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Amor e Poder: as relaes afetivas entre homens e mulheres
ativistas negros/as
Paulo Santos Dantas1
Resumo
No Brasil, as pesquisas sobre relaes raciais foram especficas ao
tratar das populaes historicamente subalternizadas. No que se
refere s populaes negras, nas ltimas dcadas os estudos revelaram
que a maioria dos negros/as brasileiros/as ocupa as posies
inferiores no "mundo" do trabalho e na hierarquia social brasileira
(Hasembalg, 1979; Bairros, 1988). E na medida em que outras
pesquisas (cf. Fernandes, 1972; Pierson, 1971; Azevedo, 1955) sobre
os negros em posio de ascenso social se limitavam a anunciar o
processo de embranquecimento por eles vivenciados, tal perspectiva
tenderia a ser vista como uma "traio", isto , uma forma de negar a
cultura negra e o passado de pobreza (cf. Figueiredo, 2002). Para
alm do mercado de trabalho, as populaes negras tm dado, todavia,
novas respostas s desigualdades scio-raciais no nosso pas. Uma
delas foram os casamentos inter-raciais, os quais reforaram em boa
medida a idia de que experimentvamos uma democracia racial
brasileira. O novo contraponto (afetivo) a essas alianas parece
comear a tomar forma: trata-se das relaes afetivo-amorosas
intra-raciais entre negros, as quais tm se produzido em contextos
de atuao poltica ativista. Este artigo pretende, pois, analisar
algumas das razes que possibilitaram a constituio de tais relaes
endogmicas, sobretudo a partir das experincias de ativistas
negros/as sergipanos e baianos/as. Pretende-se demonstrar ainda que
tais vnculos resultam em posio de poder.
1 Graduado em cincias sociais pela UFS, mestre em cincias
sociais (antropologia) pela UFBA,
professor Assistente de Antropologia da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte (UERN) e doutorando em antropologia pela
USP.
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Introduo
Embora este artigo no trilhe a linha de uma contestao dos
artifcios de
pesquisa ou do modo como os dados so coletados e analisados, ele
parte do
suposto que a eleio (obviamente legtima) de certos elementos em
detrimento de
outros, junto com os espaos visitados e percorridos pelo
antroplogo ou antroploga
na inteno de explicar o fenmeno das relaes raciais no Brasil
elucida certas
questes de nossa histria, mas permite no cobre todas as
possibilidades. Parece
bvio, todavia, que normalmente a generalizao no pretendida. Se
isto correto, e
os dados dispostos nos discursos e nas representaes simblicas
dos indivduos
envolvidos nas relaes inter-raciais ou intra-raciais podem ser
recuperados como
matria prima de novas anlises, os dados que mensuraram as
disposies das
relaes matrimoniais e mesmo algumas das razes para que os
distanciamentos e as
aproximaes sociais, econmicas e educacionais podem ser tomados
para o dilogo
com novos agrupamentos de fatores. Ou seja, lado a lado com as
razes encontradas
ou produzidas pelos indivduos envolvidos, por exemplo, em relaes
endogmicas
entre homem preto e mulher preta, que consideraes elas
possibilitaro? Para
responder a esta questo mais uma vez a questo da interpretao,
que tem valor
simblico caro antropologia moderna, deve ser retomada. Este o
momento
propcio para eu descrever alguns percursos do meu estudo, o qual
cruzou, em certos
momentos, com atividades de trabalho, relaes polticas e
afetivas.
E embora metodologicamente fosse mais prtico discutir este ou
aquele espao
de mobilizao poltica, as discusses que pretendo descrever e
analisar retoma os
contextos das atuaes dessas duas entidades negras e explicitam
relaes no
somente polticas e pessoais, mas tambm amorosas, as quais tm
sado dos domnios
dos bastidores das descries interpessoais para ganhar uma
dimenso densa,
conflituosa e pblica no mbito das entidades negras. O contexto
das tenses, que iro
desembocar nas relaes amorosas intra-raciais - pois as primeiras
que resultam as
segundas e no o inverso -, o ponto que me interessa discutir
aqui.
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3
No entanto, no que se refere relao do seu governo e sua relao
com
segmentos que representam os movimentos sociais de negros e
negras, a constituio
da Secretria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Sepir),
ainda que guarde
certas divergncias com alguns grupos daqueles movimentos sociais
e esteja sendo
observada por segmentos miditicos e por grupos que resistem
eleio de polticas
de governo diferenciadas, considero que tal situao demonstra um
trato diferenciado
com os segmentos que se apresentam como representantes da causa
anti-racista.
No que diz respeito aos militantes e organizaes negras
sergipanas, possvel
perceber a participao de alguns de seus membros neste cenrio.
Frente ao valor
simblico de sua representao e considerando a representatividade
que o estado de
Sergipe tem no parlamento nacional, deve-se considerar que a
posio privilegiada no
poder, mas do que o nmero absoluto de membros, produz um valor e
abre novas
perspectivas para organizaes e militantes negros sergipanos.
Quem so os membros
sergipanos que integram a Sepir no importante por ora. Importa
conhecer, isto sim,
os contextos que possibilitaram a mudana de atuao para o mbito
federal, ou
questionar se a sua presena nesses novos espaos representa as
mudanas de
orientao poltica de ordem geral nesses segmentos.2 No que diz
respeito aos
chamados movimentos negros sergipano, considero que sim, mas
tais mudanas no
aparecem como o resultado de uniforme de maturidade poltica
interna. Diferente
disto, este texto sugere que as tenses polticas, mas que um
projeto poltico
uniforme, marcam mais as mudanas pelas quais passam os
movimentos negros
brasileiros contemporaneamente.
No estado de Sergipe, a organizao dos movimentos sociais negros
seguiu o
curso histrico da reformatao ou da efervescncia dados movimentos
sociais desde
a redemocratizao da sociedade brasileira a partir dos finais dos
anos 1970 e 80. A
sua atuao poltica, at o final da dcada de 1980, orientou-se
precisamente pela
denncia da presena de preconceito e discriminao racial. O
desenvolvimento das 2 Importa tambm, no entanto, considerar que
para aquela secretaria for admitido um casal de
militantes negros. Longe de legitimar as coincidncias, h,
contudo, uma coerncia poltica, a saber: os membros que seriam
convidados a participar da referida secretaria deveriam estar
sintonizados com as orientaes polticas que ali se processariam.
