mulheres.

As observações acima apontam a participação proporcional dos papéis em cada

revista. Ou seja, quais os papéis mais presentes no contexto das publicações. Quando

destacamos que há muitos papéis não-profissionais em Exame, estamos chamando atenção

para o fato de que, dentre todos os anúncios que mostram claramente as mulheres e suas

roupas nesta revista, a principal não é a mulher “profissional”.

Uma outra abordagem analítica é verificar em quais publicações cada papel mais

aparece (gráfico 2). “Amante” aparece mais em Veja, apenas uma vez em Claudia e não em

Exame. Já havíamos apontado que em Claudia o anúncio que apresenta este papel integra

a mesma série que o apresenta em Veja, mas na revista feminina a figurativização da

disponibilidade sexual está suavizada. Há um interesse da marca que assina estes anúncios

em mostrar a mulher à espera do parceiro em uma publicação de alcance mais geral, o que

também generaliza este papel feminino.

Papéis em que a mulher está “fazendo algo” sozinha ou está na companhia de outras

mulheres aparecem mais em Claudia (“independente” e “amiga”). Vimos, também, que as

“amigas” de Claudia estão mais interessadas em si mesmas ou em algo que acontece no

enunciado, e menos em impressionar o leitor, como são as “amigas” de Veja. A mulher

independente tem também grande participação nos anúncios de Exame. Os papéis mais

“tradicionais” da mulher, como “esposa” e “mãe”, aparecem mais em Veja. Poderíamos

incluir o “dona-de-casa” neste grupo, mas a quantidade de exemplares é muito pequena.

Gráfico 1 – Participação proporcional dos papéis sociais no contexto de cada revista.

Fonte: tabela 10 – Apêndice A. Produção da autora.

Veja

Claudia

Exame

0% 25% 50% 75% 100%

15%

13%

36%

11%

10%

10%

19%

28%

15%

32%

22%

11%

21%

8%

17%

2%

2%

3%

4%

15%

4%4%4%4%4%4%4%4%4%4%4%4%4%4%4%3%

1%

3%3%3%3%3%3%3%3%3%

Amante Amiga Anfitriã Dona-de-casa EsposaIndependente Manequim Mãe Profissional

Page 150: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!150

Esta falta de representatividade distorceria os dados sobre a proporcionalidade, porém, não

invalida a constatação de que tal papel não aparece em Claudia, mesmo sendo a revista

“feminina”. Vale lembrar, ainda, que a marca Panasonic assina um dos anúncios com o

papel dona-de-casa que aparece em Veja, e que é o mesmo veiculado em Exame. No

anúncio desta marca publicado na revista Claudia no mesmo período – ou seja, integrante

da mesma campanha –, a mulher apresentada está no papel profissional. O papel

“profissional” aparece mais em Veja e, curiosamente, menos em Exame. O papel

“manequim” aparece mais em Claudia, até porque este é o papel mais característico da

publicidade de marcas de moda, que costuma ser muito presente nas publicações

femininas.

Considerando a ocorrência dos papéis sociais em todos os anúncios coletados (gráfico

3), destacam-se os papéis “profissional”, “manequim” e “independente”. São nestes papéis,

também, que a saia ocorre com mais frequência em números absolutos (ver tabela 11 –

Apêndice A).

1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%1%3%3%3%3%3%7%

10%

14%

18%

20%

24%

ProfissionalManequimIndependenteEsposaMãeAmigaAnfitriãAmanteDona-de-casa

Gráfico 3 – Participação proporcional dos papéis sociais no conjunto das revistas Veja, Claudia e Exame.

Fonte: tabela 10 – Apêndice A. Produção da autora.

Amante

Amiga

Anfitriã

Dona-de-casa

Esposa

Independente

Manequim

Mãe

Profissional

0% 25% 50% 75% 100%

9%

15%

13%

25%

21%

25%

21%

38%

53%

48%

21%

36%

83%

20%

70%

47%

34%

28%

57%

75%

64%

17%

80%

Veja Claudia Exame

Gráfico 2 – Participação proporcional das revistas no conjunto de papéis sociais

Fonte: tabela 10 – Apêndice A. Produção da autora.

Page 151: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!151

Já a abordagem proporcional (gráfico 4) permite verificar qual a roupa predominante,

ou seja, qual a roupa que mais aparece na figurativização de um papel social. A saia não é

maioria em nenhum deles, mas tem maior participação nos papéis “profissional”, “esposa” e

“amiga”. Quanto às outras peças, podemos ver que o vestido é a roupa da “amante”, da

“anfitriã” e da “manequim”. Interessante notar que, nestes três papéis, a mulher está parada,

esperando, e preparou-se para agradar o outro: a “amante” espera o parceiro sexual e

produz um arranjo vestimentar e corporal para agradar o parceiro sexual; a “anfitriã” espera

o visitante (que pode ser um parceiro sexual não assumido) e produz um arranjo vestimentar

e corporal para mostrar status; a “manequim” espera o olhar do leitor e produz um arranjo

vestimentar e corporal para demonstrar a si e ao produto. Já a calça é importante na

constituição dos papéis da mulher “moderna” – “profissional” e “independente” –, mas

paradoxalmente, também naqueles papéis mais tradicionais e essencialmente femininos:

“dona-de-casa”, “esposa” e “mãe”. É justamente o conteúdo “feminino” destes papéis que

nos leva a considerar intrigante a preponderância de uma roupa que, apesar de largamente

adotada pelas mulheres, faz parte do paradigma da masculinidade. E, por consequência,

intrigante também a ausência das peças “femininas”, como a saia e o vestido, na

constituição majoritária destes papéis.

Gráfico 4 – Distribuição das roupas por papel social no conjunto das revistas Veja, Claudia e Exame.

Fonte: tabela 11 – Apêndice A. Produção da autora.

Amante

Amiga

Anfitriã

Dona-de-casa

Esposa

Independente

Manequim

Mãe

Profissional

0% 25% 50% 75% 100%

68%

53%

19%

62%

53%

75%

9%

38%

17%

17%

44%

70%

28%

33%

25%

82%

50%

83%

16%

3%

10%

10%

14%

9%

13%

saia vestido calça

Page 152: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!152

4.8 Tipologia dos papéis sociais femininos na publicidade

Mais do em outras categorias sociais, como classe e raça, o mundo se organiza a

partir da axiologia masculino x feminino. É nela que se estabelecem as oposições mais

distintas, que superam outras. Se consideramos a expressão destas categorias nas roupas

da sociedade ocidental, por exemplo, atualmente o “rico” e o “pobre” vestem-se quase da

mesma forma, mas não homens e mulheres.

No decorrer da História, sempre se tentou compreender a mulher a partir do homem,

primeiro como parte dele, depois como um ser independente, mas menos evoluído. Ainda

que tais princípios tenham sido ultrapassados, percebe-se que os simulacros de papéis

sociais midiatizados, ao menos os femininos, se organizam em função do masculino.

Importante reforçar aqui que não se trata da personalização de atores homens e mulheres, e

sim de um modo de articulação baseado nestas categorias.

As denominações de papéis sociais que escolhemos para identificar os simulacros

encontrados nos anúncios são um bom exemplo da não-reciprocidade de graus de

subordinação entre masculino e feminino. Um homem é somente um homem, seja casado

ou não, com filhos ou sem. Não se fala, por exemplo, dos desafios que tem um homem em

conciliar seu papel de pai, marido, amante, amigo, profissional. Aceita-se relativamente bem

que um homem se dedique muito ao trabalho e pouco aos filhos, visto que está cuidando de

prover o necessário para eles. Ou seja, desta forma, está cumprindo sua função de pai. Não

haverá, portanto, conflito nesta “ausência”.

De novo, estamos falando de construções sociais abstratas, e não dos sentimentos ou

das demandas dos indivíduos. Se é aceitável que uma mãe saia mais cedo do trabalho para

levar o filho ao médico (por mais que esse tipo de concessão seja a justificativa para o

“telhado de vidro” que dificulta a promoção de mulheres aos cargos executivos mais altos,

ou para as políticas de controle de natalidade impostas ou sugeridas pelas empresas às

suas funcionárias), o mesmo não acontece com o homem. Porém, talvez este pai quisesse

estar cuidando do filho ou desejasse assumir mais plenamente a paternidade logo que a

criança nasce. Ainda não se permite isso aos homens, e muitos estão descontentes.

O senso comum pouco percebe, no entanto, que as duas situações exemplificadas

aqui são face da mesma moeda. Há uma relação de dependência entre os papéis, que

vamos abordar do ponto de vista dos papéis femininos. Com “dependência” não nos

referimos a uma oposição dominante x dominado, mas aos aspectos de correlação,

interdependência e interação que constituem este termo. Daí o motivo achamos pertinente

entender estas relações a partir dos regimes de interação propostos por Landowski (2009) . 49

LANDOWSKI. E. Interacciones arriesgadas (trad. Desiderio Blanco, rev. Verónica Estay Stange). Lima: 49

Universidad de Lima, Fondo Editorial, 2009, p. 81, 103.

Page 153: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!153

Como vimos, muito da importância social da mulher está relacionada à “posse” do

homem, especialmente se manifestada em papéis públicos. É o capital marital de que

falamos antes. Este tipo de interação com o homem (uma conjunção) obedece, portanto, a

uma programação sobre os papéis sociais femininos mais eufóricos em uma axiologia dos

simulacros mais ou menos desejados para as mulheres (não necessariamente pelas

mulheres ou pelos homens). Considerando os simulacros que encontramos nas revistas,

estes papéis são o de “esposa” e “mãe”. Um anúncio que consideramos emblemático deste

regime é o da Ecorodovias, em que configuração familiar, a disposição das pessoas no carro

e a postura da mulher – o uso da calça e, ainda assim, a tensão do corpo e as pernas

fechadas – figurativizam exemplarmente a programação de certos papéis femininos.

Papéis que negam estes primeiros são aqueles em que a mulher aparece viajando,

passeando, “aproveitando” a vida sozinha ou com outras mulheres. Diferente dos outros,

são papéis não-dependentes do masculino, o que não significa que representem uma

aversão ao homem ou que não haja um relacionamento com homem, da mesma forma que

o papel de “esposa”, como destacamos no início do capítulo, pode ser virtualizado. São

papéis, no entanto, que se chocam com o programado e com outras formas de interação,

justamente pela autonomia do sujeito que nega a “cumplicidade feminina” (cf. conceito de

Giddens apresentado no capítulo 2).

