-
1
LEI-QUADRO DA POLTICA CRIMINAL Breve Reflexo1
MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE Director do Centro de Investigao
e Docente do Instituto Superior
de Cincias Policiais e Segurana Interna e da Universidade
Autnoma de Lisboa
I
Introduo
1. Falar de poltica criminal implica fazer uma viagem ao
conceito e aos princpios que a regem desde a sua concepo
como
cincia por FRANZ von LISZT, de modo a no desenraizarmos a
cincia da sua nascena e a resumirmos a um dos instrumentos
de
manifestao da poltica criminal: a preveno e represso
criminal,
como se retira do art. 1. da Lei-Quadro, que se refracciona
quase em
pleno no processo penal como instrumento de poltica
criminal2
especial e principalmente no quadro da celeridade processual3 ,
desde os
procedimentos s finalidades do processo. A Lei-Quadro reflecte
o
momento que vivemos. Momento de busca de solues para uma
justia
1 O texto que ora publicamos corresponde, em parte, conferncia
proferida sobre o mesmo
tema no dia 2 de Maio de 2007, no Instituto Superior de Cincias
Policiais e Segurana
Interna, Lisboa, no mbito do Projecto Escola Conferncias
desenvolvido pelos Cadetes-
alunos. Neste sentido, optamos por manter a estrutura da
conferncia proferida que se
debruou fundamentalmente sobre a Lei Quadro da Poltica Criminal
, no obstante neste
momento j existir a primeira Lei que define os Objectivos,
Prioridades e Orientaes de
Poltica Criminal para o Binio de 2007-2009, em cumprimento da
Lei Quadro, aprovada
pela Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto, cuja referncias sero muito
tnues e breves.
2 FERNANDO FERNANDES, O Processo Penal como Instrumento de
Poltica Criminal, Almedina,
2001. 3 MANUEL DA COSTA ANDARDE, Lei-Quadro da Poltica Criminal
(Leitura crtica da Lei
n. 17/2006, de 23 de Maio), in Revista de Legislao e
Jurisprudncia (RLJ), Ano 135., n. 3938,
pp. 267 e ss..
-
2
penal mais clere e, simultaneamente, mais justa sem ofensa
desnecessria dos direitos, liberdades e garantias fundamentais
dos
cidados4, mas no pode ela e s por ela ser o antdoto da
enfermidade
de que padece a to badalada justia penal. H pontos positivos,
mas h
pontos de realce preocupante face ao Estado que h muito se
vem
construindo, em que a Constituio se centra como a pedra base
e
central da aco do Estado: seja poltica, seja executiva, seja
judicial. No
se pode decretar as mutaes de personalidade dos que esto
obrigado
jus constitucionalmente a garantir o efectivo exerccio dos
direitos dos
cidados: quer proactivamente quer reactivamente.
4 Vivemos e devemos viver em busca de um equilbrio entre o
securitarismo e o garantismo
entre a tutela de bens jurdicos agredidos e defesa do
delinquente face ao ius puniendi. Quanto
aos modelos de interveno do direito penal do modelo garantista,
passando pelo modelo
ressocializador, ao novo modelo securitrio originrio no medo
panenico instalado
colectivamente e na politizao do medo colectivo face evoluo do
fenmeno criminal
JOS LUIS DEZ RIPOLLS, La Poltica criminal en la Encrucijada,
Editorial Montevideo,
Buenos Aires, 2007, pp. 61-100. Claro est que o modelo adoptado
pela LQPC se refugia
fortemente no novo modelo de interveno do direito penal de
segurana. Modelo este
expresso no comboio da Europa de que nos fala HASSEMER, em que a
eficcia e a
segurana prevalecem de tal modo que o direito penal se
instrumentaliza em poltica de
segurana. Cfr. WINFRIED HASSEMER apud AUGUSTO SILVA DIAS, De que
Direito
Penal Precisamos ns Europeus?, in Revista Portuguesa de Cincias
Criminais (RPCC), Ano 14,
n. 3, pp. 306, 317-318.
-
3
2. A Poltica Criminal5/6 a cincia que se debrua sobre o
conjunto dos princpios tico-individuais e tico sociais que
devem
promover, orientar e controlar a luta contra a criminalidade7,
ou, na
linha de LISZT, o conjunto sistemtico dos princpios fundados
na
investigao cientfica das causas do crime e dos efeitos das
penas,
segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o
crime por
5 No obstante existirem teses que consideram que existe uma
separao entre o Direito Penal
e a Poltica Criminal, desde logo pelo objecto que a cada uma das
cincias cabe ao Direito
penal o estudo da dogmtica jurdico-criminal do direito vigente e
Poltica Criminal o
estudo da configurao desejvel desse direito nenhuma das cincias
se pode apartar da
ideia central de que o Direito Penal , lisztianamente falando, a
Magna Carta do delinquente
e baluarte do cidado contra o Leviatan do Estado, e os
postulados da poltica criminal, a
par dos postulados teleolgicos, devem estar presentes sempre que
o intrprete da norma
penal a aplicar ao caso concreto. Acresce referir com CLAUS
ROXIN que as finalidades
reitoras que constituem o sistema do Direito penal s podem ser
de tipo poltico criminal, j
que naturalmente os pressupostos da punibilidade ho-de
orientar-se de acordo com os fins
do Direito penal. Cfr. CLAUS ROXIN, Derecho Penal Parte General
Tomo I, Civitas,
Madrid, 1999, pp. 217, 223-225. Traduo do espanhol nossa.
6 Quanto evoluo do posicionamento (positivista) da poltica
criminal que circunscrevia o
mbito da poltica criminal lei penal incriminadora, apartada do
saber e da preocupao do
antes, do para alm ou do que est por detrs da lei penal, ou
seja, que se circunscrevia a um
pensamento rarefeito no seu objecto problemtico circunscrito
escolha das reaces
criminais e da sua forma de aplicao e curto no horizonte, porque
imanente lei penal (e
dogmtica penal) at poltica criminal, cujos problemas se
desdobram e se multiplicam
numa pluralidade de direces e de destinatrios, que espreita o
antes e se projecta para alm
da reaco penal indo ao encontro da reaco social, econmica e de
solidariedade social, que
procura substituir o direito penal por coisa melhor que o
direito penal, MANUEL DA
COSTA ANDARDE, Lei-Quadro da Poltica Criminal, in RLJ, Ano 135.,
n. 3938, pp.
