POEMAS EM LIBRAS SOBRE NATAL – UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE POESIA SURDA Carolina Hessel Silveira Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Discutindo literatura e cultura surda Os estudos sobre cultura surda são bastante recentes e também as pesquisas sobre a literatura surda, que é um elemento importante desta cultura. Estes estudos são realizados dentro dos Estudos Surdos, que se aproximam dos Estudos Culturais. Conforme Rosa e Klein (2011, p. 93), “os Estudos Surdos surgiram a partir da necessidade de outros olhares sobre a surdez e os surdos.” Os autores também mostram que é muito importante para o ser surdo compartilhar com outros surdos a língua de sinais, a história cultural surda, a arte surda, entre outros elementos. Os Estudos Culturais sempre se interessaram pelas culturas, sem fazer diferenças de valor entre elas, e os Estudos Surdos se interessam especialmente pela Cultura surda. Para definir cultura surda, podemos citar Wrigley (1996, p. 45), que diz que o traço significante que define a cultura dos surdos é o uso de uma língua de sinais, que é uma língua natural dentro dos corpos surdos. É importante entender que se trata de uma cultura que é construída pelos surdos, e não é uma cultura traduzida da cultura dos ouvintes. Os surdos usam suas línguas de sinais, utilizam predominantemente a percepção visual, têm seus costumes, hábitos, ideias, convivem entre si e comemoram suas datas como eventos importantes para eles. Strobel (2009), autora surda, estudou muitos aspectos da cultura surda e ela nos lembra que, dentro dessa cultura, existem artefatos culturais diferentes, que são específicos do povo surdo, como a língua de sinais; a literatura surda e artes visuais específicas da comunidade. Quando se fala em literatura e artes visuais, é importante compreender que, na cultura surda, as produções linguísticas, literárias, artísticas, científicas são todas visuais. Assim como a literatura é importante para muitos grupos, como é o caso da literatura indígena, literatura negra, a literatura surda é um dos elementos relevantes da cultura surda. Para defini-la, podemos utilizar a conceituação de Karnopp (2010, p. 161): A expressão “literatura surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura
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POEMAS EM LIBRAS SOBRE NATAL UMA ......Strobel (2009), autora surda, estudou muitos aspectos da cultura surda e ela nos lembra que, dentro dessa cultura, existem artefatos culturais
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POEMAS EM LIBRAS SOBRE NATAL – UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE
POESIA SURDA
Carolina Hessel Silveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Discutindo literatura e cultura surda
Os estudos sobre cultura surda são bastante recentes e também as pesquisas sobre a
literatura surda, que é um elemento importante desta cultura. Estes estudos são realizados
dentro dos Estudos Surdos, que se aproximam dos Estudos Culturais. Conforme Rosa e Klein
(2011, p. 93), “os Estudos Surdos surgiram a partir da necessidade de outros olhares sobre a
surdez e os surdos.” Os autores também mostram que é muito importante para o ser surdo
compartilhar com outros surdos a língua de sinais, a história cultural surda, a arte surda, entre
outros elementos. Os Estudos Culturais sempre se interessaram pelas culturas, sem fazer
diferenças de valor entre elas, e os Estudos Surdos se interessam especialmente pela Cultura
surda. Para definir cultura surda, podemos citar Wrigley (1996, p. 45), que diz que o traço
significante que define a cultura dos surdos é o uso de uma língua de sinais, que é uma língua
natural dentro dos corpos surdos. É importante entender que se trata de uma cultura que é
construída pelos surdos, e não é uma cultura traduzida da cultura dos ouvintes. Os surdos
usam suas línguas de sinais, utilizam predominantemente a percepção visual, têm seus
costumes, hábitos, ideias, convivem entre si e comemoram suas datas como eventos
importantes para eles.
Strobel (2009), autora surda, estudou muitos aspectos da cultura surda e ela nos
lembra que, dentro dessa cultura, existem artefatos culturais diferentes, que são específicos
do povo surdo, como a língua de sinais; a literatura surda e artes visuais específicas da
comunidade. Quando se fala em literatura e artes visuais, é importante compreender que, na
cultura surda, as produções linguísticas, literárias, artísticas, científicas são todas visuais.
Assim como a literatura é importante para muitos grupos, como é o caso da literatura
indígena, literatura negra, a literatura surda é um dos elementos relevantes da cultura surda.