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aes dos movimentos negros em Sergipe nos anos oitenta tem
basicamente trs
caractersticas: a primeira, marcada pela criao da Casa da
Cultura Afro-Sergipana no
final da dcada de 1960, a continuaria a desenvolver as suas
atividades at a dcada
de 1990. Considera-se que a atuao daqueles movimentos negros tem
especialmente
a marca cultural3, razo pela qual deve-se supor a dicotomia com
a ao poltica dos
demais movimentos sociais emergentes no mesmo perodo.
Interessa-me neste texto analisar os contextos no interior dos
quais so
produzidos os discursos e as tenses em prol da constituio de
relaes intra-raciais
entre ativistas negros/as sergipanos, as quais, desde a ltima
metade da dcada de
1990, se fortaleceram, sobretudo, em duas entidades negras: a
Sociedade Afro-
Sergipana de Estudos e Cidadania (Saci) e a Associao Aba de
Arte-Educao e
Cultura Negra. Utilizaremos como recurso metodolgico para tal
anlise a noo de
indivduo em ..., as representaes individuais e coletivas de mile
Durkheim... Estas
reflexes dialogaro dinamicamente com os dados da pesquisa de
campo, de modo
que nos propomos a chegar a consideraes valiosas acerca dos
significados das
relaes afetivas e da noo de poder no mbito dos movimentos negros
sergipanos
na dcada de 1990.4
3 Este aspecto mais visualizado atravs da literatura sergipana
sobre movimentos sociais.
4 Participei, como bolsista de iniciao cientfica, entre 1998 e
99, do projeto Raa, identidade e
territorialidade: a construo de uma identidade negra em Sergipe,
o qual foi coordenado pelo professor Paulo Srgio da C. Neves
Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de Sergipe.
Na ocasio, participamos de reunies, atividades e eventos de
entidades negras ligadas ao Frum Estadual de Entidades Negras de
Sergipe (FENS), o qual foi criado em meados dos anos 1990.
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5
III - Os meandros das tenses polticas entre entidades negras
sergipanas
A dcada de 1990 crucial para entendermos o contexto das mudanas
pelas
quais passaram as entidades, os homens e as mulheres negras
ativistas, enfim, os
movimentos negros5 organizados no estado de Sergipe como um
todo. Este perodo
crucial para entendermos o contexto da mobilizao poltica
daqueles segmentos,
dado que ali foi gerada uma nova orientao, isto , de uma postura
poltico-discursiva
predominantemente denunciatria e contestatria da presena de
preconceito e
discriminao racial, passou-se a desenvolver aes com a designao
eleita pelas as
Organizao No Governamentais - Ongs (negras) - como
propositivas6.
certo que algumas organizaes e militantes negros continuariam
com as
denncias, pois, conforme os seus argumentos, os quais foram
confrontados com
observaes por mim realizadas, alguns problemas cujas
desigualdades baseadas nos
grupos raciais continuam presentes. Estas atuaes, todavia,
perderam prestgio e
visibilidade na sociedade sergipana como um todo, ocupando um
lugar comum da
atuao militante. Esse lugar comum tanto foi produzido pelas
instituies
hegemnicas e seus representantes, como pelas instituies negras,
as quais se
apropriaram da forma e dos discursos do movimento das Ongs7, na
medida em que se
propuseram a pensar polticas que pudessem minimizar as
desigualdades raciais.8
5 O termo movimentos negros, no plural, e no movimento negro, no
singular, sinaliza uma mudana de
percepo que mais significativa para aqueles que estudam tal
universo poltico, que para os ativistas que ali atuam. 6 Dizer o
que significa.
7 Qdo se d tal movimento e qual a sua repercusso
8 Anti-racistas, essas medidas dizem respeito a projetos de lei
municipais que buscavam deslegitimar
propagandas que privilegiavam, explicitamente, o grupo branco,
como nas propagandas que exigiam boa aparncia para ocupao de
empregos no mercado de trabalho. O domnio da educao formal e dos
espaos pblicos se constituiu, contudo, como a base das novas
mobilizaes, pois esteve no centro do debate de instituies e grupos
os mais diferenciados. A mobilizao de segmentos negros no campo da
sade pblica tambm se incorporou a estas novas propostas de atuao.
Ela, todavia, parece ter sido mais objeto de profissionais
especialistas, os quais trouxeram para o domnio poltico as
especificidades dos problemas enfrentados pela populao negra.
Bibliografia
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Dadas as especificidades de aes e a despeito do reconhecimento
de algumas
demandas polticas em comum, conforme pude discuti durante o meu
trabalho de
mestrado,
(...) o movimento negro brasileiro no uma entidade que construiu
estratgias, valores e perspectivas em torno de um projeto poltico.
Antes, a idia de movimento aqui analisada como um processo de
organizao poltica e/ou cultural de construo de projetos e orientao
ideolgica, que descreve uma forma elstica de atuao. (cf. Dantas,
2003: 89).
Opto, deste modo, pela acepo segundo a qual tal segmento
entendido e
descrito no plural. Isso implica em dizer que, normalmente, a
utilizao da categoria no
singular ou no plural no implica, para os membros que a atuam,
em diferenciaes
de atividades, discursos e aes distintas na histria de cada
atuao, na forma, nos
recursos utilizados e na dimenso simblica que produz a referncia
identitria das
organizaes negras reconhecidas como integrantes dos movimentos
negros.
Para entender os efeitos destas distines, os movimentos negros
sergipanos
devem ser entendidos9, neste texto, a partir de uma srie de
organizaes polticas
que se colocando ora como autnomas no que se refere sua definio,
ora como
distintas no que diz respeito ao seu contedo temtico10,
mobilizaram diversos
indivduos em torno de orientaes polticas dinamicamente
definidas. Este texto no
pretende, contudo, descrever as atuaes de entidades negras
diversas. O meu
9 O incio da dcada de 1990 marca diferenas importantes para os
movimentos negros. Em 1991
criada a CONEN Coordenao Nacional de Entidades Negras -,
organizao que postulava construir um projeto poltico que pode ser
visualizado em duas direes: na primeira, reconhecer-se-ia as
demandas polticas diferenciadas de entidade para entidade (e mesmo
de regio para regio), situaes que impossibilitaria um programa
centralizado de aes pensadas por uma cpula que distribuiria as
atividades pelas entidades que se multiplicariam como clulas; a
segunda direo tomada pela Conen liga a primeira caracterstica com a
perspectiva de construir uma proposta ou estratgia ampla e
sintonizada de participao ou conquista do poder poltico estatal.