263-266.
7 AMRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal Parte Geral Questes
Fundamentais I,
Publicaes da Universidade Catlica, Porto, 2003, p. 22.
-
4
meio da pena e das instituies com esta relacionadas8. Podemos,
com
JESCHECK, afirmar que a poltica criminal, que deve debruar-se
sobre
as causas do crime, sobre a correcta redaco dos tipos legais de
crime
para que correspondam realidade delitual, sobre os efeitos das
sanes
penais, sobre o limite de extenso da aplicao do Direito penal de
que
dispe o legislador penal face liberdade do cidado e, ainda,
sobre a
adequao do direito penal material ao direito processual, tem
como
desafio responder pergunta acerca de como dirigir o Direito
penal
para poder cumprir da melhor forma possvel a sua misso de
proteger a
sociedade9. A poltica criminal, como nos ensina TAIPA DE
CARVALHO, visa a preveno do crime e a confiana da comunidade
social na ordem jurdico penal10, afirmando e fazendo vigorar de
modo
efectivo os valores sociais exigveis para que cada pessoa se
realize
livremente integrada na comunidade. Mas, a preveno criminal
no
pode ser alcanada a qualquer custo, devendo, sempre, promover-se
e
8 FRAN von LISZT apud FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE,
Criminologia, Coimbra
Editora, 1997, p. 93. Quanto ao estudo da poltica criminal,
JORGE DE FIGUEIREDO
DIAS, A Cincia Conjunta do Direito Penal, in Temas Bsicos da
Doutrina Penal, Coimbra
Editora, 2001, pp. 3 e ss.. ENRICO FERRI considera que o
conceito de LISZT de Poltica
Criminal inexacto, porquanto a poltica no uma cincia, mas uma
arte: arte do
legislador em utilizar, adaptando-as s condies do prprio pas, as
concluses e as
propostas que a cincia dos crimes e das penas lhe apresenta, ou,
na linha de uma
construo doutrinal da sociologia criminal como cincia da
criminalidade e da respectiva defesa
social, a arte (do legislador) de adaptar s exigncias de cada
povo as propostas da
sociologia criminal para defesa preventiva e repressiva. Cfr.
ENRICO FERRI, Princpios de
Direito Criminal: o Criminoso e o Crime, (Traduo Luiz de Lemos d
Oliveira), Russell,
Campinas/SP, 2003, pp. 68-69 e 99 (nota 142).
9 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de
Derecho Penal Parte
General, 5. Ed., Comares Editorial, Granada, 2002, p. 24. Traduo
do Espanhol nossa.
10 Ibidem. Negrito nosso.
-
5
efectivar-se no respeito, na defesa e prossecuo dos valores e
princpios
que ela prpria objectiva, ou seja, como afirma JESCHEK, nem tudo
o
que parece adequado ao fim tambm justo11.
3. A poltica criminal rege-se por dois vectores: por um lado,
-
lhe exigida eficcia relativamente aos fins; por outro, -lhe,
tambm,
imposta legitimidade tica e jurdica12 no que concerne aos meios
para
atingir aquela. Estes vectores encontram-se subordinados aos
princpios
da poltica criminal tpicos de um Estado de direito
democrtico13:
- Princpio da legalidade que se apresenta como garantia contra
o
livre arbtrio quer no plano judicial (administrativo e/ou
penal)
quer no plano jurdico substantivo e processual do direito
punitivo. A legalidade no se esgota na previso legal do tipo
legal de crime ou do meio de obteno de prova. Pois, engloba
a verificao e o respeito integral dos pressupostos exigidos
para a aplicao dos meios de obteno de prova. Para
11 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de
Derecho, p. 24.
12 Pensamos que podemos afirmar que a legitimidade jurdica deve
ser a expresso da
legitimidade sociolgica que fundamenta e justifica a norma penal
como uma construo
abstracta, como reflexo na realidade criminal, necessria tutela
mais drstica de bens
jurdicos individuais e supraindividuais. Como afirma C.
BECCARIA, se a norma penal no
for aceite pela comunidade, porque inadequada ou intil ao escopo
do direito punitivo e
contrria ideia da utilidade comum, que base da justia humana,
desnecessria, logo
arbitrria e opressora da liberdade dos cidados que cederam parte
da liberdade o quantum
necessrio para a eficiente tutela jurdico-criminal de bens
jurdicos. Quanto legitimidade
sociolgica, REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, (Traduo
de KARIN
PRAEFKE-AIRES COUTINHO), 3. Edio, Fundao Calouste Gulbenkian,
Lisboa,
1997, pp. 71 e 154-156 e CESARE BECCARIA, Dos Delitos e das
Penas, (Traduo JOS DE
FARIA COSTA), 2. Edio, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998,
pp. 64-65 e 76.
13 Quanto a este assunto, A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal...
I, pp. 22 e 23.
-
6
JESCHEK14 o princpio da legalidade encontra-se dentro do
princpio do Estado de direito em sentido formal, que garante
a
segurana jurdica, por a punibilidade de condutas lesivas de
bens jurdicas depender da primazia e reserva de lei expressa
nullum crimen sine lege15 previa, scprita et praeclara e por
estar
sujeita reserva de jurisdicionalizao do respectivo processo.
Para o mesmo autor, o Estado de direito em sentido material
implica que a criminalizao de um modelo de comportamento
se baseie numa vinculao objectiva i. e., no pode ser reflexo
de
consideraes sentimentais, religiosas, mas de consideraes
que sejam dignas de tutela penal por afectarem bens ou
interesses essenciais convivncia da sociedade16 , no
princpio
da proporcionalidade ou da proibio do excesso quer quanto
necessidade da interveno do direito penal quer quanto pena
14 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de
Derecho, pp. 28-
29.
