TRANSLATIO Porto Alegre, n. 19, Outubro de 2020 57 ISSN 2236-4013 TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS BRASILEIRO DOS VERSOS 157 A 312 D’ A COMÉDIA DOS FANTASMAS DE PLAUTO A Brazilian Portuguese translation of Plautus’ Mostellaria, 157-312 Carol Martins da Rocha 1 Resumo: Esta é uma tradução do latim para o português brasileiro dos versos 157 a 312 da peça Mostellaria de Tito Mácio Plauto, comediógrafo do séc. III a.C. A passagem corresponde ao que se convencionou delimitar como terceira cena do primeiro ato dessa comédia. Nela figuram duas personagens femininas, que, embora não contracenem novamente no restante da ação, são parte do motor do plano do escravo Tranião, que envolve os fantasmas mencionados no título da peça. Filemácia, jovem meretriz, e Escafa, sua velha escrava, que outrora também fora prostituta, conversam sobre o modo como se sucedem as relações entre os jovens apaixonados e as meretrizes, alegados alvos da sua paixão. As notas que acompanham a tradução procuram ora elucidar passagens mais obscuras (seja em termos de edição de texto ou de tradução), ora chamar a atenção do leitor para os aspectos metateatrais que, a nosso ver, caracterizam a cena em cotejo. Palavras-chave: Plauto; Mostellaria; meretrizes; metateatro; tradução. Abstract: This is a translation from Latin to Brazilian Portuguese of Titus Maccius Plautus’ Mostellaria, 157-312. In this passage, the third scene of the first act of this comedy, two female characters perform. Although they do not act together again in the play, they are central to Tranio’s plan, which includes the ghosts mentioned in the play title. Philematium, a young meretrix, and Scapha, her ancilla, that were also a prostitute, talk about how evolve the relationship between the young lovers and the alleged target of their love, the prostitutes. Along the translation there are footnotes that try to elucidate obscure passages (in terms of text or translation issues) or to highlight metatheatrical aspects which seem to us central to the scene here translated. Keywords: Plautus; Mostellaria; prostitutes; metatheatre; translation. Introdução 2 Os fantasmas mencionados no título da comédia de Tito Mácio Plauto (III – II a.C.) aqui em apreço são parte do plano arquitetado por Tranião, escravo calejado (seruus callidus) dessa 1 Docente do Departamento de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutora em Linguística Aplicada pelo IEL/Unicamp (2015), com estágio de pesquisa no exterior no Seminar für Klassische Philologie (Universität Heidelberg). 2 Essa tradução é parte do projeto (em andamento) de tradução integral d’ A comédia dos fantasmas. Agradeço aos pareceristas pelas sugestões feitas durante a fase de avaliação do texto e aos editores da Translatio pelo cuidadoso processo editorial.
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TRANSLATIO Porto Alegre, n. 19, Outubro de 2020
57 ISSN 2236-4013
TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS BRASILEIRO DOS VERSOS 157 A 312 D’ A
COMÉDIA DOS FANTASMAS DE PLAUTO
A Brazilian Portuguese translation of Plautus’ Mostellaria, 157-312
Carol Martins da Rocha 1
Resumo: Esta é uma tradução do latim para o português brasileiro dos versos 157 a 312 da
peça Mostellaria de Tito Mácio Plauto, comediógrafo do séc. III a.C. A passagem corresponde
ao que se convencionou delimitar como terceira cena do primeiro ato dessa comédia. Nela
figuram duas personagens femininas, que, embora não contracenem novamente no restante da
ação, são parte do motor do plano do escravo Tranião, que envolve os fantasmas mencionados
no título da peça. Filemácia, jovem meretriz, e Escafa, sua velha escrava, que outrora também
fora prostituta, conversam sobre o modo como se sucedem as relações entre os jovens
apaixonados e as meretrizes, alegados alvos da sua paixão. As notas que acompanham a
tradução procuram ora elucidar passagens mais obscuras (seja em termos de edição de texto ou
de tradução), ora chamar a atenção do leitor para os aspectos metateatrais que, a nosso ver,
Os fantasmas mencionados no título da comédia de Tito Mácio Plauto (III – II a.C.) aqui
em apreço são parte do plano arquitetado por Tranião, escravo calejado (seruus callidus) dessa
1 Docente do Departamento de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Doutora em Linguística Aplicada pelo IEL/Unicamp (2015), com estágio de pesquisa no exterior no Seminar für
Klassische Philologie (Universität Heidelberg). 2 Essa tradução é parte do projeto (em andamento) de tradução integral d’ A comédia dos fantasmas. Agradeço aos
pareceristas pelas sugestões feitas durante a fase de avaliação do texto e aos editores da Translatio pelo cuidadoso
processo editorial.