Tais investimentos implicaram numa ciso com O Movimento Negro
Unificado (MNU), que foi criado em So Paulo, em 1978, e alcanou o
seu auge na dcada de 1980. A forma como o MNU buscava ampliar a sua
atuao era atravs da promoo de encontro com militantes e mesmo
pequenas entidades negras. Os Encontros de Negros organizados por
esta ltima entidade, os quais eram focados em discusses amplas e
abertas acerca das questes raciais, funcionavam como uma das
plataformas de filiao de novos integrantes mesma. Cf. Dantas, 2003,
cap. 2 e 3; Ver tambm Silva, 2001. 10
A atuao, financiada por organizaes nacionais e internacionais,
junto comunidades negras, assessoria jurdica ou a outras entidades
negras na sua organizao, descreve um modo de atuar. A organizao de
blocos afros, da capoeira angola e de outras atividades similares
do mundo cultural sinaliza para outro(s) modo(s) de atuao poltica
militante.
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7
objetivo apontar algumas dessas diferenciaes, as quais produzem
elementos
orientaes normativas e discursos, os quais se apresentam de
forma importante para
explicar as tenses experimentadas por homens e mulheres
ativistas do ponto de vista
de suas relaes amorosas endogmicas.
O surgimento de um grande nmero de entidades negras na segunda
metade
dos anos 1980 e incio dos 90 possibilitou a insero de um nmero
tambm
expressivo de mulheres negras nesses espaos. Em certos
contextos, como o caso de
instituies negras sergipanas, as mulheres negras teriam a
oportunidade de no
somente discutir a temtica de suas trajetrias e os significados
que elas deveriam
ter, como tambm tais grupos puderam se multiplicar nas
estruturas da gesto ou do
poder destas instituies. Essa insero deu-se primeiramente pelo
seu envolvimento
e habilidade para discutir a problemtica da populao negra,
depois pela nova
configurao da poltica e dos movimentos sociais modernos, os
quais revelaram uma
srie de identidades at ento esvaziadas de demandas polticas. A
presena, a
importncia e o protagonismo da mulher negra no mundo
contemporneo dividiram o
espao do poder com o homem negros nesses domnios, alterando a
sua imagem e das
instituies que participavam, como tambm os seus projetos
amorosos.
As orientaes polticas sobre as quais estou me debruando tendem a
mobilizar
indivduos em instituies entidades negras formalmente
constitudas, medida que
estas ganham visibilidade e prestgio neste espao de atuao.
Nesses termos, essas
orientaes podem ser tambm entendidas como efeito de um processo
de
construo de identidades e referncias dinamicamente constitudas,
cuja dimenso
poltica tem, de fato, homens e mulheres ativistas como
protagonistas de aes
reconhecidas no interior dos movimentos negros. Por este motivo
a insero de
indivduos em organizaes negras institucionalmente constitudas
aqui entendida
como uma atuao orgnica, enquanto a atuao individualizada, isto ,
no
articulada com filiao a organizaes negras, entendida como
no-orgnica.
Essas atuaes orgnicas e no orgnicas ganharam legitimidade e
importncia simblica diferenciadas no interior desses segmentos,
de modo que, para
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8
o indivduo a inserido, entender-se e ser reconhecido como
ativista significa agregar
valor s suas potencialidades individuais. Isso implica em dizer,
tambm, que tanto a
identidade negra, que mobilizada como instrumento poltico,
quanto as
potencialidades discursivas e de articulaes de ativistas nesses
meios, so
normalmente acionadas com vistas a produzirem um status no
interior do prprio
campo. Esse status, percebido na referncia que ativistas fazem
de outros ativistas,
potencializa habilidades individuais que so reconfiguradas e
acionadas no mbito do
jogo realizado no seu espao de atuao.
De todo modo importante observar que a militncia no orgnica,
cuja atuao
dispe de lgica e instrumentos prprios, sobretudo discurso, mas
tambm silncios,
ausncias e boicotes, tambm continuou produzindo as suas aes, de
forma que em
alguns momentos de sua atuao o capital discursivo e simblico
desses ltimos
ganhou visibilidade social notria. Ou seja, mais que a atuao em
instituies negras,
a habilidade com que militantes orgnicos e no-orgnicos utiliza
os instrumentos de
que dispem que o projeta dentro dos movimentos negros e fora
deles.
A idia ativista orgnico nos movimentos negros provm da noo de
intelectual
orgnico descrita por Gramsci (ano). Para este autor, o mundo
capitalista trouxe
consigo uma srie de mudanas, assim como fez emergir novos
sujeitos, os quais
desempenhariam papis distintos. Na medida em que a chamada
classe burguesa, ao
desenvolver-se no Regime Feudal, trouxe consigo o empresrio
capitalista, com ele
tambm vieram o economista, o tcnico da indstria, o advogado, o
administrador,
enfim, o organizador das mais distintas esferas do Estado. Esses
novos sujeitos so
descritos por Gramsci como os intelectuais ou os funcionrios da
superestrutura,
aqueles responsveis pelas novas formas assumidas pelo Estado e
pela sociedade. De
outro lado, opondo-se quele grupo, haveria a classe operria,
que, segundo Gramsci,
teria os seus prprios intelectuais, os quais comandariam as
mudanas sociais,
pensadas desde Marx. 11 O que os mov. Negros tem a ver com
isso?
11
A realidade do mundo capitalista se transformou de forma
extraordinria desde os seus primeiros desdobramentos no sculo
XVIII. O perodo que me interessa analisar (a dcada de 1990), do
mesmo
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9
No que se refere ao reconhecimento poltico, ou produo de capital
simblico
(Bourdieu, ano) nos movimentos negros sergipanos, este implica
na mobilizao de
algumas situaes concretas. Deve-se destacar que, comumente,
ativistas que
integram entidades anti-racistas cuja atuao reconhecida dentro e
fora do
meio, institucionalizaram as suas aes polticas e, junto a elas,
criaram o seu prprio
espao fsico12, tiveram maiores chances de serem reconhecidos.
Tal
reconhecimento, por eles produzido primeiramente dentro do seu
domnio de
atuao, tender a ser posto prova em outros domnios.
