T4 PENSANDO A REVOLUO FRANCESASobre: Autor: FRANOIS
FURETTraduzido por Luiz Marques e Martha Gambini.Editora: Paz e
Terra 2 edioPENSANDO A REVOLUO FRANCESAPagina 15 1 O historiador
que estuda os reis merovngios ou a Guerra dos Cem Anos no se v
obrigado a apresentar, a todo momento, seu diploma de pesquisador.
Tanto a sociedade quanto seu crculo profissional atribuem-lhe, por
menor que tenha sido seu aprendizado tcnico, as virtudes da
pacincia e da objetividade. A discusso dos resultados mobiliza
apenas os eruditos e a erudio. No caso de um historiador da Revoluo
Francesa, devem ser exibidos outros ttulos alm de sua competncia.
Ele tem que anunciar as suas cores. E preciso, em primeiro lugar,
que ele esclarea de onde fala, o que pensa, o que busca; e o que
ele escreve sobre a Revoluo possui um sentido anterior a seu prprio
trabalho: a sua opinio, essa forma de julgamento nunca requisitada
quando se trata dos merovngios, mas que se torna indispensvel no
caso de 1789 ou 1793. Basta que essa opinio seja dada, e tudo j est
dito: ei-lo monarquista, liberal ou jacobino. Atravs desta senha,
sua histria adquire uma significao, um lugar, um ttulo de
legitimidade. O surpreendente no que esta histria particular, como
qualquer histria, comporte pressupostos intelectuais. No existe
interpretao histrica inocente, e a histria que se escreve tambm
histria dentro da histria, produto de uma relao por definio instvel
entre o presente e o passado, cruzamento entre as particularidades
de um esprito e o imenso campo de seus enraizamentos possveis no
pasPagina 16sado. Mas apesar de qualquer histria implicar uma
escolha, em uma preferncia na ordem dos interesses, no se segue da
que ela suponha uma opinio sobre o tema tratado. Para que isso
acontea, preciso que esse tema mobilize no historiador e em seu
pblico uma capacidade de identificao poltica ou religiosa que tenha
sobrevivido ao tempo que passou. Essa identificao que o tempo
passado pode apagar ou, pelo contrrio, conservar, dependendo se o
tema tratado pelo historiador continua ou no a ter sentido em seu
presente, em seus valores, em suas escolhas. O tema de Clvis e das
invases francas despertava paixo no sculo XVII, pelo fato de os
historiadores de ento a buscarem a chave da estrutura da sociedade
dessa poca. Eles pensavam que as invases francas estavam na origem
da diviso entre nobreza e plebe, os conquistadores constituindo o
tronco original dos nobres, os conquistados o dos plebeus. Hoje as
invases francas perderam qualquer referncia ao presente, pois
vivemos em uma sociedade onde a nobreza no mais existe como
princpio social; tendo deixado de ser o espelho imaginrio de um
mundo, elas perderam sua eminncia historiogrfica, com a qual esse
mundo tinha-as revestido, e passaram do campo da polmica social ao
da discusso erudita. E que a partir de 1789, a obsesso pelas
origens, com a qual se tece qualquer histria nacional, apoderou-se
precisamente da ruptura revolucionria. Da mesma forma que as
grandes invases tinham constitudo o mito da sociedade nobiliria, o
grande relato das origens, 1789 a data de nascimento, o ano zero do
mundo novo, fundado na igualdade. A substituio de um aniversrio
pelo outro, ou seja, a definio temporal de uma nova identidade
nacional, provavelmente um dos maiores traos de genialidade do
abade Sieyes, se pensarmos que ele antecipa de vrios meses 1 o
evento fundador, ao qual, no entanto, ele d de antemo seu pleno
sentido: " ... o Terceiro no deve temer remontar a tempos passados.
Ele vai se referir ao ano que precedeu a conquista; e como ele hoje
suficientemente forte para no se deixar conquistar, sua resistncia
ser sem dvida mais eficaz. Por que ele no deveria enviar novamente
para as florestas da Francnia todas essas famlias que conservam a
louca- pretenso de terem sado da raa dos conquistadores e de terem
herdado seus direitos? A nao, ento depurada, poder consolar-se,
penso eu, por se ver reduzida a no mais se acreditar composta seno
dos descendentes dos gauleses e dos romanos'? Essas poucas linhas
dizem ao mesmo tempo que os ttulos de propriedade dos nobres sobre
a nao so fictcios, mas tambmPagina 17que, caso fossem reais,
bastaria ao Terceiro' Estado restaurar o contrato social de antes
da conquista, ou melhor ainda, fund-lo, apagando sculos de usurpao
violenta. Em ambos os casos trata-se de reconstituir uma origem
"verdadeira" para a nao, dando uma data de nascimento legtimo
igualdade: 1789 inteiro encontra-se a. A histria da Revoluo tem
como funo social manter esse relato das origens. Basta olharmos,
por exemplo, o recorte acadmico dos estudos histricos na Frana: a
histria "moderna" termina em 1789, com aquilo que a Revoluo batizou
"Antigo Regime", que assim se viu atribuir, na falta de uma certido
de nascimento precisa, um atestado de bito de acordo com todas as
formalidades. A partir da, a Revoluo e o Imprio formam um campo de
estudos separado e autnomo, que possui suas ctedras, seus
estudantes, suas sociedades eruditas, suas revistas: o quarto de
sculo que separa a tomada da Bastilha da batalha de Waterloo
reveste-se de uma dignidade particular: final da poca "moderna",
introduo indispensvel ao perodo contemporneo, que comea em 1815,
ele esse entremeio que confere sentido a ambos, esse dividir de
guas a partir do qual a histria da Frana remonta em direo a seu
passado, ou mergulha em seu futuro. Permanecendo fiis conscincia
vivida dos atores da Revoluo, apesar dos absurdos intelectuais que
esse recorte cronolgico origina, nossas instituies universitrias
investiram o perodo revolucionrio, e o historiador desse perodo,
com os segredos de nossa histria nacional. 1789 a chave para o
antes e para o depois. Separa-os, e portanto os define, os
"explica". Alis, no que se refere ao "depois", esse perodo que
comea em 1815 e que se considera que ela traz luz, torna possvel,
abre, no suficiente dizer que a Revoluo "explica" nossa histria
contempornea. Ela nossa histria contempornea. O que merece algumas
reflexes. Pelas mesmas razes que fazem com que o Antigo Regime
tenha um fim, mas no um nascimento, a Revoluo tem um nascimento,
mas no um fim. O primeiro sofre de uma definio cronolgica negativa,
e portanto morturia, o outro uma promessa to vasta que apresenta
uma elasticidade indefinida. Mesmo a curto prazo, no fcil "dat-la":
dependendo do sentido que o historiador atribua aos principais
acontecimentos, ele pode encerr-la em 1789, ano em que o essencial
do balano terminal foi conseguido, a pgina do Antigo Regime virada
- ou estend-la a 1794, at a execuo de Robespierre, enfatizando a
ditadura dos comits e das seces, a epopeia jacobina,Pagina 18a
cruzada igualitria do ano II. Ou chegar at o 18 de Brumrio de 1799,
se quiser respeitar aquilo que os termidorianos conservam de
jacobino, o governo dos regicidas e a guerra com a Europa dos reis.
Ou ainda integrar Revoluo a aventura napolenica, seja at o fim do
perodo consular, seja at o casamento habsbrgico, seja at os Cem
Dias: todos esses recortes cronolgicos podem ter sua 'razo de ser.