Landowski atribui ao actante do regime de programação um papel temático e, ao

actante do regime oposto, o do acidente, um papel crítico: “é ele quem decide a orientação,

e com frequência inclusive os resultados dos processos nos quais intervém” . Justamente 50

por transtornar a ordem existente, este papel também pode ser chamado de catastrófico. Tal

transtorno, muitas vezes se atualiza em violência simbólica, física ou verbal, conforme

tratamos no capítulo 2. O anúncio que escolhemos para ilustrar esta posição é o da Le Lis

Blanc, que mostra a mulher sozinha, ocupada com a máquina fotográfica, invertendo

inclusive a relação de subordinação que tem a modelo com o fotógrafo (como bem

apresenta o filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni). Além de usar saia, ela senta no

chão e de pernas abertas, contrariando totalmente as prescrições de postura ou das

condições em que tal postura pode ser adotada. E, principalmente, ela assume essa postura

não para o outro, mas para si. Não tem qualquer desejo de fazer mal a alguém ou intenção

de fazer o bem, sem se dar conta, ocupada que está consigo mesma, de que pode

transtornar ou fazer triunfar qualquer programa em curso, qualquer manipulação, qualquer

ajuste . 51

LANDOWSKI, E. Interacciones arriesgadas (trad. Desiderio Blanco; rev. Verónica Estay Stange). Lima: 50

Universidad de Lima, Fondo Editorial, 2009, 1. ed., p. 80. Tradução nossa para: “[É]l es quien decide la orientación, y con frecuencia incluso el resultado de los procesos en los que interviene”.

LANDOWSKI, 2009, p. 80.51

Page 154: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!154

Já nos papéis regidos pela manipulação, há uma intencionalidade de atrair o olhar do

Outro (por oposição, o masculino, atualizado ou virtualizado) que se manifesta na postura,

na interação entre a roupa e o corpo, no sorriso e nos modos de olhar. Nesta posição estão

os papéis de “amante” e “manequim”. Enquanto as duas posições do eixo superior estão

relacionadas ao ser, as do eixo inferior referem-se ao fazer. As configurações de roupa e

corpo constituem-se em competências modais para fazer o outro querer.

Por estar mais presente em Claudia (público feminino) poder-se-ia argumentar a

incoerência de alocar o papel “manequim” no mesmo regime que o da “amante” (mais

presente em Veja), já que este segundo papel atrai mais o olhar masculino. A iconografia

das fotografias de moda ou de produtos de beleza, no entanto (segmentos que dominam os

anúncios com o papel de “manequim”), apresenta um tipo de configuração postural bastante

sexualizada e considerada desejável do ponto de vista masculino (e assumida pelas

mulheres como um dever-fazer). Um exemplo é o anúncio do shopping Golden Square, que

usa esses recursos sem, no entanto, anunciar para mulheres: a configuração da iconografia

de moda serve para atrair o público masculino da revista Exame.

Por último, no regime de ajuste encontra-se o papel “profissional”, onde os sujeitos

atuam baseados em uma competência estésica com a intenção de fazer sentir. O ambiente

profissional talvez seja aquele mais cobrado por ajustes nas relações entre homens e

mulheres, devido à percepção ilusória de que no trabalho todos são iguais. Assim, há que se

adaptar aos estilos diferentes com os quais homens e mulheres realizam suas funções ou

quando trabalham em equipe; ambos precisam seguir regras vestimentares; mulheres não

podem ser demitidas quando engravidam; e por aí vai. Parece haver um senso comum de

que quando falham nos outros papéis, as mulheres se realizam no trabalho, oferecendo uma

possibilidade de trazer sentido à sua vida.

Outro aspecto é que o ambiente profissional, especialmente o corporativo e

especialmente se a mulher for bem-sucedida, é o lugar da manifestação da independência

feminina. No entanto, boa parte dos anúncios com este papel mostra a mulher em

companhia de homens. Profissionais que aparecem sozinhas são, na maior parte, da área

artística (ou “celebridades”), o que não representa o simulacro da leitora das revistas e nem

das mulheres com quem o leitor convive. Há um outro fator relacionado à roupa: o que os

manuais de elegância chamam de feminino apresenta, muitas vezes, uma configuração

plástica da ordem do masculino, como vimos no capítulo 2. Este tipo de “feminilidade”

estaria, parece, no tipo da roupa (saia ou vestido) e em uma certa capacidade de

sexualização do corpo. Um exemplo é o anúncio da FGV, que escolhemos para ilustrar esta

posição. Tanto a mulher executiva não está sozinha quanto sua saia, mesmo aquela que se

considera indicada para o escritório, é justa e delineia a curvatura posterior do corpo. A

posição das figuras humanas, de perfil, só ajuda a destacar este aspecto.

Page 155: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!155

Estabelecidos os regimes que regem as relações entre masculino e feminino em cada

grupo de papéis, podemos investir semanticamente cada posição justamente de acordo com

a dependência que mencionamos antes (figura 49).

Figura 49 – representação dos regimes de interação e da relação de dependência dos papéis femininos ao masculino

Fonte: produção da autora.

As interações programadas, como já vimos, são aquelas consideradas socialmente

ideais para a mulher. O conceito de “capital marital”, assumido pelas próprias mulheres

(ainda que a “economia” do amor ou do casamento não as beneficie, colocando-as em um

beco sem saída), está atrelado à posse, se não de fato, ao menos de direito, do homem.

Temos, portanto, papéis femininos baseados na dependência do masculino.

As interações acidentais, na posição oposta do eixo, baseiam-se na não-dependência

do masculino. O termo “independente”, no entanto, não é o mais adequado. A

regime de programação dependência

papéis “esposa” e “mãe”

regime de acidente autonomia

papéis “independente” e “amiga”

[papel “dona-de-casa”] [papel “anfitriã”]

regime de manipulação liberalidade

papéis “amante” e “manequim”

regime de ajuste liberdade

papel “profissional”

!

!

!

!

Page 156: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!156

independência refere-se à aquisição de competências como recursos materiais ou direitos

civis que permitem à mulher um poder-fazer as coisas. Mas nem sempre estes recursos são

acompanhados de competências pessoais. Por exemplo: a mulher pode comprar um carro

com os recursos do próprio trabalho, pode dirigi-lo sozinha, pode usá-lo para ir até um

restaurante. Mas muitas não entram sozinhas enquanto o acompanhante ou a amiga não

chegarem, pelo que vão pensar dela, especialmente por não quererem ser vistas como

“mulheres sozinhas”. Os papéis do regime de acidente são baseados, então, não na

independência, mas na autonomia. Como diz Landowski quanto ao actante deste tipo de

interação: não manipula o outro em uma direção particular, nem tampouco justifica suas

decisões . 52

A questão da independência parece, sim, estar na base do papel “profissional”, no

regime de ajuste. De acordo com algumas características das dinâmicas do mundo

corporativo que apontamos acima, este é o espaço em que parece se efetivar a

independência feminina, até porque é o lugar da aquisição da competência financeira. No

entanto, vimos que há uma reiteração significante de anúncios em que as mulheres neste

papel aparecem junto aos homens; e ainda que a competência desejável em tal ambiente

seja a profissional, a mulher é figurativizada em trajes e/ou posturas que destacam atributos

físicos, especialmente das partes do corpo sexualizadas culturalmente. Ou seja, ao menos

figurativamente nos simulacros destas publicidades, há uma “dependência”. O papel

profissional estaria baseado, então, na liberdade, que é a condição de poder-fazer, mas não

de poder-ser. Não basta ter dinheiro, se não tiver coragem de entrar sozinha no restaurante

sozinha para degustar um bom jantar.

Também dependentes do masculino são os papéis do regime de manipulação, que

aceitam o acordo tácito de um tipo de interação entre homem e mulher em que a segunda

se “oferece” ao olhar do primeiro, especialmente por seus atributos sexuais. Se mantivermos

a metalinguagem da economia, tal transação subsume um sistema de troca: o sexo pelo

casamento, já adiantando o percurso que pode se dar entre esta posição e a superior, do

regime de programação.

Quando surgiu a pílula anticoncepcional, muito se falou na conquista da “liberdade”

sexual pelas mulheres, o que de fato aconteceu, até certo ponto. Na prática, no entanto, a

maior facilidade na contracepção não conferiu real “autonomia” sexual da mulher, seja no

direito às decisões relativas ao próprio corpo, seja no exercício da sexualidade. Por

exemplo, a mulher ainda é julgada pela quantidade de parceiros sexuais, pelos modo como

faz sexo etc. Costuma-se dizer, então, que se trata muito mais de uma liberalidade sexual,

que facilita o acesso ao sexo, mas que ainda controla este acesso para as mulheres. Um

LANDOWSKI, 2009, p. 78.52

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!157

bom exemplo é a personagem Peggy do seriado Mad Men, ambientado em uma grande

agência de propaganda norteamericana no início dos anos 1960. Ao conseguir o emprego

de secretária, seu exame admissional inclui uma visita ao ginecologista. O médico lhe

prescreve a pílula para que não engravide de seus chefes ou colegas de trabalho, visto que

manter relações sexuais com eles é algo tacitamente aceito e incentivado, ainda que não

explícito no contrato de trabalho. Nos papéis “amante” e “manequim”, então, o que se vê são

mulheres figurativizando uma visão masculina da disponibilidade sexual feminina desejável,

ou seja, da liberalidade.

Na representação gráfica dos regimes de interação, Landowski substitui as linhas

retas do quadrado semiótico por linhas curvas, de maneira a privilegiar o processo ao invés

do sistema e de considerar outros postos que não os quatro fixos do polígono . Tal 53

processo prevê que o sujeito pode ocupar diferentes posições no decorrer de um percurso,

como de fato é possível perceber na passagem de um a outro tipo de relação de

dependência do masculino. Da dependência programada a mulher pode passar para a

liberdade, que é alcançada, não exclusivamente, mas com grande importância, pela

independência financeira. De fato, para se atingir um estado de autonomia, tal recurso é

fundamental. Partindo da posição disfórica, a mulher pode se cansar da autonomia – que

não por nada é alocada no regime de acidente, com todo alto preço que isso acarreta na

interação com o outro –, seguindo para a liberalidade e aceitando participar do jogo de

manipulação entre masculino e feminino que pode ter, como um de seus resultados, o

casamento, a dependência e a programação.

Dois papéis encontrados em pouca quantidade nas revistas podem ser encaixados em

posições flutuantes na representação. O de “dona-de-casa”, no eixo vertical esquerdo, entre

os regimes de programação e manipulação. É um papel “tradicional” da mulher que, ainda

que o exerça sozinha, o faz para o marido e/ou os filhos. No eixo vertical contrário, o da

“anfitriã”, ou dona-da-casa, papel que exerce dentro de casa mas não para os outros

moradores, e sim para si e seus interesses.

Estabelecidas as articulações entre papéis sociais e as diversas configurações do

corpo vestido, partimos para o exame mais detalhado destes aspectos nas mulheres de

saia.

LANDOWSKI, 2009, p. 83.53

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5 A MULHER DE SAIA

A vida não é justa. É plissada, franzida, godê – e é curta.