Os movimentos sociais e os partidos polticos so os principais
domnios que no
exatamente se opem a atuao dos movimentos negros, mas que
possibilitaram a
construo de uma identidade poltico-cultural contrastiva. Junto
constituio de
entidades negras, a formao do Frum Estadual de Entidades Negras
de Sergipe (em
1991)13 e a sua consolidao na segunda metade daquela dcada,
formam as duas
situaes concretas que, a meu ver, potencializaram o prestigio
das entidades negras
como um segmento diferenciado dos demais movimentos sociais,
projetando alguns
dos seus ativistas, mas do que outros. Todavia, no que tange s
disputas e s tenses
internas quele coletivo e s demais entidades negras no frum de
entidades ou
fora dele, a Saci foi a organizao que com mais habilidade,
processou o prestgio e a
modo que os segmentos que me motivam a pensar a sua mobilizao,
isto , homens e mulheres militantes dos movimentos negros,
mobilizam percepes e interaes do mundo social contemporneo
profundamente diferenciadas do mundo experimentado pelo operariado
clssico analisados pela teoria marxista durante ps Karl Marx. A
referncia noo de hegemonia em Gramsci aqui se deve percepo de que
certas trajetria polticas foram, de fato, marcadas por essas
influncias, as quais tiveram a sua importncia. No que se refere ao
perodo contemporneo, deve-se observar, entretanto, que essas marcas
ou influncias clssicas deixaram de ser dominantes no interior dos
movimentos negros brasileiros. A dcada de 1990, junto com uma srie
de desdobramentos das tenses entre o mundo capitalista e o
comunista, apresentam-se como um smbolo, o qual representa o
fortalecimento da dinmica do primeiro sistema scio-econmico, mas
tambm o dinamismo identidades culturais que reivindicaro o seu
lugar no mundo globalizado (citar autores). 12
Isto , a sua prpria sede. 13
A criao Frum de Entidades Negras de Sergipe foi inicialmente
pensada e articulada pelos dirigentes da Sociedade Afro-Sergipana
de Estudos e Cidadania, entidade que havia participado da criao da
Coordenao Nacional de Entidades Negras (Conen) no mesmo perodo, e
por conta disso tinha objetivos definidos frente direo daquele a
aos seus projetos para aquele frum.
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10
visibilidade simblica, os quais trouxeram consigo o que no
pretendiam: as acusaes
de ter defendido os seus interesses em meio aos demais (Dantas,
2003, pp. 97-98).14
importante desde j destacar que este reconhecimento simblico,
que
marcado por tenses, mas tambm por habilidades retricas e por um
tratamento
estrategicamente polido com as relaes internas, projetou,
sobretudo, os homens
negros. Frente s mulheres negras, tradicionalmente esses
ativistas puderam
promover as suas mobilidades scio-econmicas com menos
dificuldades. Ao mesmo
tempo eles estiveram mais prximos e interessados (organicamente)
pela poltica
estatal.15 Essas potencialidades e interesses podem ser
mensuradas a partir das
filiaes de homens militantes a partidos polticos desde a dcada
de 1980.
Na segunda metade da dcada de 90 os partidos polticos, sobretudo
no campo
da esquerda, tornaram-se o espao privilegiado das disputas por
poder empreitadas
por aqueles segmentos. Antes disso, tinha-se uma circulao um
tanto amadora e
mesmo marginal por esses meios. Este desdobramento,
imprescindvel para entender
a entrada formalizada de uma nova gerao de homens e mulheres
militantes
sergipanos nos partidos de esquerda a partir de sua filiao,
marca os seus novos
investimentos num campo cujas regras do jogo e as relaes a
postas apresentam
uma histria e um formato diferenciado da que estavam acostumados
a conviver.
Poder e regras do jogo, segundo Bourdieu.
Do ponto de vista do interesse em participar dos espaos do poder
e mesmo de
conquist-lo, o movimento em direo ao campo dos partidos de
esquerda reflete a
motivao por conhecer e dominar as regras do jogo mencionadas por
Pierre
Bourdieu (ano).
14
Em algumas reunies daquele frum, cujo centro das discusses
girava em torno de alguma ao frente aos grupos que se opuseram ao
FENS, militantes e entidades negras que atuavam fora dele, podia-se
perceber maior concordncia poltica entre os grupos hegemnicos e
no-hegemnicos no coletivo. 15
Esta percepo est longe de deduzir que as mulheres negras s
recente tomaram conhecimento da importncia da vida poltica
partidria nas suas vidas. O que se deve ponderar que,
perversamente, a emergncia das mulheres no campo da militncia
partidria reflete o ocultamento deste segmento como protagonista de
seus prprios interesses, demandas e conquistas.
-
11
A dcada de 1990 e os anos subseqentes marcaram, portanto, esta
idealizao
para sinalizar a legitimao dos movimentos sociais negros, mas no
apenas como um
segmento autnomo, com percepes e demandas prprias. Este perodo d
um novo
salto, ou, em outras palavras, rev relaes de parceria, buscando
formaliz-las.
neste perodo que h uma profissionalizao e provocao das
instituies negras
frente aos indivduos a mobilizados a pensar a sua trajetria com
vistas a uma
capacitao de tal modo diferenciada das dcadas de 1980 e,
sobretudo da de 70, que
os resultados podem ser visibilizados em trs frentes: aquela que
apresenta os
movimentos negros mais modernos e seus ativistas como os
porta-vozes de um
projeto amplo que inclui polticas especficas no campo da educao,
da sade e do
mercado de trabalho; a participao no poder estatal; e outra que
se amplia mais para
dentro de suas atuaes e vai implicar no questionamento de
interesses e vontades
individuais, produzindo, inclusive, uma moralizao dessas
vontades: a situao que
mais percebo como uma problemtica interna (mas que se estende
sobre universos
exteriores) so as relaes endogmicas, ou seja, o binmio homem
negro - mulher
negra.
A moralizao dessas vontades individuais, as quais devem ser
melhor
entendidas como vontades frutos de processos histricos e
sociolgicos e sociolgicos
para alm do indivduo, esto fundadas no questionamento e na
rejeio tcita de
relaes inter-raciais, isto , negros com brancos.
Essas tenses tornaram-se presentes nos movimentos negros como um
tudo.
Mas do que a sua presena, talvez as tenses sejam um dos recursos
mais bem
sucedidos de militantes e entidades negras para promoverem a sua
visibilidade e
produzirem a sua legitimao poltica ou seu capital simblico.
Embora esse
instrumento simblico seja utilizado de forma dinmica, pois
assume contedos
distintos na medida em que as relaes entre as entidades negras
(mais de ordem
institucional) e aquelas entre militantes (ora informais, ora
formais), deve-se
considerar que as tenses no constituam exatamente uma situao
normativa, mas
com ela alguns temas nunca tratados ganharam uma importncia
capital.