Sonho com uma histria da Revoluo infinitamente mais longa, muito
mais estendida para o "depois" e cujo termo no intervm antes do fim
do sculo XIX ou incio do sculo XX. Pois a histria do sculo XIX
francs inteiro pode ser considerada como a histria de uma luta
entre a Revoluo e a Restaurao, atravs dos episdios de 1815, 1830,
1848, 1851, 1870, a Comuna e o 16 de maio de 1877. Somente a vitria
dos republicanos sobre os monarquistas, no incio da Terceira
Repblica, assinala definitivamente a vitria da Revoluo nas
profundezas do pas: o professor laico de Jules Ferry, missionrio
dos valores de 1789, mais o smbolo que o instrumento dessa longa
batalha ganha. A integrao da Frana alde e camponesa na nao
republicana, atravs dos princpios de 89, deve ter durado no mnimo
um sculo; sensivelmente mais, sem dvida... em regies como a
Bretanha ou o Sudoeste, retardatrias 3 em muitos aspectos. Essa
histria recente do espao francs, no essencial, ainda no foi escrita
e constitui tambm uma histria da Revoluo. A vitria do jacobinismo
republicano, durante tanto tempo ligado ditadura de Paris, s foi
conseguida a partir do momento em que teve como apoio o voto
majoritrio da Frana rural, no fim do sculo XIX. Mas "conseguida" no
quer dizer honrada, interiorizada como um valor to unnime que no
seja mais debatido. A celebrao dos princpios de 89, objeto de
tantas preocupaes pedaggicas, ou a condenao dos crimes de 93, que
envolve a rejeio de tais princpios, permanecem no centro das
representaes polticas francesas at meados do sculo XX. O fascismo d
ao conflito de ideias uma dimenso internacional. Mas significativo
que em sua forma francesa, o regime instaurado com Vichy aps a
vitria alem tome forma menos especificamente fascista que
tradicionalista, ancorada na obsesso de 1789. A Frana dos anos 40
ainda esse pas cuja histria os cidados devem selecionar, datando
seu nascimento, escolhendo entre o Antigo Regime e a Revoluo. Sob
essa forma, a referncia a 89 desapareceu da poltica francesa com a
derrota do fascismo: tanto o discurso de direita corno o de
esquerda, hoje, celebram a liberdade e a igualdade, e o debate em
tornoPagina 19dos valores de 89 no comporta mais nem alvos polticos
reais nem um forte investimento psicolgico. Mas se essa unanimidade
existe, isto se deve ao fato de que o debate poltico simplesmente
deslocou-se de uma Revoluo a outra, da do passado quela que est por
vir: essa transferncia do conflito para o futuro permite um
aparente consenso sobre a herana. Mas, na verdade, essa herana
continua dominando as representaes do futuro, assim como uma velha
camada geolgica, recoberta de sedimentaes ulteriores, no deixa de
modelar o relevo e a paisagem. B que a Revoluo Francesa no
simplesmente a Repblica. B tambm uma promessa indefinida de
igualdade e uma forma privilegiada da mudana. Basta que se veja
nela, em vez de uma instituio nacional, uma matriz da histria
universal, para devolver-lhe sua dinmica e seu poder de fascinao. O
sculo XIX acreditou na Repblica. O sculo XX acredita na Revoluo.
Existe um mesmo evento fundador nas duas imagens. Com efeito, os
socialistas do fim do sculo X IX concebem sua ao ao mesmo tempo
como solidria e distinta da dos republicanos. Solidria porque a
Repblica , a seus olhos, a condio prvia para o socialismo.
Distinta, porque a democracia poltica um estgio histrico da
organizao social que deve ser superado, e porque 89 funda
precisamente no um Estado estvel, mas um movimento, cuja lgica a
dessa superao. Essas duas lutas, pela democracia e pelo socialismo,
so duas configuraes sucessivas de uma dinmica da igualdade e cuja
origem a Revoluo Francesa. Assim formou-se uma viso, uma histria
linear da emancipao humana, sua primeira etapa tendo sido a ecloso
e a difuso dos valores de 89, e a segunda devendo cumprir a
promessa de 89, atravs de uma nova revoluo, desta vez socialista:
mecanismo de disparo duplo, que subentende por exemplo a histria
revolucionria de Jaurs, mas cujo segundo termo no tinha ainda sido
fixado pelos grandes autores socialistas, e com razo, pois esse
segundo termo estava por vir. Tudo muda com 1917. A partir de ento
a revoluo socialista tem um semblante, e a Revoluo Francesa deixa
de ser um modelo para um futuro possvel, desejvel, esperado, mas
ainda sem contedo. Ela se tomou a me de um acontecimento real,
datado, registrado, que outubro de 1917. Como demonstro em um dos
ensaios publicados aqui, os bolcheviques russos nunca deixaram de
trazer presente em seu esprito essa filiao antes, durante e depois
da Revoluo Russa. Em contrapartida, os historiadores da Revoluo
Francesa tambm projetam no passado seus sentimentos ou seus
julgamentos sobre 1917Pagina 20tendendo a privilegiar, na primeira
revoluo, o que parece anunciar prefigurar a segunda. No mesmo
momento em que a Rssia substitui, bem ou mal, a Frana no papel de
nao na vanguarda da histria, pois ela herda da Frana e do
pensamento do sculo XIX a eleio revolucionria, os discursos
historiogrficos sobre as duas revolues repercutem um sobre o outro
e se contaminam. Os bolcheviques tm ancestrais jacobinos e os
jacobinos tiveram antecipaes comunistas. Desde h quase duzentos
anos, a histria da Revoluo nunca deixou de ser um relato sobre as
origens, e portanto, um discurso sobre a identidade. No sculo XIX
essa histria mal se distingue do acontecimento que est encarregada
de retratar, pois o drama que comea em 1789 no parou de ser
encenado, gerao aps gerao, em torno dos mesmos alvos e dos mesmos
smbolos, numa continuidade da lembrana transformada em objeto de
culto eu de horror. A Revoluo no somente fundou a civilizao poltica
no interior da qual a Frana "contempornea" inteligvel; ela tambm
legou a essa Frana conflitos de legitimidade e um estoque de
debates polticos de uma plasticidade quase infinita: 1830 recomea
89, 1848 encena novamente a Repblica, e a Comuna reata com o sonho
jacobino. Foi necessria, no fim do sculo, a vitria de um consenso
republicano na opinio parlamentar, depois nacional e nada menos que
a fundao durvel da Terceira Repblica, para que a histria da Revoluo
Francesa recebesse enfim, aps um sculo, um incio de legitimao
acadmica: sob a presso da Sociedade de Histria da Revoluo Francesa,
fundada em 1881 por intelectuais republicanos a Sorbonne abre em
1886 um "curso" de histria da Revoluo, confiado a Aulrd: o curso
vai se transformar em "ctedra" em 1891. A Revoluo em ctedra
tomou-se uma propriedade nacional, como a Repblica? A resposta ,
como para a Repblica, sim e no. Sim porque em um sentido, com a
fundao da Repblica sobre o sufrgio popular e no mais sobre a
insurreio parisiense, a Revoluo Francesa finalmente "terminou": ela
se tomou Uma instituio nacional, sancionada pelo consentimento
legal e democrtico dos cidados. Mas, de um outro lado, o consenso
republicano em torno da civilizao poltica nascida em 89 um consenso
conservador, obtido por falta de outro melhor; do lado das classes
dirigentes, j que no existia um acordo sobre um rei, e como uma
garantia de segurana, do lado dos camponeses e dos pequenos
notveis: foi a represso da Comuna que naturalizou a Repblica na
provncia. E essa RevoluoPagina 21Francesa vitoriosa, finalmente
aceita como uma histria fechada, como um patrimnio e uma instituio
nacional, contraditria com a imagem da mudana que ela implica, e
que comporta uma promessa bem mais radical do que a escola laica ou
a separao entre a Igreja e o Estado. Nem bem havia acabado de impor
a Repblica e se torna claro que a Revoluo Francesa muito mais do
que a Repblica. Ela uma anunciao, que nenhum acontecimento esgota.
E por essa razo que, nesse extremo fim do sculo XIX, tendo o debate
historiogrfico entre realistas e republicanos sobrevivido s lutas
polticas de 1789, o pensamento socialista apoderou-se da anunciao.