15 O princpio nullum crimen sine lege um postulado da poltica
criminal e preconiza outro seu
postulado que o limite do ius puniendi. Claro est que estes
postulados no afastam da
poltica criminal o postulado da exigncia de preveno e represso
dos crimes. Acresce
referir que no obstante o Direito como e como devia ser no se
contraporem, i. e., o
direito criado pelo legislador e o direito defendido pelos
cientficos e juizes ou dogmtica
poltico criminal e a dogmtica legislativa no serem opostas, no
se podem confundir, sob
pena de violao do princpio da separao de poderes. Todavia, a
hermenutica de
determinadas normas penais em especial da parte geral que
regulam certas matrias de
forma vaga ou no as regulam implica a interveno da dogmtica da
poltica criminal, mas
no pode esta adulterar a dogmtica legislativa, como alterar e
criar novos limites das penas,
mas aplicar a norma penal e a pena conforme aos princpios da
interpretao restritiva, da
proporcionalidade e da adequao da pena concreta culpabilidade do
agente. Cfr. CLAUS
ROXIN, Derecho Penal... Tomo I, pp. 224-226.
16 Afectao que se pode reflectir na agresso efectiva ou no
perigo de leso do bem jurdico a
tutelar.
-
7
aplicada e executada e gravidade da aco e do resultado
produzido, quer quanto ao meio empregue para obter a prova
para o processo jurisdicionalizado e no princpio da
igualdade
sendo a maior manifestao do princpio da legalidade, ou seja,
a tutela dos bens jurdicos est no mesmo patamar
independentemente da origem social da vtima ou do agente do
crime que deve beneficiar das penas alternativas, desde que
preenchidos os respectivos pressupostos e requisitos (p. e.,
a
pena de prestao de trabalho a favor da comunidade deve ser
aplicada a todos quantos preencham os pressupostos previstos
no art. 58. do CP e no s a alguns agentes da prtica de
crime)17.
17 A poltica criminal no pode derrogar ou afastar-se dos
pressupostos do princpio da
legalidade que as luzes foraram implementar como modo de
promover uma igualdade entre
os cidados firmada no princpio da segurana jurdica que d ao
cidado as linhas de
vivncia individual e comunitariamente e lhe d a garantia de que
no ser submetido a uma
aco penal por facto que a lei no preveja com certeza e clareza
(sem dvidas e ignorncia)
como crime.
Acresce que, ao se estipularem prioridades de investigao e de
preveno criminal (como se
retira da LQPC e se materializa na Lei do Binio), nos parece que
o princpio da igualdade
(fundamentalmente material) como manifestao iluminista do
princpio da legalidade se
encontra diminudo, ou seja, parece-nos que a LQPC e a Lei do
Binio podem estar feridas
de inconstitucionalidade material por violao do princpio da
igualdade consagrado no art.
13. da CRP. Desde logo e conhecendo o tecido social portugus, um
crime de furto simples
preterido por um crime de furto qualificado, pois a investigao
(e a prpria preveno)
deste prioritria. Todavia, esta prioridade pode afectar a
igualdade na vertente negativa
sempre que o crime de furto simples cometido em um espao fsico
de escassez de bens
patrimoniais ou de aquisio desses bens ou de populao v. g., uma
aldeia do interior
recndito do pas , em que o sentimento de insegurana e de
descrdito na justia penal
cresce elevadamente. E, na nossa opinio, este crime no pode ser
preterido em prol de um
crime de furto qualificado quando no existem arguidos presos
preventivamente, porque no
-
8
- Princpio da culpabilidade18, que afasta qualquer possibilidade
de
responsabilidade objectiva e de que a pena no se pode
apartar
da culpabilidade, onde reside o seu fundamento, conforme se
retira do art. 40. do CP19. No que concerne investigao
criminal, que se destina descoberta da verdade e da
prossecuo ou realizao da justia, assim como defesa e
garantia de direitos fundamentais (do arguido, da vtima e da
sociedade em geral) e ao alcance da paz pblica, no pode
partir
do pressuposto ou fundamento objectivo de culpa, mas que
aquela est inerente ao sujeito X e no a um sujeito qualquer.
Esta viso vincula os operadores judicirios a interpretar o
facto
delituoso na globalidade identificao e determinao dos
elementos objectivos e subjectivos do tipo e a recorrer aos
se pode medir o alarme social pelo tipo legal de crime, mas pelo
efeito que um determinado
tipo legal de crime gera em um determinado tempo e espao. A LQPC
no pode olvidar que
o direito penal deve ser visto dentro destes dois vectores
essenciais: tempo e espao de
interveno.
18 O princpio da culpabilidade implica que a medida da culpa
limite a medida da pena
independentemente de existirem razes de tratamento, de segurana
ou de intimidao
que justificassem um prolongamento da pena, porque o interesse
da liberdade do condenado
limita a interveno coerciva do Estado, que no deve ser arbitrria
e se impe por razes de
justia jurdico penal e social que ningum seja punido mais do que
merece, sendo que
merecida s uma pena de acordo com a culpabilidade. No podemos
olvidar que o
princpio da culpabilidade o meio mais liberal e
psicolgico-social mais propcio para a
restrio da coero penal estatal que at agora se encontrou. Cfr.
CLAUS ROXIN, Derecho
Penal... Tomo I, pp. 99-100.
19 Quanto ao princpio da culpabilidade como princpio da poltica
criminal e como juzo de
desvalor tico-social, HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND,
Tratado de
Derecho, pp. 24-27. Quanto culpabilidade como elemento
subjectivo de integrao e
materializao da dogmtica da poltica criminal, CLAUS ROXIN,
Derecho Penal... Tomo I,
pp. 225-226.
-
9
meios de obteno de prova para descobrir quem e se o
suspeito foi, na verdade, o autor (material ou moral) da
conduta
lesiva ou que colocou em perigo de leso determinado bem
jurdico.
- Princpio da humanidade o fundamento da poltica criminal,
pois
a imposio e execuo das penas deve ter em conta a
personalidade do acusado e, em sendo o caso, do condenado20.