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12
Pude perceber, por meio de trabalho de campo, como tais situaes
so
construdas nas relaes dos movimentos negros com o campo da
esquerda, de
entidade para entidade ou entre militantes. O captulo a seguir
discute o contexto das
tenses entre homens e mulheres negras ativistas dos movimentos.
Essas tenses,
descritas a partir de duas organizaes negras sergipanas (a Saci
e a Associao Aba),
tiram ou resgataram (Foucault) as relaes amorosas endogmicas
entre negros do
mbito privado e desconhecido dos bastidores dos movimentos
negros ou de suas
entidades para se tornarem pblicas, problemticas, recorrentes e
um smbolo de
atitude politicamente correta e recurso de poder.
II - Como o trabalho de campo foi aqui utilizado e qual a
importncia
O trabalho de Wagner Gonalves (2006), nos auxilia, de forma
dinmica, para a
discusso no que tange reflexo sobre a observao participante16,
pois esta se
coloca na posio contrria qual refutaria a antropologia de
gabinete, refutando-a.
Para ele, mais que a construo de um novo instrumento de
pesquisa, a observao
participante permitiu uma relao de tal modo diferenciada entre
pesquisador e
pesquisado17, que o antroplogo se tornava ele prprio o
instrumento de pesquisa. Em
seus termos, o antroplogo propiciaria antropologia a perspectiva
intersticial (o
olhar desde dentro) que sua ferramenta bsica, sua marca
registrada, desde ento
(Gonalves, 2006:13).
16
definida por Bronislaw Malinowski como a convivncia ntima e
prolongado do pesquisador com os seus sujeitos de pesquisa, ou,
como entre os mais tradicionais, os seus informantes nativos (Cf.
Gonalves, 2006: 13). 17
No mundo ps-colonial esta relao entre pesquisador e pesquisado,
comumente entendida como de mo nica, possvel de ser invertida. Esta
discusso retomaria a problemtica sobre a impossibilidade tanto da
manuteno do laboratrio quanto do objeto antropolgico, entendidos ao
modo das cincias naturais. Colocar num mesmo texto o incio e o
trmino desta discusso significaria ter que modificar toda a
perspectiva deste texto e pleitear a metade de uma dcada para novos
e profcuos estudos. O prprio Gonalves (op. cit., 13) destaca que a
partir do contexto de descolonizao, nos anos 1960, dos povos
tradicionalmente estudados pela antropologia e das mudanas das
relaes polticas e econmicas entre as sociedades destes dois
sujeitos, o tema, o limite e os objetivos do do trabalho de campo
como texto etnogrfico ressurgiu de forma poderosa. A este respeito
ver Histria da antropologia, de Paul Mercier (ano).
-
13
Da dcada de 1960 para c a antropologia passou por uma srie de
mudanas,
ou ao menos aqueles dentro deste domnio buscou tornar as
convices clssicas
objeto da teoria antropolgica. A antropologia interpretativista
de Clifford Geertz, nos
anos 70, ergue-se, conforme Gonalves, sobre a desconfiana com
relao
capacidade explicativa das representaes culturais holsticas e
fechadas do outro.
Nos anos 1980, a antropologia norte-americana passa a ver a
prpria produo
etnogrfica como objeto de interpretao, isto , como uma espcie de
contraponto a
um primeiro tempo das interpretaes e do texto gerado acerca das
culturas. Este
segundo momento dos meta-etngrafos e de suas meta-narrativas,
cujas
preocupaes, segundo Gonalves, recaam sobre questes relativas ao
prprio
processo de produo das representaes antropolgicas (Cf. Gonalves,
2006:13-
21). Fazer consideraes acerca do que eles diz.
A primeira perspectiva de coleta de dados e reflexo terica
admite essas
complicaes modernas, as mesmo tempo em que a circulao facilitada
pelos
domnios dos movimentos negros e das relaes mais individuais ali
produzidas ali
produzidas permitem, mais facilmente, a apreenso dos discursos
para sinalizar ursos
ou das razes que aqueles militantes teriam para no-falar. Poder
marcar uma
entrevista/conversa com um militante, na praia, ou com um casal,
na sua casa ou
apartamento, ou ser convidado para almoar/jantar em suas
residncias com suas
famlias, constitui, de fato, uma dimenso privilegiada do
antroplogo que esta
possibilidade. Tambm certo que as complicaes com os interesses
dos indivduos
entrevistados/as pode sinalizar as suas pautas polticas e no
reflexo antropolgica.
Admitir tais possibilidades, descrev-las e enfrent-la constitui,
tambm, do meu
ponto de vista, a tarefa corajosa e disciplinada do profissional
em antropologia.
Para discutir as possibilidades e dimenses das relaes
amorosas/afetivas entre
negros, inclusive se eles e elas se perceberem como militantes,
preciso sinalizar ao
mesmo tempo as possibilidades e os valores que produziram o seu
oposto: as
relaes amorosas/afetivas inter-raciais. Essas relaes que, num
esquema
quantitativo/qualitativo, representam, no nosso imaginrio, um
quadro de
-
14
representaes opostas, tm mobilizado os segmentos inter-raciais
envolvidos,
ativistas e acadmicos a pensarem tanto os seus impedimentos
quanto as suas
possibilidades de consolidao scio-culturais. O que tenho notado
que as
discusses, os nmeros apresentados pelas estatsticas, as
perspectivas polticas de
lado a lado e os dados da pesquisa scio-antropolgica, formam um
conjunto de
elementos capazes de revelar uma interpretao das experincias
amorosas e
democrtica brasileira. Esta interpretao no d conta, nem deve ser
sua
pretenso, de relaes no mencionadas.
Isto me faz considerar, preliminarmente, que as relaes amorosas
dentro ou
fora do grupo e ou os dados de pesquisa rigorosamente
organizadas com vistas a
produzir reflexes e consideraes que nos permitam conhecer as
razes e os
significados razoveis dessas experincias, permitem, todavia,
novas reflexes e
investigaes, pois elas prprias se constituem, tambm,
representaes e
ressignificaes da experincia humana objeto de seus estudos.
Alguns dados sobre cor e casamentos na literatura
Em Razo, cor e desejo18, Laura Moutinho destaca que as anlises
sobre a
dinmica dos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais
estavam abandonadas
desde os trabalhos de Thales de Azevedo, em 1975. Segundo ela,
foram as pesquisas
quantitativas que possibilitaram a revitalizao desses estudos,
provocando, inclusive,
o desenvolvimento de novas pesquisas e a organizao de
componentes aos
fenmenos e tendncias por elas demonstradas. Conforme os seus
estudos, h um
relativo consenso, independente do vis interpretativo, nos novos
estudos acerca
dos dois tipos de motivaes para a constituio de casamentos
inter-raciais: a
perspectiva assimilacionista e a motivao de natureza mais
demogrfica (cf.