Aulard havia criticado em Taine a reconstituio das "origens da
Frana contempornea". Jaurs v na Revoluo Francesa as origens de uma
origem, o mundo de um outro nascimento: "O que h de menor nela, o
presente.. , Ela tem prolongamentos ilimitados".' A Revoluo Russa
de outubro de 1917 vem, no momento oportuno, alojar-se nessa espera
de uma duplicao das origens. A partir dela - Mathiez formulou-o
explicitamente 5 - o inventrio da herana jacobina acompanhado de um
discurso implcito pr ou contra os bolcheviques, o que no contribui
para dar-lhe nenhuma flexibilidade intelectual. Com efeito, a
superposio dos dois debates polticos prolonga o sculo XIX no XX, e
transfere para o comunismo e o anticomunismo as paixes
anteriormente mobilizadas pelo rei da Frana e a Repblica, que ela
desloca sem enfraquecer. Pelo contrrio: ela as r-enraza no
presente, dando-lhes novos alvos polticos, que devem ser lidos nas
filigranas, como promessas ainda confusas, nos acontecimentos de
89, ou melhor, de 93. Mas ao tornar-se a anunciao positiva ou
negativa de urna Revoluo autenticamente comunista, onde a famosa
"burguesia" no viria confiscar a vitria do povo, a Revoluo francesa
nada ganhou em significao ou em clareza conceitual. Ela
simplesmente renovou seu mito empobrecendo-o. E preciso chegar a um
acordo quanto s palavras: esta contaminao do passado pelo presente,
esta capacidade de tudo assimilar que caracteriza por definio uma
Revoluo concebida como uma origem, no incompatvel com progressos
setoriais da erudio. Ainda menos quando a histria revolucionria
tomou-se, a partir do fim do sculo XIX, uma especializao
universitria, sendo desde ento necessrio que cada gerao de
historiadores faa sua parte no trabalho de arquivos. Nesse sentido,
a nfase colocada nas classes populares e sua ao na Revoluo Francesa
provocou, em nossos conhecimentosPagina 22sobre o papel dos
camponeses e do povo das cidades, progressos que seria absurdo
negar ou subestimar. Mas esses progressos no trouxeram nenhuma
modificao sensvel na anlise do que poderamos chamar o objeto
histrico global "Revoluo Francesa". Tomemos por exemplo o problema
campons, estudado, renovado por muitos trabalhos, desde o incio do
sculo, de Loutchiski a Paul Bois, e que , na minha opinio, a
contribuio central de Georges Lefebvre historiografia
revolucionria. Atravs da anlise do problema e do comportamento
campons, Georges Lefebvre chega a duas ideias: que existem, do
ponto de vista social, vrias revolues naquela que chamada a
Revoluo. E que a revoluo camponesa, amplamente autnoma,
independente das outras (da dos aristocratas, dos burgueses ou dos
sans-culottes, por exemplo) anticapitalista, ou seja, a seus olhos,
voltada para o passado,6 J essas duas ideias so difceis de
conciliar com a viso de uma Revoluo Francesa enquanto um fenmeno
social e histrico homogneo, abrindo um futuro capitalista, ou
burgus, ao qual o "Antigo Regime" teria barrado o caminho. Mas h
mais Georges Lefebvre tambm observa que, na histria agrria desse
Antigo Regime, o capitalismo est cada vez mais presente, e que seu
"esprito" penetrou com fora na aristocracia undiria: e to bem que,
como Paul Bois demonstrar 7 um pouco mais tarde, esse mesmo
campesinato vai se encontrar sucessivamente em conflito com os
senhores em 89, e com a Repblica em 93, sem que o que chamamos a
"Revoluo" tenha em nada mudado a natureza de sua presso social ou
de seu combate. Georges Lefebvre j escrevia em 1932: "O Antigo
Regime engajara a histria agrria da Frana na via do capitalismo; a
Revoluo concluiu bruscamente a tarefa que ele havia encetado".' Mas
dessa constatao, que ressoa um pouco como se viesse de Tocqueville,
o historiador de tradio jacobina no extrai, como seu ancestral de
tradio legitimista, uma crtica do prprio conceito de Revoluo. Ele
no tenta compreender sob quais condies possvel reunir as ideias de
uma mudana radical e de uma continuidade objetiva. Simplesmente
sobrepe, sem tentar concili-las, uma anlise do problema campons no
fim do sculo XVIII e uma tradio contraditria com esta anlise, que
consiste em ver a Revoluo atravs dos olhos de seus prprios atores,
como uma ruptura, um advento, uma espcie de tempo de natureza
diversa, homogneo como um tecido novo. No seria difcil mostrar que
o maior historiador universitrio da Revoluo Francesa do sculo XX
aquelePagina 23 que possuiu sobre esse perodo o saber mais rico e
seguro, teve s mente, como viso sinttica do imenso acontecimento ao
qual consagrou sua vida, as convices de um militante do Cartel das
esquerda, ou do Front popular." que a erudio, apesar de poder ser
estimulada por preocupaes tomadas do presente, nunca suficiente
para modificar a conceitualizao de um problema ou de um
acontecimento. Tratando-se da Revoluo Francesa, ela pde, no sculo
XX, sob a influncia de Jaurs, de 1917, e do marxismo, derivar para
a histria social, conquistando novos territrios. Permanece anexada,
e mesmo mais do que nunca, anexada a um texto de fundo que o velho
relato das origens ao mesmo tempo renovado e cristalizado pela
sedimentao socialista. Pois o assenhoreamento da histria
revolucionria pela histria social apesar de ter aberto novos campos
para a pesquisa setorial, s fez deslocar a problemtica da origem: o
advento da burguesia substituiu-se pelo da liberdade, mas continua
sendo, como no caso precedente, um advento. Permanncia ainda mais
extraordinria pelo fato de a ideia de uma ruptura radical no tecido
social de uma nao ser mais difcil de se conceber. Nesse sentido,
esse deslocamento historiogrfico do poltico em direo ao social
sublinha ainda mais a fora da representao Revoluo-advento, por ser
mais incompatvel com ela. A contradio intelectual mascarada pela
celebrao do comeo. E que mais do que nunca, no sculo XX, o
historiador da Revoluo Francesa comemora o acontecimento que ele
conta, ou que ele estuda. Os materiais que ele acrescenta so
somente ornamentos suplementares oferecidos sua tradio. As
linhagens perpetuam-se como os debates; escrevendo sobre a Revoluo
Francesa, Aulard e Taine debatiam Sobre a Repblica. Mathiez e
Gaxotte discutem sobre as origens do comunismo. E essa elasticidade
comemorativa, onde se est sempre investindo o orgulho nacional, que
faz da histria revolucionria na Frana um setor particular da
disciplina, elevado dignidade de especialidade acadmica, no por
constituir um campo de problemas particulares e especificados
enquanto tais, mas por estar submetido a um mecanismo de
identificao do historiador com seus heris e com "seu" evento. Da
Revoluo Francesa existem portanto histrias realistas, histrias
liberais, histrias jacobinas, histrias anarquistas ou libertrias, e
esta lista no nem exclusiva - pois essas sensibilidades no so todas
contraditrias - nem sobretudo limitativa: me da civilizao poltica
na qual nascemos, a Revoluo permite quaisquer pesquisas de
IiliaPagina 24o. Mas todas essas histrias, que se afrontam e que se
dilaceram h duzentos anos em nome das origens desse afrontamento e
deste dilaceramento, tm na realidade um terreno comum: elas so
histrias da identidade. No existe portanto, para um francs desta
segunda metade do sculo XX, um olhar estrangeiro sobre a Revoluo
Francesa. No existe etnologia possvel numa paisagem to familiar. O
acontecimento continua sendo to fundamental, to tirnico na
conscincia poltica contempornea, que qualquer "distncia"
intelectual tomada em relao a ele imediatamente assimilada
hostilidade - como se a relao de identificao fosse inevitvel, seja
ela de filiao ou de rejeio. Entretanto, preciso tentar romper esse
crculo vicioso da historiografia comemorativa. Durante muito tempo
esteve na moda, entre os homens de minha gerao, sob a dupla
influncia do existencialismo e do marxismo, enfatizar o
enraizamento do homem em seu prprio tempo, suas escolhas ou suas
determinaes. A demasiada insistncia nessas fortes evidncias, apesar
de ter sido til contra a iluso positivista da "objetividade", traz
consigo o risco de alimentar indefinidamente profisses de f e
polmicas crepusculares. Mais ainda do que pela ideologia poltica, a
historiografia da Revoluo parece-me hoje estar bloqueada pela
preguia de esprito e pelas fastidiosas repeties respeitosas.
Certamente, j tempo de desinvesti-la das significaes elementares
que ela mesma legou a seus herdeiros, para devolver-lhe o que tambm
um primum movens do historiador: a curiosidade intelectual e a
atividade gratuita de conhecimento do passado. Alis, um dia vir em
que as crenas polticas que alimentam h dois sculos os debates de
nossas sociedades parecero to surpreendentes aos homens quanto so
para ns as inesgotveis variedades e as inesgotveis violncias dos
conflitos religiosos da Europa entre os sculos XV e XVII.
Provavelmente, o prprio campo poltico moderno, tal como foi
constitudo pela Revoluo Francesa, que parecer ser um sistema de
explicao e um investimento psicolgico de uma outra poca. Esse
"resfriamento" do objeto "Revoluo Francesa", para falar em termos
lvi-straussianos, no pode ser esperado somente do tempo que passa.
