PISCATOR E O CONCEITO DE “TEATRO ÉPICO” EUGÉNIA VASQUES
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PISCATOR E O CONCEITO DE “TEATRO ÉPICO”
EUGÉNIA VASQUES
[2]
Título Piscator e o Conceito de “Teatro Épico”
Autor Eugénia Vasques
Editor Escola Superior de Teatro e Cinema
2ª edição 50 exemplares
Amadora Janeiro 2007
[3]
“Eu ostento os meus fracassos ao peito como outros usam as medalhas”.
Piscator
Intróito
O século XX ficará na história do teatro como o
quadro temporal por excelência das grandes revolu-
ções técnicas e estéticas no palco teatral do Ociden-
te. Com efeito, é neste século que o palco se trans-
forma “no meio, por excelência, para a discussão
intelectual, para a análise psicológica, para o conflito
social e para a experimentação nas artes teatrais e
dramáticas – muito mais, diga-se, do que em outros
períodos [históricos] durante os quais o teatro
“legitimado” não encontrou qualquer competição nou-
tros domínios do divertimento.” (Gassner, p. 6; tradu-
ção minha).
O actor alemão (e sobretudo encenador) Erwin
Piscator (1893-1966), um dos grande renovadores da
estética teatral na Alemanha, começou a desenvolver
uma actividade sistemática no teatro imediatamente
depois da Guerra Mundial I. Ainda que não tenha pro-
duzido uma dramaturgia própria, um reportório, pro-
moveu e desenvolveu processos de escrita nova –
nos já então celebrados ateliers de dramaturgia (com
base histórica em Lessing) – para um teatro novo;
ainda que não tivesse vocação para a escrita teórica,
o que não ajudou a documentar e fixar como suas
[4]
muitas das experiências e inovações que levou a
cabo, deixou, todavia, duas obras incontornáveis para
o estudo da estética teatral na Alemanha. A primeira
dessas obras é Das Politische Theater/Teatro Políti-
co1, publicada em 1929, ano em que a militância polí-
tica de Piscator se torna tão radical quanto a ascen-
são do hitlerismo na República de Weimar, e a
segunda é Schriften que veio a lume, postumamente,
em 1968.
Mas se o seu trabalho foi predominantemente o
de um experimentador, de um prático, Piscator tinha,
no entanto, um tal saber da realidade e um tal desejo
de a modificar que perseguiu, coerentemente, ao lon-
go de toda a sua vida, um projecto multifacetado de
“teatro político” (teatro de actualidade/teatro-
documento ou Zeitheater, teatro épico, teatro de luz2
1 - Cf. Bibliografia. 2 - Procurando um chão transparente pela iluminação. 3 - Estes dois últimos caracterizam o caminho que sofreu a uto-pia piscatoriana sobretudo nos últimos anos, já de regresso à República Federal da Alemanha, um caminho difícil marcado pela errância (1951-1962), com a realização de um pequeno número de encenações, e por um último período (1962-1966) durante o qual foi director do Freie Volksbühne. Entre 1936 e 1938, no exílio em Paris, a pesquisa de Piscator não conheceu desenvolvimentos práticos. Em Nova York, no tempo do Drama-tic Workshop (1939-1951), Piscator desenvolveu considerável trabalho que passou por três fases: a fase do Dramatic Work-shop, a do Studio Theatre, e a última, e mais penosa, durante a qual ainda conseguiu criar dois teatros, o President Theater e o Roof Theater (de 1000 lugares no então bairro operário de Manhattan). O “teatro cultual” terá sido o último desejo de Pisca-
[5]
tor referindo-se concretamente ao tema do Cristo. Teatro de cul-to para substituir o teatro social ou um teatro comunitário à semelhança do Living Theater e de Grotowski? Cf. especialmen-te Dossier Piscator, pp. 27-49, e John Willet. 4 - Influenciando criadores-dramaturgos como Lania, Bruckner, Weisenborn, Friedrich Wolf, Wangenheim. Piscator foi realmente o criador do “teatro documento” de que serão continuadores os dramaturgos alemães Peter Weiss, Hochhuth e Heinar Kip-phardt.
viria a revelar um dos caminhos (em aberto) de maior
posteridade na redefinição do teatro ocidental de
entre as duas Guerras4. Desse projecto de “teatro
político”, constituído por experimentações, contradi-
ções e fracassos, nasceria o novo teatro alemão e
nele teriam origem, igualmente, muitos dos funda-
mentos do teatro do seu contemporâneo Bertold
Brecht (1898-1956).