Moutinho, 2004: 34).
18
Moutinho, Laura. Razo, cor e desejo: uma anlise comparativa
sobre relacionamentos afetivo-
sexuais inter-raciais no Brasil e na frica do Sul. So Paulo:
Unesp, 2004, captulo 1.
-
15
A sinalizao de Nelson do Valle Silva (1987: 54), para quem o
casamento entre
grupos minoritrios e majoritrios teria sido constantemente
utilizado como
indicador do grau de assimilao das minorias, transforma este
modelo de explicao
paradigmtico, segundo Moutinho (2004: 34), num locus
privilegiado das mais
variadas interpretaes sobre a miscigenao e preconceito racial. O
segundo ponto,
isto , a motivao de natureza mais demogrfica, subdividida por
Silva em quatro
fatores, os quais sero considerados neste tipo de anlise, a
saber: a) o tamanho dos
grupos de cor; b) a razo da masculinidade; c) o conceito de
distncia social; d)
um padro de concesso de status como elemento de explicao para o
encontro
afetivo-sexual entre o homem escuro e a mulher clara (Apud
Moutinho, 2004, pp.
34-35). Destes quatro fatores, interessa-me, sobretudo, as
discusses sobre o tamanho
dos grupos e a chamada razo da masculinidade, por considerar
que, juntos, me
ajudam a pensar outras razes para as relaes que eu chamo de
amorosas entre
homem negro e mulher negra ativistas.19
Para Silva, o que determina as relaes dentro dos grupos raciais
o seu
tamanho. Ou seja, quanto maior o grupo, maior a proporo de
pessoas se casando
dentro do grupo (Silva, 1987: 56). Moutinho considera, contudo,
que a partir do
Censo demogrfico de 1980 pode-se perceber que as propores de
grupos brancos
e de pretos vm diminuindo numa relao inversamente proporcional
ao grupo de
pardos, que vem aumentando. Estes dados a fazem considerar que,
a manuteno
de alguns fatores, em condies de igualdades, produziriam maiores
condies para
casamentos endogmicos entre brancos do que entre outros grupos,
na medida em
que este se constitui o grupo maior, em termos absolutos. Este
seria o primeiro
elemento do dilogo com as explicaes de Valle (cf. 2004: 35).
19
As categorias negro, branco e mulato, assim como a de raa e
inter-racial so utilizadas entre aspas primeiramente porque, no
dilogo com a literatura especializada, formamos um acordo de
compreenso quanto ao problema da naturalizao das mesmas. Isto ,
para os efeitos das discusses tericas no campo da antropologia
contempornea tais categorias devem ser entendidas como construes
scio-culturais ou polticas, as quais devem ser entendidas em seu
contexto de produo simblica. Em outros termos, admite-se que dentro
da categoria negro, por exemplo, existam grupos que, tomando
critrios diferenciados de classificao, poderiam ser reconhecidos
como no-negros mulatos em alguns casos e at brancos em outros.
-
16
No que diz respeito aos nmeros relativos ao quantitativo de
homens e
mulheres, registra-se mais mulheres que homens. O mesmo dado se
distingue,
todavia, entre os chamados grupos de cor. Conforme Moutinho, no
grupo branco
h um dficit maior de homens, enquanto que nos grupos pardos,
pretos e
amarelos ocorre justamente o oposto. Os grupos pardos e pretos
se
assemelhariam nos itens renda e taxa de fecundidade,
diferenciando-se do grupo
branco, o qual teria maior renda e menor taxa de fecundidade.
Elza Berqu (1998)
foi quem trouxe mais dados sobre a populao brasileira no que diz
respeito
categoria cor, focalizando, sobretudo, a freqncia com que a
populao auto-
declarada preta crescia. Esses dados tratam de mortalidade e
nupcialidade.
Tomando os seus dados e as suas consideraes a partir do que nos
diz Moutinho, em
termos relativos, podemos perceber, nas ltimas quatro dcadas, um
aumento do
grupo pardo e uma diminuio das populaes brancas e pretas.
Segundo as
pesquisas de Berqu, tanto os homens pretos quanto mulheres
pretas20 se casam
mais tarde que os homens bancos ou pardos [grifos da autora]
(apud Moutinho,
2004, pp. 40-41)21.
Esses casamentos fora do grupo seriam explicados, no Brasil,
como um
fenmeno intra-classe e no como endogamia racial, j que aqui
tendemos a
perceber a cor e a posio scio-econmica como estando diretamente
relacionadas
(Moutinho, 36). A pirmide etria por cor, no Brasil, conforme a
autora, evidencia
diferenas gerais na quantidade de homens e mulheres entre grupos
distintos e idade
dos indivduos. A estes fatores de ordem demogrfica Nelson do
Valle chamou de
razo de masculinidade ou razo dos sexos. Os dados mostraram que,
quando o
indicador a educao, para todas as combinaes de cor dos cnjuges,
o nvel
20
Chama a ateno o nmero de mulheres solteiras com 50 anos. As
mulheres pretas representam um universo de 13,4%, enquanto as
pardas correspondem a 8,0% e as brancas 7,7%. Fonte: Berqu (1998).
21
O primeiro casamento, dir a autora, ocorre entre 15 e 35 anos.
Mas a o grupo de homens brancos estar minoritariamente, enquanto
observar-se- a maior freqncia de mulheres brancas e homens
no-brancos.
-
17
educacional predominantemente equilibrado22, embora seja maior a
ocorrncia de
homens mais educados que as esposas.23
IV - Algumas das dimenses das relaes amorosas na Saci e na
Associao Aba
A estas consideraes e aos dados que elas representam quero
trazer, para o
dilogo, algumas prticas e discursos de homens e mulheres que se
entendem como
negros, mas tambm com ativistas. Os seus discursos inundados pro
tenses e
cumplicidades, representam o jogo dentro do qual esto envolvidas
as relaes entre
tais sujeitos no mercado das relaes amorosas. As categorias cor,
raa, negro
e negra, do mesmo modo que o mundo de representaes
significativas dos
movimentos negros, so aqui entendidas como atravessadas por
contextos polticos
internos queles segmentos no que se refere legitimao de certos
debates e
demandas polticas. O que norteiam estas categorias e as
posicionam num lugar
privilegiado de tenses frente ao poder pblico estatal e as
instituies que o
representam a perspectiva de poder que homens e mulheres
ativistas postulam
desenvolver no mbito de suas relaes com esses outros segmentos.