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peça.3 A peripécia consiste em convencer o velho Teoprópides, pai de Filólaques, dono de
Tranião, de que o adulescens havia abandonado a casa em que moravam porque o fantasma de
um hóspede assassinado pelo antigo proprietário dela havia lhe aparecido em sonho para revelar
todo seu infortúnio e avisá-lo da maldição que assombrava aquele lar (v. 431-531).
A cena que escolhemos traduzir ocorre antes de o escravo bolar seu plano e colocá-lo
em prática. Nela figuram Escafa e Filemácia. Esta última, uma meretriz, é um dos motivos pelos
quais o ludíbrio se faz necessário: dada a longa ausência do pai, Filólaques, apaixonado pela
jovem moça, transforma o patrimônio da família (v. 134-156) em ruínas. O adulescens chega a
se endividar com um agiota para comprar a liberdade da meretriz (v. 210-1). O bon vivant,
entretanto, se vê em apuros quando inesperadamente Teoprópides regressa (v. 353). Diante da
possibilidade de ser pego em flagrante, o jovem, que àquela altura bebia e festejava com
Calidamates, seu amigo, e Délfia, a outra meretriz da peça, se desespera (v. 378-381) e pede
ajuda a Tranião. O escravo ordena que as meretrizes entrem na casa e lá se mantenham em
silêncio (v. 397-402), enquanto ele articula seu ardil.
A participação de Filemácia e Escafa, uma escrava, que outrora fora meretriz, ocorre
ainda perto do início da ação de Mostellaria. Ambas entram em cena após um extenso
monólogo de Filólaques, em que o jovem, usando uma metáfora que equipara o homem a uma
casa, lamenta a ruína de suas estruturas (v. 85-156). Estando no palco, Filemácia e Escafa não
sabem, mas a conversa entre elas é ouvida pelo jovem apaixonado, que a todo momento faz
apartes ao diálogo espionado. Em linhas gerais, a cena que aqui apresentamos é a seguinte.
Filemácia e Escafa conversam, enquanto a jovem meretriz se apronta para a chegada do
adulescens. A preocupação de Filemácia é com sua aparência: ela acaba de se banhar (v. 157-
8), quer ter certeza se as roupas lhe caem bem (v. 166-7; 172) e se seus cabelos estão arrumados
(v. 254), deseja se maquiar (v. 257 ss.), se perfumar (v. 272) e se enfeitar (v. 248-9). A
preocupação de Escafa, por sua vez, é com o triste destino das mulheres que vivem como
meretrizes. Segundo sua própria experiência, a velha escrava sabe que a sobrevivência de uma
prostituta, de um lado, depende do ganho monetário advindo da sua relação com um homem
por ela apaixonado e, por outro lado, está atrelada à juventude dessa mulher.
3 Esta é a única das peças de Plauto em que se apresenta o tema dos espectros. Para um levantamento mais completo
sobre o tema na literatura antiga em geral, cf. KEMPER, 2010. Segundo Ernout (PLAUTE, 2003, p. 13), seriam
três as comédias gregas nomeadas Φάσμα, das quais atualmente se conhece apenas o título: uma de Teogneto (III
a.C.), outra de Menandro (III a.C.) e a terceira de Filemão (III a.C.). Supõe-se, a partir da proposta de Ritschl, em
seu estudo de 1845 (Parerga zu Plautus und Terenz), que esta última tenha sido o modelo para a peça plautina,
ainda que o indício para tal afirmação – a saber, a menção a Dífilo no verso 1149 da peça – seja pouco confiável
(cf. PLAUTE, 2003, p. 13: “On admet, depuis Ritschl, que c’est de cette dernière que Plaute se serait inspiré, mais
cela sur un indice bien faible”).