Podemos definir suas condies, e at mesmo reconhecer seus primeiros
elementos na trama do nosso presente. No afirmo que essas condies,
esses elementos, iro finalmente constituir a objetividade histrica:
penso que eles esto realizando uma modificao essencial na relao
entre o historiador da Revoluo Francesa e seu objetoPagina 25de
estudo: eles tomam menos espontnea, e portanto menos coercitiva a
identificao com os atores a celebrao dos fundadores ou a execrao
dos desviantes. Para esse desinvestimento, que considero desejvel
para renovar a histria revolucionria, percebo dois caminhos: um
deles produz-se progressivamente, tardia mais inelutavelmente, a
partir das contradies entre o mito revolucionrio e as sociedades
revolucionrias (ou ps-revolucionrias). O outro est inscrito nas
mutaes do saber histrico. Os efeitos do primeiro so cada vez mais
claros. Escrevo estas linhas no fim da primavera de 1977, em um
perodo no qual a crtica do totalitarismo sovitico, e de forma mais
geral, de qualquer poder que se reclame do marxismo, deixou de ser
o monoplio ou quase-monoplio do pensamento de direita, para
tornar-se o tema central de uma reflexo de esquerda. O que importa
aqui, na referncia a esses conjuntos historicamente relativos que
so a direita e a esquerda, no o fato de que uma crtica de esquerda
tenha mais peso que uma crtica de direita, na medida em que a
esquerda tem uma posio culturalmente dominante em um pas como a
Frana, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O que conta bem mais
que a direita, para condenar a URSS ou a China, no tem necessidade
de remanejar nenhum elemento de sua herana: basta-lhe permanecer no
interior do pensamento contra-revolucionrio. Ao passo que a
esquerda deve enfrentar dados que comprometem seu sistema de
crenas, nascido na mesma poca que o outro. t por isso que durante
tanto tempo ela mostrou m vontade em faz-lo: por isso que, ainda
hoje, ela prefere frequentemente remendar o edifcio de suas
convices, em vez de interrogar a histria de suas tragdias. No final
das contas, pouco importa. O importante que uma cultura de
esquerda, uma vez que aceitou refletir sobre os fatos, ou seja,
sobre o desastre que constitui a experincia comunista do sculo XX,
em relao a seus prprios valores, tenha sido levada a criticar sua
prpria ideologia, suas interpretaes, suas esperanas, suas
racionalizaes. E nela que se instala a distncia entre a histria e a
Revoluo, pois foi ela que acreditou que a histria estava
inteiramente contida nas promessas da Revoluo. A partir desse ponto
de vista, seria possvel escrever uma histria da esquerda
intelectual francesa em relao Revoluo Sovitica, mostrando que o
fenmeno stalinista enraizou-se em uma tradio jacobina simplesmente
deslocada (a dupla ideia de um comeo da histriaPagina 26o de uma
nao-piloto foi reinvestida no fenmeno sovitico); e que. durante um
longo perodo, que est longe de ter terminado, a noo de desvio em
relao a uma origem que permaneceu pura permitiu salvar o valor
importantssimo da ideia de Revoluo. esse cadeado duplo que comeou a
ser arrebentado: em primeiro lugar porque, tornando-se a referncia
histrica fundamental da experincia sovitica, a obra de Soljenitsin
colocou a questo do Gulag no mais profundo do desejo revolucionrio:
ento inevitvel que o exemplo russo venha chocar-se, como um
bumerangue, contra sua "origem" francesa. Em 1920, Mathiez
justificava a violncia bolchevique pelo precedente francs, em nome
de circunstncias comparveis. Hoje, o Gulag faz com que o Terror
seja repensado, em virtude de uma identidade no projeto. As duas
revolues permanecem ligadas: mas, h um meio sculo, elas eram
sistematicamente absolvidas com a desculpa tirada das
"circunstncias", ou seja, de fenmenos exteriores e estranhos sua
natureza. Hoje, ao contrrio, elas so acusadas de serem
consubstancialmente sistemas de opresso meticulosa dos corpos e
espritos. O privilgio exorbitante da ideia de revoluo, que consiste
na impossibilidade de ser atingida por qualquer crtica interna, est
ento perdendo seu valor de evidncia. A historiografia universitria,
onde os comunistas seguiram, corno que de forma natural, os
socialistas e os radicais na gesto da comemorao republicana,
agarra-se a ele e no brinca com as tradies. Cada vez mais apegada
ao seu curto perodo como se fosse um patrimnio social, ela
simplesmente no foi atingida pela desvalorizao desse patrimnio
entre os intelectuais; ela tem dificuldade no somente de desposar,
mas at de conceber as mutaes intelectuais indispensveis aos
progressos da historiografia revolucionria. O que essa
historiografia deveria exibir no so mais suas cores, mas sim seus
conceitos. A histria em geral deixou de ser esse saber onde se
considera que os "fatos falam por si mesmos, desde que tenham sido
estabelecidos segundo as regras. Ela deve enunciar o problema que
tenta analisar, os dados que utiliza, as hipteses sobre as quais
trabalha e as concluses que obtm. Que a histria de Revoluo seja a
ltima a tomar essa via do explcito no se deve somente a tudo que a
atrai, gerao aps gerao, em direo ao relato das origens; deve-se
tambm ao fato de que esse relato foi investido t: canonizado por
uma racionalizao "marxista" que no fundo no muda seu carter e que
ao contrrio consolida dando-lhe uma apaPagina 27rncia de elaborao
intelectual, a fora elementar que ele retira de sua funo de
advento. Sobre esse ponto, expliquei-me em um dos ensaios que
compem este livro: 10 essa racionalizao no existe nas- obras de
Marx, que no contm uma interpretao sistemtica da Revoluo Francesa;
ela o produto de um encontro confuso entre bolchevismo e
jacobinismo, que se alimenta de uma concepo linear do progresso
humano, escandido por essas duas "liberaes" sucessivas, encaixadas
uma na outra como bonecas gigognes. * O que irremediavelmente
confuso, na vulgata "marxista" da Revoluo Francesa, a superposio da
velha ideia do advento de um novo tempo, ideia constitutiva da
prpria Revoluo, e de uma ampliao do campo histrico, consubstancial
ao marxismo. Com efeito, o marxismo - ou digamos, esse marxismo que
penetra com Jaurs na histria da Revoluo - desloca para o econmico e
social o centro de gravidade do problema da Revoluo. Ele procura
enraizar nos progressos do capitalismo a lenta promoo do Terceiro
Estado, cara historiografia da Restaurao, e a apoteose de 1789.
Assim procedendo, ele ao mesmo tempo estende vida econmica e
totalidade do campo social o mito do corte revolucionrio: antes, o
feudalismo; depois, o capitalismo. Antes, a nobreza; depois, a
burguesia. Como essas proposies no so nem demonstrveis nem, alis,
verossmeis, e como, de qualquer forma, elas fazem explodir o quadro
cronolgico' cannico, ele se limita a sobrepor uma anlise das
causas, feita sob o modo econmico e social, a um relato dos
acontecimentos, escrito sob o modo poltico e ideolgico. Essa
incoerncia apresenta pelo menos a vantagem de sublinhar um dos
problemas essenciais da historiografia revolucionria, o da juno dos
nveis de interpretao com a cronologia do acontecimento. Se
insistirmos, a qualquer preo, em conservar a ideia de uma ruptura
objetiva no tempo histrico, fazendo dessa ruptura o alfa e mega da
histria de Revoluo, seremos inevitavelmente conduzidos, qualquer
que seja a interpretao enunciada, a absurdos. Mas esses absurdos so
to mais necessrios quanto mais ambiciosa for a interpretao, e
quanto mais nveis englobar: pode-se dizer, por exemplo, que entre
1789 e 1794 todo o sistema poltico francs que foi brutalmente
transformado, j que a antiga monarquia desapareceu. Mas a ideia de
que entre essas mesmas datas o tecido social ou econmico da
naoNota: Bonecas gigognes: srie de bonecas idnticas, de diferentes
tamanhos que se encaixam uma dentro da outra. (N.T.)Pagina 28foi
completamente renovado, evidentemente muito menos verossmil: a
"Revoluo" um conceito que no tem muito sentido em relao a esse tipo
de afirmao, mesmo que ela possa ter causas que no sejam
inteiramente de natureza poltica ou intelectual. Em outros termos,
qualquer conceitualizao da histria revolucionria comea pela crtica
da ideia de revoluo, tal como foi vivida por seus atores e
veiculada por seus herdeiros: ou seja, como uma mudana radical, e
como a origem de um tempo novo. Enquanto essa crtica no estiver
presente em uma histria da Revoluo, a superposio de uma interpretao
mais econmica, ou mais social, a uma interpretao puramente poltica,
nada mudar naquilo que todas essas histrias tm em comum, ou seja, o
fato de serem fiis vivncia revolucionria dos sculos XIX e XX. A
sedimentao econmica e social trazida pelo marxismo talvez s
apresente a vantagem de fazer aparecer claramente, atravs do
absurdo, as aporias de qualquer histria da Revoluo que permanea
fundada sobre a vivncia interior dos atores dessa histria. E aqui
que encontro Tocqueville e que avalio seu gemo. Na mesma poca em
que Michelet concebeu a mais penetrante das histrias da Revoluo j
escritas sob o modo da identidade - uma histria sem conceitos,
feita de achados do corao, marcada por uma espcie de adivinhao das
almas e dos atores - Tocqueville imagina, e ele foi o nico a t-la
imaginado assim, a mesma histria, sob o modo inverso da interpretao
sociolgica. Portanto, a questo no que o aristocrata normando no
compartilhe das mesmas opinies que o filho do impressor jacobino:
Tocqueville no escreveu, por exemplo, uma histria da Revoluo que se
encontra mais " direita" que a de Michelet. Ele escreveu uma outra
histria da Revoluo, fundada em uma crtica da ideologia
revolucionria e daquilo que constitui, na sua opinio, a iluso da
Revoluo. Francesa sobre si prpria. Alis, a reviravolta conceitual
de Tocqueville no deixa de apresentar analogias com aquela que
marcou sua anlise do fenmeno americano. Antes de Dmocratie en
Amrique, a Amrica pensada pela cultura europeia como a infncia da
Europa, a imagem de seus primrdios: a instalao, o desbravamento, o
homem conquistando um mundo selvagem. O livro de Tocquevil1e,
operando quase somente por deduo a partir da hiptese central da
igualdade, vira essa imagem do avesso. A Amrica, ele diz aos
europeus, no a sua infncia, o seu futuro e l que desabrocha, livre
das restries de um passado aristocrtico, a Democracia, que ser
tambm o futuro poltico e social Pagina 29da velha Europa. Da mesma
maneira, mas em sentido inverso, Tocqueville renova seu paradoxo
vinte anos depois, a respeito da Revoluo que nunca deixou de estar
- mesmo e sobretudo .durante o "desvio" americano - no centro de
seus pensamentos. Ele pergunta a seus contemporneos: "Vocs
acreditam que a Revoluo Francesa uma ruptura brutal em nossa
histria?". Na realidade, ela o desabrochar do nosso passado. Ela
conclui a obra da monarquia. Ao invs de constituir uma ruptura, ela
s pode ser compreendida em e pela continuidade histrica. Ela
completa esta continuidade nos fatos embora aparea como ruptura nas
conscincias. Assim, Tocqueville elaborou uma crtica radical de
qualquer histria da Revoluo fundada na vivncia dos revolucionrios.