Do mesmo modo que se exige que o princpio da humanidade
se deva verificar na tipificao legal das penas [proibindo a
pena
de morte e as degradantes dignidade humana da pessoa
recluso], se exige na aplicao e execuo daquelas [recusando a
priso perptua e as consequncias jurdicas de tempo
indeterminado]. Este princpio, que deve reger o legislador
penal substantivo e processual, deve verificar-se a montante
do
julgamento, da condenao e da execuo das penas, i. e., deve
ser materializado no decurso do processo crime desde o incio
da aco penal, incluindo a investigao criminal, desde a
aquisio isenta e objectiva da notcia do crime, o carreamento
20 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de
Derecho, p. 29 (e
30). O princpio da humanidade o reflexo do princpio da dignidade
da pessoa humana, cuja
afectao se verifica, desde logo, na estatuio da pena a aplicar a
cada tipo de crime. O
princpio da humanidade implica que a pena a aplicar tem de
derivar da absoluta
necessidade, caso contrrio tirnica e desumana e violadora da
dignidade da pessoa
humana. Como ensina BECCARIA a atrocidade das penas se no
imediatamente oposta
ao bem pblico e ao prprio fim de impedir os delitos intil no s
quelas virtudes
benficas que so o efeito de uma razo iluminada que prefere
dirigir homens felizes a um
rebanho de escravos, onde circule perpetuamente tmida crueldade
mas tambm justia e
natureza do prprio contrato social. Quanto tirania e atrocidade
das penas, CESARE
BECCARRIA, Dos Delitos..., p. 64-67.
-
10
de prova atravs dos meios de obteno de prova tipificados na
lei processual penal e dentro dos limites impostos pelos
princpios constitucionais de garantia do arguido da
lealdade,
da democraticidade, da justia, da celeridade, da presuno de
inocncia, da liberdade, do respeito da dignidade da pessoa
humana21 , independentemente do resultado final ser ou no a
confirmao da existncia de elementos probatrios
indiciadores da ou comprovativos de que o arguido cometeu o
facto tipificado como crime22. O princpio da humanidade
impe que o legislador produza os adequados instrumentos
jurdico-criminais para que os operadores judicirios actuem
materializando a dignidade da pessoa humana23 e que aqueles
optem por uma conduta jurdico-operativa que respeite a
pessoa como ser humano portador de defeitos e de virtudes.
- Princpio da recuperao ou ressocializao do delinquente, que
uma
consequncia do princpio da humanidade que, na linha de
JESCHEK, preconiza tambm a execuo da sano penal de
humanismo e de responsabilidade individual de modo a
21 Quanto aos princpios regedores do processo penal numa
perspectiva humanista, MANUEL
MONTEIRO GUEDES VALENTE, Processo Penal Tomo I, Almedina,
Coimbra, 2004, pp.
147-183 e 237-255.
22 Neste sentido, MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE, Do Objecto do
Processo:
Da Importncia dos rgos de Polcia Criminal na sua Identificao e
Determinao, in
POLITEIA ISCPSI, Ano III, n. 2, Almedina, Coimbra, 2006, pp.
115-139.
23 A preocupao com as vtimas como concretizao da humanizao do
direito penal est
patente nos artigos 5. e 6. da Lei n. 51/2007, de 31 Agosto.
-
11
devolver o delinquente curado sua vida em sociedade24/25.
Os estabelecimentos penitencirios devem ser idneos e a
execuo das penas devem direccionar-se para a ressocializao
e no dessocializao do delinquente. Acresce referir que a
poltica criminal que se prende com os objectivos expostos na
Lei-Quadro em discusso, no obstante de no art. 1.
considerar como sua componente a definio de objectivos em
matria de execuo de penas e medidas de segurana26, no
devia olvidar que de nada vale prevenir e reprimir a
criminalidade e reparar os danos individuais e sociais
resultantes
24 No sentido da ressocializao como um dos topos da poltica
criminal, MANUEL DA
COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica Criminal, in RLJ, n. Ano
135, n. 3938,
pp. 265-266.
25 Cfr. HANS-HEINRICH JESCHEK e THOMAS WEIGEND, Tratado de
Derecho, p. 29.
26 A Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto, vem solidificar esta ideia
quadro vagamente expressa na
LQPC, como se pode retirar da parte final do art. 1., da al. c)
do art. 2. conjugados com os
artigos 11., 12., 13. e 14. da Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto,
ao prescrever que a
aplicao das sanes penais devem ter em conta circunstncias
factuais (subjectivas sade,
condio fsica, idade e materiais e objectivas o facto e a
gravidade ou o dano do facto
criminoso), apontando para uma opo de materializao do princpio
da oportunidade,
tendo em conta uma melhor e mais adequada reinsero do agente do
crime na sociedade.
de referir que o legislador prescreveu a preveno especial ao
prever que o Procurador Geral
da Repblica, por requerimento do Ministrio Pblico, pode ordenar
aos servios de
reinsero social a elaborao de planos de reinsero social dos
agentes condenados pela
prtica de crimes previstos no artigo 4., sempre que eles sejam
necessrios para promover a
respectiva reintegrao na sociedade, conforme n. 1 do art. 10. da
Lei n. 51/2007. Do
mesmo modo e com o intuito de preveno especial, os servios
prisionais esto obrigados a
desenvolver e promover o acesso ao ensino, formao profissional e
ao trabalho aos
condenados por crimes de ndole grave conforme catlogo do art. 4.
da Lei n. 51/2007,
que prev os crimes que so de investigao prioritria segundo um
plano de reinsero
social para a sua reintegrao na sociedade, conforme n. 2 do art.
10. da Lei n. 51/2007, de
31 de Agosto.
-
12
daquela, como consagra como objectivos no art. 4., caso a
preveno e represso no tenham como mote principal a
preveno especial, caso contrrio toda e qualquer poltica
criminal ser um fracasso pois, no imediato produzir frutos
de segurana cognitiva e real, mas com o decurso do tempo a
reincidncia e a m execuo penitenciria gerar novos fluxos
de criminalidade que no se prevenir com leis de poltica
criminal, mas como ensina F. von LISZT com uma verdadeira
poltica social.