O ponto nodal
desta discusso apresentado a seguir a partir dos contextos que
tornaram possveis
relaes intra-raciais entre homens negros e mulheres negras
militantes dos
movimentos negros sergipanos.
Em fins de 1996 e incio de 97, quando ainda fazia a graduao,
tive a
oportunidade de conhecer duas entidades negras: A Associao Aba
de Arte
Educao e Cultura Negra, antigo Grupo Aba de Capoeira Angola, e a
Sociedade Afro-
Sergipana de Estudos e Cidadania (Saci). Na primeira instituio,
que atuava sobretudo
com a capoeira angola e buscava desenvolver aes voltadas para
crianas e
22
Por fim, em trabalho mais recente, nos diz Moutinho, Silva
(1991) abordaria a estabilidade temporal e as diferenas regionais
na seletividade matrimonial [grifos meus], confirmando a hiptese de
autores anteriores conforme os quais o desenvolvimento econmico
reduz as distncias entre os grupos raciais. Esses autores foram,
sobretudo, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Carlos Hasembalg
(Cf. Moutinho, 2004: 39). 23
Este dado se difere somente quando o casamento do homem pardo
com a mulher preta.
-
18
adolescentes, pude me envolver em suas atividades, semanais,
durante trs anos, isto
, at o incio do ano 2001, quanto migrei para a cidade de
Salvador/Bahia para
realizar o mestrado em Cincias Sociais. Com a Saci, cujas
atividades eram
diversificadas na medida em que assessorava tanto comunidades
rurais negras, quanto
outras instituies negras (de menor porte), a minha insero foi um
pouco mais breve
dois anos apenas. Tendo sido primeiramente criada, segue a
descrio da Saci.
Antiga Unio dos Negros de Aracaju (Una), a qual foi criada em
1986 com vistas a
dar visibilidade poltica ativista e confrontar a presena de
preconceito e discriminao
racial contra a populao negra nos estado de Sergipe, a Saci
(Sociedade Afro
Sergipana de Estudos e Cidadania) alcanou o seu auge de
organizao e de
empreendimentos de polticas durante a dcada de 1990. Enquanto
Una, esta
entidade foi formada por homens e mulheres negras (e
mestias/os)24, os quais se
propuseram, junto s denncias de preconceito e discriminao
racial, tambm
construo de uma identidade negra positiva frente populao de
ascendncia
africana no-militante. Nesta direo, ao passo que se mobilizavam
para produzir uma
perspectiva poltica e cultural de identidade negra, tais homens
e mulheres ativistas
dinamizavam a sua prpria identidade cultural coletiva, a qual ir
repercutir sobre as
individualidades no campo dos movimentos negros naquele
estado.
Mesmo no que tange identidade de militantes, ou apesar de sua
construo
simblica, o lugar da identidade negra nesses meios no se
apresenta to rgido
quanto possvel supor dados os discursos, ou a possibilidade de
uma representao
nesses moldes s pode ser percebida elencando valores e prticas
do ponto de vista
que se percebe negro e manipula outras referncias sem que esta
perca o seu capital
simblico no mbito de suas praticas discursivas. Por conta disto,
pode-se perceber
que entre indivduos reconhecidos como mestios, isto , sem a
marca singular da
melanina e dos padres de classificao por ela provocados na
sociedade sergipana,
possvel que passem a ser entendidos com negros, se a esta nova
classificao
pretendida foram incorporados uma sria de prtica corporais e
comportamentais
24
-
19
que acusem, nesses meios, a presena de uma nova forma de se
perceberem no
mundo social. Estas prticas dizem respeito forma como
reutilizaro os seus cabelos,
as suas roupas, mas tambm nos meios e nas relaes que nascero
dessas novas
formas de percepo. Os movimentos negros, as instituies negras
que deles fazem
parte, os espaos de circulao por eles produzidos e etnizados,
assim como os seus
membros que a partir deles fazem a manuteno do que so e do que
postulam
quem os (novos) que por a circulam devem ser, provocam, como
pude ver, que
indivduos normalmente reconhecidos como negros, mestios e
mesmo
brancos repensem as suas representaes identitrias. Todos esses
elementos e
sujeitos produzem uma dimenso coletiva que se ope negao da
identidade negra
ou silencia frente s normatizaes sociais ou aos privilgios que
algusn grupos teriam
diante da populao negra.
Esta dimenso coletiva da identidade cultural foi poderosamente
acionada por
mulheres negras ativistas, as quais, enquanto ativistas, tiveram
mais visibilidade em
entidades negras orgnicas. Sobretudo essas mulheres e esses
discursos ganharam
propores maiores na Saci e na Associao Aba, as quais mantiveram
relaes
institucionais de parceria.
A etnografia que fiz na Associao Aba e na Saci s pode ser assim
entendida se
considerarmos duas posies: a partir da utilizao que fiz daquelas
experincias para
projetos de iniciao cientfica25, pois elas guardaram dados que
foram coletados a
partir de procedimentos que buscaram legitimar os lugares tanto
das entidades e
dos militantes quanto de pesquisadores e estudantes iniciados; a
segunda posio
diz respeito memria guardada, resgatada e ressignificada
daquelas reunies, haja
vista que dados aqui discutidos e outros possveis de serem
produzidos foram de
algum modo colocados nas reunies e entrevistas realizadas.
Isto , at o final da dcada de 1990 e a primeira metade da dcada
deste novo
sculo, a atuao orgnica em algumas entidades negras no
resultava
necessariamente em mobilidade econmica, mas significa algum
prestgio, na medida
25
Raa, identidade......
-
20
em que a insero a algumas daquelas organizaes era condicionada a
um convite
feito por um membro de prestgio ao interessado. Em meio ao
interesse de alguns
grupos de indivduos em inserirem-se em entidades orgnicas, havia
de fato aqueles
que no atendiam ao perfil de ativista ou de scio
Do ponto de vista da organizao e do desenvolvimento das aes dos
movimentos negos na dcada de 1990, algumas das entidades negras,
especialmente aquelas articuladas aos grupos no-hegemnicos,
buscavam apresentar desdobramentos de suas aes no Frum de Entidades
Negras, na medida em que pretendiam ter sua sede prpria,
desenvolver projetos de forma sistematizada e obter recursos
financeiros.