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O fato de que esta peça de Plauto ainda não recebeu uma tradução para o português
brasileiro é uma das justificativas para apresentarmos uma mostra dessa tarefa, que
pretendemos levar a cabo futuramente. Além disso, esta cena específica, única em que
Filemácia e Escafa contracenam, ilustra, na nossa opinião, um jogo entre dois elementos
presentes nesta comédia. De um lado, estão as imagens desse tipo que as meretrizes da peça
expressam ter para si. De outro lado, está o modo como as duas personagens planejadamente
fazem vir à tona em seus discursos cada uma dessas imagens. Implicado nesse jogo está ainda
um duplo movimento metalinguístico, que aponta, sobretudo, para o caráter ilusório do teatro.
Ora alude-se ao comportamento que o tipo da meretriz costuma ter no palco da palliata. Ora
chama-se a atenção seja por meio dos elementos cênicos, seja por referência ao desajuste entre
o ator e o personagem feminino que ele representa, por exemplo, para a materialidade
relacionada aos corpos reais dos atores que interpretam essas personagens.
1. Breves notas sobre a tradução
Para a tradução que apresentamos a seguir, adotamos o texto latino editado por Ernout
e publicado pela coleção Belles Lettres (PLAUTE, 2003). Nas notas, faremos referência às
edições e traduções consultadas da seguinte maneira:
Collart = PLAUTUS, T. M. Mostellaria. Edição, introdução e comentário de Jean
Collart. Paris: Presses Universitaires de France, 1970.
FILE. Por Castor, já há algum tempo não me banho com tanto prazer em água fria e nunca
consideraria estar mais bem limpa, minha Escafa.
ESC. Todas as coisas têm seu resultado, assim como foi grande a arrecadação4 este ano.
FILE. O que essa arrecadação tem a ver com o meu banho? <160>
ESC. Nada além do que seu banho [tem a ver] com a arrecadação.
FILO. Ó Vênus venerável! Aquela ali é minha tempestade, que me arranca todo o juízo, com o
qual eu estava coberto. Então, Amor e Cupido caíram como chuva contra meu peito e eu já não
posso mais cobri-lo. As paredes em meu coração já estão encharcadas. Esta casa pereceu
completamente!5 <165>
FILE. Veja,6 por favor, minha Escafa, se essa roupa7 me cai bem o suficiente. Eu quero agradar
Filólaques, meu olhinho, meu protetor.8
ESC. Por que você se enfeita com modos encantadores quando você mesma é encantadora? Os
apaixonados não amam a roupa [da mulher], mas o que recheia as roupas.9
4 Velut horno messis magna messis fuit (v. 159-160): segundo Collart (p. 52), a comparação estabelecida por Escafa
é “sem dúvida proverbial” (“sans doute proverbiale”). O termo messis designa mais propriamente uma colheita
(anual), mencionada para indicar passagem do tempo (cf. OLD, sentido 1). Embora “arrecadação” não corresponda
ao sentido literal do termo latino, preferimos aludir aqui à ideia de um grande ganho financeiro – a que o possível
tom proverbial da fala de Escafa pode fazer referência –, que, certamente, está subentendida ao longo desse diálogo
entre as duas mulheres. Pereira (p. 39-40) afirma que, dada a reação de Filemácia, o ditado proferido por Escafa
deve ser desconhecido dos mais novos. 5 Aqui Filólaques retoma a imagem construída em seu monólogo na cena anterior (v. 85-156), em que, usando
uma metáfora que faz o homem equivaler a uma casa, lamenta a ruína de suas estruturas devido a sua paixão por
Filemácia. Em seu aparte ao diálogo entre a meretriz e Escafa, Filólaques compara Filemácia a uma tempestade
que “destelha” essa casa de forma definitiva. Na sequência, como vemos, o jovem atribui a destruição de seu peito,
que não pode mais ser coberto, à ação do amor e de Cupido. Por fim, a polissemia do verbo madeo, que pode
significar tanto “estar molhado” (sentido 1 do OLD) como “estar embriagado” (sentido 3 do OLD), mantém a ideia
de uma casa, que tendo sido encharcada pela chuva, está completamente perdida. 6 Contempla (v. 166): este é o primeiro registro dos diferentes termos relacionados à visão que se repetem
insistentemente ao longo desta cena. 7 Haec uestis (v. 166): o pedido de Filemácia chama atenção para um elemento cênico: seus trajes. Essa atitude
vai se repetir ainda outras vezes durante a conversa entre meretriz e escrava. 8 Meo ocello, meo patrono (v. 167): os termos ocellus e patronus pertencem a campos semânticos bastante
distintos. O primeiro é empregado na linguagem amorosa, assim como ocorre usualmente com outros diminutivos
(cf. Cas. 134-7). Já patronus pertence ao campo semântico do direito: o termo indica o responsável pela proteção
de uma outra pessoa ou aquele que fora dono de um, agora, ex-escravo. Filemácia faz referência ao fato de que
Filólaques obteve sua posse, tendo-a comprado com dinheiro emprestado do usurário Misargírides. O modo como
a meretriz aproxima termos dissonantes em sua fala parece-nos um aceno à célebre lábia das meretrizes da palliata.