4. A preveno criminal o grande e principal mote da poltica
criminal.27 J o direito penal configura-se decididamente (...)
como
um direito penal de proteco de bens jurdicos28. Neste
sentido,
ANABELA M. RODRIGUES defende a poltica criminal como uma
cincia
aplicada, i. e., as decises normativas que, de uma banda, lhe
conferem
a sua dimenso poltica, pressupem, de outra, o conhecimento
cientfico
dos fenmenos que a deciso poltica tem por objecto e dos
possveis
instrumentos a mobilizar e resultados pretendidos29, ou seja, a
cincia
27 neste sentido que podemos ler o art. 1., a al. a) do art. 2.,
o art. 3., o art. 8. e o art. 10.
da Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto.
28 Cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinao da Medida da
Pena Privativa da
Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 237 e 238. Como nos
ensina, a poltica criminal, por
definio, orienta-se em direco preventiva. O sentido
especificamente poltico-criminal
das leis ne peccetur o de evitar ofensas convivncia social, numa
palavra, a leso ou o
perigo de leso de bens dignos e carecidos de tutela penal. neste
contexto que a
fundamentao poltica do direito penal significa procura de um
fundamento e de uma
finalidade racionais, controlveis e disponveis pelo homem, de
quem o direito objecto ou
instrumento (Cfr. p. 237, nota 219).
29 Idem, p. 245.
-
13
dogmtica exprime uma coordenao dialctica entre norma jurdica
e
realidade social, cuja interpenetrao vai ter realizao jurdica
da
dogmtica ao facto concreto a que se refere30. Assiste-se, desta
feita,
revitalizao que pe a descoberto os interesses (...) que, por
detrs
da reformalizao jurdica, determinam quer a forma quer o
contedo
das normas31. A poltica criminal32, como cincia integrante da
cincia
global (total, universal, integral ou conjunta) do direito
penal33, releva
sobremaneira no plano do processo penal no seu todo e,
indubitavelmente, no plano dos meios de obteno de prova onde
a
coliso entre Estado (ius puniendi) e o cidado (infractor) se
reflecte com
maior acuidade e tenso, cujo sentimento do agente do crime se
propaga
por todo iter processual. Como nos ensinam FIGUEIREDO DIAS e
COSTA
ANDRADE, no Estado de direito formal, o direito penal, como
ordem de
proteco do indivduo em particular dos seus direitos
subjectivos
perante o poder estatal, e como consequente ordem de limitao
desse
poder34, ocupava o primeiro lugar face poltica criminal e,
tambm,
criminologia que eram vistas como cincias auxiliares.
5. A evoluo para o Estado de direito material, social e
democrtico vinculado ao direito e a um esquema rgido de
30 Ibidem.
31 Ibidem.
32 Cujo nascimento se deve erupo da mentalidade
cientfico-positivista, produto do
prodigioso auge que, durante o sculo XIX, experimentaram as
cincias positivistas.
ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinao da Medida, p. 239.
33 FRAN von LISZT apud FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual
Penal, (Lies coligidas por
M. J. ANTUNES), p. 3. Quanto a este assunto, FIGUEIREDO DIAS e
COSTA
ANDRADE, Criminologia O Homem Delinquente e a Sociedade
Crimingena, Reimpresso,
Coimbra Editora, 1997, pp. 93 e ss..
34 FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia..., p. 94.
-
14
legalidade35, que respeita e garante os direitos fundamentais,
em que a
justia se promove e realiza nas vertentes social, cultural e
econmica
permite-nos olhar o direito penal segundo um novo prisma: a funo
da
dogmtica vira-se do sistema para o problema, isto , passa a
visar
prioritariamente a justa resoluo do problema posto por cada
caso
jurdico-penal e a posterior integrao daquela no sistema, que
assim se
torna em sistema aberto36. No Estado de Direito material a
poltica
criminal ocupa um lugar de transcendncia face s restantes
cincias
criminais37, i. e., torna-se trans-sistemtica relativamente a
elas e, desta
maneira, competente para definir em ltimo turno os limites
da
punibilidade38. Neste sentido, ANABELA M. RODRIGUES elucida-nos
de
que a poltica criminal ganha foros de primazia, consolidando
a
autonomia e a transcendncia em relao ao direito penal39, e
como
afirma FIGUEIREDO DIAS, o primeiro e indisputvel lugar deve
ser
cedido poltica criminal. Por duas razes principais: porque
poltica
criminal que pertence hoje definir o se e o como da
punibilidade, isto ,
nesta acepo, os seus limites; e porque (de algum modo,
consequentemente) os conceitos bsicos das doutrinas do facto
punvel,
muito para alm de serem penetrados ou influenciados por
consideraes poltico-criminais, devem pura e simplesmente ser
35 Idem, p. 95.
36 Ibidem.
37 Cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Parte Geral Tomo
I, Coimbra
Editora, 2004, pp. 32-35.
38 FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, Criminologia..., p. 94 (cfr.
nota 9). Para
FIGUEIREDO DIAS, a poltica criminal intra-sistemtica
relativamente concepo de
Estado, ou seja, imanente ao sistema jurdico-constitucional.
39 ANABELA M. RODRIGUES, A Determinao da Medida, p. 237. Negrito
nosso.
-
15
determinados e cunhados a partir de proposies poltico-criminais
e da
funo que estas lhes assinalada no sistema40.
6. No se pretendendo retomar o literal sentido de LISZT, a
concepo de uma cincia global do direito penal, hoje mais do
que
algum tempo, deve ser encarada como caminho para o fenmeno
crime,
tendo presente que o tempo presente , por excelncia, o tempo
da
poltica criminal41. O direito penal substantivo e adjectivo ,
parte
integrante da cincia global, no pode apartar-se da poltica
criminal,
cincia que vaza as suas proposies no processo penal, que, por
sua vez
e como ensina CLAUS ROXIN, a forma atravs da qual as
proposies
de fins poltico-criminais se vazam no modus da validade
jurdica42, ou,
na formulao de FIGUEIREDO DIAS, a forma atravs da qual as
proposies de fins poltico criminais se vazam no modus da
vigncia
jurdica43. A determinao das consequncias jurdicas do crime,
no
processo penal, detm um relevo especfico e formal, imposto
pela
preveno geral de integrao realizando-se, desta feita, o
cumprimento
das intenes e do programa poltico-criminal no caso concreto44;
ou,
nas palavras de ANABELA M. RODRIGUES45, na luta contra o
crime,
significa indicar uma finalidade ao direito penal,
designadamente pena,
que lhe justifica a existncia, tendo como certeza que a
integral
40 FIGUEIREDO DIAS, O Direito Penal na Sociedade de Risco, in
Temas Bsicos da
Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pp. 156 e 157.