Neste sentido, os movimentos negros ganharam uma nova dinmica,
posto que as entidades que integravam o frum de entidades comeavam
a pensar em melhorar sua estrutura fsica e de aes internas. A maior
parte daquelas entidades postulou uma estrutura de Ong, mas
dificuldades como formao profissional dos seus integrantes, a
necessidade desses indivduos se inserirem no mercado de trabalho,
juntamente com a pouca habilidade para adquirir mais informaes
acerca das fontes de recursos e aos meios para faz-lo junto s
agncias financiadoras, foram as causas materiais do seu
fracasso.
A relaes amorosas no campo da militncia sergipana ainda no foi
objeto de estudo, seja nas cincias sociais, seja em reas afins como
a psicologia em Sergipe. No h quaisquer referncias a este tema nos
poucos estudos anteriores que trataram das relaes raciais
contemporneas no estado de Sergipe. No meu trabalho, essas relaes
amorosas ganharam maior importncia, na medida em que as discusses
acerca das estratgias de poder nos movimentos negros locais
resultavam em novos desdobramentos, os quais revelaram a presena
desse mecanismo afetivo entre a militncia negra sergipana. Note-se
que a percepo de discursos e posturas politicamente corretas de
mulheres e homens negros ativistas me chamaram a ateno desde o
incio da minha circulao por esses meios. Tais posturas eram de tal
modo sedutoras, que s a observao de sua articulao no me bastou, e
logo constitu uma daquelas relaes endogmicas. Devo destacar que tal
tema sempre
-
21
esteve na ordem dos meus interesses, motivo pelo qual realizo
uma satisfao pessoal antiga.26
Consideraes Finais
Os dados estatsticos que apresentam as mulheres pretas como o
grupo mais
problemtico e cujas representaes no que tange aos nmeros de
casamentos e
separaes descrevem um contexto de solido afetiva que comea a ser
explorada
pela antropologia contempornea (cf. Pacheco, ano), esbarra no
ativismo dos
movimentos negros contemporneos. Esta assertiva, todavia, como
pudemos ver, s
pode ser levada em conta num contexto contemporneo, isto , da
ltima dcada de
1990 para c. ali que a problemtica dos casamentos dos casamentos
entre homens
militantes com mulheres socialmente brancas questionada e, mais
do que isto,
comea a representar um incmodo ou a pedra no sapato desses
ativistas e do salto
alto das mulheres com que casaram.
E na medida em que as aes polticas militantes no dialogavam e
no
mantinham qualquer relao com os projetos matrimoniais masculinos
negros, as
crticas de mulheres ativistas nunca conseguiram ganhar
visibilidade ou se legitimar no
conjunto das demandas produzidas por esses segmentos. A sua
possibilidade se deve
emergncia e produo de novas identidades culturais do mundo
moderno, as quais,
baseadas na diferena, potencializam a sua presena em espaos de
poder e
legitimao, os quais normalmente produziram uma invisibilidade
sintomtica,
esvaziados as suas identidades. A idia de fazer poltica ou de
atuar em cenrios
no-hegemnicos resulta em efeitos que, a despeito da imagem de
subalternos,
produz tenses e saberes cujas fronteiras entre os de dentro e os
de fora desses
lugares tendem a se complexificar na medida em que esto sendo
refeitas luz de
verses relacionais, porm distintas nos seus contedos.
26
O ponto alto das possibilidades de analisar esses contextos
amorosos deu-se durante as entrevistas para a seleo do Concurso
Internacional de Bolsas de Ps-Graduao da Fundao Ford em 2002. No
contexto da apresentao do meu projeto, os meus pareceristas
concordaram que essa discusso era pertinente dentro da minha
proposta de pesquisa, fato que influenciou positivamente o meu
propsito.
-
22
No domnio dos movimentos negros modernos qual a posio no poder e
que
imagens o homem e da mulher negra esto produzindo
contemporaneamente?
Possivelmente o protagonismo que esses sujeitos esto assumindo e
pretendem
redimension-lo na sociedade brasileira ir alterar os dados de
quatro dcadas atrs,
quando o nmero relativo de pardos crescia, enquanto os grupos
negros e
brancos diminuam. Esta alterao no necessariamente dar em termos
absolutos,
mas simblicos. Um dado importante das mudanas pelas quais passam
a populao
negra e os movimentos que se apresentam como seus representantes
que todas as
novidades (tambm relativas) apresentadas pelas cincias sociais
acerca da
experincia contempornea ganham, muito rpido, o domnio
popular.
Isto implica em dizer que as orientaes que produziram tenses
polticas que
tm implicado em mudanas na ordenao dos pares matrimoniais,
passando, em
certos contextos, dos inter-raciais (sobretudo homem negro
mulher branca) para
intra-raciais (homem negro mulher negra), tm conhecimento de dos
dados e das
consideraes do campo cientfico que lhe interessam. Assim, embora
autnomo no
que tange sua filosofia, o campo cientfico produz um
conhecimento que tende a ser
utilizado com um instrumento poltico para novas significaes da
experincia social. O
movimento de troca de saberes e percepes entre pesquisador e
pesquisado, ou
entre a cincia e o mundo da experincia, rearticula, em novos
termos, as suas
relaes de troca. Ao que parece, cada um dos lados continua
fazendo o que acha que
deve ou pode fazer com aquilo que o outro constri.
Os casamentos endogmicos no interior dos movimentos negros
no
representam, de fato, as trocas matrimoniais articuladas por
antepassados. Esses
casamentos (ou namoros) tambm no devem ser pensados como a
representao de
orientaes essencialistas, baseadas na noo esvaziada de raa, cor
ou etnia. Os
contextos pesquisados contemporaneamente revelam que as
identidades ou as
classificaes raciais so fruto de construes discursivas e de
posicionamentos que
dizem respeito ao modo como os sujeitos da ao do significados
sua percepo
cultural, poltica ou simblica de si mesmo e do mundo que fazem
parte. Esses
-
23
sujeitos, conforme pudemos perceber, no dispem dos elementos
histricos e sociais
para produzirem os efeitos raciais que tanto apavoram os
defensores de um mundo
onde as vontades individuais sejam asseguradas. O que parece ser
menos foroso
pensar que as vontades individuais so atravessadas por orientaes
contextuais que
aceitam as normais mais gerais da vida contempornea: a tenso
baseada na
diferena.
-
24
Referncias bibliogrficas
SILVA, Francisco C. Cardoso da. (2001) Construo e (Des)Construo
de Identidade
Racial em Salvador: MNU e Il Aiy no combate ao racismo, Campina
Grande/Paraba
Dissertao de Mestrado