Antes e depois da Guerra Mundial I e antes de
se filiar no partido Comunista, o que fez em 1919,
Piscator teve episódicas participações no movimento
Dada do Café Voltaire (em 1918), bem assim como
alguma participação no movimento Expressionista
(1920). Nestas e em outras experiências teatrais
anteriores à sua politização, Piscator tomou consciên-
cia da necessidade de um saber técnico, de uma pro-
fissionalização, da relação viva com as audiências e
aprendeu, especificamente, como usar a música, a
fala, a cor e o movimento e até o que se poderia
designar por “o espírito de comunhão”. No seu con-
tacto com o cabaret popular, aprendeu a técnica da
[6]
montagem, o poder da imagem visual e a importância
do uso, no teatro, de “quadros” e de canções.
Do que fica anunciado, entende-se que Piscator
foi, sobretudo, um encenador e um dinamizador que,
acreditando na transformação da sociedade, necessi-
tava de um espaço seu onde procurar um teatro (uma
dramaturgia e uma representação objectivas) para
essa nova sociedade. Compreende-se, assim, que
tenha assinado a criação de, pelo menos, sete Com-
panhias ao longo da sua vida5. Só nos 20, fundou e
dirigiu o Teatro Proletário (1920), o Teatro Central
(1923), foi director do Volksbühne (1924-1927) e
criou, entre 1927 e 1929, duas Companhias de curta
existência– a Piscatorbühne nº 1 e a Piscatorbühne
nº2.
Ainda que tivessem o apoio dos trabalhadores,
estas suas primeiras Companhias fracassaram por
problemas financeiros, permitindo-lhe, todavia,
desenvolver activamente uma ideia de teatro
(fundado na simplicidade e na evidência) como plata-
forma política – a que, por volta de 1927, chamava
Zeittheater (ou Teatro-Actualidade, um teatro seme-
lhante ao Cinema ou ao Jornalismo relativamente ao
qual considerava o teatro muito atrasado) – e permi-
tindo-lhe aprofundar algumas das características téc-
5 - Cf. Cronologia.
[7]
nicas e formais que há muito vinha delineando,
sobretudo em acções militantes, com os seus cama-
radas comunistas, em manifestações de rua e outras
intervenções teatrais de agitação e propaganda.
Um dos espectáculos que é, até, considerado o
primeiro exemplar de “teatro épico” é Fahnen
[Bandeiras], de 1924 – no Volksbühne --, onde Pisca-
tor utiliza, inovadoramente, plataformas, montagens,
quadros laterais, projecções de fotografias, legendas
comentando essas projecções, etc.. Um outro espec-
táculo “pré-épico”, do mesmo ano, é Revue Roter
Rummel [Revista de Feira Vermelha] ou RRR, um
espectáculo de agitação e propaganda criado para a
campanha eleitoral do Partido Comunista, cujo guião
– que aplica aquele tipo de nova escrita a que cha-
mará, uns anos depois, Zeitstück -- consistia, o que
nunca tinha sido feito, na montagem de actas do
Reichstag, de relatórios e documentos informativos
similares e na declamação, pelo próprio Piscator, de
um inflamado artigo de Liebknecht intitulado “Apesar
de Tudo”.