41 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, (Lies coligidas
por M. J. ANTUNES), p. 17.
42 CLAUS ROXIN apud FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual..., p.
19.
43 Ibidem.
44 Idem, p. 18.
45 ANABELA M. RODRIGUES, A Determinao da Medida., p. 241.
-
16
justificao exige a avaliao das finalidades apontadas em face
dos
resultados obtidos.
7. Se impera a necessidade de um direito penal direccionado
para
as suas consequncias46, a cincia penal global valorativa e
crtica com
responsabilidade poltica encontra, de lege ferenda, eco numa
poltica
criminal autenticamente poltica e no apenas tecnocrtica que fixe
os
objectivos que o direito penal deve perseguir, com a
consequente
abertura da sua possibilidade de crtica; e, de lege lata, uma
dogmtica
criadora, essencialmente orientada no sentido das finalidades
poltico-
criminais da lei, que no s constitua a superao de uma
dogmtica
cega, de costas para a realidade, mas antes evite uma
dogmtica
acrtica e puramente tcnica47. Contrariamente a este princpio
de
orientao e no quadro processual penal se pode apontar a realizao
das
escutas telefnicas de forma desmedida, que reflectem
directamente o
direito penal moderno, que, como nos aponta W. HASSEMER48, visa
a
proteco de bens jurdicos, no no molde negativo, mas no de
positividade criminalizadora (conduzindo demanda da
criminalizao), para uma preveno baseada na criminalizao, na
reaco ao crime e no na aco proactiva ao crime, e orientado para
as
consequncias imediatas econmicas, sociais, culturais e,
fundamentalmente, polticas afastando-se da preveno do perigo
do
46 WINFRIED HASSEMER, Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, Casa
Editorial, S.A.,
Barcelona, 1984, pp. 34 e ss..
47 ANABELA M. RODRIGUES, A Determinao da Medida, p. 245, nota
234.
48 WINFRIED HASSEMER, Rasgos y crisis del Derecho Penal moderno,
in Anuario de
Derecho Penal y Ciencias Penales, do Ministerio de Justicia,
Tomo XLV, Fascculo I, Enero-Abril,
MCMXCII, pp. 235 e ss..
-
17
crime inerente s instncias formais de controlo: autoridades
judicirias
(AJ) e rgos de polcia criminal (OPC). A determinao das
consequncias jurdicas do crime como expresso mxima da
preveno criminal e, consequentemente, da poltica criminal
depende
da prova obtida e produzida em sede de julgamento. A obteno
de
provas permitir eficcia quanto aos fins do direito penal
(preveno
geral e especial) e, consequentemente, prosseguir o programa
poltico-
criminal a imposio de pena s pode ter por justificao a tutela
das
expectativas criadas pela norma ou a reafirmao da validade da
norma
violada49. Mas, essa eficcia dever, sempre, depender da
legitimidade
quanto aos meios empregues na prossecuo da poltica criminal.
A
produo de prova que se afere em sede de julgamento face ao
manancial carreado para o processo pelos OPC e AJ (MP e JIC)
no
pode nem deve, num Estado de direito democrtico, sobrepor-se
a
valores fundamentais ao desenvolvimento integral do homem na
comunidade. Ditame este imposto pelos princpios da legalidade e
da
humanidade da poltica criminal, cuja Lei-Quadro (LQPC)
abordaremos
com maior acuidade de seguida.
II
Os princpios da poltica criminal e a Lei-Quadro
8. O legislador da LQPC teve em conta os princpios reitores
da
poltica criminal e percorre o iderio dos vectores da eficcia e
da
legitimidade. Questiona-se se esta anuncia foi ou no na
totalidade ou se
pelo contrrio foi mais fecunda em um ou outro princpio ou em um
ou
49 Idem, p. 17.
-
18
outro vector. Quanto a legitimidade tico jurdica no se nos
afigura
fazer qualquer referncia a no ser que a mesma emerge da
legitimidade
normativa prescrita na prpria LQPC e na inteno de se
apresentarem e
aprovarem novas leis de poltica criminal no sentido de se
estipularem,
de dois em dois anos, os objectivos, as prioridades e as
orientaes de
poltica criminal, conforme estipula o art. 7.da LQPC50. Este
perodo
temporal de dois em dois anos reflecte o mnimo de tempo para
uma
avaliao dos objectivos, das prioridades e das orientaes criadas
e
postas em prtica e parece-nos ajustado ao evoluir da sociedade e
da
criminalidade. Esta LQPC reflecte, tambm, a sujeio da
legitimidade
normativa legitimidade sociolgica, por duas ordens de razo:
a
primeira prende-se com a audio de vrios intervenientes que
so
responsveis pela materializao da poltica criminal e pela
adequao
futura, sendo que so operadores que lidam diariamente com o
fenmeno crime e dessa relao forada retiram ensinamentos que
sejam necessrios e exigveis ao melhoramento das novas leis de
poltica
criminal; a segunda retira-se do ciclo eleitoral normal de
quatro anos para
a governao, pois ao Governo que compete fazer as propostas de
lei
sobre poltica criminal Assembleia da Repblica e os prazos de
dois
anos permitem, assim, ajustar os objectivos, prioridades e
orientaes s
necessidades mais prementes da comunidade. Neste ponto, a
legitimidade sociolgica i. e., a aceitao e a aprovao das
polticas
seguidas por parte da comunidade pode transformar-se
perversamente
em ofensa ao princpio da legalidade ou do Estado de direito na
vertente
do respeito do princpio da igualdade, porque as necessidades
colectivas
50 Cfr. Lei n. 51/2007, de 30 de Agosto, que aprova a primeira
lei de poltica criminal para o
binio de 2007-2009.