E essa crtica ainda mais aguda por permanecer no interior do campo
poltico - as relaes entre os franceses e o poder -, justamente
aquele que parece ter sido mais transformado pela Revoluo. O
problema de Tocqueville o da dominao das comunidades e da sociedade
civil pelo poder administrativo, seguindo-se extenso do Estado
centralizado; este assenhoreamento do corpo social pela administrao
no somente o trao permanente que une o "novo" regime ao "antigo",
Bonaparte a Lus XIV. Mas tambm aquilo que explica, atravs de uma
srie de mediaes, a penetrao da ideologia" democrtica" (ou seja,
igualitria) na antiga sociedade francesa: em outros termos, a
"Revoluo", naquilo que tem de constitutivo, foi, na sua opinio
(Estado administrativo reinando sobre uma sociedade com ideologia
igualitria), amplamente cumprida pela monarquia, antes de ter sido
terminada pelos jacobinos e pelo Imprio. E aquilo que chamado a
"Revoluo Francesa", esse acontecimento repertoriado, datado,
louvado como uma aurora, no seno uma acelerao da evoluo poltica e
social anterior. Destruindo no a aristocracia, mas o princpio
aristocrtico na sociedade, ele suprimiu a legitimidade da
resistncia social contra o Estado central. Mas Richelieu e Lus XIV
que deram o exemplo. Tento analisar, em um dos ensaios seguintes,
as dificuldades suscitadas por esse tipo de interpretao: se
Tocqueville nunca escreveu uma verdadeira histria da Revoluo
Francesa, parece-me que isto se deve ao fato de que ele
conceitualizou apenas uma parte dessa histria, a da continuidade.
Ele concebe a Revoluo em termos de um balano, no em termos de um
acontecimento; como um processo, no como uma quebra. E ele morreu
no momento em que, trabalhando no segundo tomo estava em face do
problema que consistia em pensarPagina 30essa quebra. Mas o que
permanece fundamental na obra desse esprito dedutivo e abstrato,
providencialmente extraviado em um domnio super-investido pelo
narrativo, que ela escapa tirania da vivncia histrica dos atores e
ao mito das origens. Tocqueville no se encontra mais no interior
das mesmas escolhas que Necker, Lus XVI, Mirabeau ou Robespierre.
Ele est parte. Ele fala de outra coisa. E por essa razo que seu
livro mais importante pelo mtodo que sugere do que pela tese que
defende. Parece-me que os historiadores da Revoluo escolheram e
sempre tero que escolher entre Michelet e Tocqueville: o que no
quer dizer entre uma histria republicana e uma histria conservadora
de Revoluo Francesa - pois essas duas histrias estaro ainda atadas
por uma problemtica comum, que Tocqueville precisamente recusa.
Aquilo que os separa encontra-se em outra parte: que Michelet faz a
Revoluo reviver a partir do interior, Michelet comunga, comemora,
enquanto Tocqueville no cessa de interrogar a distncia que ele supe
existir entre as intenes dos atores e o papel histrico que eles
desempenham. Michelet instala-se na transparncia revolucionria,
celebra a coincidncia memorvel entre os valores, o povo e a ao dos
homens. Tocqueville no se limita a questionar essa transparncia, ou
essa coincidncia. Ele pensa que elas mascaram uma opacidade mxima
entre a ao humana e seu sentido real, opacidade caracterstica da
Revoluo enquanto perodo histrico, devido ao papel que nela
desempenha a ideologia democrtica. Existe um abismo entre o balano
da Revoluo Francesa e as intenes dos revolucionrios. Eis por que
L'Ancien Rgirne et ia Rvoiution continua sendo, em minha opinio, o
livro capital de toda a historiografia revolucionria. Eis tambm por
que ele sempre foi, h mais de um sculo, o parente pobre dessa
historiografia, mais citado que lido, e mais lido que
compreendido." De direita ou de esquerda, realista ou republicano,
conservador ou jacobino, o historiador da Revoluo Francesa toma o
discurso revolucionrio como se fosse 'indiscutvel, pois ele se
situa no interior desse discurso: desde ento ele nunca deixa de
revestir essa Revoluo dos diferentes semblantes que ela prpria se
conferiu, interminvel comentrio de um afrontamento ao qual ela
teria, de uma vez por todas, atribudo sentido, pela boca de seus
heris. Assim preciso que ele acredite, j que ela assim o afirma,
que a Revoluo destruiu a nobreza, quando ela negou seu princpio;
que a Revoluo fundou uma sociedade, quando ela afirmou valores; que
a Revoluo uma origem da histria, quando ela falou de regenerar o
homem.Pagina 31Nesse jogo de espelhos onde o historiador e a
Revoluo confiam plenamente um na palavra do outro, pois a Revoluo
tornou-se a principal figura da histria, a Antgona insuspeita dos
novos tempos, Tocqueville introduz a dvida no nvel mais profundo: e
se s houvesse, nesse discurso da ruptura, iluso de uma mudana? A
resposta questo no simples, e a prpria questo no contm toda a
histria da Revoluo. Ela provavelmente indispensvel para uma
conceitualizao dessa histria. atravs de sua falta que podemos medir
sua importncia: por deixar de coloc-la, o historiador levado
execrao ou celebrao, que so duas maneiras de comemorar.Pagina 31 2
Se Tocqueville um caso nico na historiografia da Revoluo, porque
seu livro obriga a decompor o objeto "Revoluo Francesa", fazendo a
seu respeito um esforo de conceitualizao. Ao proceder atravs de
conceitos explcitos, ele quebra o relato cronolgico; trata de um
problema e no de um perodo. Com ele, a Revoluo deixa de falar por
si mesma, num sentido ou em outro, como se seu sentido j fosse
previamente dado, revelado por sua prpria trajetria. Pelo contrrio,
ela se torna objeto de uma interpretao sistemtica, que isola alguns
de seus elementos: especialmente o processo de centralizao
administrativa sob o Antigo Regime e sua influncia no que poderia
ser chamado a "democratizao" da sociedade. Nessa medida, o perodo
de tempo estudado por Tocqueville, e que muito vasto (pois o
reinado de Lus XIV, por exemplo, constantemente chamado a dar seu
testemunho), explica-se em funo do problema que o interessa e da
interpretao que prope: a Revoluo descende em linha direta do Antigo
Regime. No estou sugerindo com isso que qualquer esforo para
conceitualizar o objeto histrico "Revoluo Francesa" passe por um
recorte cronolgico muito amplo: as duas coisas no tm relao, e o
"longo prazo", nenhum privilgio nesse sentido. Quero dizer
simplesmente que qualquer interpretao da Revoluo pressupe um
recorte cronolgico: o historiador que se interessa pela
RevoluoPagina 33enquanto processo de continuidade, ir naturalmente
trabalhar em um campo mais amplo do que aquele que -tenta
compreender a Revoluo enquanto "acontecimento", ou como sucesso de
acontecimentos. A segunda dessas curiosidades no menos legtima que
a primeira, e no menos passvel de interpretao. A nica coisa
suspeita precisamente aquela que caracteriza a historiografia da
Revoluo Francesa e que ilustra seu subdesenvolvimento analtico:
escrever sempre a histria de um nico e mesmo perodo, como se essa
histria contada devesse falar por si s, quaisquer que sejam os
pressupostos implcitos do historiador. A menos, claro, que se trate
abertamente de um puro relato cuja funo consistisse em resgatar a
vivncia individual ou coletiva dos atores dos acontecimentos, e no
da interpretao do ou dos seus sentidos. Mas no estou discutindo
Lentre, estou discutindo Mathiez. Sei muito bem que qualquer
histria uma mistura varivel mas permanente, e quase sempre
implcita, de relato e de anlise, e que a histria "erudita" no
escapa a essa espcie de regra. J: peculiar historiografia
revolucionria a sua organizao interna, constantemente idntica, do
discurso. O lugar de cada gnero no interior dessa histria sempre o
mesmo: a anlise recobre o problema das "origens" ou das causas, que
dependem da explicao. O narrativo comea com "os acontecimentos", ou
seja, em 1787 ou 1789, e vai at o fim da "histria", ou seja, o 9 de
Termidor ou o 18 de Brumrio, como se, uma vez que as causas tenham
sido dadas a pea andasse sozinha, movida pelo impulso inicial. Essa
miscigenao de gneros corresponde confuso de dois objetos de anlise:
a Revoluo enquanto processo histrico, conjunto de causas e
consequncias, e a Revoluo enquanto modalidade da mudana, como
dinmica particular da ao coletiva. Esses dois objetos no so, do
ponto de vista intelectual, passveis de superposio: eles contm, por
exemplo, desde o mais superficial exame quadros cronolgicos
diferentes: o exame das causas da Revoluo, ou de seu balano, leva o
observador muito aqum de 1789, e muito alm de 1794, ou de 1799. A
"histria" da Revoluo, ao contrrio cabe entre 1789 e 1794, ou 1799.