Piscator, que recolheu, igualmente, ensinamen-
tos do teatro do seu tempo (reconhecendo ao Natura-
lismo ter estabelecido o teatro como “tribuna política”
e ao Expressionismo, pelo menos, o facto de ter tido
um papel de resistência no quadro da Guerra Mundial
I) e, particularmente, de outros encenadores alemães
[8]
de referência seus contemporâneos como Reinhardt6,
Jessner (cujo estilo para um teatro como “evento rít-
mico” ficou marcado pelo uso de escadas, as Jess-
nertreppen, e elevadores) ou Karl Heinz Martin7, con-
cebeu, desde cedo, uma ideia de teatro político que
visava banir da cena qualquer traço de
“expressionismo” individualista, irracionalista, burguês
e “reaccionário”, e lutar por um teatro que tivesse
uma imediata e directa influência na transformação
da vida, e que fomentasse a informação e a tomada
de consciência dos “porquês” e dos “comos” da reali-
dade de todos os dias.
Por tudo isto, como bem explica em Teatro Polí-
tico, a palavra “arte” foi apagada dos seus progra-
mas. Os seus espectáculos tornaram-se “Manifestos”
com o objectivo de “fazer política” e não
“divertimento” para a “classe burguesa” que ele tinha,
aliás, de ajudar a combater!
Apesar deste programa de acção revolucionária,
Piscator era sobretudo um idealista, como a persis-
6 - Importante encenador que tenta também encurtar a distância que separava o espectador da cena. Chega a realizar um teatro em arena, no Grosses Schausspielhaus, um edifício de circo. Jessner e Martin, dois importantes inovadores berlinenses, eram considerados “burgueses” por Piscator. 7 - Está provado que, nestes anos 20, também os experimentos revolucionários dos artistas soviéticos chegavam com frequên-cia da União Soviética. Cf. a este propósito o meu livro O Que É Teatro, Lisboa, Quimera, 2003.
[9]
tente história de utopias e fracassos comprovará ao
longo sua vida. Os insucessos e as dívidas não lhe
retiravam, contudo, a capacidade de sonhar. É desta
época a utopia de um espaço e arquitectura de
“teatro total”, um teatro sintético, funcionalista, que
desenvolve com Walter Gropius e a Bauhaus. Esse
“teatro total”, projecto que não viria nunca a realizar-
se já que Hitler e os Nazis sobem ao poder no
momento em que já está idealizado, tinha como
objectivo “agitar” os espectadores e aproximá-los dos
actores, e começou a ser delineado por volta de
1926. Era um teatro-globo, flexível, que permitia a
mudança do espaço de representação durante o
espectáculo utilizando séries de projectores e lâmpa-
das de cinema, transformando as paredes e os tectos
em cenas mutáveis; tinha uma estrutura móvel (que
podia estar frente aos espectadores, no meio dos
espectadores, etc.), em hemisfério (o globo), que,
pela abertura e fecho dos seus segmentos, na verti-
cal e horizontal, visava apresentar cenas simultâneas
e ainda possibilitar projecções nas suas fazes conve-
xas; a sala inteira, enfim, possuía três dimensões em
vez da dimensão única do palco “à italiana” tradicio-
nal, transformando-se em “teatro de arena”, em espa-
ço circular à volta dos espectadores, etc., etc.. Cerca
de um terço da plateia estaria montada sobre plata-
formas móveis de modo a alterar o posicionamento
[10]
dos espectadores durante a representação. Nos doze
pilares em que assentava o tecto estavam ocultados
écrans de projecção de modo a que a cenografia e a
acção pudessem envolver, totalmente, os espectado-
res.
Este “teatro global”, ou Globusbühne, pode ter
influenciado o projecto – também ele nunca realizado
– do teatro que Meyerhold idealizou e iniciou nos
anos anteriores (1931-32) à sua prisão (1939). De
acordo com os testemunhos dos seus discípulos M.
Barkhin e Sergei Vakhtangov (pp. 69-73), dois dos
responsáveis pela execução desse projecto, os prin-
cípios fundamentais do Teatro Nacional Meyerhold
(sito no antigo teatro Sohn) tinham semelhanças com
os de Gropius/Piscator:
1.Palco e plateia não seriam separados; 2. A
acção estaria rodeada pelos espectadores em três
frentes; 3. A acção seria concebida em profundidade
e percepcionada e assimilada pelos espectadores,
axonometricamente, de cima e pelo lado; 4. Não
haveria pano de boca, ribalta ou fosso de orquestra
(para não separar cena-espectadores); 5. A plateia
seria iluminada por fontes naturais; 6. Os camarins
estariam ligados directamente às zonas de acção.