Para defini-la, podemos utilizar a conceituação de Karnopp (2010, p. 161):
A expressão “literatura surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a
língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura
surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que
entende a surdez como presença de algo e não como falta, que possibilita outras
representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo
linguístico e cultural diferente.
Também existe uma relação muito grande entre a literatura surda e a história do povo
surdo. Strobel (2009, p. 61) afirma que a literatura surda “traduz a memória das vivências
surdas através das várias gerações dos povos surdos”. Isso também acontece porque, muito
antes de se fazer gravações de histórias surdas em vídeo, já aconteciam encontros de surdos
nas associações, nas festas, nos eventos, etc. Nesses encontros, havia muitas trocas de
histórias, de piadas e de outras produções. Mesmo não havendo registro filmado, essas
produções já faziam parte da literatura surda, que, conforme Karnopp (2010, p. 171), abrange
“histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas histórias de vida que são
frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas,
jogos de linguagem e muito mais”.
Assim, percebe-se que a Literatura Surda é a literatura que os surdos produzem que
não é registrada com a língua escrita, mas se expressa através da língua de sinais. De acordo
com Rosa e Klein (2011, p. 95), “A literatura surda, quando produzida por um surdo, torna-se
diferente das produzidas por pessoas ouvintes. Isso se dá porque o surdo é aquele que
vivencia as experiências surdas, sua cultura e a Libras.” Os autores ainda afirmam que até
mesmo ouvintes com fluência em Libras e que participem da comunidade surda têm
experiências diferentes das experiências que os surdos têm. Então, a literatura surda não é
uma tradução da Literatura Brasileira ou de qualquer outra literatura nacional. Mas também é
claro que a literatura surda também pode incorporar alguns temas e assuntos que aparecem na
literatura dos ouvintes.
Como se registra a literatura surda ? Este é um caso diferente da literatura escrita de
ouvintes. Podemos citar a opinião de Wilcox (2005, p. 96), que escreve sobre esse assunto e,
se referindo à ASL (American Sign Language, que é a língua de sinais americana) afirma que:
... a maioria das línguas no mundo não são escritas. Isso certamente não significa
que nessas línguas não exista trabalho literário. Muitos dos “clássicos” da literatura
– a Bíblia, os dramas gregos – originalmente não eram escritos. Embora a ASL seja
ainda uma língua não escrita, ela possui uma longa e rica história de literatura
popular. Grande parte dessa literatura tem sido gravada em filme ou fitas de vídeo.
Muitas criações da tecnologia nas últimas décadas facilitaram o registro, a divulgação
e o conhecimento da literatura surda. Podemos lembrar como exemplo o surgimento e a
popularização da internet, nos últimos vinte anos, com a criação de sites de fácil acesso para
postagem e visualização de vídeos. Também ficou muito fácil a gravação de vídeos com
celulares, smartfones e outros artefatos, por qualquer pessoa. Isto tudo tornou mais fácil o
acesso à literatura surda, tanto para os surdos que querem conhecer estes artefatos quanto para
os que querem estudar esta literatura, que é uma literatura visual.
Dentro do campo dos Estudos Culturais e dos Estudos Surdos, que se interessam sobre
as relações entre culturas, representações e identidades, vamos, neste artigo, fazer um breve
estudo de um gênero da literatura surda no Brasil: poemas em Libras (Língua Brasileira de
Sinais). Alguns poemas serão analisados como exemplos desse artefato cultural.
Alguns aspectos dos Poemas em Libras
Dentro da literatura surda, encontram-se os poemas em língua de sinais e, no caso
brasileiro, os poemas em Libras, que utilizam os recursos expressivos de LIBRAS. Alguns
autores dizem que poemas em línguas de sinais são uma forma de arte recente, que teria
começado aproximadamente na década de 1970 nos Estados Unidos. Para Rachel Sutton-
Spence (2008, p. 340), “nos anos 70, surgiram algumas mudanças relacionadas à consideração
da poesia em línguas de sinais não apenas como concebível, mas, também, como uma
realidade” e isso permitiu um espaço para as performances de poetas das línguas de sinais,
inicialmente nos Estados Unidos e depois em outros países. Entretanto, encontrei um registro
mais antigo de vídeo de poema no site Gallaudet, de uma performance em 1913, com a
poetisa americana Mary Williamson Erd1, do poema "Death of Minnehaha" (“morte de
Minnehaha”), que talvez seja inspirada no poema épico americano do autor Henry Wadsworth
Longfellow, em ASL . O poema fala de uma lenda índia e a temática é muito popular nos