Se aquele que escreve no for sensvel a esses desnveis da
cronologia, estar confundindo em seu esprito diferentes nveis de
anlise, que pressupem hipteses implcitas: o desenrolar da Revoluo
estaria inscrito em suas causas, pois seus atores no tinham outra
escolha alm da que fizeram, destruindo o Antigo Regime para
substitu-lo por uma nova ordem. Que esta nova ordem seja a
democracia, como em Michelet, ou oPagina 34capitalismo como em
Mathiez isso no muda em nada minha argumentao: nos dois casos, a
conscincia dos atores da Revoluo que organiza retrospectivamente a
anlise das causas de sua ao. O historiador, para permanecer fiel a
essa conscincia, sem deixar de cumprir seu dever de explicao, deve
somente justificar o advento em termos de necessidade. Alis ele
poder em razo disso, dispensar-se de realizar o balano. Se causas
objetivas tornaram necessria e mesmo fatal a ao coletiva dos homens
para romper com o "antigo" regime e instaurar um novo, ento no h
nenhuma distino a ser feita entre o problema das origens da Revoluo
e a natureza do prprio acontecimento. Pois h no somente coincidncia
entre necessidade histrica e ao revolucionria, como tambm
transparncia entre essa ao e o sentido global que lhe foi dado por
seus atores: romper com o passado, fundar uma nova histria. O
postulado da necessidade daquilo que "ocorreu" uma iluso
retrospectiva clssica da conscincia histrica: o passado um campo de
possibilidades no interior do qual "o que aconteceu') aparece
retrospectivamente como o nico futuro desse passado. No caso da
histria da Revoluo, esse postulado recobre um segundo, do qual
inseparvel: o do corte cronolgico absoluto que 89, ou os anos 8993,
representam na histria da Frana. Antes, o que existe o reinado do
absolutismo e da nobreza (como se essas duas figuras do Antigo
Regime andassem de mos dadas). Depois, a liberdade e a burguesia.
Enfim, dissimuladas em meio ao rudo e o furor dessa Revoluo, as
promessas de uma anunciao socialista. Como seus atores haviam dito,
a ruptura revolucionria erige a histria da Frana em recomeo, e o
prprio acontecimento em uma espcie de ponto focal, onde o passado
vem se abolir, o presente se constituir e o futuro se delinear. No
somente o que aconteceu fatal, mas tambm o futuro a est inscrito. O
"conceito" que atualmente domina a historiografia revolucionria. o
de "revoluo burguesa", parece-me precisamente ser, na acepo em que
utilizado, menos um conceito que uma mscara, sob a qual se escondem
esses dois pressupostos, o da necessidade do acontecimento e o da
ruptura do tempo: "conceito" ou mscara, providencial, que
reconcilia todos os nveis da realidade histrica e todos os aspectos
da Revoluo Francesa. Considera-se que os acontecimentos de
1789-1794 do luz, simultaneamente, o capitalismo no nvel econmico,
a preponderncia burguesa, nas ordens social e poltica, e valores
considerados a elas ligados. DePagina 35outro lado, eles se
relacionam com o papel fundamental da burguesia como classe no
desenrolar da Revoluo. Assim, a ideia confusa de "revoluo burguesa"
designa inseparavelmente um contedo e um ator histricos, que
florescem juntos na exploso necessria desses curtos anos do fim do
sculo XVIII. A uma "obra" considerada como inevitvel, ela confere
um agente perfeitamente adaptado. Sistematizando a ideia de um
corte radical entre o antes e o depois, a interpretao "social" da
Revoluo Francesa coroa uma meta fsica da essncia e da fatalidade.
Nessa medida, ela muito mais que uma interpretao da Revoluo:
anexando ao seu tema todo o problema das origens, ou seja, toda a
sociedade francesa anterior a 1789, ela tambm uma viso
retrospectiva do "Antigo Regime" definido a contrario pelo novo. A
Revoluo Francesa fatal? Basta, para imagin-la assim reconstituir os
fluxos do movimento e da resistncia, e depois organizar exatamente
em 1789 o choque que resolve sua contradio. De um lado, uma
monarquia estpida e uma nobreza egosta, ligadas uma outra por
interesses, polticas e ideologias reacionrias. Do outro, o resto da
sociedade civil, conduzida, arrastada por uma burguesia rica,
ambiciosa e frustrada. O primeiro dos conjuntos no funciona apenas
como uma resistncia ideia que o historiador faz da evoluo, mas como
uma contracorrente dinmica: esse o papel atribudo "reao feudal" (ou
"senhorial", os dois termos sendo mais ou menos assimilados um ao
outro), como indica claramente o termo "reao", emprestado mecnica
das foras. Essa reao, que se considera recobrir a segunda metade do
sculo XVIII poderia esclarecer ao mesmo tempo a violncia dos
camponeses no vero de 89 e o ressentimento burgus, e portanto as
condies da aliana do Terceiro Estado contra a nobreza. Chocando-se
no simplesmente s inrcias da tradio e do Estado, mas a instituies e
a classes sociais que se obstinam ativamente, quase maleficamente,
a reconstruir o passado, as foras do progresso s tm, ento, uma nica
e inevitvel sada: a revoluo. No esboo geral desses dois fronts de
classe avanando contraditoriamente para enfrentar-se como numa
batalha, possvel reconhecer a percepo que tiveram os militantes dos
anos revolucionrios dos acontecimentos que estavam vivendo, e a
interpretao que deles fizeram. Eles exprimiam a lgica da experincia
revolucionria, que leva, por sua prpria natureza, explicao
maniquesta e personificao dos fenmenos sociais. doena profisPagina
36sional do historiador, eterno redutor das virtualidades de uma
situao a um futuro nico, pois somente este ltimo aconteceu, esta
lgica acrescenta as simplificaes intelectuais que acompanham e
justificam, nos tempos modernos, o exerccio da violncia poltica.