Líria Porto

Um dos objetivos específicos deste trabalho é verificar a ocorrência da saia. Se há um

menor uso da saia pelas mulheres dos grandes centros urbanos, haveria também uma

menor presença da saia vestindo as mulheres na publicidade? Considerando os resultados

obtidos após a seleção dos anúncios para constituição do corpus semiótico, cujo

procedimento foi apresentado no capítulo 3, já se percebeu que a saia não era a peça de

roupa mais frequente em nenhuma das três publicações. No capítulo 4, este conjunto de

anúncios sofreu uma redução a partir da exclusão de alguns exemplares pouco significantes

para a análise (baixa visibilidade da roupa, anúncios muito similares entre si). Neste corpus

definitivo, a calça veste 50% das mulheres nos anúncios. O vestido é usado por 38% e a

saia por somente 12% (ver tabela 11 – Apêndice A).

Se classificarmos as roupas por sua função de fechar ou manter aberto o entremeio de

pernas, a calça estaria na primeira categoria, e saia e vestido na segunda. Tal oposição é

considerada tanto por Christine Bard, para falar da vulnerabilidade da vestimenta aberta,

quanto por Anne Hollander, para mostrar a evolução das roupas a partir da necessidade de

diferenciação de gênero.

Ainda que saia e vestido façam parte desta mesma categoria, não se pode dizer que

tenham a mesma posição na constituição do tema da feminilidade. O vestido, enquanto

roupa inteiriça, que une tronco e pernas em uma única unidade sintagmática do corpo

vestido, é uma peça usada originalmente, e durante muito tempo, tanto por homens quanto

por mulheres. É a substituição do “camisolão” por peças que cobriam individualmente cada

perna que vai dar origem à calça, figura de conteúdo e elemento metonímico da

masculinidade. E é a divisão do traje inteiriço em duas peças, corpete e anágua, que vai dar

origem à saia, figura de conteúdo e elemento metonímico da feminilidade.

Nossa premissa quanto a este papel da saia, que não pode ser ocupado pelo vestido,

é reiterado também por diversas práticas e enunciados que associam a saia com o feminino,

inclusive aqueles que demonstram uma intolerância ao feminino e aqueles que, em ação de

resistência, procuram afirmá-lo. Enquanto este último fato justifica o uso da saia em

situações de protesto, o primeiro é um dos motivos para que a saia seja menos utilizada, ou

utilizada em condições específicas (e mais “seguras”).

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Outro aspecto relevante da saia é sua associação com a sexualidade. Em termos

históricos, o uso da saia como peça individual – não como parte do traje cuja peça principal

era o vestido –, assumindo a parte inferior do corpo como uma unidade sintagmática

separada do tronco, implicou também assumir a sexualidade feminina adulta, coisa que os

amplos vestidos acabavam por negar ou esconder. Contemporaneamente, percebe-se este

aspecto da saia quando a mulher decide vesti-la para um encontro amoroso ou quando

decide usá-la em situações ou espaços dominados por uma lógica masculina. No primeiro

caso, o uso da saia é eufórico; no segundo, é disfórico, levando a situações de intolerância

baseadas no não-cumprimento de certos percursos narrativos desejáveis para a mulher, ou

no dizer de Anthony Giddens, a uma recusa da “cumplicidade feminina”.

Em adição a todos estes aspectos, já abordados no capítulo 2, uma certa preferência

do masculino pelo vestido ajuda a reforçar a diferenciação de discursos que as duas peças

manifestam. A pintora Frida Kahlo tinha um uso bastante político de suas roupas. Vestia um

tipo de saia no estilo de um povoado mexicano onde as mulheres tinham participação social

muito importante e eram consideradas fortes e sensuais. Já o vestido, usava para agradar o

marido, Diego Rivera . Vestidos também são as roupas que, segundo o jornalista Xico Sá, 54

“[…] nos põe, homens de todas as gerações e gostos, mais românticos. O mais tosco dos

canalhas sucumbe como um romeiro de joelhos diante de Nossa Senhora Aparecida” . 55

Enquanto a saia sinaliza a sexualidade e a autonomia femininas, o vestido “santifica” e torna

as mulheres inatingíveis – o que, de fato, é bem “romântico”, ainda que não no sentido

usado pelo jornalista.

Estabelecida a diferença entre vestido e saia e a reiteração da menor ocorrência de

saia também na publicidade (ao menos, aquela do nosso corpus), passamos à análise

específica das mulheres de saia nos anúncios, considerando os espaços em que atuam, os

papéis sociais que exercem e a articulação entre corpo e roupa. A partir desta grade leitura,

pretendemos observar se também ocorrem na publicidade os outros aspectos da saia que

desenvolvemos no capítulo 2, incluindo a associação entre as diferentes configurações

plásticas e os temas do masculino e do feminino.

5.1 A saia no papel “profissional”

Como já observado, o papel em que a saia é mais presente é o “profissional”. As saias

usadas neste papel, ao menos pelas mulheres que trabalham em escritórios, têm forma

Frida Kahlo: retratos de um estilo. Stylight, s/d. Disponível em: <http://www.stylight.com.br/Love/O-Estilo-De-54

Frida-Kahlo/#.VGZODZMy2z7>. Acesso em: 14 nov. 2014.

SÁ, Xico. Nada como uma mulher de vestido. Folha de S. Paulo, 31 out. 2012. Disponível em: <http://55

xicosa.blogfolha.uol.com.br/2012/10/31/nada-como-uma-mulher-de-vestido/>. Acesso em: 14 nov. 2014.

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verticalizada, textura de tecido plano, descendo ao longo das pernas sem ficar mais ampla,

como podemos ver na figura 1. Nos anúncios de Algar, TIM e CCR, as mulheres estão

quase de frente. Nos anúncios de Bradesco e FGV, o corpo posicionado diagonalmente faz

ressaltar a parte posterior, especialmente o contorno da saia justa sobre os glúteos.

Segundo as regras de vestimenta no trabalho, saias “reta” e “lápis” são as mais

adequadas para o ambiente do escritório (cf. capítulo 2); em contrapartida, a aderência ao

corpo é considerada inadequada, assim como sandálias e saltos altos. Nenhuma das

mulheres nestes anúncios aparenta usar meia-calça, também considerado incorreto. De

fato, o ato de olhar a pele nua das pernas destas mulheres acaba virtualizando o contato.

Tais modelos de saia são considerados mais “confortáveis”; porém, a postura mostra

uma certa tensão que destoa de um estar à vontade. Exceto pela mulher no anúncio TIM,

que pode flexionar os joelhos e abrir a perna porque a saia envelope permite isso, as

demais estão com as pernas unidas, ou separadas apenas do joelho para baixo. Quando

sentadas, a constrição é ainda mais forte. A saia atua como sujeito-destinador no corpo da

mulher, levando-a a adotar posturas e limitar seus movimentos de acordo com a roupa.

Outra situação que contraria os manuais é o uso da saia para viajar. Nos anúncios de

Azul e TAM as mulheres vestem esta peça, e no anúncio de TIM, apesar de não estar na

viagem-deslocamento, a mulher está em outra cidade. Estes três exemplos também são os

únicos em que a mulher não está acompanhada por um homem – ou seja, quando está fora

do escritório. No anúncio de Algar, o ambiente é o escritório e a mulher não está sozinha, e

sim acompanhada de outra mulher. Este exemplar, encena a relação entre um representante

da empresa-cliente e o funcionário da empresa-anunciante. Neste anúncio, a mulher de

saia, da direita, é a fornecedora, e a da esquerda, de calça, é a cliente. No anúncio do

Bradesco também percebemos a coincidência entre a disposição topológica esquerda x

direita (plano da expressão) com as figuras do conteúdo (calça/masculinidade x saia/

feminilidade) para caracterizar cliente e fornecedor. Neste anúncio, o banco diz que está

“lado a lado” com as empresas (ver anúncio completo no Apêndice B – Caderno de

Imagens). A mulher, à direita, usa o crachá de identificação de funcionária do banco; o

homem, à esquerda, como cliente, não usa crachá.

Se podemos entender aí um procedimento semissimbólico de alcance mais geral,

talvez ele autorize entender relações hierárquicas no anúncio da FGV, que divulga MBA

para executivos de todos os níveis gerenciais: o homem, à esquerda, de calça, com as

mãos livres, como superior; e a mulher, à direita, de saia, carregando uma pasta, como

subordinada. Neste sentido, sua saia muito justa, os sapatos de bico fino e a

aspectualização escolhida pelo enunciador para o seu corpo revelam um percurso narrativo

da sedução nas relações de trabalho.

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Anúncios ainda não referenciados: Bradesco (Exame, 5/10/2011); Samsung (Veja, 2/11/2011). Fonte: as edições das revistas. Os anúncios Bradesco, Samsung e TAM estão cortados nesta figura. A versão

completa pode ser vista no Apêndice 2 – Caderno de Imagens.

Figura 1 – anúncios com a saia vestindo o papel “profissional

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5.2 A saia no papel “esposa”

As mulheres no papel “esposa” (figura 2) já usam uma saia, ainda que o corte seja

reto, com um formato mais amplo, como acontece nos anúncios CVC e Petrobrás. Nos

demais exemplares, além de um certo volume, as saias também são onduladas, de tecidos

coloridos e com uma textura que atrai o toque, como nos anúncios de Chevrolet e Ford.

Neste último, o ondulado vai até acima do cós da saia. Como vimos no capítulo 2, tais

configurações plásticas compõem o tema da feminilidade. São saias para serem usadas

quando a mulher assume papéis mais tradicionais, como os de “dependência” (cf. capítulo

4). Assumir a feminilidade, neste papel, não representa risco, pois a presença do homem

sugere a ideia de propriedade tanto quanto oferece proteção. É uma interação que conta

com a “cumplicidade feminina”.

Anúncios ainda não referenciados: Mitsubishi (Veja, 3/8/2011); Chevrolet (Veja, 27/6/2012); Ford (Veja, 19/10/2011). Fonte: as edições das revistas. Os anúncios CVC, Mitsubishi e Chevrolet estão cortados nesta

figura. A versão completa pode ser vista no Apêndice 2 – Caderno de Imagens.

Figura 2 – anúncios com saia vestindo o papel “esposa”

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Além disso, é interessante observar que quatro destes anúncios são assinados por

marcas do segmento automotivo, sendo três especificamente de marcas de automóveis.