-
19
no podem ser espartilhadas de modo a criarem clivagens de
proteco
de bens jurdicos.
9. Poder-se- afirmar que esta LQPC, na linha europeia e das
orientaes e recomendaes das instituies da Unio, se fundou
mais
na eficcia relativamente aos fins a prosseguir51: preveno e
represso
da criminalidade e reparao dos danos, conforme art. 4. da LQPC.
Estas
finalidades ou estes objectivos esto sujeitos s prioridades que
se aferem
ou do bem jurdico tutelado ou da norma legal que preveja um
crime
especfico como prioridade por ser um fenmeno criador de
alarme
social e de insegurana ou do modus operandi ou do resultado
fsico e
psquico ou do dano individual ou colectivo ou, ainda, da
pena
abstractamente aplicvel, conforme art. 5. da LQPC. Nem
podemos
respirar de alvio quanto a um dos fundamentos da poltica
criminal
preveno da criminalidade no sentido do delinquente no poder
novamente delinquir, i. e., ne peccetur quando lemos o art. 7.
da LQPC
sobre as orientaes, porque estas incidem somente no plano da
pequena
criminalidade e porque razes de princpio da oportunidade, que
mitiga e
adorna o princpio da legalidade, j o legislador tinha amalgamado
estas
orientaes nos art. 280., 281., 16, n. 3 e 392. a 398. do CPP52.
A
51 Como afirma COSTA ANDRADE, a LQPC no se preocupou com as
questes de fundo
da poltica criminal, mas nica e exclusivamente com o problema de
celeridade processual
eficcia que implica a opo das prioridades de preveno e de
investigao, apresentando a
ausncia do aprofundamento das questes da
criminalizao/descriminalizao e da
ressocializao. Cfr. M. DA COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica
Criminal, in
RLJ, n. Ano 135, n. 3938, p. 267.
52 A finalidade ne peccetur pode-se, actualmente, retirar da Lei
n. 51/2007 que prescreve,
tambm, manifestaes do princpio da oportunidade artigos 11., 12.,
13. e na ideia de
que h situaes subjectivas e objectivas do agente do crime que,
no obstante ter sido
-
20
batuta da eficcia, que um vector da poltica criminal, prevalece
face
prpria legitimidade e, at mesmo, face ao teor essencial dos
princpios
reitores da poltica criminal.
10. O princpio da culpa ou da culpabilidade no se afere
directamente dos preceitos legais, mas poder-se- resquiciamente
aferir
da interpretao do art. 3. da LQPC quando prescreve que a
poltica
criminal deve ser congruente com os valores da Constituio e da
lei
sobre os bens jurdicos. O princpio da culpabilidade um
princpio
constitucional, cuja limitao da liberdade do delinquente est
subjugada
desde logo aos limites constitucionais e, neste caso, da culpa
como limite
e fundamento da pena. Este princpio um valor jurdico, tico e
socialmente aceite e defendido pela comunidade e, por isso, um
valor
constitucional que fundamenta a restrio do bem jurdico
liberdade, que
s admissvel dentro das linhas do art. 27. da CRP. Acresce
referir que
a aco penal tem limites e um desses limites se afere da culpa do
agente
da prtica de crimes. Quanto ao princpio da legalidade ou do
Estado de direito
de JESCHEK poder-se- afirmar que se encontra plasmado no s no
art.
2. como no art. 3. da LQPC. As leis sobre poltica criminal no
podem
deturpar o princpio da legalidade, sob pena de se destruir o
princpio da
segurana jurdica, nem to pouco prejudicar a independncia da
jurisdio e a autonomia do Ministrio Pblico53. A esta limitao
formal
condenado, por crime punvel com pena inferior a 5 anos, devem
induzir no execuo
concreta da pena privativa de liberdade art. 14. .
53 Cfr. al. a) do art. 2. da LQPC. Quanto independncia dos
tribunais e a autonomia do MP,
como manifestaes do princpio da separao de funes e/ou do
acusatrio, MANUEL
MONTEIRO GUEDES VALENTE, Processo Penal Tomo I, Almedina,
Coimbra, 2004, pp.
85-112.
-
21
acrescenta o legislador a inadmissibilidade de directivas,
instrues ou
ordens sobre processos determinados e a no possibilidade de por
lei de
poltica criminal se isentar modelos de comportamento tpicos,
ilcitos e
culposos de procedimento54.
Afere-se neste ponto o princpio da igualdade de tratamento face
ao
comportamento crimingeno e expectativa jurdica e social da
vtima
ou das vtimas e da comunidade. Todavia, ao se criarem leis
sobre
poltica criminal, propostas pelo Governo Assembleia da
Repblica,
que estipulem prioridades que no a da entrada do processo ou a
do
agente do crime estar em priso preventiva, i. e., que no seja de
acordo
com a medida de coaco aplicada ao arguido, independentemente do
n.
3 do art. 5. da LQPC prescrever que o regime das prioridades
no
prejudica o reconhecimento de carcter urgente a processos, no
se
pode afigurar de todo o respeito pela independncia das jurisdies
e
muito menos da autonomia do Ministrio Pblico, consagrada no n.
2
do art. 219. da CRP. Esta perde de autonomia do Ministrio Pblico
vai
certamente afectar a aplicao da justia em nome do povo pelos
tribunais, porque sero e faro chegar ao fim o que o MP lhes der,
que
ter de respeitar as prioridades prescritas em lei da Assembleia
da
Repblica.
Acresce que o MP e os rgos de Polcia Criminal (OPC)55 esto
vinculados a assumir os objectivos e a adoptar as prioridades
e
orientaes que a lei sobre poltica criminal prescrever, nos
termos do
art. 11. da LQPC. Acresce a esta vinculao legal a possibilidade
do
54 Cfr. als. b) e c) do art. 2. da LQPC.
55 Cfr. o ponto 1 dos fundamentos das prioridades e orientaes da
poltica criminal constantes
em anexo Lei n. 51/2007, de 31 de Agosto.