Forma e Texto para um Teatro Político
Como já referi atrás, Piscator foi muito influen-
[11]
ciado pelas formas populares de espectáculo. Fosse
a música e a dança, fosse o musical e as variedades,
o que mais interessava a Piscator era o profissionalis-
mo e eficácia destas formas e géneros, a sua directa
ligação com o público e a sua espantosa capacidade
de sobreviver sem recurso a qualquer forma de sub-
sídio.
Até o cabaret, um género mais literário de entre-
tenimento, era uma importante referência para a pro-
cura de um teatro político em virtude, principalmente,
do uso de canções e da sua estruturação em quadros
curtos. Depois de alguns testes práticos com o
emprego cénico de desenhos animados, de slogans,
da introdução da Internacional, e sobretudo depois da
revista Revue Roter Rummel (1929), que realizou em
colaboração com Felix Gasbarra, mais tarde seu
“dramaturg”, Piscator criou uma forma teatral mais
aperfeiçoada, com base na estrutura da “revista”.
Esta forma teatral conduzia a uma das características
fundamentais do teatro alemão moderno a que já se
pode chamar “teatro documento” ainda que Piscator a
designasse por “teatro didáctico”: uma estruturação
episódica, em quadros ligados por canções, e apre-
sentada por um “Compère” ou “Comère”, represen-
tando a Burguesia e o Proletariado, e centrada na
explicitação de acontecimentos da história social
recente.
[12]
Neste sentido, e como será comprovado pelo
desenvolvimento posterior dos experimentos de Pis-
cator, o papel do dramaturgo-autor torna-se cada vez
mais irrelevante e secundário. Para Piscator, o autor
literário era uma “figura autocrática” cujas ideias de
originalidade e criatividade se tornavam incompatí-
veis com a psicologia das massas e persistiam em
veicular formas e conteúdos “antigos” e
“reaccionários”!
Este modo de pensar e a inexistência de textos
concebidos de acordo com as exigências do seu tea-
tro novo levaram Piscator a desenvolver um outro
conceito de escrita teatral, fundada na intervenção do
“dramaturg” (já existente) e na adaptação-
apropriação dos autores e textos clássicos alemães e
universais (que estavam à disposição).
Piscator queixava-se do desfasamento entre o
teatro político que se desenvolvia no palco prático do
tempo e a dramaturgia sua contemporânea. A revolu-
ção Expressionista no teatro tinha sido quase exclusi-
vamente de ordem estética e Piscator encontrava-se
a travar uma batalha sociológica ao pretender criar
um teatro que reflectisse as preocupações e lutas do
proletariado.
Então, na senda de Jessner, Piscator com-
preende que os clássicos poderiam ser uma via de
expressão dos problemas do seu tempo e um mate-
[13]
rial precioso para a construção da dramaturgia
sociológica que procurava. Respondendo a um
inquérito de jornal sobre o modo de tratar os textos
clássicos, afirma:
O encenador não pode ser apenas “leal à obra” pois a obra não é uma coisa sem vida e definitiva; logo que é colocada no mundo, a obra muda com o tempo, adquire marcas do tempo e assimila uma nova consciência. Por isso, o encenador tem a obrigação de encontrar o ponto nevrálgico do qual deve partir para descobrir os caminhos da peça dramática. Este ponto não pode ser inventado nem escolhido arbitrariamente: só na medida em que o encenador se sente ao serviço e o intérprete do seu próprio tempo é que conseguirá alcançar esse ponto que é comum ás forças decisivas que mol-dam o carácter do tempo. (cit. em Patterson, p. 123; tradução minha)
Em 1926, a sua mais importante adaptação, que
causou escândalo, foi a de Os Salteadores de Schil-
ler. O encenador cortou e mudou o texto original e fez
o actor principal representar o herói com os traços
fisionómicos de Trotsky! Este foi, historicamente, o
trabalho no qual se estabeleceu, na Alemanha, o
padrão para as adaptações livres dos textos esta-
belecidos e canónicos, justificando este atentado
aos direitos de autoria com base na lógica de pro-
letarização e na luta de classes.