Nestes enunciados, repete-se a distribuição das figuras masculinas x femininas e lado

esquerdo x direito, que nos anúncios com papel “profissional” homologava os temas superior

x subordinado. Quanto ao papel da mulher como consumidora de carros, parece haver três

proposições distintas. O anúncio da Ford coloca a atriz Deborah Secco como “incentivo”

para o consumidor, ou seja, ignorando a mulher como possível compradora; no da

Mitsubishi, a esportividade do carro é de interesse dos homens (ver anúncio completo no

Apêndice B – Caderno de Imagens), enquanto as mulheres demonstram empolgação com o

porta-malas. Já o da Chevrolet, por simular uma configuração de editorial de moda (não

apenas a diagramação, mas a menção ao fotógrafo J. R. Duran e a postura dos modelos),

parece dialogar mais com o público feminino do que com o masculino. Este anúncio foi

veiculado em Veja e, desta forma, sugere que a marca possa estar mais atenta aos índices

de mercado, que apontam a mulher como influenciadora de 70% das compras de carros no

Brasil e como compradora direta de 40% deles . 56

5.3 A saia “feminina”

O terceiro grupo de anúncios que gostaríamos de mostrar (figura 3) reúne mulheres de

diferentes papéis, mas todas vestem a saia em configuração plástica mais “feminina” (cf.

tipologia do capítulo 2). Os dois primeiros anúncios, da Hering e do estado Pernambuco

(promoção do turismo), trazem mulheres em papéis profissionais: a cantora Cláudia Leite,

que está ali em seu papel na “vida real”, mencionado no texto verbal do anúncio, e a

dançarina de frevo.

Como já observado no capítulo 4, mulheres cujas profissões estão ligadas à área

artística, ou à mídia (atrizes, apresentadoras de programas de TV), que são modelos ou

“celebridades”, costumam aparecer com roupas que poderiam ser chamadas de mais

“sexualizadas”. Figurativamente, isso inclui roupas curtas, justas e saias (que por princípio já

é associada com este tema), especialmente nesta configuração mais “feminina”. Quando

temos estas mulheres assumindo outros papéis nos anúncios, como é o caso de Deborah

Secco no anúncio Ford (papel “esposa” – figura 2) ou da atriz Camila Pitanga no anúncio de

Lilica&Tigor (papel “mãe” – figura 3), a roupa difere daquela usada pela maioria das

mulheres nestes papéis. “Esposa" e “mãe” são papéis em que as mulheres vestem

prioritariamente calça e, em seguida, vestido (ver tabela 10 – Apêndice A). Parece haver,

FAGUNDEZ, Ingrid. Mulheres compram mais carros, mas Salão ainda é pensado para homens. Folha de S. 56

Paulo, 8 nov. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/11/1545294-mulheres-compram-mais-carros-mas-salao-ainda-e-pensado-para-homens.shtml>. Acesso em: 15 nov. 2014.

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portanto, uma prescrição para que a roupa de mulheres cuja atividade profissional depende

da aparência física, e que costumam se encaixar – ou a ajudar a construir – um simulacro

de “mulher bonita”, também explore o erotismo de maneira “suavemente retorcida”, como diz

Landowski sobre os modos de presença da mulher na publicidade. Pois a sociabilidade

“vulgar” operada pela publicidade, segundo o semioticista, não está apenas neste tipo de

discurso: “[…] poderia tratar-se de garantir efeitos de presença análogos em benefício das

celebridades mais ‘conhecidas’ ou mais ‘amadas’, princesas e altezas, vedetes de todo

gênero, inclusive personalidades do mundo político” . 57

LANDOWSKI, E. Presenças do outro (trad. Mary Amazonas Leite de Barros). São Paulo: Perspectiva, 2002, 57

p. 162.

Anúncios ainda não referenciados: Hering (Claudia, novembro de 2011); Pernambuco (Exame, 14/12/2011); Lilica&Tigor (Veja, 17/8/2011); Intimus (Claudia, fevereiro de 2012). Fonte: as edições das revistas. O anúncio

Pernambuco está cortado nesta figura. A versão completa pode ser vista no Apêndice 2 – Caderno de Imagens.

Figura 3 – anúncios com figuras usando “saia feminina”

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A saia “feminina” também veste as mulheres no papel “independente”, como nos

anúncios de Intimus, City Shoes e IBM. Na tipologia da relação de dependência do

masculino (cf. capítulo 4), este papel se insere na posição da “autonomia”. No regime de

interação, é a posição do acidente, do risco. E, de fato, exceto pelo anúncio de IBM, os

outros dois apresentam situações de “risco” para a mulher que usa saia – evidentemente,

tratadas de maneira muito mais suavizada pela publicidade. No anúncio de City Shoes, a

mulher está na rua e de pernas abertas. No anúncio de Intimus, a saia ajuda a figurativizar

tanto a sedução quanto o perigo que é combatido, ou atenuado, pelo uso do absorvente.

Faz parte da configuração discursiva desta marca construir enunciados em que uma mulher

anda por um espaço público usando roupas claras, ou justas, ou “rodadas” (como esta saia,

que parece poder levantar a qualquer momento), enquanto é olhada ostensivamente por um

homem. Contrariando as recentes manifestações pelo fim do assédio nas ruas , as 58

mulheres destes anúncios aparentam um gostar de ser olhadas desta forma. O absorvente é

um tipo de objeto modal que permite à mulher continuar cumprindo um percurso narrativo de

sedução (usando roupas que seduzem) mesmo no período menstrual . 59

Ainda sobre esta configuração de saias, no que tange à interação entre corpo e roupa,

percebe-se uma capacidade de mobilidade muito maior do que aquela proporcionada pela

saia mais ajustada do ambiente de trabalho corporativo. Vemos isso nas mulheres que

pulam nos anúncios de Petrobrás e Chevrolet (figura 2), na dançarina de frevo do anúncio

do turismo de Pernambuco, na moça que fica de pernas aberta em City Shoes e naquelas

que aparecem caminhando em Lilica&Tigor e em Intimus (figura 3). Alguns destes

movimentos sugerem também uma maior liberdade corporal, um jeito mais “moleca”, para

usar uma expressão popular, que é contrário a certas prescrições sobre o comportamento

adequado para a mulher: contido, suave e discreto.

5.4 O “sujeito provocante”

As mulheres usando saias longas parecem operar um modo de presença que

Landowski chama de “sujeito provocante” . O “sujeito provocante” olha o leitor diretamente. 60

Apesar disso, por sua iteratividade, o estado de comunicação é simulado, diferente das

situações embreadas caracterizadas pelo estabelecimento de um diálogo durativo entre

O site Chega de Fiu-Fiu é uma plataforma na internet do movimento de mesmo nome, que busca mapear os 58

casos de assédio nas ruas e combater esta prática. Disponível em: <http://chegadefiufiu.com.br/>. Acesso em: 16 nov. 2014.

BAGGIO, A. T. Significações do corpo (in)vestido em uma publicidade de absorvente feminino. In: 59

CONGRESSO MUNDIAL DE COMUNICAÇÃO IBERO-AMERICANA, 1., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos… São Paulo: CONFIBERCOM, 2011. Disponível em: <http://confibercom.org/anais2011/pdf/43.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2014.

LANDOWSKI, 2002, p. 160.60

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modelo e leitor (que seria o “sujeito socializado”). Em termos de ocorrência nas revistas,

este modo é mais frequente em Claudia, pois é uma das marcas da iconografia da moda.

O agrupamento destes anúncios pelo modo de olhar faz com que se atenuem bastante

as diferenças entre o papel “manequim” e os demais papéis deste conjunto. Na descrição

dos papéis sociais em Claudia, detalhamos melhor os critérios de atribuição do papel

“manequim”, com base nas configurações do olhar (e do corpo) nas fotografias, propostas

por Landowski e Goffman, bem como justificamos a não-atribuição deste papel em certos

anúncios com elementos que sugeriam outros papéis. Deste conjunto com anúncios

bastante semelhantes, no entanto, emergem duas situações significantes: o uso de saias

longas (figura 4) e a “sedução direta” em papéis profissionais (figura 5).

Anúncios ainda não referenciados: Clight (Claudia, dezembro de 2011); Stroke (Claudia, maio de 2012); City Shoes (árvore – Claudia, abril de 2012); Gregory (Claudia, setembro de 2011). Fonte: as edições das revistas.

Figura 4 – anúncios com o “sujeito provocante” usando saia longa

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Ainda que confeccionadas em um tecido pesado, como o modelo em jeans do anúncio

Clight, as saias longas “dançam” em volta do corpo com o caminhar da mulher. No geral,

nestes anúncios elas são mais amplas, plissadas ou onduladas, simulando babados, e feitas

de tecidos leves, tornando fácil levantá-las, o que de fato acontece no anúncio de Gregory.

O móvel e a situação de espera nos fez classificar a mulher neste anúncio como “anfitriã”. A

moça de City Shoes sentada na árvore assume o papel de “manequim”, pelo olhar e pela

constrição e não-naturalidade da postura. As demais estão no papel “independente”, pela

sugestão de mobilidade, do “estar fazendo alguma coisa”. De fato, a marca Clight diz que o

código X que a mulher possui (uma alusão ao cromossomo X) é o que “coloca o mundo em

movimento”.

Como já apontamos, apesar da classificação em diferentes papéis, postos em

conjunto os anúncios se assemelham no olhar provocante. A sedução direta deste olhar é

reforçada pelo modo de levantar a saia da mulher no anúncio de Gregory, procedimento que

já havíamos encontrado em mulheres usando vestido longo (figuras 5a e 5b - capítulo 4), e

que possuíam o mesmo tipo de olhar. O levantar da saia, que nestes exemplos realmente se

atualiza, está virtualizado nos outros, conferindo mais um aspecto de sexualidade àquela já

atribuída à saia enquanto figura de conteúdo.

Anúncios ainda não referenciados: Nextel (Exame, 16/11/2011); SBT (Veja, 17/8/2011). Fonte: as edições das revistas.

Figura 5 – anúncios do “sujeito provocante” no papel “profissional”

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Há prescrições bem rígidas sobre a aparência da mulher do trabalho, especialmente

quanto a um “parecer sensual”. Tais regras são relativizadas, ou até a sensualidade é

desejada, quando a profissão feminina é relacionada à aparência física, à valorização da

beleza e exposição do corpo, como entre as modelos, atrizes, cantoras, celebridades etc. Tal

sensualidade pode ser figurativizada pela saia. Nos anúncios da figura 5, além da saia –

que, nestes casos, não é aquela “feminina” –, a sedução está no olhar direto e “provocante”.

Em Nextel, a mulher é a escritora e apresentadora Fernanda Young. No anúncio do

SBT, é a ex-modelo Isabella Fiorentino, apresentadora do programa Esquadrão da Moda. A

postura e as roupas mudam bastante quando a mulher apresenta um programa jornalístico –

“sério”, portanto – ou um programa de variedades. A sensualidade parece não combinar com

a aparência de seriedade que algumas situações exigem – e os manuais de vestimenta no

trabalho reforçam bastante isso. No entanto, além de a sensualidade estar figurativizada nas

roupas e posturas das mulheres que trabalham em escritórios nos anúncios publicitários,

nota-se que também é uma competência exigida na prática.