Sobre este tema, cf. ROCHA, 2015, p. 80-4. 9 Non uestem amatores amant [mulieris], sed uestis fartim (v. 169): Collart (p. 54) chama atenção novamente para
a presença de um tom proverbial na fala de Escafa. O termo fartim, acusativo de *fars, fartis, cujo sentido parece
ser algo como “recheio”, é registrado, segundo Sonnenschein (p. 84), apenas no ablativo (em um fragmento de
Plauto preservado por Festo (p. 333) e, se aceitarmos a lição de Skutsch, no acusativo no verso 8 de Miles
Gloriosus). Como advérbio, o termo ainda é encontrado num fragmento de Lucílio (78 M.).
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FILO. Que os deuses me guardem! Escafa é encantadora. A pilantra é muito sabida! <170>
Como conhece bem todos os costumes e pensamentos dos apaixonados!
FILE. E aí?
ESC. O que foi?
FILE. Vai, olhe para mim e veja como essa roupa me cai.
ESC. Em virtude da sua beleza, acontece de lhe cair bem o que quer que vista.
FILO. Muito bem! Por causa dessa sua fala, Escafa, hoje vou lhe dar algo... Que eu não deixe
você a ter elogiado – o que me agrada – de graça. <175>
FILE. Eu não quero que você puxe meu saco.
ESC. De fato, você é uma mulher muito tonta. O quê?! Você prefere ser afrontada com mentiras
a ser exaltada com verdades? <177.178> De fato, por Pólux, eu prefiro muito mais ser elogiada
ainda que com mentiras a ser culpada com verdades ou a que outros riam da minha aparência.
<180>
<FILE.> Eu amo a verdade. Quero que a verdade me seja dita: odeio a mentira.
ESC. Como, “você me ama”, “Filólaques lhe ama”, do mesmo modo digo, você é admirável.
FILO. O que você está dizendo, pilantra? Pelo que você jurou? “Que eu a amo”? Por que não
se adicionou “que ela me ama”?10 Eu faço desfeita aquela oferta. Você está perdida! A oferta
que eu lhe tinha prometido, você perdeu! <185>
ESC. De fato, por Pólux, me admira que você tão esperta, tão ilustrada e tão bem ilustrada,11
agora se faça de tonta tontamente.
FILE. Vamos, aconselhe-me, por favor, se estou errando em algo.
ESC. Você, por Castor, está errando ao, de fato, ficar esperando apenas ele e assim só fazer o
que ele quer12 e, com isso, repelir os outros homens. Ficar presa a um único amor é coisa de
matrona, não de meretriz. <190>
10 Quo modo adiurasti? ita ego istam amarem? (v. 183): a intervenção de Filólaques ajuda a esclarecer o sentido
da condensada fala anterior de Escafa. As frases reportadas por Escafa seriam juramentos. Ao menos é o que
parece entender Filólaques, ao empregar o verbo adiuro (v. 183) em sua reclamação. 11 Tam catam, tam ⁺doctam⁺ te et bene doctam (v. 186): o texto final deste verso tem alguns problemas textuais.
catam é uma correção proposta por Pio para o termo captam registrado nos manuscritos B, C e D. Pelo fato de que
o termo doctam se repetiria na sequência, os editores adotam outras soluções: Redslob e Leo sugerem docilem ...
doctam; Camerarius, doctam ... eductam; Schoell, tam cordatam et bene doctam. Adotamos a lição de Ernout,
concordando com a observação de Collart (p. 57): a repetição de um mesmo termo num mesmo verso é
característica da fala de Escafa: lepidis... lepida, v. 168; speculo speculum, v. 251; commoda... commodum, v. 255.