-
22
Governo emitir directivas, ordens e instrues destinadas a
fazer
cumprir a lei sobre a poltica criminal, conforme art. 12. da
LQPC. Se
estas directivas, ordens e instrues se destinarem aos
operadores
judicirios que tm por obrigao materializar a lei sobre poltica
criminal
MP, OPC e, ainda, departamentos da Administrao Pblica que
apoiem as aces de preveno e de investigao criminal poder-se-
afirmar que h uma ingerncia na autonomia do MP, titular da
aco
penal.
11. J no que concerne aos princpios da humanidade e da
ressocializao do delinquente parece-nos que esta LQPC muito
pouco nos
traz de novidade56, podendo-se to s referir que o legislador
teve o
cuidado de inserir no art. 1. que a poltica criminal compreende
a
definio de objectivos, de prioridades e orientaes em matria de
(...)
execuo de penas e medidas de segurana. Na exposio de
motivos,
pode ler-se que a poltica criminal tem como objectivo precpuo
a
defesa de bens jurdicos, proclamada como a primeira finalidade
das
sanes penais pelo Cdigo Penal e legitimada pelo princpio da
necessidade das penas e das medidas de segurana (art. 18., n. 2
da
56 A LQPC fica aqum e, digamos, afirma-se de forma superficial
quanto aos princpios da
humanidade e da ressocializao do agente do crime, todavia o
legislador na Lei n. 51/2007
procurou materializar instrumentos jurdicos e directrizes
administrao da justia para que
o princpio da humanidade p. e., a 13. e 14.. J COSTA ANDRADE
alertara para o facto
de que esta LQPC que est longe de ser uma LQ de Poltica criminal
no verdadeiro sentido
jurdico-poltico (formal e materialmente) se esqueceu da
ressocializao, logo na primeira
verso coloca a discusso pblica, quando a ressocializao configura
uma das estrelas
polares da nossa experincia e das nossas instituies penais, ao
longo dos ltimos anos, por
estar demasiado notrio a tnica repressiva da celeridade da
investigao criminal e da aco
penal. Cfr. M. DA COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da Poltica Criminal,
in RLJ, n.
Ano 135, n. 3938, pp. 267-270.
-
23
Constituio)57. Parece-nos que, quanto a esta temtica, o
legislador
manifestou esta vertente humanista nas alteraes previstas para
o
Cdigo Penal, cujo tema no estamos a discutir. Podemos apontar
como
breve concluso que a LQPC detm manifestaes directas ou
indirectas
dos princpios da poltica criminal, cuja materializao mais se faz
sentir
na lei de poltica criminal que de objectivos, prioridades e
orientaes
para o binio 2007-09.
III
Pequenas mas relevantes questes pontuais
12. Consideramos que o objecto da poltica criminal no devia
ter separado a investigao criminal da aco penal, pois esta
engloba
aquela, ou seja, a investigao criminal encontra-se e existe
dentro da
aco penal e no fora desta. Esta separao pode-se afigurar
perigosa
por duas ordens de razo: por um lado, corremos o risco de
pensarmos
que existe investigao criminal fora da aco penal, i. e., fora da
direco
e dependncia funcional do MP, imposta pelo art. 263. do CPP, e
por
outro lado, esta opo legislativa pode dar voz aos que defendem
a
policializao da investigao criminal e a sua consequente
desjudiciarizao e desjurisdicionalizao, diminuindo a proteco
dos
direitos, das liberdades e das garantias fundamentais
processuais do
cidado.
13. Outra questo relevante que se pode erradamente retirar
desta LQPC o nivelamento dos OPC perante o MP quanto
prossecuo
57 Cfr. ponto 4 da exposio de motivos do anteprojecto da
LQPC.
-
24
das leis sobre poltica criminal, como se infere do art. 11. da
LQPC. Os
OPC so rgos auxiliares de administrao da justia, so rgos
coadjuvantes das autoridades judicirias, que actuam no processo
penal
sob a direco e dependncia funcional da AJ competente para a fase
do
processo em curso e no esto ao mesmo nvel de aco
procedimental
penal. Claro est que a poltica criminal tem como escopo a
preveno
da criminalidade em sentido lato e polcia cabe a funo de
preveno
criminal nos termos do n. 3 do art. 272. da Constituio.
Contudo,
neste preceito constitucional no est consagrada como funo da
polcia
participar na execuo da poltica criminal definida pelos rgos
de
soberania, como consagra o n. 1 do art. 219. da Constituio
como
competncia do Ministrio Pblico, porque a ele cabe tambm exercer
a
aco penal orientada pelo princpio da legalidade e dentro da
aco
penal encontra-se, na nossa opinio, a coadjuvao dos OPC quer
na
prossecuo de actos delegados genrica ou concretamente quer
na
prossecuo de medidas cautelares e de polcia, que tero de ser
apreciadas e validadas pela autoridade judiciria
competente58.
IV Concluso
14. A LQPC o incio e a conscincia de que necessrio orientar
o fluxo penal e processual para a credibilizao do sistema de
justia
penal portugus e para a certeza de que os bens jurdicos
afectados por
58 Quanto aos destinatrios da LQPC e das relaes de coadjuvao
face aos princpios da
legalidade e das prioridades, assim como do afastamento e,
paralelamente, da quebra da
independncia dos Tribunal da poltica criminal quando a Ele
compete administrar a
justia em nome do povo , M. DA COSTA ANDRADE, Lei-Quadro da
Poltica
Criminal, in RLJ, n. Ano 135, n. 3938, pp. 271-277.
-
25
condutas delituosas so repostos e os autores da leso ou de
colocao
em perigo de leso de bens jurdicos so responsabilizados. Nesta
linha
de eficcia mxima na linha do TGV penal, parece-nos que a LQPC
um
ensaio adequado a medir as fragilidades do sistema penal
portugus, at
da prpria LQ quer no quadro formal quer no material, e de
promover
um sentimento de maior segurana. Todavia, no se afigura como
uma
lei de poltica criminal com o desiderato ne peccetur que deve
ser reflectido
quer na lege ferenda quer na lege lata. o incio de uma caminhada
que se
ir construindo com o contributo de todos os que se preocupam com
as
questes do crime.
Muito obrigado.
Lisboa, 2 de Maio de 2007