5.5 Configurações posturais

Uma das posturas mais significantes encontradas nos anúncios é aquela em que as

mulheres têm a mão apoiada na cintura. Para o etólogo Desmond Morris, um dos principais

sinais indicativos do gênero feminino é o corpo em formato de ampulheta: busto e quadris

mais largos, intermediados por uma cintura mais fina . Tal proporção seria extremamente 61

atraente para o sexo masculino, mesmo que as medidas exatas não sejam aquelas das

misses. O motivo para a atração despertada por este tipo de corpo seria biológica. Como a

cintura se alarga com o nascimento dos bebês, durante muito tempo uma cintura fina foi

sinal de que a mulher ainda não havia engravidado; principalmente, que ainda era virgem.

Por outro lado, as formas arredondadas do corpo indicavam uma mulher pronta para o sexo.

A saia, em si, já é um tipo de peça que demarca a cintura e, portanto, assume a

sexualidade feminina (cf. capítulo 2), efeito que o vestido não produz da mesma forma.

Vestidos usados com cintos talvez se aproximem. A contribuição do cinto para este efeito é

ainda maior quando usado com a saia. Além do cós da saia e do cinto, a mão na cintura

também ajuda a demarcar a cintura feminina, chamando atenção para esta parte do corpo e

acentuando sua atratividade.

Apesar de usarmos a expressão “mão na cintura”, o que facilita e torna natural esta

posição é o acomodamento da mão no alto do quadril. É a amplidão desta parte que permite

o apoio da mão e que, em relação com a cintura, constrói o corpo em forma de ampulheta.

MORRIS, D. L’animale donna: la complessità della forma femminile (trad. Cecilia Scerbanenco). Milano: 61

Oscar Mondadori, 2012, p. 190.

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Morris, no entanto, descreve esta posição como um sinal de desafio, de desconfiança, de

enfrentamento, ou de afastamento e defesa. Por outro lado, o quadril jogado para o lado,

que acompanha algumas das mãos na cintura nos nossos anúncios (figura 6), seria uma

maneira de dizer “olha como é bonito meu quadril” . 62

MORRIS, 2012, p. 201. Tradução nossa para: “guarda che bei fianchi che ho”.62

Anúncios: A – C&A (Veja, 14/3/2012); B – Lessô (Claudia, setembro de 2011); C – Hering; D – Nextel; E – Corello; F – SBT; G – Mitsubishi. Os anúncios completos podem ser vistos no Apêndice B – Caderno de

Imagens. Fonte: as edições das revistas.

Figura 6 – mulheres de saia com mão na cintura (recorte de anúncios)

A B C

D E F G

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A postura é obtida com um desequilíbrio no apoio de pernas e pés: se o quadril é

jogado para o lado direito (do nosso ponto de vista), como nos recortes A, B e C da figura 6,

a perna direita ficará esticada e encaixada, se responsabilizando pela maior parte da

sustentação do corpo. A perna esquerda, por sua vez, será flexionada na altura do joelho.

Nestas imagens, no entanto, a mão na cintura está colocada do lado oposto àquele para

onde aponta o quadril, diminuindo o efeito de chamar atenção para a sua curvatura.

Nas imagens D, E, F e G, a mão é apoiada do lado em que o quadril fica mais

protuberante, ou seja, do lado em que a perna está esticada. Na imagem G, a mulher com a

mão na cintura acaba apontando o cotovelo para as outras (visualizar o anúncio na figura 2).

Para Morris, este seria um exemplo de uso “defensivo” da mão na cintura, quando é

colocada de maneira a apontar o cotovelo para outras pessoas com quem o sujeito divide o

espaço . De fato, o rosto desta mulher possui uma expressão mais contida, que contrasta 63

com a aberta empolgação de suas companheiras de enunciado. Talvez seja a proprietária do

carro – já conhece seus atributos, por isso não se surpreende mais com eles – e esteja

enciumada com a situação.

Em todas estas mulheres de saia com a mão na cintura, a mão é posicionada com o

polegar para trás e os outros quatro dedos para frente (exceto no recorte A, em que o

polegar parece estar enganchado no cinto). Parece ser a posição mais natural e confortável,

pelo acomodamento que a abertura entre polegar e indicador proporcionam à mão no

contorno do quadril. No entanto, em alguns anúncios apresentados no capítulo 4, vimos um

outro tipo de configuração, em que todos os dedos ficam visíveis. A mão não se acomoda na

curvatura do quadril, é colocada mais para frente do corpo. Na ocasião, levantamos a

hipótese de que esta configuração seria um jeito menos “sensual” de “mão na cintura”, o que

parece fazer sentido se considerarmos tanto a função de atratividade sexual da cintura –

para a qual contribui a mão apoiada na curvatura do quadril – quanto a presença do jeito

“sensual” nas posturas das mulheres de saia (lembrando, sempre, da associação da saia

com a sexualidade). O jeito “menos sensual” teria, portanto, a função de não provocar esta

associação quando ela não é desejável para a figura feminina – como é o caso da jornalista

Fátima Bernardes (figura 10b, capítulo 4) – ou de atenuar um parecer que já possuía algum

elemento de sensualidade (Usaflex – figuras 17a e 17b, capítulo 4).

Outra postura recorrente é aquela em que a mulher toca ou chega perto dos cabelos e

da cabeça, como mostra a figura 7. Morris aponta que as culturas que obrigam a mulher a

cobrir a cabeça o fazem porque a exposição dos cabelos excita os homens . 64

MORRIS, 2012, p. 202.63

MORRIS, 2012, p. 29.64

Page 171: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO ...

!171

Para Anne Hollander , durante muito tempo os cabelos femininos foram mantidos 65

presos e cheios de adorno, de modo a disfarçar o contorno real da cabeça e a relação com

o pescoço. Havia uma relação entre o cabelo solto e a disponibilidade sexual – associação

que, para a historiadora, permanece até hoje:

HOLLANDER, A. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno (trad. Alexandre Tort; rev. Gilda 65

Chataignier). Rocco: Rio de Janeiro, 2003. p. 68.

Anúncios: A – Campesí; B – Nextel; C – Gregory; D – Vivara; E – C&A; F – Shopping Golden Square; G – Algar; H – CCR. Os anúncios completos podem ser vistos no Apêndice B – Caderno de Imagens.

Fonte: as edições das revistas.

Figura 7 – mulheres de saia com mão na cabeça ou no cabelo (recorte de anúncios)

A B C D

E F G H

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!172

O cabelo feminino solto era sempre uma referência especificamente sexual, sinal de descontração emocional, suscetibilidade em relação ao sexo e convite sexual padrão – Maria Madalena usa o cabelo solto. Ainda é assim no caso da moda atual, um outro sinal da dependência feminina de temas antigos. 66

Morris distingue, no entanto, os efeitos produzidos por cabelos longos e curtos.

Enquanto os longos sugerem a sexualidade, liberdade de espírito, rebelião pacífica e

criatividade, os curtos são associados com disciplina, autocontrole, eficiência, conformismo,

autoridade . Dentre as mulheres de saia que estão com as mãos atrás da cabeça (figura 7 67

– A e B), que tocam os cabelos (C, D e E), ou que chegam perto de tocá-los (recorte F),

todas têm cabelos compridos. As mulheres dos recortes G e H têm, respectivamente, cabelo

curto e cabelo preso. Seu papel é profissional e sua configuração postural caracteriza-se

pela ausência de outras marcas de “sensualidade”: a saia é reta, verticalizada; o quadril não

está jogado para o lado; os joelhos não estão flexionados (apenas levemente, no recorte H).

E suas mãos, que não seguram nada, não estão ao longo do corpo e não fazem outros

gestos – e que, combinadas ao sorriso aberto –, assumem uma posição de disponibilidade

profissional, em que a diferença entre os braços cruzados (recorte G) e as mãos unidas na

frente do corpo (recorte H) indicam, somente, como se manifesta a disponibilidade nos

diferentes níveis hierárquicos.

Os anúncios apresentados até agora também permitem observar as posições das

pernas. Em pé, a configuração principal consiste em manter uma das pernas esticadas e

outra flexionada, o que provoca uma sinuosidade corporal, menos ou mais exagerada,

dependendo do caso. As pernas retas, ou quase, como vimos, estão nos anúncios em que a

mulher veste a saia “profissional”, mais verticalizada, sem ser aquela versão aderente ao

corpo (figuras 7G e 7H). Em uma das versões aderentes, presente no anúncio da FGV

(figura 1), uma das pernas está afastada, aumentando o efeito de sensualidade. Quando a

mulher está sentada, as saias verticalizadas forçam uma postura de constrição para o

fechamento do entremeio das pernas, sugerindo que a posição é tensa e não relaxada,

muito menos confortável. No anúncio da Gregory (figura 7C) em que a mulher usa saia

longa, é o fato de levantá-la que obriga a sentar com as pernas cruzadas, postura que, por

sua vez, tem a função de mostrar à consumidora que mesmo uma saia longa pode ser

“sensual” – considerando que este é o objeto de valor buscado pelas mulheres.

Evidentemente, há diversos outros aspectos de expressão do rosto, gestualidades e

posturas que poderiam ser observados. Os que apontamos aqui, no entanto, mostram a

relação entre a saia, por si só uma roupa que figurativiza a sexualidade, com outros

HOLLANDER, 2003, p. 78.66

MORRIS, 2012, p. 30-31.67

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!173

elementos que constituem o mesmo tema, presentes na maneira como se organiza a

postura nas encenações do corpo. E como veremos, haverá tipos diferentes de sexualidade

desejáveis para cada papel.

5.6 Tipologia do uso da saia

Nossa pesquisa partiu da hipótese de que estaria havendo uma restrição ao uso da

saia por mulheres, especialmente nos grandes centros urbanos. A premissa teve origem no

trabalho de Christine Bard, exaustivamente citado neste estudo. Considerando a verificação

de nossa hipótese principal como um programa narrativo de base, foi preciso, antes,

observar se as situações descritas pela historiadora francesa faziam sentido no contexto

brasileiro, e se poderíamos encontrar outros enunciados e práticas que dessem consistência

a este discurso. Esta pesquisa intermediária, que podemos entender como um programa

narrativo de uso, está descrita no capítulo 2, onde não apenas comprovamos a questão da

intolerância (e da resistência), do menor uso da saia e das condições de seu uso, como

também propomos um regime de produção de sentido em que uma das posições

axiológicas é ocupada por esta peça de roupa. Tal regime articula os temas (e valores) da

feminilidade e da masculinidade e as figuras de conteúdo (a saia e a calça em si) e plásticas

que compõem estes temas, gerando posições que são ocupadas por saias “femininas” e

saias “masculinas” e, logicamente, ainda que delas não tratemos no momento, por calças

“femininas” e “calças femininas”.