Provm da a fora tentadora da explicao monista, no importando em que
nvel se situe: vitria das luzes sobre o obscurantismo, da liberdade
sobre a opresso, da igualdade sobre o privilgio; ou ainda, advento
do capitalismo sobre as runas do feudalismo; ou, finalmente, sntese
de todas essas instncias em uma espcie de quadro lgico onde elas se
enfrentam uma a uma, numa explorao sistemtica do passado e do
futuro. Em qualquer dos casos, trata-se do mesmo mecanismo lgico,
cujo contedo a sntese marxista ao mesmo tempo enriquece e paralisa;
mas o mecanismo comeou a operar desde 1789, pois ele constitutivo
da ideologia revolucionria. Passando histria, cujos aspectos tende
a anexar completamente, esse mecanismo gira em falso e mais
interessante pelas contradies que levanta do que pelos problemas
que resolve; isso que procurei demonstrar em um dos ensaios
seguintes, consagrado crtica da historiografia comunista da
Revoluo. Parece-me que, caricaturizando e levando ao absurdo de um
rigor ilusrio, sob o pretexto de conceitualiz-los, os traos
elementares da conscincia revolucionria, essa historiografia
ilustra a crise inevitvel de uma tradio. Ela no possui mais o
charme do relato pico, que aprisionado em uma camisa-de-fora, sem
nada ter ganho em poder de explicao, pois se limita a mascarar os
pressupostos do relato. Desse ponto de vista, significativo que
seja justamente em um dos setores onde os estudos histricos mais
fizeram progressos nos ltimos anos - a histria da antiga sociedade
francesa - que ela parea ser mais sumria e inexata. No sistema de
equivalncias e de contrrios que ela construiu para celebrar a
necessidade de um acontecimento, nada resiste ao exame: nem as
confuses entre Estado monrquico e nobreza, nobreza e feudalismo,
burguesia e capitalismo; nem as contradies entre absolutismo e
reforma, aristocracia e liberdade, sociedade 'de ordens e filosofia
das luzes. No entro aqui nos detalhes dessa crtica, que podero ser
encontrados mais adiante. 12 Mas necessrio prov-la de uma
considerao mais geral, ou seja, que o estabelecimento de um vnculo
de natureza lgica (quase sempre implcito) entre a Revoluo como
processo histrico objetivo e a Revoluo como conjunto de eventos
"acontecidos" e vividos - a Revoluo-contedo e a Revoluo-modalidade
- levam obrigatoriamente a deduzir o primeiroPagina 37aspecto do
segundo. Parece-me que a sabedoria consiste, ao contrrio, em
dissoci-los, como nos convida no somente a cronologia, mas tambm,
no final das contas, esse velho preceito ao mesmo tempo burgus e
marxista, de que os homens fazem a histria, mas no conhecem a
histria que fazem. Um fenmeno como a Revoluo Francesa no pode ser
reduzido a um simples esquema de tipo causal: do fato que a Revoluo
tenha causas no se segue que sua histria caiba inteiramente nessas
causas. Admitamos, por um instante, que essas causas sejam melhor
elucidadas do que o so, ou que delas possamos, um dia, elaborar um
quadro mais operativo; de qualquer forma, o acontecimento
revolucionrio, desde o dia em que eclodiu, transforma dos ps cabea
a situao anterior, instaurando uma nova modalidade da ao histrica,
que no est inscrita no inventrio dessa situao e possvel, por
exemplo, explicar sem dificuldades a revolta da maioria dos
deputados nos Estados Gerais pela crise da sociedade poltica do
Antigo Regime, mas a situao criada desde esse momento pela vacncia
do poder, e a insurreio que se segue, introduzem nessa crise um
elemento absolutamente indito, com consequncias completamente
imprevisveis dos meses antes. Podemos ainda, numa outra ordem de
ideias, justificar a sublevao popular urbana de junho-julho atravs
da crise econmica, do preo do po, do desemprego, do tratado de
comrcio franco-ingls, etc.; mas esse tipo de explicao no implica a
passagem da revolta ligada distribuio dos cereais ou aos impostos,
relativamente clssica nas cidades da antiga Frana, "jornada"
revolucionria, que se refere a uma outra dinmica. Em outras
palavras, o debate sobre as causas da Revoluo no recobre o problema
do fenmeno revolucionrio, amplamente independente da situao que o
precede: desenvolvendo, ele mesmo, suas prprias consequncias. O que
'caracteriza a Revoluo enquanto acontecimento uma modalidade da ao
histrica; uma dinmica que pode ser chamada de poltica, ideolgica ou
cultural, para dizer que seu poder multiplicado de mobilizao dos
homens e de ao sobre as coisas passa por um superinvestimento de
sentido. Tocqueville - sempre ele - pressentiu esse problema
central. Realmente, ele parte de uma problemtica referente ao que
chamou de Revoluo-processo, e que , no seu caso, um processo de
continuidade: a Revoluo estende e consolida, levando a seu ponto de
perfeio, o Estado administrativo e a sociedade igualitria, cujo
desenvolvimento a obra caracterstica da antiga monarquia. Por
essaPagina 38razo, existe um divrcio absoluto entre a histria
objetiva da Revoluo, seu "sentido" ou seu balano, e o sentido que
deram sua ao os revolucionrios. Um dos ensaios contidos neste livro
discute os diferentes elementos dessa conceitualizao. Partindo do
atual (em relao a Tocqueville), ou seja, do balano
ps-revolucionrio, L'Ancien Rgime retorna em seguida a uma anlise
das origens, onde o papel central desempenhado pela monarquia
administrativa, que esvazia de sua substncia viva a sociedade de
ordens e abre caminho menos para a igualdade de condies do que para
o igualitarismo enquanto valor. Mas entre as origens e o balano,
entre Lus XIV e Bonaparte, existe uma pgina em branco que
Tocquevi1le nunca escreveu, e onde figuram questes que ele colocou,
mas s quais no trouxe uma resposta clara: por que esse processo de
continuidade entre o Antigo Regime e o novo tomou as vias de uma
revoluo? E o que significa nessas condies, o investimento poltico
dos revolucionrios? Existem, no livro III de L'Ancien Rgime,
elementos de respostas a essas questes, como a substituio dos
homens polticos pelos intelectuais na Frana do sculo XVIII, ou a
generalizao para todas as classes de um estado de esprito
democrtico; mas o extraordinrio dinamismo da ideologia igualitria,
nos anos 89-93, continua sendo, para Tocqueville, uma espcie de
mistrio do mal, uma religio pelo avesso. Em nenhum lugar de sua
obra existe um ajustamento conceitual entre sua teoria da Revoluo
Francesa e a ao revolucionria tal como foi vivida, e tal como ela
caracterizou o perodo, por exemplo, o fenmeno jacobino. E isso de
tal forma, que a prpria possibilidade desse ajustamento pode ser
discutida: Tocqueville obriga-nos a dissociar, ao menos
provisoriamente, as duas partes desse amlgama confuso que constitui
a "histria da Revoluo" e a deixar de superpor, como se se tratasse
de um discurso homogneo, e como se um pudesse ser deduzido do
outro, a anlise das causas e o desenrolar dos acontecimentos. No
somente porque esses "acontecimentos", que so de natureza poltica e
ideolgica, desqualificam por definio uma anlise causal feita em
termos de contradies econmicas ou sociais. Mesmo se realizada no
nvel do sistema poltico e de 'sua legitimidade, uma tal anlise no
recobre aquilo que a acelerao revolucionria contm de radicalmente
novo. Existe no conceito de revoluo (nessa acepo do termo) algo que
corresponde sua "vivncia" histrica e que no obedece sequncia lgica
dos efeitos e causas: a apario em cena de uma modalidade prtica e
ideolgica da ao 50Pagina 39cial, que no est inscrita em nada que a
precedeu; um tipo de crise poltica torna-a possvel, mas no
necessria, e a revolta no lhe fornece modelo algum, por fazer
parte, por definio, do antigo sistema poltico e cultural. H,
portanto, na Revoluo Francesa um novo tipo de prtica e de
conscincia histricas, ligadas a um tipo de situao, sem serem
definidas por ela. E esse conjunto que se trata de inventariar,
propondo-lhe uma interpretao, em vez de proceder como se a
conscincia revolucionria, produto normal de um descontentamento
legtimo, fosse a coisa mais natural da histria humana. No fundo, a
vulgata marxista da histria da Revoluo Francesa coloca o mundo de
ponta-cabea: ela situa a ruptura revolucionria no nvel econmico e
social, quando nada se parece mais com a sociedade francesa sob Lus
XVI do que a sociedade francesa sob Lus Filipe. Como ela no toma
distncia alguma em relao conscincia revolucionria, cujas iluses e
valores compartilha, incapaz de ver que o que h de mais
radicalmente novo e de mais misterioso na Revoluo Francesa
precisamente o que ela considera como um produto normal das
circunstncias e uma figura natural da histria dos oprimidos. Nem o
capitalismo nem a burguesia tiveram necessidade de revolues para
aparecer e dominar na histria dos principais pases europeus do
sculo XIX. A Frana esse pas que inventa, pela Revoluo, a cultura
democrtica, revelando ao mundo uma das conscincias fundamentais da
ao histrica. Vamos descrever, em primeiro lugar, a parte das
circunstncias, que no a da misria, ou a da opresso, mas a da
liberdade do social em relao ao poltico. Se a Revoluo inveno,
desequilbrio, e se ela coloca em movimento tantas foras inditas, a
ponto de transformar os mecanismos tradicionais da poltica, por se
instalar em um espao vazio, ou melhor, por proliferar em uma esfera
at ontem proibida, e subitamente invadida, do poder. Nesse dilogo
entre as sociedades e seus Estados, que constitui uma das tramas
profundas da histria, tudo, atravs da Revoluo, soobra contra o
Estado, do lado da sociedade. A Revoluo mobiliza uma e desarma o
outro: situao excepcional, abrindo ao social um espao de
desenvolvimento que quase sempre lhe vedado. Desde 1787, o reino da
Frana uma sociedade sem Estado. Lus XVI continua a reunir em torno
de sua pessoa o consenso de seus sditos, mas por trs dessa fachada
de tradio h uma debandada geral: a autoridade real, nominalmente
respeitada, no envolve mais em sua legitimidade a de seus agentes.