Além disso, doctam ... doctam parece ressoar na repetição que vem a seguir: stultam stulte. 12 Illi morem ... geras (v. 188-189): segundo o OLD (sentido 8d de gero), a expressão morem alicui gerere significa
“regular a conduta de acordo com o desejo de outra pessoa, satisfazê-la ou obrigá-la” (“to regulate one’s conduct
in accordance with the wishes of another, gratify or oblige him”). Pereira (p. 42) afirma que há na passagem
“conotações imbuídas de alguma tonalidade sexual e imoral”. Embora afirme que a expressão passa a ter mais
tardiamente (com exemplos em Suetônio e Apuleio) um sentido sexual, relacionado ao comportamento feminino,
Adams (1990, p. 164) indica que esse aspecto é derivado do sentido primário, da época de Plauto, da expressão,
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FILO. Por Júpiter! Que tipo de mal é esse que está se apossando da minha casa? Que todos os
deuses e deusas me arruínem com os piores castigos se eu não matar essa escrava de fome, de
sede e de frio!
FILE. Eu não quero que você me aconselhe mal, Escafa.
ESC. Você é absolutamente tonta se pensa que ele lhe será eternamente benevolente e
apaixonado. <195> Eu estou avisando: ele vai lhe deixar quando você envelhecer e ele se
encher.13
FIL. Espero que não.
ESC. As coisas inesperadas acontecem mais vezes do que as que se espera. No fim, se você não
pode se convencer pelo que foi dito a ponto de acreditar que é verdade o que eu disse, saiba da
situação a partir dos fatos. Você está vendo quem eu sou. E quem eu era antes! Não fui menos
amada do que você agora. E eu, então, fiz só o que queria um único homem <200> que, por
Pólux, quando envelheci e este cabelo mudou de cor, me abandonou e me deixou. Acredito que
você terá o mesmo futuro.
FILO. Mal me contenho para não dar nos olhos dessa instigadora.14
FILE. Ele, só eu, só para si, com seu próprio tesouro libertou. Só a ele julgo conveniente
[apenas] eu ser obediente.15 <205>
FILO. Pelos deuses imortais, que mulher encantadora e de mentalidade recatada! Por Hércules,
fiz bem e eu me alegro de não estar sem um tostão por causa dela.
ESC. Por Castor, você é realmente ignorante!
significando “a relação matrimonial ideal de uma esposa para com o marido” (“the ideal married relationship of
wife to husband”). Preston (1916, p. 33) inclui esta passagem de A comédia dos fantasmas entre os exemplos do
emprego da expressão mori gerere (e outras construções semelhantes) que, embora derive de expressão grega com
cunho erótico, foi usada em latim de forma menos explícita, referindo-se geralmente a uma obediência física
(“physical compliance”). 13 Como nota Collart (p. 58), o texto latino referente a essa passagem concentra ideias antitéticas: aetate (v. 196)
contrapõe-se a aeternum (v. 195), e beneuolentem (v. 195), a satietate (v. 196). Além disso, como buscamos
reproduzir em nossa tradução, satietate contém, de alguma forma, o termo aetate. 14 Stimulatrici (v. 203): o termo stimulatrix é provavelmente criação de Plauto. Lilja (1965, p. 13) o inclui, junto a
circumspectatrix (Aul. 41) e persuastrix (Bacch. 1167) entre exemplos de insultos femininos. O sentido literal do
termo é “aquele que insta ou incita”. Nas edições que consultamos, os tradutores adotaram as seguintes soluções:
Nixon (p. 307) prefere “the fiend”, Pereira (p. 43), “daquela mulher”, e Ernout (p. 27), “cette enjôleuse”. O termo
é registrado novamente no verso 219 de Mostellaria. 15 Quanto aos versos 204 e 205, Ernout adota em sua edição a ordem sugerida por Ritschl. Outros editores, como
Sonnenschein (p. 9) e Collart (p. 59), seguindo os manuscritos B, C e D, apresentam os versos em ordem contrária
ao que indicamos aqui, ou seja, a lição de tais editores é a seguinte: Illi me soli censeo esse oportere opsequentem
:/ Solam ille me soli sibi suo sumptu liberauit. Segundo Collart, o copista dos manuscritos palatinos “parece ter
sido particularmente distraído aqui” (“paraît avoir eté ici particulièrment distrait”). Na justificativa do editor
francês, a presença de solam, que Ernout sugere cortar, antes de illi me seria uma grafia por antecipação diante de
um grupo de palavras semelhantes em dois versos sucessivos. Além disso, o termo meo, incluído nos manuscritos
B, C e D, parece ser influência de suo. O copista ainda teria saltado o termo sumptu (4º termo iniciado por -s nessa
sequência), incluído por Bentley.