[14]
Em 1927, sob a directa responsabilidade do seu
colaborador Felix Gasbarra, Piscator fundou o seu
primeiro “colectivo dramatúrgico” do qual Brecht
seria, aliás, um dos membros activos.
Inovações: a cenografia marxista
As inovações propostas por Piscator tinham
objectivos mais didácticos e dramatúrgicos do que
objectivos meramente tecnológicos e foram sistemati-
camente desenvolvidas ao longo das suas dezanove
primeiras encenações. As mais relevantes destas ino-
vações foram a introdução de um narrador-
comentador, a utilização sistemática de projecções
simples e múltiplas, de filmes e documentários e do
filme de banda desenhada, a instalação de cenas
simultâneas e de cenas que decorrem ao longo do
tempo, a experimentação pioneira de um teatro de luz
e a introdução muito experimental dos tapetes rolan-
tes, elevadores e dispositivos cenográficos (como
Meyerhold) que eram a própria cenografia.
No espectáculo Russlands Tag [O Dia da Rús-
sia] (1920), uma das suas primeiras encenações no
Teatro Proletário, o cenário era constituído, simples-
mente, por um mapa da Europa que servia, simulta-
neamente, de fundo (portátil) e de sinal de um novo
conceito de cenografia teatral. Este conceito de ceno-
grafia não coincidia já com um entendimento da
[15]
cenografia como “ilustração”, “decoração”, mas envol-
via um determinado entendimento da acção, desem-
penhando um papel activo e constituindo um elemen-
to da própria estrutura dramática.
Já em Bandeiras (1924), Piscator usou projec-
ções de textos e fotografias. Contudo, o uso de filme
na cena teatral alemã não foi uma descoberta de Pis-
cator8. Em 1911, numa revista intitulada Rund und
den Alster [Em Volta de Alster], foram utilizadas pro-
jecções de filmes e, por volta de 1920, na encenação
de Der Unsterbliche [O Imortal], Ivan Goll recorreu a
inserts cinematográficos.
Em 1925, Piscator encenou a já mencionada
revista RRR que foi apresentada numa conferência
do Partido Comunista. Neste espectáculo, Piscator
recorreu, ainda que de modo mais sofisticado, a
cenas de movimentação de massas segundo técni-
cas semelhantes às de Meyerhold no espectáculo de
rua Ataque ao Palácio de Inverno de 1920. Aqui a
grande diferença é que se tratava de um teatro fecha-
do com exigência técnicas e estéticas diferentes. Pis-
cator reuniu, também, documentação variada (as já
referidas actas do Reichstag, relatórios, jornais) e
acrescentou-lhe noticiários de cinema e fotos, mon-
8 - Lembremos, na mesma época, as experiências de Meye-rhold, Eisenstein, etc.
[16]
tando, pela primeira vez, um tipo de material drama-
túrgico dialéctico e factual.
Para a peça Hoppla, wir Leben! [Alto lá! Nós
Estamos Vivos!] de Ernst Toller, em 1925, as princi-
pais inovações radicavam no uso intenso da maqui-
naria de cena, de filmes e no recurso a complexas
construções cenográficas que substituíam o cenário.
O modo de representar que solicita então aos actores
é “neo-realista”, isto é, sóbrio, objectivo, de acordo
com o construtivismo da cena9. Em Rasputine, a par-
tir de Gorki, espectáculo de 1927, há mesmo um
actor que “sai” do filme – reproduzindo-se, no palco, o
espaço representado na acção cinematográfica – e,
numa lógica de confronto entre hipóteses diferentes
de resolução da acção, enquanto que a czarina já
tinha sido assassinada no filme, em cena, a mesma
czarina era encorajada a ter esperança no seu futuro!
Em 1928, num espectáculo que se tornaria
emblemático, Schweik, Piscator usa filmes de banda
desenhada realizados a partir de desenhos de Geor-
ge Grosz, pondo os actores, em cena, a contracenar
com figuras de banda desenhada recortadas em car-
tão! Outra inovação neste espectáculo é a utilização
de (ruidosos) tapetes rolantes (sobre rolamentos!) em
sentidos opostos, permitindo o literal desenrolar
9 - Cf. Rorrison p. 36.