Existindo a intolerância à saia nas práticas e discursos na “vida real”, ela produziria

efeitos de sentido na publicidade? – nos perguntamos. Diretamente, vimos que não. A saia

aparece em menor número do que outras peças, o que reitera o menor uso da peça no

cotidiano. Mas a publicidade não manifesta discursos de não-uso à saia. Indiretamente,

porém, os papéis sociais que usam saia, os valores destes papéis, as condições de uso e os

tipos de saia escolhidos para vestir as mulheres nos anúncios, apontam para uma

construção de sentido da saia que está na base de muitos dos discursos da intolerância. Os

sentidos são o da sexualidade e o da feminilidade.

A segunda questão gira em torno dos regimes de interação que articulam a relação

entre os papéis sociais e o uso da saia. No capítulo 4, já havíamos proposto uma

distribuição dos papéis sociais femininos de acordo com a relação de dependência que

possuem do masculino (lembrando que há um uso muito específico dos termos

“dependência” e “masculino”, conforme já explicitamos). Nesta distribuição, os papéis mais

valorizados socialmente são os de “esposa” e “mãe”, que obedecem a um regime de

programação e dependência do masculino; em oposição, neste contexto, está o papel que

chamamos de “independente”, caracterizado pelo “fazer as coisas sozinha”, sem o

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!174

masculino. É o papel dos regimes de autonomia e, consequentemente, de acidente,

justamente pelas diversas quebras de expectativas quanto às posturas e práticas mais

adequadas ao simulacro de mulher. Negando esta posição está o regime de manipulação e

de liberalidade, que destina os papéis de “amante” e “manequim”. Ainda que nestes papéis

as mulheres apareçam sozinhas, elas buscam, por meio da sedução, conquistar um papel

do regime de programação e dependência. Literalmente, o papel “amante” faz mais sentido

nesta narrativa; porém, as configurações corporais do papel “manequim” figurativizam,

justamente, essa busca pelo olhar e pelo desejo masculinos. Oposto a esta posição, e

implicada com os regimes de acidente e autonomia, está o regime de ajuste e liberdade. É

ocupado pelo papel “profissional”, no qual a mulher pode conquistar independência

financeira, mas não autonomia. E, de fato, as mulheres neste papel raramente aparecem

sem um homem; além disso, muitas de suas configurações posturais e de vestimenta

remetem à sensualidade – tema proscrito das relações de trabalho, ao menos nos manuais

de elegância.

A chave para se decifrar a oposição entre os discursos da vestimenta adequada para o

trabalho e a figurativização da vestimenta de trabalho na publicidade é, justamente, a saia.

Como já mostramos na figura 1 deste capítulo, existem saias que delineiam o corpo

feminino de maneira totalmente contrária ao que é considerado “adequado” em termos de

roupa para o ambiente profissional. O enunciador também coloca a mulher profissional em

certas aspectualizações e posturas que destacam partes do corpo relacionadas à

sexualidade. Além de sensuais, tais roupas são desconfortáveis, o que novamente destoa

do que se diz nos manuais sobre as saias “retas”. Isso sem falar que a saia, por si só, já não

é considerada a melhor roupa de trabalho.

Tais prescrições contra a sensualidade não destoam apenas do que mostram os

anúncios, mas também de algumas práticas, como revela o depoimento de uma executiva

da Sony concedido à autora de um livro sobre “mulheres chauvinistas”:

meus maiores mentores sempre foram homens. Por quê? Porque eu tenho pernas lindas, seios maravilhosos e um grande sorriso que Deus me deu. Porque eu quero fazer meu primeiro milhão antes dos 35. Então é claro que sou uma FCP [Female Chauvinist Pig]. Você acha que esses homens queriam que eu tivesse lá falando sobre melhorias na carreira, departamentos de marketing, demografia? Não. Eles queriam brincar no meu jardim secreto. Mas eu apliquei meu batom de guerra da Chanel, abri as portas com saltos altos da Gucci, trabalhei, me esforcei muito e subi na ladeira. E fiz a diferença! Tudo isso num terninho curto da Prada. [grifos 68

nossos]

O livro, escrito por Ariel Levy, jornalista do The New Yorker, chama-se Female Chauvinist Pigs: Women and the 68

Rise of Raunch Culture. O trecho acima foi retirado de um artigo publicado em blog, que apresenta as principais ideias do livro: WOLFF, C. A falácia da liberação sexual e as novas formas de dominação. Doce, São Paulo, 30 jun. 2014. Disponível em: <http://www.catarticos.com.br/doce/liberacao-sexual-vs-novas-formas-de-dominacao/>. Acesso em: 17 nov. 2014.

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O estudo citado no capítulo 2 (ver nota 90) contraria a ideia de que a saia é

inadequada para o trabalho, dizendo que mulheres de saia podem ganhar mais. A

justificativa seria que as mulheres devem passar uma imagem de profissionalismo e

atratividade. A saia seria considerada “atrativa”, porém não qualquer saia. É aquela que, em

nossa tipologia, ocupa a posição da “saia masculinizada”: verticalizada, sóbria, que, também

figurativiza a seriedade. Ou seja, aquela com figuras plásticas da masculinidade.

Nos discursos em que se promove a sensualidade como um valor desejável para a

mulher profissional, a saia não muda: ainda é a reta e ajustada, só que muito mais aderente,

usada com saltos altos e sem meia. Muitas vezes esse tipo de aparência é definida como

“feminina”. Trata-se, porém, de uma versão do feminino que atende a certas destinações da

masculinidade, o que envolve tanto uma negação da “feminilidade feminina” quanto o

controle desta feminilidade, já que tais saias implicam uma situação corporal literalmente de

menor mobilidade física – para que não confunda com a menor mobilidade profissional

vertical para as mulheres, que também ocorre no mercado de trabalho.

Este tipo de presença da mulher profissional na publicidade nos diz muito sobre o

simulacro que se constrói deste papel e a importância da saia nesta construção. A aceitação

deste simulacro pela executiva da Sony – sem que se faça qualquer juízo moral – manifesta

bem uma posição de tolerância às regras de interação entre masculino e feminino no

mercado de trabalho, uma interação que tende ao ajuste. Com isso, iniciamos a responder a

segunda questão fundamental de nossa pesquisa, sobre os regimes de interação e de

sentido que articulam a relação entre os papéis sociais femininos e o uso da saia, com base

nas situações de aceitação ou não destes simulacros. A “tolerância” é o sub-contrário da

“cumplicidade” (termo que emprestamos, pela pertinência, ao “cumplicidade feminina” de

Giddens), que por sua vez é contrário da “oposição”, que tem por sub-contrário a

“conivência” (figura 8).

A palavra “tolerância” designa tanto um sofrimento que não deveríamos permitir ou

que não temos coragem de impedir, quanto a ação de “deixar pra lá”. Tolera-se, ainda que

não se concorde com a situação. As diferenças discursivas entre as regras de

comportamento no trabalho, a presentificação da mulher profissional na publicidade e as

práticas efetivas, mostram que não há uma situação de “conivência”, muito menos de

“cumplicidade”, e sim de um “deixar passar”, seja por interesse ou impotência. A consciência

da situação faz da mulher um não-objeto dela.

Já a “oposição” (que implica a “intolerância”) é uma interação da ordem do acidente,

como tem acontecido com o uso da saia feminina em situações ou papéis em que a

feminilidade não é desejada. Por exemplo, nos espaços ainda dominados por uma lógica ou

por valores do masculino, como o mundo do trabalho, a rua, o transporte público, o sexo.

Assumir a feminilidade e o jeito feminino de fazer as coisas, quando a mulher está nestes

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!176

espaços, implica uma autonomia em relação ao masculino e, consequentemente, segundo

Giddens, a perda do controle sexual do homem sobre a mulher. No mundo do trabalho, isso

se manifesta nos discursos sobre a inadequação tanto da saia em si quanto dos seus

modelos com elementos plásticos do feminino: leve, estampada, com babados, rodada,

vaporosa, longa etc. Tais roupas sugerem frivolidade, infantilidade, estar “avoada” etc.

Figura 8 – regimes de interação, aceitação dos simulacros e tipos de saia

programação cumplicidade com o simulacro

objeto saia”feminina”

acidente oposição ao simulacro

sujeito saia “feminina”

manipulação conivência com o simulacro

não-sujeito todas as saias

ajuste tolerância ao simulacro

não-objeto saia “masculina”

Fonte: produção da autora. Anúncios já referenciados.

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E, no entanto, não se pode encontrar motivos concretos para essa restrição, ainda

mais se considerarmos que tais roupas seriam, de verdade, as mais confortáveis e até

mesmo menos “sexualizadas” – se esta fosse a preocupação. Uma saia ampla, do mesmo

comprimento do modelo usado pela mulher no anúncio TAM (figura 1), não “subiria” a ponto

de mostrar uma parte da coxa, e nem obrigaria a uma constrição corporal tão tensa como

aquela. O motivo parece ser, então, uma resistência mesmo ao feminino e seus valores.

Talvez esta ideia fique mais clara a partir do relato de uma atleta amadora que corre

maratonas e passou a usar saia na prática do esporte. Ela diz que os rapazes já ficam

chateados quando são ultrapassados por uma mulher, e ficam ainda pior quando esta

mulher está correndo de saia . 69

Quanto à rua, o anúncio Intimus (figura 3) manifesta o risco que tem a mulher ao usar

a saia, e mais ainda, a saia que assume a sexualidade feminina, na rua, sem a companhia

de um homem. O olhar da mulher é de aquiescência, como sempre vai acontecer na

publicidade, mas o risco permeia toda a temática deste enunciado. Usar a saia nestas

circunstâncias é, portanto, se opor a um simulacro feminino e assumir a função de sujeito.

Nos anúncios, mulheres acompanhadas por homens na situação de marido e/ou pai

de seus filhos vestem majoritariamente calça, depois vestido. No papel de “mãe”, a calça é

ainda mais frequente. Nos relatos sobre o uso da saia, vimos que a peça é usada quando a

mulher está com o namorado, tanto para agradá-lo quanto pela proteção. Nos anúncios,

vemos que a saia mais feminina é usada nos papéis de “esposa”, reiterando esta prescrição.

Ou, ainda, é usada por mulheres profissionais mundo artístico, do show business ou da

televisão, quando a mulher é “consumida”, quando veste-se para o outro, e não para si.

Como vimos, papéis sociais nos quais a saia não era predominante – o de “mãe” –, ou

naqueles em que o modelo de saia mais frequente é o “masculino – papel “profissional” –,

quando são assumidos por atrizes, modelos ou celebridades, elas vestem a saia “feminina”.