O rei tem maus ministros, conPagina 40selheiros prfidos,
intendentes nefastos: ainda se ignora que essa velha cano monrquica
dos tempos difceis deixou de exaltar a autoridade do recurso, para
propor o controle dos cidados. uma forma de dizer que a sociedade
civil, onde o exemplo circula de cima a baixo, liberta-se dos
poderes simblicos do Estado, ao mesmo tempo que de suas regras.
Chega 1789: do mais nobre dos nobres ao mais humilde dos camponeses
a "revoluo" nasce no cruzamento de vrias sries de acontecimentos,
de natureza muito diferente, pois uma crise econmica (ela prpria
complexa, simultaneamente agrcola e "industrial", meteorolgica e
social) superpe-se a uma crise poltica declarada desde 1787. E esse
cruzamento de sries heterogneas que constitui o aleatrio da situao,
e que a iluso retrospectiva, desde a primavera de 89, transformar
em produto necessrio do mau governo dos homens, para a reconhecer
os alvos da luta entre patriotas e aristocratas. A situao
revolucionria no se caracteriza somente por essa vacncia do poder,
onde se engolfam foras inditas, e pela atividade "livre" (daqui a
pouco voltarei a discutir essa liberdade) do corpo social. Ela
inseparvel de uma espcie de hipertrofia da conscincia histrica, e
de um sistema de representaes compartilhado pelos atores sociais.
Desde 89, a conscincia revolucionria essa iluso de vencer um Estado
que j no mais existe, em nome de uma coalizo de boas vontades e de
foras que representam o futuro. Desde a origem, ela uma crescente
valorizao da ideia em aetrimento da histria" real, como se ela
tivesse como funo reestruturar atravs do imaginrio o conjunto
social despedaado. O escndalo da represso comea quando essa
represso desmorona. A Revoluo o espao histrico que separa um poder
de outro poder, e onde uma ideia da ao humana sobre a histria
substitui-se ao institudo. Nessa deriva imprevisvel e acelerada,
essa ideia de ao humana toma seus objetivos no avesso dos princpios
tradicionais da ordem social. O Antigo Regime estava nas mos do
rei, a Revoluo o gesto do povo. A antiga Frana era um reino de
sditos, a nova, uma nao de cidados. A antiga sociedade era definida
pelo privilgio, a Revoluo funda a igualdade. Constitui-se uma
ideologia de ruptura radical com o passado, um formidvel dinamismo
cultural da igualdade. A partir de ento, tudo - a economia, a
sociedade, a poltica - curva-se diante dessa fora da ideologia e
dos militantes que a sustentam; qualquer liga, qualquer instituio
provisria diante dessa torrente que no para de avanar.Pagina 41 O
termo ideologia designa aqui duas -coisas que, na minha opinio,
constituem o prprio cerne da conscincia revolucionria. Em primeiro
lugar, que todos os problemas individuais, todas as questes morais
e intelectuais tornaram-se polticas, e que no existe nenhuma
infelicidade humana que no seja passvel de uma soluo poltica. Em
seguida, que na medida em que tudo pode ser conhecido, e
transformado, a ao transparente ao saber e moral; os militantes
revolucionrios identificam sua vida privada com sua vida pblica e
com a defesa de suas ideias: lgica formidvel, que reconstitui, sob
uma forma laicizada, o investimento psicolgico das crenas
religiosas. Se a poltica tornou-se o domnio do verdadeiro e do
falso, do bem e do mal, se ela que traa a linha divisria entre os
bons e os maus, por nos encontrarmos em um universo histrico cuja
dinmica inteiramente nova. Como Marx viu claramente nas suas obras
de juventude, a Revoluo encarna a iluso da poltica: ela transforma
o que era passivamente suportado em algo consciente. Ela inaugura
um mundo onde qualquer mudana social imputvel a foras conhecidas,
repertoriadas, vivas; como o pensamento mtico, ela investe o
universo objetivo de vontades subjetivas, sob a forma de
responsveis ou bodes expiatrios. A ao no mais encontra obstculos ou
limites. mas apenas adversrios, de preferncia traidores: pode-se
reconhecer, pela frequncia dessa representao, o universo moral que
caracteriza a exploso revolucionria. Liberada do cimento do Estado
e das amarras do poder, que mascarava sua degradao a sociedade
recompe-se no plano da ideologia. Esse mundo povoado de vontades,
onde s se reconhecem fiis ou adversrios possui uma capacidade
incomparvel de integrao. Ele abre o que, da em diante poderia ser
chamado a "poltica", ou seja, uma linguagem ao mesmo tempo comum e
contraditria de debates e de aes em torno dos alvos do poder. A
Revoluo Francesa naturalmente no inventou a poltica como domnio
autnomo do saber: se nos restringirmos Europa crist a teoria da ao
poltica como tal data de Maquiavel, e a discusso erudita sobre a
origem histrica da instituio social atinge seu pice desde o sculo
XVII. O exemplo da Revoluo Inglesa mostra que em relao mobilizao e
ao coletivas, a referncia fundamental permanece sendo religiosa. O
que os franceses inauguram no fim do sculo XVIII no a poltica
enquanto campo laicizado e distinto da reflexo crtica, a poltica
democrtica como ideologia nacional. O segredo, a mensagem, o brilho
de 89 esto nessa inveno, que no tem precedente, e que ter uma to
vasta sucesso. E se. de toPagina 42dos os traos que aproximam, com
um sculo de distncia, a Revoluo Inglesa e a Revoluo Francesa,
nenhum deles suficiente para assegurar primeira o papel de modelo
universal desempenhado pela segunda desde que despontou na cena da
histria, justamente por faltar Revoluo de Cromwell, completamente
envolvida pelo religioso e cristalizada por sua preocupao com o
retorno s origens, aquilo que fez da linguagem de Robespierre a
profecia dos novos tempos: a poltica democrtica transformada em
rbitro do destino dos homens e dos povos. A expresso "poltica
democrtica" no se refere aqui a um conjunto de regras ou de
procedimentos destinados a organizar, a partir da consulta
eleitoral dos cidados, o funcionamento dos poderes pblicos. Ela
designa um sistema de crenas que constitui a nova legitimidade
nascida da Revoluo, segundo a qual o "povo" para instaurar a
liberdade e a igualdade, que so as finalidades da ao coletiva, deve
romper a resistncia de seus inimigos. A poltica, tendo-se tornado o
meio supremo de realizao de valores e o inevitvel teste das
vontades, boas e perversas, s tem um ator pblico, transparente a
esses valores, e inimigos ocultos, j que seus desgnios so
inconfessveis. O "povo" definido por seus objetivos, adio
indistinta de vontades boas: atravs desse vis, que exclui a
representao, a conscincia revolucionria reconstri um social
imaginrio, em nome e a partir das vontades individuais; ela resolve
sua maneira o grande dilema do sculo XVIII, que consiste em
conceber o social partindo-se do individual. Se o indivduo deve ser
inteiramente definido pelas finalidades de sua ao poltica, basta
que essas finalidades sejam simples como as da moral, para que a
Revoluo funde ao mesmo tempo uma linguagem e uma sociedade, ou
melhor, que ela funde uma sociedade atravs de uma linguagem: isso
que chamado uma nao. E a festa da Federao. Uma anlise desse tipo
apresenta a dupla vantagem de restituir Revoluo Francesa sua mais
evidente dimenso, que de natureza poltica, e de colocar no centro
da reflexo a verdadeira soluo de continuidade pela qual ela separa
o antes e o depois, a das legitimaes e das representaes da ao
histrica. A ao dos sans-culottes de 93 no importante por ser uma
proeza de um grupo social "popular" (alis, impossvel de definir em
termos scio econmicos), mas por exprimir em seu estado quimicamente
puro essas representaes revolucionrias da ao poltica, a obsesso
pela traio e pela conspirao, a recusa da representao, a vontade
punitiva, etc. Sempre foi e continuar sendo impossvel explicar
essasPagina 43representaes a partir de um estado social' que
comporta interesses contraditrios. Parece-me que a primeira tarefa
do historiador revolucionrio redescobrir a anlise do poltico tal. H
um preo duplo a pagar: de uma parte, deixar de considerar a
conscincia revolucionria como um produto quase "natural" da opresso
e do descontentamento, e de outro, conseguir conceitualizar este
estranho filho da "filosofia" pelo menos na ordem cronolgica. E
neste ponto que reencontro a obra -de Augustin Cochin, qual
consagrado um dos captulos deste livro.13 Com efeito essa obra
inacabada, interrompida, como a de Tocqueville, pela morte, tambm
repleta de interrogaes em cadeia. Desejo evocar inicialmente sua
intuio central como uma maneira de reconhecer tudo o que lhe deve a
organizao gerar deste livro