[17]
“épico” dos acontecimentos, o que, num palco estáti-
co, teria uma leitura sócio-política completamente
diferente pois a acção ficaria obrigatoriamente centra-
da em personagens individuais estáveis e não nos
colectivos e conjuntos em permanente “trânsito” e
mudança. Era a “cenografia marxista” pois que mos-
trava o que determina o indivíduo e lhe explica o
comportamento.
À procura de um estilo “épico” de represen-
tação
Como ficou já referenciado, Piscator procurava
um novo estilo de representar para os seus actores,
um estilo que designava como “neorealista” que
deveria estar em consonância com o estilo
“construtivista” dos seus cenários. Com efeito, e de
acordo com os testemunhos, Piscator pedia ao actor
para explorar a sua função como membro de uma
estrutura social e política e não como uma alma pri-
vada e individual... O actor deveria, em sua opinião,
abandonar o seu individualismo burguês e sair da
representação estática do expressionismo para uma
representação progressivamente mais objectiva10
.
Na sua fase inicial, Piscator trabalhava com
actores amadores, mas, por volta de 1929, reconhe-
10 - Cf. Patterson p. 129.
[18]
ceu a importância do valor artístico, ainda que as res-
trições impostas pelas suas inovações tecnológicas
interferissem na procura de uma estilo de represen-
tar. Por exemplo, em virtude do barulho que faziam
os tapetes rolantes, os actores, para se fazerem
ouvir, tinham de gritar…
Foi somente por volta de 1931, no espectáculo
Tai Yang erwarcht [O Despertar de Tai Yang], que
Piscator iniciou o chamado “estilo épico de represen-
tação”. Tirando partido do prólogo criado por Freidrich
Wolf, no qual os actores mudavam, à vista do público,
os figurinos das personagens para as suas roupas
quotidianas, trazendo, assim, a acção para a actuali-
dade da Alemanha11
, Piscator desenvolve, então,
uma mistura de técnicas (movimento rítmico, mímica
e dança simbólica) que envolvem referências às suas
experiências expressionistas, de agitação e propa-
ganda – e provavelmente influências outras
(biomecância de Meyerhold, etc.). Esta forma de
representar permitia que o actor comunicasse o con-
teúdo intelectual objectivo que emerge da acção e
que constitui os pontos nevrálgicos que hão-de susci-
tar o debate e a reflexão12
.
11 - Processo que Brecht viria a adaptar para a sua encenação de O Círculo de Giz Caucasiano, de 1948. 12 - Cf. Patterson p. 129.
[19]
Conclusão
Embora alvo de polémica e controvérsia, a con-
tribuição de Piscator na construção de um novo tea-
tro, de um teatro alternativo, na Alemanha, foi, como
se vê, determinante. As inovações que promoveu
constituíram esforços radicais para ligar directamente
a experiência teatral à realidade circundante. O uso
da fotografia e do cinema com a função “física” de
comentário faz mesmo lembrar o papel do Coro na
tragédia antiga.
Para além disso, e com vista à criação de um
teatro documento, de um teatro cujos textos eram
“apropriados” como propriedade colectiva, a Piscator
deve ser creditada a criação primeira do conceito de
“teatro épico”.
De acordo com John Willet, A primeira peça a
que se chamou conscientemente «épica» foi Fahnen,
de Alfons Paquet, encenada por Piscator no Volks-
bühne de Berlim em Maio de 1924. Piscator lançou o
termo e continuou a desenvolvê-lo. Brecht tomou-o
dele dando-lhe a sua própria interpretação. Mas pare-
ce que o termo estava no ar naquele tempo deles.
(cit. em Roth, p. 16 ; tradução minha).