Estes casos são exemplares da “cumplicidade” quanto aos simulacros femininos,

ancorados no regime de programação. A mulher assume sua “feminilidade” e sexualidade

quando está com o parceiro ou quando é objeto da atenção masculina, como acontece na

publicidade: as posturas que acompanham saias usadas pelas artistas também auxiliam a

tematizar a sensualidade. Nestes casos a mulher é “objeto” de valor do masculino.

Por fim, temos a posição de “conivência”, baseada na manipulação. Diferente da

tolerância, que aceita mas discorda, a conivência permite que o “delito” aconteça, quando

poderia fazer com que não fosse cometido. São as situações de aberta sedução, melhor

explicadas pelo modo de presença que caracteriza o “sujeito provocante” na publicidade,

ZISSU, Alexandra. Running Skirts Go Girly. The New York Times, 12 out. 2011. Disponível em: <http://69

www.nyt imes.com/2011/10/13/fashion/more-fr i l ls-and-f lounces-for-running-skir ts-not iced.html?_r=2&scp=1&sq=skirt&st=cse&>. Acesso em: 17 nov. 2014.

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conforme classificação de Landowski. Uma das principais características deste tipo de

encenação do corpo é o olhar direto, simulando um estado de comunicação com o leitor.

Ainda que não seja apenas este modo de presença na publicidade a “objetificar” a

mulher, é nele que mais transparece essa “objetificação”, pelas marcas de sensualidade, de

disponibilidade sexual e de convite (olhar, sorriso, postura sinuosa do corpo etc.).

Considerando que tais representações são prejudiciais para a mulher, deveriam ser negadas

ou rejeitadas por elas. No entanto, fazem parte da iconografia não só da publicidade como

dos editoriais de revistas consumidas pelas mulheres, como é o caso de Claudia, em nosso

contexto. Se existe aí um “delito” praticado pelo modo masculino de organizar as coisas, o

feminino é, portanto, “conivente”. Ainda que assumir esta conivência e utilizá-la para os

próprios fins possa não ser uma posição da maior autonomia, que confere à figura o status

de sujeito, é menos dependente do masculino do que as situações no regime de

programação em que a relação de dependência implica a posição de “objeto”.

Organizando estas situações no quadrado semiótico, temos, em resumo, a seguinte

relação entre os papéis sociais, a saia e as posições de aceitação dos simulacros femininos:

saia “feminina” usada em situações de cumplicidade com o simulacro feminino (objeto), em

um regime de programação; saia “feminina” usada em situações de oposição ao simulacro

(sujeito), em um regime de acidente; saia “masculina” usada em situações de tolerância ao

simulacro (não-objeto), caracterizando o ajuste; e qualquer tipo de saia em conivência com o

simulacro (não-sujeito), no regime de manipulação.

5.7 As roupas, os papéis sociais e as revistas

De forma geral , parece que o vestido ajuda a figurativizar papéis mais passivos, nos 70

quais também aparece uma maior configuração postural sexualizada. As mulheres

“profissionais” que usam vestido, por exemplo, em sua maioria são atrizes, apresentadoras

de TV, “celebridades”, atividades muito calcadas na exposição do corpo. Mulheres

estudantes (que entraram neste papel), que trabalham em escritórios, lojas ou outros locais

que não sejam do mundo artístico-midiático-cultural, normalmente usam calça. No caso de

Exame, como vimos, estas mulheres também usam bastante a saia.

A calça veste estas mulheres profissionais e aquelas que fazem as coisas por si só,

(“independente”), ou seja, mulheres em situações mais arriscadas em termos de interação,

como são os espaços públicos e o ambiente de trabalho (ou a vida de “solteira”). Esta

também é a roupa das mulheres “de respeito”, que cuidam da casa, do marido e/ou dos

filhos, em papéis mais privados.

Os dados quantitativos que dão base para estas conclusões podem ser verificados nas tabelas 10 e 11 do 70

Apêndice A.

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Se a ocorrência de papéis, roupas e algumas corporalidades na publicidade veiculada

em cada revista puder nos dizer algo sobre os modos de ser mulher figurativizados pelas

publicações, temos em Veja a proposição mais conservadora, em que as mulheres nos

papéis de “mãe” ou “esposa” usam calça, uma roupa “masculina” e protetora, como vimos

no capítulo 2. E mesmo de calça, quando está no carro, suas pernas estão fechadas. Se a

saia é uma peça sexualizada por si só, sua ausência nestes papéis nega, também, a

sexualidade feminina na “mãe” e na “esposa”. Como uma outra face da mesma tendência de

apresentação de simulacros femininos mais dependentes do masculino (cf. tipologia

apresentada no capítulo 4), Veja coloca mulheres em situação de exposição do corpo para o

leitor, como a “amante” e as “amigas”. E ainda que o papel “profissional” seja o principal

nesta publicação, há uma diferença entre as profissões que usam calça e as que usam saia,

como já apontamos.

Claudia apresenta, evidentemente, muitas mulheres em situação de exposição do

corpo, como as “manequins”. No entanto, tal presença no contexto desta revista é diferente

da sua presença em Veja, já que é dirigida a um público majoritariamente feminino, ao

contrário da revista semanal. Por outro lado, há mais mulheres sozinhas em Claudia,

sozinhas dentro de casa e aproveitando a interação com outras amigas – o que aparece

pouco nas outras publicações. A “amante” da marca de relógios Lince aqui é mais contida do

que em Veja. E ainda comparando com a revista semanal, em Claudia vemos mulheres

assumidamente de pernas abertas, indicando uma maior liberdade postural, e não

necessariamente como uma postura de convite. A mulher de Claudia, portanto, pode ser

“escrava” dos padrões de beleza promovidos pela revista, mas é mais “livre” em termos de

comportamento.

A presença do papel “manequim” em Exame também possui função diferente daquele

visto em Claudia. A série de anúncios Golden Square utiliza a temática da sensualidade para

oferecer lojas de um shopping em uma revista cujo público é majoritariamente masculino.

Em Exame se observa uma maior presença da saia no papel profissional. Há que se

destacar, no entanto, que o modelo de saia é aquele verticalizado, ajustado ao corpo, de

tecido plano e cores sóbrias. Se podemos considerar a saia como figura de conteúdo da

feminilidade, estas conformações plásticas expressam a masculinidade, valor importante no

mercado do trabalho. Quando muito aderentes e combinadas a posturas mais

“sexualizadas”, estas saias reiteram um senso comum sobre o uso da sensualidade pelas

mulheres como forma de obter sucesso profissional.

Voltando a falar de Veja, quando se considera que a axiologia dos modos de ser

mulher aparece em uma revista de grande alcance de público, dividido de maneira

equilibrada entre homens e mulheres e distribuído em diversas faixas etárias, entende-se o

protagonismo da mídia na apresentação de prescrições do masculino, e especialmente do

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!180

feminino, que nem sempre contribuem para uma diminuição de problemas sociais

relacionados à desigualdade de gênero (cf. parte final do capítulo 2).

Claudia mostrar uma forma diferente de ser mulher, mas isso é visto somente por

mulheres e com alcance muito menor. Deve-se considerar, ainda, que uma revista semanal

de informações é vista como “séria”, enquanto a revista feminina é considerada “fútil”.

Por último, ainda que Exame promova com destaque um terceiro tipo de mulher, a

profissional, o faz com a negação de alguns aspectos do feminino. Exame tem uma

circulação bastante segmentada, mas com grande penetração no mundo corporativo e,

portanto, com grande poder de prescrição dos modos de ser mulher neste ambiente. Modos

que serão assumidos como o “certo” pela maioria do seu público leitor, que é masculino.

Para finalizar, reforçamos que os procedimentos de análise e as conclusões deste

trabalho referem-se a alguns simulacros de papéis sociais femininos que fazem parte de um

discurso do senso comum sobre a mulher, discurso que a publicidade não apenas toma por

base como reforça, pela sua intrínseca necessidade de aceitação. Sobre imagens e o senso

comum, diz Jacques Rancière, citado por José Luiz Aidar Prado:

Aquilo a que se chama imagem é um elemento dentro de um dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo senso comum. Um “senso comum” é antes de mais nada uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade supostamente é partilhada por todos, modos de percepção dessas coisas e significações igualmente partilháveis que lhes são conferidas. 71

Portanto, ainda que as imagens femininas nos anúncios não correspondam à

realidade dos modos de ser mulher no “mundo real” e que as mulheres brasileiras não se

reconheçam na publicidade (cf. capítulo 1 – nota 25), estes são os papéis femininos

oferecidos por estas revistas aos homens e mulheres que as leem. E não se pode negar o

efeito prescritivo e pedagógico destas manifestações. Para alterar os modos de presença da

mulher na publicidade de maneira a confluir com as práticas sociais do ser feminino, muito

mais ricas e complexas do que mostra a mídia, não bastaria distribuir pelas revistas mais

conservadoras anúncios com papéis baseados na autonomia, ou com figuras usando saia

de maneira a se opor ao simulacro, com a justificativa de que o regime de acidente os

coloca como papéis “críticos”. Na verdade, na publicidade, de forma alguma eles o são.

Como diz Prado,

Não é possível alterar a política das imagens e dos textos sincréticos sem alterar a forma de distribuição dessas formas no senso comum. Sem alterar as percepções, a divisão ou a partilha do sensível, não é possível mudar o senso comum que constrói e repõe esse sensível. 72

RANCIÈRE apud PRADO, J. L. A. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São 71

Paulo: Educ; Fapesp, 2013, p. 171.

PRADO, 2013, p. 171.72

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APÊNDICE A – TABELAS

Tabela 1 – Dados de circulação, número de leitores e média de leitores por revista – Brasil –

2011;

Fonte: PubliAbril. Disponível em: http://www.publiabril.com.br/. Acesso em: 12 jun. 2011. Produção da autora.

Tabela 2 – Sexo, faixa etária, classe social e região de domicílio dos leitores, por revista –

Brasil – 2011;

Fonte: PubliAbril. Disponível em: http://www.publiabril.com.br/. Acesso em: 12 jun. 2011. Produção da autora.

Revista Veja Exame Claudia

Circulação 1,089 milhão 160 mil 403 mil

Leitores 8,669 milhões 724 mil 1,861 milhão

Média de leitores p/ edição

7,96 4,53 4,62

RevistaSexo (%) Faixa etária (%)

M F 10/14 15/19 20/24 25/34 35/44 45/49 50+

Veja 46 54 3 10 12 20 22 10 23

Exame 61 39 1 3 18 26 23 13 16

Claudia 9 91 2 7 10 19 28 7 27

RevistaClasse social (%) Região (%)

A B C D N NE SE S CO

Veja 23 49 24 3 4 14 58 15 9

Exame 28 56 15 1 3 12 62 17 7

Claudia 17 48 31 3 3 13 56 20 8

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Tabela 3 – Edição e data de publicação dos exemplares de Veja integrantes do corpus de

pesquisa – Brasil – 2011/2012;

Fonte: dados indicados nas capas das edições de Veja. Produção da autora.