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FIL. Por quê?
ESC. Porque se esforça para que ele lhe ame.
FILE. Por que, me diga, não me esforçaria?
ESC. Você está livre. Já tem o que você desejava. Ele, se não continuar amando você mais
tarde, <210> terá perdido o tanto de dinheiro que deu pela sua liberdade.16
FILO. Por Hércules, estou perdido se eu não matar essa aí com os piores castigos. Essa
cafetina17 pervertedora corrompe a mulher!
FILE. Eu nunca serei capaz de agradecê-lo como é devido. Escafa, não venha me convencer a
ter menor consideração por ele. <215>
ESC. Mas peço que você pense apenas nisto: se você vai ficar presa apenas a ele agora enquanto
é jovenzinha, na velhice, você se arrependerá.
FILO. Agora eu queria me transformar em uma angina para tomar conta do pescoço dessa bruxa
e matar essa instigadora pilantra.
FILE. Convém que agora, que consegui o que me agrada, eu tenha a mesma afeição <220> de
quando outrora, antes de eu arrancar isso dele, o cobria com palavras doces.
FILO. Que os deuses façam de mim o que querem, se eu, por causa dessa fala, não tornar você
livre novamente e não matar Escafa.
ESC. Se você admitiu que terá sustento perpétuo e que esse amor será só seu a vida toda <225>,
acredito que você deva fazer o que ele quer e usar o cabelo preso.18
FILE. O homem costuma obter dinheiro na mesma proporção da fama que tem. Eu mesma, se
conservar uma boa fama para mim, serei rica o suficiente.
FILO. Supondo que, por Hércules, fosse preciso vender meu pai, ele seria colocado à venda
muito antes de eu, em vida, permitir que você passe necessidade ou mendigue. <230>
ESC. O que acontecerá com os outros que lhe amam?
16 Pro tuo capite (v. 211): o termo caput tem, entre outras acepções, o sentido de “pessoa livre (em oposição à
escravizada)” (cf. sentido 6b do OLD). Escafa faz referência aqui ao fato de Filólaques ter adquirido a posse de
Filemácia. 17 malesuada ⁺uitilena⁺ (v. 213): a lição do fim deste verso é discutida entre os editores. Segundo Collart (p. 60), a
correção uiti plena seria bastante provável não fosse o fato de impor uma escansão incomum ao 2º hemistíquio do
verso. Quanto à ⁺uitilena⁺, forma registrada no manuscrito B (Palatino Vaticano), sugerem-se outras opções:
Vttilena, no manuscrito C, Vtilena no D1 e, por fim, Ussing registra a forma cantilena. Os tradutores que
consultamos optam pela seguinte tradução para o termo ⁺uitilena⁺: “maquerelle” (Ernout, p. 28) e “bawdyslut”
(Nixon, p. 309). Nossa tradução vai nesse mesmo sentido. 18 Capiundas crines (v. 226): crinis significa literalmente “trança”. Segundo os editores, a referência aqui é ao
penteado de uma matrona, que trazia os cabelos trançados (cf. Collart, p. 62; Sonnenschein, p. 89). O termo
também é registrado nos versos 791-2 da peça Miles gloriosus, num momento em que uma meretriz vai ser
disfarçada de matrona.
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FILE. Amarão mais quando me virem agradecendo por isso ao meu agrado.19
FILO. Tomara me fosse anunciado que meu pai agora está morto para que eu renunciasse a
meus bens e fizesse dela minha herdeira.
ESC. Essas posses certamente serão consumidas. Bebe-se e come-se dia e noite; <235>
ninguém tem parcimônia: é claramente uma dieta de engorda.
FILO. Por Hércules, é certo que eu experimente ser econômico com você primeiro: pois nada
comerá nem beberá em minha casa por dez dias.
FILE. Se você deseja falar bem dele, pode falar. Mas se falar mal, por Castor, será açoitada.
<240>
<FILO.> Por Pólux, se eu tivesse sacrificado um boi ao grande Júpiter com o dinheiro que dei
pela liberdade dela, nunca o teria empregado tão bem. Vê-se como ela me ama do fundo do
coração. Oh! Sou um homem excelente: dei a liberdade a um advogado para que fale em meu
favor.
ESC. Vejo que, em comparação a Filólaques, você não tem consideração nenhuma pelos
homens. <245> Agora, para que eu não seja açoitada por causa dele, vou logo concordar com
você, se você admitiu que ele será seu amor perpétuo.