Depois de regressar à Alemanha Piscator, have-
ria de afirmar inesperadamente:
[20]
Não fui eu que inventei o meu estilo de teatro, mas quem o criou foi a terrível experiência da guerra, o desespero da inflação e as lutas sociais do pós-guerra. Seja teatro político ou teatro épico, nas minhas mãos e quase contra a minha vontade, todas as peças e produções se tornaram confis-sões. Se fosse necessário encontrar um nome para isto, o mais apropriado seria o de “teatro con-fessional”. (cit. em Patterson p. 148; tradução minha)
Apesar do seu final pessimismo, o seu trabalho
experimental foi o de um verdadeiro pioneiro.
Santa Barbara, 1989, Lisboa, 2003
[21]
BIBLIOGRAFIA CITADA
AAVV. Dossier Piscator. Travail Théâtral, Paris, 6,
1972, pp. 27-49.
Barkhin, Mikhail, e Sergei Vakhtangov, “A Theatre for
Meyerhold”, Theatre Quaterly, London, 2.7, 1972,
pp. 69-73.
Gassner, John, Theatre at the Crossroads, New York,
Holt, Rinehart and Winston, s/d (c.1960).
Patterson, Michael, “Piscator’s Theatre: The Docu-
mentation of Reality”, The Revolution in German
Theatre: 1900-1938, Boston, Routledge, 1981, pp.
113-148.
Piscator, Erwin, Teatro Político, Rio de Janeiro, Civili-
zação Brasileira, 1968.
Rorrison, Hugh, “Piscator’s Production of Hoppla, wir
Leben, 1927”, Theatre Quaterly, London, 10.37,
1980, pp. 30-41.
Roth, Wolfgang, “A Designer Works with Brecht”,
Theatre Quaterly, London, 2.6, 1972, pp. 14-16.
Willet, John, Erwin Piscator: Half a Century of Politics
in the Theatre, London, Methuen, 1978.
[22]
CRONOLOGIA
1914 - Início Guerra Mundial I
1917 - Revolução de Outubro
URSS
1918 - O Kaiser abdica. Luta
da esquerda pelo poder. Aboli-
ção da censura no teatro.
1919 - 5-10 Janeiro: Semana
Spartacus. Assassinato de Karl
Liebknecht e de Rosa Luxem-
burg. Derrota do “Soviete”
Munich. Tratado de Versalhes
(humilhação da Alemanha).
1920 - Levantamentos comu-
nistas na Saxónia e Ruhr.
Hitler proclama os 25 pontos
no Burgerbrauhaus de Munich.
1914 - Piscator tem 18 anos
1917 - Artistas revolucionários
alemães (expressionistas) na
frente de combate: Kaiser,
Kokoska, Johst, Sorge, Korn-
feld, Hartung.
1918 - Participação de Pisca-
tor num grupo Dada com
Grosz, Heartfield, etc.
1919 - Jessner introduz um
estilo novo de teatro com a
enc. revolucionária de Guilher-
me Tell de Schiller. Piscator
adere ao PC. República Social
Democrata de Weimar.
Piscator e Spaun fundam o
grupo O Tribunal (Strindberg,
Wedekind, H. Mann, Kaiser).
1920 - Expressionismo. Pisca-
tor encena a sua 1ª peça no
estilo expressionista (A Sonata
dos Espectros, de Strindberg).
Regressa a Berlim. Funda o
Teatro Proletário (Wittfogel,
Lad. Sas, L. Barta, Gorki, U.
Sinclair). Adesão Movimento
spartakista: politização de Pis-
cator. Sessões de teatro de
agit-prop: criação de um teatro
alternativo.
[23]
1922 - Assassinato de Rathe-
nau pela extrema-direita. A
inflação acelera.
1923 - Inflação cresce: 1 dólar
vale 4.2 bilhões de marcos!
Golpe de estado de Hitler abor-
ta em Munich. Vai preso.
1924 - Hitler é libertado. Escre-
ve Mein Kampf.
1925 - Extrema direita torna-se
numa força política. Reintrodu-
ção da censura teatral.
1921 - O Homem-Massa, de
Toller. Encerramento do Teatro
Proletário.
1922 - [1ª produção de Tam-
bores na Noite de Brecht].
1923 - Levantamento comunis-
ta. [Baal de Brecht].