Notas: (1) Edições digitais da revista.

Veja Veja

Edição Data de publicação Edição Data de publicação

2228 – ano 44 – nº 31 3/8/2011 2254 – ano 45 – nº 5 (1) 1/2/2012

2229 – ano 44 – nº 32 10/8/2011 2255 – ano 45 – nº 6 (1) 8/2/2012

2230 – ano 44 – nº 33 17/8/2011 2256 – ano 45 – nº 7 (1) 15/2/2012

2231 – ano 44 – nº 34 24/8/2011 2257 – ano 45 – nº 8 (1) 22/2/2012

2232 – ano 44 – nº 35 31/8/2011 2258 – ano 45 – nº 9 (1) 29/2/2012

2233 – ano 44 – nº 36 7/9/2011 2259 – ano 45 – nº 10 (1) 7/3/2012

2234 – ano 44 – nº 37 14/9/2011 2260 – ano 45 – nº 11 (1) 14/3/2012

2235 – ano 44 – nº 38 21/9/2011 2261 – ano 45 – nº 12 (1) 21/3/2012

2236 – ano 44 – nº 39 28/9/2011 2262 – ano 45 – nº 13 (1) 28/3/2012

2237 – ano 44 – nº 40 5/10/2011 2263 – ano 45 – nº 14 (1) 4/4/2012

2238 – ano 44 – nº 41 12/10/2011 2264 – ano 45 – nº 15 11/4/2012

2239 – ano 44 – nº 42 19/10/2011 2265 – ano 45 – nº 16 18/4/2012

2240 – ano 44 – nº 43 26/10/2011 2266 – ano 45 – nº 17 25/4/2012

2241 – ano 44 – nº 44 2/11/2011 2267 – ano 45 – nº 18 2/5/2012

2242 – ano 44 – nº 45(1) 9/11/2011 2268 – ano 45 – nº 19 9/5/2012

2243 – ano 44 – nº 46 16/11/2011 2269 – ano 45 – nº 20 16/5/2012

2244 – ano 44 – nº 47 23/11/2011 2270 – ano 45 – nº 21 23/5/2012

2245 – ano 44 – nº 48 30/11/2011 2271 – ano 45 – nº 22 30/5/2012

2246 – ano 44 – nº 49 (1) 7/12/2011 2272 – ano 45 – nº 23 (1) 6/6/2012

2247 – ano 44 – nº 50 14/12/2011 2273 – ano 45 – nº 24 (1) 13/6/2012

2248 – ano 44 – nº 51 21/12/2011 2274 – ano 45 – nº 25 (1) 20/6/2012

2249 – ano 44 – nº 52 28/12/2011 2275 – ano 45 – nº 26 27/6/2012

2250 – ano 45 – nº 1 4/1/2012 2276 – ano 45 – nº 27 4/7/2012

2251 – ano 45 – nº 2 11/1/2012 2277 – ano 45 – nº 28 11/7/2012

2252 – ano 45 – nº 3 18/1/2012 2278 – ano 45 – nº 29 18/7/2012

2253 – ano 45 – nº 4 25/1/2012 2279 – ano 45 – nº 30 25/7/2012

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Tabela 4 – Edição e data de publicação dos exemplares de Exame e Claudia integrantes do

corpus de pesquisa – Brasil – 2011/2012;

Exame Claudia

Edição Data de publicação

Edição Data de publicação

997 – ano 45 – nº 14 10/8/2011 599 – ano 50 – nº 8 agosto 2011

998 – ano 45 – nº 15 24/8/2011 600 – ano 50 – nº 9 setembro 2011

999 – ano 45 – nº 16(1) 14/9/2011 601 – ano 50 – nº 10 outubro 2011

1000 – ano 45 – nº 17 21/9/2011 602 – ano 50 – nº 11 novembro 2011

1001 – ano 45 – nº 18 5/10/2011 603 – ano 50 – nº 12 dezembro 2012

1002 – ano 45 – nº 20(2) 19/10/2011 604 – ano 51 – nº 1 janeiro 2012

1003 – ano 45 – nº 21 2/11/2011 605 – ano 51 – nº 2 fevereiro 2012

1004 – ano 45 – nº 22 16/11/2011 606 – ano 51 – nº 3 março 2012

1005 – ano 45 – nº 23 30/11/2011 607 – ano 51 – nº 4 abril 2012

1006 – ano 45 – nº 24 14/12/2011 608 – ano 51 – nº 5 maio 2012

1007 – ano 45 – nº 25 28/12/2011 609 – ano 51 – nº 6 junho 2012

1008 – ano 46 – nº 1 25/1/2012 610 – ano 51 – nº 7 julho 2012

1009 – ano 46 – nº 2 8/2/2012 - -

1010 – ano 46 – nº 3 22/2/2012 - -

1011 – ano 46 – nº 4 7/3/2012 - -

1012 – ano 46 – nº 5 21/3/2012 - -

1013 – ano 46 – nº 6 4/4/2012 - -

1014 – ano 46 – nº 7 18/4/2012 - -

1015 – ano 46 – nº 8 2/5/2012 - -

1016 – ano 46 – nº 9 9/5/2012 - -

1017 – ano 46 – nº 10 30/5/2012 - -

1018 – ano 46 – nº 11 13/6/2012 - -

1019 – ano 46 – nº 12 27/6/2012 - -

1019-2 – ano 46 – nº 13(3) 11/7/2012 - -

1020 – ano 46 – nº 14 25/7/2012 - -

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Fonte: dados indicados nas capas das revistas Exame e Claudia. Produção da autora.

Notas: (1) Edição da revista Exame não encontrada e não integrada ao corpus de pesquisa. (2) Na capa desta revista Exame, a edição 1002 está numerada como “20”, apesar de a ordem indicar

que deveria ser o número 19. Supomos que deve ter havido um engano na colocação do número durante a produção da capa. A sequência de numeração parte do número equivocado: 21, 22, 23 etc.

(3) Edição Especial Exame Melhores e Maiores: as 1000 maiores empresas do Brasil – por ser edição especial, não foi incluída no corpus.

Tabela 5 – Etapas de corte do conjunto de anúncios de Veja, Exame e Claudia e relação

entre as quantidades resultantes em cada etapa – Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

Etapas de corte do corpus Veja Exame Claudia Total

Edições pesquisadas 52 23 12 87

Relação com o total de edições das três revistas 59,8% 26,4% 13,8% 100%

Adequação da amostra (A) 1279 736 663 2678

Relação com o universo de anúncios 47,8% 27,5% 24,8% -

Média de anúncios adequados por edição 24,60 32,00 55,25 -

Caracterização publicitária (B) 1186 690 626 -

Relação com os anúncios adequados 92,73% 93,75% 94,42% -

Apenas anúncios com mulheres (C) 700 343 560 1603

Apenas anúncios com a roupa “exibida” (D) 256 86 210 552

Apenas anúncios com mulheres vestindo saia/vestido e/ou calça (E)

207 83 128 418

Conjunto de anúncios para análise semiótica (F) 171 65 118 354

Participação dos anúncios do corpus semiótico no contexto da revista (relação entre A e F)

13,37% 8,83% 17,80% -

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Tabela 6 – Ocorrência de figuras humanas nos anúncios de Veja, Exame e Claudia, por tipo

de figura e por combinação dos três tipos – Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

Tabela 7 – Quantidade de anúncios pelo grau de visibilidade da roupa nas revistas Veja,

Exame e Claudia – Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

Tabela 8 – Quantidade de anúncios pelo tipo de roupa nas revistas Veja, Exame e Claudia –

Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

Figuras humanas Veja Exame Claudia

Mulher 315 161 443

Homem 357 301 25

Mulher e Homem 245 155 61

Mulher, Homem e Criança/Adolescente 92 18 13

Mulher e Criança/Adolescente 48 9 43

Homem e Criança/Adolescente 36 13 10

Criança/Adolescente 93 33 31

Total de anúncios 1186 690 626

RevistaTipo de visualização da roupa

Exibida Sugerida Suprimida Escondida

Veja 256 56 306 82

Exame 86 6 203 48

Claudia 210 37 186 127

Revista

Tipo de roupa

saia vestido calçashorts/

bermuda lingerieginástica/

collant praiasem

roupa

Veja 44 80 119 25 1 3 20 3

Exame 30 16 56 0 0 2 1 0

Claudia 46 50 50 25 48 2 13 1

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Tabela 9 – Quantidade de anúncios das revistas Veja, Exame e Claudia excluídos e

mantidos em cada corte do conjunto de anúncios – Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

Etapas de corte RevistaAnúncios

descartados Anúncios mantidos

Conjunto inicial: adequação da amostra

Veja 0 1279

Exame 0 736

Claudia 0 663

1º recorte: caracterização

publicitária

Veja 93 1186

Exame 45 690

Claudia 33 626

2º recorte: apenas mulher

Veja 579 700

Exame 392 343

Claudia 100 560

3º recorte: roupa “exibida”

Veja 1023 256

Exame 649 86

Claudia 459 210

4º recorte: saia & calça

Veja 1072 207

Exame 652 83

Claudia 541 128

Corpus

Veja 1108 171

Exame 668 65

Claudia 550 118

Total de anúncios do corpus 354

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Tabela 10 – Participação proporcional dos papéis sociais no contexto de cada revista (Veja,

Exame e Claudia) – Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

Tabela 11 – Participação proporcional dos tipos de roupa por papel social nas revistas Veja,

Claudia e Exame – Brasil – 2011/2012;

Fonte: as revistas. Produção da autora.

PapelOcorrências dos papéis em cada revista

TotalVeja Claudia Exame

Amante 4 1 0 5

Amiga 4 19 0 23

Anfitriã 7 4 0 11

Dona-de-casa 3 0 1 4

Esposa 27 10 10 47

Independente 17 29 15 61

Manequim 23 36 9 68

Mãe 16 13 5 34

Profissional 57 17 7 81

PapelOcorrência da roupa

saia vestido calça

Amante 0 5 1

Amiga 3 12 9

Anfitriã 2 8 1

Dona-de-casa 0 1 3

Esposa 6 14 23

Independente 7 16 37

Manequim 8 46 13

Mãe 1 15 18

Profissional 17 18 73

Total 44 135 178

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APÊNDICE B – CADERNO DE IMAGENS

O primeiro conjunto de imagens apresenta os anúncios analisados no capítulo 5; o

segundo conjunto contém os anúncios analisados no capítulo 4, exceto aqueles já

apresentados no primeiro conjunto.

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