FILE. Escafa, me dê o espelho e a caixinha com os enfeites imediatamente, para eu me enfeitar
para quando Filólaques, minha delícia, chegar.
ESC. A mulher que desdenha de si mesma e da sua idade é que precisa de um espelho. <250>
De que serve um espelho a você, que é o melhor espelho para um espelho?
FILO. Por causa dessa fala, que não à toa você disse tão encantadoramente, Escafa, vou lhe dar
hoje algo de valor... a ti, minha Filemácia.
FILE. Tudo está em ordem. Veja: meu cabelo está perfeito o bastante?
ESC. Quando você está perfeita, acredito que seu cabelo está perfeito. <255>
FILO. Ah, tá! É possível mencionar algo pior do que esta mulher? Agora a pilantra é uma puxa-
saco. Antes era uma puxa-tapete!
FILE. Passe-me o pó.20
ESC. Mas para que serve o pó?
FILE. Para cobrir as maçãs do rosto.
ESC. Do mesmo jeito, minha dona, se podia esperar branquear o marfim com tinta preta.
19 Gratiam refer<re rem fe>renti (v. 232): Ernout adota a correção de Gruter, a qual, como lembra Collart (p. 62-
3), incorpora um jogo de palavras e uma figura etimológica. 20 Cerussam (v. 258): cerussa refere-se ao alvaiade, um pigmento branco, derivado do chumbo, usado como
maquiagem.
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FILO. Isso de tinta preta e marfim é uma fala encantadora. Muito bem, palmas para Escafa!
<260>
FILE. Então você me passa o blush.21
ESC. Não dou. Você com certeza é linda. Quer remendar uma belíssima obra com uma nova
pintura? A essa idade não convém tocar pigmento algum nem pó, nem mesmo um importado,22
nem qualquer outra tintura.
FILE: Então pegue o espelho.
FILO. Ai, pobre de mim! Ela deu um beijo no espelho. <265> Eu queria muito uma pedra para
despedaçar a cabeça daquele espelho.
ESC. Tome um pano e enxugue suas mãos.
FILE. Por que isso, por favor?
ESC. Porque você segurou o espelho, fico com medo de que suas mãos cheirem a dinheiro e
que Filólaques suspeite que você tenha recebido dinheiro em alguma circunstância.
FILO. Não me parece que já vi vez alguma cafetina mais calejada. <270> Como essa do espelho
veio à mente da perversa de maneira encantadora e astuta!
FILE. Você acha que também devo me perfumar com perfumes?
ESC. Não faça isso.
FILE. Por quê?
ESC. Porque, por Castor, a mulher cheira bem quando não cheira a nada. Pois estas velhas, que
ficam se banhando em perfumes, velhas remoçadas, desdentadas, que encobrem as
imperfeições do corpo com maquiagem, <275> quando o suor se junta aos perfumes, cheiram
à mesma coisa, assim como quando um cozinheiro mistura muitos molhos em um só. Não se
sabe a que cheiram; só se sabe uma coisa: que cheiram mal.
FILO. Como em toda coisa é sabiamente habilidosa! Nada é mais sábio do que essa sábia.
Aquilo é verdade. Compreende isso mesmo uma grande parcela de vocês, <280> para quem
estão em casa as velhas esposas, que lhes ganharam com um dote.
FILE. Ande, Escafa, veja se o ouro e a veste me caem bem.
ESC. Não cabe a mim cuidar disso.
FILE. A quem então, por favor?
21 Purpurissimum (v. 261): segundo o OLD, trata-se de um pó tingido com púrpura, usado como pigmento ou
cosmético. 22 Melinum (v. 264): literalmente faz-se referência aqui a um pó acinzentado, encontrado em Melos, usado como
pigmento.
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ESC. Vou dizer: a Filólaques. Que ele não compre algo, a não ser aquilo que julgue lhe agradar.
<248.285> Pois o apaixonado compra para si os costumes da meretriz com ouro e púrpura. De
que serve exibir a ele gratuitamente o que ele não deseja que seja dele? Para esconder a idade,
é preciso púrpura, para a mulher indecorosa, ouro. Nua, a mulher bonita ficará mais bonita do
que em roupa púrpura. [Além do mais, de nada adianta ser bem enfeitada, se é mal comportada.