Piscator dirige o Teatro Cen-
tral.
1924 - [Primeiras experiências
épicas de Brecht: Edward II de
Marlowe. Brecht e Zuckmayer
são “dramaturg” no Deutsches
Theater de Reinhardt, Berlim].
Piscator é contratado pelo
Volksbühne. Pela 1ª vez: pro-
jecções e legendas na encena-
ção de Fahnen/Bandeiras
(considerado o 1º esp. “épico”).
Apesar de Tudo / Revista Ver-
melha (RRR) : esp. para a
campanha eleitoral do PC.
Teatro dialéctico: confronto
entre afirmações políticas e
consequênc ias m i l i tares
(imagens da Guerra Mundial I).
[Piscator e Brecht conhecem-
se].
[24]
1927 - A economia estabiliza.
Pressão política sobre o teatro.
1928 - Coligação PC/Partido
Social Democrata. 2 milhões
de desempregados.
1926 - Debate em torno de
Couraçado Potemkine. Teatro
politiza-se: actualização dos
clássicos (Hamlet). Piscator,
para além das produções do
Volksbühne, encena Die Räu-
ber, de Schiller, no Stat Thea-
ter (a personagem Spiegelberg
com os traços de Trotsky).
1927 - Piscator usa pequenos
filmes na encenação de Tem-
pestade sobre Gotland. Con-
trovérsia. Demite-se.
Abre o seu Piscatorbühne Nº
1. Inaug. com Hoopla! Wir
Leben!, de Toller. Em Raspu-
tin: documentários e foto-
documentários; literalização:
projecção texto. Projecto de
“Teatro Total” por Gropius.
Estúdio: treino dos actores.
1928 - Criação do Zeittheater
e da Zeitstück (teatro e peças
militantes; teatro como jornalis-
mo e actualidade que deve
denunciar a situação social,
criticá-la, mostrar as relações
de causalidade e a ligação dos
acontecimentos). [Brecht ence-
na Ópera dos Três Vinténs]
Piscator encena Schweik, de
Hasek: usa tapetes rolantes
[25]
1929 - Cresce o desemprego e
o apoio ao Partido Nazi.
1930 - Crise económica mun-
dial (1929-30). Alargamento
dos deputados Partido Nazi
(12-107).
1931 - Desemprego atinge 5, 7
milhões. Subsídios cortados.
Bancarrota. Actores no desem-
prego formam colectivos. Agit-
prop.
com figuras da banda dese-
nhada recortadas em cartão,
de Grosz. Estilo “neo-realista”,
cenog. estilo construtivista.
O Piscatorbühne Nº 1 encerra.
1929 - Abre Piscatorbühne Nº
2. Actores profissionais. Mais
elaborado exercício em
“Maschinentheater”: A Oeste
Nada de Novo. Dois tapetes
rolantes opostos, 3 pontes.
Insucesso. O colectivo Piscator
em tournée com a peça pro-
aborto 218. Sem dinheiro, P.
faz um teatro sem efeitos:
actores no meio do público,
discussões, etc. Publica Das
Politische Theater.
1930 - Piscatorbühne Nº 3 num
bairro operário.
1931 - Teatro épico: Tai Yang
Acorda, de F. Wolf: uso de
efeitos baratos: actores em
roupa normal e cara pintada
(mudavam de roupa à vista);
estilo novo de representar:
movimentos rítmicos, mímica e
dança símbólica; placards,
posters, slogans, pendurados
do balcão, sobre e em volta
dos espectadores.
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1933 - Hitler e o Partido Nazi sobem ao poder.
Falência do Piscatorbühne Nº
3. Piscator parte para Moscovo
onde fica até 1936.
1932-34 - Filma A Revolta dos
Pescadores de Santa Bárbara,
a partir da novela de Anna
Shegers, Meshrabpom-Film.
1935 - Forma grupo itinerante
para comunidades alemãs,
Ucrânia.
1936-38 - Em Paris.
1939-1951 - Piscator exila-se
nos Estados Unidos.
1951 - Regressa à Alemanha.
1966 - Morre a 20 de Março.
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