<290> Os comportamentos indecorosos mancham um belo enfeite pior do que a lama.] Pois se
você é bela, está enfeitada o bastante.
FILO. Já aguentei a mão demais. O que vocês estão fazendo aqui?
FILE. Eu estou me enfeitando para lhe agradar.
FILO. Você já está bem enfeitada. Vá para dentro e leve com vocês esses enfeites. Mas, minha
paixão, minha Filemácia, eu adoraria beber com você. <295>
FILE. E eu, por Pólux, com você. O que lhe agrada, agrada igualmente a mim, minha paixão.
<FILO.> Ah! Por vinte minas essa palavra sairia barato.
FILE. Dê-me, por favor, dez: eu quero dar essa palavra para você a um bom preço.
FILO. Ainda agora dez minas estavam com você. Calcule bem: eu dei trinta minas pela sua
liberdade.
FILE. Por que você me reprova? <300>
FILO. Eu reprovar você? Eu, que desejo ser eu mesmo reprovado por isso, e que já há muito
tempo não gastava dinheiro tão bem?
FILE. Com certeza, eu nunca pude empregar melhor meu afeto ao amar você.
FILO. Então, estamos quites na conta entre o que saiu e o que entrou.23 Você me ama, eu amo
você. Ambos julgam que isso acontece como deve ser. <305> Aqueles que se alegram com isso,
que se alegrem sempre com seu próprio bem contínuo. Os que invejam, que nunca alguém
inveje as benesses deles.
FILE. Vamos, tome seu lugar então. Escravo, traga água para as mãos! Apronte aqui uma
mesinha! Veja onde estão os dados. Você quer perfumes?
<FILO.> Para quê? Eu me sento com a própria mirra. Mas é meu parceiro que vem andando
para cá com a amante dele? <310> É ele: Calidamates vem andando com a amante. Eba, minha
menina dos olhos! Eis os companheiros soldados se reunindo, buscam tomar parte do butim.
23 Ratio accepti atque expensi inter nos conuenit (v. 304): esta é uma expressão de termos financeiros, cuja tradução
literal seria algo como “a razão entre a receita e a despesa entre nós se ajusta bem”. Collart (p. 74) lembra que,
mutatis mutandis, há semelhança na imagem usada para ilustrar a relação entre Fédromo e Planésia, de Curculio,
em que se empregam termos do campo semântico jurídico.
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REFERÊNCIAS
Edições e traduções de textos antigos
PLAUTE. Comédies. Mostellaria – Persa – Poenulus. Texto estabelecido e traduzido por Alfred
Ernout. Tomo V. 4ª edição. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
PLAUTI, T. MACCI. Mostellaria. Edição e notas de Edward A. Sonnenschein. 2ª edição.
Oxford: Clarendon Press, 1907.
PLAUTO. A comédia do fantasma (‘Mostellaria’). Tradução, introdução e comentário de Reina
Marisol Troca Pereira. Coimbra; São Paulo: Imprensa da Universidade de Coimbra;
Annablume Editora, 2014.
PLAUTUS. The merchant – The braggart warrior – The haunted house – The persian. Tomo
III. Com tradução para o inglês de Paul Nixon. Cambridge, Harvard University Press; Londres,
William Heinemann, 1980.
PLAUTUS, T. M. Mostellaria. Edição, introdução e comentário de Jean Collart. Paris: Presses
Universitaires de France, 1970.
Bibliografia secundária
ADAMS, J. N. The Latin Sexual Vocabulary. Baltimore: The Johns Hopkins University Press,
1990.
KEMPER, Sjef. Docendi Facultas: la Retorica dello Spettro nella Mostellaria di Plauto. In:
RAFFAELLI, Renato; TONTINI, Alba (orgs.). Lecturae Plautinae Sarsinates XIII.
Mostellaria. Sarsina, 29 settembre 2009. Urbino: QuattroVenti, 2010, p. 31-57.
LILJA, S. Terms of Abuse in Roman Comedy. Annales Academiae Scientiarum Fennicae. Série
B, tomo 141, 3. Helsinki: Finnish Academy, 1965.
PRESTON, Keith. Studies in the Diction of the Sermo Amatorius in Roman Comedy.
Dissertation, Faculty of Graduate School of Arts and Literature, University of Chicago, 1916.
ROCHA, Carol M. da. De Linguado a Lingua(ru)da: Gênero e Discurso das mulieres plautinae.
2015. 251 p. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.